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DICIONÁRIO

DE OBRAS
POLÍTICAS
François Châtelet faleceu em 26 de dezembro de
1985, algumas semanas antes da entrega das
provas finais deste dicionário, à edição do qual
consagrou suas últimas forças.

Cada um dos autores que contribuíram para a


elaboração do presente dicionário é responsável
unicamente pelos seus textos. Os três coordena­
dores assumem sozinhos a responsabilidade do
conjunto. Os colaboradores aceitaram participar
sem ter tido conhecimento quer da lista definitiva
das obras selecionadas, quer dos autores chama­
dos a analisá-las.
DICIONÁRIO
DE OBRAS
POLÍTICAS

Editado sob a coordenação de


FRANÇOIS CHÂTELET
OLIVIER DUHAMEL
EVELYNE PISIER

Traduzido por
Glória de C. Lins
e
Manoel Ferreira Paulino

civilização brasileira
Título original: DICTIONNAIRE DES CEUVRES p o l i t i q u e s
C opyright © 1986, 1991 by PRESSES UNIVERSITAIRES DE FRANCE
C opyright © 1993 by Editora Civilização Brasileira S.A. (da tradução)

Capa: FELIPE TABORDA

Editoração Eletrônica: IMACEM v i r t u a l em ITC Clearface, 1 1 /1 2

ISBN: 85-200-0040-1

1993: ANO EM QUE ESTA EDITORA COMEMORA SEU SEXAGÉSIMO ANIVERSÁRIO

Todos os direitos reservados. N enhum a parte desta obra poderá ser reproduzida
no Brasil e em Portugal, seja de que forma for, sem a expressa concordância da
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Av. Rio Branco, 99 - 20" andar
20040-004 Rio de Janeiro, R J.
Tel: (021) 263-2082 Telex: (21) 33 798 Fax: (021) 263-6112
Caixa Postal: 2 3 5 6 /2 0 .0 1 0 Rio de Janeiro - RJ.

Im presso no Brasil
P rin te d in B razil
Participaram da elaboração deste dicionário

Miguel Abensour Luc Ferry Pasquale Pasquino


Pierre Ansart Elisabeth de Fontenay Guy Petitdemange
Paul-Laurent Assoun François Furet Alexis Philonenko
Yves Benot Alain Garoux Evelyne Pisier
Jean-Michel Besníer Mareei Gauchet Jean-Bertrand Pontalis
Mario Bettati Jacques Gerstlé Hughes Portelli
Jacqueline Blondel Raoul Girardet Jean-Luc Pouthier
Frédéric Bon Alain Guillermou Philippe Raynaud
Pierre Bouretz Ilan Halévi René Rémond
Jean-Denis Bredin Stanley Hoffmann Pierre-Marc Renaudeau
Jacques Brunschwig Dick Howard Alain Renaut
Christine Hu Chi-Si Olivier Revault
Buci-Glucksmann Claudio-Sergio d’Allonnes
Jean-Yves Camus Ingerflom Dominique Reynié
Hélène Carrère Albert Jacquard Jean Rivero
d'Encausse Lucien Jaume Pierre Rosanvallon
Gérard Chaliand Pierre-Jean Labarrière Yves Roucaute
François Châtelet Bernard Lacroix Bernard Roussel
Yves Chevrier Georges Lavau Marie-Christine Royer
Colette Clavreul Armelle Le Maximilien Rubel
Dominique Colas Bras-Chopard Marc Sadoun
Jean-François Courtine Jean Lebrun Shlomo Sand
Roger Dadoun Claude Lefort Marianne Schaub
Dominique Dammame Edmund Leites René Schérer
Didier Deleule Daniel Lindenberg René Sève
Olivier Duhamel Claude Lutz Schuyler Stephens
René-Jean Dupuy Thierry Maclet Marie-Thérèse Sur
Michel-Pierre Edmond Jeffrey Macy Nicolas Tertulian
Jacques Ellul Gérard Mairet Jacques Texier
André Enegrén Pierre Manent Jean-Louis Thireau
Steven Englung Bernard Manin Michel Troper
Bruno Etienne Christian Merlin Paul Valadier
François Ewaid Gilbert Merlio Michel Villey
Pierre Favre François Monconduit Gilbert Vincent
Michel Fédou Olivier Mongin Henri Weber
Gérard Ferreyrolles Antonio Negri Jacques Zylberberg
Marc Ferro Michel Offerlé
Jean-Marc Ferry Mona Ozouf
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Apresentação

Quando decidimos “editar" esta obra coletiva, comprometemo-nos com


um duplo objetivo: de um lado, tornar conhecidas obras que, de diversas
maneiras, marcaram a reflexão política no seio da cultura mediterrâneo-eu-
ropéia (e suas extensões posteriores), desde seus marcantes primórdios
históricos, como a Tora, a narrativa de Tucídides e os diálogos de Platão, até
nossos dias...; por outro lado, suscitar por parte dos numerosos e diferentes
especialistas comentários forçosamente interpretativos que testemunhariam
também as preocupações do pensamento político contemporâneo.
Este duplo objetivo implicava uma dupla dificuldade: quanto ao núme­
ro das entradas (obras) e, portanto, quanto à sua escolha. Assim, desistimos
do caráter de quase-exaustividade que o projeto de um dicionário normal­
mente implica. Essa decisão, se nos liberou de notas curtas que só divulgam
alguns títulos e datas, nos obrigou a operar uma seleção rigorosa e, portanto,
a expor-nos à acusação de arbitrariedade. 0 presente dicionário trata apenas
de cento e sessenta e seis obras. De obras e não de autores, os textos
constituindo um material mais diretamente conceituai. Quanto ao escrito
político selecionado, ele poderá ser tanto um texto que, dentro de suas
organização e lógica internas, exponha uma concepção original da ativi­
dade política, quanto um que, dentro das circunstâncias históricas dadas,
tome partido explicitamente e que, em sua argumentação, defina pers­
pectivas sobre o governo da Cidade, ou, ainda, um texto ao qual o correr dos
acontecimentos políticos tenha dado importância maior, seja porque ele lhes
foi antecipatório ou o causador, ou de alguma maneira os esclareça. De fato,
as obras políticas aqui analisadas são em sua maioria mistos desses diversos
aspectos —com dois limites antitéticos: o livro intelectualmente nulo que só
figura aqui devido ao papel histórico desempenhado por seu autor (o que
explica o Mein Kampf, de Hitler, por exemplo) e o discurso coerentè,
completo, fundamentado sobre uma concepção do mundo e do conhe­
cimento cujo interesse não se mede pela realização histórica (a Kallipolis, de
Platão?). A esses diversos tipos foram acrescentados, além da tradição
politológica, escritos cujo projeto não é especificamente político, mas cujos
propósitos esclarecem de maneira decisiva a natureza do político: é o caso
de Mal-estar na civilização, de Freud, ou de Para além do bem e do mal, de
Nietzsche.
Graças a essa seleção, às vezes dolorosamente operada, tornou-se
possível esperar que cada um dos artigos seja, ao mesmo tempo, análise e
comentário, ressaltando os pontos fortes (ou as linhas de força), as in­
venções, as inércias, até mesmo as lacunas, as contradições e as redundân­
cias, multiplicando os ângulos de ataque e de esclarecimento pela referência
a outras obras e a evocação, se necessária, dos efeitos da obra e das
interpretações mais marcantes que ela suscitou. Os autores de cada entrada
tiveram a maior liberdade, mas pedimos a eles que zelassem pela situação
histórica do texto e concluíssem seus artigos com indicações bibliográficas,
a fim de que este dicionário se transforme num instrumento de trabalho para
estudantes e pesquisadores.
Havia ainda duas questões a considerar: a da ordem de apresentação
das obras e a do limite subjacente do campo histórico examinado. Para a
primeira, decidimos, por uma questão de comodidade, fazer as obras figura­
rem segundo a ordem alfabética do nome de seus autores; para a segunda,
julgamos conveniente não tratar de obras cujos autores ainda estivessem
vivos por ocasião da entrega do manuscrito ao editor.
Quanto à lista de obras que figuram no presente dicionário, ela perma­
nece contestável, evidentemente: às limitações referidas acima, é oportuno
acrescentar nossas próprias incertezas, bem como a ocorrência de alguns
atrasos tão persistentes que acabaram por nos privar de artigos com os quais
contávamos. Quanto ao conteúdo, isto é, quanto aos próprios verbetes deste
dicionário, cada um poderá discutir suas imperfeições. Será que trouxemos
àqueles que estudam, pesquisam ou se apaixonam (por este tema) o ins­
trumento que os auxiliará em seu trabalho de elaboração e de elucidação de
questões políticas, empenhando-os em reflexões originais? Será que lhes
oferecemos outra coisa além de uma simples compilação, como esta parece
ser? Será que fomos bem-sucedidos em lhes oferecer alguma coisa como um
“corte vertical” da pesquisa política que se faz na França hoje em dia,
revelando-se a ela mesma dentro de suas tomadas de posição face ao passado
ou ao quase-presente do saber político? A resposta não nos pertence. Estamos
pelo menos persuadidos de ter realizado uma obra ao mesmo tempo viva e
abrangente: dentro de sua diversidade e disparidade, com suas repetições e
contradições, o conjunto formado por estes textos — sobre os quais não se
estabeleceu nenhuma unanimidade entre nós — contribui para o debate do
pensamento político contemporâneo não somente como testemunho, mas
também como participante. Assim esperamos.

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DICIONÁRIO

DE OBRAS

POLÍTICAS
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A
ADORNO, Teodor Wiesengrund, 1903-1969
Minima Moralia, 1944-1947

“O que quer que faça, o intelectual o faz


mal” (127).

Por sua própria fragmentação em 153 notas (espécie de diário redigido


durante três anos - 1944/1947) não-narrativa das atividades e dos dias, mas
exercício de teorização sobre objetos, testemunhando ao mesmo tempo o fraco
poder de protesto do indivíduo e a persistente vontade das “pessoas” de
Frankfurt em tomar a teoria como prática verdadeira, Minima Moralia,
primeira obra de Adorno após Théorie de la nouvelle musique (Teoria da
nova música) a aparecer na Alemanha depois da guerra, em 1951, é a
expressão, se não mais bem-sucedida, pelo menos mais representativa de seu
pensamento, com esse componente essencial que é o estilo, triunfo da micro-
análise racionalizadora sobre os materiais mais diversos e virtuosidade de uma
escrita que se obriga a estabelecer da melhor maneira possível o que se pensa
e o que se sente. Ela não tem a vigorosamente conceituai coerência temática
de A dialética da razão (1947) ou de Dialética negativa (1966), nem aquela,
mais isenta por ser exigida por objetos determinados, tal como é encontrada
nos diversos estudos sobre a estética, seja em Prismas ou Três estudos sobre
Hegel. Entretanto, Adorno reflete-se aí por inteiro, a imagem de um homem
encurralado, combativo, precipitando-se na escrita sob uma forma visivelmente
marcada por Walter Benjamin, no momento em que a euforia da vitória sobre
o nazismo verifica-se impotente para dissipar o sentimento de um impasse
entre o social e o político. O subtítulo da obra, Reflexões sobre a vida mutilada,
fala dessa ferida quase incurável da história. E ninguém está livre dela.
O social (indivíduo, família, mundo do trabalho) e o sócio-cultural sempre
foram para Adorno objeto privilegiado de atenção. Mas, na medida em que a

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visão tão crítica que ele traz se aproxima da alucinação, no sentido de que ele
vê aí uma espécie de totalidade extraordinariamente articulada, mediatizada e
quase transparente. Essa visibilidade do todo torna-se desde então o batente
sobre o qual a reflexão filosófica ressalta, tomando como seu princípio que
precisamente “o todo é o não-verdadeiro” (pág. 47) e que “apenas são
verdadeiros os pensamentos que não compreendem a si mesmos” (179). A
proposição é provocadora, mas, ao mesmo tempo que uma denúncia de todo
idealismo, ela afirma precisamente o que sustenta uma ética mínima, mas
exigente, a saber, a necessidade de (re)tornar à não-identidade, ao reco­
nhecimento da alteridade*, da não-redução ao mesmo, à restituição das
singularidades, nos outros assim como em todos os objetos, não-solúveis. Ética
mediante palavras estranhas, como “esses judeus dentro da linguagem”,
“moralia” e "minima”: a crítica de Adorno não passa de denúncia feroz; como
em Nietzsche, tão honrado nessas páginas, minúsculas reservas de esperança
permanecem ainda decisivas no entanto, pois é graças a elas que a auto-re-
flexão dialética não termina em suicídio.
Quanto ao político, a despeito de uma preocupação inquietante com o
acontecimento, a despeito de tomadas de posição que valeram triunfos e
afrontas a esse “marginal-perdedor”, Adorno nunca lhe consagrou estudos
sistemáticos. A seus olhos, o político enquanto organização do poder se
reabsorve de certa forma e se explicita no destino da razão ocidental. Ele não
pode mais ser destacado do desenvolvimento histórico dessa razão, quer dizer,
da lógica implacável segundo a qual se verifica que a razão lógica, emancipa-
dora, é também dominadora e que ela permaneceu cega sobre esse obscuro
reverso de múltiplos nomes, a identificação, o domínio, a equivalência, a
instrumentalização, mas que encobrem todos a mesma realidade, a dependên­
cia e não a libertação, a perda de si e dos outros, a autodissolução ao mesmo
tempo consentida e sofrida. A ambigüidade do político em Adorno é indisso­
ciável da ambigüidade do racional. O irracional é uma escapatória fácil e
recorreu-se a ele abundantemente neste século, mas o próprio racional tal
como foi exposto historicamente não foi dispensado; ele se aloja no irraciona-
lismo, como uma serpente, sob a forma do propósito inconfesso de dominação:
é a própria tese, jamais abandonada, de La dialectique de la Raison. Ela
explica a crítica, certamente agressiva de maneira desigual, do nazismo e da
tradição hegeliano-marxista.
A incomparável contribuição hegeliana foi a dialética. Mas essa invenção
é uma faca de dois gumes. De um lado, a dialética instaura de uma vez por
todas e de maneira justa a generalização da mediação, portanto, para Adorno,
da práxis, isto é, da necessidade de substituir tudo dentro do quadro das
relações sociais. Nenhum imediato pode pretender uma virgindade matinal que
faria dela um ponto de partida garantido, daí existir em Adorno a crítica
renovada da fenomenologia, de Husserl a Heidegger, de Bergson também. De

* Alteridade, do francês altérité, neologismo originário do latim alter - o outro —, denotando um


conceito de multiplicidade interior. (N. da T.)

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outro lado, a dialética em Hegel implica igualmente “uma funesta universali­
dade do pensamento” (88), sua soberania concludente. Sua versão política ao
longo dos marxismos mostra sua perversão em poder autoritário, senão
totalitário, condensado no dogmatismo, e a burocratização de Estados e de
partidos míopes sobre a história concreta, prisioneiros da idéia de tática que,
como a evolução do Partido Comunista Alemão prova, levou a erros cruéis.
Semelhante uso da dialética torna-se uma instrumentalização da razão que
sucumbe à tecnização utilitarista. Adorno e Horkheimer fizeram estudos
notáveis sobre Hegel, todos partilhados com a gratidão por um pensamento
que faz da auto-reflexão a alma da crítica dialética e com a recusa categórica
da universalidade totalizante da categoria como idéia ou conceito.
Foi essa totalização, sob seu aspecto mais vulgar, que, qualquer que tenha
sido o peso das circunstâncias históricas (embrulhada de Weimar, nacionalismo
ambiente, relançamento do capitalismo...), explica da melhor maneira possível a
imposição tão fácil do nazismo. O nazismo, sua ala hitleriana, ter-se-ia contentado
em “arrumar a casa” (56). Adorno retoma as fórmulas brutais de La dialectique
de la Raison, operação de fraude, de pilhagem, dentro de uma Alemanha triste
(100). "Sem produzir um mínimo de cultura” (102), ele radicalizou fenômenos
em curso, mal percebidos pelas esquerdas, a massificação, a fascinação da
produtividade racionalizada, a renúncia do indivíduo a si mesmo, a sedução da
técnica como arte de produzir e de comandar, em resumo, a colocação de lado
de toda razão crítica e de toda singularidade inassimilável, dizendo, em outras
palavras, uma totalização propriamente mítica de aspectos múltiplos e ligados:
vocação alemã, idolatria do social e do coletivo, ódio do outro, apelo ao chefe. A
Shoah não é um acidente; ela deriva diretamente desta maquinaria psicossocial
de erradicação do um, ela é “o salto para dentro da barbárie” (53), na qual
“ninguém é inocente” (21). Por mais paradoxal que isto possa parecer, Auschwitz
é interpretado à luz da história da razão se degradando em instrumento de
progresso até o ponto da manipulação que termina na “indiferença por sua
própria morte” (217). Mas Auschwitz, verdadeiro buraco negro dentro do
pensamento de Adorno, marca de um negativo fora de comparação, referência
funcionando como crítica radical, abre-se sobre uma visão da história quase
inversa da visão hegeliana; a história é “uma máquina infernal” (218), sancionada
pelo nazismo e suas ruínas.
Em seu primeiro período, Adorno e Horkheimer, pessimistas, vigilantes,
tomavam ainda Marx relido por Luckács, Korsch, Grossmann, Marcuse mesmo,
não por uma visão do mundo, mas por uma teoria revolucionária, mesmo
quando a revolução parecia longínqua. O desfraldar da catástrofe modificou a
atitude intelectual. Seria ingenuidade pensar que os conflitos de classes
desapareceram; eles simplesmente recuaram de certa forma de sob seus olhos
por trás dos antagonismos mais duros e mais nítidos, todos secretamente
animados pela atração vertiginosa pela dominação sobre os outros e a nature­
za. Essa seria a brutalidade de nossa modernidade.
Paradoxalmente, a situação presente dá razão a Marx: “O princípio
econômico triunfa em toda parte.” (175) A força de trabalho é apenas uma

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forma de mercadoria; e a “mercantilização” é um processo de contaminação
generalizada, ganhando a cultura e as relações sociais. O capitalismo a faz
prevalecer no Oeste e no Leste também. Resulta daí um materialismo dos mais
vulgares, estranho ao materialismo sempre visado por Adorno. Resulta daí
também essa formidável mutilação dos indivíduos que, a despeito de protestos
ruidosos, como certo existencialismo, “perderam até a consciência deles
mesmos.” (63) "Hoje em dia a maioria das pessoas uiva com os lobos.” (105)
Que tarefa, que lugar haverá então para o intelectual que não quer abdicar? A
crítica das ideologias e da cultura, expressão e motor do desaparecimento dos
homens dentro da areia movediça que é a economia, e de sua submissão. Tarefa
delicada, o poder devorante da cultura sendo tal que faz também mercado da
crítica. Se é impossível ser irrecuperável, é preciso pelo menos, por meio de
um exercício todo especial de escrita, que se apoie em três bases fortes, a
memória, a experiência e a reflexão, manifestar a verdade de não colaborar
(Ohne mitmachen). A censura de mandarinato*arrogante surgida contra
Adorno exprime a inveja irritada dessa contestação teimosa.
Em suas migalhas filosóficas, mais próximas de Pascal do que de
Kierkegaard (que Adorno conhecia bem), ou nos estremecimentos nietzchia-
nos, sarcásticos, irônicos, afrouxando-se aqui ou ali à lembrança dos milagres
da infância, a crítica da cultura é um desafio à lógica vigiada. A cultura
transformou-se em valor, com a obliteração completa da divisão do trabalho.
Submetida ao princípio econômico, ela será etiquetada doravante como “indús­
tria cultural”. Em todos os domínios, a técnica, em particular com seus efeitos
de multiplicação e de circulação, varre a imaginação em benefício do sucesso
monetário. A compulsão de consumir elimina mais ainda do que o pudor, a
reflexão e a contemplação: o consumo é passividade. A fetichização mis-
tificadora, que muda a necessidade sem a satisfazer, encobre a alienação do
produtor e do consumidor. Os próprios intelectuais não escapam a esse
processo de conformismo. A cultura reforça desta maneira a sujeição ao que
existe, e o poder é precisamente o que existe (203-204). E, com um encarniça-
mento que irá endurecendo, Adorno ataca as ideologias opostas que preten­
dem ou legitimar pela razão o que existe, o positivismo lógico principalmente,
ou legitimá-lo por meio da história do Ser, verdadeira confissão de impotência
e de consentimento (Heidegger). Quanto à cultura de massa, pretensamente
um avanço democrático, ela é para Adorno a apoteose do princípio econômico
de equivalência regida pelo valor. Tal cultura é paródia de cultura, liquidando
toda crítica, portanto a própria dialética individualização/socialização. Ela é,
na verdade, apenas a utilização planificada de um instinto poderoso, o da
autoconservação, cuja fórmula moderna é a adaptação, isto é, a freqüência
quase apavorante de toda alteridade. Ao contrário de Benjamim, Adorno não
acredita mais em uma força coletiva de oposição, fundada teoricamente. A
cultura presente desmancha toda solidariedade. Sobram o indivíduo, solitário,
e a multidão, sonâmbula (35).

* Mandarinato - todo corpo cujos membros se julgam a elite da elite (N. da T.)

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As relações sociais sofrem a mesma mutilação. Adorno retorna sobre esse
ponto em inúmeras observações feitas em outros lugares de sua obra. Primei­
ro, sem negar que a luta de classes sobrevive em grande escala, ele se esmera
em descrever um clima geral da vida social: frieza, monotonia, tédio, indiferen­
ça ao sofrimento, aceitação de coações desumanas e, sobretudo, essa inveja
que disfarçadamente e por toda parte a lei da competição impõe. Porém, mais
profundamente, a sociedade estaria como que enfeitiçada por dentro por
tendências destruidoras (214), bem ao contrário das paradas de hedonismo, de
vitalismo, de juventude reencontrada. Essas tendências seriam tão fortes que
os próprios dominados as ativam às suas próprias custas (171). Leitor atento
de Freud há muito tempo ele critica no entanto sua teoria do recalque (58),
tão aparentada com a repressão burguesa do prazer, e a da sublimação (198),
reconhecendo entretanto sua imensa contribuição à compreensão da patogê-
nese de nossas sociedades, cuja miséria sexual é a expressão exemplar, pois até
na relação homem-mulher se reinscreve, quase inapagavelmente, o princípio
de dominação. No final, o traço mais característico desta “civilização bárbara”
é “a liquidação do indivíduo" (128), na guerra e na paz também. Moído, se
moendo, o indivíduo está de certa forma em estado bem próximo do suicídio,
vítima de uma violência que, voltada para todo o exterior, não tolera mais a
mínima insularidade. Está aí uma contradição que marca as sociedades huma­
nas segundo a dialética da Razão. O capitalismo só faz acentuá-la. E a cultura
não é mais reflexo ou máscara dessa sinistra dialética, ela a renova. “A cultura
de massa é uma psicanálise ao inverso.” A doença é a normalidade. Todos
semelhantes.
Estas anotações, de maneira bastante incompleta, não devem ser atribuí­
das a um moralismo masoquista, agravado pelo acréscimo do exílio que é a
emigração (29). Elas testemunham, em Adorno, uma paixão pelo social, lugar,
se é que o é, de revelação sobre a história e a ação. Mas, tanto quanto o
conteúdo, é sua forma de apresentação que surpreende: o enfoque fragmenta­
do. Mesmo se categorias marxistas permanecem pertinentes, o que desapare­
ceu foi toda a idéia de uma metateoria sociológica, psicológica (E. Fromm) e
filosófica. A abordagem não-sintética significa precisamente a negação da
síntese particular/universal, o impedimento de toda a projeção da reconcilia­
ção, mesmo quando esta permanece a utopia, sob a forma da não-identidade.
Uma certa nostalgia do sujeito burguês se deixa escutar então, representada
por homens, como Balzac, Beethoven, Goethe, essa “civilização da Beleza
esclarecida pela razão”, nostalgia, para dizer a verdade, bastante indecisa,
ligada a uma espécie de anticapitalismo romântico. A história moderna é
aquela de uma queda. Cegar-se é a pior ameaça. A crítica é prevenção,
não-moralismo, é resistência, “a última relação negativa com a verdade.” (202).
Há dois lugares, pelo menos e sob condições, onde se exerce essa
estratégia de resistência: a arte e a filosofia.
Músico, sociólogo da música, muito modernista em suas escolhas, Ador­
no vê na música um modelo da criação artística e, por aí, na arte, uma espécie
de caminho para a redenção, sua utopia pelo menos. A música mais do que

17
toda arte, mas toda arte também a partir desse protótipo, se submete à
exigência interna de sua forma; se, portanto, ela se desestetiza, em suma, se
desestandartiza cruelmente, indica o indizível que visa, sem a atingir, à
filosofia: a síntese não-violenta, não-intencional, não-conceitual do sujeito e do
objeto em um objeto. Quando tem esse rigor, a arte é a inteligência muito
secreta da história. Ele reapresenta notavelmente o mundo social, suas dis­
torções e aberturas. Mesmo se Adorno parece pecar às vezes por tomar partido
antecipadamente (sua rabugice contra Stravinski, sua inverossímil incom­
preensão do jazz), os "grandes”, que sempre a relembram (Bach, Schõenberg,
Mahler, Kafka, Proust, BecketL..), falam não simplesmente de uma sensibili­
dade pessoal, mas transmitem de maneira muito exata, a seus olhos, a “função”
capital atribuída à arte, "garrafa atirada ao mar”, trazendo de volta, ao ritmo
das ondas e das marés, “a lembrança do particular" (92). "O universal da
Beleza só pode se comunicar ao sujeito dentro da obsessão do particular.” (74)
Esse é também o imperativo para a filosofia, sob a forma da reiteração
incessante do trabalho do negativo, da auto-reflexão separadora, ancestral
daquilo que hoje tem o nome de desconstrução. Em sua juventude, Adorno
aprendeu com o sutil Kracauer a considerar os textos filosóficos como docu­
mentos da verdade histórica e social, não como a exposição da verdade nela e
por ela mesma. Desde 1931, em L ’actualité de la philosophie, Adorno reco­
nheceu que “o pensamento deve renunciar à ilusão de poder apreender a
totalidade do real ou de se acreditar adequado e de acordo com o ser". Esse
impulso só fará avivar-se até a Dialectique négative. A visão de Adorno é
notavelmente clara: conhecer o concreto; mas este, absolutamente não-identi-
ficável a qualquer imediação que seja, exige “passar pelo deserto glacial da
abstração”, portanto esse modo de dialética estranha, mantendo, por meio de
um formidável momento de autocrítica (121), a não-identidade de si e da coisa.
A má universalidade é proclamar a soberania absoluta do pensamento. O bom
universal é “o pertencimento limitativo de um ao outro” (28). Mínima Moralia
é literalmente balizada por esse reapelo da tarefa, hoje em dia razoável, da
razão, situação-limite, causa, em parte, da solidão de Adorno: “A razão só pode
resistir dentro do desespero e do excesso” (186), a razão dialética tendo se
tornado “desvario com relação à razão dominante.” (69)
Livro que seria indecente reduzir em fichas, livro-encruzilhada, Mínima
Moralia expõe maravilhosamente uma atitude que, parece, se mantém em um
duplo movimento próprio ao autor e a uma geração de intelectuais (outros
ainda) pegos dentro da tormenta e que não renunciaram nem cederam a uma
corrente dominante. De um lado, a afirmação da necessidade da distância, da
não-coincidência, da defesa de si até este “ato”, consistindo em tomar para si
sua própria regressão não para mais bem se autoconservar, mas para que se
preserve, ao preço mais alto se for preciso, “a contemplação não-violenta” (87),
portanto uma relação não de senhor nem de escravo. De um outro lado, a
manutenção de um horizonte de utopia, que escapa à representação, não
simplesmente como réplica frágil do niilismo, mas por uma espécie de desejo
“de outro”, de um outro não-conhecívei, desejo em que ressoa a palavra

18
felicidade, "essa coisa hoje proibida” (202), e que tem vínculo com o dom, essa
coisa hoje "desaprendida” (39). Que um herdeiro de Marx, da envergadura de
Adorno, escreva que "o amor é um sentimento revolucionário" (161) diz menos
da ruptura dentro de uma descendência do que de seu prolongamento
surpreendente, uma outra travessia do humano, até os confins do teológico.
Caminho aleatório, mas, apesar de sua admiração, Adorno não é Samuel
Beckett Foi escrito, muito justamente, que os teóricos de Frankfurt eram
filósofos do exílio (M. Absensour). Mas o exílio era conhecido aí como tal,
cativeiro absolutamente não resignado. Mínima Moralia inclui o exílio de um
homem e de um pensamento dentro daquele de todos, em um dado momento
da história.

• Todas as citações (salvo indicações contrárias) remetem a Mínima Moralia. Traduzida ao


francês por Eliane Kaufholz e Jean-René Ladmiral, coleção Critique de la Politique, Payot, 1980,
230 págs.

► Jean-Marie Vincent, La théorie critique de 1’École de Francíort, Calilée, 1976; Présences


d ’A dorno, “10/18”, 1975; Martin Jay, Adorno, Cambridge, Mass., Harvard University Press,
1984; Archives de Philosophie, número especial, abril-junho de 1982; Jean-Marc Ferry, Mys-
tique et dialectlque chez Adorno, Projet, julho-agosto de 1983, págs. 753-769; Jürgen Haber-
mas, Theodor W. Adorno, Profils philosophiques et politiques (1971), Gallimard, 1974, págs.
231-259.

G u y PET1TDEMANGE.

AGOSTINHO, Santo, 354-430


A Cidade de Deus, 413*426

A Cidade de Deus exerceu sobre a história das doutrinas uma das mais
diversas e duráveis influências. Ela fascinou a Idade Média cristã. Ela inspirou
Bossuet em seu Discours sur Vhistoire universelle. Foi conservada por
Augusto Comte no catálogo de sua Bibliothèque positive. Suscitou, até o
século vinte, o interesse vivo dos historiadores filósofos e teólogos. Tal
influência já sugere a amplitude da obra agostiniana, que, se aborda temas
políticos, os insere também numa visão ampla da história e do mundo. Além
disso, muitas outras obras acompanham a De Civitate Dei: das Confessions à
De Trinitate, dos tratados exegéticos aos numerosos Sermões, o bispo de
Hipona move-se nos horizontes que lhe abriram sua experiência pessoal, sua
reflexão filosófica, seu conhecimento das Escrituras, sua compreensão do

19
mistério cristão. É sobre esse fundo que convém interrogar a doutrina política
de A Cidade de Deus.

Roma, os Bárbaros, a Bíblia

Essa doutrina não se insere apenas dentro de um tempo; ela se constitui


por meio dos debates e dos acontecimentos mais marcantes. Seria necessário
dizer o que ela deve aos diversos combates de Agostinho: contra o dualismo
maniqueísta que colocava ura conflito eterno entre o Bem e o Mal; contra o
“partido de Donato” que, na África do Norte, acusava a Igreja Católica de ter-se
entregado ao poder político; ou contra os pelagianos, que negavam a univer­
salidade do pecado original e reconheciam aos homens a faculdade de se
salvarem apenas por suas forças. Mas se insistirá aqui no acontecimento que
foi, em 24 de agosto de 410, o saque de Roma pelas tropas de Alarico. Dois
anos mais tarde, Agostinho empreenderia a redação de De Civitate Dei, cujo
primeiro livro teria por tema central a recente devastação da “Cidade” e, por
seu intermédio, o problema da violência e da guerra, a questão da morte, a
situação dos cristãos nessa experiência. Não que a idéia maior da obra tivesse
sido inspirada no acontecimento: encontra-se o pressentimento desde o De
vera religione, que data do ano de 390, aproximadamente. Principalmente,
Agostinho não tinha como único objetivo responder às objeções levantadas por
um drama recente. Certamente, ele se sentia na obrigação de defender os
cristãos —acusados de ter, por sua própria religião, concorrido para a derrota
do Estado romano. Mas as primeiras palavras da obra dizem qual é seu
verdadeiro objetivo, que ultrapassa em muito as circunstâncias de um tempo:
"A muito gloriosa Cidade de Deus, quer seja considerada no curso das idades
presentes em que, “vivendo da fé”, ela viaja como estranho entre os ímpios,
quer seja considerada nessa estabilidade da eterna morada que "aguarda agora
com paciência até o dia em que a justiça será transformada em julgamento, e
que, graças à sua excelência, obterá, então, por meio de uma última vitória,
uma paz perfeita...” Resta dizer que tal perspectiva, em sua própria amplitude,
se desenvolve em um tempo politicamente muito sofrido e recebe, por causa
disso, um realce singular. Como que anunciado pelas primeiras invasões
bárbaras, o acontecimento de 410 é mais importante do que qualquer outro.
Ele não consiste apenas no saque de Roma (onde as tropas de Alarico ficaram
aliás, apenas três dias). Esse fracasso da cidade, fundada por Rõmulo na
Antiguidade, simboliza, principalmente, o fim de um império e de uma civiliza­
ção. São Jerônimo não se enganou e, na sua solidão em Belém, fez ressoar seu
assombro. Estando na África, onde a notícia o alcançou, Agostinho voltou seu
olhar na direção da “Cidade de Deus” para compreender, à sua luz, o destino
trágico de uma cidade terrestre.
Enredado em um tempo de crise, seu pensamento político forja-se no
encontro de duas tradições: a da cultura greco-romana e a das Escrituras
judaico-cristãs. Da Antiguidade grega, Agostinho retém, entre outras, a figura
de Platão. O autor de A República e das Leis traçou os planos de uma “cidade”

20
ideal e dela excluiu os poetas que, considerados “inimigos da verdade",
difundiam sobre os deuses ficções vergonhosas (II, 14). Mas Agostinho referia-
se sobretudo à cultura romana, da qual ele era um profundo conhecedor.
Conhecia bem a história da Urbs\ sua fundação, a sucessão de seus regimes,
suas crises internas, suas guerras, seus adversários e seus heróis. Os livros III
a V de A Cidade de Deus são uma paciente releitura dessa história. Releitura
orientada, certamente, por um princípio teológico: trata-se de mostrar que os
deuses dos pagãos não podiam servir o Estado, ao contrário do verdadeiro
Deus. Pelo menos parece que, no caso de Agostinho, a interpretação política
da história se constitui em uma parte dentro da história da política. Roma
oferece, sob esse aspecto, um terreno privilegiado não apenas pela diversidade
de seus governos, mas também pela importância que dispensa à res publica.
Seu gênio é político, ao mesmo tempo que jurídico e militar. E é assim,
frequentemente, pelo pior, mas a própria severidade de Agostinho não o
impede de prestar homenagem à “Cidade" que, até nos tempos de crise,
conheceu homens virtuosos e heróis. O bispo de Hipona não lhe pede para
renunciar àquilo em que ela foi grande, mas para acolher finalmente os dons
do verdadeiro Deus: “Ambiciona acima de tudo estes bens, ó nobre gênio do
povo romano, raça dos Régulos, dos Scevolas, dos Fabrícios, dos Cipiões;
ambiciona-os antes de tudo, distinguindo-os dessa infame vaidade e dessa
pérfida malignidade dos demônios. Se brilha em ti um dom natural digno de
louvor, apenas a verdadeira piedade poderá purificá-la e aperfeiçoá-la, enquan­
to a impiedade a fará perecer e consumar tua ruína...” (II, 29).
Potência política, Roma teve seus teóricos da res publica. Agostinho
sabia disso, pois muitas vezes evocou Varrão, Cícero e Sêneca. Mas, ao lado
das próprias obras literárias e filosóficas, a língua latina fez grande uso do
vocabulário político. O autor de A Cidade de Deus toma isso em consideração,
a ponto de sua atenção às realidades políticas favorecer uma certa politização
da linguagem teológica. Dessa maneira, evoca o lugar glorioso para o qual os
servidores de Cristo se deviam preparar “nesta muito santa e muito augusta
cúria dos anjos, nesta república celeste onde a lei é a vontade de Deus” (II, 19).
Assim, principalmente, retoma a palavra civitas para desenvolver o tema
central de sua grande obra —um tema que o bispo donatista Tichonius tinha,
sem dúvida, esboçado, mas ao qual o bispo de Hipona ia conferir uma
amplitude única. O emprego dessa palavra no próprio título da obra sugere
bastante que Agostinho, herdeiro da cultura romana, pretendia dirigir-se a seus
contemporâneos, utilizando uma linguagem capaz de atingi-los.
Ora, o termo civitas, tâo caro à tradição política da Urbs, não é menos
encontrado nas traduções latinas da Bíblia. Sem dúvida, Agostinho percebia isso
de modo bem mais sensível, pois ele próprio estava imbuído de romanidade; mas,
ao contrário, sua familiaridade com as Escrituras judaicocristãs orientou, de
maneira decisiva, sua interpretação da cidade terrestre. A tradição bíblica não lhe
forneceu apenas uma linguagem que significa a experiência da sociedade huma­
na e de seu governo - com palavras como “cidade”, “povo”, “nação”, “rei” ou,
melhor, por meio dessa própria linguagem, ela indica que a dimensão política

21
não lhe é estranha. Ela atesta a existência do povo hebreu, o papel particular de
seu Estado, as peripécias de sua história. Principalmente, convida a relativizar os
sucessos passados da política romana; em primeiro lugar, não por causa dos
grandes impérios que precederam o desenvolvimento da “Cidade” (e que esta,
justamente, se vangloriava de tê-las suplantado), mas porque ela se pronuncia
sobre o sentido primeiro e último de todas as coisas humanas —desde a criação
do universo, quando nenhuma cidade terrestre existia ainda, até a consumação
dos séculos, quando a humanidade inteira será submetida ao julgamento divino,
passando pela morte redentora de Cristo e pelo crescimento de sua Igreja entre
as nações. A obra De Civitate Dei apresenta-se ainda como a exposição de um
percurso que, partindo da crise recente de 410, quer levar o mundo romano a
reconsiderar sua história política (assim como sua história cultural, doutrinária
e filosófica), a descobrir a futilidade de sua “teologia civil", a confessar sua
necessidade de um mediador entre Deus e os homens - mediador que Agostinho
identifica com a pessoa do Cristo (I-X); irá a cidade terrestre abrir-se a esse
caminho da salvação? Ela se abrirá, de uma só vez, a uma certa compreensão da
história que poderá esclarecer o destino político de Roma e permitirá, segundo
o livro XIX, recomeçar o trabalho sobre os problemas da dominação e da
servidão, da ordem e da desordem, da guerra e da paz —até que seja enfim
desvendado, nos últimos livros da obra, o mistério do destino último dos
indivíduos e dos povos.
Assim, o movimento de De Civitate Dei conta, ele próprio, esse encontro
de duas tradições, em um tempo de crise, suscita e fecunda o pensamento
político de Agostinho. Apaixonado demais por Roma para não esquadrinhar os
diferentes aspectos de uma experiência política, o bispo de Hipona é ainda mais
fascinado pela “muito gloriosa Cidade de Deus” da qual a Bíblia revelou as
origens, o desenvolvimento e o fim. Daí seu propósito principal não ser o de
elaborar, ele mesmo, um conjunto de teorias sobre a res publica. Ele gravita
antes em torno de um ponto focal, em que se devem articular a reflexão política
e a reflexão teológica —à sombra de uma outra articulação, mais fundamental,
entre a experiência da “cidade terrestre” e a peregrinação à “cidade de Deus”.

Cidade terrestre e Cidade de Deus

Para Agostinho, os indivíduos pertencem sempre a um grupo - família,


cidade, reino ou império. Isso é um fato essencial: a relação de cada homem
com a sociedade é tão estreita quanto a de uma letra com uma frase (IV, 3).
Mas a palavra civitas não significa apenas “cidade”: significa também o Estado
Imperial. Sua própria extensão faz dela um conceito-chave da vida política.
Logo, a existência de um grupo supõe, para Agostinho, um acordo de
base —qualquer que seja o objeto —e revela, por isso mesmo, uma disposição
fundamental do ser humano. É o que aparece na definição do “povo”: “a
reunião de um grande número de seres racionais, associados pela participação
harmoniosa naquilo de que gostam” (XIX, 24). Como toda forma de sociedade,
a civitas implica, portanto, num primeiro consenso que é a própria possibili-

22
dade de sua existência e que a leva a desejar tal objetivo mais do que qualquer
outro, uma predileção (dilectio) cujo objetivo pode ser bom ou mau, e, desse
modo, revela a moralidade ou a perversidade de um povo. Quer dizer que ela
não é definida segundo um modelo ideal - como em certas representações da
cidade antiga - , mas segundo a realidade de uma tendência que, concreta-
mente, orientará para o bem ou para o mal. Assim, "para compreender o que
é cada povo, é preciso considerar o objeto de sua predileção”; e o povo é “tanto
melhor quanto ele se incline para coisas melhores e tanto mais execrável
quanto se incline para as coisas mais abomináveis” (ibid.).
Para dizer a verdade, se o último caso prevalece, a res publica não
merece seu nome. É que a “justiça” é, nesse caso, uma condição essencial e,
quando ela falta, não existe mais “reunião de homens associados pelo consen­
timento em um direito e pela comunidade de interesses” (XIX, 23). E o direito
(jus) não é apenas o direito positivo. Ele designa o próprio objeto da justitia,
que deve ela própria derivar da caridade. Assim, esta noção de justiça não é
apenas uma retomada dela na tradição latina, mas sua transformação pela
interpretação cristã. Compreendida no sentido evangélico, ela leva Agostinho
a condenar o uso da tortura (que lhe parece, além disso, ilógica ou ilusória).
Sua importância se verifica, a contrario, na decadência da República romana.
Pois, na história dessa república, foi a injustiça que muitas vezes prevaleceu.
No entanto, será que não existe uma aspiração radicalmente boa e univer­
salmente partilhada? De fato, Agostinho distingue em todas as coisas o atrativo
fundamental da “paz”: o corpo humano a reclama, assim como o corpo social,
que encontra seu equilíbrio no repouso harmonioso de seus elementos. “A paz
da cidade é a concórdia bem ordenada dos cidadãos no governo e a obediência”;
tudo deve concorrer para isso - o comportamento dos indivíduos, a organização
do direito e as decisões das autoridades. Mas há mais: a “paz de todas as coisas”,
que é a “tranqüilidade da ordem”, é tão essencial aos homens que mesmo os
maus a desejam. E certamente a paz pode ser injusta: do mesmo modo, Agostinho
admite a legitimidade de certas guerras, mesmo quando lhes denuncia as
atrocidades. Mas o amor pela paz subsiste ainda no coração daqueles que se
entregam à injustiça. O orgulho “detesta a justa paz de Deus e ama sua própria
paz injusta. Mas ele não pode de maneira alguma não amar alguma paz. Pois não
existe em ninguém um vício de tal modo contrário à natureza, que destrua até
os últimos traços desta mesma natureza” (XIX, 12 e 13).
O tema certamente foi escrito para os contemporâneos de Agostinho,
naquele período tão agitado em que reviveu, sem dúvida, a lembrança da pax
romana nos mais belos dias do Império. Mas sua profundidade lhe vem daquilo
que ele toma como sentido, ao mesmo tempo, deste lado ou para além das
realidades políticas. Deste lado: o agostinismo quase autorizaria a dizer que o
desejo da paz se confundia com o desejo de viver. Além: a vocação última da
humanidade é, simplesmente, a “paz da cidade celeste” (XIX, 13). No entanto,
no meio do caminho entre a origem e o fim, a verdadeira paz é muitas vezes
maltratada, seja porque ela subsiste ao preço da injustiça, seja porque ela
desaparece sob o flagelo das guerras. A paz é o objeto de uma aspiração

23
universal, mas essa aspiração não impede os povos de se combaterem e se
odiarem - ela pode até ser utilizada para tal fim. Logo, as cidades humanas
são o teatro de forças antagônicas que, sem nunca fazerem cessar o atrativo
original da paz, sugerem uma divisão mais fundamental que a dos partidos,
reinos e impérios.
Herdeiro da tradição bíblica, Agostinho percebe com efeito que a vida
política está atravessada por uma oposição capital: "Dois amores fizeram duas
cidades: o amor a si mesmo até o ponto do menosprezo a Deus, a cidade terrestre;
o amor a Deus até o ponto do menosprezo a si mesmo, a Cidade celeste. Uma
glorifica a si mesma, outra, ao Senhor... Uma encontra a glória em seus chefes
ou nas nações que ela subjuga, é dominada pela paixão de dominar; na outra,
presta-se mutuamente serviço por caridade, os chefes dirigindo, os súditos
obedecendo" (XIV, 28). Este não é o lugar para precisar as expressões bíblicas
de tal conflito —que o Apocalipse resume na oposição famosa entre Jerusalém
e Babilônia—nem de mostrar o que o distingue radicalmente de uma luta eterna
entre dois Princípios contrários (como acontece no sistema maniqueísta). Do
ponto de vista que é privilegiado aqui, o tema dos “dois amores” explica primeiro
a reflexão de Agostinho sobre a autoridade que, em sua tripla função de
“governo”, “conselho” e “providência”, não deve ser movida pela “paixão de
dominar", mas pela exigência do serviço. Ele anima ainda a concepção da
propriedade, que não é ilegítima, mas cujo uso é bom oú mau, conforme a
orientação da vontade. Ele fundamenta enfim o julgamento sobre a escravidão,
que o bispo de Hipona apresenta como um castigo do pecado (mesmo se, não
mais do que os outros Padres da Igreja, ele não visa a reclamar sua abolição).
Mas como compreender a relação de tal “cidade” histórica (Roma ou
outras) com as “duas cidades” que são a “cidade de Deus” e a “cidade
terrestre”? A questão é das mais delicadas. Por um lado, com efeito, Agostinho
recorre à mesma palavra civitas para evocar as organizações políticas que os
romanos compreendiam tradicionalmente sob esse termo, e as duas sociedades
espirituais que formam o grupo dos justos e o grupo dos ímpios. A ambigüi­
dade é tão grande que a única expressão civitas terrena pode designar uma
cidade, que existe concretamente, e, ao mesmo tempo, a cidade terrestre, que
se opõe à Cidade de Deus. Será que não haverá aí confusão de duas ordens?
0 próprio Agostinho não reconhece que as cidades humanas (como organi­
zações políticas) são portadoras de valores a despeito de suas faltas, e que elas
não poderiam portanto ser comparadas à “cidade do diabo”, que, desde o
primeiro pecado, se opôs à “Cidade de Deus”? Daí a lhe emprestar a idéia de
uma terceira cidade, propriamente “política”, que estivesse a meio caminho
entre a cidade santa e a cidade pecadora, não há mais do que um passo a
transpor. Mas, por outro lado, Agostinho fala precisamente de “duas cidades”,
não de três. E deixa claro que essas duas cidades citadas dividem, unicamente
entre elas, o destino dos povos e que elas são “misturadas e confundidas uma
com a outra, neste século” (I, 35), e que as organizações políticas não
constituem portanto um terreno neutro, por sua própria natureza, estranho à
dominação do pecado, assim como ao trabalho da graça. Daí a suspeitar de não

24
se poder perceber a consistência dessas organizações e dissolver todas as
coisas humanas em uma visão englobante da história, não haveria, igualmente,
mais do que um passo.
Muito debatido na medida de suas motivações, o problema chama duas
observações cuja aproximação, em seu próprio paradoxo, se pode averiguar
muito claramente. A primeira é que Agostinho, retomando o termo civitas para
evocar a “Cidade de Deus” e a "cidade terrestre” (com o sentido de “cidade do
diabo”), tem consciência de lhe estar dando um sentido espiritual. Quando
evoca os dois grupos opostos, esclarece que: “em linguagem mística (mystice),
nós as chamamos também duas ‘cidades’, isto é, duas sociedades de homens,
estando uma predestinada a reinar eternamente com Deus, e a outra a sofrer
um eterno suplício com o diabo” (XV, 1). Mas - segunda observação - a palavra
civitas é justamente conservada, essa palavra que correntemente (até mesmo
no caso do próprio Agostinho) continua a designar uma certa forma de
organização política, uma “cidade" realmente dotada de uma existência hi$*
tórica. Percebe-se, então, o paradoxo: de um lado, a Cidade de Deus e a cidade
do diabo, porque sociedades espirituais não são nunca redutíveis a tal reino
ou império da história concreta, e, do outro lado, é nessa história mesma que
elas se inscrevem, é dentro do corpo social que elas se manifestam e que se
opõem. Uma única palavra, civitas-, mas essa única palavra pode ser entendida
literalmente — como determinação política da societas - e espiritualmente
(mystice) no sentido de Civitas Dei e civitas diáboli.
A lógica de Agostinho exclui desde logo que o Estado, deste mundo,
pretenda realizar a “Cidade de Deus”. 0 retrato elogioso dos imperadores
cristãos Constantino e Teodósio (V, 25-26) não significa de maneira nenhuma
a identificação dessa "Cidade” com figuras históricas de um Estado cristão.
Outros textos completam nesse ponto a doutrina de A Cidade de Deus (como
nas cartas 138 e 185). Certamente, é essencial que um Estado obedeça ao ideal
do Evangelho; e sabe-se, por outro lado, que Agostinho, com ou sem razão,
admite, na questão donatista, o recurso da Igreja a príncipes cristãos. Mas o
fiel não dá a César o que ele apenas deve a Deus; e, mesmo quando observa as
leis da cidade, só o faz para fins superiores. Para tanto, se civitas pode ser
tomada em dois sentidos, sua distinção não é separação. A “Cidade de Deus”
deve marcar com seu sinal a sociedade política —senão será a “cidade do
diabo” que triunfará: Agostinho não considera um terceiro termo, que se uniria
aos dois outros.
Na ocorrência, foi exatamente a “cidade do diabo” que geralmente
triunfou. Não desde sempre, pois, por mais opostas que sejam, as duas cidades
não são dois princípios coeternos. Resta dizer que as sociedades muitas vezes
se deixam dominar pelo poder do orgulho. Isso é ainda dizer muito pouco, pois,
se Agostinho marca bem a distância entre a “Cidade de Deus” e cidades da
história, a própria ambigüidade da expressão civitas terrena (cidade histórica?
cidade do diabo?) leva sem dúvida a marca de um pessimismo profundo que,
sem a luz da graça, se lançaria no desespero. Não apenas a sociedade política
não é nunca neutra; mas também escolheu seu campo que é, desde o pecado

25
original, o campo de Lúcifer. Ela só subsiste, portanto, pela paciência de Deus,
que lhe oferece, ao longo da história, a oportunidade de se converter à sua
própria “Cidade". Desde então, a fundação dos Estados, a sucessão de reinos
e de impérios, a organização do direito, as alternâncias da guerra e da paz -
tudo se tornou o lugar de um combate espiritual entre os santos e os ímpios,
desde as primeiras gerações até o final dos tempos, isto é, o pensamento
político de Santo Agostinho desenvolveu-se, no final das contas, em uma
teologia da história política.

Uma teologia da história política

O quadro em questão é dado pela sucessão de seis épocas: de Adão ao


Dilúvio; do Dilúvio a Abraão; de Abraão a Davi; de Davi à deportação para a
Babilônia; dessa deportação ao nascimento de Cristo; e, por fim, desse aconte­
cimento ao fim dos tempos, que será ele próprio o advento de um “sétimo dia”
(XXII, 30).
Conforme o testemunho da Sagrada Escritura, Caim foi o primeiro
fundador de uma "cidade”. Cidade “terrestre”, de acordo com toda, ambigüi­
dade da expressão: cidade de homens, cidade cujo construtor foi um fratricida.
Santo Agostinho viu aí o “arquétipo” do que deveria acontecer mais tarde:
Roma seria fundada, e, logo depois, Remo seria assassinado por seu irmão
Rômulo - como Abel o fora, na antiguidade, por Caim. No entanto, existe uma
diferença: Remo pertencia à “cidade terrestre”, enquanto Abel pertencia à
“Cidade de Deus”, e seu conflito com Rômulo significava, então, que a “cidade
terrestre” estava dividida contra si mesma (XV, 5). O nascimento da civitas
parece, em todo caso, estar ligado a uma morte fundamental, quer ela o
preceda, quer o siga.
Depois da evocação do Dilúvio, que obteve, nessa ocasião, a mistura
crescente das duas cidades e que engoliu a humanidade inteira, com exceção
de Noé e de sua família, Agostinho menciona diversas fundações de cidades e
de nações, detendo-se, muito especialmente, nas origens de Babilônia. Pois a
torre de “Babel” é a expressão mais concreta da impiedade e do orgulho.
Construindo-a, os homens não sonhavam tanto em realizar sua unidade, mas
apenas em, por esse caminho, se igualar a Deus. Assim como o castigo não
poderia ser outro que não a divisão das línguas e a dispersão dos povos; e
“Babilônia", cujo nome significa “confusão”, permanecerá o símbolo histórico
da “cidade do diabo” (XVI, 4-5).
Veio um homem, Abraão, cuja família pôde conservar a língua original
da humanidade - a futura língua do povo hebreu. Deus lhe prometeu que sua
raça possuiria uma terra. Essa promessa sobreveio à época em que dominavam
vários impérios, principalmente a Assíria, cujo rei tinha “subjugado todos os
povos da Ásia, com exceção da índia”, e cuja capital era exatamente a
Babilônia; ora, esse império anuncia Roma, que será fundada cerca de mil e
duzentos anos depois do nascimento de Abraão e que será, ela própria, “como
uma outra Babilônia no Ocidente” (XVI, 17). Mas Santo Agostinho segue

26
primeiro a história do povo hebreu. Pois esse povo foi constituído (no sentido
de se dar uma certa constituição). Libertado por Moisés da servidão no Egito,
vitorioso em cidades adversárias, entrou na terra prometida e foi dividido em
doze tribos. Foi governado pelos Juizes antes de se darem reis (XVII, 2).
Também nessa época, a Grécia se desenvolveu e Atenas foi fundada; foi na
época dos Juizes que Enéias chegou à Itália; enfim, o tempo dos reis Sau! e
Davi corresponde ao tempo dos reis latinos (XVIII, 6-9,19-20).
Quanto ao povo hebreu, os reinados de Davi e Salomão marcam o apogeu
de sua história política: a extensão do território é um sinal disso e, mais ainda,
a “paz” que se une ao segundo desses reinados. Todavia essa paz não pode ser
confundida com aquela que, definitivamente, realizará a promessa de Deus;
obra do reino hebreu assim como de todos os povos: a própria segurança não
a pôde preservar de uma invasão funesta (XVII, 13). Na ocasião, foi o pecado
de Salomão que, provocando o castigo divino, levou à divisão do reino em duas
partes. Os reinos assim constituídos vão ser vítima de guerras civis e, princi­
palmente, de inimigos externos. Derrotados pelos caldeus em sua própria terra,
os israelitas foram finalmente deportados para a Babilônia (XVII, 21, 23). Foi
durante a quarta época que Roma foi fundada, "como uma segunda Babilônia,
como uma filha da primeira" (XVIII, 22).
A Assíria foi por sua vez dominada pelo Império persa. A liberdade foi
devolvida ao povo judeu, na mesma época em que Roma, por seu lado, se
libertava de seus reis (XVIII, 26). Em seguida, os judeus tiveram de se submeter
a Alexandre e, depois, sofrer a opressão de vários soberanos helenistas.
Entretanto, Roma ampliou suas conquistas. Certamente, como vítima de sua
própria grandeza, ela conheceu, sob a república, crises graves. Pompeu invadiu
a Judeia, e o povo hebreu passou assim para o domínio dos romanos (XVIII,
45). Essa era a situação quando nasceu Jesus Cristo.
Cristo inaugurou uma nova época: com sua morte redentora, ofereceu às
cidades terrestres a oportunidade de se converterem à Cidade de Deus.
Enquanto Deus permitiu a expansão do Império Romano, a Igreja nascente se
expandiu pelo mundo e, muitas vezes, conheceu a perseguição. Mais tarde, o
poder político se abriu ao Cristianismo, com homens como Constantino e
Teodósio. Mas depois os tempos mudaram. Os bárbaros invadiram a Itália, e
Roma foi saqueada. Mas não foi, no entanto, o fim do mundo, e este não pôde
mais ser fixado no término de um milênio que seria, conforme uma inter­
pretação literal demais do Apocalipse, um reino visível do Cristo sobre a terra
(XX, 7). A história permanece em aberto. O futuro destino de Roma e das
nações acolherá ainda o conflito dominante das seis épocas, até o dia em que
todos os reinos se submeterão ao julgamento divino, que distinguirá, em cada
cidade terrestre, a cidade dos ímpios e a cidade dos santos.
Essa é, em linhas gerais, a visão agostiniana da história política. Como
visão de uma história, ela não desenvolve apenas as descrições da cidade
antiga; reflete também sua própria inspiração, pois é em nome de sua fé que
Agostinho rejeita a tese de um retorno periódico das civilizações (XII, 14).
Teológica, tal leitura da história relativiza o que, no ideal da cidade grega ou

27
nas ambições da Roma imperial, poderia figurar como valor supremo. Ela
implica, com efeito, uma dupla ultrapassagem da civitas: por um lado, pelo
indivíduo, pois é no coração de cada homem que acontece o combate espiritual
das “duas cidades”; por outro lado, pelo absoluto, pois reinos e impérios
recebem de Deus seu poder (como disse São Paulo na Epístola aos romanos),
e sua história se esclarece pelos decretos da Providência. Além disso, esses
decretos não entravam a liberdade humana; diferentes dos astros, cuja única
posição era, para alguns, a verdadeira causa dos impérios (V, 1). A ultrapassa­
gem da civitas não é, portanto, dupla, mas única, pois nela se encontram a
disposição divina da liberdade e o exercício humano dessa liberdade que é,
para cada indivíduo, conversão à “Cidade de Deus” ou consentimento da
“cidade terrestre”. É verdade que, em Agostinho, as escolhas são irreversíveis
uma vez que a morte venha. Também a história política é um drama, que
ameaça com as sombras de uma “massa condenada” e de um inferno eterno.
Mas, correlativamente, a teologia agostiniana dá oportunidade a todos aqueles
que foram excluídos das cidades terrestres, mesmo quando já pertenciam à
“Cidade de Deus”. Ela convida, em todo caso, a optar, na presente crise da
grandeza romana, por esta “Cidade celeste”, cuja peregrinação será terminada
um dia na paz dos eleitos.
Por causa de sua própria riqueza, o pensamento político de Agostinho
não poderia deixar de ter uma excepcional posteridade. Mas seria essa pos­
teridade de fidelidade ou de traição? A questão se coloca especialmente para
a cristandade medieval, na medida em que ela teria exprimido (senão realizado)
o famoso ideal de um “agostinismo político”. Foi assim que, conforme H.-X.
Arquillière, a concepção do império carolíngio teria absorvido o direito natural
em uma função propriamente religiosa - contra o verdadeiro pensamento do
Doutor africano - , e teria por esse motivo favorecido o desenvolvimento do
papado medieval. E. Gilson, por outro lado, deu relevo a diversas “metamor­
foses” da Cidade de Deus que, ao longo da história, foram “paródias” da obra
agostiniana. Mas tais releituras manifestam muitas opções sobre o próprio
sentido dessa obra, cuja interpretação tem sido objeto de numerosos trabalhos.
Se certos estudos privilegiam um tema particular da doutrina política de
Agostinho, a obra clássica de G. Combés merece nesse momento uma atenção
especial: considerando as representações da Autoridade, da Lei, da Justiça, da
Pátria, da guerra, das relações entre Igreja e Estado, ele mostra sua articulação
em um verdadeiro “corpo de doutrina”, cuja construção repousa, ela própria,
sobre certa concepção de Deus.
Mas o pensamento político de Agostinho suscita dois debates maiores,
cuja motivação reflete bem diversas preocupações do século vinte. O primeiro
foi, como se disse, o debate sobre a noção de civitas. Diversas soluções foram
propostas: enquanto Ch. Journet fala de uma “terceira cidade” ou “cidade do
homem” e S. Cotta desenvolve o conceito de uma "cidade política”, H.-I.
Marrou não vê outro tertium quid diferente do “dado empírico da história” e
J.-Cl. Guy deixa à expressão civitas terrena toda sua ambigüidade significativa:
cidade da terra, cidade sobre a terra. Para P. Brown, Agostinho não teria nunca

28
superado uma dicotomia maior de seu pensamento: de um lado, consciência
aguçada da condição humana neste mundo; de outro, aspiração a uma Cidade
transcendente. O debate é ainda retomado, de uma outra maneira, por uma
confrontação da doutrina e da prática agostinianas: assim a luta do bispo
contra os donatistas levaria, conforme A. Mandouze, aos riscos de um compro­
metimento entre a Igreja e o Estado. Todas as soluções suscitadas manifestam
a mesma quantidade de visões sobre a relação entre o temporal e o espiritual
ou sobre a relação entre a política e a religião; elas significam diferentes
apreciações do “cristianismo”, de seu valor e de seus limites.
O outro debate, ligado ao primeiro, diz respeito à relação das idéias
políticas de Agostinho com uma certa visão da história e do mundo. J. N. Figgis
mostra assim que, para o bispo de Hipona, sociedades e culturas se mantêm
apenas pelo reconhecimento de seu fim eterno. E. Gilson compreende que a
edificação da “Cidade de Deus” dá a cada povo sua razão de ser e esclarece
seu destino. H.-I. Marrou frisa a importância da teologia agostiniana da
história, onde se entrelaçam dois temas essenciais: a fraqueza radical das
sociedades e a vocação sobrenatural da humanidade. Essa teologia opõe-se aos
otimismos ingênuos que desmentem tragicamente a história política do século
XX. Tanto assim que H. A. Deane começa sua obra por uma exposição sobre a
concepção agostiniana do homem que perdeu a graça divina e, segundo R. A.
Markus, o bispo de Hipona rejeitava toda “sacralização” da ordem estabelecida,
pois era sensível à precariedade das coisas humanas e à aproximação do caos
que, a sociedade civil, justamente, tinha como missão paralisar.
De fato, certos temas de De Civitate Dei são mais atuais do que nunca;
e compreende-se que a obra, por sua própria seriedade, possa encontrar eco
nas ansiedades de um milênio que finda. Mas seria traí-la esquecer seu foco
luminoso. Desenvolvida em um tempo de crise, herdeira de uma cultura em
declínio, a doutrina política de Santo Agostinho é, mais ainda, marcada pela
esperança cristã; pois os peregrinos da “Cidade Celeste”já percebem, por meio
das vicissitudes dos reinos terrestres, a vinda de um “reino que não terá fim”
(XXVII, 30).

• A obra: De civitate Dei contra paganos libri viginti duo, Paris, Desclee de Brouwer, col.
“Bibliothèque augustinienne”, texto latino, trad. de G. Combès, introd. e notas de G. Bardy ou
G. Combès, 5 vol., 1959-1960.

► John N. Figgis, The Political Aspects o f S. Augustine’s “City o f God", Gloucester, Mass.,
Pierre Smith, 1921, (reed. 1963); Custave Combès, La doctrine politique de saint Augusíin,
Paris, Plon, 1927; Etienne Cilson, Introduction à 1'étude de saint Augusíin, Paris, Vrin, col.
“Études de philosophie médiévale” 1943, ( ls ed., 1929);Lesm étamorphosesdela CitédeDieu,
Louvain-Paris, Vrin, 1952; Henri-Xavier Arquiílière, L ’augustinisme politique. Essat sur la
formation des théories politiques du Moyen Age, Paris, Vrin, 1955,1! ed., 1943); Henri-lrénée
Marrou, Saint Augusíin et 1’a ugustinlsme (em colaboração com A.-M. La Bonnardière), Paris,
Seuil, col. “Maltres spirituels”, 1955 (8! ed., 1973); Civitas Dei, civitas terrena; num tertium
qutd? em Studia patristica, II, Texte und Untersuchungen, 64, 1957, págs. 342-351; Charles

29
Joumet, Les Trois Cités: celle de Dieu, celle de 1’homme, celle du diable, em Nova et Vetera, 33,
1958, p. 25-48; Sérgio Cotta, La città política dl SanPAgostino, Milão, Ed. de Communità, 1960;
Jean-Claude Guy, Unlté et structure logique de la “Cité de Dieu ”, de Saint Augustin, Paris, col.
“Etudes augustiniennes”, 1961; Herbert A. Deane, The Polttical and Social Ideas o f St.
Augustine, Nova Iorque e Londres, Columbia University Press, 1936; André Mandouze, Saint
Augustin. L'aventure de la raison et de la grâce, Paris, col. “Études augustiniennes", 1968; R.
A. Markus, Saeculum: Hlstory and Soclely in lhe Theology o f St. Augustine, Cambridge,
University Press, 1970; Peter Brown, Religion and Society in the Age o f Saint Augustine,
t Londres, Faber & Faber, 1972.

Michel FÉDOU.

ALAIN (CHARTIER Émile), 1868 - 1951.


Elementos de uma doutrina radical, 1925

Alain exerceu duas atividades simultaneamente: foi professor de Filosofia


em Paris, a partir de 1902, destacando-se como membro do corpo docente do
Liceu Henrique IV, e jornalista, colaborando em diversos periódicos radicais
de província. Foi assim que escreveu milhares de Propos (ensaios, artigos) -
cerca de cinco mil, em verdade - publicados principalmente, antes de 1914, no
La Dépêche de Rouen et de Normandie e, depois da Primeira Guerra Mundial,
na revista Libres Propos, criada especialmente para ele por Jeanne e Michel
Alexandre.
Foram esses dois professores de Filosofia, a propósito, profundos admi­
radores e amigos de Alain, os organizadores de uma primeira coletânea de
artigos dele, publicando-a em 1925 sob o título Éléments d ’une doctrine
radicale. Seguiram-se a ela duas outras, Le Citoyen contre les pouvoirs (1926)
e Propos de politique (1934). Uma edição revista dessas três antologias foi
então preparada pelo próprio Alain, que tencionava reunir alguns Propos
escolhidos sob o título Avenir de la démocratie. Mas esse projeto só veio a
público em 1952, após a morte do autor, sob o título mais neutro de Politique.
A bem da verdade, exceção feita de Mars, ou la guerre jugée (1921), obra
consagrada exclusivamente à guerra, Alain jamais escreveu obras políticas,
pois preferia redigir suas folhas esparsas ao sabor dos acontecimentos, em vez
de elaborar, ainda que de modo pouco sistemático, o que se pudesse considerar
pregação doutrinária. Os Propos cotidianos, de 1906 a 1914, são artigos
curtos, escritos num dia e publicados no outro, salvo raríssimas exceções.
Prosa de circunstância, a que não faltam freqüentes toques de humor, os
Propos exprimem, porém,^ quando consultados com atenção e método, algu­
mas “idéias vertebrais”. É o que se poderá constatar lendo a seleção que
publicamos a seguir, onde isso fica bem demonstrado.

30
Esses Propos reunidos em livro, num total de cento e sessenta e cinco,
provêm em sua maioria da "idade de ouro” de Alain, da fase de seu radicalismo
anterior a 1914, e combinam marcadamente considerações conjunturais e
reflexões eternas. Não se deve concluir, entretanto, de modo até certo ponto
precipitado, que seria conveniente rejeitar os primeiros como arcaicos e nos
atermos exclusivamente àqueles que permitissem inferir uma “linha política
para todos os tempos” (S. Pétrement), teórica e desencarnada.
O encanto dos Propos de Alain se deve precisamente a uma dosagem sutil
de paixão política e de reflexão serena e dominada, e à união de uma
observação aguçada dos costumes políticos de seu tempo com a capacidade de
reunir o essencial e o universal. 0 próprio Alain dizia: “Elevei a notícia lacônica
de jornal ao nível da metafísica.”
Assim, a partir da Terceira República, da qual não se limitou a exprimir
a ideologia (R. Capitant, Alain, ou Vidéologie de la Troisième République),
Alain desenvolveu uma certa idéia da democracia, ou do radicalismo, ou, ainda,
da República, os três termos sendo para ele quase sinônimos. A democracia,
antes de mais nada, não consiste numa melhor organização dos poderes, mas
no controle dos poderes que deve ser assegurado no seio do regime repre­
sentativo. Em tal concepção, o papel dos deputados é fundamental. Enfim, o
radicalismo tem por fundamento e finalidade o indivíduo e os direitos do
homem.

O controle dos poderes

Depois de observar que o poder executivo é necessariamente monarquis-


ta e que o legislativo é oligárquico, Alain concluiu: “Onde está então a
Democracia, senão nesse terceiro poder que a Ciência Política não definiu e
que eu chamo de Controlador? Esse não é outra coisa senão o poder,
continuamente eficaz, de destituir os Reis e os Especialistas ou Ministros com
todo o rigor, caso não conduzam os negócios de acordo com os interesses da
maioria... A democracia seria, por essa razão, um esforço perpétuo dos
governados contra os abusos do poder (12 de julho de 1910).” A democracia
não pode ser definida simplesmente como a escolha pelo sufrágio universal de
governantes pelos governados, mas essencialmente pelo controle permanente
exercido pelos governados sobre os governantes.
O controle dos poderes pode ser apresentado como uma corrente: em
uma das extremidades estão os eleitores, que puxam; na outra, os burocratas,
que resistem; e, entre os dois, os deputados, e ministros atormentados de
maneira bastante rude (6 de agosto de 1906). Os eleitores controlam os
deputados que devem controlar os ministros, os quais deveriam controlar as
secretarias colocadas sob sua autoridade.
Os poderes executivo e administrativo - dos quais Alain percebeu muito
cedo a ascensão da autoridade - não são os únicos “inimigos da República”.
As autoridades de fato são, pelo menos, temíveis também. Sua enumeração é
bastante variada nos Propos: padres, militares, banqueiros, capitães-de-indús-

31
tria, burocratas, acadêmicos; em resumo, a Igreja, o Exército, os Ricos, a
Administração, a Academia, dos quais a elite parisiense, fútil, corrompida e
reacionária, é a síntese e o símbolo. Ela se alia constantemente com os poderes
públicos para enganar o povo.

O papel dos deputados

Contra essa coalizão de poderosos, de “Importantes”, é preciso que o


deputado, o radical de “casaco puído” vindo da província, resista com firmeza.
O caminho da traição, pago pela admissão no círculo encantado, regido pela
lei simples e sutil da oferta e da procura, é naturalmente o mais fácil.
Muito pelo contrário, o deputado deve preencher essencialmente duas
funções a serviço do povo, amigo rude que absolutamente nada paga. Ele deve
permanecer como um tribuno, exprimindo as reivindicações e aspirações dos
“pequenos” contra os “grandes”. Deve igualmente ser um “embaixador itine­
rante”, intervindo sem descanso junto à administração a pedido de seus
eleitores, não para obter favores ou tolerância, mas apenas para saltar por cima
das vias hierárquicas e combater a lentidão administrativa.
Porém, uma condição é fundamental. O deputado deve ser eleito por
escrutínio da circunscrição administrativa e não pela representação proporcio­
nal. Alain sempre permaneceu um defensor da eleição por circunscrição
administrativa. Não que ele fosse sensível a uma de suas maiores vantagens,
que é a de se livrar de uma maioria governamental. É preciso lembrar que não
se trata exatamente de designar governantes, mas sim fiscais. O mérito
essencial dessa maneira de escrutínio é, portanto, estabelecer a eleição levando
muito mais em consideração a pessoa do que a ideologia e manter um contato
mais próximo dos eleitores com o eleito. Em compensação, a representação
proporcional e o escrutínio simples dão pleno poder ao partido sobre os eleitos
em outras palavras, aos intermediários tão nefastos quanto inúteis e que, de
uma maneira ou de outra, fazem o jogo da elite e dos poderosos.
Porém, a democracia não se resume a um procedimento de designação de
"controladores”. Ela repousa sobre o individualismo e tende a garantir os direitos
do homem, isto é, a liberdade, a igualdade, a resistência à opressão na mais pura
tradição republicana da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O indivíduo e os direitos do homem

“O individualismo que é a base do radicalismo...” (17 de abril de 1911).


Alain enfatiza fortemente que a democracia não é o reinado do número, não é
o poder dado a uma maioria para esmagar uma minoria. Ela deve permitir, ao
contrário, assegurar a igualdade de todos perante a lei, lutar contra as tiranias
e se baseia em cidadãos livres e pensantes. Ela só existe, portanto, graças às
virtudes dos cidadãos. "Obediência e resistência”, eis as duas virtudes do
cidadão. Pela obediência, ele assegura a ordem; pela resistência, ele assegura
a liberdade.” (4 de setembro de 1912).

32
Essa dualidade é a própria essência da democracia, já que ela resume os
deveres do cidadão enquanto indivíduo e seus direitos enquanto soberano.
Essas duas virtudes, aparentemente contraditórias, a obediência do corpo e a
resistência do espírito, Alain praticou-as durante a guerra de 1914-1918, em
que se empenhou como voluntário e onde permaneceu como simples soldado,
mesmo sendo um ardente pacifista. Além disso, a combinação desses dois
comportamentos simultâneos e complementares assegura o equilíbrio e a
tensão da totalidade do grupo. Harmoniza igualmente a relação do indivíduo
com o grupo, que deve fazer triunfar os direitos do indivíduo, o contrato social
que o autor chama de “anti-social" contra o “Leviatã”.
Obediência e resistência são igualmente importantes. Para Alain, que se
definiu como um “amigo da ordem”, a desordem é fonte de violência e de
injustiças. É preciso que se obedeça, também, mas não há necessidade de se
insistir sobre esse dever. Em compensação, a resistência é sem dúvida mais
difícil de praticar. E preciso criticar constantemente e, sobretudo, não adorar
os poderosos, recusar-lhes o que buscam acima de tudo, a adesão do espírito
e o entusiasmo. A democracia é muito mais a contestação dos poderes e a
recusa do poder do que a participação no poder.
Essa concepção tem sido muito censurada por sua mediocridade e seu
pessimismo. Entretanto, Raymond Aron, demasiado severo no julgamento que
faz da obra política de Alain, acentua que: “A adesão de tantos intelectuais ao
stalinismo obriga a reconhecer uma verdade, provavelmente parcial, mas
definitiva, incluída nos ensinamentos de Alain: a adoração dos poderes ou,
melhor ainda, a pretensão dos poderosos de serem adorados é a fonte de todas
as tiranias." A desconfiança em relação aos poderosos, a recusa em lhes
conceder amor e respeito, em resumo, a resistência dos cidadãos contra os
poderosos podem permitir-lhes que escapem ao triste destino dos carneiros.
Para muitos, o ensinamento de Alain é assim a expressão exacerbada,
extrema, até excessiva da liberdade individual contra o poder, na tradição do
liberalismo. Na realidade, Alain se situa dentro da corrente democrática, na
linha de Rousseau, ao qual se refere expressamente, mas tendo uma leitura
liberal da teoria democrática, o que não é, por isso, uma traição.
Porém, o problema não é colocado nesses termos. Alain não procurou
constituir uma doutrina política que se inscrevesse rigorosamente no quadro
da teoria democrática tal como foi exposta por Rousseau ou realizar uma
síntese das duas correntes liberal e democrática. A influência de Augusto
Comte é, por exemplo, notável em seu pensamento, e não se pode inscrevê-la
nesse dilema clássico. A rigor, Alain não elaborou a doutrina do radicalismo
francês na Terceira República.
Mais profundamente, Alain foi um cidadão, indivíduo livre e pensante,
que não se encerrou em nenhum sistema “túmulo do espírito”. Conservou seu
julgamento crítico e soberano, sempre permanecendo fiel a si mesmo, a um
radicalismo, por assim dizer, congênito, mas revelado pelo caso Dreyfus que
marcou, como para diversos de seus contemporâneos, o nascimento de sua
consciência política e republicana. Depois de afirmar: “Eu nasci radical...”,

33
Alain não temeu tornar-se “um radical de cabelos brancos”. Pouco importa que
os Propos tenham envelhecido, seja por estar marcados por querelas ultrapas­
sadas (Combes e o anticlericalismo), seja porque foram cruelmente desmenti­
dos pelos fatos (a guerra e o pacifismo), seja, ainda, porque foram francamente
retrógrados (as idéias econômicas). O que resta é fundamental, é uma análise
sutil da realidade política francesa, apoiada em uma profunda compreensão da
mecânica dos poderes, e, sobretudo, da expressão livre do pensamento livre de
um homem livre.

• Mars ou la guerre jugée, NRF, 1921: Êléments d'une doclrine radicale, NRF 1925; Le
citoyen contre les pouvoirs, Ed. do Sagittaire Kra, 1926; Propos de polltique, Rieder, 1924,
PUF 1934, Polltique, PUF, 1952.

► R. Aron, Alain e a política, Hommage à Alain, NRF, 1952, págs. 155, 167; R. Capitan, Les
Propos dAlaln ou Vldeologle da la III e République, Mélanges Negulescu, Bucareste, 1935,
págs. 145-168; S. Pétrement, Une politique pour tous les temps, Hommage à Alain, prec. págs.
138-154.

Marie-Thérèse SUR.

ARENDT, Hannah, 1906-1975


As origens do totalitarismo, 1951

Clássico ainda relativamente desconhecido em muitos países, The Ori-


gins ofTotalitarianism permanece, mais de trinta anos depois de sua publica­
ção, uma obra de referência sobre um fenômeno em que pôde reconhecer “o
novo por excelência de nosso século” (M. Gauchet). Composto de três estudos
traduzidos separadamente em francês com os títulos Sur VAntisémitisme,
LTmperialisme e Le Système Totalitaire, esse conjunto constitui a primeira
análise desenvolvida dos “elementos” e da convergência dos acontecimentos
que permitiram chegar ao conceito de “dominação total”, que designa ao
mesmo tempo o nazismo e o stalinismo; se, desde então, nosso conhecimento
desses regimes se enriqueceu à luz de depoimentos e de investigações isentas
que o correr do tempo permite incorporar, a investigação de Hannah Arendt
conserva ainda hoje toda sua firmeza e alcance, sua tentativa de “conceituali-
zar ao extremo os componentes do regime totalitário, na tradição do estudo
sistemático dos regimes políticos, de Aristóteles a Montesquieu e Tocqueville”
(P. Ricoeur, 1983), não tendo sido superada ainda.

34
Apesar de seu título (menos enganoso na edição inglesa, The Burden o f
Our Time, ou na edição alemã, Elemente und Ursprilnge totaler Herrschaft),
esse tríptico não se propõe nem a reconstituir uma seqüência histórica cujo
desenvolvimento permitiria explicar o totalitarismo como uma evolução es­
tritamente causai, nem mesmo a assediar a genealogia que o explicaria do ponto
de vista da história das idéias. Adotando um método perfeitamente original,
Arendt se esforça para analisar os elementos que "se cristalizaram” em totalita­
rismo, fato que ela parece reconhecer muito bem como o fim de um lento
processo de degradação dessa forma política particular que é o Estado-Nação,
mas onde vê principalmente um regime perfeitamente novo, de maneira alguma
pré-formado ou virtualmente presente em suas “causas”. Como articular origens
e originalidade, compreender o totalitarismo privando-se sempre do desejo do
reconhecimento? Tal é, sem dúvida, o equívoco fundamental assumido pela obra
e resumido na fórmula; “O acontecimento ilumina seu próprio passado, mas
nunca pode ser deduzido.” A compreensão da novidade totalitária que invalida
os conhecimentos de antigamente obriga também a buscar novos fundamentos
para a teoria política; toda obra posterior da autora será dedicada a isso.
The Origins traz a marca de uma personalidade cuja biografia justifica o
propósito e esclarece o método. Se a presença da grande filosofia alemã
marca-lhe o pensamento, particularmente a de seus mestres Heidegger e
Jaspers, Arendt define a si mesma como uma teórica política, sua vocação
tendo sido despertada quando, depois de ter defendido uma tese sobre Santo
Agostinho (1929), ela se viu aos vinte e sete anos, em 1933, "uma judia alemã
enxotada pelos nazistas”. Exilada na França (1933), depois nos Estados Unidos
(1941), continuou a resistir por meio de "trabalhos concretos" e colaborando
durante vinte anos com organizações judaicas. Sua experiência de “pária
consciente” lhe permitiu descobrir no anti-semitismo o revelador da sociedade
moderna, cuja derrocada já era antevista na desgraça do povo judeu. Ela
também sentiu na própria carne a perda dos direitos, o exílio e a guerra (esteve
durante algum tempo internada no campo de concentração de Gurs, em 1940)
e esse conhecimento de causa lhe permitiu não apenas observar o Totalitaris­
mo, mas também julgá-lo. Foi em 1945 que começou a redigir um estudo sobre
o anti-semitismo, o imperialismo e o racismo, cujo projeto amadurecera com
seu marido, Heinrich Blücher, durante muitos anos, e do qual vários capítulos
constituem o desenvolvimento de artigos já publicados em revistas (cf. a
bibliografia de E. Young-Bruehl). Parece que sua concepção do totalitarismo
só lhe ficou definitivamente sedimentada em 1948. A obra ficou praticamente
terminada em 1949 e, desde sua publicação, em 1951, deu celebridade à sua
autora, que iniciou em seguida uma brilhante carreira universitária nos
Estados Unidos. Reeditada em 1958, As Origens foi ampliada com o capítulo
Ideologia e terror (retomando um artigo de 1953) e o estudo Reflexões sobre
a revolução húngara (não reproduzidos em edições posteriores). Novos
prefácios às três partes reatualizaram as edições de 1966, 1968 e 1973.
As origens do totalitarismo traça as linhas de evolução apoiando-se nas
constelações de acontecimentos que introduziram rupturas na história. Anti-

35
semitismo, imperialismo e totalitarismo realmente têm em comum não poder
ser relacionados com males antigos e analogias históricas que ocultariam sua
especificidade e devem, portanto, ser banidos. Assim, acentua particularmente
que “a terrificante originalidade do totalitarismo vai além do fato de uma nova
idéia ter vindo ao mundo; ela se atém a atos que se chocam com toda a nossa
tradição e literalmente pulverizaram tanto as nossas categorias políticas
quanto nossos critérios de julgamento moral" (Compreensão e política). O
acontecimento premia, portanto, o conceito, o totalitarismo não sendo a
realização de uma idéia que teria tido raízes na história, mas a irrupção de um
fenômeno radicalmente novo que exige completa revisão dos instrumentos de
análise: é sem o auxílio de categorias preconcebidas que se deve exercer seu
julgamento para compreendê-lo, isto é, “observar a realidade de frente e com
atenção (...) e lhe resistir, se for preciso, qualquer que seja ou possa vir a ser
essa realidade” (Ant., prefácio). Só será possível apreciar o sentido desse
desafio à explicação histórica e ao “funcionalismo” das ciências políticas depois
de ter liberado os eixos principais de As Origens, obra engenhosamente
articulada, da qual muito freqüentemente apenas a última passagem lida
continua retendo nossa atenção.

Do anti-semitismo à expansão imperialista

Denunciando como falsas todas as teorias que analisam o ódio ao judeu


dentro de uma perspectiva de perseguição milenar ou explicando-o pelo
mecanismo do bode expiatório, H. Arendt se atém firmemente a preservar a
especificidade do anti-semitismo moderno, cuidadosamente distinto do antiju-
daísmo de origem religiosa e “indissociável” da conjuntura histórica do último
século. Persiste também em “recolocar o anti-semitismo moderno no quadro
mais amplo do desenvolvimento do Estado-Nação” (Ant., p. 37) investigando
sobre a história das relações entre os judeus e o Estado, e em pesquisar na
história das relações entre os judeus e a sociedade as razões das prevenções
alimentadas contra um povo pária.
Não entrando em nenhuma das classes de uma sociedade da qual,
contrariamente às afirmações da historiografia judaica, eles queriam também
se manter a distância, os judeus viram sua sorte ligada à do Estado- Nação;
financiadores das transações do Estado desde a época dos judeus astuciosos,
representantes do capital industrial, enfim únicos elementos inter-europeus no
interior das sociedades nacionais do fim do século XIX, eles foram assim
constantemente identificados com um aparelho estatal do qual apareciam
como os principais agentes econômicos. Pode-se, portanto, compreender que
o declínio do Estado-Nação causado pela ascensão do imperialismo tenha
coincidido com a aparição do anti-semitismo: “Cada classe da sociedade que,
em um momento ou outro, entrava em conflito com o Estado tornava-se
anti-semita porque os judeus eram o único grupo social que parecia repre­
sentar o Estado” (Ant., p. 68). Instrumento de destruição do Estado nas mãos
dos partidos anti-semitas aparecidos nos anos 1870 cuja ambição era repre-

36
sentar toda a nação, o anti-semitismo se revelou uma arma de tão grande
eficácia que era fomentada por diversos escândalos financeiros e pelo mito de
uma internacional judaica que manipulava os destinos políticos do planeta.
Crescendo em proporção ao declínio do Estado-Nação, conheceu precisamente
seu apogeu quando (e pensa-se na "lei” de Tocqueville) os judeus, já privados
de seu poder efetivo conservavam apenas suas fortunas.
Desse anti-semitismo político, cuja interpretação bastante original opera,
segundo C. Lefort, uma audaciosa descentralização, “um deslocamento do
centro da questão do anti-semitismo para o totalitarismo” (1982-1983), Arendt
distingue com cuidado o anti-semitismo social, que é quase o inverso do
primeiro, pois acontece não em um grupo separado, mas em um grupo no qual
a emancipação se conciliou com a igualdade; quanto mais esta se afirma, mais
se aprofunda uma discriminação animada por um sentimento da diferença que
suscita, “ao mesmo tempo, o ressentimento social contra os judeus e um
atrativo particular” [Ant., p. 127). O judeu só escapa ao ostracismo que castiga
seu povo na qualidade de “espécime excepcional da humanidade”, tendo de se
distinguir dos judeus “em geral” e se afirmando como judeu! Dilacerado pela
condição de pária excluído da sociedade e pela de novo rico que só se integra
traindo seu povo (Arendt pede emprestadas essas categorias a B. Lazare),
encontra-se dividido entre o favor e a rejeição. Arendt aperfeiçoa os paradoxos
de tal situação mediante uma interpretação do personagem que compôs para
si Disraeli e com a ajuda de uma leitura de À la recherche du temps perdu,
onde se reflete uma sociedade em que o judaísmo aparece simultaneamente
como privilégio misterioso e como defeito eterno. O capítulo final dessa
primeira parte relata o caso Dreyfus, que explica um caso particular do
anti-semitismo francês.
A argumentação de Sobre o anti-semitismo é exata à luz da problemática
mais vasta de O Imperialismo, termo que a autora reserva à expansão européia
que tomou impulso no último terço do século XIX para terminar com a
liquidação do Império das índias. Cronologicamente limitado, o imperialismo
recupera, entretanto, também a ideologia dos movimentos continentais de
anexação que aspiravam à extensão em continuidade geográfica.
Na verdade, a autora vê no imperialismo colonialista moderno não a
conquista dos “construtores de império” tradicionais, mas um projeto expan-
sionista conduzido em nome de um crescimento econômico, tomando o partido
do modelo de acumulação capitalista; conseqüência da “emancipação política
da burguesia” à espera de mercados exteriores para seus capitais, ele marca a
substituição da lei como limite estável de uma lei dinâmica de expansão
ilimitada (“Anexaria os planetas se eu pudesse”, proclama C. Rhodes), a
subordinação da política à administração, a vitória de um desses processos
naturais que teriam livre curso no totalitarismo. Uma vez os interesses
privados tendo sido transformados em princípios políticos, o poder se reduz,
com efeito, a uma dominação pela força, e a exportação de capitais só poderá
conduzir à exportação da violência. Concretamente, os pilares da empresa
foram o racismo e a burocracia, invenções da periferia que não tardariam a

37
contaminar a Europa. Se Arendt retraça a trajetória histórica das teorias
racistas, das quais Hobbes aparece como um dos inspiradores, também mostra
nelas principalmente a gênese concreta no fio de uma análise sociológica muito
“literária” da contra-sociedade dos bôeres, não-mundo submerso num clima de
irrealidade e de alienação que oferece analogias impressionantes com aquelas
que o totalitarismo saberia recriar artificialmente. Ela acha, na base da
burocracia, forma de governo que combina o culto da distância com o gosto
do segredo, favorecendo a cegueira de uma administração persuadida a servir
forças inescrutáveis "a crença supersticiosa na possibilidade de uma identifica­
ção mágica do homem com as forças da história” (Imp., p. 160). Fé na História
que se reencontrará também no centro da ideologia totalitária.
O quarto capítulo da obra persiste em analisar o papel dos movimentos
expansionistas pangermanistas e pan-eslavistas cujo “imperialismo continen­
tal” forma o par perfeito do imperialismo colonial das potências marítimas.
Privado de base econômica, seu expansionismo baseia-se essencialmente
num nacionalismo pervertido alimentado por uma “consciência Tribal am­
pliada” e mantendo a mística de uma consciência nacional, unindo popu­
lações dispersas que não partilham nenhuma história comum. Uma vez
estando os povos convencidos de formar nações poderosas, os movimentos
anexionistas puderam explorar com sucesso as teorias racistas, a fim de
desmoralizar a estrutura do Estado onde apenas viam um instrumento a
serviço de seus interesses nacionais. Mostra, por um lado, como esse
“tribalismo”, levado pela ficção de uma escolha divina, repeliu a idéia de uma
humanidade cujos membros são iguais perante a lei e, por outro lado, como,
pela ausência de tradições democráticas, o clima de irracionalismo e de
fatalismo mantido pela burocracia russa ou austro-húngara alimentou a
ideologia desses movimentos que não reconhecem no fundo outras leis além
daquelas das potências superiores das quais gostariam de ser a encarnação.
Ancestrais diretos dos movimentos totalitários que substituíram, o panger-
manismo e o pan-eslavismo aceleraram a decomposição do sistema de
partidos aos quais seu dinamismo não se podia adaptar e indicaram a
decrepitude dos Estados da Europa do Leste e do Sul.
Enfim, depois da Primeira Guerra Mundial, o problema das minorias
oprimidas e dos refugiados apátridas demonstrou a falência dos Direitos do
Homem realmente assimilados pelos direitos nacionais; quem quer que fosse
privado de sua cidadania, de pertencer a um espaço político se via também
privado até do “direito de ter direitos” (cf. S. J. Whifield sobre a influência
dessa noção nos Estados Unidos) e “excluído do resto da humanidade”: “A
concepção dos direitos do homem, baseada na existência reconhecida de um
ser humano enquanto tal, desabou desde o momento em que aqueles que os
reclamavam se confrontaram pela primeira vez com pessoas que tinham
perdido absolutamente tudo o que lhes restava de qualidades ou vínculos
específicos - se é que ainda eram homens. O mundo não viu nada de
extraordinário na nudez abstrata de um ser humano.” (Imp., p. 287)

38
A lógica da desolação

A terceira parte de As Origens esforça-se para medir a originalidade de


uma forma política sem precedente que pulveriza todos os quadros de referên­
cia tradicionais: o totalitarismo. Se Arendt não consegue explicar bem a
escolha do termo, inventado ao que parece por Mussolini e popularizado desde
os anos trinta, delimita estritamente o fenômeno no tempo e no espaço; só diz
respeito aos regimes de Stálin a Hitler, o primeiro tendo sido reconhecido e de
“autenticamente” totalitário a partir de 1930, o segundo a partir de 1938, e o
totalitarismo enquanto tal, que a guerra já tinha atenuado na União Soviética,
desapareceu com a morte de seus fundadores. O conceito não se aplica
portanto nem ao leninismo, já que Lênin foi ainda um "autêntico homem de
Estado”, nem ao “despotismo esclarecido” de um Khruchtchev. O fascismo
italiano, ditadura de partido único, mas ainda submisso ao quadro estatal,
também não corresponde aos critérios que permitem colocar o nazismo e o
stalinismo fora de categorias.
Tentar relacionar esse regime com os modelos tradicionais do des­
potismo ou da tirania seria desconhecer a novidade do totalitarismo e confun­
dir sob seu estandarte ditaduras belicosas ou regimes autoritários. Pois esse
tipo inédito não representa apenas um lance adicional sobre as formas clássicas
do demonismo político devido, por exemplo, à conjunção da técnica, de
homens maléficos e de uma situação histórica. Se Aristóteles ou Montesquieu
não nos podem auxiliar nesse caso, é porque o totalitarismo, longe de ser um
regime sem leis, recorre mais às leis "superiores”; por outro lado, "o princípio
de autoridade é, no essencial, diametralmente oposto ao da dominação totali­
tária” (ST, p. 134). Enfim, ao isolamento instaurado pela tirania que não atenta
quase nada para a esfera privada se opõe a “desolação” (loneliness) totalitária
definida pela “experiência de absoluta não-dependência do mundo” (ST, p.
226). Visando à erradicação de toda espontaneidade, de toda capacidade de
ação, o projeto é o do domínio total da sociedade que se propõe a reduzir ao
estado de massa em movimento em nome da história à qual a ideologia
pretende ter arrancado seu segredo.
Em primeiro lugar, o totalitarismo só pode estabelecer sua dominação
sobre as massas modernas (“a maioria dessa categoria de pessoas neutras e
politicamente indiferentes que raramente votam e nunca se inscreveram em
um partido; ” (ST, p. 32) procedentes de um desmoronamento do sistema de
classes e da confusão das ramificações sociais para as quais contribuíram a
guerra, o desemprego e a inflação. Uma vez dissolvidas as estruturas estáveis
em que o homem encontrava tradicionalmente seus pontos de referência, esses
grupamentos de homens sem qualidades formam o instrumento ideal dos
regimes que exigem menos convicção do que a neutralidade dos indivíduos
massacrados juntos até constituírem-se em "um homem único de dimensões
gigantescas” (ST, p. 211). A massa é, para Arendt, a negativa perfeita da
estrutura diferenciada que é um povo. A massa livra-se facilmente da influência
de um poder que se dedica a modificar a unanimidade pela mistura das

39
multidões, das quais toda dimensão de comunidade, assim como toda divisão,
deve ser banida.
Um tipo de organização inédito confere à dominação sobre as massas toda
sua eficácia: ao redor do chefe que encarna o movimento e lhe dá o impulso
motriz, simpatizantes, militantes do partido, membros de formação de elites e
iniciados formam os tantos estratos sucessivos destinados a filtrar a realidade a
fim de encher o abismo que separa a ficção ideológica central do mundo exterior.
Esquema abstrato que se reforça com uma organização concreta perfeitamente
fluida que favorece a absoluta prioridade do movimento sobre toda estrutura
estável. Entretanto, não se trata do monolitismo, mas da proliferação de ins­
tâncias rivais que caracteriza o aparelho totalitário, sempre preocupado em
desdobrar as instituições existentes (o Estado pelo partido, a burocracia pela
polícia...) a fim de estar constantemente em condições de transferir o poder
efetivo atrás de uma quantidade de organizações de fachada. Longe de descer
do ápice de uma hierarquia “autoritária”, o poder se difunde do interior de uma
organização “disforme” dotada da capacidade de “destruir o poder real” (ST, p.
117). Do Estado, cuja estabilidade seria um obstáculo à dinâmica do movimento,
apenas a aparência é conservada.
A polícia permanece como o órgão mais representativo do regime (em
vez do Exército). Uma vez eliminados os oponentes reais, a polícia substitui a
noção bastante concreta de “suspeito” pela de “inimigo objetivo”, cuja defini­
ção varia ao sabor das circunstâncias em função de parâmetros deduzidos da
ideologia. Daí o terror que é a “essência” do totalitarismo, e cujo exercício
reforça ainda mais a mentalidade do regime, mistura de credulidade e de
cinismo. Daí também o sistema concentrador que Arendt percebe como “a
instituição central do poder” e a ponta avançada do fenômeno. Nesses “labo­
ratórios” que não correspondem a nenhuma reflexão utilitária, a ideologia
verifica suas crenças sobre a possibilidade de modificar a natureza humana e
realiza seu projeto de erradicação da diversidade humana, a organização da
amnésia cuidando a seguir para que a memória das vítimas, “o fato da própria
existência”, seja extirpada do espírito dos vivos.
O terror não é, portanto, arbitrário, pois é conduzido em nome da
ideologia que fornece ao regime a legitimidade superior necessária. Princípio
de avaliação e de organização da realidade caracterizado por uma percepção
maniqueísta, um pensamento em termos milenares e um discurso pseudocien-
tífico, a ideologia preenche o desejo de coerência e de previsibilidade consoli­
dado na mentalidade totalitária. Mais precisamente: “uma ideologia é exata­
mente o que seu nome indica: é a lógica de uma idéia; seu objetivo é a história,
à qual a “idéia” é aplicada; o resultado dessa aplicação não é um conjunto de
enunciados sobre qualqutr coisa, mas o desenvolvimento de um processo que
muda constantemente. A ideologia trata o encadeamento dos acontecimentos
como se ele obedecesse à mesma “lei” que a exposição de sua “idéia” (ST, p.
216). Essa definição é, no mínimo, original, pois a ilusão não resulta de uma
visão parcial ou de uma interpretação não-dialética da realidade cuja his-
toricidade seria desconhecida. Segundo Arendt, a ideologia se apresenta, ao

40
contrário, como uma concepção do mundo logicista que pretende descobrir o
segredo da totalidade do processo histórico. Mais importante que a premissa
de partida —luta de classes ou culto da Volksgemeinschaft — é o desenvolvi­
mento impecável de uma lógica sem falha; e, ainda, essa lógica não é regulativa,
no sentido de ela “se esforçar para organizar a experiência; constitui-se mais
numa engrenagem dinâmica que modifica a realidade em função das leis
presumidas da natureza e da história das quais pretende ser a cópia.
A opressão é total exatamente quando a lei pretende ter poder direto
sobre as leis da história e da natureza, das quais a humanidade é apenas o
vetor: a política totalitária “promete libertar o cumprimento da lei de toda ação
e vontade humanas; promete também a justiça sobre a terra porque pretende
fazer do próprio gênero humano a encarnação da lei” (ST, p. 207). Longe de
se explicar a partir de considerações utilitárias, o terror executa as sentenças
de uma ideologia que estabelece em ideais de vida uma história unida por uma
necessidade da natureza e uma natureza abandonada ao movimento da
história. Como, então, invocar o veredito dos fatos, quando as aparências são,
logo à primeira vista, desclassificadas, e os dados das experiências, cortados da
atenção? O “sobre-sentido” ideológico compete vantajosamente com o mundo
real que sai dos eixos, visto que presta contas antecipadamente de aconteci­
mentos totalmente absorvidos num processo lógico, “círculo de ferro” imuni­
zado contra a intromissão do imprevisto que resulta da pluralidade humana e
da invenção do tempo. O totalitarismo devora o mundo nessa ficção sanguino-
lenta que esmaga os indivíduos e sufoca na origem essa capacidade de agir, de
começar o que definiu, segundo Arendt, a própria humanidade do homem.

Controvérsias e perspectivas

Esforçando-se para dar uma inteligibilidade à penetração totalitária, a


autora liberta a interpretação da época moderna das divisões universitárias e
das visões estreitas. Historiadora preocupada em não conferir à evolução uma
unidade que ela não possui, socióloga atenta ao que dissolve os grupos
humanos, filósofa que explora toda uma bateria de conceitos, permanece, no
entanto, essencialmente, uma teórica política; em The Origins, põe a mão sobre
um filão raramente percebido, o desgaste do político (já implicitamente perce­
bido como lugar-comum unido por leis estáveis) que explica a dissolução dos
Estados-Nações europeus, o contágio anti-semita, a hipertrofia do econômico,
a aliança da multidão (mob) com a elite, a desvalorização dos Direitos do
Homem, o aparecimento das massas saídas do desgaste das estruturas sociais,
a ascensão do totalitarismo que esmaga os homens, a alienação fora do mundo
e a “desolação” planificada. Seu trâmite, que volta as costas à politologia
contemporânea, testemunha ainda a originalidade de um pensamento que, se
não se poupa dos rigores da documentação, se recusa no entanto a separar
compreensão e julgamento. Também não dá o exemplo da neutralidade de um
eu transcendental sine ira et studio cuja sólida preocupação metodológica
garantiria a objetividade e, se uma evidente preocupação afetiva (saudada por

41
E. Voegelin, 1953), às vezes uma ironia cáustica (da qual R. Aron lamenta os
excessos, 1954), colore seus desenvolvimentos, é que ela ambiciona apenas a
“imparcialidade” de um espírito que se procura conciliar com os acontecimen­
tos, mesmo que seja por zombaria.
Entretanto, muitos críticos podem se opor a As Origens. Mesmo que não
se leve em conta algumas inexatidões e erros materiais que tornam contes­
táveis certas passagens(cf. ess. R. Aron, 1953 e a meticulosa investigação de S.
J. Whitfield, 1980), é preciso reconhecer que a interpretação do anti-semitismo
político não se aplica muito ao caso francês, que o modelo de imperialismo
colonial é essencialmente derivado do exemplo britânico, que O sistema
totalitário reflete mais o nazismo do que o stalinismo (cf. M. Canovan, 1974).
Por tudo aquilo que se relaciona com a primeira parte, R. Aron não vê em que
é que “a perda do poder recente tenha atraído o castigo” sobre os banqueiros
judeus (1953) e “a tese de uma primeira derrocada do Estado-Nação no fim do
século XIX parece duvidosa” a C. Lefort (1982-1983) que, aliás, contesta o fato
de o anti-semitismo ter sido finalmente "manipulado por fins alheios à luta
contra os judeus” e recusa as premissas de Arendt que a tornam cega à
significação política da discriminação social da qual os judeus foram objeto.
A definição do imperialismo colonial como exportação de violência (e não
do poder político) que se seguiu à exportação de capitais também não funciona
bem por si mesma, tanto que leva a negligenciar considerações de ordem
diplomático-estratégica. Na verdade, a autora só utiliza teses de um R. Hilfer-
ding ou de uma Rosa Luxemburgo para acentuar finalmente o conflito entre
o Estado e a burguesia, acusar a contradição entre “o conceito absolutamente
novo” (Imp., p. 28) de expansão e as estruturas políticas que exigem “forças
estabilizadoras”. Porém, pode-se ficar incrédulo em face à verdadeira dialética
de uma aventura colonial que mina o Estado, que tinha, ao contrário, a missão
de regenerar, insuflando-lhe um novo dinamismo. Não seria a própria autora
vítima de sua “sutileza” (R. Aron) ao sugerir a existência de uma ligação entre
os “massacres administrativos” perpretados na índia e no Congo e o totalitaris­
mo? Há aí um jogo de correspondências inexplicado. A inclusão do imperia­
lismo continental na investigação se explica por seu papel de traço-de-união
entre anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo; hostilidade ao Estado,
ilegalidade, anti-semitismo cada vez mais exacerbado que se baseia em um
sonho de escolha divina, fé em forças históricas impessoais, vocação planetária,
organização em movimentos sem fins definidos, eis alguns dos traços que são
reconhecidos no totalitarismo. Pode-se sustentar para tanto que “o nazismo e
o bolchevismo se devem mais ao pangermanismo e ao pan-eslavismo (res­
pectivamente) do que a qualquer outra ideologia ou movimento político”?
(Imp., p. 171). A tese parece no mínimo duvidosa no caso do stalinismo (cf. S.
J. Whitfield, 1980), cujo discurso não parece nem um pouco ter sido instruído
por um pan-eslavismo cujos temas só foram retomados por oportunismo.
Foi evidentemente o paralelo entre o nacional-socialismo e o stalinismo
que fez com que se gastasse enorme quantidade de tinta, a própria idéia de
totalitarismo - durante muito tempo assimilada por um slogan de guerra-fria

42
destinado a desacreditar a pátria do socialismo —que sempre se tornou objeto
de definições variadas até mesmo contraditórias (cf. F. Châtelet e E. Pisier-Kou-
chner, 1981). Aqui nós nos limitaremos às críticas internas, mesmo correndo
o risco de apenas lembrarmo-nos das exclusivas, implicitamente pronunciadas
por Arendt, sobre cujo horizonte sua teoria “extremista” se recorta com
nitidez. Le Système totalitaire (O Sistema Totalitário) recusa principal mente
os paralelos históricos que invocam as particularidades de uma tradição (a
Rússia escravagista, o irracionalismo germânico) ou de um tipo de Estado (o
despotismo oriental) que os modelos metodologicamente coerentes de uma
politologia, cujos parâmetros parecem exageradamente redutores: as cargas do
passado cegam os historiadores, que cometem o erro de se julgarem co­
nhecedores do assunto, enquanto a ascese funcionalista se priva por definição
de uma intuição de conjunto de um fenômeno perfeitamente incomparável.
Arendt nega igualmente todo poder explicativo das visões metafísicas demasia­
do amplas (Heidegger) assim como das interpretações que acentuam a influên­
cia das idéias sobre os acontecimentos (K. Popper): um mundo separa, segundo
ela, a retórica pretotalitária (analisada, por exemplo, por J. -P. Faye), o
idealismo alemão ou o pensamento de Marx das valas comuns de Auschwitz
ou da Kolyma, das quais não são responsáveis nem a “barbaridade das luzes”
nem o ódio da razão hegeliana. Nem aberração, nem fatalidade, o totalitarismo
testemunha enfim um radicalismo que impossibilita se ater às explicações pela
absorção da sociedade civil ou a perda de toda transcendência.
Vamos ao essencial: será que Arendt se baseia em pôr em pé de igualdade
o hitlerismo e o stalinismo? Nenhuma investigação sociológica sobre o NSDAP,
sobre a elite dirigente do regime stalinista, nenhuma definição precisa da
“plebe” ou das massas vem fortalecer seu estudo, onde, além disso, brilham
pela ausência de fatores tais como modo de produção ou o papel da técnica;
ainda por cima, a ideologia stalinista, dificilmente redutível ao discurso da
"revolução permanente”, oferece, como reconhece o próprio R. Aron, apenas
umas poucas semelhanças com a ideologia irracionalista da “seleção racial sem
trégua”, que não só se presta a uma interpretação monstruosa, mas que
também parece intrinsecamente abjeta. Será que não se pode, sobre essa base,
como J.-P. Faye (1973), por exemplo, suspeitar do fato de a autora querer forjar
a realidade que pretende observar e acusá-la de tentar torcer a verdade? No
entanto, está claro que, aos olhos de Arendt, as semelhanças no exercício
efetivo do terror são mais pertinentes, que as dissemelhanças nas clientelas ou
nos conteúdos ideológicos e que não há, portanto, lugar para opor as as­
pirações “elevadas” de um regime à desumanidade confessa de outro. Por
outro lado, percebe bem uma certa assimetria entre o stalinismo e o nazismo,
fazendo, por exemplo, a distinção entre os campos de internamento soviéticos
e os campos de extermínio alemães, mesmo se não chega a reconhecer que
apenas o nazismo se ajusta perfeitamente no prolongamento do anti-semitismo
e dos movimentos pró-anexação.
Mais contestáveis do que as observações sobre o funcionamento real do
totalitarismo, corroboradas em muitos pontos pelos estudos de um C. Friedrich

43
ou de um H. Buchheim, são talvez os conceitos que ordenam As Origens e
pontuam essa marcha em direção às trevas. Privilégios injustificados dos financis­
tas judeus, excedentes de capitais, mão-de-obra excedente, “mal radical” apareci­
do em ligação “com um sistema onde todos os homens foram, da mesma forma,
tornados supérfluos” (ST, p. 201), tudo anuncia a superfluidade que explode no
totalitarismo. Caráter retrógrado do Estado, expansão ilimitada do imperialismo,
sucesso dos movimentos anexionistas que um programa fixo paralisaria, tudo
aponta em direção à mobilidade totalitária, que só tem como objetivo seguir em
frente pois “o objetivo político que constituiria a meta do movimento simples­
mente não existe”(sr, p. 50). Alimentado pela oposição que inventa para escapar
à anquilose, o totalitarismo é o oposto de um desaparecimento na areia movediça,
de uma fixação contra-revolucionária: a mobilização que opera obedece, ao
contrário, ao imperativo de uma rotação acelerada em que cada onda de terror
aumenta o desafio a fim de ultrapassar o processo histórico-natural de cuja
ideologia acredita ter descoberto o segredo. Se acreditarmos em Arendt, todas
as justificativas racionais reconhecem a superioridade de uma dinâmica propria­
mente delirante com a qual, parece, a última fase da modernidade toma corpo.
Nessa escalada em direção aos extremos, a ação não é apenas reprimida, mas
também destruída, e a “desolação” se estabelece em uma fúria destruidora que
parece ter apenas uma leia de se consumar por sua própria marcha para a frente.
É difícil livrar-se da impressão de que o totalitarismo, quanto mais se torna
adequado a si mesmo, tanto mais transforma-se em nada.
Pode-se creditar ao totalitarismo tal imaterialismo? Ou esse “menosprezo
total pela eficácia” não deveria ser matizado, mesmo reconhecendo que os
grandes expurgos do stalinismo, que destruíram os opositores do regime e
desorganizaram a economia, explodiram precisamente quando a oposião já
estava aniquilada, que o anti-semitismo nazista não obedecia a nenhuma lógica
de exploração, tanto mais que não servia como um derivativo para a luta de
classes? Sem esposar as teses “fúncionalistas” (F. Neumann), pode-se censurar o
modelo de Arendt por ser hiperbólico e concordar que "a análise só pode
engendrar um sobrelance conceituai que aumenta o isolamento do totalitarismo
em relação a todos os despotismos conhecido” (P. Ricoeur, 1983). Também se
está no direito de pensar que seria demais conformar-se com a explicação pela
"força autoconstrangedora do processo lógico” com o risco de negligenciar a
personalidade do “chefe” (decisiva, segundo R. Tucker ou L. Schapiro), Arendt
permanece incapaz de prestar contas da cessação do movimento, sempre inter­
ferindo com o desaparecimento dos dirigentes; pelas mesmas razões, pôde-se
criticá-la por não ter reconhecido a especificidade do anti-semitismo nazista; S.
Friedlãnder, por exemplo, observou que “para Stálin, os mitos da conspiração
trotsquista, de trezentas famílias, etc. eram os instrumentos, enquanto para Hitler
o mito do judeu era a realidade” (1971). Levado por Arendt ao seu extremo limite
de irracionalidade, o totalitarismo torna-se verdadeiramente impensável.
Por não ter esclarecido sua conduta, Arendt se expôs ainda a uma crítica
de ordem epistemológica. Hostil às teorias que acusam o peso das continuidades,
ela nos convida a reavaliar a novidade totalitária, onde vê uma invenção sem

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modelo que testemunha que o curso da história não corresponde a um movimen­
to irresistível à fatalidade, ao qual só se pode sucumbir. Mas sua opinião
fenomenológica preconcebida que se liga às descontinuidades visíveis parece
desmentida por uma visão genealógica que dá à luz a relativa homogeneidade de
um processo histórico secular; este segue por momentos como se a prática da
filosofia contradissesse o espírito geral da historiadora, o que explica que se
tenha podido, ao mesmo tempo, acusá-la de teorizar um totalitarismo mis­
teriosamente caído do céu (E. Gellner, 1982) ou, ao contrário, de racionalizar até
ao ponto de tornar a não-aparição do totalitarismo inexplicável (N. K. Sullivan,
1973). De fato, o totalitarismo aparece bem no fim de um processo que lhe
preparou o caminho e, se de forma alguma é chamado por suas causas, a
sucessão de acontecimentos certamente imprevisíveis tendo se antecipado à sua
chegada obedece muito, em The Origins, a uma sólida coerência; mas seria então
necessário polemizar contra as teorias causalistas se se admite por outro lado
que as insurreições da história obedecem a tendências profundas (cf. L. Ferry,
1983)? Toda ambigüidade jaz no estatuto das “origens": anti-semitismo e impe­
rialismo não contêm os germes de um totalitarismo pré-formado, mas o privilégio
da retroação permite, no entanto, descobrir aí “elementos” que, "cristalizando”
segundo certos eixos, entram em composição dentro das seqüências parcial­
mente convergentes, e conferem uma relativa inteligibilidade ao inaudito. A
renovação histórica empresta o caminho da ruptura, mas essa se destaca ainda
sobre o fundo de uma causalidade enriquecida, cujo estatuto Arendt não
elucidou de maneira satisfatória.
Enfim, o termo “essência” totalitária pode ser tido como uma fonte de
confusões. Longe de se contentar em liberar um conjunto de traços que
delimitariam um tipo de regime, Arendt apreende realmente o totalitarismo sob
sua forma completa e o conceito que desviou os casos agudos assimilados de
um caso simples, de uma essência despojada. N. K. Sullivan e R. Aron
lamentam esse "exagero” na abstração conceituai que desvia a referência à
experiência e tende a fazer crer, coisa que não é real, que a ordem das idéias
prevalece sobre a diversidade dos fatos.
Certamente Arendt força a mão; mas o interesse de The Origins se atém
paradoxal mente a essa temeridade que permite pensar no terror totalitário em
função de uma organização e de uma ideologia novas, de acusar a singulari­
dade de um fenômeno inscrevendo-o em um movimento de grande amplitude.
Se a interpretação da autora atrai nuanças e obriga a certas reservas, pode-se
apesar de tudo subscrever a conclusão de S. J. Whitfield: “A acumulação das
provas históricas e dos documentos publicados desde 1951 tendeu a confirmar
a terrível precisão da obra de Arendt e dos julgamentos categóricos que
pronunciou” (1983). O autor aprofundou por outro lado e revisou um pouco
seu julgamento em Eichmann à Jérusalem onde a possibilidade de uma
resistência passiva (“não fazer nada”) ao totalitarismo é indiscutivelmente
admitida e onde a idéia de “mal radical" é abandonada em proveito da
“banalidade do mal”, tema que fornece ainda o fio condutor de La Pensée.
Seria errado desconhecer a vasta perspectiva aberta por The Origins. Se

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em seu conjunto Arendt não se voltou muito sobre a questão do totalitarismo,
pode-se realmente interpretar o restante de sua obra como uma tentativa de
fundar uma nova filosofia política sobre o reconhecimento do fenômeno
totalitário que oferece o negativo absoluto dele. As marcações tradicionais
(esquerda, direita) são abandonadas em proveito do único critério de uma
liberdade que não se acomoda sob nenhuma forma de dominação, e a política,
na qual o totalitarismo marca pelo aniquilamento, é compreendida não como
“uma organização da violência contra a violência primitiva” (E. Weil) nem
mesmo liberalmente como a condição do sentido, mas como o próprio sentido.
A condição do homem moderno, cujo ponto de partida foi precisamente uma
reflexão sobre Marx destinada a preencher as lacunas de As Origens (cf. E.
Young-Bruehl, 1982), obstina-se a fundamentar com rigor um “espaço público”
de ações e de palavras, enquanto o Ensaio sobre a revolução se interroga
essencialmente sobre a constitutio libertatis americana e a “tradição oculta”
dos conselhos ainda resumidamente reanimada em 1956. A crise da cultura e
Da mentira à violência determinam ainda os contornos de um “espaço de
aparências”, "memória organizada” contida nos limites de uma lei estável e
mantida pela autoridade de uma fundação, no seio da qual cada um está
habilitado a julgar e a decidir em comum, a participar de um poder que se
conforma mesmo com uma certa forma de desobediência civil. A política, para
Arendt, continua sendo sempre o inverso “radical” da época de um inferno
totalitário.
Nos Estados Unidos, As Origens conquistou a glória para sua autora, e,
como mostra S. J. Whitfield (1980), essa obra influenciou no mundo anglo-
saxão ou na Alemanha a maior parte dos teóricos que concordavam vislumbrar
no totalitarismo mais do que um monstro conceituai. Na França, Hannah
Arendt teve razão na hora errada. Pouco comentada e pouco lida antes do fim
dos anos setenta, parece ter marcado Raymond Aron, que havia igualmente
concentrado suas próprias análises dos regimes totalitários sobre a ideologia
e o terror. Depois, C. Lefort saudou o trabalho esclarecedor de Arendt, do qual
C. Castoriadis e Edgar Morin também reconheceram os méritos; graças em
parte aos trabalhos desses pensadores cujas problemáticas abordam às vezes
as teses da “obra-prima” (P. Ricoeur) de 1951, a idéia do totalitarismo parece
hoje parcialmente aclimatada na teoria política, muitas vezes até bem além dos
desejos de seus mais rigorosos promotores, pois a palavra designa corrente­
mente um regime soviético que sofreu um forte esvaziamento ideológico e em
que uma certa racionalidade “estratocrática” (C. Castoriadis) o encaminhou a
uma lógica de depuração. Se está longe de ser encerrado o debate sobre o uso
legítimo de um termo ainda não homologado - e ao qual o uso tende a conferir
maior extensão em detrimento de sua compreensão. As Origens do Totalita­
rismo permanece um trabalho de primeira, sempre vivo porque chamou a
atenção sobre o essencial por meio de uma intuição criativa que percebeu as
coisas em profundidade. B. Crick (1977) reconhece em Arendt a envergadura
de um Hobbes, de um Hegel, de um Mill ou de um Marx; ninguém pode dizer
que ela seja completamente indigna de tal elogio.

46
• The Origins o f Totalitarlantsm, Nova York, Harcourt Brace & Co., 1951, 2-, edição
aumentada, Nova York, World Publishing Co., 1958,3S ed. revista Nova York, Harcourt, Brace
& World, 1966,1968,1973 (Sur Vantisemitisme, trad. M. Pouteau, Paris, Calmann-Lévy, 1973;
L ’Imperlalisme, trad. M. Leiris, Paris, Fayard, 1982; Le Système totalitaire, trad. J. L. Bourget,
R. Davreu e P. Lévy, Paris, éd. do Seuil, 1972); The Human Condition, Chicago, University of
Chicago Press, 1958 (La Condition de Ihom m e modeme, trad. G. Fradier, Paris, Calmann-Lévy,
1961, 2* ed., prefácio de P. Ricoeur, 1983); On Revolutíon, Nova York, Viking Press, 1963, 2!
ed. revista, 1965 (Essai sur la révolutíon, trad. M. Chrestian, Paris, Gallimard, 1907); Eichmann
in Jerusalem, Nova York, Viking Press, 1963, 2S ed. revista e aumentada, 1965 (Eichmann à
Jerusalem, trad. A. Guérin, Paris, Gallimard, 1966); Between Past and Future: Eight Exerclses
In Political Thought, Nova York, Viking Press, 1968 (La Crise de la culture, trad. dir. P. Lévy,
Paris, Gallimard, 1972); Die Verborgene Tradition: Acht Essays, Frankfurt, Suhrkamp, 1976;
The Jew as Pariah: Jewish Identity and Politics in the Modem Age, R. H. Feldman (ed. e
prefaciador), Nova York, Grove Press, 1978; The Life o f the Mind, M. McCarthy (ed. e
prefaciador), Nova York, Harcourt, Brace, Jovanovich, 1978, 2 vol. (La vie de Vesprit, vol. I; La
Pensée, trad. L. Lotringer, Paris, PUF, 1981); A. Reply, Review o f Politics, XV, janeiro de 1953;
Understanding and Politics, Partisan Review, XX/4 julho-agosto de 1953 (Compréhension et
politique, Esprlt, junho de 1980); Totalitarian Imperialism; Reflections on the Hungarian
Revolutíon, Journal o f Politics, XX/1, fevereiro de 1958.

► R. Aron, L’Essence du totalitarisme, Critique, n! 80, janeiro de 1954; ld., Democratie et


totalitarisme, Paris, Gallimard, 1965: H. Buchheim, Totalitarian Rule. Its Nature and Characteris-
tics, Middletown, Wesleyan University Press, 1968; M. Canovan, The Political Thought ofHannah
Arendt, Nova Iorque & Londres, Harcourt, Brace, Jovanovich, 1974; C. Castoriadis, Devant la
Guerre, t 1; Les réalitês, Paris, Fayard, 1981, 2! ed. rev. e corr., 1983; F. Châtelet e E.
Pisier-Kouchner, Les Conceptions politiques du XXesiècle, Paris, PUF, 1981; B. Crick, On
Rereading The Origins o f Totalitarism, Social Research, XLIV/1, print 1977; A Enegrén, La
Pensée Politique de Hannah Arendt, Paris, PUF, “Recherches politiques”, 1984; J.-P. Faye, Mais
qu’est-ce donc que le “totalitarisme”?, Quinzaine litéraire, 15 de março de 1973; L. Ferry,
Stalinisme et historicisme. La critique du totalitarisme stalinien chez Hannah Arendt et Raymond
Aron, in Les Interprétations du stalinisme, E. Pisier-Kouchner (ed.), Paris, PUF, 1983; C. Friedrich
(ed.) Totalitarism, Nova Iorque, Grosset & Dunlap, 1966; E. Cellner (compte rendu de Hannah
Arendt For love o f the World), Times litterary Supplement, 6 de agosto de 1982; C. Lefort,
LTnvention démocratique. Les Limites de la domination totalitaire, Paris, Fayard, 1981; Une
interprétation politique de 1’antisémitisme: Hannah Arendt, Commentaire, 20, inverno de 1982-
1983, e 21, primavera de 1983; E. Morin, De la Nature de 1’URSS. Complexe totalitaire et nouvel
empire, Paris, Fayard, 1983; N. K. 0 ’Sullivan, Politics, Totalitarianism and Freedom; the Political
Thought of Hannah Arendt, Political Studies, 21 de junho de 1973; A. Reif (ed.), Hannah Arendt
Materialen zu ihrem Werk, Viena, Europaverlag, 1969; L. Schapiro, Totalitarism, Londres, The
Macmitlan Press, 1972; P. Valadier, La Politique contre le totalitarisme; ouverture à la Pensée de
Hannah Arendt, Projet, março de 1980; M. Vetõ, Cohérence et terreur. Introduction à la philosophie
politique de Hannah Arendt, Archives de Philosophie, XLV/4 outubro - dezembro de 1982; E.
Voegelein (compte rendu de), The Origins of Totalitarianism, Review o f Politics, 15, janeiro de
1953; S. J. Whitfield, Into the Dark. Hannah Arendt and Totalitarianism, Filadélfia, Temple
University Press, 1980; E. Young-Bruehl, Hannah Arendt: For Love o f the World, New Haven e
Londres, Yale University Press, 1982.

A n d ré ENEGRÉN.

47
ARISTÓTELES, 384-322 A. C.
Política

O livro que a tradição política nos legou sob o título de Política, de


Aristóteles, e que teve uma influência considerável sobre o pensamento
político e moral da área cultural euro-mediterânea não se apresenta como um
texto homogêneo e construído segundo as normas habituais do discurso
“científico”. Ainda que a obra possua uma unidade objetiva, a coletividade
(koinônia) política ou Cidade (polis), seus métodos de organização e as
diversas partes e atividades que a constituem não têm nem unidade de estilo,
nem arquitetura precisa, e os oito livros em que foi dividida comportam
repetições e lacunas. Não está excluído que, passado o momento de desventura
que suscitam os raciocínios abandonados em curso de desenvolvimento e as
retomadas incertas de idéias já expostas, a poderosa sedução que o livro
exerce, até nossos dias, sobre o leitor não resulta também de sua falta de
acabamento, dos reajustamentos sucessivos, das hesitações simuladas ou reais
às quais procede; em resumo, resulta da pesquisa incansável e da vida que o
animam.
Essa posição de obra notável de A Política se explica em dois níveis. Em
primeiro lugar, ao nível da composição. Na obra de Aristóteles, muito ampla,
não parece ilegítimo, ao que tudo indica, distinguir os escritos exotéricos
(vulgares), trabalhos de "vulgarização” voltados para o grande público -
revelando-se em sua maior parte sob a forma de diálogo, elegante e convin­
cente, valha-me Deus! em grande parte perdidos - dos esotéricos, também
chamados acroamáticos - porque se tratava de publicações tiradas das lições
pronunciadas por Aristóteles dentro de sua escola, O Liceu (acroasis =
audição) e reservadas a um público selecionado e sem dúvida solicitado a fazer
perguntas e pedir esclarecimentos. A esse último gênero pertence a coleção
intitulada Ta Politika, que reagrupa textos concisos e controlados redigidos
pelo Estagirita, notas de curso de estudantes revistas por esse e resumos
coletados e verificados por ele ou pelos editores. Importante prova portanto
de que aquela proposta ao leitor, tão rica quanto aquela que os diálogos
aporéticos de Platão requeriam e em que o pensamento e sua expressão se
desligam e se aliam sem que jamais se possa pesar sua autenticidade!
Mas a complexidade do texto não vem apenas das circunstâncias de sua
composição e de sua transcrição. Acham-se postos em jogo outros fatores que
remetem à doutrina filosófica de Aristóteles. Os primeiros concernem ao lugar
que o filósofo do quarto século antes de Cristo, grego, nascido no círculo da
área propriamente grega, preceptor do filho de um monarca que subjugou,
pelas armas, orgulhosas Cidades a um poder externo, porém helenizado até
suas fibras mais profundas e apologista ardente da Cidade, pretende dar à sua
concepção do Ser, do Discurso e da Ação no concerto filosófico de seu tempo.
Os segundos mantêm a maneira, naquele tempo essencial mente original, que
A Política adota para tratar de seu objeto, uma maneira que assegura um certo

48
tipo de autonomia ao saber político (em relação aos outros saberes) e, também,
à atividade política (em relação às outras atividades).
Quanto ao primeiro ponto, percebe-se bem rápido que a relação essencial
que há para se tentar circunscrever e compreender é aquela existente entre
Aristóteles e Platão. Como se sabe, o primeiro foi aluno fiel e admirador do
último (a ponto de os contemporâneos pensarem que o discípulo sucederia o
mestre na direção da Academia). Cícero revela que não foi melhor continuador
de Platão do que Aristóteles em seus diálogos da juventude. Porém a ruptura
aconteceu inesperadamente. Aquele que escrevia ainda, em A Metafísica, “nós
outros platonistas”, tornou-se, em A Política um crítico impiedoso não apenas
da teoria política “dogmática” exposta em A República, mas também da
concepção de “segunda categoria”, mais bem articulada sobre preocupações
empíricas de ordem governamental, em As Leis. Não é exagerado dizer que o
eixo primordial dos escritos políticos de Aristóteles é a refutação às idéias de
Platão e da Kallipolis — Cidade ideal - que esse propôs à reflexão ética e
política. A prova disso foi administrada apesar dele por Mareei Prélot que, em
sua louvável preocupação de tornar acessível o ponto de vista do Estagirita aos
juristas e aos politólogos, acreditou que seria bom, na nova tradução que deu
à obra, rejeitar em “anexos” as diversas refutações do platonismo, tornando
assim incompreensível A Política. Pois, foi contra Platão, nessa época que se
qualificou facilmente demais de decadência e que foi também de completo
desenvolvimento (aliás, quem poderá julgar esta afirmação?), que Aristóteles
organizou suas pesquisas políticas. E isto porque ele quis filosoficamente fazer
valer a nova tradição da Cidade, que encontra sua expressão no “regime
constitucional" que este conseguiu elaborar, por meio de inúmeras vicissi-
tudes, principalmente em Atenas.
Platão é politicamente “reacionário”: a despeito das medidas loucamente
inovadoras - o comunismo dos bens, das mulheres e das crianças — que
preconiza, sua doutrina política tem por fundamento o retorno a uma socie­
dade ontologicamente hierarquizada que exclui, logo de início, a própria
possibilidade da democracia, no sentido em que Péricles e seus amigos, no
século precedente, definiram a fórmula: a constituição na qual o poder de
decidir, de julgar e de legislar é antecipadamente destinado a qualquer um...
Aristóteles se estabelece o porta-voz da prática cívica, da prática da Cidade, da
qual a Atenas democrática, até em seus excessos, contribuiu para colocar em
evidência a singularidade e a excelência. Contra o “extraordinário” platônico,
que seu autor julga ser o único apto a restaurar a moralidade perdida, quer
exaltar o civismo ordinário que os gregos inventaram definindo e praticando
a idéia de constituição, fosse ela monárquica, oligárquica ou democrática,
contanto que se reconhecesse o que ela preconizava: obediência de todos a
enunciados abstratos reguladores das condutas coletivas - as leis.
Ora, nesse conflito há um fundamento: duas maneiras de pensar se
enfrentam, uma e outra essenciais, uma e outra sustentadas por uma lógica
que cada um pode seguir, uma e outra expressões de maneiras de viver pelas
quais os homens vivem e morrem. O platonismo é, para falar esquematica-

49
mente, uma doutrina para a qual a verdade, por mais complexa que seja sua
configuração, ocorre na precisão das idéias como unidades, unidade no seio
da qual o Ser e o Bem se confundem. O Ser verdadeiro é a Essência, percebida
pelo “olho da alma”. A existência sensível é inessencial e só o é na medida em
que copia as Essências. Em resumo, entre o Ser e o Aparecer, o corte é
irremediável; as Idéias (= Essências) são “separadas”, e a alma em sua parte
inteligente, a mais alta, só as pode alcançar desviando-se do sensível, dominan­
do os instintos corporais e reduzindo as paixões à servidão. Aristóteles é
filósofo: é nesse sentido que ele se diz platônico - o sucesso pleno do homem
em seu pensamento e em sua ação supõe a constituição de discursos (logoi)
verdadeiros, constituição essa tornada possível pela penhora das Essências e
sua organização segundo a ordem do inteligível. Mas ele rompe com Platão em
um ponto capital: para ele, as Idéias ou Essências não estão separadas da
realidade sensível. Elas estão "no interior”. Se é preciso raciocinar, isto é,
elaborar criticamente o discurso, é preciso, simultaneamente, experimentar. O
sensível não é apenas o lugar da confusão: material da vida e da ação, ele
contém em si as Idéias.
Aqui não é possível analisar as razões filosóficas e políticas que levaram
o Estagirita a se opor abruptamente a seu mestre. Digamos, para esclarecer
de maneira simples esse aspecto decisivo, que, da mesma maneira que Platão
faz datar seu comprometimento com a direita filosófica, a fim de descobrir
aí o Bem, principalmente em política, a partir do acontecimento perturbador
e doloroso que foi para ele a morte injusta de Sócrates, da mesma maneira
Aristóteles rompeu com Platão quando constatou que este falhara na Políti­
ca ativa e comprometera as probabilidades de uma filosofia política, anulan­
do a esperança para o homem grego médio de ser um cidadão vivendo feliz
e virtuoso. 0 “programa" de Platão é tão abstrato e rigoroso que se arrisca
a ser apenas um guia para a edificação moral de alguns seres excepcionais.
Aristóteles quer fazer existir a filosofia aqui e agora sem alterar nada de seu
projeto de inteligibilidade. Realismo contra idealismo, empirismo contra
racionalismo (abstrato), é preciso se proteger para não se refugiar nessas
dicotomias da Escola que, por deinição, impedem de pensar. O que há para
pensar nesse caso é precisamente uma oposição rica e ativa, que atravessa
toda a filosofia política... e até os textos de Platão e de Aristóteles que foram
seus iniciadores.
A refutação de inúmeras disposições da Kallipolis descritas em A Repú­
blica de Platão atravessa como um fio vermelho A Política de Aristóteles. Ela
é empregada na teoria política da crítica filosófica, feita por Aristóteles, da
concepção fundada sobre as "Idéias separadas” e determina o horizonte que é
o do aristotelismo: uma atenção particularmente inclinada a recordar, segundo
a fórmula eternamente lembrada de A Metafísica (E, 2, 1025 a 33), que “o Ser
se afirma de múltiplas maneiras” e a preservar o existente por excelência, isto
é a individualidade, individualidade das Cidades, dos grupos sociais, das
instituições que os constituem, individualidade... dos indivíduos, pois o princí­
pio da crítica das "Idéias separadas” e suas seqüências lógicas, combinado com

50
a pesquisa de inteligibilidade máxima, tem, entre outros, dois efeitos que
repercutem na concepção aristotélica da pesquisa política. Em primeiro lugar,
o filósofo distingue, entre as atividades, três registros (cf. especialmente Ética
nicomaquiana, VI, 5, 1140 b 6): as atividades teoréticas que, como a filosofia,
têm por finalidade a visão (théôrein = ver, contemplar) daquilo que é, na
verdade, as poiéticas que, como a poesia ou a arte do sapateiro, têm por
finalidade a fabricação de um objeto (poiein = fabricar) e as práticas que, como
a ética ou a política, visam a mudar as relações que os homens mantêm uns
com os outros (prattein = agir). O que é preciso entender bem, aqui, é a
diferença profunda estabelecida entre os dois últimos tipos de atividades. A
poiética tem sua finalidade forà de si mesma e é fora dela que encontra essa
realização, que lhe escapa. Ao contrário, a prática se realiza no interior de si
mesma: neste sentido, sua finalidade é seu próprio desenvolvimento e essa
posição é a mais segura base de sua autonomia. Não é seguro, quanto à
política, em sua concepção e em sua prática, que nos séculos modernos,
totalmente animados pelo trabalho, pela indústria, pela dominação cósmica
tenham ganho muito em lucidez encarniçando-se em confundir poiética e
prática e aceitando a absorção desta por aquela, sob a invocação, oh! combi­
nação paradoxal, da por demais famosa praxis.
O segundo efeito da vontade aristotélica de manter a idéia de um saber
aplicando-se às realidades complexas e variáveis é a distinção, no interior do
raciocínio, entre o silogismo propriamente científico, no qual as duas premissas
reconhecidas conduzem necessariamente a uma conclusão reconhecida, e o
silogismo característico daquilo que se poderia chamar as ciências de “segunda
categoria” que, sendo dada apenas a natureza provável das premissas, conclui
com um enunciado igualmente provável. Os raciocínios feitos no domínio
político são desta segunda espécie. Assim, quando Platão acreditou poder
descrever uma ordem necessária, um regime determinado, Aristóteles insistiu
sobre o papel das circunstâncias históricas e naturais (por exemplo, climáticas)
sobre os encontros políticos, sobre os acasos e a Fortuna, sobre a contingência
da transformação, irredutível a todo modelo.
A despeito das dificuldades e com a condição de não nutrir esperanças
excessivas, a pesquisa política possui um estatuto “científico” e, como tal, pode
ser objeto de ensinamento. Tendo definido a posição e o objetivo de A Política,
em relação ao que diz seu texto, mas também em referência à obra de
Aristóteles em seu conjunto, é importante agora seguir a argumentação e
enunciar os resultados obtidos. O primeiro deles é fundamental e concerne à
essência da Cidade (polis), isto é, da realidade de que se ocupam essencial­
mente Ta Politika, "os escritos políticos”. Desde as primeiras páginas do
Tratado, a Cidade - como o quer a teoria lógica da definição que exige que
esta proceda “por gênero próximo” e “diferença específica” —está incluída no
gênero “coletividade” (koinônia). A esse gênero pertencem a família (génos) —
que repousa sobre a relação de sangue do macho e da fêmea e implica a
autoridade daquele sobre esta, assim como o poder do senhor sobre o escravo
— e a aldeia (kômê) — que aparece como um reagrupamento de famílias

51
vizinhas que se unem sob um poder monárquico de fato, a fim de melhor se
defender contra a adversidade.
Coletividade familiar e coletividade local, que são humanas, não o são
especificamente. Há animais ditos “gregários” que são organizados assim
naturalmente. Em compensação, existe uma maneira de ser coletiva que é
praticada apenas pelos humanos. É precisamente a polis. Seria possível
compreender sua essência, sublinha Aristóteles, analisando sua finalidade e
comparando-a à que possuem a família e a aldeia. Estas visam a assegurar a
vida — ou melhor: a sobrevivência - pela procriação, pela produção de
alimentos e pelos dispositivos de manutenção da segurança interior e exterior.
A Cidade tem um objetivo que se inscreve no mesmo registro: a independência
econômica (autarkéía). Mas ela vai bem mais além: “formada inicialmente para
satisfazer unicamente as necessidades vitais, ela existe para permitir viver
bem” (eu Zeiri) (1252 6 27).
O que é então “viver bem” ou “viver conforme o bem”? Na doutrina de
Platão em A República, esse programa não comporta, pelo menos formal­
mente, nenhuma dificuldade de compreensão: o Bem é uma Idéia superior —
o sol das Idéias - que dita àquele que sabe e que adquiriu o poder de dominar
suas paixões a conduta correta. O único obstáculo, nessa perspectiva, reside
no fato de que a Idéia do Bem é tão radiosa que deslumbra quem a contempla
e se arrisca a confundir sua intelecção. A concepção aristotélica é diferente:
cada realidade, cada existência possui em si uma virtude ou poder que, por
natureza, a constitui, ou se se preferir; que é sua natureza-, essa natureza tende
a se realizar em um ato, que a completa e satisfaz à exigência de harmonia e
de complexidade que o Ser requer. Ora, o homem é feito de tal maneira que
não lhe basta viver: isso é atestado, por exemplo, pelo fato de sua voz (phôné)
não ser apenas uma composição de sons que lhe serve “para expressar a alegria
ou a tristeza” (como acontece com os outros animais); ela é além disso discurso
(logo), graças ao qual o homem discute e exprime não apenas o útil e o nocivo,
mas também o justo e o injusto.
Portanto, a Cidade é a espécie do gênero coletividade que foi instituída
de tal forma que o ser humano realiza da melhor maneira sua natureza, que é
viver em sociedade - como alguns outros tipos de animais - , mas uma
sociedade na qual lhe é possível se conduzir segundo “o sentimento do bem e
do mal, do justo e do injusto e de outras noções morais” (1253 a 16). Isto pode
ser dito de várias maneiras: na perspectiva política, isto se enunciaria (1253 a
2) assim: “o homem é por natureza um animal político”; na perspectiva lógica
e "ontológica”, isto se diria assim: "o homem é o animal que possui o discurso”
(cf. Política, I, B 1260 a 7), isto é, a capacidade discursiva e deliberativa, ou
ainda, como se simplificou mais tarde, falando em latim: animal rationale,
“animal racional”. E possível, enfim, adotar um ponto de vista cósmico: o
homem está no limite do supralunar —o mundo celeste - e do sublunar - o
mundo terrestre; pertencendo ao segundo, ele está sujeito aos incômodos
animais, mas fazendo parte do primeiro tem a pachorra de se conduzir segundo
a justiça e de lhe sacrificar seus interesses.

52
Assim, a Cidade, quadro no seio do qual a humanidade está em condições
de realizar plenamente as virtudes ou potências que comporta sua natureza, é
ela própria um fato da natureza, do mesmo modo que as relações de sangue e
de coabitação. Esta concepção toma posição, por um lado, contra uma certa
sofistica em voga no século precedente nos meios democráticos, ostentando
um convencionalismo radical e mantendo os agrupamentos humanos e suas
leis como produtos do artífice, e, por outro lado, contra uma teoria da
necessidade exposta em A República, segundo a qual a sociedade, no estado
de desenvolvimento que ela atingiu com Atenas no fim do quinto século,
nasceu de uma espécie de sobrelance sobre o princípio da divisão do trabalho
inerente a uma vontade sem medida de satisfazer os apetites materiais... Não
sem audácia, essa maneira de ver rejeita, mais amplamente, as explicações
tradicionais de caráter mítico-religioso da sociedade humana, em geral, e da
existência política, em particular; ela descarta com o mesmo vigor as pers­
pectivas que chamaríamos hoje “positivistas” que fazem apelo a configurações
de acontecimentos ou a um fato "material" grosseiro para justificar a ins­
tauração da sociedade civil ou política.
Pois, o que A Política afirma, logo de início, é a irredutibilidade e a
autonomia do político.

Um segundo resultado se insere diretamente sobre aquele, o que cons­


titui uma aquisição decisiva. O enunciado da irredutibilidade do político e da
política implica que sejam definidas com a maior precisão as diferenças fazendo
com que no interior das coletividades humanas o comando (em grego arkhê,
que preferimos traduzir, de maneira mais banal, por este termo: comando, em
vez de utilizar, como está em moda hoje em dia, o termo por sua vez mais
divulgado e mais forte de poder, sobrecarregado de significações histórico-so-
ciológica a ponto de não ser mais determinável) político se distinga das outras
espécies de comando.
O comando que se exerce na Cidade é diferente daquele que rege as
relações familiares. Um e outro estão inscritos na natureza das realidades onde
agem; eles se assemelham nesse sentido tanto que, se tomar a família no
sentido restrito de coletividade definida pela relação de sangue, a autoridade
será a de seres livres sobre outros seres livres (a dos maridos sobre suas
esposas, a dos magistrados sobre os cidadãos). Existe, porém, dois tipos de
diferenças que não permitem as aproximações pelas quais se deixam levar os
poetas, pois confundem o poder do chefe com o do pai (ou do “ancestral”). É
preciso observar, com efeito, em primeiro lugar, que, se a relação marido/es­
posa é “política”, o sentido da autoridade, neste caso, é irreversível, segundo
Aristóteles, uma vez que, em numerosas Cidades, os governantes de hoje são
os governados de ontem e vice-versa; do mesmo modo, o caráter “real” que se
reconhece à autoridade dos pais sobre seus filhos é contrabalançada pelo fato
de ela ser provisória. Mas existe uma diferença que estabelece, por assim dizer,
aquelas que acabamos de citar: o comando marital e paternal resultante da
natureza, no sentido quase trivial: o homem adulto governa a família por ser

53
fisicamente mais forte e por sua experiência lhe conferir uma certa sabedoria
prática. 0 comando, que exercem o magistrado (termo utilizado para designar
os agentes de decisão e de execução na Antiguidade), o cidadão cuja inter­
venção conduz à adoção de um decreto que daqui para frente regulará a vida
da coletividade, o juiz que participa na elaboração da sentença, o estrategista
que decide as manobras no campo de batalha, só obtém autoridade porque a
constituição (politéia) da Cidade a previu formalmente e porque o cidadão do
qual emana tal comando foi regularmente designado para essa missão pelas
instâncias adequadas.
As sociedades humanas conhecem uma outra espécie de comando dife­
rente do político: a do dono que administra sua casa (oikos). As regras que
governam essa atividade - a economia, termo ao qual muitos tradutores
julgam conveniente acrescentar: doméstica, para diferenciá-la da política, que
só é concebível no meio de certos dados do mundo moderno que são os
Estados-Nações - , os escritos políticos de Aristóteles consagram numerosas
páginas, e isso desde seu primeiro livro. Não se insistirá aqui sobre esse
aspecto, que desempenhou um papel enorme na“audiência que recebeu A
Política na época medieval, na Europa e na bacia do Mediterrâneo. Lembrare­
mos apenas que o filósofo notavelmente compreendeu, nessa época de econo­
mia mercante, que o fator econômico tem como parte principal a atividade
crematística, que é a técnica ou a arte de fazer crescer seus bens, que a moeda
não é apenas um meio de facilitar as trocas, mas que constitui o que Marx
chama, após os trabalhos dos economistas ditos clássicos, um “equivalente
geral” do valor e que a usura deve ser excluída de toda troca monetária, na
medida em que ela é “contra a natureza”, já que a peça de moeda, sendo como
o seixo do gênero inanimado, não saberia “fazer filhos” (procriar).
No entanto, a análise do movimento das mercadorias e da moeda e as
considerações crematísticas não esgotam o registro das questões que a dona-de-
casa coloca. Essa comporta também o comando dos escravos. Aristóteles,
exprimindo fielmente a tradição grega clássica, não transige sobre este princípio:
o “poder” do senhor sobre seus escravos não é de maneira alguma político, pois
é exercido por um homem livre sobre um ser cuja única virtude é obedecer.
Assim como, de acordo com esse ponto de vista, a casa não é uma Cidade,
assim também a Cidade não pode ser encarada, de maneira alguma, como lugar
onde reinaria o despotismo. Este último tipo de poder vai contra a exigência
política inscrita na virtude do homem que pressupõe que cada um é livre... É
preciso então concluir também, já que o fato da escravatura é evidente —e isto
no quadro da própria Cidade - , que há homens que não possuem a virtude do
homem e que, por conseguinte, são homens apenas na aparência.
Desse modo, o fato irrecusável da escravidão torna-se, na exposição
aristotélica, um problema. A argumentação que desenvolve A Política, a
respeito disso, é incontestavelmente o terceiro ponto forte da coletânea. O
filósofo constata primeiro, com uma firmeza e uma abundância na argumenta­
ção tais, que se trata não de uma questão de estilo, mas de uma convicção
sólida, a conformidade entre a concepção hierárquica do Ser que toma por

54
verdadeira e o fato real da escravidão. Aristóteles não é como esses sofistas
ou esses “questionadores”, como Cristias, por exemplo, que adquirem espíritos
fortes e consideram que a única coisa que justifica o estatuto servil é a força
que exerceu e que mantém o Dono.
Do mesmo modo que o ser humano “civilizado” domina uma parte
racional e deliberativa e que é conveniente que esse comande as camadas de
almas submissas aos caprichos dos instintos animais, assim também, na espécie
humana, há indivíduos nascidos para mandar e outros para obedecer.
Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)? Para
Aristóteles como para Platão e para a imensa maioria dos gregos, a resposta
se encontra nos próprios fatos. E verdade que a civilização grega clássica, que,
a despeito de certa excentricidade, se julgava satisfatória, tinha por base a
existência de uma numerosa classe de escravos. Estrangeiros e descendentes
de estrangeiros em sua maioria, muitos não falavam ou falavam mal o grego,
eram, em resumo, “bárbaros”, despojados de toda educação, que não possuíam
nenhuma espécie de direito e tinham condições de vida e de trabalho muito
variáveis. Em Atenas mesmo, o pequeno artesão, estabelecido na cidade dentro
de uma tenda e dependendo de uma família liberal, era visto quase como um
cidadão, enquanto os mineiros empregados nas minas do Estado de Laurion
eram tratados como bestas de carga... Em todo caso, essa servidão, se havia
um grande excesso que a qualificava de voluntária, era, para a massa dos
escravos, admitida como um dado constitutivo daquilo que existe.
Havia, portanto, escravos por natureza. A esse respeito Aristóteles, não
apenas em A Política, mas também em outros textos, dá conselhos de modera­
ção. Devia-se exigir deles a mais estrita obediência, mas era preciso evitar
maltratá-los. Era do próprio interesse da casa exigir que fossem considerados
animais domésticos, em função de se conseguir deles o maior rendimento
possível e que, baseando-se em sua aparência humana, se evitasse adotar
condutas inadequadas. Porém, a análise de Aristóteles não se detém nessa
constatação e nessas prescrições elementares. A descrição do escravo por
natureza - “o homem... cuja atividade se reduz a usar seu corpo” - se articula
diretamente em uma discussão que se apóia na legitimidade da escravatura
segundo a lei.
Não é possível retomar aqui, em detalhe, o sexto capítulo do Primeiro
Livro. O que sobressai nele é que a causa mais freqüentemente adiantada para
justificar esse tipo de servidão é a da presa de guerra. Ora, o filósofo insiste
sobre o fato de que não saberia tratar-se ou não de uma razão válida. Do
mesmo modo que não há comando que não seja legitimado por uma virtude,
assim também uma espécie de obediência como aquela que implica a posição
servil supõe uma “constituição” do ser escravizado que não tem relação com
o fato de ter sido feito ou não prisioneiro de guerra. Exatamente por isso,
pode-se dizer que aquele a quem semelhante infortúnio acontece e é reduzido
à escravidão aceita “ser uma parte de seu senhor”, constrangendo-se por sua
própria vontade à obediência.
Podemos nos perguntar se o conjunto dessa argumentação não significa

55
que Aristóteles se atém a manifestar sua posição a toda concepção que
conferisse um fundamento político à servidão. Este é ou bem um dado de fato,
ou bem um dado ilegítimo. Repugna à razão que um homem digno deste nome
(tentemos passar sobre essa monstruosa negação que implica o uso de tal
fórmula) possa ser “pertencente” a outro homem e não possua nenhuma
espécie de domínio sobre si mesmo. Segundo o filósofo, a política é, de uma
certa forma, a ciência da liberdade, mesmo quando as exigências da autoridade
fazem com que certas Cidades, certas partes do corpo cívico devam, no todo
ou em parte, obedecer politicamente. Contrariamente ao que Platão acreditou
poder adiantar, o regime constitucional que caracteriza a Polis, não pode ser
nem em nome da natureza, nem em nome da razão de obediência de uma parte
da população à outra.
É precisamente essa insistência em acentuar a realidade constitucional
- a politéia - como estrutura essencial do regime cívico (ou político) que
inscreve a pesquisa aristotélica no seio da “nova cultura” (néa paidéia), que
floresceu em Atenas no século precedente, no quadro da democracia de
Péricles, mas sem se reduzir a ela, em oposição à “cultura antiga” (arkhéia
paidéia)... Sob esse aspecto, o aristotelismo aparece, na época clássica, como
o momento culminante de uma reflexão iniciada pela Informação (história),
de Heródoto, e pela História da guerra de Peloponeso, de Tucídides, e
desenvolvida nos textos de certos Sofistas que foram perdidos e dos quais
só restaram alguns curtos fragmentos. Nesse assunto, a atitude de Platão,
que foi de uma originalidade exagerada, é equívoca no primeiro sentido do
termo: por um lado, realmente, como os "modernos”, recusa os regimes de
educação baseados na tradição e reclama a colocação de uma ordem cívica
definida segundo as normas da razão e da elaboração dialética; mas, por
outro lado, esse próprio rigor o conduz a propor modelos (de “primeira” e
de “segunda” categoria) nos quais a exigência racional tece, para os indiví­
duos e os grupos, uma rede de opressões ainda mais duras, que aquela que
encerravam as sociedades tradicionais!
A “politie” aristotélica - foi assim que certos tradutores sugeriram exprimir
em francês a palavra politéia em A Política, onde essa palavra significa, ao
mesmo tempo, o regime “constitucional” em geral e a melhor constituição, quer
dizer, a constituição mais equilibrada - é completamente diferente de A Repú­
blica (politéia), de Platão. A Kallipolis, que este analisa, existe (idealmente) como
perfeição, una, única, encerrada de algum modo na plenitude de seu êxito. O
regime constitucional do qual Aristóteles se faz o arauto não deve ser entendido
em sua acepção jurídica atual. Ele designa o estatuto político de uma coletivi­
dade, no sentido estrito; essa coletividade é, em seu núcleo, em sua essência,
composta de cidadãos, isto é, de homens que devem obediência apenas às leis,
tais como foram desejadas e enunciadas pela Cidade. Esta, quando é fiel a si
mesma, se define negativamente (e diferencialmente) em relação às formas de
poder que predominam em outros lugares e não na Grécia.
Ela se distingue, primeiro, pelo fato de ser compreendida como ordem
(taxis) que convém melhor à realização do homem segundo o mais alto grau

56
de sua potência. Situado no meio do caminho entre o supralunar e o sublunar,
é apenas no quadro cívico que ele se realiza como não sendo "nem deus nem
bruto", que age, ao mesmo tempo, em função de sua dependência (com
respeito ao peso das necessidades e paixões) e da capacidade de autonomia
que lhe conferem sua faculdade de deliberar e seu poder de decisão. A Cidade,
cosmicamente situada no cume do sublunar, dá assim à relação de sangue a
legitimação que a eleva acima do ser-animal e confirma que o comando político
é diferente dessa imagem do poder real que é o poder que reina na família e
que lhe é superior. Ele invalida definitivamente a idéia de que a autoridade que
exerce o Grande Rei sobre seus súditos ou o tirano sobre seus ex-concidadãos
possa ser justificável por uma discussão de natureza política. Deste último
ponto de vista, não há nada a dizer, a não ser que nenhuma justificativa pode
ser dada. A esse respeito, a radicalidade de Aristóteles parece ser ainda mais
profunda do que a de Platão.
Os pressupostos metodológicos de aristotelismo político são tais que não
poderia existir para ele, como existe para o platonismo, modelo absoluto do
regime excelente. Contanto que seja respeitado e administrado sem a menor
omissão o domínio exclusivo da lei, contanto que seja assegurada a mediação
arbitrai das regras que a coletividade se deu para organizar as relações de
comando e de obediência, quaisquer que sejam as circunstâncias ou relações de
forças, qualquer um regime - que estipule o comando de um só (a monarquia),
de uma minoria (a oligarquia, definida de diversas maneiras segundo os critérios
adotados para designar os cidadãos: o nascimento, o valor militar, a propriedade
imobiliária, a riqueza, etc., e suas possíveis combinações) ou do conjunto de
habitantes masculinos autóctones - contará entre as politeiai.
O tipo de regime, uma vez tendo sido reconhecida a preeminência do
nomos sobre a força e tendo sido definidas as instâncias que o impuseram, é,
no restante, função do território, das tradições, da história de cada cidade. Sem
dúvida, esses fatores empíricos tendo sido enumerados e seus respectivos
pesos apreciados, há razão para se discutir o que vale mais, nesse ou naquele
contexto e não se perdendo nunca de vista que o fim da existência coletiva é
a realização maior das potencialidades humanas. A reflexão política é ativa e,
de certo modo, normativa. Assim, em A Política - assim como na coletânea
das 158 constituições gregas e bárbaras (das quais apenas conservamos a
Constituição de Atenas, reeditada em 1891) que a acompanhava e devia servir
aos “trabalhos práticos” dos estudantes do Liceu —não apenas cada espécie
de regime é descrita em suas modalidades principais assim como as subes-
pécies que a formam, mas também são analisadas, teórica e empiricamente,
(para a discussão de exemplos), os méritos comparados de umas e outras.
Compreende-se assim que tenha sido estabelecida, a despeito da preocupação
aristotélica de não concordar com as técnicas normativas brutais de Platão ou
das políticas “partidárias”, uma espécie de hierarquia.
A nova cultura grega está habituada a essas discussões, para não dizer
que ela se compraz com elas. Pode-se dar, aqui, apenas algumas indicações
sobre os julgamentos do filósofo, de tal modo são matizadas e sujeitas a

57
restrições as argumentações que as pontuam. No caso da monarquia, o
preceptor de Alexandre, fiel à família dos reis da Macedônia, não podia negar
que ela pudesse ser um bom regime. Mas, para que assim fosse, seriam
necessárias muitas condições. Entre outras, aquela, que se realiza raramente,
que é a de que o povo tenha uma capacidade natural para engendrar uma
família virtuosa e de valor incontestável. Senão, a tirania ameaçava. Na
verdade, cada espécie de regime é vigiada por sua duplicata perversa que
destrói a preeminência das leis e a natureza política do comandante: a
monarquia pela tirania, a oligarquia pelo poder logo sem controle de um grupo
de homens ricos ou cujas famílias foram antigamente valorosas, a democracia
pelo reinado de uma massa desordenada e caprichosa, cujo objetivo é espoliar
os que possuem algum bem.
Em compensação, se ela mantiver firme seu caráter de politéia, cada
espécie, no contexto empírico que é o seu, saberá achar o caminho da
moderação que lhe convém. A oligarquia, por exemplo, não deve ser nem
restritiva demais, nem tolerante (frouxa) demais, na definição dos cidadãos
aptos a exercerem os comandos; ela se dedicará a combinar, ao critério de
seleção pela fortuna ou pela propriedade privada, princípios concernentes à
aptidão militar ou à excelência na educação; ela se abrirá às mudanças quando
as circunstâncias assim impuserem. Dessa maneira, oligarquia bem equilibrada
seria a aristocracia, o governo dos melhores, que se empenhariam em promul­
gar boas leis, isto é, em regular de acordo com a justiça, o que deve reverter
para cada um, tanto na posse de bens como no exercício da magistratura.
No centro das análises aristotélicas reaparece constantemente essa ques­
tão da eficácia da justiça distributiva. Monarquia e oligarquia devem preocu­
par-se com isso, se quiserem evitar as sedições no interior e a incapacidade no
exterior. Mas, na verdade, a grande dificuldade da democracia é colocar as
instituições no lugar e enunciar regras de governo tais, umas e outras, que a
cidadania pudesse se estender a todos os habitantes masculinos autóctones
capazes de carregar armas, sem consideração de nascimento, de fortuna, de
propriedade privada, de educação e que qualquer cidadão pudesse ser chama­
do, por meio de eleição ou por sorteio, para assumir qualquer magistratura,
até a mais alta. Na democracia completa (entretanto bem equilibrada), coman­
do e obediência são, de fato e por direito, intercambiáveis: a (principal) virtude
do cidadão de semelhante regime é saber mandar da mesma forma que
obedecer, segundo o jogo das instituições que, lembramos, prevêem a rotação
anual da maioria das magistraturas. Notar-se-á que, na descrição aristotélica da
boa democracia, não se trata, como no modelo de Platão, de prever medidas
“econômicas” que assegurem a igualdade material de certas camadas da
população. Aristóteles seria um “liberal”, no sentido moderno do termo, se,
todavia, essa significação pudesse ser transportada para a época grega clássica;
as desigualdades das condições sociais são evidentes, e a política — salvo
circunstâncias excepcionais - não pode intervir nesse assunto.
Ela intervém, entretanto, segundo parece, mas de maneira indireta.
Certas passagens de A Política, certos momentos da história de Atenas e

58
páginas de seus historiadores sugerem a hipótese de que a politéia em geral
e, singularmente, as constituições democráticas, se têm como finalidade o
famoso ditado "viver para o bem humano”, isto é, também segundo a razão e
a liberdade, oferecem no estatuto da cidadania uma maneira de ser que
assegura a possibilidade de ação, da dignidade, da glória e do reconhecimento
dos outros... O cidadão, porque ele é senhor de si mesmo, porque seus atos
contam no seio da vida coletiva, porque é levado a debater sua conduta e a dos
outros, evitará talvez dar uma importância excessiva àquilo que chamamos o
estatuto social. Compensação? Engodo? Não se sabe ao certo.
Aceitando, então, esquematizar - o que Aristóteles não gostava muito de
fazer —, seria possível admitir que o preferível, nas Cidades onde a complexão
moderada comporta, é uma espécie de regime democrático, contanto que tenha
sido prevista uma série de freios garantidores contra a violência e os erros das
instituições por natureza sujeitas ao capricho. Ao contrário, contudo, se se
lidar com Cidades marcadas pelo gosto daquilo que é excessivo e aventureiro,
então será preciso desconfiar do regime democrático e desejar a instalação seja
de uma monarquia fundada sobre a confiança de todos em uma personalidade
capaz de conter e punir o menor desrespeito às leis, ainda que chegasse bem
próximo, seja de uma oligarquia bem estabilizada que se esforçasse para
manter a justa medida na distribuição das riquezas e das dignidades.
Desenham-se, também, os contornos dessa “politie”, dessa constituição
destinada a ter o maior sucesso possível. Aristóteles só aborda essa idéia, como
se tivesse sido impelido por seus cerceamentos e se resguarda de entrar em
detalhes; ele convém que, se o poder o permite e se os hábitos institucionais
não o repugnam, o bom regime deveria reunir em uma configuração sólida as
virtudes eminentes de cada uma das espécies de politéia: a unidade de
comando e de projetos estratégicos que a monarquia estabelece em caso de
guerra e de crise, a eficácia do governo que conduz a colocação nos postos de
comando, uma oligarquia que teria como altos magistrados os melhores
quanto à competência para comandar e os mais interessados na força e na
riqueza da coletividade e a coesão de massa de uma democracia que, por
definição, reúne, em torno do tema da defesa da Cidade e de suas leis, os
cidadãos mais harmoniosos e mais ativos. A "politie” por excelência só pode
ser uma mistura das três espécies de regime político.
Mas não é de maneira nenhuma indispensável que se constitua essa
síntese, totalmente aperfeiçoada, para que seja dado ao homem de bem o
quadro favorável à sua realização. No fundo, a condição maior, desejada pela
natureza segundo Aristóteles, é o exclusivo poder da lei - o enunciado
“universal” da coletividade - que apenas permite definir o campo onde se
exerce o ato como expressão da liberdade (ou não) e recusa que a relação
empírica de comando e de obediência possa ser considerada política.
A política aristotélica é um elemento do saber enciclopédico aberto que
está no princípio da obra. Porém a articulação daquela a esta é tal que o lugar
e o ato do político são autônomos... A filosofia política recebe um lugar e uma
legitimação.

59
Para a área cultural mediterrâneo-européia, a história das leituras e dos
efeitos de A Política, de Aristóteles, da mesma maneira que a dos textos
políticos de Platão, se confunde com a do próprio pensamento político e com
sua inserção nas transformações das sociedades. Pode-se mesmo considerar
que a conivência (contra os desprezadores de Idéias) e a oposição (concernente
ao lugar deles) dos dois fundadores são, elas próprias, fundadoras de tomadas
de posição teóricas reativadas em contextos diferentes e, de repente, transfor­
madas, sem perder sua marca de origem. Do aristotelismo reivindicado (ou
assumido) de Tomás de Aquino e de G. W. Hegel às posições jusnaturalistas
militantes contra os princípios de A Política e que, entretanto, suportam na
concepção do direito, principalmente, uma impregnação constante, da Repú­
blica romana elevada à maturidade que seus defensores tomavam por uma boa
realização da “politie”, às referências que nossa pós-modernidade, quebrada
pelos excessos, utiliza para desarticular os voluntarismos fanáticos dos moder­
nos, Aristóteles está presente. O importante é não torná-lo pesado e não
esquecer que A Política, ao mesmo tempo que difunde os conhecimentos
essenciais, visa também a suscitar, como tecido da vida política quotidiana,
uma certa sabedoria que é prudência ao mesmo tempo que saber.

• 0 texto: Aristotelis Política, texto grego editado por W. O. Ross, Oxford, 1957.
Aristóteles, La Politique, texto, introdução e tradução, J. Aubonnet, Paris, Les Belles-Lettres, 4
vol. (3 vol. aparecidos em 1960-1973 correspondem aos livros 1 a VI). La Politique, introdução,
notas e tradução, J. Tricot, Paris, Vrin, 1962; Politique d'Aristote apresentada por R. Weil,
coletânea de textos, Paris, A. Colin, col. “U", 1966.
Os textos de Aristóteles importantes para consultar: Aristotelis Metaphysica, texto grego
editado por W. Jaeger, Oxford, 1957; La Métaphysique, introdução, notas e tradução, J. Tricot,
Paris, Vrin, 1953, 2. vol.; La Constitution dAlhènes, texto, notas e tradução por C. Mathieu e
B. Haussoulier, Paris, Les Belles-Lettres, 1941; Éthique à Nicomaque, texto, notas e tradução
J. Voilquin, Paris, Gamier, 1950.

► Para consultar entre os textos clássicos: Platão, Les Dialogues, principal mente Le Protago-
ras, Le Gorgias, L ’Apologie de Socrate, Le Criton, La République, Le Politique, Le Critias,
Les Lois, La Lettre VII, seja nas edições com prefácio, notas, textos e traduções da coleção
“Budé” Paris, Les Belles-Lettres, seja em Platão, Oeuvres complètes, Paris, Callimard, Bibliotè-
que de la Pléiade, 2 vol., trad. L. Robin; Hérodote, Enquête (ou Histoire), Tucídides, Histoire
de la guerre du Péloponèse, In Herodoto, Tucídides, Oeuvres complètes, Paris, Callimard,
Bibliotèque de la Pléiade, introd. J. de Romilly; Xenofonte, Oeuvres, notas e trad., P. Chambry,
3 vol. principalmente no vol. 2, a République des Athéniens (que não é de Xenofonte, mas de
um panfletário desconhecido), Paris, Garnier-Flammarion, 1957.
Sobre Aristóteles, entre os comentaristas modernos, a título indicativo: O. Hamelin, Le Sgstème
d ’Aristote, Félix Alcan (ed.) 1920; L. Robin, Aristote, Paris, PUF, 1944; J. Moreau, Aristote et
son école, Paris, PUF, 1962; P. Aubenque, Aristote et le problème de l ’Etre, Paris, PUF, 1966;
W. Jaeger, Paidéia.

François CHÁTELET

60
ARON, Raymond, 1905-1983
Paz e guerra entre a» nações, 1962

Paix et guerre entre les nations, escrita por Raymond Aron em 1960-
1961, apareceu em 1962. A última edição, publicada em 1984, pouco depois
da morte do autor, comporta uma "apresentação inédita” dessa, que responde
a diversas objeções. É sem dúvida a mais ambiciosa das obras políticas de Aron,
na medida em que se trata, ao mesmo tempo, de uma tentativa de elaboração
teórica, de uma sociologia das relações internacionais, de uma análise do
estado do mundo, por volta de 1960, e de uma “praxiologia”, isto é, de uma
discussão das “implicações normativas” da teoria.
A intenção de Aron é, portanto, de prestar contas da maneira mais
completa possível das relações internacionais, a fim de torná-las inteligíveis.
Porém, permanece fiel à concepção epistemológica que havia exposto em sua
Introduction à la philosophie de Vhistoire (Introdução à filosofia da história),
um quarto de século antes: não é possível apreender o conjunto da realidade
histórica, é necessário proceder a um corte. O que Aron procura compreender
é apenas uma parte da história e, ainda, uma parte das relações internacionais:
ele se interessa pelas relações entre os Estados, não pela “sociedade inter­
nacional”, isto é, pelo “conjunto de todas essas relações entre Estados e
pessoas privadas que permitem sonhar com a unidade da espécie humana".
Quanto às relações entre Estados, privilegia o estudo da “conduta diplomáti-
co-estratégica”, que, a seus olhos, constitui a própria essência dessas relações,
isto é, o que tem relação com a guerra e a paz. Em outras palavras, só se
interessa pela economia mundial na medida em que esta reconstrói as decisões
dos Estados e, mais precisamente, suas decisões diplomático-estratégicas. O
que exclui "a priori a predominância causai do sistema econômico”. Há,
portanto, contraste total entre o corte de Aron, centrado no estado de natureza
onde se encontram os Estados entre eles, e o corte marxista, centrado em um
sistema econômico mundial, indiferente às fronteiras.
Aron permanece igualmente fiel a seu mestre Max Weber: a conduta
diplomático-estratégica constitui um tipo ideal, do qual retira a originalidade,
comparando-a às outras condutas coletivas (esporte, economia). O que carac­
teriza a ação exterior dos Estados é a multiplicidade ou indeterminação dos
fins, justapostos ao imperativo do cálculo das forças, necessário para garantir
a sobrevivência e a segurança de cada unidade em um conjunto que não é nem
uma comunidade, nem uma verdadeira sociedade, já que não há poder central
nem valores comuns. Resulta daí a existência de um “problema da política
estrangeira” (o que outros autores chamaram de o "dilema da segurança”):
necessidade para cada ator de contar apenas consigo mesmo para sobreviver,
mas necessidade também de impedir que o choque das ações separadas
conduza à insegurança ou mesmo à destruição coletivas. No entanto, resulta
daí também, devido à diversidade dos objetivos e dos meios e à multiplicidade
das condutas racionais possíveis, uma “relativa indeterminação” da ação

61
diplomático-estratégica. Daí a impossibilidade de fazer a “teoria global” que
suporia um “objetivo unívoco”. Ainda mais uma vez, reencontram-se os
postulados da Introduction à la philosophie de Vhistoire.
A parte intitulada teoria é, deste modo, essencialmente esquemática. Ela
se dedica a libertar a lógica permanente das relações entre Estados, proceden­
do a uma classificação dos meios e dos objetivos da política estrangeira, assim
como a uma apresentação dos principais modelos de sistemas internacionais
(homogêneos e heterogêneos, em relação aos princípios constitutivos das
unidades; bipolares e multipolares, em relação ao número dos atores princi­
pais). Esse esquematismo explica-se não somente pela ausência de uma meta
única, mas também porque se pode chamar a predominância dos atores em
relação aos sistemas: são aqueles (ou, melhor, antes de tudo, as grandes
potências) que os moldam, submetendo-os inteiramente aos constrangimentos
que os sistemas fazem pesar sobre eles.
Ora, desde que se analise o papel dos atores, a “teoria” desaparece atrás
da "sociologia”, isto é, do estudo das maneiras múltiplas cujos diversos fatores
contribuem para determinar ou, antes, para orientar, a política exterior de um
Estado. Aron analisa, assim, as “determinantes”, tais como o espaço, o número,
as origens, os regimes, a fim de procurar fazer ressaltar as regularidades. Com
efeito, ele passa pelo crivo da história um grande número de teorias ou de
hipóteses, ou de ideologias, referentes à influência desses fatores (por exemplo,
as teorias do imperialismo), e chega em quase todos os casos, a conclusões
profundamente céticas e variadas. Ainda aqui, a indeterminação triunfa.
A “praxiologia”, que vem depois de uma análise apurada do sistema
internacional contemporâneo, marcada, ao mesmo tempo, pela bipolaridade e
pela revolução nuclear, isto é, pelas regras muitas vezes paradoxais da
dissuasão entre os dois grandes, examina a antinomia do “problema maquia­
vélico” (aquele dos “meios legítimos”, que sempre permitiram o recurso à
força) e do “problema kantiano” (“o da paz universal”, da aspiração a uma
moral da lei mundial substituída pela “moral do combate”), tal como ela se
apresenta na era nuclear. Aron resgata uma ética da prudência, ou da
moderação, fortemente inspirada em Tucídides. Ele critica, ao mesmo tempo,
o idealismo daqueles que fazem de conta que a rivalidade entre os Estados já
foi superada e pregam a paz pelo direito ou pelo desarmamento, e o "realismo”
perigoso daqueles que pensam que o antagonismo entre os dois principais
campos só pode ser superado pela vitória de um dos dois. Aron escolhe, em
suma, uma estratégia de coexistência política e de estabilidade nuclear.
Este resumo sumário dá apenas uma fraca idéia da riqueza da obra, que
é, ao mesmo tempo uma tentativa de sistematização, um comentário muitas
vezes azedo de quase todas as teorias apresentadas a propósito das relações
entre Estados, pelos filósofos e pelos pesquisadores das ciências sociais (ou
mesmo das ciências) e uma espécie de repertório das principais experiências
históricas. A própria amplitude dos conhecimentos e a diversidade das análises
suscitaram, desde a publicação da obra, a admiração de numerosos comentaris­
tas, na França (J.-B. Duroselle) e no estrangeiro (Martin Wight, Hedley Buli,

62
Henry Kissinger e o autor destas linhas). No conjunto, a obra foi particular­
mente bem recebida por esses especialistas das relações internacionais, que
consideram, como Aron, que uma teoria dedutiva dessas relações que as
reduziria a uma série de teoremas e pretenderia poder predizer o comporta­
mento dos Estados é um engodo, e que a pesquisa do rigor é incompatível com
aquela da compreensão (no sentido weberiano), e que a preocupação de tornar
a história inteligível e a de constituir uma ciência segundo o modelo das
ciências exatas também não são conciliáveis. A obra de Aron, mesmo quando
critica certos conceitos empregados e certezas divulgadas, pelos teóricos da
“escola realista”, das relações internacionais (Morgenthau, Carr, Kennan), não
deixa de pertencer ao mesmo universo: o das relações entre os Estados
(considerados como os únicos atores importantes), dominados pela possibili­
dade e pelo risco do recurso à força. Assim, Paix et guerre (Paz e guerra) foi
tratada com respeito pelos membros dessa escola.
Vê-se, da mesma forma, de onde vieram as criticas: antes de tudo, de autores
com pretensões científicas ou cientistas. Um autor americano, Oran Young,
reprovou em Aron sua "falta de interesse pela teoria dedutiva”, sua tendência
para discutir as relações entre variáveis em "termos fenomenológicos concretos”
em vez de fazê-lo sob a forma de um raciocínio dedutivo; reprova também uma
ausência de precisão suficiente no uso de diversos conceitos ou o tratamento de
certas variáveis; e reduz a obra ao nível de “comentário político de primeira
categoria”. Mais tarde, um outro especialista americano, Kenneth Waltz, criticou
a obra porque Aron, de maneira diferente de Waltz, não considera que a teoria
das relações internacionais deva deixar de lado as características dos Estados
(diferentes de seu pensamento relativo) e tende, a partir desse fato, a explicar
essas relações pelo comportamento das unidades (os Estados), mais do que pela
natureza do sistema (Waltz, por meio de seu método, chega, com efeito, a uma
teoria mais rigorosa, mas sem muito vigor).
Outras críticas surgiram não sobre o desenvolvimento das análises, mas
sobre certas simplificações ou exclusões: seria razoável comparar o Estado a
um ator racional, dada a cumplicidade dos processos de decisão interna? Seria
legítimo privilegiar as relações entre Estados comparativamente às que se
estabelecem entre outros atores importantes - fragmentos burocráticos de
Estados, multinacionais, organismos regionais ou internacionais? Seria justo
se reter mais na conduta diplomático-estratégica, do que em apreender a
sociedade internacional inteira, colocar no âmago da reflexão o fenômeno
belicoso (e particularmente o nuclear) quando o mundo contemporâneo é
tanto o da interdependência econômica quanto o da bomba atômica, tanto o
das relações Norte-Sul, quanto o da guerra fria (Mareei Merle)?
Sobre esses últimos pontos, Aron manteve suas posições na “apresenta­
ção" da edição póstuma, da mesma maneira como havia alegremente defendido
seu método em um artigo de 1967. Todavia, em suas Mèmoires, publicadas em
1983, mostrou-se severo com Paix et guerre-, “Falhei, pela metade, em relação
ao meu objetivo”, escreveu ele, censurando-se pelas insuficiências na segunda
parte (sociologia) e lamenta não ter falado mais da economia mundial nem

63
concluído a sociologia dos processos de decisão (volta a esse assunto na
apresentação de 1984, conservando totalmente, segundo se diz, sua concepção
original). Pergunta-se também se conseguiu "estabelecer o equilíbrio necessá­
rio entre a monstruosidade das armas nucleares e a banalidade das relações
entre os Estados”; fazendo, sem dúvida, alusão a uma outra crítica —a que
reprovava sua moral da prudência, na era termonuclear, de ser demasiado
prudente, demasiado sereno, demasiado confiante na capacidade dos Estados
para fazer prevalecer a Sabedoria, para superar as crises, para dominar o
destino, apesar do peso das decisões antagônicas, a curto prazo, ou os efeitos
da rivalidade tecnológica, ou o risco de acidentes incontroláveis. Mais, em sua
última obra, inacabada, Les dernières années du siècle, Aron não se mostra
mais muito inquieto. Parece ter preferido sua outra grande obra de política
internacional, Penser la guerre: Clausewitz, à Paix et guerre. Mas, se a
erudição e a acuidade analítica, empregadas no primeiro volume de Clausewitz
- consagrada ao pensamento do grande autor estrategista - são sem igual, os
estudos empíricos do segundo volume não acrescentam, no fundo, grande
coisa à soma de conhecimentos, de demonstrações e de sabedoria manifestada
em Paix et guerre.

• Paix et guerre entre les natlons, Paris, Calmann-Lévy, 1962,1984, Qu'est-ce qu’une théorie
des relations intemationaies, R em e française de Science politique, outubro de 1967.

► Stanley Hoffmann, Minerve et Janus, Critique, janeiro e fevereiro de 1963; Raymond Aron
et la théorie des relations intemationaies, Politique étrangère, 4/1983; Mareei Merle, Le dernier
message de Raymond Aron, R em e française de Science politique, dezembro de 1984; Oran
Young, Aron and the Whale, a Jonah in Theory, in Klaus Knorr and James N. Rosenau (ed.).
Contending Approaches to International Politics, Princeton, Princeton University Press, 1969;
Kenneth Waltz Theory o f International Relations, Nova Iorque, Columbia University Press,
1977.

S t a n l e y HOFFMANN

64
B
BABEUF Gracchus, 1760-1797
Resumo do Grande Manifesto proclamado para restabelecer a Igual­
dade de fato. Necessidade, para todos os desgraçados franceses, de
uma aposentadoria no Monte Sagrado (ou da formação de uma Ven-
déa plebéia, A Tribuna do Povo, 9 Frimário, Ano IV.

“Nos tempos do comunismo, que se instala sobre um terço do nosso


planeta, não ficamos mais admirados de que um dos precursores de uma
ideologia que triunfa tire proveito dos sucessos de prestígio de um mundo que
lhe deve pelo menos uma parte de seus sonhos, de suas formulações, de suas
metas”, afirmava C. Mazauric em uma Introdução às Oeuvres choisis (Obras
escolhidas), de Babeuf (1965). Feito isso, inverteu —para melhor compartilhá-
la - a opinião de J.-L. Talmon, que havia encontrado dentro de “o projeto de
sociedade igualitária comunista dos seguidores de Babeuf’ um dos atos
fundadores da “tradição democrática totalitária”. Na galeria dos ancestrais do
comunismo moderno, Babeuf figura como precursor reivindicado ou como
acusado responsável: falar de Marx, de Lênin, de Stálin, até de Pol Pot, é
também falar de Babeuf; de um “ascetismo universal e de um igualitarismo
grosseiro” (Marx), certamente, mas também o embrião ainda não-viável de uma
sociedade a libertar.
Essa atitude se compreende; mesmo se a amplitude da conspiração dos
seguidores de Babeuf, de 1796, permanecesse limitada, mesmo se os fatores
dessa mobilização permanecessem ainda, até hoje, controvertidos, a pos­
teridade da Conjuração dos Iguais teria sido levada pelo proselitismo do qual
provou continuamente um de seus iniciadores, Buonarroti. A herança codifi­
cada e parcial, que ele deixou do babovísmo (doutrina de Babeuf), nutriu o
entusiasmo das sociedades secretas do século dezenove: conspiração, ditadura
e comunismo igualitário eram as palavras-chave: os devaneios utópicos dos
tempos presentes e passados foram arrumados na luta política.
Desde a execução do tribuno em 1797, todavia, a história do babovísmo

65
se assemelha demais a um jogo-da-glória político-ideológica para que tratemos
dela aqui.
Nos escritos de Babeuf, não existe uma obra-chave: seu projeto de
escrever De Végalité (1793) nunca foi concluído. Além de outras brochuras,
cartas e numerosos manuscritos (às vezes disponíveis em russo, mas inéditos
em francês), ele deixou essencialmente textos de combate. 0 feudista (pessoa
versada em direito feudal) que ele era, antes da Revolução, se fez jornalista
revolucionário. Seu principal sucesso começa depois de sua saída dos cárceres
dos robespierristas; seu Journal de la Liberté de la Presse (Jornal da liberdade
de imprensa) e, depois, seu Tribun du Peuple (Tribuno do povo), entre o verão
de 1794 e abril de 1796, num total de uns 43 números, tiveram a tiragem de
cerca de 2.000 exemplares, cada um. Eram opúsculos (folhetos) que apareciam
a intervalos irregulares, destinados mais a serem proclamados publicamente
do que destinados a uma leitura individual, folhas perseguidas e apreendidas
sem cessar pelos partidários do Termidor e pelos Dirigentes.
O Manifesto dos Plebeus (que não se deve confundir com o Manifesto
dos Iguais, de inspiração idêntica, de Sylvain Maréchal) é, ao mesmo tempo,
um apelo ao despertar revolucionário do povo e uma exposição não-sis-
tematizada das teses de Babeuf.
Babeuf foi, antes de tudo, um homem do século dezoito, um homem com
uma certa Filosofia das Luzes (ou do Iluminismo) da província; em corres­
pondência com a Academia de Arras, antes de 1789, nutriu-se (espiritualmente)
em Morelly, em Mably e principalmente em Rousseau. Partidário, de segunda
mão, desse filósofo, ele retoma de maneira utilitária os lugares-comuns de um
pensamento difundido e enriquecido na Revolução: “É menos um filósofo do
que um sans-culotte (republicano) instruído.” (C. Magaurie).
Crença na igualdade natural, referência ao caráter convencional da
origem do poder, necessidade de.renegociação do pacto social, denúncia do
luxo e da riqueza, elogio da simplicidade e recusa do govemo representativo
estão muito presentes em ambos autores; mas em Babeuf, são, às vezes,
deformados (a igualdade natural torna-se assim perfeita), às vezes, empobreci­
dos, funcionando como justificações teóricas, espécie de referências forçadas,
suporte de um apelo à ação insurrecional que se procuraria em vão em
Rousseau.
“O elixir do contrato social" não é, para Babeuf, essa procura desvairada
da legitimação do poder político, mas a sensibilidade ao igualitarismo que ele
revela. É isto que interessa: causa, em apoio à sua tese do advento da felicidade
comum pela facilidade igual de todos os co-associados, as justificativas antigas
e modernas mais demonstrativas: daí o apelo a Licurgo, aos Gracos, a Jean-Jac-
ques, a Morelly (confundido nesse caso com Diderot) e mesmo a Robespierre
(novamente reabilitado por Babeuf). Existe um código da natureza anterior e
superior à sociedade: basta proclamar, “sob inspiração da eterna justiça, o
decálogo da santa humanidade, do republicanismo, da imprescritível eqüi­
dade”; a realização das tábuas da lei, de Babeuf, é a solução definitiva e lógica,
conforme as prescrições da natureza e à evolução da humanidade. Expulsar o

66
acaso, “essa pretensa fatalidade”, escrevia Morelly, “conseguir subjugar a
sorte”, postulava Babeuf.
Sem dúvida, nunca um projeto de felicidade comum teria sido tão comple­
to: "Este governo fará desaparecer os limites, as cercas, os muros, as fechaduras
das portas, as disputas, os processos, os roubos, os assassinatos, todos os crimes;
os tribunais, as prisões, os patíbulos, as condenações e a desesperança que
causam todas essas calamidades; a inveja, o ciúme, a insatisfação, o orgulho, as
falcatruas, a duplicidade, enfim, todos os vícios; mais ainda (e esse ponto de vista
é, sem dúvida, o essencial) o verme roedor da inquietude geral, particular,
perpétua de cada um de nós, sobre nossa sorte de amanhã, do mês, do ano
seguinte, de nossa velhice, de nossos filhos e dos filhos deles.”
O homem bom, reconciliado consigo mesmo e com seus semelhantes, é
um ser transparente que não aspira a nada além de uma honesta mediocridade:
a suficiência para todos, nada mais do que a suficiência. O postulado da
igualdade perfeita se junta a um pessimismo econômico - parcialmente
explicado pela dureza pavorosa da conjuntura pós-termidoriana - exclui das
aspirações de Babeuf toda referência às seduções prometidas por Morelly.
Também o comunismo visado é um comunismo das propriedades e dos
bens, mas não unicamente: a exploração das terras permanece individual,mas
não é questão de aceitar qualquer lei agrária, repartição igualitária das
propriedades, reivindicação da extrema-esquerda dos republicanos que Babeuf
havia defendido, após 1791; tal lei reproduziria imediatamente a desigualdade
existente. Apenas a propriedade coletiva e a obrigação de fornecer o conjunto
do produto de seu trabalho assegurarão a igualdade total do co-associados.
Mas essa igualdade não será perfeita, portanto natural, a não ser que os
outros fatores de acumulação do capital individual, fonte de distinções sociais,
sejam também banidos.
0 saber, fruto do trabalho coletivo das gerações passadas, não deve, mais
do que qualquer outro bem, ser objeto de apropriação individual; monopo­
lizado por “uma parte da associação”, o saber se torna “um monte de
máquinas, uma provisão de armas de todos os tipos, com a ajuda dos quais,
essa primeira parte combate contra a outra, que está desarmada, chega
facilmente (...) à subjugá-la sob vergonhosas correntes”.
Mais ainda, as representações que os homens fazem da utilidade e da
dignidade de suas atividades sociais serão destruídas: no domínio das “coisas
de opinião”, assim como na produção dos bens e dos saberes, alguns abusaram
de sua posição social para fazer crescer a excelência de suas fontes pessoais e,
assim, espoliar aqueles que estão desprovido dela: “é preciso, talvez, ainda
examinar se o valor da força totalmente natural e física” não se iguala àquela
da inteligência.
A felicidade babefista suprime a simbólica social; proclama a supressão
de toda espécie de capital (dinheiro, etc); suprime o conflito, suprimindo todas
as causas do conflito.
O homem de ora em diante estará nu e será feliz, igual a seus seme­
lhantes; nada poderá fazê-lo recair na servidão, pois tudo foi previsto para sua

67
suficiência, e toda esperança de oprimir seus semelhantes lhe estará inter­
ditada. A eternidade será daqui em diante imóvel.
A utopia de Babeuf não tem necessidade de longos desenvolvimentos
nem de constrangedoras indicações suplementares. Ela não precisa procurar
ilhas miraculosas ou terras para conquistar.
Ela é possível aqui e agora: na França do Diretório. É preciso que uma
“vendée plebéia”, foco de propaganda para o feito, se instale em Paris, de
preferência, e a felicidade comum estará a caminho.
Pouco importa a forma do governo, tão discutida pelos membros da
conspiração: uina ditadura, até um legislador à antiga ou uma organização
militar de reabastecimento cumpririam a tarefa. A reforma dos costumes, a
erradicação do desejo, em poucas palavras, a adoção de instituições plebéias
valeria mais do que uma constituição que viria, no momento certo, consolidar
uma democracia unanimista.
O socialismo é uma questão de estômago, proclamaria, quase cem anos
mais tarde, Jules Guesde. Babeuf parte da oposição do "milhão dourado e dos
estômagos vazios” (Le Tribun du Peuple, Nivoso, ano 111) para chegar a
garantir a cada um cota-parte individual nos produtos da natureza e do
trabalho. O sans<ulottisme que irriga o babefismo e fornece à Conjuração
muitos de seus militantes, depois de sua desclassificação (ver R. M. Andrews,
Annales ESC, 1974), é dessa época em diante ultrapassado nas palavras: “A
igualdade de usufrutos fundada sobre a limitação da propriedade foi subs­
tituída pelo nivelamento das necessidades, assegurado na Grande Comunidade
Nacional.”
No entanto, é do indivíduo que tudo parte; mas o associado babovista é
mais o cidadão de uma cidade antiga ideal do que o homem das luzes em
gestação.

• Le Tribun du Peuple, 1794-1796, textos escolhidos e apresentados por Armando Salta, Paris,
col, 10/18,1969.

► V. M. Daline, Gracchus Babeuf à la veille et pendant la Grande Révolution française,


Moscou, 1963, Paris, 1976; Claude Mazauric, Babeuf et la consplration pour VÊgalité, Paris,
1962.

M ichel OFFERLÊ

68
BAKUNIN, Mikhail Aleksandrovitch, 1814-1876
Estatismo e Anarquia, 18731

Estatismo e Anarquia foi escrito e publicado em 1873, três anos antes


da morte de seu autor. Fragmento de um fragmento de livro, esse texto se
apresenta como a primeira parte de uma “Introdução”, e a “parte seguinte”,
anunciada in fine, deve ser considerada perdida —se de fato foi escrita. Nessas
condições, por que escolher, entre os escritos importantes de Bakunin, um
trabalho apenas começado, do qual somente o título sugere o interesse teórico,
e que, além disso, foi destinado a um público russo ou que falasse russo? Por
uma razão evidente: é o único livro que apareceu durante a vida de seu autor.
A obra não se distingue fundamentalmente de qualquer dos outros escritos,
publicados ou inéditos, anteriores a Estatismo e Anarquia, que, como os
outros, não foi terminado. Trata-se, bem entendido, de todas as obras que
saíram da pena de Bakunin a partir de sua adesão àquilo que considerava como
a causa da emancipação humana, causa designada ora como “coletivismo”, ora
como “socialismo revolucionário”, como “democracia socialista" e, finalmente,
como "anarquismo”. Todavia, esse termo está quase ausente do texto propria­
mente dito da “Introdução”: ele só aparece no Apêndice A, no âmago de um
raciocínio bem característico da idiossincrasia “antiestatista” do autor.

A ciência mais racional e profunda não pode prever as formas que tomará a vida social
no futuro. Pode apenas definir os fatores negativos decorrentes logicamente de uma
rigorosa crítica da sociedade atual. Assim, a ciência sócio-econômica (...) chegou à
negação da propriedade individual hereditária e, por conseguinte, ao conceito abstrato
e, por assim dizer, negativo da propriedade coletiva como condição necessária do futuro
sistema social. Da mesma maneira, chegou a negar a própria noção do Estado e do
sistema estatal, quer dizer, de todo sistema que consista em govemar a sociedade de cima
para baixo, em nome de um pretenso direito teológico ou metafísico, divino ou científico,
e, por conseguinte, a emitir o conceito diametralmente oposto, partindo do negativo, a
saber a anarquia, isto é, a organização livre e autônoma de todas as unidades ou partes
separadas que compõem as comunas e sua livre federação fundada, de baixo para cima,
não sob injunção de qualquer autoridade, seja qual for, mesmo eleita, assim como sobre
as formulações de uma teoria sábia, qualquer que seja, mas em conseqüência do
desenvolvimento natural das necessidades de todas as espécies que a própria vida teria
feito aparecer.(1976, p. 363)

Temos aqui uma das raras passagens do livro onde o autor formula a tese
central do que teria sido, se ele a houvesse verdadeiramente desenvolvido, a
substância de seu empreendimento literário. Foi provavelmente por ter se dado
conta disso que Bakunin inscreveu demasiadamente tarde, à guisa de título da
“Introdução" e, portanto, de certa maneira como o subtítulo do projeto anuncia­
do, o assunto realmente tratado: “A luta dos dois partidos na Associação
Internacional dos Trabalhadores” (/oc. cit. p. 203). Seria restringir o campo de
análise propriamente teórico incluído na promessa do título e reduzir o argumen­
to doutrinário a uma de suas dimensões puramente históricas, quase anedóticas,
pois, atrás da "luta dos dois partidos”, assinalada no subtítulo, se dissimulava o

69
confronto passional de duas personalidades: Marx, como personificação do
“estatismo”, de um lado, oposto a Bakunin, encarnação do "anarquista”, do
outro; antagonistas irreconciliáveis que teriam feito da Internacional a arena
reservada às suas competições. É preciso admitir que a gravidade das acusações
pouco justificadas, dirigidas contra a pessoa de Bakunin, tratado de trapaceiro,
e contra sua Aliança “secreta”, por ocasião do Congresso da Associação Inter­
nacional dos Trabalhadores, em Haia (setembro de 1872), só podia exacerbar
certa fobias manifestadas pela vítima em toda uma série de escritos: Marx foi
muito maltratado, nesses escritos, por causa de sua tríplice qualidade negativa
de alemão, de hegeliano e de... judeu! Em suma, em Estatismo e Anarquia,
Bakunin traduziu em russo, sua língua materna, as idéias germanófobas e
anti-semitas por ele desenvolvidas em francês, principalmente numa obra como
O Império knouto-germânico e a Revolução Social (parcialmente publicada em
18712 e em várias "cartas” e artigos de 1871-18723.
Em todos esses escritos, Bakunin sustenta teses que vão contra as
análises marxistas do papel comparado das políticas alemã e russa sobre o
tabuleiro de xadrez europeu, antes e depois da epopéia napoleônica: o primeiro
denuncia violentamente a supremacia, conquistada em 1870, graças à derrota
da França bonapartista, do “pangermanismo estatal", o segundo prende ao
pelourinho o expansionismo pan-eslavista da Rússia czarista. A germanofobia
de Bakunin é manifestada e persistente até em seus últimos textos e testemu­
nhos políticos; em compensação, a russofobia de Marx nunca atingiu esse grau
de paroxismo. Evitou negligenciar as perspectivas revolucionárias das ins­
tituições comunitárias camponesas em suas considerações de crítica materialis­
ta do "despotismo oriental”. A despeito dessas divergências, muito numerosas,
em Estatismo e Anarquia, as concordâncias que se podem estabelecer entre
as opiniões de um e de outro, concernentes aos homens de Estado, chefes de
partidos ou diplomatas em evidência, que ocuparam o proscênio da história
política durante a segunda metade do século dezenove: Jules Favre, Gambetta,
Mazzini, Thiers e Bismarck - todos eles protagonistas da burguesia militante
aos quais Marx, leitor atento e talvez primeiro crítico do livro russo do
Ocidente - não tinha nada a acrescentar. Não teria, ele próprio, tomado para
alvo de seus ataques os mesmos homens e, muitas vezes, pelas mesmas razões?
Poderia subscrever sem reserva, bem no começo da “Introdução”, onde
Bakunin assinala a influência adquirida pela Internacional desde sua fundação
“sobre a evolução prática* dos problemas políticos, econômicos e sociais em
toda a Europa” (1976, p. 203), sem para isso ter de tomar como seus os
exageros antialemães do autor, que fala em nome de um “partido social-revo-
lucionário” russo e de uma “seção eslava” zuriquenha da Internacional, cujo
“programa revolucionário anarquista” figurava no Apêndice B (loc. cit., p. 379
e seg.). Ser-lhe-ia ainda menos possível aceitar, sem renunciar aos princípios
diretores de sua própria teoria social, a tese segundo a qual as oportunidades
de uma revolução social seriam maiores na Itália do que em qualquer outro
país da Europa, pela simples razão de que lá existe, de um lado, “um vasto
proletariado dotado de uma inteligência extraordinária, mas, em sua maioria,

70
analfabeto e profundamente miserável, composto de dois ou três milhões de
operários trabalhando nas cidades e nas fábricas, assim como pequenos
artesãos” e, do outro lado, “cerca de vinte milhões de camponeses” que nada
possuem (p. 206). E depois de ter frisado a vantagem da ausência, na Itália, de
uma classe privilegiada de trabalhadores beneficiados com altos salários,
Bakunin passa ao seu primeiro ataque ao “partido” adversário, indicado no
subtitulo de Estatismo e Anarquia:

O que predomina na Itália é o proletariado em farrapos do qual Marx e Engels e, em sua


continuação, toda a Escola dos sociais-democratas alemães, falam com o mais profundo
desprezo, e isso muito injustamente, pois é apenas nele e não na classe aburguesada da
massa operária que reside, em sua totalidade, o espirito e a força da futura revolução
social (loc. cit., p. 6 do texto russo; p. 206 da tradução).

Nenhum contemporâneo de Marx prodigalizou a seu gênio científico tantos


elogios quanto Bakunin; mas nenhum se enfureceu tanto contra a pessoa, o
caráter e o comportamento do mesmo Marx suas virtudes, assim como seus
defeitos, são reduzidas a uma única e mesma origem, o fato de ele pertencer à
“raça judia”5, a qualidade (negativa) de alemão vindo se sobrepor a essa
propriedade inata. Essa ambivalência do julgamento psicológico o observador
anarquista não teve medo de conservá-la no presente escrito de pura polêmica,
onde consagra mais de três páginas a um esboço biopsicográfico de seu
antagonista apresentado, logo de início, como “o principal propagandista do
socialismo na Alemanha”. Em primeiro lugar, vêm as “qualidades negativas”:

0 Sr. Marx é de origem judia. Pode-se dizer que reúne em si todos os defeitos e todas as
qualidades dessa raça capaz (...) é extremamente vaidoso e ambicioso, brigão, intolerante e
absoluto como Jeová, o Deus de seus ancestrais (...). E não há intriga, por mais odiosa que
seja, capaz de detê-lo, quando acredita (...) que serve para reforçar sua posição, sua influência
ou ampliar seu poder. Sob esse aspecto, é o homem político por excelência (p. 316).

Quanto às “qualidades positivas”, sua longa enumeração é reveladora tanto


das forças interiores da formação intelectual de Bakunin quanto da teoria social
e do itinerário de Marx. Depois de ter recordado que este último foi, “por volta
de 1840, a alma e a figura central de círculos progressistas hegelianos, muito em
evidência, com os quais publicou uma revista de oposição que o governo não
tardou em interditar", Bakunin evoca brevemente a estadia de Marx em Paris,
em 1853-1854, e de seus primeiros contatos comunistas. Foi lá que ele teria
encontrado “seu compatriota, o judeu alemão Maurice (sic) Hess, que fora antes
dele um economista e um socialista, e teve, nessa época, uma grande influência
sobre a evolução científica do Sr. Marx (loc. cit, p. 316 e segs.).
Bakunin, nesse trecho de sua narrativa, evita falar de seu próprio
encontro com Marx, em 1844. Silêncio muito mais significativo por ele se
encontrar nesse tempo na situação de discípulo, como ele mesmo admitiu em
um escrito precedente * e em uma carta endereçada a seu... mestre 7. Em
compensação, esboçou, em traços precisos, o retrato do homem de ciência, tão

71
bem, que aí se adivinha a influência da leitura de Capital,cujo autor lhe havia
prestado homenagem, e do qual ele teria, sem dúvida, realizado a tradução
para o russo, se não tivesse sido afastado dessa tarefa por uma das personali­
dades mais surpreendentes da história revolucionária russa, o tragicamente
célebre Serge G. Netchaiev 8. Eis o começo desse elogio:

É raro encontrar um homem que tenha tantos conhecimentos e tenha lido tanto e de
maneira tão inteligente, como Sr. Marx. A ciência econômica era, desde essa época, o único
objeto de suas ocupações. Estudou com particular cuidado os economistas ingleses,
superiores a todos os outros, pelo caráter positivo de seus conhecimentos e pelo sentido
prático de seu espírito formado pela análise dos fatos econômicos ingleses; superiores
igualmente pela vigorosa crítica e pela escrupulosa ousadia de suas deduções. Mas a tudo
isso o Sr. Marx acrescentou ainda dois novos elementos: a dialética mais abstrata, a mais
sutil - que ele tomou emprestada à escola hegeliana e compeliu, frequentemente, até a
malícia, até a perversão - e o ponto de partida do comunismo (loc cit., p. 317).

Segue uma alusão às ricas leituras socialistas de Marx “de Saint-Simon


a Proudhon inclusive”, acompanhada de uma advertência não menos elogiosa
à “impiedosa crítica” da Filosofia da Miséria deste último que, permanecendo
idealista e metafísico, fazia da noção abstrata do direito a fonte dos fatos
econômicos:

... O Sr. Marx, contrariamente (a Proudhon), enunciou e demonstrou a incontestável


verdade, confirmada por toda a história antiga e moderna da sociedade humana, das nações
e dos Estados, que o fato econômico sempre precedeu e continua a preceder o direito
político e jurídico. Um dos principais méritos científicos do Sr. Marx consiste precisamente
no desenvolvimento e na demonstração desta verdade (em russo, p. 119; trad. p. 317).

Tendo, assim, perfeitamente resgatado uma das teses essenciais formula­


das por Marx na Miséria da Filosofía (1847), Bakunin não poderia, sem se
contradizer ou, pelo menos, sem justificar seus ataques antes brutais contra o
homem político, opor este último ao homem de ciência. E lhe foi difícil
reconhecer-se como seu discípulo e consagrá-lo à execração como defensor do
poder do Estado, sem revelar o defeito irremissível que explicaria essa aprecia­
ção contraditória. Não podendo citar a menor linha, o menor propósito nos
escritos do mestre que lhe permitisse qualificá-lo de "comunista de Estado”,
não hesitou em arvorar-se em juiz de suas motivações secretas ou dissimula­
das, por um lado, estabelecendo uma filiação intelectual mais do que duvidosa
e, de outro, inventando a adesão de Marx, ao “comunismo autoritário” que
remeteria a suas origens... raciais. É esse duplo processo de interpretação que,
com efeito, sustenta a argumentação, muitas vezes pouco coerente, empregada
em Estatismo e Anarquia.
PROCEDIMENTO Nfl 1

Mas o fato mais marcante, que o Sr. Marx, bem entendido, jamais admitiu (!), é que, sob
a relação política, ele é bem ou mal o discípulo de Louis Blanc. O Sr. Marx é
incomparavelmente mais inteligente e mais sábio do que esse pequeno revolucionário e

72
homem de Estado azarento; mas, como bom alemão, apesar de seu porte intelectual
respeitável, abandonou-se à doutrina do pequeno francês (loc. cit., p. 327).

Ora, não apenas Marx jamais “admitiu” que se considerava discípulo de


Louis Blanc, mas, muito pelo contrário, julgou severamente o “estatismo”
deste último, principalmente pelo papel que desempenhou como membro do
governo provisório depois da revolução de fevereiro, quando o autor da
Organização do Trabalho (1840) se tornou “o profeta das oficinas nacionais”9.
A idéia das cooperativas de trabalho financiadas pelo Estado foi propagada por
F. Lassalle, na Alemanha, e foi criticada por Marx. Esse fato é conhecido de
Bakunin, que evita revelá-lo nas páginas de Estatismo e Anarquia, consagra­
das ao “sistema Schulze-Delitzsche” combatido por Lassalle “estatista” (loc.
cit., p. 343 e segs.). Em compensação, não perde oportunidade de revelar que
este era "vaidoso, muito vaidoso, como só o pode ser um judeu”(p. 345). E foi
essa “explicação” que propôs da pretendida filiação do “estatismo” de Marx,
herdado de Louis Blanc:
PROCEDIMENTO N4 2

Não obstante, essa singularidade é fácil de ser explicada: o retórico francês, político
burguês e admirador apaixonado de Robespierre, e o sábio alemão, em sua tríplice
qualidade de hegeliano, de judeu e de alemão, são, os dois, ferozes estatistas e pregam,
um e outro, o comunismo autoritário, com uma única diferença: enquanto um, à guisa
de argumentos, se contenta em empregar a retórica, o outro, como é próprio de um
alemão erudito e de peso, confunde, o que eqüivale, para os dois, a um caro princípio nas
sutilezas da dialética hegeliana, usando todos os recursos de seus vastos conhecimentos
(loc. cit., p. 317).

Basta medir a motivação política da empreitada, conduzida por Bakunin


em Estatismo e Anarquia, para compreender as razões que o levaram, depois
da humilhação que foi sua evicção da Internacional, a adotar meios tão
duvidosos, subterfúgios tão grosseiros, com o fim de desacreditar os ensina­
mentos e a pessoa de Marx, junto aos leitores potenciais dessa entrada na
matéria que representava a “Introdução” da obra em gestação. Esses leitores
só poderiam ser, prioritariamente, os revolucionários russos; os poucos mil
exemplares impressos deviam ser passados em contrabando, em remessas
sucessivas, ao longo da fronteira russo-polonesa, até São Petersburgo (hoje
Leningrado) (cf. A. Lehning, 1967, p. XXIV)10. Ora, Bakunin acreditava na
possibilidade de uma revolução camponesa na Rússia, antes mesmo que uma
revolução proletária explodisse nos países ocidentais, e se opunha, nesse
ponto, aos “socialistas doutrinários” e, antes de tudo, aos adeptos do assim
chamado socialismo científico; já Marx e sua escola pensavam de outro modo:
foi para estes últimos que Bakunin inventou a denominação “marxistas”, sem,
evidentemente, duvidar das conseqüências nefastas que essa criação termino­
lógica devia trazer depois do desaparecimento do teórico revolucionário,
promovido ao papel ambíguo de fundador de uma ideologia (cf. M. Rubel,
1965, reimp. 1974; M. Manale, 1974,1976,1978)11.

73
Se não é totalmente falso, é, pelo menos, exagerado fazer de Bakunin um
adepto do pan-eslavismo ou um dos representantes do messianismo russo, por
menos reconhecido que ele fosse, com Alexandre Herzen, um dos pioneiros do
narodnitchestvo, do populismo russo (cf. Venturi, 1972, p. 180)12, o qual foi
desenvolvido em um clima de desconfiança com relação ao Ocidente burguês e
em uma espécie de culto das tradições comunitárias entre os camponeses russos.
O autor da Confissão ao Czar nunca escondeu sua fé na vocação revolucionária
do povo russo, e, de uma certa maneira, mesmo no momento em que usava de
astúcia com o soberano, do qual esperava obter as graças, conseguiu fazer
passar, nesse hábil amálgama de ficção e verdade, as próprias bases de seu
pensamento de cativo desesperado e de futuro organizador de sociedades
secretas13. À luz desse documento literário excepcional, Estatismo e Anarquia
toma o comportamento de um manifesto russófilo e antiocidental, lembrando as
posições comuns de Bakunin e de Herzen, antes e depois dos fracassos dos
movimentos revolucionários de 1848 (cf. Venturi, 1972; cap. I-II).
Durante a guerra franco-alemã, antes da vitória prussiana, as idéias de
Bakunin sobre a questão germano-eslava foram de encontro às concepções
anti-russas de Marx, claramente formuladas na mensagem inaugural da A. I. T.
e nos outros textos redigidos em nome do Conselho Geral.
Estatismo e Anarquia não poderia ser compreendido sem prestar contas
dessa oposição de princípios, claramente afirmada por Bakunin, em abril de
1870, em um jornal russo que apareceu em Genebra14. Essa oposição se
caracteriza, certamente, por uma avaliação divergente das perspectivas de uma
revolução radical nos países industrialmente desenvolvidos; mas principalmente,
onde toma, para Bakunin, a forma de uma germanofobia cega; ela aparece, para
Marx, sob o aspecto de um anticzarismo incondicional, que, não obstante, reserva
uma “possibilidade” revolucionária para a Rússia camponesa. Última testemunha
dessa fé populista, a edição russa do Manifesto Comunista, publicada pouco
antes da morte de Marx, contém em seu prefácio, sob a dupla assinatura dos
autores, uma homenagem à comuna camponesa, relativamente eventual “ponto
de partida para uma evolução comunista” que colocaria a Rússia "na vanguarda
do movimento revolucionário da Europa” (Marx, Obras, 1,1977, p. 1483 e segs.).
O populismo de Bakunin implicava uma alternativa absolutamente contrária à
tese marxista do liberalismo burguês como condição sine qua non da revolução
proletária, sendo essa, por sua vez, a preliminar obrigatória do sucesso do
populismo na Rússia. Formulada em francês, para as necessidades da polêmica
contra Marx, bem antes da redação de Estatismo e Anarquia, essa alternativa é
aproximadamente o leit-motiv desse livro escrito em russo:

A conquista alemã pangermanizaria o mundo; a conquista russa ou eslava terminaria


cedo ou tarde na absorção dos conquistadores na civilização dos povos conquistados.
Uma e outra são detestáveis; mas, se fosse absolutamente necessário escolher entre as
duas, eu aconselharia a Europa a aceitar mais a conquista eslava ou russa (Bakunin,
fevereiro-março, 1872; Arquivos, II, 1965, p. 29).

74
Bakunin se recusa a fazer, para a Alemanha, a mesma distinção categó­
rica que fizera entre “o infame Império de todas as Rússias”, que declara odiar
"mais do que qualquer alemão”, e o povo russo. Toda a história e, principal­
mente, a história dos sete últimos decênios demonstram que a Rússia não é
absolutamente essa enorme potência que pesa sobre o destino da Europa, e,
se é verdade que a reação “knouto-petersburguesa" se exerce sem freios nas
fronteiras de todas as Rússias, é em Berlim que se concentra a reação vigorosa
que “se espalha por todos os países da Europa partindo do novo Império
alemão, governado pelo gênio de um estadista e, desde então, hostil, no mais
alto grau, ao povo do príncipe de Bismarck” {Estatismo e Anarquia, loc. cit,
p. 210). Com efeito, o czarismo russo vê erguer-se contra ele um movimento
revolucionário cujas origens remontam aos séculos XVII e XVIII, quando os
Stenka Razine e os Pougatchev praticavam o banditismo mais audacioso,
enquanto na Alemanha a conivência entre todos os partidos políticos, não se
excluindo os socialistas, com o nacionalismo de Bismarck constituía o verda­
deiro perigo para o conjunto dos povos europeus:

Contrariamente aos democratas socialistas alemães, cujo programa fixa como primeiro
objetivo a fundação de um Estado pangermanista (!), os revolucionários socialistas russos
aspiram antes de tudo a destruir completamente nosso Estado, persuadidos de que,
enquanto a centralização estatista, sob qualquer forma que seja, pesar sobre o povo
russo, esse continuará sendo um miserável escravo (loc. clt., p. 209).

Quase todo o texto de Estatismo e Anarquia consiste em comparações


históricas e políticas tendentes a desacreditar as aspirações dos alemães à
unidade nacional como que ditadas por uma vontade de poder ilimitado, a
fim de realizar o “conceito antipopular de Estado moderno”. Seu único
objetivo: a organização de uma oligarquia de exploradores, em outras
palavras, da “usura” e da alta finança, sob a proteção da polícia e das forças
armadas. As incoerências flagrantes não estão ausentes desse discurso onde
a França operária e camponesa ocupa um lugar importante. A análise dos
acontecimentos de 1870-1871 junta-se, muitas vezes, à do Memorial sobre a
Guerra Civil na França, escrita por Marx no dia seguinte ao esmagamento
da Comuna, texto que Bakunin devia considerar uma renegação, pelo autor,
de suas convicções “estático-totalitárias”. Os prognósticos errôneos são,
talvez, mais freqüentes em Bakunin do que em Marx, mas sua similitude
manda-os de volta, muitas vezes, a um ponto comum de partida, revelador
de uma afinidade intelectual, que se enraiza na mesma exigência ética de
uma realidade diferente. Pertencendo à geração de pensadores russos nas­
cidos para pôr em evidência os revolucionários de dezembro, vítimas da
autocracia czarista, e fundar uma tradição revolucionária em honra das
várias gerações de intelectuais que sonhavam “ir ao encontro do povo”,
Bakunin se vangloriava de não ser nem sábio, nem filósofo, nem escritor
profissional; tinha apenas a ambição de compartilhar, na ação, sua cultura
com o "povo”.

75
Ora, entre os elementos fundamentais dessa cultura, Bakunin colocava, em
primeiro lugar, a contribuição de Marx, “personagem muito marcante, muito
inteligente e muito sábio e que prestou grandes serviços à Internacional”. Seu
dote foi entrar com uma parte não-negligenciável em Estatismo e Anarquia,
ainda que o autor estivesse, então, convencido de que esse personagem talentoso
tivesse cometido “o erro de querer se tornar ditador” e que seus adeptos haviam
cometido “maior erro ainda em querer fazer dele uma espécie de papa da
Internacional” (cf. Bakunin, janeiro de 1872, p. 214)15. Ele mesmo, e isso é
verdade, se curvou à autoridade desse mestre “autoritário”, na época da redação
e do voto, no Congresso de Basiléia (setembro de 1869), das resoluções
administrativas que ampliavam os poderes do Conselho Geral; depois, derramou-
se em exclamações de arrependimento (ibid, p. 211-215). No entanto, no
momento em que se preparavam para proceder a uma prestação de contas
intelectual, que desejavam que fosse definitiva, mostrou-se tanto ou mesmo mais
“marxista”, que muitos discípulos confessos de Marx. Esse “marxismo" aparece,
em Estatismo e Anarquia, principalmente sob o aspecto de antecipações pouco
realistas quanto aos “instintos revolucionários”, atribuídos aos povos menos
corrompidos pelos benefícios enganosos da civilização burguesa, que, sob a
forma de críticas premonitórias, cuja justeza se revelaria em todo o processo dos
acontecimentos revolucionários e reacionários que marcarão a história da
primeira metade do século XX: a ideologia batizada de “marxista” será apenas o
epifenômeno necessário e enganador engendrado pelas realidades sociais nas
quais nem Marx, nem Bakunin reconheceriam hoje o menor traço dos esforços
de uma humanidade dona de seu destino. Veriam aí, em compensação, os efeitos
alienantes da “lei econômica do movimento da sociedade moderna” (Marx, O
Capital, prefácio). Para a compreensão das crises sucessivas, cada vez mais
graves, que castigam as sociedades entradas na era de um “modernismo”
inexplicável, pretexto para todos os atentados e manipulações homicidas, a obra
de Bakunin, tardiamente, mas cada vez mais bem explorada, é uma contribuição
decisiva. Essa obra aparece como a ilustração prática de uma teoria das minorias
revolucionárias. Daí a pertinência da observação seguinte, feita por um dos
historiadores mais bem informados no domínio da pesquisa: "Se numerosas
idéias de Bakunin tiveram valor premonitório, isso aconteceu em razão de sua
prática política” (Vuilleumier, 1979, p. 129)16.

Recepção e avatares de Estatismo e Anarquia

Quando o livro, editado na Suíça, sem o nome do autor nem o local onde
foi impresso, apareceu na Rússia, como Publicação do Partido Social-Revolu-
cionârio, t I., diversas correntes intelectuais do populismo disputavam a
primazia da direção do movimento revolucionário, cujo duplo objetivo era a
derrubada da autocracia czarista e a instauração de uma economia comunitá­
ria com base na instituição ancestral da obchtchina, da comuna camponesa.
Era à juventude da intelligentsia (inteligência) que Bakunin destinava antes
de tudo suas concepções relativas à política dos Estados europeus e às

76
pretensões pangermanistas da Prússia, e era a essa mesma juventude que
expunha seu programa de organização sócio-econômico em oposição aberta a
um certo P. Lavrov, denunciado como porta-voz de um socialismo doutrinário
e de uma propaganda de doutrinação sem alcance sobre as massas es­
cravizadas. A influência do anarquismo de Bakunin e do socialismo de Lavrov
foi fortemente exercida sobre os estudantes em geral e os que freqüentavam a
Universidade de Zurique. Numerosos eram aqueles que, “uma vez de volta à
sua pátria para se consagrar à causa do povo, levaram para a Rússia o fermento
da revolta e essas idéias que haviam absorvido por meio de contatos pessoais
com Bakunin ou lendo suas obras” (Venturi, 1972, p. 741). Os dois Apêndices
de Estatismo e Anarquia desenvolvem, de maneira bastante detalhada, o
programa de ação cujos traços mais característicos são a rejeição da “tendência
favorável à formação de pretensos educadores do povo” (loc. cit., p. 363), a
apreciação mais negativa do movimento cooperativo segundo o modelo ociden­
tal, mas, principalmente, a lembrança repetida das revoltas camponesas e
populares na antiga Rússia, com seus chefes heróicos, os Stenka Rázin e os
Pougatchev. Eis o modelo proposto por Bakunin à “juventude revolucionária-
socialista russa, íntegra, sincera e devotada ao extremo” (p. 374), a fim de
vencer os obstáculos que apresentava o estado social das comunas campone­
sas, a saber, seu caráter patriarcal, sua tendência a absorver o indivíduo e sua
confiança no czar.

Assim como um dos principais deveres da juventude revolucionária é estabelecer, custe


o que custar e por todos os meios possíveis, um vínculo vigoroso de revolta entre as
comunidades rurais desunidas. A tarefa é difícil, mas não impossível; a história nos mostra
que nos tempos de tumulto, por exemplo na época da guerra intestina dos falsos Dimitris,
na época da revolução de Stenka Razin e de Pougatchev, assim como no curso da
sublevação de Novgorod no começo do regime do imperador Nicolau, as comunidades
rurais se esforçaram para estabelecer através de seu próprio chefe este vínculo salutar
(loc. cit., p. 373).

Compreende-se que um programa dessa natureza, seguido de uma


exposição de princípios da "Seção Eslava de Zurique”, qualificado de “progra­
ma revolucionário anarquista” e proclamado conforme os estatutos da Inter­
nacional, tenho podido exercer uma ação subterrânea durante as diversas fases
do movimento social que terminaria na Revolução de 1917. Pode-se, portanto,
apenas subscrever as propostas do historiador do populismo ao afirmar que o
"mito (de Bakunin) estará presente, quando “se for ao povo” em 1874, e que
suas concepções estarão sempre presentes na Organização Revolucionária
pan-russa (...), sua influência crescerá sem cessar no curso dos anos, e é nele
que se reconhecerão - na segunda metade dos anos 70 - os “amotinados” de
Petersburgo e Kiev, mas que "apesar disto, uma verdadeira organização nos
moldes de Bakunin não conseguiria ser implantada na Rússia" (Venturi, 1972,
p. 741 e segs.).
Por mais paradoxal que isso possa parecer, a historiografia do bolchevis-
mo reservará ao anarquista e autor de Estatismo e Anarquia um lugar de

77
honra, reconhecendo-o como o ancestral espiritual de... Lênin. Essa foi a tese
do biógrafo, militante bolchevista e editor em russo das obras de Bakunin, Iuri
M. Steklov. “Na sua biografia de Bakunin, referindo-se à discussão sobre as
origens históricas do Partido Bolchevique - discussão que, em particular,
giraria em torno da questão de saber em que medida Bakunin, Netchaíev,
Tkatchev poderiam ser considerados precursores do bolchevismo - Steklov
responde afirmativamente no caso de Bakunin” (A. Lehning, 1979, p. 25)17.
Se essa recepção positiva da obra de Bakunin, na Rússia pós-revolucioná-
ria, pôde prestar-se à controvérsia, o acolhimento reservado a Estatismo e
Anarquia pelo principal antagonista do autor reveste-se de uma importância
tanto maior quando se trata de um documento que tem o valor de advertência
endereçada às várias gerações de discípulos e partidários de mal com a ideologia
ou com a... religião. Tal é o alcance dos comentários anotados por Marx em
alemão, entre os trechos, recopiados em russo ou traduzidos, de Estatismo e
Anarquia (manuscrito datado de 1874-1875,1962 MEW, 1 8 ,1962)18.
O comentador fez uma leitura atenta de cerca de trezentas páginas do
texto principal do Apêndice A. As passagens selecionadas sem comentários
correspondem, às vezes, às próprias opiniões de Marx, às vezes, ao contrário,
a idéias que ele só poderia rejeitar. As observações críticas se reduzem às vezes
a propósitos irônicos, mas formulam, na maioria das vezes, verdadeiras teses
originais, como se os ataques dirigidos contra o pretenso comunista de Estado,
lhe parecessem a ocasião esperada para completar sua teoria política perma­
necida inacabada. Os ajustes históricos mostram a superioridade da erudição
de Marx, principalmente quando se tratava de resolver logo a questão das
respectivas responsabilidades da Rússia e da Prússia na "escravização da
Europa”. Quando Bakunin canta os louvores dos operários vienenses que, na
época da guerra franco-prussiana, recusaram os oferecimentos patrióticos dos
jovens burgueses alemães e se opuseram ao “mundo internacional dos explo­
radores o “campo internacional dos trabalhadores” (loc. cit., p. 214), não
esqueceu de lembrar o espanto de todos os “burgueses-democratas” e de
associá-los "à escola de Lassalle e de Marx”, cuja “fé estatista” se considerou
igualmente ofendida: Marx recopiou essa observação sem vacilar, fazendo-a ser
seguida por várias passagens que são como plágio de suas próprias idéias
tiradas do Memorial sobre a Comuna de 1871. Seus trechos são muitas vezes
paráfrases do texto de Bakunin, repetindo suas próprias palavras: “O proleta­
riado francês, quando pegou em armas, estava convencido de que combatia
tanto pela liberdade e pelo direito do proletariado alemão, quanto por sua
própria liberdade e seu próprio direito” (Bakunin, p. 215 e segs.; Marx, p. 602).
Pacientemente Marx deixa passar a vergonha de “imaginar” um pretenso
Volksstaat, um Estado popular, democrático, que nada mais era do que "o
governo das massas, de cima para baixo, por uma minoria sábia e, por isso
mesmo, privilegiada, como se ela compreendesse melhor os verdadeiros inte­
resses do povo, que o próprio povo” (Bakunin, p. 220, Marx, p. 603).
Todavia, não se pode negar que o leitor e compilador dos trechos
armazenou, em seu proveito, observações judiciosas sobre todo um conjunto

78
de questões concernentes à situação da Inglaterra, da Espanha e da Itália,
assim como as perspectivas revolucionárias nesses países. Por ter sido ele
próprio observador atento, durante um decênio de atividade jornalística, da
política interna e externa da Grã-Bretanha, da França, da Prússia, da Áustria,
da Rússia e dos Estados Unidos, Marx pôde instruir-se com a leitura de
Estatismo e Anarquia, onde Bakunin aproveitou a experiência de seus conta­
tos pessoais com companheiros filiados às sociedades secretas das quais fôra
o criador tenaz. Pôde também se dar conta de que seu adversário, dificilmente,
poderia ser considerado como um adepto do pan-eslavismo, assim como tinha
de admitir que o anarquista nutria, contra o czarismo e a opressão “knouto-
russa”, sentimentos de aversão e de ódio semelhantes aos seus próprios,
dissociando-se, porém, dos julgamentos exageradamente negativos sobre a
Alemanha reduzida por Bakunin a um império “knouto-germânico”. Face a
esse encarniçamento germanófobo, Marx percebe, visivelmente agastado: “A
Inglaterra não existe para esse politiqueiro de botequim; no entanto, é ela que
é o verdadeiro ápice da sociedade burguesa na Europa” (loc cit, p. 608).
Pode-se, contudo, admirar-se da paciência com que Marx cumulou as
teses ultra-eslavófilas de Bakunin, sendo o antiestatismo, para este, quase
sinônimo de “raça eslava”. Prefere, visivelmente, reter desses desenvolvimen­
tos prolixos apenas as escolhas políticas de Bakunin e isolar delas as fobias
anticzaristas, antialemãs e pró-eslavas, e também apropriar-se dessas idéias,
como, por exemplo, nesta passagem ressaltada pelo copista:

Nós (Bakunin)... sabemos, com toda certeza, que negociações secretas para a partilha do
Império austríaco estão em andamento entre a Alemanha e São Petersburgo, e que essas
duas potências procuram, naturalmente, enganar uma à outra (Bakunin, p. 103, ed.
Russay, p. 255, ed. francesa; Marx, p. 613).

A Polônia está no âmago da análise histórica e política da expansão


czarista, à qual Bakunin reserva as páginas mais importantes aos olhos do
leitor. Pôde encontrar, aí, matéria para completar sua própria documentação
reunida durante os anos 1860 em vista de uma obra consagrada à causa
polonesa (Marx; Manuscritos, 1863-1864)19. Mas os comentários críticos inter­
calados por Marx entre os textos de Estatismo e Anarquia não negligenciam
as posições políticas do fundador da Aliança, oficial e secreta, da Democracia
Socialista, que valeu a seu iniciador a expulsão da Internacional. No entanto,
em um ponto há acordo total entre Marx e Bakunin: a guerra entre o Império
alemão e a Rússia czarista é inevitável. Esperando esse acontecimento fatal,
Bismarck não se oporia a um empurrão da Rússia em direção ao Leste, onde
ela cobiça a Mongólia e a Manchúria, enquanto a China, à espreita de
territórios para sua superpopulação, poderia um dia enviar massas de homens
aguerridos, bem-treinados e equipados com armas européias, para conquistar
a Sibéria. Para os russos, trata-se de estender seu domínio sobre todo o Este
asiático, imitando Tamerlão. “Mas Tamerlão tinha seu povo atrás dele, enquan­
to o povo russo não seguiria seu governo” (Bakunin, loc. cit., p. 283; Marx, loc.

79
cit., p. 622). E, depois, há a Inglaterra e suas pretensões com relação à índia.
Esse país tem todo interesse em impedir a Rússia de se apoderar de Cons-
tantinopla.
A propósito do patriotismo alemão, Bakunin, depois de ter evocado a
figura de Fichte e de seus Discursos à Nação Alemã, escreveu este trecho,
cuidadosamente recopiado por seu leitor:

Mas os alemães de hoje, mesmo conservando a pretensão, verdadeiramente enorme, de


seu filósofo-patriota, repudiaram seu humanismo (...) O patriotismo do príncipe de
Bismarck ou o do Sr. Marx está mais ao alcance deles (Bakunin, loc. cit., p. 290; Mane,
loc. cit. p. 624).

Deve-se supor que Marx tomou-se de um vivo interesse pelas páginas de


Estatismo e Anarquia, onde o autor opõe, de uma maneira “materialista” ao
máximo, as massas populares, seus instintos e necessidades, perfeitamente
compreendidos pelos anarquistas, aos “idealistas metafísicos, positivistas, de­
fensores da primazia da ciência sobre a vida, revolucionários doutrinadores”
(loc. cit., p. 214. Marx, p. 625), para os quais a "idéia precede a vida”. Assim,
a sociologia, como ciência simplesmente, apanágio de uma minoria, autorizaria
esta a exercer sua “autoridade ditatorial”, em nome da vontade do povo, sobre
o conjunto da organização social originária da revolução. Esse interesse do
leitor se reflete na qualidade da tradução: o russo parece que já era bastante
familiar a Marx para tomar gosto por esse exercício de transposição lingüística.
Tinha tanto mais interesse, em fazer isso, por se encontrar em presença de um
texto contendo toda uma biografia intelectual, onde louvores e censuras
disputavam a prioridade, obrigando-o, em última instância, a responder às
críticas na medida em que ela visava a problemas de princípios, principalmente
as proposições centrais de seu próprio ensinamento.
Entre os escritos de Marx, que reduzem a nada a lenda segundo a qual
o teórico crítico da economia capitalista teria enaltecido, como militante
político, uma espécie de “comunismo de Estado”, voltaremos ao resumo
comentado, mencionado acima, que ele fez de Estatismo e Anarquia, um ano
depois de seu aparecimento. Dada a importância - “histórica”, no sentido
pleno do termo —do confronto intelectual que esse texto apresenta, muito além
das circunstâncias do momento, mostraremos as teses antagonistas sob a
forma de diálogo:
BAKUNIN: Já exprimimos, em várias passagens, uma forte aversão pela teoria de Lassalle e
de Marx, que recomenda aos trabalhadores, se não como ideal supremo, ao menos
como meta essencial imediata, a fundação de um Estado popular, o qual, como
eles mesmos explicaram, não seria outra coisa senão “o proletariado organizado
em classe dominante".
Se o proletariado se tornasse a classe dominante, quem, poderíamos perguntar,
ele dominaria? Portanto, permaneceria ainda uma classe submissa a essa nova
autoridade, a esse novo Estado...

MARX: Isto quer dizer que as outras classes também existem há muito tempo, particular­
mente a classe capitalista; também faz muito tempo que o proletariado luta contra

80
essa classe (pois, a despeito de seu poder governamental, nem seus inimigos nem
a antiga organização da sociedade desapareceram ainda), precisa empregar meios
de força, portanto, meios de governo; ele próprio é ainda uma classe, e as
condições econômicas sobre as quais repousam a luta de classes e a existência de
classes ainda não desapareceram e devem ser suprimidas ou transformadas pela
força; o processo de sua transformação deve ser acelerado pela força.

BAKUNIN: Por exemplo, a plebe do campo que, como se sabe, não está a favor dos marxistas
e que, situada no mais baixo grau da civilização, será provavelmente dirigida pelo
proletariado das cidades e das fábricas.

MARX: Isto quer dizer que lá onde o camponês existe em massa como proprietário
privado; lá onde ele constitui mesmo uma maioria mais ou menos considerável,
como em todos os Estados do continente oeste-europeu, onde ele não desapareceu
e foi substituído pelos diaristas agrícolas, como na Inglaterra, os seguintes casos
podem se apresentar ou bem o camponês impede ou faz abortar toda revolução
operária, como aconteceu até agora na França; ou bem o proletariado (pois o
camponês proprietário não pertence ao proletariado, e, quando pertence, por
causa de sua situação, não acredita pertencer a ela) deve, na qualidade de governo,
tomar medidas que permitam ao camponês melhorar imediatamente sua situação;
logo, o camponês deve ser conquistado para apoiar a revolução; medidas que,
entretanto, facilitem virtualmente a transição da propriedade privada da terra para
a propriedade coletiva, de maneira que o camponês chegue lá, espontaneamente,
por interesse econômico. Mas o proletariado não deve contrariar o camponês
proclamando, por exemplo, a abolição do direito à herança ou a abolição de sua
propriedade; isso só é possível onde o fazendeiro capitalista despojou os campo­
neses e onde o verdadeiro agricultor é tão trabalhador assalariado quanto o
trabalhador urbano, que tem, portanto, direta, e não indiretamente, os mesmos
interesses que ele; não se deveria, menos ainda, reforçar a propriedade parcelada
ampliando a parcela pela anexação de grandes domínios oferecidos aos campo­
neses, como o que se passa no expediente revolucionário de Bakunin.

BAKUNIN: Pois bem, se se considera a questão do ponto de vista nacional, digamos, para os
alemães, a questão dos eslavos, estes se encontrarão pela mesma razão, frente a
frente ao proletariado alemão, em uma sujeição de escravos idêntica à do
proletariado em relação à sua burguesia.

MARX: Asneira de colegial! Uma revolução social radical está ligada a certas condições
históricas do desenvolvimento econômico; e são a preliminar dessa revolução. Ela
só é possível no lugar onde, graças à produção capitalista, o proletariado industrial
ocupa pelo menos uma posição importante na massa do povo. E, para que haja
alguma possibilidade de vencer, é preciso que seja na medida em que é feito
diretamente, mutatis mutandis, para os camponeses, pelo menos tanto quanto a
burguesia francesa fez em sua revolução pelos camponeses franceses da época.
Bela descoberta foi a da idéia segundo a qual o domínio do trabalho encerra a
opressão do trabalho agrícola! Eis onde Bakunin trai seu pensamento interior. Não
compreende absolutamente nada a respeito da revolução social, exceto a fraseolo­
gia política do assunto; as condições econômicas, nesse caso, não existem para ele.
Ora, como até agora todos os sistemas econômicos, quer sejam desenvolvidos ou
não, implicam a escravlzaçáo do trabalhador (seja sob o aspecto do operário
assalariado, do camponês etc.), ele acredita que a revolução radical seja possível,
de maneira uniforme, em todos os sistemas. Tanto melhor! Quer que a revolução
social européia, fundada sobre a base econômica da produção capitalista, se realize
ao nível de povos, de agricultores e de pastores russos ou eslavos; quer que ela

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não ultrapasse esse nível (...) Essas não são as condições econômicas, é a vontade
que é a base da revolução social tal como ele a compreende.
BAKUNIN: Quem diz Estado diz, necessariamente, dominação e, por conseguinte, escra-
vização; um Estado sem escravidão, confesso ou disfarçado, é inconcebível, eis por
que somos inimigos do Estado. Que significa: o proletariado organizado em classes
dominantes?
MARX Isso significa que, em vez de lutar, mediante de atos isolados, contra as classes
economicamente privilegiadas, o proletariado adquiriu bastante força organizada
para empregar, contra elas, na luta, instrumentos gerais de coerção, mas ele
apenas pode utilizar instrumentos econômicos que suprimem seu próprio caráter
enquanto salariaífassalariado, em francês), portanto enquanto classe; sua vitória
sendo também total, estará acabado seu caráter de classe, portanto, de sua
dominação.
BAKUNIN: Quer dizer que o proletariado estará, inteiro, na direção do governo?
MARX: Em uma trade-union, por exemplo, a união inteira constitui seu comitê executivo?
Nas usinas, toda divisão de trabalho e as funções diversas que dela decorrem
pararão? E, na construção de Bakunin “de baixo para cima”, todos estarão “em
cima”? Não existiria, portanto, o “baixo". Todos os membros da Comuna adminis­
trarão simultaneamente os interessess comuns da região? Mas, então, não haverá
diferença entre a Comuna e a região.
BAKUNIN: Calcula-se em tomo de quarenta milhões de habitantes a população da Alemanha.
Pode-se dizer que esses quarenta milhões fazem parte do governo...?
MARX: Certamente! Visto que o negócio começa pelo autogovemo da Comuna.
BAKUNIN: ... e o povo inteiro governando, não haveria mais governados?
MARX: Quando um homem domina a si próprio, ele não se domina segundo esse princípio;
pois ele o faz por si mesmo e não um outro.
BAKUNIN: Nesse caso, não haverá governo, não haverá Estado, mas, se existir um Estado,
haverá governados, haverá escravos.
MARX Isso significa simplesmente: quando o domínio de classes desaparecer, não existirá
Estado no sentido político atual.
BAKUNIN: Na teoria dos marxistas, esse dilema é decidido simplesmente. Por governo
popular, eles...
MARX (isto é, Bakunin).
BAKUNIN: ... entendem o governo do povo como o governo de um pequeno número de
representantes eleitos pelo povo.
MARX Asno! Isso é embromação democrática, disparate político! A eleição é uma forma
política, como na menor comuna russa e no artel (cooperativa russa de consumo).
A natureza do escrutínio não depende desse nome, mas da base econômica, das
relações econômicas dos eleitores; e, assim que as funções cessarem de ser
políticas, primeiro, não existirão mais funções governamentais; segundo, a repar­
tição das funções gerais se tornará um caso de rotina que não confere qualquer
autoridade; terceiro o escrutínio não terá nada do caráter político que tem hoje.
BAKUNIN: A eleição pelo conjunto do povo...
MARX O conjunto do povo, como se entende hoje, é coisa puramente quimérica.

82
BAKUNIN: Representantes do povo e dirigentes do Estado —última palavra dos marxistas,
assim como da escola democrática - é uma mentira que esconde o despotismo da
minoria dirigente, mentira tanto mais perigosa, quando é apresentada como a
expressão da pretensa vontade do povo.
MARX: Uma vez estabelecida a propriedade coletiva, a intitulada vontade do povo
desaparece para dar lugar à vontade real da cooperativa.
BAKUNIN: Assim,... chega-se ao mesmo resultado...: uma minoria privilegiada assume a dire­
ção de imensa maioria da massa popular. Mas essa minoria, dizem os marxistas...
MARX: Onde?
BAKUNIN: ... será composta de trabalhadores. Sim, certamente, de antigos trabalhadores, mas
que, desde o momento em que se tomarem governantes ou representantes do
povo, deixarão de ser trabalhadores...
MARX: Não mais do que um industrial deixa hoje de ser capitalista pelo fato de se tornar
conselheiro municipal...
BAKUNIN: ...e passa a olhar o mundo proletário do alto, do Estado, não representando mais
o povo, mas eles mesmos e suas pretensões a governá-lo. Quem duvida disso não
conhece a natureza humana.
MARX: Por pouco que Bakunin pudesse estar familiarizado, não o estaria apenas com a
posição de um gerente de uma cooperativa de trabalhadores de produção, e suas
divagações sobre a autoridade iriam para o diabo. Dever-se-ia interrogar que
forma poderiam tomar as funções administrativas assentadas sobre a base desse
Estado operário, já que quer empregar esse termo?
BAKUNIN: Esses eleitos seriam, em compensação, socialistas convencidos. As palavras “so­
cialista sábio"...
MARX: ... nunca foram empregadas...
BAKUNIN: ... “socialista científico,”...
MARX: ...nunca foram empregadas, a não ser por oposição ao socialismo utópico que
queria fazer o povo engolir novas frivolidades em vez de restringir sua ciência à
compreensão do movimento social praticado pelo próprio povo; ver meu livro
contra Proudhon...
BAKUNIN: ... que reaparecem sem cessar nos escritos e discursos dos partidários de Lassalle
e dos marxistas, provam por si próprias que o intitulado Estado popular nada mais
seria do que a direção despótica exercida sobre as massas populares por uma nova
aristocracia, pouco numerosas de verdadeiros ou de pretensos sábios. O povo, não
sendo sábio, seria, portanto, inteiramente liberado das preocupações governamen­
tais e inteiramente integrado no rebanho dos governados. Bela libertação!
Os marxistas se dão conta dessa (!) contradição e, mesmo admitindo que a direção
governamental dos sábios...
MARX: Que fantasia!
BAKUNIN: ... por mais pesada, mais vexatória e mais desprezível que possa ser, será, apesar
de todas as formas democráticas, uma verdadeira ditadura, consolam-se com a
idéia de que essa ditadura será temporária e de curta duração.
MARX: Não, meu caro! (os marxistas se consolam, com a idéia) de que o domínio da
classe dos trabalhadores sobre as camadas sociais do velho mundo em luta com

83
eles só pode existir durante o tempo suficiente para que se possa destruir a base
econômica da existência das classes.
BAKUNIN: Pretendem que sua única preocupação e seu único objetivo será Instruir e educar
o povo...
MARX Político de cabaré!
BAKUNIN: ... tanto econômica quanto politicamente, em tal nível que todo governo não
tardará a se tom ar inútil; e o Estado, depois de haver perdido seu caráter político,
quer dizer, autoritário, se transformará em uma organização inteiramente livre dos
interesses econômicos e, também, dos comuns. Existe, aí, uma contradição fiar
grante. Se o Estado deles é efetivamente um Estado popular, por que o destruir,
e, se sua destruição é necessária para a emancipação real do povo, por que se
atrevem a chamá-lo popular?
MARX: Sem falar no fato de que Bakunin se aferra constantemente à idéia fixa de
Liebknecht, o Vollkstaat, que é uma inépcia, para virá-lo contra o Manifesto
Comunista, etc..., há apenas uma coisa a ser dita: considerando-se que, durante o
período da luta que visava à destruição da velha sociedade, o proletariado agia
ainda baseando-se nessa velha sociedade e ainda se move, por conseguinte, dentro
das formas políticas que lhe eram mais ou menos próprias, ainda não havia
alcançado sua constituição definitiva, durante esse período de luta, e empregava
meios para se libertar, que estarão caducos depois da libertação; Bakunin conclui,
portanto, que seria preferível o proletariado não fazer nada... e esperar o momento
da liquidação geral, isto é, do Juízo Final.
BAKUNIN: Graças à nossa polêmica...
MARX: ...que apareceu evidentemente antes de meu livro contra Proudhon e o Manifesto
Comunista, e mesmo antes de Saint-Simon...
BAKUNIN: ...contra eles...
MARX: ... bonita hysteron-proteron...*

BAKUNIN: ... nós os havíamos levado a reconhecer que a liberdade ou a anarquia...


MARX ...Bakunin apenas traduziu, em linguagem tártara confusa, a anarquia de Prou­
dhon e de Stiner...
BAKUNIN: ... quer dizer a organização livre das massas trabalhadoras de baixo para cima...
MARX Inépcia!...
BAKUNIN: ... é o último objetivo da evolução social e que todo Estado, sem excetuar o Estado
Popular, é um jugo, o que significa que, de um lado, engendra o despotismo e, de
outro, a escravidão (Marx, op. cit., p. 599-657; Bakunin, op. clt., p. 7-280 tradução
p. 203-347).

Depois de refutar as teses centrais de Estatismo e Anarquia, Marx se


limitou a retomar o exercício de compilação sobre a última parte do livro
inteiramente dirigido contra o "ditador alemão” e sua “escola”. Pode-se pensar
que o copista ensaiou uma espécie de prazer quando transcrevia as divagações
malévolas de seu... antigo discípulo, graças ao qual pôde completar com alguns
elementos novos sua teoria política, em vista do “Livro” sobre o Estado
previsto no Plano da “Economia” definitivamente, digamos mesmo: "dialetica-

84
mente" estabelecido nos Grundrisse (1857-1858) e na Crítica da Economia
Política, de 1859 (cf. Rubel, 1976, p. 369-401)20. E foi ainda graças a Estatismo
e Anarquia, cujo subtítulo não tinha apenas o objetivo de fixar a intenção do
autor anônimo, a saber: desacreditar o “Partido de Marx” aos olhos dos
revolucionários russos, que o adversário maltratado poderia, por um lado,
conservar suas diferenças com o “estatismo" de Lassalle da social-democracia
alemã e, por outro lado, revelar que o “Livro sobre o Estado” deveria ser uma
contribuição científica para a teoria da an-arquia21.

NOTAS

• 1. Mikhail Bakunin. Estatismo e Anarquia, 1872. Traduzido do russo, por Mareei Body.
Introdução e anotação de Arthur Lehning, Leiden, Holanda, E. J. Briii, 1967 (Paris, Editions
Champ Libre, 1976). Título original: Cossudarstvennost’ i Anarchija. Cast’1, (Izdanie Social-
’no-Revo!jucionnojPartii, I) (Zurique-Genebra), 1873, 308, 24 p. III dos Archives Bakounine
publicados pelo Instituto Internacional de História Social, Amsterdã, por Arthur Lehning (L LV
das Ouevres complètes de B., ed. Champ Libre). O voiume apareceu sem indicação do nome do
autor nem do local da edição.
2. Edição do texto integral: Archives Bakounine, 1 III, Holanda, E. J. Brill, 1982 (Paris, Ed.
Champ Libre, 1982). Textos formulados e anotados por Arthur Lehning
► 3. Michel Bakounine et VItalie, 1871-1872, segunda parte: La f eInternational en Italie et
le conílict avecMarx, Archives Bakounine, 1 1/2. Ver principalmente os textos págs. 105-225.
4. Palavra omissa na tradução de M. Body, cf. loc. cit., texto russo p.3.
5. A obsessão judiófoba de Bakunin é tanto mais enigmática nesse caso preciso que o autor da
Question julve (1844) viu-se sendo tratado ora de “anti-semita”, ora de “judeu da raça dos
profetas”, segundo a percepção da “judeidade” própria a cada um dos biógrafos de Marx. Cf. M.
Rubel. Notes sur la double face de 1’écrit da Marx, em Oeuvres, III, Philosophie, Paris, 1982,
págs. 1568-1580.
6. Bakounine, Rapports personnels avec Marx (dezembro de 1871), em Archives Bakounine,
1/2, 1963, págs. 121-130.
7. Bakunin a Marx, 22 de dezembro de 1868, in Neue Zeit, XIX I, 1900, págs. 4-8. Bakunin se
diz “mais do que nunca” amigo de Marx, tendo compreendido, enfim, o quanto ele tinha razão
“em seguir o grande caminho da revolução econômica” e em combater todos aqueles que se
extraviaram pelos caminhos nacionais ou puramente políticos. “Paço agora o que você começou
a fazer, há mais de vinte anos (...) Vê, portanto, caro amigo, que sou seu discípula - e que estou
orgulhoso por sê-lo.”
8. Ver Archives Bakounine, t IV - M. Bakounine et ses relations avec Sergej Necaev
(1870-1872), 1971.
9. Cf. Marx, La lutte de classes en France (1850), MEW, 7, p. 27.
10. A. Lehning Introduction d'Estatisme etAnarchie loc. cit., 1 111.
11. M. Rubel, La Charte de la Première International, in Marx critique du marxisme, Paris,
1974, p. 25-41: Margaret Manale, “Marxisme" et “morxiste": genèse d ’une ideologie thèse de
3* cycle, Paris, 1976. Vários capítulos dessa obra apareceram em Êtudes de marxologie, S 17
(1974), S 18 (1976) e S 19 e S 20 (1978).
12. F. Venturi, Les intellectuels, le peuple et la révolutlon, Hlstoire du populisme rússe au
X ld f siècle, tradução do italiano, Paris, 1972.
13. Bakunine, Confesslon (1851), trad. do russo. Paris, 1932, Re-edição com um prefácio de B.
Souvarine, Paris, 1974. (Súplica endereçada ao czar Nicolau I, seguida de uma carta ao czar
Alexandre II, datada de 14 de fevereiro de 1857. A primeira edição desse “documento
extraordinário, verdadeiramente único em seu gênero” (B. Souvarine), apareceu em Moscou em

85
1921. Bakunin passou seis anos em fortaleza e prisão, depois quatro anos na Sibéria, de onde
conseguiu fugir em 1861).
14. Narodnoe Delo, 15 de abril de 1870, Archives Bakounine, t II, p. XI.
15. Bakounine, Lettre aux intemationaux de la Romagne, 23-26 de janeiro de 1872, Archives
Bakounine, 1/2,1963, págs. 207-228.
16. M. Vuilleumier, Bakounine et le mouvement ouvrier de son temps in Bakounine, Combats
et Débats, Paris, 1979, págs. 117-132.
17. A. Lehning, Michel Bakounine et les historiens. Un aperçu historiographique in Combats
et Débats, loc. cit., p. 25.
18. K. Marx, Bakounine: GossudarstvennosVi Anarkhia. Trechos originais traduzidos para a
língua alemã, retirados do manuscrito. Marx/Engels, Werke, vol. 18, Berlim, 1962, p. 599-642.
Publicado em russo em Letopisimarksisma, II, Moscou, 1926, pref. de D. Riazanov.
19. Karl Marx, Manuskripte über die polnische Frage (1863-1864., herausgegeben und
eingeleitet von W. Conze und D. Hertz-Eichenrode, Haia, 1961.
20. M. Rubel, Plan etméthode de VEconomie, in Marx critique du marxisme, Paris, 1976, págs.
369-401.
21. Cf. L. Janovere M. Rubel, Matériaux pourun Lexique de Marx: I. État; II Anarchisme, Études
de marxologie, S 19-20,1978, págs. 7-161; M. Rubel, Marx théoricien de 1’arnarchisme, Paris,
Ed. Les Cahiers du Vent du Ch’min. O escrito que completa os comentários de Marx data de
1875: Critique du Programe du Parti ouvrier allemand, in Marx, Oeuvres, L I, (Pléiade), págs.
1411-1434).

Maximilien RUBEL

BALLANCHE, Pierre-Simon -1776-1847


Ensaio sobre as Instituições Sociais em sua relação com as novas
idéias, 1818

Em 1818, quando apareceu, o Essai sur les Institutions sociales dans


leur rapport avec les idées nouvelles (Ensaio sobre as instituições sociais em
sua relação com as novas idéias, de um certo Ballanche, deu-nos a impressão
de ser uma obra duplamente enigmática, devido à sua forma e à situação de
seu autor. Por sua forma porque os capítulos que se sucedem abordam sem
ordem aparente uma infinidade de problemas da época: análise da Carta
Magna, reflexão de história comparada sobre a Constituição Francesa e a
Inglesa, meditação sobre a legitimidade real, exposições sumárias sobre as
relações entre a palavra e a escrita, o político e o religioso, o gênio romântico
e o gênio pitoresco. O que unifica mais visivelmente esses temas, misturados
e remisturados ao longo do livro, é a reflexão sobre o futuro da França na
Europa após o imenso abalo da Revolução, da qual trata ao mesmo tempo de
inventariar as seqüelas e de tentar uma terapia. A situação do autor acrescenta
ainda mais perplexidade para os leitores: o homem que se entrega a essa
reflexão embaralhada, repetitiva, atravessada de fulgurâncias, é ele mesmo um

86
personagem dificilmente classificável. Lemontey observa que a obra foi com­
posta dentro do campo inimigo das idéias liberais e, para esta sociedade de
Lyon, que o esmagamento de sua cidade pela Convenção havia dolorosamente
afetado. Porém Joseph de Maistre censura amigavelmente Ballanche por ter, a
despeito “de um espírito muito bem formado e de um coração excelente”, se
deixado penetrar sem saber pela idéia revolucionária. A hesitação sobre a
classificação política de Ballanche custará a morrer. Pierre Leroux o es­
tigmatizará como “retrógado”. Em 1814, ainda, ele será classificado entre os
ultra, se levarmos em conta a emoção provocada nas fileiras liberais e
republicanas por um artigo simpático que Sainte-Beuve lhe consagra.
Em 1818, Ballanche, que nasceu em 1776, em Lyon, em uma família de
impressores, só era cctihecido por meio de uma obra confessional, Du senti-
ment (Do sentimento), escrita em 1801 para o pequeno ambiente lionês que
se reunia no salão de seu pai. O livro, que havia sabido captar a chegada
romântica do sentimento e anunciar o retorno do religioso, teve o azar de
aparecer pouco antes do Cénie du Christianisme, que o eclipsou completa­
mente. Assim como Chateaubriand e até mesmo antes dele, Ballanche progra­
mava uma exploração do transcendentalismo cristão e inventava até mesmo a
própria expressão Gênio do Cristianismo. Apesar de ter menos charme do que
Chateaubriand ele fazia escutar "a voz dolente das lamentações do passado,
que soa como o toque de recolher”. Enfim, também como Chateaubriand, ele
fazia da infelicidade o elemento necessário ao homem. Entre 1801 e 1818, data
da publicação do Essai, Ballanche absorveu-se, com efeito, dentro da dupla
meditação de suas infelicidades privadas e da infelicidade pública, dentro das
leituras fluviais, notadamente de literatura e de filosofia alemãs, mas nada
publicou. Será preciso a Restauração, à qual ele liga um sentido mais metafí­
sico ainda do que político, para arrancá-lo de sua ruminação silenciosa e fazê-lo
escrever, após a epopéia em prosa de Antigone, uma obra política, o Essai. O
livro será seguido de outras obras no mesmo tom e com a mesma finalidade,
como Le Vieillard etleJeune Homme (O Velhote e o Jovem) (1819). UHomme
sans nom (O homem sem nome) (1820), antes que o assassinato do Duque de
Berry, que assina a derrota das esperanças transacionais colocadas no regime
e o devolve à sua inclinação reacionária, venha finalizar esse seu primeiro
período de produção: pois a obra de Ballanche casa-se estreitamente com os
fluxos e os refluxos da vida política.
Desconcertante, o Essai o é pelo contraste entre as referências que ele
veicula e o prognóstico que arrisca sobre o futuro da França. Ballanche
realmente usa o mesmo repertório de exeçnplos (emprestado ora à história
judia, ora às repúblicas antigas) que Bonald e Joseph de Maistre e admite
explicitamente partilhar suas idéias-mestras. Como eles, acredita em uma
sociedade transcendental aos indivíduos e que os ultrapassa por sua densidade,
riqueza, coações, se bem que, a despeito do desprezo pela sociedade que em
certas épocas e em certas circunstâncias “se apodera dos espíritos inquietos e
melancólicos”, não há nada para se tirar da queixa anti-social, nunca irrisória
ou vã. Como eles, distingue dentro do curso do tempo momentos fortes,

87
capazes de sacudir do começo ao fim a existência dos homens: criação, queda,
redenção, ressureição ritmam uma história que é mais bem compreendida
dentro do iluminação da Revelação e da fé cristã do que dentro daquela da
razão humana. Essas duas idéias motoras, tanto a de uma história governada
pela Providência como a de uma natureza humana totalmente imersa no social,
conduzem necessariamente à condenação da filosofia das Luzes (Iluminismo):
nada de contrato, evidentemente, já que é “contrário à natureza e à existência
do homem imaginar um estado anterior à sociedade”; nada de soberania do
povo, doutrina leiga excluída pela interpretação providencial dos acontecimen­
tos históricos; rejeição de todo individualismo, intelectual ou moral. Moral
porque, se separar, contraria o plano de Deus. Intelectual porque é absurdo
acreditar que um homem pode contar com suas próprias forças para se
emancipar. O símbolo e a ilustração desse individualismo orgulhoso e absurdo
é Bonaparte, gênio egoísta totalmente ocupado em erguer para si mesmo sua
própria estátua.
Isso basta para demonstrar que as referências conceituais em Ballanche
são as mesmas dos teocratas. Para ele, assim como para os teocratas, uma
instituição durável é aquela que, "filha do tempo”, não é nem calculada a
priori, nem decretada nem escrita. Ballanche subscrevia completamente a
definição que Maistre dava do século XVIII, um “século inspirado pela escritura
e confundido com a palavra”: ele toma a palavra escrita, diferentemente da
palavra viva falada, por uma palavra morta. Nele, como nos teocratas, o
ultramontanismo faz parte do equipamento intelectual; é preciso, aconselha o
Essai, cessar de reverenciar as liberdades gálicas, mesmo quando elas puderem
servir para proteger a França das heresias: pois na época em que os príncipes
da terra tinham sobre os povos direitos ilimitados, “não era uma grande
infelicidade o fato de que os reis tivessem acima deles um poder misterioso
que viesse a amedrontá-los”. Enfim, o problema central, nesse autor, assim
como sempre em Maistre e em Bonald, é o de saber se uma geração depende
das gerações que a precederam ou se ela pode sair da classe com seus próprios
valores. Reconhece-se aí a interrogação de Burke e a raiz de seu julgamento
negativo sobre uma Revolução que tolamente desprestigiou todos os antece­
dentes históricos e acreditou que se poderia livrar da história a fim de zarpar
para uma terra nova.
É por esse problema, porém, que se pode medir melhor a guinada de
Ballanche com relação a todos os materiais que ele utiliza e reorganiza. Pois
em vez de trazer a resposta unívoca dos teocratas - que consiste em celebrar
a força de perpetuidade de uma raça e em honrar os ancestrais - Ballanche
parece manter aberta a possibilidade de duas respostas contrastantes: a dos
“arqueófilos”, para que nenhuma geração possa sair dela mesma por suas
próprias forças, e a dos “neófilos", para que cada uma possa nutrir a ambição
de avançar sob sua própria bandeira. Quem tem razão? O Essai não o diz
nunca, ele multiplica as homenagens às tradições e os elogios à fidelidade, mas
ele toma, no entanto, o partido dos neófilos como sendo o do "vencedor”.
Como compreender esse afastamento - que Joseph de Maistre percebeu muito

88
bem - com relação ao terreno original das influências? Sem querer a todo
custo impor a coerência a um pensamento que não a pretende (Ballanche é um
autor que pratica o arrependimento em literatura, habituado aos prefácios
justificativos, aos acréscimos e às supressões), é preciso entretanto procurar a
explicação para esse afastamento. E, como ele reconheceu sua dívida com
relação à Restauração, da qual ele diz ter compreendido tudo, ele próprio
indica de que lado procurá-la: dentro de seu pensamento enquanto inter­
pretação da Revolução, meditação sobre a Restauração e, mais genericamente
enfim, reflexão sobre o tempo da história. Ele é, como o diz de Nodier, “a
criança de nossas preocupações”.
Ninguém melhor do que Ballanche mostra o colorido fúnebre da Revolu­
ção Francesa. Ninguém chorou melhor a sorte do rei (a ponto de consagrar
mais tarde à cena do regicídio, tão estranha e tão constantemente negligencia­
da pelo pensamento contra-revolucionário, um romance inteiro, UHomme
sans nom). Sua originalidade foi a de não tirar, no entanto, dessa deploração
nenhuma conclusão catastrófica e de acreditar estar a Revolução terminada.
Para medir melhor a singularidade dessa voz, imaginemos apenas esta reflexão
de Montlosier sobre a Monarquia Francesa: “Tempo feliz aquele de 1789!
Havia apenas uma única revolução. Hoje percebo duas: uma velha que fez a
sua parte e que, se não for contrariada demais, gostaria bastante de repousar,
uma outra, de pouca idade, crescendo a cada dia, se fortalecendo por meio das
boas doutrinas da época, o espírito de independência, o espírito individual, o
ódio do passado, a soberania do povo e a maioria numérica." Com relação a
essas inquietações, a tranqüilidade com a qual Ballanche nega poder existir
uma germinação indefinida da Revolução toma todo seu sentido. Ele não
desistirá dessa idéia, mesmo diante dos acontecimentos que pareciam inflingir-
lhe um desmentido. Quando o assassinato do Duque de Berry reanimou na
Europa o pânico das insurreições, ele permaneceu firmemente ligado à idéia
de que a Revolução não era mais para nós do que “história antiga”.
O Essai sur les institutions sociales torna mais clara essa afirmação
enigmática. Pois Ballanche, como Constant e os liberais, se bem que de
maneiras diferentes, distingue duas revoluções. Constant havia oposto às
revoluções legítimas, que sancionam a marcha necessária do espírito humano
e não engendram reações, revoluções tornadas loucas que ultrapassavam seu
ponto de chegada: más revoluções, intermináveis por conduzirem a reações
por sua vez prenhes de novas revoluções. A essa interpretação liberal Bal­
lanche fornece uma vestimenta metafísica: há Revoluções que são obra dos
homens, há Revoluções que são obra do tempo. E a Revolução Francesa é
inseparávelmente as duas coisas.
Dentro daquilo em que ela pertence aos homens, a Revolução Francesa
é uma lástima, uma “tempestade que poderia ter perdido os franceses para
sempre”. Pois o que é feito pelos homens pode ser desfeito por eles e traz
sempre uma característica de arbitrariedade e de precariedade. Invoquemos o
testemunho de Bonaparte, sempre mais facilmente utilizado por Ballanche
comÓ exemplo negativo do que Robespierre ou Saint-Jusfc seu pecado foi o de

89
ter revirado todas as tradições (a ponto de ter querido fazer surgir uma
nobreza sobre o terreno novo da igualdade), de ter ignorado a natureza e a
sanção da época. O frenesi que mostrou para acumular os acontecimentos,
patético em certo sentido (“ele acreditava envelhecer os acontecimentos
acelerando as datas”), encontrou logo sua sanção. Recusar a Revolução feita
pelos homens e recusar o orgulho humano é portanto a mesma coisa.
Dentro daquilo em que ela pertence ao tempo, em compensação, a
Revolução Francesa é irreversível. Ballanche, que acredita no homem imortal,
toma as sociedades como mortais (os homens, escapando da estreita prisão
temporal pela capacidade de ganhar a eternidade, escapam à caduquice do
social): a Revolução Francesa ilustra essa lei da mudança da história humana,
parindo uma sociedade nova, mais próxima do que a antiga do sistema de
igualdade. No entanto, será ela realmente nova? Evidentemente que não: ela
foi precedida da revolução cristã que, antes dela, prometeu a igualdade
religiosa, feriu mortalmente a idéia de exclusão, tornou conhecida a propensão,
tal como ela é, para considerar certos grupos de homens “como moldados por
uma outra argila, como animados por um outro sopro de vida, como estranhos
a nossas afeições”. O imenso mérito do cristianismo foi o de não se ter utilizado
de dupla linguagem, uma para o povo e outra para os sábios. O que ele trouxe
foi, portanto, a promessa do desaparecimento progressivo das sociedades
restritas, dos grupos banidos ou mantidos afastados, das seitas. E foi essa
promessa que a Revolução manteve (mediante duras provas, sangue e lágri­
mas), chamando mais homens para a comunhão humana. Portadora, portanto,
do novo, mas ao contrário do que acreditaram seus atores, não do radicalmente
novo, a crise revolucionária ilustra a marcha irresistível das sociedades huma­
nas para a igualdade. Aceitar a Revolução Francesa nesse sentido nada mais é
do que aceitar a lei do tempo. E os homens não "fazem” nunca a Revolução,
termo presunçoso, eles se limitam a constatá-la.
Dessa humildade com relação ao tempo, que Ballanche toma emprestado
dos teocratas, ele tira, portanto, conclusões bem diferentes, esforçando-se para
manter a balança igual entre duas impossibilidades simétricas. Fundar de
novo, de um lado, é impossível: se se tomar a Revolução Francesa como
irreversível, será sob a condição de não partilhar, sobre ela, da ilusão dos
revolucionários, absurdamente convencidos de que se pode criar instituições
a priori: essa é a primeira lição do Essai. Mas, de outro lado - e isso forma a
base do acordo de Ballanche com Constant e de seu desacordo com Maistre -
não se pode ressuscitar o tempo abolido, segunda lição do Essai: “O homem
não retrocede sob nenhuma relação.” Eis porque a obra, coisa notável dentro
de um texto da Restauração, mostra tão pouca complacência com a religião da
antiqualha, com o perfume de cavalaria e o gosto trovador: “Estas negras
torres coroadas com ameias devem cair. Esses longos claustros silenciosos
devem ser transformados em prisões ou em oficinas para as manufaturas.
Nossos castelos representavam os tempos da cavalaria e do feudalismo, é
preciso que eles desapareçam.” Quando em 1833 apareceram suas Oeuvres
Complètes (Obras Completas), com um prefácio recentemente escrito para o

90
Essai, apesar de a Revolução de Julho mudar uma outra vez o dado político
francês e parecer privilegiar uma única das lições do livro, Ballanche não deixa
de continuar a dar razão ao duplo ensinamento emitido em 1818: “Eu tive o
cuidado de justificar a antiga ordem das coisas: não seria preciso para isso
querer ressuscitá-la; esse desejo impotente só produziu demasiadas inquie­
tações.” A prova disso é que essa vontade retrógrada, em que Ballanche lê a
vertigem amarga do passado, terminou por produzir (segundo a lei de Cons-
tant aqui reinterpretada) “a revolução que acabou de se operar”.
Das duas certezas do Essai, sobre o tempo, uma está mais próxima de
Burke e a outra, bem mais distante dele. O credo de Burke de que não se pode
fundar nada sobre a ruptura é não somente retomado, mas também ampliado
por Ballanche, que desenvolve a demonstração da existência, para a França,
de uma constituição não-escrita. Mas Ballanche acredita mais do que Burke
nas conseqüências a que leva uma religião da duração: pois se o fluxo da
duração é bom (o que Burke afirma sem conseguir explicar como esse fluxo
pacificador pode encerrar a possibilidade da ruptura revolucionária), então é
lógico concluir-se que o homem não mais poderia retroceder. Essa é a
convicção de Ballanche, para quem o amor por aquilo que dura funda ao
mesmo tempo as duas certezas. São elas que o levam a considerar que a
Revolução Francesa, mesmo em suas cenas mais atrozes, não constitui uma
ruptura absoluta. São elas ainda que fazem compreender que ela é, precisa­
mente por essa razão, sem retorno.
Ora, existe, para felicidade do autor de 1818, um regime que se pretende
manter ao mesmo tempo sobre os dois axiomas ballanchianos e fornecer a
aplicação concreta deles. De onde a Restauração tirou seu miraculoso equilí­
brio? Da Carta Magna, da teoria da realeza, do compromisso que ela passa
entre os costumes e as opiniões. A carta, primeiro. Ela é um símbolo de aliança,
uma obra delicada, renda de compromissos e de piedade. Mística de um lado,
pois por seu intermédio se percebe o testamento de Luís XVI. E realista de
outro, pois ela é um processo verbal da situação criada pela Revolução. Ela
endereça, portanto, uma dupla mensagem à nova geração, que Ballanche julga
mais retrógrada do que as precedentes, na medida mesma em que a Igreja
empreendeu vigorosamente sua reconquista. Ela tranqüiliza essa juventude
sem nuances, prometendo-lhe não sacrificar as tradições; mas ela a adverte
também de que esta irá encontrar na sociedade real convicções bem diferentes
daquelas para as quais seus educadores a prepararam. Ela fixa as aquisições
sobre as quais não se poderá mais voltar atrás: duas Câmaras; mas ela mostra
também o que resta do passado: um rei hereditário e a confirmação do direito
de uma dinastia para reinar sobre a França. Em seu entusiasmo por esse
texto-Jano*, bifronte, Ballanche chega mesmo a justificar sua “outorga” pelo
monarca, que tanta revulsão causou aos liberais. Por que Luís XVIII deveria
“conceder” uma patente, ao invés de ser forçado a recebê-la? Por que ele
deveria fazer remontar a data de seu reinado à morte da “criança dolorosa”

.lano —Deus romano representado com duas faces opostas. (N. da tradutora)

91
que deveria ser rei? Era a única maneira de salvar “o principio eterno das
sociedades humanas”. E este não é outro, à igual distância da ruptura e da
imobilidade, senão o pensamento da transição.
Longe, portanto, de ser o homem do passado, Luís XVIII é para
Ballanche o homem genial que compreende a necessidade de recosturar a
história francesa. Isso, recusando a Revolução feita pelos homens, mas
aceitando o corte revolucionário e a usurpação imperial. Essa apresentação
lisonjeira de Luís XVIII como intérprete judicioso da marcha das idéias é sem
dúvida um voto piedoso, mas combina com a representação que Ballanche
faz para si da realeza. Pois ele não cessa de retrabalhar os fundamentos
clássicos da legitimidade real —os mesmos de Maistre e de Bonald —para
submetê-los a condições que os alteram profundamente. Direito divino,
concordo. Hereditariedade, também concordo, pois Ballanche acredita que
uma dinastia depende profundamente do "terreno social”. Esses princípios
só valem, entretanto, se o rei hereditário possuir, em acréscimo, uma
misteriosa faculdade: a de conquistar o consentimento coletivo do povo. Esse
conhecimento é muito diferente do maistriano, que é uma obediência
fascinada. Ele é ativo, voluntário. Sobretudo ele só é dado a um rei que,
dentro da tradição feneloniana, for ao mesmo tempo um legislador (papel
totalmente supérfluo para Bonald, segundo o qual um rei não preenche
nunca mais do que uma função de registro) e um intérprete da consciência
pública. Notemos no entanto - toca-se aqui no cerne da originalidade
ballanchiana —, que essa consciência pública não dita ao rei seus veredictos
(recair-se-ia no caso da figuração bonaldiana), pois ele os deve preceder,
decifrar, antecipar a consciência pública de amanhã. Um rei-profeta é o único
cuja legitimidade está assegurada. Se a função profética abandona o rei -
como Ballanche está às vezes prestes a pensar que aconteceu a Luís XVI,
inicialmente profeta, nos primeiros anos de seu reinado, depois um pouco
abandonado por seu gênio - então pode-se não somente compreender a
condenação do rei à morte, mas também senti-la como a chegada de uma
nova legitimidade. É o que enfatiza o prefácio acrescentado ao Essai em
1833: Carlos X, após ter deixado o ministério de 8 de agosto de 1829 (trata-se
do ministério Polignac) “apagar dentro do poder toda luz, toda inteligência,
toda simpatia e, ousaria dizer, toda liberdade”, não poderia nunca mais
pretender o papel de rei-profeta. E isto é suficiente para justificar a Revolu­
ção de Julho.
Mas em 1818, a jovem Restauração parecia ainda capaz de renovar os
tempos. E não somente o tempo de inverno e o de amanhã, mas, mais difícil
ainda, aquele que, no interior do presente, flui em duas ondas diferentes: a
onda tranqüila dos costumes e a onda apressada das opiniões. Os exemplos
desse ritmo coxo são fornecidos em profusão pelo Essai. A liberdade de
imprensa, que vai ser o debate central do regime, está “dentro das necessidades
atuais da sociedade” e vai ser imperiosamente reclamada pela opinião, porém
ela fere os costumes, especialmente os femininos, pois as mulheres são as
guardiães dos costumes. As opiniões em matéria de religião inclinam-se ao

92
protestantismo, mas os costumes, ligados aos sinais sensíveis, permaneceram
católicos. O divórcio, que já está nas opiniões, é ainda rejeitado pelos costumes.
O duelo está nos costumes e começa a cair na esfera da opinião.
“Ainda”, “já”, “começa", um vocabulário que mostra a dedo a dificuldade
maior de Bailanche: esse equilíbrio que ele crê tão essencial para a obra da
Restauração pode realmente ser mantido? É claro que não. Se é verdade que
o motor da história é a imensa aspiração à igualdade civil depois que o
cristianismo estabeleceu a igualdade religiosa, essa aspiração à novidade deve
forçosamente triunfar. Mesmo se se tomar muito cuidado em não brutalizar os
costumes, a opinião acabará por ter razão. Basta que os fatos amadureçam para
serem consagrados e tornarem-se uma norma. O que arranca no entanto
Bailanche à brutalidade desse historicismo é que a história não constitui
sozinha um tribunal, porém se submete à lei de Deus: essa é a instância
transcendente -que julga a positividade. Resta dizer que os leitores de Bal-
lanche deviam reter de seu livro que entre as duas ondas temporais, a da
opinião, que vai muito depressa, é a vencedora final. A inovação é a lei conjunta
de Deus e da história: o que lhe assegura a última palavra, mesmo que os
espíritos religiosos e os políticos prudentes tenham de tomar o cuidado de
abrandar índoles da tradição.
Mede-se, então, em quê Bailanche, ao mesmo tempo, se opõe ao pensa­
mento contra-revolucionário e o revela, e porque ele mereceu ser designado
“conservador progressista” (Paul Bénichou). Em primeiro lugar, não somente
o tempo que passa é, para ele assim como para Burke, rico de lições pacientes,
mas também ele está prenhe da resposta às questões conscientes que o homem
coloca: a Revolução Francesa é uma dessas respostas, portadora de um sentido
universal por ser uma nova etapa atravessada dentro da dinâmica da igualdade.
Isso é evidentemente inaceitável, ao mesmo tempo, para Burke, Bonald e
Maistre: seja por causa da singularidade opaca da Revolução (para Burke), seja
por causa da impossibilidade dos homens de saírem do círculo fixo que lhes
foi destinado (para Maistre) ou seja ainda (para Bonald) porque a intrans­
ponível revolução da linguagem está por trás deles e não diante. Para os três,
ao contrário do que pensa Bailanche, a história da Revolução obscurece e não
desvenda nada.
Segunda oposição, corolário da precedente: a verdadeira dimensão sagrada
do tempo é o futuro, o que nenhum tradicionalista teria tido a idéia de sustentar.
Esse futuro necessariamente triunfante, marca dos pensamentos historicistas,
deixa sem dúvida magra margem de liberdade para os homens. Bailanche,
entretanto, fê-la caber dentro de sua capacidade para esposar a inclinação para
a mudança, para acelerá-la, para ajudar forças da inteligência antecipadora. Para
os tradicionalistas, os homens, sempre, só têm acesso às idéias que eles já têm.
Para Bailanche, se é verdade que eles não receberam o poder de criar, pelo menos
eles têm “a alta faculdade de ler no fundo das coisas”.
Essa presciência conduz por sua vez a uma terceira oposição: o tempo
presente para Bailanche é o núcleo enigmático em que o futuro, ao mesmo
tempo, se liga com o passado e se desliga dele: ele chama a profecia, o dom do

93
vidente. É aí que nós reencontramos a Revolução, enigma que requer também
seu Édipo, cena dupla que pede a visão dupla. Pois se a Revolução dos homens
realmente rasgou o tecido da história francesa, não foi toda a Revolução.
Aquela que foi feita pelo tempo, longe de produzir a ruptura, ao contrário
exprimiu a irresistível marcha das idéias do século. Ninguém, a não ser
Ballanche, está inclinado a subscrever esta afirmação que os tradicionalistas
inventaram e que promete um belo futuro: que a Revolução é um bloco.

• Do próprio Ballanche, para compreender o Essai sur les instltutions sociales, Paris, Didot,
1818, poder-se-ão consultar as obras que o seguem imediatamente e estão em consonância com
ele, Le Vietllardet leJeune Homme (op. cit.) e L ’H omme sans nom, seguido de a Elégie, Paris,
Didot, 1820.

► A atenção foi atraída sobre Ballanche pelos livros de Paul Bénichou: Le Sacre de Vécrivain,
Paris, Corti, 1973, e sobretudo Le Temps des prophètes, Paris, Gallimard, 1977. Pode-se
consultar também a excelente edição de Le Vieillard et le Jeune Homme, apresentada por
Arlette Michel, Paris, Garnier, 1981. Ver ainda La Ville des Explations, Presses Universitaires
de Lyon, 1981, e o Dossier de la Ville des Explations, Ed. du CNRS, Lyon, 1981.

Mona o z o u f .

BARRES, Maurice, 1862-1923


Les Déracinés, 1897 (Os desarraigados)

Primeiro volume, publicado em 1897, de um ciclo romanesco, Le Roman


de Venergie national, foi seguido de dois outros, L ’A ppel au soldat e Leurs
Figures. Les Déracinés não se apresenta, de nenhuma maneira, como obra de
doutrina política. Escrevendo a história de sete jovens que vieram de Lorena
para Paris, no começo dos anos 1880, à procura de grandes destinos, são as
incertezas das primeiras partidas, os acasos, as felicidades e os sofrimentos das
primeiras caminhadas que Maurice Barrès quer evocar primeiro. São também
o boulangisme do caso do Panamá, as “discórdias”, os “tumultos” e as
“paixões” de quinze anos da vida francesa que ele pretende reviver. Porém, a
obra ultrapassa o desígnio romanesco. Toda uma visão da história nacional
reflete-se e revela-se nela. Um conjunto coerente de princípios acha-se definido
aí, um sistema de valores nela se vê consagrado, valores esses relativos à ordem
e à transformação social, ao indivíduo, seu lugar e seu papel na comunidade
onde nasceu. Publicados em 1902, os dois volumes das Scènes etdoctrines du

94
nationalisme, coletânea de artigos e discursos, acabaram dando a seu autor
um novo lugar na história das idéias políticas.
Tal como se exprimiu no começo do século XX, o nacionalismo de Maurice
Barres consagra de fato a conclusão de uma evolução pessoal muito complexa.
No princípio um jovem esteta, janota e anarquizante, que prega o “culto do eu”,
isto é, a exaltação e o exame de sua única sensibilidade, com a atenção
exclusivamente voltada para o desenvolvimento único da consciência individual.
Depois vêm o brusco empenho na aventura boulangista e a agitação política
apreciada por um amador da ação, ávido desses movimentos violentos de emoção
"onde o ódio vem como um impulso substituir o amor”. Virá, alguns anos mais
tarde, o combate antidreyfúsiano, onde, em um clima de guerra civil, tenderão a
exasperar-se todos os furores sustentados desde o fracasso do boulangisme.
antiparlamentarismo, anti-semitismo, exaltação do Exército e espera ansiosa do
"salvador”. Enfim, como a crise dreyfúsiana não tinha sido ainda resolvida e
como não era uma questão de renegar qualquer uma de suas amizades e de suas
fidelidades, esse foi, para Barres, o momento de um distanciamento deliberado
com respeito a um comprometimento partidário do qual parece saber medir, de
maneira bastante clara, os limites, com respeito também a um meio que “à força
de odiar o parlamentarismo tende a parecer-se com ele.” Foi então que, dentro
do quadro de uma reflexão geral, mais alta e mais desinteressada, foram
encontrados, reunidos em tomo do tema “erradicação” de “a terra dos mortos”,
os princípios essenciais do “nacionalismo” de Barrès.
Barres tinha vencido o boulangisme e tinha apresentado-o - como uma
revolta contra a ordem política e moral existente - contra “um mundo incolor”,
contra uma sociedade da qual ele condenava o aviltamento. Essa foi a época em
que ele sonhava com um "socialismo nacional”, com a fusão dos temas do
anti parlamentarismo e do anticapitalismo, com a aliança dos últimos tradicio­
nalistas com os sobreviventes da Comuna; no jornal La Cocarde, de circulação
efêmera, que ele fundou em 1894, homens de velha fidelidade monarquista se
reencontraram com socialistas seguidores de Proudhon e antigos anarquistas,
como Pelloutier, Clovis Hughes ou Séverine. Mas, cada vez mais sensível a certas
influências intelectuais, como a de Taine, e também a de certos franceses
representantes do darwinismo social e das doutrinas do determinismo fisiológico
(tal como o curioso Jules Soury), tendeu a reconstruir o patriotismo sentimental,
cujo fervor era até então nutrido em função de um certo número de conceitos
que realçam, ao mesmo tempo, o racionalismo científico e uma certa moral social.
Interrogando-se sobre a natureza do nacionalismo, Barrès o definiu essencial­
mente como “a aceitação de um determinismo”. Ele nada mais é do que o
reconhecimento do peso decisivo do passado sobre o presente, a submissão à lei
sagrada das filiações da obediência às grandes vozes da "terra dos mortos”. Mas,
por isso mesmo, constitui para cada um a faculdade de atingir o mais profundo
e o melhor de si mesmo, um elemento de enriquecimento espiritual, “um tratado
proposto às vidas dos indivíduos com a poesia”, um “poderoso meio de auxiliar
o desenvolvimento da alma”. O desenvolvimento do indivíduo se encontra unido,
com efeito, à manutenção da “substância nacional” na qual ele se insere e que

95
lhe assegura as condições de seu desenvolvimento. “Não somos uma raça, afirma
Maurice Barres, mas uma nação; ela continua a se desenvolver e, sob pena de
nos diminuirmos, de nos aniquilarmos, nós, indivíduos que ela embute, devemos
protegê-la...” “Aquele que se deixa penetrar dessas certezas, escreve ele ainda,
abandona a pretensão de pensar melhor, de se sentir melhor, de querer melhor
do que seus pais e mães e se diz: ‘Eu sou eles mesmos.’ E, dessa consciência, que
conseqüências redundarão. Que aceitação! É tudo uma vertigem em que o
indivíduo se precipita para se reencontrar dentro da família, da raça e da nação.”
Aprendido em seu conjunto, além de em suas mutações e da diversidade
de suas etapas cronológicas, o nacionalismo de Barrès aparece assim sob uma
dupla visão. Uma visão contestatória, por um lado, plebéia e socializante. É o
culto da juventude, da energia e da aventura, o repúdio das normas da vida e
da sociedade burguesa, o romantismo da ação, no limite do abandono às forças
obscuras do ser. E na recusa e no desafio que ele tende a se definir, “o orgulho
de ser uma exceção em um "país habitado por funcionários que sonham em
fazer carreira, por simples cidadãos que sonham com banhos de mar, com
bacharelado para os filhos e dote para as filhas”... Uma visão conservadora, por
outro lado: trata-se de se apoiar, para assegurar a sobrevivência de uma
comunidade nacional ameaçada de aniquilamento, sobre todas as forças da
ordem e da hierarquia social, o Exército, a Igreja, as instituições tradicionais,
“uma educação nacional, uma religião aceita, sem as quais haveria a decadên­
cia do Espírito.” Ao mesmo tempo força de recusa e fator de conservação
social, o nacionalismo de Barrès não é, aliás, o único, entre todos aqueles que,
na França e na Europa, reclamam a mesma designação e a mesma temática, a
apresentar semelhantes e tão temíveis ambigüidades.
No plano doutrinário, o nacionalismo de Maurice Barrès não permanece,
no fundo, muito diferente do de Charles Maurras, seu filho caçula de apenas seis
anos. Sem dúvida todos dois podem ser interpretados como dependentes de uma
mesma reflexão em torno da noção de Decadência. Trazer para uma pátria
definida como agonizante, minada pela desagregação interna e impotente para
suportar o confronto dos perigos exteriores, os meios de sua sobrevivência e de
sua salvação, essa é exatamente a finalidade comum dos dois comprometimentos.
Mas, essencialmente apavorado pelas imagens do declínio, Barrès só concede um
lugar muito secundário aos debates e aos problemas de ordem institucional.
Afetivamente ligado à herança da Revolução que ele aceita como inseparável do
destino nacional, de “A França em carne e osso”, não sonha de maneira nenhuma
em questionar a forma republicana de governo. (A referência a Gambetta é
constante sob sua pena.) Um tradicionalismo coerente, consciente de seus
princípios e de seus valores, deve, pensa ele por outra razão, levar em conta todos
os conhecimentos adquiridos no passado, não amputar nada da realidade social
aperfeiçoada pela história, submeter-se à lei da continuidade, aceitar em outros
termos “as coisas no estado em que se encontram”. “Não remonto a um século
a história da França, escreve Barrès, mas também não posso desconhecer seus
períodos mais recentes. Dispuseram nossos concidadãos de tal maneira que eles
reservam para o princípio republicano essas potências de sentimento que outras

96
nações concedem ao princípio de hereditariedade, sem as quais um governo não
pode subsistir".
Reconhecendo sem equívoco - e em nome mesmo da noção de consolida­
ção histórica - o princípio da legitimidade republicana, o nacionalismo de
Maurice Barres, tal como ele se definiu nos dias seguintes à crise dreyfusiana,
visa, primeiro, a uma ação de ordem educativa e moral. Trata-se, prioritariamente,
para ele, de “restaurar as forças da França”, isto é, de restituir a uma coletividade
francesa “dissociada e descerebrada” um impulso, uma “energia” e “uma vontade
de viver” nacional. “Com uma cátedra de ensino e um cemitério, afirma ele,
tem-se o essencial para uma pátria.” O que parecia a seus olhos a tarefa imediata,
essencial, era fazer reviver nas consciências os valores supremos de solidariedade
ao longo das idades, de continuidade e de fidelidade. Grande desígnio ao qual
corresponde a publicação, nos anos que precederam à primeira guerra mundial,
dos dois volumes do ciclo dos Bastions de l'Est: Au Service de 1'Allemagne
(1905), Colette Baudoche (1909). A história de Ehrmann, o alsaciano que, mesmo
depois de ser obrigado a vestir o uniforme alemão, conserva intacta sua fidelidade
à França, e a de Colette Baudoche, a moça de Metz que se recusa a casar com
um jovem alemão, têm para Barrès mais do que uma significação didática.
Fazendo-se o cronista da resistência francesa na época da invasão do germanismo
nas províncias anexadas da Alsácia e da Lorena, reúne, sem dúvida, na história
moral da França deste último século, uma corrente muito mais profunda, da qual
seu nacionalismo doutrinário apenas derivou. Aquele dos fundadores da Terceira
República, dos primeiros manuais do ensino público e também Péguy, outro
contemporâneo seu. Além dos diversos “tumultos” e das “paixões” sucessivas da
agitação política, além igualmente das ousadias - e das incertezas —de certas
formulações doutrinárias, esses são os mesmos temas essenciais que se acabaram
reencontrando: a lembrança da derrota de 1870, as províncias perdidas, a
referência à história e à fé em um ensino “regenerador”, e a vontade de
reconstruir uma "consciência nacional”.

* In Oeuvres complètes, Paris, Plon, 1932; Les Déracinés (1897); Appel au Soldat (1900),
Leurs Figures (1902); Scènes et doctrines du nationalisme (1902). Les Bastions de l’Est: Au
Service de 1’A llemagne (1905), Les Bastions de l’Est: Colette Baudoche (1909). Ver também
Mes Cahiers, Paris, Plon, 1929-1938, 1949-1957.

► Sobre o nacionalismo de Maurice Barrès: Ernst Curtius, Maurice Barrès und die geistigen
Grundlagen des franzõslchen Nationalismus, Bonn, 1921; Zeev Sternell, Maurice Barrès et te
nationalisme français, Paris, A. Colín, 1972; Jean-Marie Domenach, Barrès parlui-mème, Paris,
Seuil, 1954.

Raoul G1RARDET.

97
BAUER, Otto -1881-1938
A questão das nacionalidades e a socialdemocracia, 1907

Desde o nascimento do austromarxismo em Viena no começo do século,


a nação estava no cerne de seu projeto intelectual. Imediatamente, ela«pare-
ceu para os chefes das fileiras da escola austromarxista, que foram Otto Bauer
e Karl Renner, um assunto de estudo privilegiado, pelo tanto que ela era
problemática e incontornável: problemática pelo fato de tratar-se de uma
questão reputada como insolúvel dentro de uma Austro-Hungria devotada
pelos Habsbourg ao status quo, pelo temor em favorecer movimentos de final
imprevisível; incontornável pelo fato de as tensões nacionais ameaçarem
quotidianamente a unidade da socialdemocracia austríaca, que devido, para­
doxalmente, mais do que à sua pretensão de ser uma Pequena Internacional,
-até mesmo a única força política transnacional da dupla monarquia, à cons­
tatação de sua desintegração, efetiva a partir de 1910'.
A permanência e o vigor dos debates que se desencadearam até 1914
entre Bauer e Renner, de um lado e Kautsky, Lênin, Stalin e Rosa Luxembur­
go, de outro, testemunham aquilo que a questão nacional se tornou então, para
o movimento operário; um dos principais centros de gravidade temáticos.
O marxismo dos fundadores não oferecia resposta adequada nem aos
nacionalismos maciços que emergiam a oeste da Europa nem às linhas de
ruptura entre nacionalidades múltiplas e misturadas a Leste.
Marx e Engels excluíram a nação de sua problemática. Forma política
transitória ligada ao desenvolvimento do capitalismo, ela estava condenada à
eliminação pela emancipação social de um proletariado postulado como inter-
nacionalista pelo fato do caráter universal da opressão da qual ele era vítima.
Transitoriamente, eles almejavam a formação de grandes Estados mononacio-
nais de tipo ocidental, permitindo a constituição de vastos mercados unifica­
dos, etapa positiva antes do nascimento de uma sociedade mundial sem classes.
As aspirações à emancipação nacional dos povos da Europa Oriental, com
exceção da Polônia, foram consideradas, por isso, por Marx e Engels como um
obstáculo para a revolução européia. Engels introduziu mesmo a distinção
entre povos históricos e povos sem história para demonstrar que estes últimos,
que não haviam conseguido criar ou manter formas estatais no curso de sua
história, deviam ser assimilados pelos primeiros.
O surgimento de conflitos sobre uma base nacional no âmago dos próprios
movimentos operários forçou os teóricos da IIa Internacional a reconsiderarem
as teses marxistas, seja para recolòcá-las em questão de maneira parcial e confusa
(Kautsky), seja para confirmá-las, tirando delas conseqüências internacionalistas
mais extremas (R. Luxemburgo), seja para alcançar uma tomada em consideração
puramente tática da nação (Lênin). Em todas as hipóteses, o julgamento axiomá-
tico de Marx quanto ao caráter efêmero das nações permaneceu o horizonte
ideológico do socialismo europeu.
Inversamente, a nação foi um revelador essencial da natureza do aus-

98
tromarxismo dentro de seu período intelectualmente decisivo, antes da primei­
ra guerra mundial.
Com efeito, sem poder ser confundido com o “revisionismo” de um
Bernstein, que ele pretende, aliás, combater, o austromarxismo pretende dar
conta de uma realidade negada pelo marxismo e integrá-la a este, utilizando
seus próprios conceitos. Foi colocando o marxismo como método, quinze anos
antes de Lukács, que Bauer visou a demonstrar a pertinência dos conceitos
essenciais do materialismo histórico para apreender uma evolução negada pelo
próprio Marx. O marxismo é, para os austromarxistas, um método de análise
dos movimentos dentro dos quais se institui a identidade social. Ora, a
experiência austro-húngara testemunhou ser dificilmente considerável que
movimentos sociais se formem dentro de um vazio nacional.
Os austromarxistas foram, assim,os primeiros a aceitar, de um ponto de
vista teórico, a confrontação com a nação, conferindo a esta uma posição
autônoma e uma permanência que a “ortodoxia” ideológica em vias de
constituição lhe recusava. O resultado foi essencialmente de duas ordens: por
um lado, a obra maior de Otto Bauer, La question des nationalités et la
social-démocratie (A questão das nacionalidades e a socialdemocracia),
publicada em 1907, onde seu autor se entrega a um estudo aprofundado do
conceito e da gênese da nação, da qual ele propõe uma definição nova, em
ruptura com os enfoques tradicionais; por outro lado, dentro da ordem
estratégica, uma reflexão complexa, tendo como eixo o Império austro-húnga-
ro, mas com um alcance mais amplo, chegando a proposições institucionais
próprias para resolver, no âmago do Estado existente, o problema colocado
pela multinacionalidade e as tensões resultantes dela. Essa reflexão foi levada
ao primeiro chefe por Renner, mais secundariamente por Bauer.
La question des nationalités et la social-démocratie pode ser considerado
o estudo marxista mais importante sobre a questão nacional. Mais ainda, pelo
meio de comunicação privilegiado em que se constituiu a obra de K. Deutsch nos
Estados Unidos, essa obra tornou-se uma das fontes principais da reflexão
contemporânea sobre a nação dentro dos países anglo-saxões.
A análise de Bauer recusa previamente todo nihilismo nacional. O
internacionalismo pressupõe a existência de nações: o nacionalismo “só pode
ser combatido no interior da nação” (carta de Bauer a Kautsky) de 9 de
novembro de 1913). Com a existência da comunidade nacional colocada como
hipótese central de sua pesquisa, Bauer tenta avaliar o que define e compõe
uma nação a fim de integrá-la à problemática de um marxismo apreendido
como uma ciência aberta: é preciso “apreender a questão nacional enquanto
problema social” e “pôr à prova o método de pesquisa social de Marx com
relação a novos campos de estudo”, escreve ele.
O conceito de nação elaborado por Bauer repousa sobre uma análise do
caráter nacional, determinante primário de uma nação, mas que só adquire sua
significação plena pela formação de uma comunidade integrada. O caráter
nacional é um complexo de características materiais e culturais. O que o
caracteriza é sua variabilidade: ele só é um fator essencial de unificação de uma

99
comunidade durante um período histórico dado. Ele não é um fator causai,
mas sim um conceito que remete a si próprio a uma explicação necessária.
Bauer rejeita todas as teorias que fazem do caráter nacional uma causa
primeira, escapando à temporalidade. 0 estatismo dessas teorias as condena,
quer elas sejam espiritualistas (“a alma dos povos”) ou racistas. 0 caráter
nacional é ele mesmo o produto de fatores naturais e culturais. Ele se modifica
de maneira permanente dentro do curso da história. Ele deve ser estudado a
partir dos determinantes em última instância, que são a produção e a troca,
mesmo se a dimensão prevalecente para Bauer for a da cultura a transmitir e
for ela mesma instrumento privilegiado de transmissão das particularidades
nacionais.
Uma das maiores contribuições de Bauer para a conceitualização da
nação reside na derivação histórica da nacionalidade. Pela historização dos
conceitos de comunidade, de natureza e de cultura, Bauer chega à definição
da nação como “comunidade de destino”, à qual remonta o caráter nacional
específico a cada povo.
A referência à história-destino remete aos conceitos-chave da análise
marxista, notadamente ao modo de produção, colocando totalmente em evidên­
cia a cultura que deriva dele: “A concepção materialista da história pode
compreender a nação como o produto nunca acabado de um processo cons­
tantemente em curso, cuja última força-motriz é constituída pelas condições
da luta do homem com a natureza, pelas transformações das forças produtivas
humanas e pelas mudanças das condições humanas de trabalho. Segundo essa
concepção, a nação é o que é histórico em nós.” (Otto Bauer, pág. 182.)
E reconhecendo a historicidade do caráter nacional que sua pretensa
autonomia desaparece e que ele perde toda permanência: “Colocado em meio
ao fluxo universal, ele não é mais um ser, mas um vir-a-ser e um desapareci­
mento contínuos.” (O. Bauer, pág. 189.) A individualidade nacional é antes de
tudo a quintessência da historicidade específica de uma nação: o caráter
nacional é "um pedaço de história imobilizada”, o que não significa, de maneira
nenhuma, petrificada, a história de uma nação jamais acabada.
A nacionalidade é apreendida como uma individualidade social, depen­
dendo das especificidades adquiridas ou, melhor ainda, da experiência cons­
titutiva da personalidade. A análise de Bauer é uma primeira aproximação da
personalidade de base, que concretiza, dentro do indivíduo, as heranças e os
traços marcantes da condição social.
A nação se encarna dentro da história sob uma forma social específica: a
comunidade.
Bauer define as nações como comunidades de caráter que se constituem
a partir de uma comunidade de destino. Ele se afasta, assim, do modelo
ocidental de identificação Estado-Nação e utiliza a distinção fundamental entre
comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft), emprestada do soció­
logo alemão F. Tõnnies.
O critério de diferenciação entre comunidade e sociedade é a coação
externa, princípio constituinte da sociedade, enquanto a comunidade é um

100
grupo social ligado intrinsecamente por uma maneira de existir (Daseinsweise)
e um destino idêntico. Comunidade e sociedade estão dentro de uma relação
recíproca de necessidade: a interação (fundamento da comunidade) e a coope­
ração (fundamento da sociedade) não poderiam existir uma sem a outra.
O termo "comunidade” não visa a uma agregação social homogênea, mas
a uma forma específica e complexa de relações, criada pelo processo de
interação. A nação é um complexo de inter-relações.
Porém a comunidade à qual dá vida o caráter nacional é apenas uma das
comunidades de caráter que unem os mesmos indivíduos, como as comuni­
dades de classe ou de profissão. A comparação com a comunidade de classe é
esclarecedora. O que une a classe operária dos diferentes países é uma
experiência comum de exploração dentro das condições de produção dadas. A
comunidade de classe é o produto de uma “identidade de destino”. As classes
são necessariamente compostas de elementos homogêneos. Inversamente, o
que caracteriza uma nação é uma situação de interação recíproca entre os
elementos heterogêneos que a constituem. A coesão da comunidade nacional
é, portanto, suscetível de nascer e de ser reforçada dentro das situações
assimétricas de exploração de classe. Está aí a situação característica da
construção nacional na Europa Ocidental: a luta bipoiar burguesia/proletaria-
do que estrutura o espaço social não diminui de maneira nenhuma a intensi­
dade da formação de uma comunidade nacional.
A interação sendo um aspecto fundamental do processo de determinação
histórica de uma comunidade nacional, um sistema de comunicação é crucial
para que essa comunidade consiga chegar à existência. Esse sistema coloca,
por sua vez, o problema das relações entre língua comum e nação.
Certamente, a transmissão dos bens culturais se opera sob o efeito da
linguagem. Bauer, entretanto, relativiza o papel da língua comum, que não é
por si mesma garantia da unidade nacional. Ela só pode desempenhar papéis
maiores inserindo-se dentro da rede de inter-relações que chega à formação de
uma nação. Ela é o primeiro elo de uma corrente comunitária, cuja solidez se
deve à reciprocidade dos vínculos, unindo todos os compatriotas de uma
mesma nação.
A historicidade da nação permite, além disso, a Bauer, demonstrar
igualmente as insuficiências das teorias da nação repousando sobre a presença
necessária e cumulativa de critérios determinados. Ele responde, assim, ante­
cipadamente à definição da nação elaborada por Stalin em 1913.
O erro principal dessas teorias totalizantes reside em ignorar a relação
de dependência em que se encontram os critérios geralmente enunciados
(território, língua, cultura, história) e em não apreciar seu valor essencialmente
diverso, a história comum sendo o elemento determinante que não poderia ser
considerado equivalente aos outros critérios.
Bauer organiza todos esses índices de maneira dinâmica: "História
comum como causa agente, cultura comum e origem comum como meios de
sua ação, linguagem comum como mediadora da cultura comum, seu produto
tanto quanto o que a produz” (O. Bauer, pág. 190). A concomitância de todos

101
esses critérios não é, aliás, indispensável à existência de uma nação: sua
combinação é variável de uma nação a outra.
A comunidade nacional pode ser, desde então, definida de maneira
precisa: “A nação é o conjunto dos. homens ligados pela comunidade de destino
em uma comunidade de caráter. Pela comunidade de destino: esse traço
distintivo a separa das coletividades internacionais de caráter da classe, da
profissão, da cidadania, que repousam sobre a similitude do destino e não
sobre a comunidade de destino. O conjunto dos camaradas de caráter: é isto
que a separa das comunidades de caráter mais restritas no interior da nação,
que não formam nunca uma comunidade de natureza e de cultura autodeter-
minante” (O. Bauer, pág. 194).
Mas o estudo de Bauer é mais do que uma teorização da nação: ele é
inseparável de uma análise concreta. A historicidade do conceito de nação não
é simplesmente da ordem do postulado. Ela repousa sobre uma análise
complexa da gênese das nações, por meio do estudo do caso alemão, cujas
diferentes etapas se desdobram mediante uma dialética de desintegração/inte-
gração, até o nascimento das nações capitalistas ainda inacabadas e a pers­
pectiva final da conclusão de todas as nações dentro do quadro do socialismo
a construir.
Inserindo-se no quadro do materialismo histórico, da sucessão dos modos
de produção, a nação adquire, assim, uma permanência qüe faz dela uma
categoria histórica fundamental. Longe de ter nascido com o capitalismo, ela
se desenvolve dentro da história por meio uma sucessão de épocas culturais,
começando com a Antigüidade. Ela está em perpétuo vir-a-ser, desenvolvendo-
se ou encontrando-se ameaçada de explosão conforme situações específicas,
elas próprias determinadas pelas mutações da produção e das relações sociais
que a elas correspondem.
Bauer nos lembra isso constantemente: não é suficiente, para analisar a
evolução social, retornar ao real pelas classes. As comunidades culturais, que
Bauer descreve a partir dos exemplos alemão e tcheco, estão estratificadas por
relações de produção, mas constituem simultaneamente campos de ação e de
reprodução social autônomas.
O austromarxismo apreende bem, assim, o duplo caráter da nação. De
um lado, forma de um determinante primário que é a organização cultural da
coletividade, ela é uma invariante. Ela começa com o clã, a linhagem, chama­
va-se cidade na Antigüidade grega e desenvolveu-se até as nações da época
capitalista. Nesse sentido, o fenômeno nacional, enquanto forma da espe­
cificidade cultural, é trans-histórico. Porém, por outro lado, além das conser­
vações culturais dentro da longa duração, inumeráveis configurações coletivas
foram e serão desfeitas. Uma nação particular, dentro de um contexto determi­
nado, é histórica, assim com o é o próprio Estado nacional. A nação, demonstra
Bauer, a exemplo das outras identificações coletivas, é contextual. Ela não é,
além disso, exclusiva de identificações concorrentes ou complementares, infra
ou supranacionais, de ordem econômica ou cultural.
Para Bauer, o capitalismo, que tornou possível um desenvolvimento sem

102
precedentes da comunidade nacional, traz em si mesmo limites tais que a
integração nacional dos grupos sociais, sobre- a qual repousa a exploração, é
impossível: “Tal é a lei de nossa época, que o trabalho de um torna-se a cultura
do outro” (O. Bauer, pág. 154). Na medida em que gozam efetivamente de bens
culturais comuns, só o socialismo conseguirá pôr fim na apropriação do
patrimônio cultural nacional pela classe dominante e realizar a execução
integral de uma comunidade nacional de cultura, repousando sobre o conjunto
da sociedade.
O austromarxismo alcançou a rejeição das análises, tanto liberais quanto
marxistas, para as quais existiria uma dinâmica levando o mundo para uma
homogeneidade crescente de civilização. Bauer afirma a existência de uma
diferenciação crescente e necessária das culturas nacionais.
Bauer percebe a internacionalização da cultura. Mas ele distingue con­
teúdos materiais dedicados ao nivelamento e conteúdos espirituais em diferen­
ciação constante. A integração de uma idéia vinda do exterior da cultura
existente de uma nação significa sua integração a toda sua história: o acesso
de uma idéia nova e uma cultura nacional significa sua codeterminação por
esta última.
Não há cultura universal. Há, com intensidades variáveis, uma luta
mundial das identidades culturais para sua existência. E Bauer retoma sob sua
responsabilidade o conceito de “nações sem história”, inserindo estas últimas
em sua perspectiva própria: são nações que tiveram uma história e que têm
potencialmente a capacidade de se tornar de novo atores históricos por inteiro.
O que decide sobre a vida e a morte das nações é sua inserção dentro do fluxo
do desenvolvimento pré-capitalista, depois capitalista e, correlativamente, sua
capacidade de desenvolver uma cultura autônoma, sobre a base de classes
dirigentes, vetor e motor desta cultura nacional.
O início do século XX foi precisamente, para Bauer, caracterizado pelo
“despertar das nações sem história" - esquema que ele aplica à Europa
Central, particularmente aos tchecos, sem, no entanto, o reservar a essa região:
essa evolução toca com um ritmo específico cada uma das nações sem história,
toda hierarquia entre as nações estando, desde então, excluída.
É uma contribuição essencial de Bauer a de ter colocado em evidência
não somente a organização dualista das sociedades em nações e em classes,
mas também a dialética da interdependência crescente das condições de
produção e de troca, de um lado, e da diversificação cultural/nacional de
outro. A constatação da globalização vem acompanhada da diferenciação das
identidades culturais.
O austromarxismo permitiu suprimir esse “ponto cego" da análise mar­
xista que é a nação. Poucos marxistas tiraram proveito disso. Em compensação,
a problemática aberta por Bauer, explorada por K. Deutsch, continua, no
essencial, a estruturar o campo contemporâneo da pesquisa sobre a nação,
sobretudo dentro dos países anglo-saxões.
Nem universalismo abstrato, nem nacionalismo estatal, a teoria complexa
de Bauer contribuiu para constituir a nação em objeto de conhecimento.

103
• Die Nationalitâtenfrage und die Sozialdemokratie, em Otto Bauer Werke, Bd. I, Viena,
Europa Verlag, 1975; Bemerkungen zur Nationalitâtenfrage, Die Neue Zeit, 23, l, 1907-1908,
págs. 292-302 (Alotas sobre a questão das nacionalidades, trad. C. Weill, introd. G. Haupt,
“PlurieP, 5,1976, págs. 41-58).

► L ’austromarxisme - nostalgie et/ou renaissance (Atas das Conferências de Paris, 25-27 de


fevereiro de 1982), Austríaca, 15 de novembro de 1982 e número especial de março de 1983;
A. Agnelli, Le socialisme et la question des nationalités chez O. Bauer, em Histoire du marxisme
contemporain, Paris, UGE, 10-18, 1976, UI, págs. 355-407. T. Bottomore et P. Coode (ed.),
Austromarxisme, Oxford, Claredon Press, 1978; Y. Bourdet, Otto Bauer et la révolution, Paris,
EDI, 1968; Idem, Prolétariat universal et cultures nationales, em Revue française de Sociologie,
abril-junho 1972, págs. 151-169; K. Deutsch, Nationalism and social communlcatlon, Cam-
bridge, Mass., The MIT Press, 1953 (2! ed. 1966); J. Droz, UEurope centrale. Evolution
historique de Vidée de Mitteleuropa, Paris, Payot, 1960; R. Calissot, La question nationale dans
les marxismes, em Politique aujourd‘h ul, 5-6,1979, págs. 79-113; G. Haupt, M. Lowy et C. Weil,
Les marxistes etla question nationale, 1848-1914, Paris, Maspero, 1974; L. Kolakowski, Main
currents o f marxism, UI, The Golden Age, Oxford, Clarendon Press, 1978; A. Kriegel, Le pain
et les roses. Jalons pour une histoire des socialismes, Paris, PUF, 1968; N. Leser, Zwischen
Reformismus und Bolchevismus. Der Austromarxismus ais Theorie undPraxis, Viena, Europa
Verlag, 1968; J. Maitron et G. Haupt (ed.), Dictionnaire blographique du mouvement ouvrier
International. L ’A utriche, Paris, Ed. Ouvrières, 1971; C. Merlin, La nation dans l'austro-
marxisme, 3 vol., tese de Estado, Universidade de Paris I, 1986 C. Will, L ’Intemationale et
Vautre — les relations interethniques dans la i f Internationale, Paris, Arcantère, 1987; A.
Yaari, Le défl national, Ll, Paris, Anthropos, 1978.

Christian MERLIN.

BECCARIA, Cesare, 1738-1794


Dos delitos e das penas, 1764.

Publicado sem o nome do autor em Livorno, traduzido para o francês


por Morellet em 1766, essa breve obra suscitou logo à primeira vista múltiplas
interrogações e polêmicas, tanto sobre a identidade de seu jovem autor
(Beccaria tinha na ocasião 26 anos) quanto sobre o que o teria levado a abordar
com tal liberdade de espírito os problemas colocados pelo direito de punir, a
pena de morte ou a tortura. Visto que esse discípulo da “metafísica profunda
de Hume” (carta a Morellet, in Einaudi, p. 364), profundamente influenciado
pelo espírito das Luzes, leitor de Helvetius e de Rousseau, empreendia a
evidência de exprimir, por meio de sua reflexão sobre o direito penal, uma
análise global e sem concessões da sociedade existente. Esse alcance propria­
mente político da obra não escapa aos seus contemporâneos; estigmatizado
como “socialista" desde 1765 por ter preconizado uma sociedade onde os

104
homens seriam livres e iguais perante a lei (F. Facchinei, Note e osservazioni
sul libro dei delitti e delle pene), o pensamento de Beccaria tornou-se muito
depressa uma referência obrigatória para os partidários do absolutismo es­
clarecido e para os círculos reformistas de toda a Europa (Voltaire publicou
em 1766 seu Commentaire sur le traité des délits e des peines). Sabe-se
também que as teses de Beccaria foram muitas vezes evocadas nos debates na
Assembléia Nacional que, na França de 1791, conduziram à elaboração de um
novo Código Penal.
Qual foi então o projeto que deu origem a esse admirável e surpreendente
sucesso? Tratava-se de deduzir uma nova teoria das penas a partir de uma
concepção contratualista da associação política. “Fatigados de viver em um
estado de guerra permanente e em uma liberdade tornada inútil pela incerteza
de a conservar”, os homens, originalmente “independentes e isolados", "se
uniram em sociedade” pelo sacrifício de uma parte de sua liberdade “para
usufruir do resto dela com mais segurança e tranqüilidade". A “soberania de
uma nação” designa, portanto, a soma dessas partes da liberdade “sacrificadas
ao bem comum”, e o soberano é, nesse caso, “o depositário e o administrador
legítimo", tendo por função conceder e garantir a cada um a parte de liberdade
a que ele tenha direito (= o justo). Em conseqüência, uma vez constituído este
depósito, a sociedade passa a possuir um direito, tendo por intermediário o
soberano, de defendê-lo contra qualquer um que procurasse retirar antes da
hora, prejudicando a massa comum, não apenas a parte de liberdade que lhe
era devida, mas, “além disso, se apropriar da parte dos outros”: o delito foi
definido, portanto, como o ato de um “espírito despótico” que, procurando
açambarcar a maior parte da liberdade, ameaça a sociedade de dissolução e de
um retorno ao estado de guerra; as leis, enunciados de “regras de conduta”,
pela observação das quais a sociedade pode escapar ao “antigo caos”, devem,
por conseguinte, ser combinadas com penas contra aqueles que, transgredin­
do-as, deixam as “paixões individuais” colocarem-no acima do “interesse geral”
(Beccaria, 1965, p. 8-9).
A tentativa de Beccaria consiste, portanto, como se pode ver facilmente,
em fundamentar todo o edifício social, tanto em sua origem como em seu
funcionamento, sobre o egoísmo: “Todo homem se vê como o centro de todas
as combinações do globo” (p. 9), e é por interesse que ele se liga a outros
homens e abandona uma parte de sua liberdade para proteger melhor o “resto"
(a parte restante): o interesse geral é, assim, resultante dos interesses particu­
lares (p. 80). É também o interesse que fundamenta o direito de punir, pois o
“espírito despótico”, por uma má compreensão de seu próprio interesse,
ameaça, quando acredita poder ultrapassar os limites de sua liberdade, um
vínculo social definido como “vínculo necessário para manter a união dos
interesses particulares”. Em resumo, o direito de punir é o do interesse bem
compreendido com relação ao interesse cego pela paixão.
Essas teses não são, certamente, originais, mas o mérito de Beccaria é o de
ter sabido tirar delas com rigor uma série de conclusões audaciosas. Logo de
início, já que todas as leis são as condições da união de todos os interesses

105
particulares, elas devem emanar do soberano que representa toda a sociedade.
É, portanto, esse soberano que, quando faz as “leis gerais que se impõem a todas
as pessoas” fixa também as penas para os delitos, e desde então nenhum
magistrado nem nenhum outro poder social poderá infligir uma pena que
“ultrapásse o limite fixado pela lei”. A atividade do juiz se encontra assim limitada
à “aplicação das leis” (p. 78), as quais, para dar o mínimo de margem possível a
interpretações, devem ser escritas e claras (p. 13): cabe ao juiz simplesmente
“formar um silogismo perfeito” cuja maior premissa será a lei, menor, o ato a
julgar e conclusão, a absolvição ou condenação do réu (p. 12, p. 27). Reprovou-se,
muitas vezes, em Beccaria esse empobrecimento do trabalho do juiz (“precisar
os fatos”), esse “automatismo” que não permite levar em conta as intenções e
reduz o julgamento a um “esquema abstrato” (Casamayor, in Beccaria, 1979,
prefácio p. 14). A importância política da formalização beccariana do silogismo
jurídico é, no entanto, dupla: 1) limitando o poder do juiz, ela participa da
vontade de reduzir a arbitrariedade das decisões da Justiça (o que homologará
alguns anos mais tarde o artigo 8fi da Declaração dos Direitos) do homem que
proclama que “ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei es­
tabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada”; 2)
recusando explicitamente a consideração jurídica da intenção (p. 17: “se se
punisse a intenção, seria necessário, não apenas um código particular para cada
cidadão, mas também uma lei nova para cada crime”), Beccaria pretende evitar
os efeitos politicamente perversos da confusão do direito e da moral, do crime e
da infâmia: pois, se não for colocado que o crime é simplesmente uma recoloca-
ção em questão das relações de igualdade (perante a lei) que definem a sociedade
e que ele só deve punir em proporção ao dano causado à tranqüilidade e à
segurança públicas, o culpado deverá não apenas reparar, mas expiar (p. 31) e,
dentro dessa perspectiva, por menos que se pense que a dor lava a infâmia, não
se hesitará em submeter um homem à tortura (p. 29); mais comumente, se o
delito é considerado uma perversão da intenção, como “é de interesse geral que
não se cometa delito”, se autorizará, em nome do interesse geral, a corrigir as
próprias intenções dos indivíduos, modificar a “causa última” dos delitos (o
egoísmo natural), portanto, moralizar os cidadãos pela desnaturação do homem.
Em compensação, a separação do direito e da moral permite confiar os progres­
sos da paz pública ao simples uso, por um legislador hábil, desses “obstáculos
políticos” aos excessos do egoísmo que constituem as penas proporcionais aos
delitos: tais penas, simples aplicações da lei, na transparência dos julgamentos
pronunciados publicamente, “impedem as conseqüências funestas dos delitos
sem destruir sua causa primeira, que é, simplesmente, a sensibilidade inerente
ao homem”. Separado da moral, o direito somente manda de volta para a
máquina política, onde o soberano “age como um hábil arquiteto cujo papel é o
de se opor às forças destrutivas da falta de penetração e empregar as que
contribuem para a solidez do edifício” (p. 15). Como uma espécie de artifício da
razão prática, a “aritmética política" consiste, assim, em produzir os "melhores
efeitos”, não em extirpar o egoísmo, mas em utilizá-lo como o próprio impulso
de uma submissão às leis que nasce da simples capacidade, de cada um, de

106
“calcular exatamente os inconvenientes de uma má ação” (p. 13). Nesse sentido,
a política —cujo objetivo deve, portanto, ser que, uma vez equilibrados todos os
interesses particulares, "a palavra não valha mais do que as leis” (p. 27) - deve
ser representada como uma “arte”, pois, como toda arte, imita a natureza
submetendo-se aos “sentimentos eternos do homem”, para melhor harmonizá-los
(p. 42). Longe de reduzir a prática judiciária a um “esquema abstrato”, a
concepção beccariana do julgamento como simples aplicação de uma lei igual
para todos e conhecida de todos tem, portanto, uma motivação política conside­
rável: aí onde as leis determinam publicamente “os casos em que um homem
merece ser punido”, “sob quais indícios, deve-se prender um acusado, submetê-lo
a um interrogatório e a um castigo” (p. 54), já se está bem perto de rejeitar que,
“em certas circunstâncias, o homem deixa de ser uma pessoa para transformar-se
em uma coisa” (p. 38). 0 governo da lei, ideal de Beccaria, transforma, progres­
sivamente, a sociedade em um espaço público; se quisermos, em uma “república”,
onde nenhum poderoso detém mais o “segredo de mudar, como por magia, os
cidadãos em bestas de carga” (p. 38) e onde “cada cidadão deve poder fazer tudo
que não seja contrário às leis sem temer outro inconveniente a não ser aquele
que pode resultar do seu próprio ato” (p. 19). Ainda é necessário determinar, para
medir bem o alcance desta redefinição da função política do direito penal, que,
se Beccaria retira do magistrado toda autonomia em relação à lei estabelecida
pelo legislador, também subtrai, na mesma medida, ao poder que faz as leis todo
o direito de julgar qual cidadão “violou o pacto social” (p. 11): o soberano,
quando designa uma violação do contrato social por um acusado que contesta
essa acusação, não poderá julgar sem ser, ao mesmo tempo, juiz e parte
interessada (pois representa, com efeito, a sociedade, isto é, a parte lesada). O
juiz deve, portanto, ser um terceiro, cujos julgamentos serão definitivos, comple­
tamente independente do soberano; é essa autonomia em relação ao soberano,
do qual ele se limita a receber as leis, que lhe permite desempenhar sua função
de “protetor e aplicador das leis” (p. 35).
Dessa concepção, que faz do direito de punir um elemento essencial da
“máquina política", resulta o princípio de proporcionalidade entre delitos e
penas, que ficará no centro da reflexão de Beccaria sobre as penas: pois "a
única medida dos delitos é o dano ocasionado à nação” (p. 17), "quanto mais
os delitos forem nocivos ao bem público, tanto mais fortes deverão ser também
os obstáculos para afastá-los” (p. 15). Deixando de lado o detalhe da divisão
dos delitos e da graduação das penas, nos limitaremos a salientar a insistência
de Beccaria sobre o fato de que “a finalidade das penas não é nem atormentar
e afligir um ser sensível, nem fazer com que um crime já cometido não o seja
novamente”, mas somente “impedir o culpado de causar novos danos e
dissuadir os outros de cometer crimes semelhantes”: é preciso, portanto,
escolher as penas suscetíveis de causar “a impressão mais eficaz e mais durável
no espírito dos homens e a menos cruel sobre o culpado” (p. 24); assim, serão
privilegiadas a exemplaridade e a infalibilidade da pena mais do que a sua
duração, pois sua finalidade é antes de tudo “política”: “Para que um castigo
produza o efeito desejado”, isto é, de desviar do crime, “basta que ele

107
ultrapasse a vantagem resultante do delito” - todo o resto, contanto que se
faça levar em consideração “a certeza da punição”, dependerá, portanto, da
crueldade supérflua (p. 47).
É dentro do quadro desse apelo a uma “moderação das penas” que se
inscreve a tese mais célebre de Beccaria, a saber, sua condenação radical da
pena de morte e, isso por quatro razões: 1) a pena de morte é ilegal, pois as
leis são apenas “a soma de pequenas porções de liberdade abandonadas por
cada indivíduo”, e é evidente que o sacrifício de liberdade feito por cada um,
na hora da conclusão do contrato social, não pode “compreender o do maior
de todos os bens, a vida”; a pena de morte não pode, na qualidade de direito
de matar delegado ao soberano, ser inscrita em nenhuma lei; 2) a pena de
morte é inútil] em uma sociedade regida por leis e em que o soberano
representa a vontade geral, não é razoável pretender que um cidadão, uma vez
privado de sua liberdade, “tenha ainda relações e um poder tais que o tornem
uma ameaça para a segurança da nação” (p. 48), e, além disso, nos séculos
passados aplicou-se a pena de morte, sem que isso “nunca tivesse impedido
homens decididos de prejudicar a sociedade"; 3) a pena de morte não é
necessária; não é na severidade da pena, mas são sua infalibilidade e sua
duração que produzem maior efeito sobre o espírito dos homens, pois "a
impressão causada pela pena de morte não compensa, por mais forte que seja,
o esquecimento rápido em que ela cai, esquecimento esse natural ao homem”
(p. 49), enquanto a pena de prisão perpétua, “se forem somados todos os
momentos infelizes que ela comporta”, é suscetível de criar uma impressão
mais forte; 4) a pena de morte é nociva pelo “exemplo de crueldade que ela
dá”: as leis, expressões da vontade geral, que “reprovam e punem o homicídio”,
não podem, para desviar os cidadãos do assassinato, cometer um “assassinato
público” (p. 52). Também a pena de morte, se ela pode a rigor, segundo
Beccaria, se aplicar ao cidadão, sob a forma de sua exclusão do corpo político
(o cidadão banido está morto para a sociedade), não pode, em nenhum caso,
se estender do cidadão ao próprio homem.
Pode-se fazer uma idéia dos debates que foram provocados pelas teses de
Beccaria, reportando-se ao conflito que essas teses ocasionaram entre Kant e
Fichte (cf. A. Philonenko, 1976, p. 1734). Em sua Doutrina do direito, publicada
no fim de 1796 e no princípio de 1797, Kant havia criticado severamente a
maneira como Beccaria, “a partir de um afetado sentimento de humanidade",
denunciava a pena de morte: dizer que essa pena é ilegal sob o pretexto de que,
no contrato social, “ningúem pode consentir em perder sua vida”, é “sofisma e
argúcia jurídica”, pois de uma maneira geral “é impossível que se queira ser
punido” e, portanto, em boa lógica, é pela ilegalidade de toda pena que Beccaria
devia concluir. Indo mais adiante, Kant indicou, antes de mais nada, duas
reprovações: a) Não ter visto que não é o mesmo homem que, como colegislador,
dita a lei penal (incluída aí a pena de morte) e, com ser submisso às suas
inclinações, comete um crime: quando penso em mim como tendo resolvido a me
deixar infligir uma pena qualquer, está aí a “pura razão jurídica legislativa" que
imagino em mim, no homo noumenon, único suscetível, diferentemente do

108
homo phaenomenon, de reconhecer que, se o tribunal me julga passível de uma
pena, é justo que eu me submeta a ela, mesmo sendo ela a pena de morte, que
Kant, aliás, julga legítima para todos os assassinos, “segundo a estrita pena de
talião”; b) Ter considerado a pena um meio em vista de outra coisa além de si
própria (a paz civil), o que, enquanto imperativo penal emana da lei moral, volta
a negar essa lei moral, já que assim, estima Kant, é o próprio condenado que é
tratado como um meio e não como um fim: a pena deve fazer dela mesma seu
próprio fim; pois, levar em conta a utilidade da punição para o criminoso ou seus
concidadãos, é fazer do criminoso um simples instrumento. Kant pretendia,
portanto, destruir o princípio beccariano segundo o qual uma pena só é justa
quando é útil, princípio sobre o qual somente havia podido ser colocado o
problema da pena de morte.
Na segunda parte de Fondement du droit naturel (Fundamento do
direito natural), publicado em 1797, Fichte respondeu ao "grande homem,
porém não-infalível”, defendendo Beccaria mediante a colocação em evidência,
de maneira muito marcante, da significação política do debate sobre a pena de
morte: certamente, em uma ordem moral do mundo que seria submetido a um
juiz omnisciente, "não acontece, segundo as leis morais, nenhuma injustiça
àquele que é tratado segundo a lei” que, como sujeito moral, ele próprio
colocou; mas, se do ponto de vista moral, a aplicação da pena de morte ao
assassino é inegavelmente justa, resta saber se a questão levantada por
Beccaria era “exclusivamente jurídica”: “De onde poderia vir, para qualquer
mortal, o direito a esse governo moral do mundo, o direito de impor pela força
seu direito ao criminoso?” E Fichte mostrava como atribuir esse direito ao
soberano terrestre seria se consagrar a “apresentar como incompreensível o
título desse soberano para exercer seu poder” e logo a “derivar esse poder de
Deus”, em resumo, a “considerar todo governo uma teocracia”: inseparável de
uma “teocracia jurídica”, o reconhecimento da legitimidade da pena de morte
não seria, em compensação, integrar-se “em um sistema jurídico em que é ao
povo que se atribui o poder legislativo e em que o legislador não pode ser, ao
mesmo tempo, governante”. Em resumo: respondendo a Kant que sua defesa
da pena de morte pressupunha uma confusão do direito e da moral, que
Beccaria havia sabido evitar, mostrando que a motivação política mais profun­
da desse debate não era outra coisa senão aquilo que chamamos hoje de
democracia, Fichte destacava com grande sagacidade que, tratando dos delitos
e das penas, Beccaria havia, antes de tudo, feito uma obra política.

• Dei delltti e delle pene, Turin, Einaudi, 1965, introdução e anotação de F. Venturi; Des délits
et despeines, Cenebra, Droz. 1965, trad. por M. Chevalier, introdução de F. Venturi; Traitédes
délits e des pelnes, Paris, Flammarion, col. “Champs”, prefácio de Casamayor, introdução de
J.-P. Juillet, 1979 (essa edição reproduz uma tradução publicada em Paris em 1822 por Collin
de Plancy, que seguia a ordem estabelecida pelo tradutor francês Morellet, em 1766).

► J. G. Fichte, Fondement du droit naturel (1796-1797), Paris, PUF, col. “Epiméthée”, trad.

109
por A. Renaut, 1984, p. 291 e seg.; G. W. F. Hegel, Príncipes de la philosophie du droit, Paris,
Vrin, 1975, trad. por R. Derathé, 100, Remarque; E. Kant, Doctríne du droit. Paris, Vrin, trad.
por A. Phiíonenko, 1971, p. 218 e seg.; Alexis Philonenko, Thêorie et praxis dans la pensée
morale et politique de Kant et de Fichte en 1793, Paris, Vrin, 1968, p. 173 e seg.

Alain RENAUT.

BENJAMIN, Walter, 1892-1940


Teses sobre o conceito de história

Colocadas sob o signo de uma alegoria, a do Angelus Novus, esse “anjo


da história” judaica e barroca do quadro de Klee, onde “o inumano é, em nós,
o mensageiro de um humanismo mais real”1, as Teses sobre o conceito de
história (Thesen überden Begriffder Geschichte), um dos últimos escritos de
Walter Benjamin antes de seu suicídio na fronteira espanhola, submetem de
repente a “razão” histórica e política a um verdadeiro desafio. Como pensar a
história “no momento do perigo” (tese VI) e na angústia de uma barbaridade
irreparável? Como fundamentá-la teórica e metodologicamente em sua dimen­
são de catástrofe (tese IX), sem deixar para tanto a crítica decisiva de uma certa
racionalidade que deve, daí em diante, apropriar-se dos territórios livres da
irracionalidade?
Escritas no fim de 1939 e começo de 1940, no exílio parisiense, essas
dezoito teses e suas notas preparatórias refletem uma situação mundial dramá­
tica marcada pelo fracasso da classe trabalhadora alemã em face do nazismo, pelo
terror hitlerista, o pacto germano-soviético e a guerra. Aí, a observação sobre a
história que orienta o pensamento é análoga à desse Anjo melancólico e
assustado da tese IX. Voltado para o passado, “lá onde nos aparece uma série de
acontecimentos, ele vê uma única catástrofe”. Impelido para o futuro, pela
“tempestade que sopra do paraíso” - a tempestade do progresso —, vê apenas
“um monte de escombros”. Mas, se essa visão, alegórica, tão próxima dos
trabalhos de Benjamin sobre A origem do drama barroco alemão e Baudelaire,
fundamenta bem seu discurso teórico, não é porque seu próprio objeto - a
história - se tornou o cruzamento de dois tipos de cenas? Uma, a mais evidente,
simboliza a consistência histórica e filosófica tradicional e dominante, essa
“história dos vencedores” que Benjamim critica sob todas as suas formas,
incluindo a do pensamento da esquerda: concepção linear do progresso, culto
das forças produtivas, historicismo e crença em um “tribunal da história univer­
sal” onde toda barbaridade seria sempre apenas um momento ultrapassado em
um sentido racional e irreversível. O outro reenvia àquilo que permanece ainda
irrepresentado, por conceitualizar, em toda uma rede de noções trabalhadas por

110
uma tensão produtiva entre um marxismo dilacerado e um messianismo judeu
de novo desfraldado: “barbaria”, “estado de exceção”, “catástrofe”, “tradição dos
oprimidos”, "messianismo”, “redenção da humanidade”... Pois é bem dentro e
por esse dispositivo inédito, essa dupla linguagem, esse vaivém entre a alegoria
e o conceito que uma teoria da história, como dispositivo estratégico (tese I) e
como construção (tese XIV), se pode desenvolver a partir de um fracasso histórico
que a estrutura a motiva e a freqüento. O que eu chamaria de um pensamento
da catástrofe, se a catástrofe for, ao mesmo tempo, uma situação crítica de perigo
em que o sentido da história se precipita e uma ética do pensamento resistente
que esclarece sobre um novo conceito de história não-historicisto, dominado pelo
“estado de exceção”. Caminho eminentemente estreito, já que se trata, sem
dúvida, de evitar uma simples crítica apocalíptica e romântica do progresso, sem
esclarecer, para tanto, sobre um positivismo histórico saído do século XIX. O
próprio Benjamin, em uma carta escrito em francês a Horkheimer, em 22 de
fevereiro de 1940, não explica seu propósito nestes termos: “Acabo de terminar
um certo número de teses sobre o conceito de história. Elas devem... servir... de
armadura teórica ao segundo ensaio sobre Baudelaire... Elas constituem uma
primeira tentativa de fixar um aspecto da história que deve estabelecer uma cisão
irremediável entre nossa maneira de ver e a sobrevivência do positivismo, que,
a meu ver, demarca, de maneira muito profunda, mesmo esses conceitos de
História que, em si mesmos, são para nós os mais próximos e os mais familiares.”3

A catástrofe como “cisão”e “interrupção do tempo"

Ao contrário de um pensamento “feliz” da história que a apreende na


falsa continuidade c(e um sentido e de um tempo cumulativo em que se
inscrevem os acontecimentos, segundo o paradigma da sucessão linear e causai
própria do historicismo, o pensamento da catástrofe se estabelece em um
tempo partido, abrindo-se a uma perplexidade inicial que comanda todo o
trabalho das teses. Nas notas preparatórias Benjamin escreve: “Perplexidade
fundamental: a tradição como descontinuidade do passado, em oposição à
história como continuidade dos acontecimentos” e ainda: “Perplexidade funda­
mental: a história dos oprimidos é uma descontinuidade. A tarefa do his­
toriador é apoderar-se da tradição dos oprimidos.”4
Essa perplexidade indica o objetivo crítico das teses: operar uma cisão
em toda concepção “historicisto” da realidade histórica, até no marxismo
economista da Segunda Internacional, criticado abertomente. Decerto, essa
crítica do historicismo, própria à cultura alemã pós-hegeliana (muito particu-
larmente Dilthey) não é nova nos textos de Benjamin. Assim, desde La vie des
étudiants (A vida dos estudantes) e desde seus textos dos anos vinte, ele se
recusa a identificar o tempo histórico com o tempo formal e vazio da física
mecânica. Bem longe de ser um meio homogêneo e vazio onde se alojariam os
acontecimentos em um movimento contínuo, o tempo histórico permanece
“não acabado”, “não preenchido”, deixando sempre lugar para um conhe­
cimento ainda inconsciente do passado, para um “encaixe com o presente”. Do

111
mesmo modo, todo o trabalho sobre A origem do drama barroco alemão
(1928) visava a elaborar um conceito de origem do tipo arqueológico: nem
simples proveniência empírica, nem gênese de um sentido pleno, a origem
comporta uma espécie de não-acabamento, uma tensão dialética entre uma
pré-história e uma pós-história que lhe permite fazer retornar ao presente.
Todavia, ao nível das teses, como as do trabalho inacabado de Passagen-
Werke, sob a própria ameaça do perigo, a denúncia do historicismo se faz mais
premente, mais insistente e mais estratégica. Certamente reconhece-se a
mesma matriz crítica: todo historicismo - aquele que coloca uma “herança
cultural”, uma continuidade das forças produtivas ou, mais amplamente, uma
metodologia da história —pressupõe um conceito de tempo vazio, formal e
linear: "A concepção do progresso da espécie humana no curso da história é
inseparável da concepção de sua progressão ao longo de um tempo homogê­
neo e vazio. É, na crítica dessa progressão, que deve encontrar seu fundamen­
to, uma crítica da concepção do progresso em geral” (tese XIII). Mas essa crítica
liga doravante o momento epistemológico a seus efeitos políticos. Historicista
é a "história dos vencedores”, uma filosofia dos senhores que instauram uma
ordem. Pois a continuidade histórica, a unidade e a unicidade do tempo, a idéia
da evolução irreversível, o tratamento do passado como “imagem eterna" e do
presente como uma simples passagem, toda essa aproximação da história como
tribunal universal é fundamentalmente “reativa”: exclui imediatamente do
progresso “a servidão anônima” dos sem-nome, a barbaria e a lembrança dos
reveses; em poucas palavras, a “tradição dos oprimidos". Portanto, ela só tem
sentido do ponto de vista dos vencedores e da legitimação de seu poder. É por
isso que, contrariamente a esse “bordel do historicismo”, a primeira tarefa da
luta por um passado oprimido consiste em quebrar toda “empatia” pelos
vencedores dentro da própria esquerda e a introduzir uma descontinuidade,
“uma interrupção do tempo”.
A catástrofe é, primeiro, essa negatividade a-hegeliana, esse “princípio
destrutivo” e suspensivo interno à modernidade, que Benjamin encontra na
atitude melancólica de Baudelaire em face do mundo: “A hipocondria é o
sentimento que corresponde à catástrofe em permanência.”5
Mas a história não poderia ser suspensa por isso, em sua conceitualidade,
mesmo se a racionalidade ampliada invalidasse todos os conceitos tradicionais
da “razão” historiadora: origem empírica, tradição como continuidade, uni­
dade e unicidade do “curso do tempo”... A tradição como descontinuidade não
seria simplesmente uma outra história, uma história dos outros (“os oprimi­
dos”, os "sem-nome”, a “classe trabalhadora”), que perturbariam as estruturas
clássicas da temporalidade?
Ao ler certos enunciados das teses, seriamos tentados a responder pela
afirmativa e a atribuir o conhecimento histórico a seu objeto diferencial. Assim:
“O sujeito (Das Subjet) do conhecimento histórico é a classe trabalhadora que
luta contra a opressão” (tese XII). Ou ainda: “É preciso inserir três momentos
nos fundamentos da visão materialista da história: a descontinuidade do tempo
histórico, a força destrutiva da classe trabalhadora, a tradição dos oprimidos”.6

112
Todavia, esse “sujeito”, muito pouco hegeliano e anti-historicista, nunca
totaliza a história em seu futuro messiânico que lhe daria sentido, na visão de
uma “humanidade libertada”. O “último julgamento” está no presente e não
“no papel redentor das gerações futuras” (tese XII). Por conseguinte, ao
contrário de um sujeito da história “clássica” que se desenvolveria no progres­
so, submetendo assim todo acontecimento histórico a “uma explicação do
motivo” (Heidegger), o “sujeito”de Benjamin, como o de Blanqui, é des­
pedaçado pelo sofrimento, confrontado com uma inumanidade histórica per­
manente, sem nenhum recurso aos "dias seguintes que cantam”.
Ele é, desde então, forçado, para agir e para compreender a si próprio, a
readaptar o futuro ao trabalho no passado, em cada detalhe do passado,
mesmo insignificante, para conjugá-lo com o presente em uma “constelação de
tempo”, totalmente inédita, que Benjamin á\zmd.Jetztzeit (tempo atual ou "no
presente”). O conhecimento histórico passa por uma verdadeira “revolução
copernicana” entre o passado e o presente, que permite reencontrar, por meio
de métodos micrológico e arqueológico, “a hierarquia de sentido de todo
detalhe”, mesmo colocado em um mundo totalmente condensado, alienado,
submetido às fantasmagorias da mercadoria e da modernidade.7
É por isso que a noção de “catástrofe” é ela mesma polissêmica. Empres­
tada ao messianismo judeu que, como escrevia Scholem, é “em sua origem e
sua natureza a espera de cataclismos históricos. Ele anuncia catástrofes”8, ela
pertence à rede de conceitos “teológicos” das teses. Catástrofe é “a suspensão”
messiânica do tempo, a passagem de um tempo quantitativo, tecnológico,
serializado a um tempo intensivo, a essas “farpas de messianismo” e de
esperança no trabalho no tempo presente. Mas a catástrofe realça igualmente
um ato de conhecimento, um pensamento "que faz uma parada” e “arranca o
objeto histórico da continuidade”, apanhando-o em sua unicidade, tal como
uma mônada* A crítica do historicismo alcança aí seus verdadeiros fundamen­
tos epistemológicos: trata-se de um pensamento que não tem armadura teórica
(hat keine theoretische Armatur) e que adiciona os acontecimentos pressupon­
do um vínculo causai. Ao contrário, o conceito materialista da história deve ter
“uma armadura teórica” e, portanto, obedecer a “um princípio construtivo"
(ein konstruktive Prinzip) (tese XVII).
Paradoxo radical: é no próprio momento do perigo que se pode “fixar” o
passado em suas imagens dialéticas, é face à catástrofe que o pensamento da
catástrofe como “princípio construtivo” da história se pode elaborar.

A política como “catástrofe: o Estado de exceção

Que um conceito de história se institua no e pelo fracasso histórico, a


desilusão, que o çstrutura e que ele deve “teorizar”: este é o ponto mais
decisivo das teses, o ponto que coloca o próprio Benjamin em uma situação
impossível: enunciar o fim da modernidade do progresso própria do século XIX,

Mônada —substância simples, ativa, indivisível, incorruptível (Leibniz) (Nota da revisão).

113
estando preso em sua “clausura”. Desse ponto de vista, a tese VIII é a mais
explícita: o fascismo, "a história como estado de exceção”, não é precisamente
uma exceção a uma regra que erigiria o progresso em “norma histórica" e só
suscitaria, face aos acontecimentos, desordem e derrota. O Estado de exceção
é a regra. Compartilhar dessas posições face ao nazismo é, para Benjamin,
tentar elaborar “uma concepção da história que corresponde ao Estado de
exceção”, que visa a “produzir o verdadeiro Estado de exceção” (tese VIII).
Primeiro imperativo: inverter as relações entre a regra e a exceção, para
construir um conceito de história que ultrapasse as categorias de legalidade e
de regularidade próprias ao positivismo do século XIX, à sua permanência na
interpretação economista do marxismo centrado sobre a equação otimista da
social democracia alemã de um Hilferding: desenvolvimento das forças produ­
tivas * racionalização = modernização = democratização. Em termos mais
contemporâneos, à luz dos trabalhos de René Thom, se poderia dizer que a
catástrofe é uma situação crítica (“um ponto crítico”), dominado por um
acontecimento desestabilizador de formas, que modifica radicalmente as fron­
teiras dos antagonismos, do racional, do dizível, fazendo aparecer elementos
informalizáveis na ordem existente. Toda outra coisa que não seja um simples
apocalipse: uma deformalizaçâo da política e da sociedade, que não existe sem
evocar “a derrocada do sistema de classes” (a desclassificação) da qual fala
Hannah Arendt na gênese do totalitarismo.
Esses são os elementos que se poderiam valorizar na tradução política
da noção de catástrofe em “Estado de exceção”. Tomada emprestada ao jurista
e teórico Carl Schmitt - cujas opiniões e práticas conservadoras, depois
pró-hitleristas, eram, não obstante, opostas às de Benjamin9—, a noção de
Estado de exceção emprega a idéia do político própria de Benjamin e princi­
palmente toda uma aproximação da história que já subentende todo seu
trabalho sobre o barroco.
Na problemática de Carl Schmitt da Politische Theologie citada em várias
passagens de L 'origine du drame barroque, a noção de Estado de exceção é
inseparável de uma definição decisionista da política centrada sobre a figura do
soberano: “Soberano é aquele que decide no estado de exceção.” Nesse momen­
to, presa dentro de uma subida até os extremos, a relação política se desnuda,
revela sua verdadeira natureza: inimigo/amigo, ditadura e não “Estado de
direito”. Como “conceito-limite”, o Estado de exceção manifesta em “um caso-li-
mite”, a própria natureza do Estado: a ordem jurídica não repousa sobre o direito
(cf. Locke) nem sobre a norma (cf. a axiomatização da soberania de um Kelsen),
mas sobre o monopólio da decisão (Bodin, Hobbes). As relações entre exceção e
regra se encontram por isso mesmo invertidas, “o caso de exceção torna evidente,
da maneira mais clara possível, a essência do Estado...”, a exceção pode ser mais
importante do que a regra, como escreve Carl Schmitt10
Retomando essa noção de estado de exceção no Traurspiel, Benjamin se
refere à forma de historicidade e de poder próprios ao theatrum barroco. Cada
vez mais secularizada, esquartejada entre o mundo e a transcendência, a história
i se revela representação e acontecimento, voltando à figura do soberano: “O

114
soberano representa a história. Ele tem em mão o acontecimento histórico, como
um cetro.”11. Mas essa soberania só aparece sobre o fundo da catástrofe, em uma
espécie de círculo vicioso próprio da política barroca: a função do soberano
consiste precisamente em evitá-la. Daí esta figuração barroca do poder forte­
mente ambíguo: a “razão de Estado” entre a tirania e a graça.
Ambíguo, no sentido forte da palavra. Pois essa política barroca só
acontece na figura estética polissêmica e dúplice da alegoria que “propõe aos
olhos do observador a face hipócrita da história como paisagem originária
petrificada".12 Ta! figura saturniana da história só aparece sobre o fundo da
perda dos sentidos, das referências, sobre o fundo de uma história fragmenta­
da, em ruínas, estranha à arte “clássica”. História destotalizada, sem síntese,
condensada dentro da subida aos extremos. Arte da não-liberdade dos homens
e de uma ambigüidade irredutível em que ó ser e a significação jamais
coincidem, a alegoria é a encenação da política como catástrofe.
Que a catástrofe seja posta em cena condiciona precisamente a grande
alegoria do “anjo da história” da tese IX. Mas ela deve também ser refletida,
pensada. Por conseguinte, para escapar da dupla armadilha de um marxismo
economista e positivista e do historicismo dos vencedores, Benjamin se vê
forçado a uma dupla escrita, a uma dupla linguagem: marxista dialética e
teológica não-dialética, que faz toda a riqueza e ambigüidade das teses e que
aparece desde a Tese 1 na história como jogo de xadrez, como dispositivo
estratégico.

A catástrofe e o tempo atual: a história como dispositivo e experiência

Criticar o historicismo, erigir o estado de exceção em regra é opor à


categoria de progresso própria à modernidade uma categoria totalmente
diferente: a da atualização ou de “tempo atual” de no-presente (Jetztzeit). Pois,
como o esclarece a nota A, o vínculo causai (Kausalnexus) entre diferentes
acontecimentos e momentos do tempo nunca foi, por si mesmo, indício de
historicidade. Um acontecimento pode se tornar histórico séculos depois, no
momento em que ele entra “em constelação no tempo” com o tempo atual,
único lugar de "salvação” do passado.
Tal torção no tempo, em que o “presente se volta para trás”, submete o
materialismo histórico a uma dificuldade estrutural que Benjamin enuncia
nestes termos: “Pode-se considerar que um dos objetos concernentes ao
método dèste trabalho é fazer a demonstração de um materialismo histórico
que teria anulado a idéia de progresso.”13 Tarefa, em suma, muito difícil que
chama um método indireto, essa dupla linguagem das teses que não cessou de
alimentar as antinomias interpretativas de um Benjamin alternativamente
marxista e amigo de Brecht para uns, judeu e amigo de Scholem para os
outros. Como pensar simultaneamente o marxismo e uma certa teologia
messiânica sem “tornar marxista” a teologia ou “teologizar” o marxismo?
Essa questão preside a tese I que constrói a história por meio do
dispositivo estratégico de um autômato jogador de xadrez que acharia a cada

115
jogada a resposta de seu adversário. Mas os dados são falsos: no dispositivo do
jogo de xadrez o boneco que joga é, na verdade, manobrado por "um anão
corcunda”, campeão de xadrez, que puxa os cordéis. Na filosofia, o mesmo
dispositivo é exigido pela regra, mas invertido: o “boneco” materialismo
histórico pode “enfrentar, não importa que adversário, por mais que ele tenha
a seu serviço a teologia Por que esse estranho aparelho onde a luta de classe
é como que dublada por essa problemática da “felicidade”, da “redenção” e do
“messianismo” própria ao anão teológico? Simples metáfora descoberta termo
a termo? Tentativa de secularizar o religioso, como poderia sugerir uma
observação de Benjamin, onde “o ideal de uma sociedade sem classes” se
aproxima da “secularização do tempo messiânico”?
Para dizer a verdade, como os trabalhos já mostraram, parece que a
teologia não é “o centro secreto” do materialismo histórico, segundo a
expressão de K. H. Greffrath, mas o elemento teórico que permite criticar o
historicismo, reabrir certas categorias marxistas autorizando uma nova com­
preensão do tempo histórico próprio ao “estado de exceção”. Situação onde o
poder “messiânico”, a esperança e a felicidade “são muito delicados” (tese II).
O próprio Benjamin não escreve: “Na rememoração (Eingedenken), fazemos
uma experiência que nos impede de compreender a história de maneira
fundamentalmente ateológica”?14 Lembrança-rememorante ou redenção: a
teologia percorre, à sua maneira, a forma de um excesso de pensamento em
relação a todo historicismo, crê em uma dissimetria no dispositivo estratégico
do jogo de xadrez: para ganhar, convém romper toda “empatia” com os
vencedores. O que permite reintroduzir uma historicidade presente no passa­
do: “A época marca o passado com seu sinal e o conduz à redenção” (tese II).
Em outras palavras, a teologia indica a possibilidade de uma história aberta
onde o “tempo inconstrutível” do “Bild”, do sofrimento, do fracasso, do ódio
ou da esperança seria a condição de uma construção histórica não-cronológica.
A história não é apenas uma memória, um saber, mas também uma experiência,
e é apenas no momento último da redenção que “cada um dos instantes vividos
se transforma em uma citação à ordem do dia” (tese III).
Nessa espécie de “escrita do desastre” das teses, Benjamin não reencon­
tra no pensamento uma situação análoga àquela que ele descreve tão bem, no
caso de Kafka: “O mundo de Kafka, muitas vezes tão sereno e atravessado
pelos anjos, é o exato complemento de sua época que se prepara para suprimir
por massas inteiras os habitantes do planeta. A experiência que corresponde à
de Kafka, indivíduo privado, só poderia ser adquirida pelas grandes massas, na
hora de sua própria destruição”.15 Lucidez de Benjamin: o estado de exceção
não é uma exceção, uma monstruosidade irracional, um simples desatino. A
tese XI insiste sobre o “aspecto tecnocrático” do fascismo, o que o assemelha
a uma determinação da técnica como simples dominação da natureza, o “que
faz prever o pior”.
À beira dessa catástrofe, a conceitualidade tradicional vacila em proveito
de uma conceitualidade ampliada que permitiria constituir uma “arqueologia
do moderno” em todos os seus aspectos humanos e inumanos, esse projeto

116
dos textos escritos sobre Baudelaire e do Passagen-Werk. Também, é a
propósito de Baudelaire, esse pintor de uma “modernidade intempestiva”, na
contracorrente das modernidades do progresso, que a catástrofe apresenta sua
última visagem, a do “eterno retorno” da mesma, da permanência e da
reprodução do existente: “É preciso basear o conceito do progresso sobre a.
idéia de catástrofe. Que as coisas continuem á ‘ir assim’, eis a catástrofe. Isso
não é o que vai acontecer, mas o estado das coisas, dado a cada instante. 0
pensamento de Strinberg: ‘O inferno não é, de maneira alguma, o que nos
espera - mas esta a vida aqui.”'16 Portanto, face a essa história, a “salvação”
não seria mais trazer sobre o todo, o sentido, o futuro messiânico de uma
redenção da humanidade: “Ele se prende à pequena falha na catástrofe
contínua.” 17 Será que Benjamin não estaria, nesse caso, nos indicando nossa
pós-história?

• As Thèses surle Concept d'histoire foram traduzidas para o francês por Maurice de Candillac
em Poésie et Révolution, Lettres Nouvelles, t. 2. Existe, igualmente, uma tradução de Pierre
Missac, que eu utilizei muitas vezes aqui e que foi publicada em Tempsmodernes (1947).

► O livro coletivo Benjamin et Paris (Ed. du Cerf) comporta uma bibliografia das obras
bastante numerosas consagradas a Benjamin. Consultei-as. Pode-se, igualmente, consultar a
bibliografia crítica de Momme Brodersen (cerca de 200 págs.): Walter Benjamim, Bibliografia
critica generale, 1913-1983, Palermo, Centro Internazionale Studi di estetica.
Abreviaturas utilizadas: GS, Gesammelte Schriften. Suhrkamp; PW,
Das Passagen-Werk (tomo V de GS); CB, Charles Baudelaire, Payot; Gl e G2,
Correspondence, 2 1, Aubier.

Christine BUCI-CLUCKSMANN.

NOTAS
1. Karl Kraus, no Cahier de l ’H erne, consagrado a Karl Kraus.
2. A propósito dessa situação, notamos que Benjamin só critica diretamente a socialde-
mocracia. Mas, como numerosos comentaristas observaram (entre eles Tiedemann), as teses se
referem implicitamente à crítica da política dos partidos comunistas e ao pacto germano-sovié-
tico. Na redação em francês das teses (GS, 1.3, p. 1264), Benjamin critica “a confiança cega no
Partido” e, na correspondência (C, 2, 318), confessa “sua inimizade feroz contra o otimismo
hipócrita de nossos líderes de esquerda”.
3. PW, p. 1.181.
4. GS, 1.3, p. 1.236.
5. CB, p. 214.
6. GS, 1.3, p. 1.246.
7. Sobre essa problemática da revolução copernicana entre passado e presente, ver o
capítulo N de Passagen-Werk, inteiramente consagrado à teoria do conhecimento histórico e ao
problema do progresso. Sobre o presente como momento interpretativo e crítico do passado: “É

117
o presente que polariza o acontecimento em pré e pós-história” (p. 588). Sobre a catástrofe como
“categoria fundamental da história”, cf. p. 593.
8. Scholem, Le messianlsme Juif, Calmann-Lévy, p. 31.
9. Nos anos de Weimar, tratou-se de um acordo metodológico. Cf. a carta de Benjamin a
Carl Schmitt de dezembro de 1930 (GS, 1.3, p. 887).
10. Politische Theologie, Berlim, Duncker & Humbolt, Verlagsbuchhandlung, 1968.
11. GS, 1.1, p. 245.
12. GS, 1.1, p. 343. A alegoria é “uma escrita emocional” dotada de uma multiplicidade
de significações, irredutivelmente ambígua. Sobre esse ponto, reenvio ao meu livro: La raison
baroque, de Baudelaire a Benjamin, Calilée, 1984.
13. PW, p. 574
14. GS, 1.3, p. 1.235.
15. C, 2, p. 150.
16. CB, p. 242.
17. Ibid

BENTHAM, Jeremy, 1748-1832


Introdução aos princípios da morai e da legislação, 1789

J. Bentham é certamente conhecido por ter desenvolvido, sem dúvida, o


enunciado mais completo do utilitarismo jurídico e político. Ainda é preciso,
para explicitar a significação desse utilitarismo, construir sua sistemática ou,
em outras palavras, ver como, do “princípio da utilidade”, Bentham pretende
deduzir uma concepção do direito e uma teoria dos governos. Desse ponto de
vista, é a Introduction aux príncipes de la moral et de la législation,
(.Introdução aos princípios da moral e da legislação), quando analisada na
edição de 1789 (onde Betham junta, a um texto redigido desde 1780, uma nota
sobre as Declarações Americanas dos Direitos do Homem), que melhor es­
clarece as articulações do "sistema egoísta” (Jouffroy, Cours de droit naturel,
lições XIII e XIX) e permite mais facilmente medir seu alcance político.
A Introdução se abre com a colocação do "princípio da utilidade”: o
bem-estar (a felicidade) é o fim último do homem, e, por conseguinte, a busca
do prazer e a fuga da dor constituem os motivos de todas as ações. Mesmo que
esse ponto de partida permita seguramente situar Bentham na posteridade
intelectual de Hobbes (o que fazem Jouffroy e, depois dele, todos os co­
mentaristas), é preciso, no entanto, registrar que historicamente seus ins­
piradores diretos, a quem ele atribui o mérito de lhe ter feito descobrir a
“filosofia prática”, foram Helvetius e Beccaria. Em De VEsprit (Do Espírito),
Helvetius fazia da “lei do interesse” a analogia, para o universo moral, das leis
do movimento no universo prático. Em seu tratado Des délits et des peines
{Dos delitos e das penas), Beccaria retomou a analogia e daí tirou conseqüên­
cias para a legislação (principalmente penal), confiando-lhe a tarefa de “condu­
zir os homens à maior felicidade ou à menor infelicidade possível segundo o

118
cálculo dos bens e dos males desta vida”. Bentham, fazendo do princípio da
utilidade a base da moral e da legislação, entendia claramente estar continuan­
do a obra do marquês italiano, “primeiro evangelista da razão”; ao intitular sua
obra Introduction aux príncipes de la morale et de la législation, pretendia
ele, evidentemente, prestar homenagem à Enquéte sur les príncipes de la
morale (Investigação sobre os princípios da moral), onde Helvetius lhe
aparecia como demonstrando a fecundidade do empirismo em matéria de
filosofia prática (sobre as opções filosóficas, empiristas e nominalistas, de
Bentham, cf. El Shakankiri, 1970, primeira parte).
A originalidade de Bentham consistirá, portanto, menos no estabele­
cimento do “princípio da utilidade” do que na vontade de tirar daí certas
implicações novas. No domínio do direito penal, a Théorie des peines et des
récompenses (ed. Dumont, t II) segue plenamente Beccaria, tanto pela retomada
do princípio de proporcionalidade entre o delito e a pena, como também por sua
condenação da pena de morte. No entanto, cabe a Bentham o mérito de ter
desenvolvido uma vasta reflexão sobre o encarceramento e de ter reclamado uma
reforma do sistema penitenciário que transformaria esse sistema de acordo com
o princípio de utilidade, evitando que o encarceramento simplesmente conse­
guisse tornar o encarcerado ainda mais nocivo ao bem comum.
De sua Mémoire sobre as prisões (ed. Dumont, I, p. 247 e segs.), a
posteridade, na maioria das vezes, só reteve a concepção inquietante da prisão
como “um monstro de milhares de olhos”, onde os vigilantes tinham “a
faculdade de ver mediante uma olhada tudo o que se passava” e onde os
condenados, sabendo-se constantemente sob o olhar de um observador invisí­
vel em sua torre central de postigos gradeados, deveriam, pouco a pouco,
perder “a capacidade de fazer o mal”, perder até mesmo “o pensamento de
querer isso”. Além disso, Bentham também insistia sobre a. necessidade de
humanizar o encarceramento, para evitar sofrimentos inúteis e perigosos para
a saúde do prisioneiro, e de fazê-los administrar, como as empresas, fechando
contratos com particulares: um homem que "trata com o governo” e se
encarrega dos prisioneiros a “tanto por cabeça” empregará seu tempo e sua
profissão “em proveito próprio”, evitando, assim, a severidade inútil (que não
lhe servirá para nada), mas também os desperdícios nocivos aos interesses da
sociedade. Descobrindo uma fórmula, que certas pessoas aceditam ter inven­
tado hoje em dia, tatando da “privatização”, Bentham se limitava, na verdade,
a inscrever a questão da administração das penitenciárias dentro de um quadro
global do problema econômico - terreno no qual, segundo uma outra dedução
operada a partir do princípio da utilidade, ele se juntou aos defensores do
liberalismo para julgar que o interesse particular é a fonte mais eficaz de um
crescimento da riqueza que beneficiará definitivamente o maior número de
pessoas (cf. Manueld'économie politique, ed. Bowring, t III, e Príncipes de
législation et 1’économie politique, págs. 117-149).
Nas ocasiões em que Bentham se torna, em compensação, plenamente
original em relação a seus mestres, é então que ele suscita uma crítica muito
severa das teorias do direito natural e de seus prolongamentos políticos. Em

119
Oxford, Bentham havia escutado Blackstone, o discípulo de Locke, ensinar que
existe uma lei natural compreensível para a razão humana, de valor universal,
e em virtude da qual todo homem possui, em estado natural, direitos impres­
critíveis que os governos, nascidos de um contrato firmado entre os homens,
não poderiam esquecer nem deixar de respeitar; em resumo, Blackstone
pretendia manifestar que o alcance político do jusnaturalismo moderno se
situava no reconhecimento absoluto dos direitos do homem. Ora, o capítulo
III dos Príncipes se opõe diretamente às teses que pretendem fazer da lei
natural, e não da utilidade, o princípio da legislação: dizer que “há uma regra
eterna e imutável do direito”, evocar o “direito natural, a eqüidade natural, os
direitos do homem, etc.” é, com efeito, julgar arbitrariamente que tal ação é
boa ou má “não porque ela aprove ou contrarie o interesse daqueles em
questão”, mas porque "ela agrada ou desagrada àquele que julga”.
O princípio do direito natural é, na verdade, apenas um “princípio de
simpatia ou de antipatia” —já que aqueles que se valem do direito natural e
da lei natural só fazem, graças a essas noções abstratas que são puras ficções
(pois - o empirismo é obrigatório —, o que é um raciocínio que não se apóia
sobre os dados, variáveis e relativos, dos sentidos?) “ditar seus sentimentos
como leis e se arrogar o privilégio da infalibilidade” (Dumont, p. 9 e seg.). Na
realidade, a própria natureza de nossas faculdades de conhecimento, cujo
funcionamento supõe um trabalho sobre os dados dos sentidos, exclui toda
dedução, apenas pelo raciocínio, de regras ou de leis que estariam inscritas
eternamente na consciência do homem como tal. Se a condição natural do
homem é a sensibilidade, seus únicos sentimentos eternos são a procura do
prazer e a fuga da dor - e portanto o político (o “legislador”), longe de ter que
especular sobre uma pretensa lei natural, anterior às leis positivas, e com a
qual essas leis deveriam estar de acordo, buscará somente a melhor harmoni­
zação possível, a melhor combinação possível entre os prazeres e as penas
(Bentham retoma aqui a noção de Beccaria de "aritmética política” para definir
a atividade política como cálculo dos prazeres e dos sofrimentos, cujo resulta­
do deve ser conseguir identificar o prazer do indivíduo com a felicidade e o
equilíbrio da sociedade). São, portanto, as leis positivas, arrumadas pelo
legislador com o intuito de "maximizar" ou “maximar” os prazeres, as únicas
que “dão existência aos direitos” (ed. Dumont, I. p. 47): “As leis reais dão
nascimento aos direitos reais”, enquanto o direito natural é apenas “uma
criação da lli natural", que nada mais é do que uma ficção - logo, já que ex
nihilo nihilsequitur, o direito natural não é nada. Do princípio da utilidade se
deduz, portanto, segundo uma argumentação da qual, vê-se, a força principal
é uma teoria empirista do conhecimento, uma definição do direito como o que
apenas a lei positiva cria, determinando as condições de felicidade da maioria.
Compreende-se, por conseguinte, porque a obra de Bentham pôde ser inter­
pretada como uma etapa decisiva em direção ao positivismo jurídico (El
Shakankiri, 1970, M. Villey 1978-1079).
É preciso, então, salientar como, nesse contexto, Bentham deverá neces­
sariamente entrar em conflito com os defensores dos direitos do homem. É

120
significativa, a esse respeito, ãNota ünal acrescentada, quando da publicação
em 1789, aos Príncipes e consagrada a uma crítica das Declarações america­
nas. Também significativo é o fato de que Bentham, durante muito tempo
defensor da Revolução Francesa, amigo de Mirabeau, de Brissot e de Talley-
rand, homenageado como “cidadão francês” pela Assembléia Nacional em
1792, tenha acabado por consagrar um opúsculo, em 1795, para criticar as
Declarações francesas como "obra metafísica” (Sophismes anarchiques, Exa­
me crítico das diversas Declarações dos direitos do homem e do cidadão). Nas
Declarações, ele denuncia um "jargão vazio de sentido” (pois não há direitos
anteriores às leis) e uma empreitada mais perigosa do que benéfica. O pretenso
benefício das Declarações seria, com efeito, segundo seus autores, julga
Bentham, prevenir toda invasão das leis positivas sobre a liberdade dos
cidadãos ou toda ameaça dessas mesmas leis à sua igualdade. Ora, não só essas
Declarações são ineficazes e não impedem de maneira nenhuma tais ameaças
e tais invasões, mas também são geradoras da anarquia por causa da impreci­
são de suas noções: dizer que os homens têm direitos naturais à igualdade e à
liberdade, sem maiores esclarecimentos, é convidar o indivíduo a se levantar,
em nome dessa igualdade e dessa liberdade abstratas, contra as leis existentes,
a negar essas leis reais em nome de uma fictícia lei natural; convida-se, assim,
cada um a erigir seu capricho em uma pretensa lei diante da qual as leis
positivas deveriam se destruir. A subversão contínua da ordem estabelecida é,
por conseguinte, a subversão do próprio princípio das Declarações. Logo, teria
sido mais sensato dizer claramente, dentro do código das leis positivas, que
tal lei não deve ameaçar tal liberdade nem destruir tal igualdade: mais eficazes,
essas disposições evitariam, além disso, a anarquia que suscitam as Decla­
rações, deixando lugar demais para o arbitrário na avaliação daquilo que é
prejudicado. E Bentham empreendeu, então, sobre essa base, uma crítica
detalhada dos diferentes direitos proclamados pelas Declarações.
Os Sophismes anarchiques de 1795 limitam, portanto, a retomar, contra
os textos franceses, a argumentação já desenvolvida, na Introduction, contra o
jusnaturalismo de Blackstone: a referência a pretensos direitos naturais do
homem é animada apenas por um princípio de simpatia ou de antipatia, segundo
o qual, face a uma lei que nos desagrada, nós a denunciamos como um atentado
a nossos direitos imprescritíveis. Essa continuidade é importante: dos Príncipes
de morale et de législation aos Sophismes anarchiques, encontra-se uma mesma
tese que se desenvolve até suas últimas conseqüências. Se a natureza dessas
conseqüências pode legitimamente inquietar em um tempo em que se sabe que
vínculo estreito reúne a negação dos direitos do homem e a gênese intelectual
do fenômeno totalitário, não fica menos patente que essa crítica das Declarações
não seja separável do conjunto do “sistema egoísta” de Bentham. A questão
colocada, então, é saber se fazer do interesse bem compreendido o único motor
de um sistema jurídico-político implica necessariamente tais conseqüências.
Concordar-se-á facilmente que, sem dúvida, isso não é evidente se se pensar, por
exemplo, que Fichte, no Fondement du droit naturel, de 1796, faz exatamente
do egoísmo o motor essencial da “máquina política”, distinguindo radicalmente

121
direito e moral e conserva, no entanto, um sentido: a idéia (VIdéé) dos "direitos
originais do homem como tal”. Portanto, o que seria preciso colocar em questão,
em Bentham, é o que o impede de conferir à noção do direito natural um estatuto
qualquer que permita resistir à sua expulsão como ficção metafísica. Ora, desse
ponto de vista, o lugar concedido ao egoísmo, ao contrário do que parece, é
menos determinante do que o do empirismo- que serve de moldura a toda
reflexão. Com efeito, no contexto de tal empirismo, como se poderia admitir, com
qualquer estatuto que seja, uma referência aos valors que figuram como
universais? Reportar-se-á, a esse respeito, ao texto muito instrutivo intitulado De
Vinfluence des temps et des lieux en matière de législations (ed. Bowring, 11,
e parcialmente em Príncipes de législation et d ’economie politique, págs.
84-115): pesquisando aí os princípios de variação das leis, Bentham sustenta que
todo enunciado prescritivo pode se tornar lei, desde que o “valor dos desgostos”,
aqui e agora, não prevaleça sobre o das "satisfações". De fato, já que o único
princípio que deve presidir o estabelecimento de uma legislação é o da “maximi-
zação” da felicidade, e que as condições de realização da maior felicidade possível
variam segundo o tempo, o lugar, as sensibilidades e os costumes, nada poderia
valer, de maneira absoluta, como uma lei justa: é preciso somente “examinar as
leis por seus efeitos", quer dizer, quanto à sua capacidade de aumentar a
felicidade do maior número possível, e, por conseguinte, as melhores leis
possíveis da atualidade não seriam as mesmas do passado, nem as melhores leis
do passado seriam ainda hoje as melhores. Nessas condições, não se pode,
evidentemente, referir a normas imutáveis, o princípio da utilidade (da felicidade
da grande maioria) sendo, ele próprio, apenas um princípio de variação: como
todas as idéias gerais, a idéia do útil (quer dizer, segundo Bentham, do justo) só
se forma em nós a partir daquilo que a experiência repetida faz a nossa
sensibilidade provar como um prazer - sentimento de prazer què não pára de
variar histórica e geograficamente. O empirismo filosófico de Bentham conduz,
portanto, a um relativismo absoluto dos valores jurídicos e políticos, que exprime
bem a última página da Introduction: “Tudo se relaciona com os prazeres e com
os sofrimentos... De tal ou qual ato resulta essa impressão de sofrimento ou de
prazer. Não acreditem em mim, acreditem na experiência e, principalmente, na
de vocês. Entre duas maneiras opostas de agir, você quer saber qual deve ter a
sua preferência? Calcule seus efeitos, tanto para o bem quanto para o mal, e
decida pela que lhe proporcionará a maior soma de felicidade”. Onde quer que
a reflexão sobre os valores morais e jurídicos se estabeleça sobre essas bases, a
destruição da idéia moderna do direito natural, com qualquer estatuto que se
possa concebê-la, é inevitável, e com ela a redução dos direitos do homem a
simples ficções abstratas.
É desse ponto de vista que os Príncipes de morále et de législation
constituem uma obra politicamente preciosa, por causa de sua coerência interna:
ela manifesta como, em certos contextos intelectuais, uma referência aos direitos
do homem se torna impossível; dizendo de outra maneira: o empirismo utilitaris-
ta de Bentham é negativamente significativo de certas condições de possibili­
dades teóricas de um pensamento dos direitos do homem.

122
• Principies o f Morais and Legislation, in ed. J. Bowring (The Works o f Jeremy Bentham, 2*
vol. 1838-1843, retomado em 1962, Nova Iorque, Russel & Russel), 11; Príncipes de léglslation,
in ed. E. Dumont (Ouvres de Bentham, 3 vol., Bruxelas, Hauman & Cie., 1840), 11 (de maneira
geral, Dumont traduziu mais as idéias do que os próprios textos, mas sua tradução foi avalizada
por Bentham); Príncipes de léglslation et d ’economie politique. Paris, Cuillaumin, com uma
introdução de S. Reffalovitch, 1888 (esse volume reúne com utilidade o essencial dos Príncipes,
o ensaio De 1’in/luence des temps ei des lieux en matière de législation e o Manueld'economie
politique)-, Sophismes anarchiques, in ed. Dumont, I, p. 547 e segs.

► M. El Shakankiri, La philosophie Juridique de Jeremy Bentham, Paris, Librarie générale de


droit et de jurisprudence, 1970, Id., J. Bentham: Critique des droits de Phomme, in Archives de
Philosophie du droit, 1964, págs. 130-152; H. Laski, Political Thought in England: Locke to
Bentham, Londres, 1950; E. Halévy, La formation du radicalisme phllosophique, Paris, 3 vol.,
1901; M. Villey, Philosophie du droit, Paris, Dalloz, 2 vol., 2‘ ed., 1978-1979, 86 e segs., 188.

A la in RENAUT.

BERNSTEIN, Eduard, 1850-1932


Os pressupostos do socialismo e as tarefas da socialdemocracia,
1899.

Durante mais de meio século o epíteto “revisionista” foi considerado


infamante dentro dos partidos comunistas e socialistas. A primeira tentativa
bem-sucedida de adaptação da doutrina socialista aconteceu no Congresso de
Bad-Godesberg da Socialdemocracia alemã (1959), mais de sessenta anos
depois da primeira formulação do revisionismo. A vitória dos adversários desta
corrente de pensamento foi a tal ponto total que eles ficaram em condições de
impor sua própria interpretação do fenômeno. Assim, pode-se ler no verbete
“Revisionismo” da Encyclopaedia Universalis que “se trata da revisão do
marxismo pelos defensores de uma solução reformista trazida à luta de classes,
e o modo de ação desses revisionistas é o oportunismo, quer seja da direita ou
de esquerda, ou então de direita e de esquerda” (Kessel, 1968, p. 203). Prova,
se isso fosse necessário, de que é legítimo escrever sobre o assunto sem nunca
ter lido uma linha de Eduard Bernstein.
Para reencontrar a inspiração dessa corrente de pensamento, é necessá­
rio remover as sucessivas camadas de ferrugem acumuladas por decênios de
polêmicas, exumar os textos fundadores, descrever a conjuntura que, no fim
do último século, as produziu e percorrer a biografia tão singular do militante
que as escreveu. Pois o homem que provocou tanta polêmica foi, antes de tudo,
um socialista ortodoxo e resoluto.

123
Nascido em 1850, em Berlim, numa família judia de tradição liberal,
Eduard Bernstein se aproximou do socialismo desde 1870. Democrata antes
de tudo, militante apaixonado, resistiu à corrente autoritária que dominava, na
época, o socialismo alemão, dividido, sectarista e, às vezes, anti-semita. Aderiu
ao partido “eisenachiano”, que se opunha à Associação Geral Alemã dos
Trabalhadores, fundada por Ferdinand Lassalle. Seguiu a corrente geral que,
na época, empurrava os jovens liberais para o socialismo, única força, a seus
olhos, capaz de realizar o ideal democrático. No Congresso da Unificação
realizado em Gotha, em 1875, entrou para o comitê diretor do novo partido.
Em 1878, Bismarck dissolveu as organizações socialdemocratas: Berns­
tein se exilou na Suíça. As circunstâncias o levaram para o marxismo. Em 1881,
seis meses depois da ressurreição do partido alemão sob a direção de August
Bebei, Eduard Bernstein, instalado em Zurique, foi nomeado, com Karl Kauts-
ky, responsável pelo Sozialdemokrat, semanário central e oficioso do SPD.
Bernstein contribuiu amplamente para a vitória das teses marxistas.
1888: Bernstein foi expulso da Suíça com o conjunto de redatores do
Sozialdemokrat. Instalou-se em Londres, na sociedade de emigrados e de
revolucionários que freqüentavam a grande casa de Engels, na Regent Street
Tornou-se íntimo, e depois secretário, de Engels, antes de ser preferido a
Kautsky como executor testamentário pelo patriarca do socialismo. Sobre os
penhascos de Eastbourne, em um dia de tempestade, dipersou ao vento as
cinzas do companheiro de Marx, conforme suas últimas vontades.
No entanto, depois que Engels morreu, Bernstein, durante vários anos,
alimentou dúvidas cada vez mais fortes a respeito da doutrina revolucionária.
Foi atormentado pela democracia vitoriana, puritana e liberal, pelo progresso
e sucesso de um sindicalismo em via de integração: a pátria do industrialismo,
antigo modelo de Marx, não se curvava mais aos esquemas do Manifesto
Comunista.
Em 1890, a direita foi derrotada nas eleições alemãs. O SPD triplicou
seus votos em seis anos: um milhão e meio de sufrágios, 20% dos votantes e
35 deputados. As leis de exceção foram revogadas. O Partido Socialista se
encheu de efetivos, cerca de três mil, penetrou os Conselhos Municipais,
desenvolveu sindicatos e cooperativas. Tudo isso conduziria afinal a Alemanha
ao caminho seguido pela Inglaterra? Nesse caso, as proclamações revolucioná­
rias não passariam de perigosas abstrações, justamente um pretexo para os
partidários da repressão.
No outono de 1896, Bernstein separou-se definitivamente da crença revo­
lucionária e começou a publicação de uma série de artigos sobre os "Problemas
do Socialismo”, primeira exposição completa e pública de seu revisionismo. De
Londres, onde o governo alemão o mantinha em exílio, ele mal percebeu o
tumulto que sua atitude provocou, tanto dentro quanto fora do partido. Em
outubro de 1898, o Congresso de Stuttgart debateu longamente as teses
revisionistas. Apesar de nitidamente minoritário, Bernstein não foi excluído: uma
moção pediu-lhe que enunciasse de maneira mais completa seu pensamento, para
que o próximo congresso pudesse debatê-lo e julgá-lo. Vem daí seu livro Os

124
pressupostos do socialismo e as tarefas da Socialdemocracia e a resposta de
Kautsky, Bernstein e o Programa Socialdemocrata, Uma Anticrítica, os dois
publicados em 1899*, quando Bernstein tinha 49 anos.
0 revisionismo não se propõe a destruir ou a substituir o marxismo; visa
simplesmente a inventariá-lo, criticá-lo e continuá-lo.
Bernstein recusou lançar-se em uma dessas discussões afetadas sobre os
conceitos da economia marxista, que sempre foram a alegria dos intelectuais
socialistas e comunistas. Se discutiu, em algumas páginas, a teoria do valor-
trabalho, foi para mostrar que a questão não apresenta muito interesse: “A
teoria do valor não permite mais medir o grau de justiça ou injustiça, na
repartição do produto do trabalho, do que a teoria atômica permite apreciar a
beleza ou a feiúra de uma obra de arte” (Bernstein, 1974, p. 77); Bernstein foi
modesto: confrontou os prognósticos da doutrina marxista com a evolução das
sociedades industriais. Esse método intelectual é suficientemente raro na
literatura marxista para que se lhe renda homenagem.
O pensamento revisionista se estrutura primeiro em torno de três teses
analíticas:
1) A concentração das empresas não é nem tão maciça, nem tão geral
como havia predito a vulgata marxista. - “Em numerosos setores, as peque­
nas e médias empresas são tão dinâmicas quanto as grandes empresas” (Ibid.,
p. 92). Bernstein é o primeiro e quase o único teórico marxista a colocar em
dúvida o axioma segundo o qual a grande empresa é sempre mais produtiva
do que a pequena. Em outras palavras, a grande empresa “engendra as
pequenas e médias empresas (...). Apesar das transformações contínuas na
estrutura e na composição interna das empresas, tudo se passa como se a
grande empresa não absorvesse continuamente as pequenas e médias empre­
sas, mas como se aquelas se desenvolvessem paralelamente” (ibid., p. 94).
2) Não há proletarizaçâo das classes médias. - Essas “não estão, em
nenhuma parte, diminuindo; ao contrário, nós as vemos aumentar quase em
toda parte em proporções consideráveis. O que elas abandonam à grande
empresa, elas reencontram pelo sistema de ascensão social, e a difusão da
riqueza geral, provocada pela industrialização, compensa o movimento de
proletarizaçâo” (ibid., p. 103).
3) As crises que o sistema capitalista pode conhecer não conduzem à
sua derrocada. - Essa terceira tese resume e prolonga as duas precedentes.
Bernstein não contesta nem a tendência à baixa taxa de lucro, nem a superpro­
dução, nem a existência de crises na sociedade capitalista. Mas, ao contrário
dos marxistas tradicionais, não negligencia os mecanismos que limitam seus
efeitos: “As depressões locais e parciais são inevitáveis, mas um bloqueio geral
do sistema permanece improvável” (ibid., p. 123). O regime capitalista está

* 1) Esses dois livros foram traduzidos para o francês em 1900. Sob os títulos Socialisme théorique
et Soclal-démocratie pratique para a obra de Bernstein, e Le Marxisme et son critique
Bernstein, para a obra de Kautsky (ed. Stock). Uma nova tradução da obra de Bernstein foi
publicada em 1974 pela Éditions du Seuil, com o título les Présupposés du Socialisme.

125
progressivamente conseguindo controlar o processo de extensão das crises por
meio do desenvolvimento do crédito, da ampliação dos mercados, da aparição
dos cartéis e da organização da produção.
A essas três teses analíticas correspondem três teses estratégicas. É a
crítica do programa e da prática socialistas:
1) O socialismo não se pode resumir à expropriaçâo dos capitalistas: o
proletariado deve manifestar sua aptidão para gerir empresas e aliar a
maturidade econômica à maturidade política. — Bernstein observa que “a
centralização das empresas constitui uma condição preliminar para a sociali­
zação da produção e da distribuição” (ibid., p. 128). Enquanto o fenômeno de
concentração industrial permanece longe de seu fim, a nacionalização das
empresas —mesmo se ela se limitasse às grandes e às médias - colocaria, ao
governo socialista, problemas de gestão e de administração humanamente
insustentáveis. Onde encontrar homens novos, capazes e formados, que deve­
riam, de um dia para outro, assegurar o enquadramento e a direção de um
setor público tão considerável? A observação é profética e vale por seu bom
senso. Aí também Bernstein se afasta do marxismo tradicional que vê nas
nacionalizações uma solução definitiva para todos os problemas. Ele procura
uma saída na educação progressiva dos trabalhadores e, fortemente impressio­
nado pela experiência das cooperativas britânicas, aponta, no sistema associa­
tivo, uma escola de administração indispensável ao proletariado.
2) O socialismo não poderia se resumir à ação e à dominação de uma
classe social, o proletariado. - A dinâmica econômica do capitalismo não
aboliu as classes médias. Se se limitar aos trabalhadores da indústria, o
proletariado se arrisca muito a permanecer uma classe minoritária. A não ser
que se conseguisse reaver uma definição mais ampla para ele e associar-lhe
outras camadas assalariadas e pequeno-burguesas; mas isso seria, disse Berns­
tein, "uma mistura extraordinária de elementos diversos, de camadas mais
heterogêneas do que era o “povo de 1789” (ibid., p. 131). Seja como for, o
Partido Socialista e os sindicatos, apesar de seu crescimento, permanecem
longe de conseguir organizar o proletariado no seu todo. Os socialistas deviam
firmar acordos com outras camadas sociais, pois algumas “se inclinam mais a
se aliar com os trabalhadores do que com seus opressores” (ibid., p. 191).
3) O advento do socialismo não pode, portanto, ser concebido como
uma ruptura brutal com a sociedade capitalista. - Trata-se, ao contrário, de
um processo durável de reformas progressivas.
O conjunto da análise conduz naturalmente Bernstein a reavaliar o papel
da democracia no discurso marxista tradicional. Ele não admite que as
instituições políticas de uma sociedade dividida em classes só possam exprimir
a ditadura de uma classe dominante. Em seu princípio, diz ele, “a democracia
é a ausência de dominação de classe, isto é, um estado social onde nenhuma
classe dispõe sozinha do privilégio político” (ibid., p. 172). O discurso marxista
quer que a democracia seja alternadamente considerada como um engodo ou
como um instrumento do qual o proletariado se deve apoderar apenas com o
fim de conduzir mais facilmente o combate revolucionário. Para Bernstein, ao

126
contrário, a democracia é um elemento central: mesmo no regime burguês, ela
nunca foi formal e seria um crime sacrificá-la à revolução. "A democracia é, ao
mesmo tempo, um meio e um fim. É um instrumento para instaurar o
socialismo e a própria forma de sua realização” (ibid., p. 174).
Quando discorre sobre o socialismo, Bernstein não hesita em invocar
Proudhon, o inimigo de Marx. É porque ele acredita na descentralização e no
federalismo: “A democracia deve, portanto, se basear em uma autonomia tão
ampla quanto possível, o que implica a responsabilidade econômica de todos
os organismos de gestão e de todos os indivíduos maiores. Senão seu aparelho
burocrático ultrapassará em complexidade o do centralismo absolutista".
(ibid., p. 185).
Essa descentralização passa pelos sindicatos, “que representam o elemen­
to democrático no seio da indústria” (ibid., p. 170), pelas cooperativas de
consumo, que preenchem o mesmo papel nos circuitos de distribuição, e, na
ordem política, pela autonomia comunal.
Bernstein repele sem apelação a própria idéia da ditadura do proletariado
e, sobre esse assunto, não pode compartilhar da serenidade de Kautsky, que
assegura: ‘‘Nós podemos tranqüilamente transferir para o futuro a solução
do problema apresentado pela ditadura do proletariado. Sobre esse ponto,
ainda é inútil nos darmos as mãos”(Kautsky, 1900, p. 320).
No fundo, o método revisionista pode se resumir em dois princípios: a
despeito de sua linguagem, o SPD não é revolucionário; apesar de suas contra­
dições, o capitalismo não funciona tão mal: a revolução não é possível; a despeito
de suas repressões, a democracia burguesa não é tão formal quanto afirma Marx,
e, quaisquer que sejam suas intenções, a violência da insurreição e a ditadura do
proletariado ameaçam as liberdades: a revolução não é desejável. Em outras
palavras, já que a evolução econômica não conduz a uma catástrofe que
engendrará fatalmente a revolução, o socialismo não poderia mais nascer auto-
maticamene do poder trabalhador e da expropriação dos capitalistas: a análise e
a ação devem afrouxar as tenazes das causalidades e das necessidades últimas.
Bernstein cita Lange (Bernstein, 1974, p. 53): “O raciocínio por antítese convém
sobretudo às deduções especulativas; não se pode aplicá-lo com tanta facilidade
e rigor aos fenômenos individuais e históricos.”
A crítica de Bernstein está historicamente mais próxima das fontes do
marxismo e, por isso, menos poluída com referências retorcidas à hagiografia*
política; ela pode também se exprimir sem excesso de precaução de estilo em
uma organização que conserva um gosto pelos sinceros debates de idéias: aí
ela vai mais fundo do que todas as revisões futuras.
Ele bagunça a análise, as teses e os postulados de Marx, se opõe a seus
próprios pressupostos, à motricidade teórica que subentende o pensamento
marxista - o princípio do socialismo científico como composição original e da
dialética hegeliana como método universal. “Pode-se distinguir no movimento
socialista moderno duas correntes principais que, segundo as épocas e sob

Hagiografia —ciência relativa à narração da vida dos santos.

127
formas diferentes, se opõem uma à outra. Uma se baseia nos projetos de reforma
elaborados pelos teóricos do socialismo: é construtiva. A outra extrai sua
inspiração nas sublevações revolucionárias: é destrutiva. Conforme as circuns­
tâncias, a primeira aparece como utópica, societária, pacifista, evolucionista, a
segunda como conspiradora, demagógica, terrorista {...). A teoria marxista tenta
uma síntese dessas duas correntes (...) mas um tal amálgama não significaria por
isso que a contradição seria ultrapassada: trata-se mais de um compromisso (...).
A teoria marxista encontra aqui esse caráter de dualismo do qual jamais se
desviará. É por isso que devemos procurar as razões pelas quais o marxismo nos
aparece a intervalos muito curtos sob aspectos diferentes” (ibid., p. 61).
A conjunção é com efeito muito pouco natural: para uma boa parte, o
“socialismo francês”, que Marx integra à “filosofia alemã” e à “economia
inglesa”, nasceu à parte das tradições de 1789, das quais ele não constitui, em
nenhum caso, a radicalização. Saint-Simon e Enfantin são explicitamente
muito reservados ao falar sobre os motins suburbanos, a sublevação popular,
os princípios jacobinos e Fourier, abertamente contra-revolucionário. Para
eles, a violência da insurreição não é nem um meio, nem uma meta. Unir o
socialismo à revolução tornaria a conduzir a uma síntese forçada que Marx
realizou desenvolvendo a dialética hegeliana.
Essas são para Bernstein a origem, a explicação, das contradições
social-democratas: “Duas teorias se confrontam: uma que dá preferência à
violência, outra que considera que a economia constitui o fundamento da
evolução social. Cada vez que vemos a segunda se retrair diante da primeira,
nós nos chocamos com uma sentença hegeliana (...). A dialética hegeliana é
muito mais perigosa pelo fato de nunca ser totalmente falsa. Ela se parece com
a verdade, assim como o fogo-fátuo se parece com a luz. Ela não se contradiz,
já que, segundo ela, cada coisa traz em si mesma seu contrário. Será que existe
contradição em passar, bruscamente, da análise econômica à violência? Não,
pois a própria violência é um fator econômico” (...). “Os malabarismos lógicos
do hegelianismo são brilhantes, radicais e espirituais. Como o fogo-fátuo,
revelam em seus vagos contornos perspectivas do além. Mas, se nos fiarmos
neles, só poderemos nos extraviar” (ibid., p. 67).
Da mesma maneira, a dialética justifica admiravelmente o desvio teórico-
prático; ela traz uma perspectiva mítica para atitude mais oportunista, garante
o fim da história e dá sentido a cada um dos atos mais anódinos; com ela, a
quantidade se transforma em qualidade, a prosperidade burguesa anuncia sua
própria ruína e a infelicidade do proletariado, um triunfo próximo. A dialética
autoriza todas as reviravoltas do pensamento e da ação, e as contradições do
adversário ou da realidade se enfraquecem em suas facetas. A dialética é uma
escolástica.
Nesse nível, Bernstein não propõe um ajuste no programa, mas um novo
questionamento das motivações, das fronteiras e da especificidade da socialde-
mocracia. Porém, tudo isso deve ocorrer dentro do marxismo e da fidelidade
a um partido “ao qual ele se atém com toda sua alma”.
A coalizão que, no plano ideológico, assegurou a derrota do revisionismo,

128
foi dirigida pelo centro ortodoxo. Esse encontrou em Karl Kautsky o doutor sutil
da lei marxista, capaz de dirigir a dialética complexa que reconcilia a teoria
revolucionária com uma prática quotidiana marcada pela prudência e pelo refor-
mismo. O centro recebeu o concurso da esquerda social-democrata e, principal­
mente, de Rosa Luxemburgo. Essa terceira corrente ocupou, no campo intelec­
tual, uma posição inversa à de Bernstein. "Que ela ouse aparecer como ela é”:
essa apóstrofe da peça Maria Stuart, de Schiller, Bernstein a lança à socialdemo-
cracía. Parafraseando a fórmula, a esquerda poderia resumir sua posição: "Que
ela se atreva a ser o que ela parece!” Onde Bernstein se propõe a adaptar a teoria
à prática, Rosa Luxemburgo reivindica o ajuste da prática à teoria.
Daí resultou um jogo de três personagens (direita revisionista, centro
ortodoxo e esquerda) que sç reproduzirá, regularmente, até nos detalhes das
argumentações), cada vez que um debate estratégico se abrir nos partidos
socialistas ou comunistas (cf. Bon, Burnier, 1974, pp. 255-300).
Todavia, a ortodoxia sem dúvida não teria alcançado um sucesso tão
durável se não tivesse podido obter o concurso de uma parte da corrente
reformista. Pouco preocupados com as questões teóricas foram os homens que
aceitaram a hegemonia ideológica do centro em nome mesmo de seu pragmatis­
mo: eles partilhavam, no fundo, as análises de Bernstein, mas não tinham
nenhuma vontade de se engajar em um debate teórico que poderia romper a
unidade do partido, limitar sua influência sobre a classe trabalhadora e, princi­
palmente, quebrar o compromisso graças ao qual eles asseguravam um controle
crescente do aparelho socialdemocrata: o partido os deixa praticar uma política
reformista, com a condição de aclamar os princípios revolucionários de vez em
quando. Um de seus dirigentes, Ignace Auer, confessou, sem reservas, a Berns­
tein: “Você acredita verdadeiramente que seja possível que um partido possuidor
de uma literatura velha de cinqüenta anos e uma organização velha de cerca de
quarenta anos efetue, num abrir e fechar de olhos, uma transformação de tal
amplitude? Mais especialmente, da parte dos círculos do partido, agir como você
pede significaria simplesmente fazer arrebentar o partido e espalhar para todo
lado o resultado do trabalho de tantos anos. Meu caro Ede, o que você reclama
não se decide, não se diz, apenas se faz" (carta de Ignace Auer a Bernstein,
citada in Rovan, pp. 102-103).
Essa justificação política da ortodoxia pega o revisionismo em sua
própria armadilha, pois ela condena em nome do pragmatismo e da eficácia. A
argumentação de Ignace Auer não tem réplica, mas inaugurou esse mecanismo
intelectual perigoso chamado, mais tarde, por George Orwell de “duplo
pensamento”. A teoria ortodoxa se torna indiscutível no sentido etimológico
do termo: uma espécie de mito criador, responsável e símbolo da unidade da
organização, ferramenta indispensável à mobilização, mas também à manipu­
lação das massas trabalhadoras. Ela ignora uma das advertências premonitó­
rias de Bernstein: a crença pseudocientífica na Revolução não se poderá
sustentar por muito tempo contra a realidade: é preciso substituí-la por uma
motivação ética enquanto ainda é tempo, e somente uma moral poderá fundar
a democracia e estabelecer o socialismo de maneira durável. Por ter recusado

129
essa advertência, a socialdemocracia pagará, vinte anos mais tarde, um tributo
muito pesado: uma vez a prospectiva pseudocientífica desqualificada pela
guerra, muitos dos militantes transferiram suas esperanças messiânicas para o
bolchevismo, enquanto outros reataram com o fascismo.
Enfim, a teoria ortodoxa impede toda reflexão sobre o exercício do poder:
para que se interrogar sobre a administração das empresas e da economia, a
produção agrícola, a autonomia comunal ou as instituições de um Estado
democrático se, no dia seguinte à “aparição” revolucionária, todas as contra­
dições sociais serão abolidas, pois os homens não serão mais os mesmos, e o
sistema econômico obedecerá a uma lógica diferente? Por não ter levado em
conta essa reflexão, em tempo hábil, a socialdemocracia alemã se viu desarma­
da em 1918, quando a derrota e a derrocada do Império alemão levaram-na ao
poder. E, no entanto, Kautsky assegurava: não há tática mais capaz de se
adaptar às circunstâncias do que a tática da socialdemocracia alemã. Está
preparada para toda eventualidade; ela conta tanto com a crise, quanto com a
prosperidade; tanto com a reação quanto com a revolução, tanto com as
catástrofes quanto com uma evolução lenta e pacífica (Kautsky, 1900, p. 308).
Depois de submetida à prova do tempo, da guerra, da revolução e da crise, esta
tática se revelará conveniente apenas a uma única situação: à administração
impotente de um grande partido da oposição.

• Socialisme théorique et social-démocratie pratique, P a ris , S to c k , 1 9 0 0 ; Les Présupposés


du socialisme, P a r i s , S e u i l , 1 9 7 4 .

► P i e r r e A n g e l, Eduard Bernstein et Vévolution du socialisme allemand, M . D id ie r , 1 9 6 1 ;


in E d u a r d
F r é d é r i c B o n , M i c h e l- A n t o in e B u r n i e r , Q u ’e lle o s e p a r a i t r e c e q u ’e l l e e s t , p o s t f a c e
Les Présupposés du socialisme, P a r i s , S e u i l , 1 9 7 4 , p á g s . 2 5 5 - 3 0 0 ; K a r l K a u t s k y , Le
B e r n s te in ,
marxisme et son critique Bernstein, P a r i s , S t o c k , 1 9 0 0 ; P a t r i c k K e s s e l , R é v i s i o n n i s m e in
Encyclopaedia Universalis, v o l. 1 4 , P a r i s , 1 9 7 2 ; R o s a L u x e m b u r g o , Ré forme ou Révolution?
Les lunettes anglaises, Le but final, P a r i s , S p a r t a c u s , 1 9 4 7 ; J o s e p h R o v a n , Histoire de la
social-démocratie allemande, P a r i s , L e S e u i l , 1 9 7 8 .

Frédéric B O N .

BÈZE, Théodore de, 1519-1605


Do direito dos magistrados, 1574

Théodore de Bèze, sucessor de Calvino na direção da Companhia dos


Pastores de Genebra, representou um grande papel na transformação e

130
consolidação das igrejas calvinistas no Reino da França e na Europa. O tratado
Du droitdes magistrais foi, verossimilmente, redigido em latim, na primavera
de 1973, antes de circular sob a forma manuscrita. Foi editado inicialmente em
francês, sem indicação de lugar nem de data, por causa da censura genebrina,
em Heidelberg e Genebra, em 1574. A tradução latina que lhe assegurou uma
maior difusão apareceu pouco depois. O tratado de polêmica que dá uma
instrução de ética política toma então o aspecto de uma obra de filosofia
política. Deve ser incluído entre os textos que são designados, depois de W.
Barclay, De regno etregali potestate..., Paris, 1600, como os “monarcômacos”
(os inimigos da monarquia).
R. Kingdon (1970, pp. XII-XL11I) descreveu de maneira muito precisa as
circunstâncias em que Bèze redigiu essas páginas. No dia seguinte ao de “São
Bartolomeu” (agosto-setembro de 1572), em Paris e nãs Províncias, Charles IX
e seu séquito se sentiam responsáveis e estavam diretamente empenhados no
que iria ocorrer, os refugiados franceses alfuíam a Genebra: as condições do
seu eventual retorno ao reino deviam ser negociadas. A questão da resistência
ao poder real foi colocada. Ao mesmo tempo, Bèze tomava parte nas negociatas
que precederam a possível eleição de Henrique, duque de Anjou, como rei da
Polônia: numerosas comunidades religiosas desses territórios queriam garan­
tias em matéria de tolerância. Enfim, não estava totalmente à margem dos
conciliábulos helvéticos que tratavam sobre a segurança de Genebra.
Para seus íntimos, a atribuição a Bèze desse tratado nunca foi verdadei­
ramente um problema. Anteriormente, ele havia abordado em termos bem mais
moderados o problema da resistência de súditos “cristãos” aos poderes que,
nesse tempo, eram considerados legítimos. Sua evolução aparece na leitura de
uma passagem do De haereticis a civili magistratu puniendis (1554, traduzi­
do para o francês em 1560), resposta a um protesto de S. Castellion, e, na
segunda edição da Confession de la Foi chrétienne (1560), Ponto V. art, XLV
(textos reeditados por Kingdon, op. cit., pp. 69-75). Bèze se afasta um pouco
das indicações dadas por Calvino na Institution de la religion chrétienne, IV,
XX, 31; sabe-se, aliás, que ele estava atento à resistência a ínterim que ficou
marcada em Magdeburgo.

O tratado Du droit des magistrats (Do direito dos magistrados)

As primeiras e últimas palavras do tratado fazem referência à vontade de


Deus, “regra de toda justiça”, e ao “Tribunal de Deus, do qual emanam a
Soberania e a Justiça”. Essas palavras indicam os limites teológicos de uma
reflexão política que se quer “prática”, isto é, que não pretende tratar do poder
em geral, nem submeter a exame as teorias recebidas, mas definir uma atitude
legítima face à tirania.
Porque a questão não é acadêmica, Théodore de Bèze parece mais
preocupado em acumular competências (textos bíblicos e escritores antigos;
crônicas do passado e acontecimentos contemporâneos; argumentos jurídicos
e princípios “naturais”, etc.) do que em hierarquizá-Ias ou em estabelecer sua

131
compatibilidade. Redigido dentro do contexto de conflitos civis e religiosos, o
tratado se propõe a persuadir as consciências de que não somente é permitido,
mas ainda que, em certos casos e sob certas condições, é preciso resistir ao
poder injusto, até pelas armas.
Mais do que à definição da injustiça no exercício do poder, Bèze se
prende ao caso de uma “tirania manifesta”, depois de ter recordado a instância
de avaliação que são as duas Tábuas da Lei de Moisés. Nada é mais “manifes­
to”, segundo ele, do que a infração de fato do soberano às leis existentes. Nesse
caso, com efeito, o próprio exercício da tirania eqüivale a uma desqualificação.
A injustiça não é, então, uma qualificação moral dos atos do soberano, já que
transforma o indivíduo a ponto de o desqualificar enquanto soberano legítimo.
Bèze insiste: a tirania se define não como uma deficiência moral, mas como
infração em relação a uma ordem política cujo fundamento é legal.
Mas Bèze, além do desprezo das leis, evoca ainda a possibilidade de as
leis de um Estado serem injustas, seja porque foram impostas aos súditos, seja
porque, aprovadas por eles ou por seus representantes, não conseguiram
preservar uma ordem civil proveitosa para cada um. “Não podemos nos
persuadir de que um povo, conscientemente e sem coação, concorde em se
submeter a qualquer um com a intenção de ser destruído e saqueado” (p. 14).
A tirania é, portanto, compreendida como o negativo da soberania legítima.
Essa última pode ser definida formalmente: velar pelo respeito às leis explícitas;
ou funcionalmente: a fonte da “autoridade dos magistrados e, principalmente,
dos soberanos” está na necessidade de manter “alguma ordem subalterna” pelo
exercício de um poder que visa a “conservar os bons e reprimir os maus” (p. 10).
Correlativamente, a luta contra a tirania pode se inspirar seja na conduta dos
"Juizes” de Israel, seja se baseando sobre a ordem legal subsistente ou sobre a
autoridade dos magistrados que se esforçam para mantê-la.
O tratado insiste principalmente nessa segunda modalidade. A luta
contra a tirania pressupõe que “a soberania” não se encarna no soberano que
é, precisamente, apenas o primeiro dos magistrados. A primazia não implica
nenhuma diferença inata. A hierarquia política é, portanto, apenas funcional:
os magistrados são os “oficiais do Reino” - e não do rei; eles “não dependem
propriamente do Soberano, mas da Soberania”.
Não é, portanto, surpreendente que a nobreza seja assimilada pela
magistratura civil; deu-se, assim, uma imagem funcional dela. Os magistrados
— tendo um cargo público - servem de referência para a definição da
autoridade legítima, que não se reduz ao ato de comandar, compreendido
como a expressão de um poder pessoal.
A Lei é um vínculo entre os diversos magistrados. Os “magistrados
inferiores”, subalternos certamente, não são menos responsáveis do que o
Soberano pelo exercício da soberania legítima. Entre o rei e os oficiais de um
Reino existe, portanto, uma “obrigação mútua”.
Bèze recorreu ao modelo de relações feudais de vassalagem para imagi­
nar a relação política: não foi por conservadorismo, mas porque aquele que
revela o aspecto absolutista da realeza encontra aí o exemplo de um juramento

132
ao soberano que exprime apenas um vínculo condicional. Esse juramento não
pode, portanto, coagir absolutamente o magistrado inferior, na medida em que
o magistrado soberano é governado pela Lei e em que “é um dito muito falso...
dizer que os soberanos não estão sujeitos a nenhuma lei” (p. 21).
0 autor, “para garantir a consciência de cada um” (p. 21), estabelece,
então, que a resistência, mesmo armada, não é nem deslealdade, nem revolta
quando é praticada pelos magistrados.
Essa proposição, dizem, é baseada sobre o princípio da soberania da Lei.
Mas um outro princípio é mencionado: o da soberania do povo. O primeiro
parece subordinado ao segundo, e a Lei, a seu autor “Eu digo, portanto, que
os povos não são mais resultantes dos magistrados, mas que os povos, aos
quais foi de seu agrado deixar-se governar por um príncipe ou por qualquer
senhor escolhido, são mais antigos do que seus magistrados e, por conse­
guinte, que os povos não foram criados para os magistrados, mas, ao contrário,
os magistrados o foram para os povos” (p. 9).
Julgar toda luta "popular” contra a tirania legítima seria equivocar-se
sobre o sentido de “povo", um termo que é preciso compreender como “povo
constituído”, povo legal, “política e constitucionalmente organizado em Três
Estados” (pp. 26-27).
“Povo” e “Lei” parecem ser realidades coexistentes, dois princípios
coextensivos. O povo não toma o lugar do soberano “absoluto”; não está nem
antes nem acima da Lei, pois é ela que, ao contrário, o faz existir. Logo, não
há nada, aqui, que introduza uma teoria “democrática”. Isso, porque a luta
contra a tirania não pode ser legitimada pela invocação do povo ou de qualquer
outra maioria. Ela só pode ser um feito dos magistrados, mesmo sendo eles
apenas uma minoria.
Logo, o princípio “legal” prevalece, na prática, sobre o princípio “popu­
lar”. Essa posição pode exprimir o medo da desordem (“a revolta”), tanto
quanto o apego à idéia da Lei, poder legítimo de organização (contra toda
forma de anabatismo “entusiasta”).
Théodore de Bèze coloca também à frente o exemplo dos “Juizes”
bíblicos. Não teria sido para dar peso à hipótese da legitimidade de uma luta
popular contra o tirano? Uma passagem parece estabelecê-lo. O autor escreve
não ser da “opinião daqueles que calculam que as libertações contidas nos
livros dos Juizes são de tal modo particulares e extraordinárias que não falha
de maneira nenhuma tomá-las como conseqüência” (p. 13). Ele chega até a
afirmar que, se o magistrado não cumpre seu dever - que pode ser o de resistir
- , “então cada um (indivíduo) particular, com todo o seu poder, deve se
esforçar para manter o estado legítimo de sua pátria”,
Bèze, no entanto, parece recuar diante das conseqüências dessas propos­
tas: evocando, antes de tudo, a possibilidade de ver o tirano se corrigir,
afirmando em seguida: “que não é lícito nenhum particular opor força à força
do tirano de sua autoridade privada” (p. 15).
Os particulares, assim, só teriam duas alternativas: suportar a tirania ou
partir caso não fossem autorizados por “algum magistrado” a lhe resistir

133
abertamente. Entretanto, eles não seriam condenados a uma passividade total:
poderiam apelar às instâncias superiores e aos representantes ordinários
legais. Além disso, a resistência passiva é sempre uma resistência: sua legiti­
midade resulta tão melhor, que Bèze recusa uma leitura política da doutrina
da providência, concluindo que a tirania é desejada por Deus (p. 58).
Fica patente que o apego do autor ao sistema legal e constitucional é dos
maio.res. A prova disso está na estrutura de seu tratado e no lugar concedido
ao comportamento autorizado dos particulares, dos magistrados e das assem­
bléias políticas normais. A mais alta manifestação de resistência depende do
dever e do direito dos únicos “estados”. São eles que têm "o poder de depor
um Rei, (porque eles têm) poder de criá-lo” (p. 44). Mas, por mais que seja
excluída a idéia de os particulares tomarem a iniciativa de uma intervenção
próximo aos magistrados, nada impede que estes façam tudo o que lhes for
possível para a continuação das assembléias regulares, mesmo indo de encon­
tro às manobras retardatárias do soberano. Em último caso, devem ter o direito
de apelar “para os aliados de um Reino” (p. 54).
Vê-se que o respeito da soberania legal é superior a um apego patriótico
exclusivista. O apelo aos aliados toma aqui o lugar do recurso ao papado, que
era previsto pelas teorias medievais.
Por sua maneira de privilegiar o apelo aos "magistrados inferiores”, Bèze
tem um lugar médio, entre os "monarcômacos huguenotes”, entre F. Hotman
e o autor do Réveil-Matin (H. Doneau? cf. R. Stauffer. 1979-1980).
Bèze contribui, aqui, para abrir o caminho àqueles que vão definir a
legitimidade de uma resistência constitucional, na Holanda, na Inglaterra e na
América do Norte, principalmente no fim do século XVI e no século XVII. Mas
hesita-se em falar de uma influência “direta”. O sucesso do tratado de Bèze foi,
de início, contrariado pelos monarcômacos católicos, que chegaram até a
considerar o regicídio por decisão individual. Por outro lado, desde o fim do
século XVI (abril de 1598, o Édito de Nantes), a situação dos protestantes no
Reino mudou. Por esse fato, e principalmente pelas vozes dos professores de
suas Academias, eles foram pouco a pouco se organizando entre aqueles que
escreviam em favor de um poder real absoluto e elogiavam o lealismo,* às
vezes em circunstâncias paradoxais. Depois de 1685, a experiência do exílio
conduzirá um homem como P. Jurieu a emitir reservas.
O lealismo dos protestantes para com o rei e o Estado ficou fortemente
comprovado, mesmo quando os acontecimentos deveriam desencorajá-los:
então, uma atitude de “resistência passiva” foi reinventada. Mais tarde, nos
regimes “totalitários” ou diante dos atentados aos direitos dos homens, o
caminho da resistência será tomado no final de um trabalho “bíblico” (referên­
cia aos textos proféticos, às epístolas de São Paulo, sensibilidade à perspectiva
escatológica) ou sobressaindo da ética social. Bèze não foi imitado em seu
gesto de redação de um tratado de filosofia política.

* L ea lism o era a dedicação à causa dos Stuart, destronados na Inglaterra; por extensão, fidelidade
ao regime. (N. da T.)

134
Resta dizer que o texto Du droit des magistrats contribuiu, no último
quartel do século XVI, para dar autonomia ao domínio político - coerente com
a predicação protestante. Toda transcendência não é recusada, mas o que ela
substitui tende, cada vez mais, a ser a autoridade da razão, a "evidência
natural” dos “princípios que permanecem no homem, por mais corrompido que
ele seja” (p. 45), e cada vez menos a autoridade religiosa. Um caminho que J.
Althusius e H. Grotius ampliaram à sua maneira. O escrito de Théodore de
Bèze alimentou o processo pelo qual, em nome do “direito natural”, a razão
política foi progressivamente libertada das pretensões religiosas normativas,
antes que viesse a se voltar sobre a autoridade da Sagrada Escritura para julgar
politicamente a validade dos modelos bíblicos - pensar aqui em Espinosa.

• Fonte bibliográfica: Pr. Cardy, Bibliographie des Oeuvres théologiques, litteraires, his-
toriques etjuridlques de Th. de B., publicada com a colaboração de A. Dufour, Genebra, Livr.
Droz, 1960, T. H.. R„ XLI, ns 299 a 306.
Primeiras edições e edições de referência: Du droit des magistrats sur leurs subiets. Traille
très necessaire en ce temps, pour advertir de leur devoir, tant les Magistrats que les Subiets;
publié par ceux de Magdebourg l ’an MDL & maintenant revue & augmenté de plusiers
raisons & exemples (ed. Mareschal, Heidelberg, 1574; ed. Stoer, Cenebra, 1574. Cf. Kingdon
(1970), p. XLIV-XLV); De Iure Magistratuum in súbditos, et officio subditorum erga Magis-
tratus. Tractatus brevis & perspicuus, hic turbulentis temporibus utrique ordine, apprime
necessarius. E Gallico in Latinum conversus. Cum índice Quaestionum & obiectionum
quibus hic respondetur... Ap. loannem Marescallum Lugdunensem (1575); Du Droit des
magistrats... ed. in fac-símile (M. Marabuto), Saint-JulianTArs, Imprimerie Monastique, 1968;
Theodor Beza, De Iure magistratuum, hrsg, von Klaus Sturm, Neukirchen-Vluyn, Neukirche-
ner, Verlag des Erziehungsvereins, 1965, (Texte zur Ceschichte der Evangelischen Theologie,
Heft I); Théodore de Bèze, Du droit des Magistrats, Inloroduction, êdition et notes par Robert
M. Kingdon, Genebra, Livr. Droz, 1970 (Les Classiques de la Penseé politique, 7).

► Sur Théodore de Bèze: P. F. Geisendorf, Théodore de Bèze. Genebra, 1949, reimp. 1967; J.
Raitt, Beza Th. (1509-1605), Theologische Realenzyklopüdie, Bd. V. (1980) pp. 765-774;
Correspondance de Th. de Bèze, Genebra, Livr. Droz, 1960 sq. (T.H.R. 40...); Registres de la
Compagnie des Pasteurs de Genève, vol. III, (1565-1574), ed. por O. Fatio e O. Labarthe,
Cenebra, Livr. Droz, 1964, (T.H.R. 55).
Pour Vélude du traité “Du droit des Magistrats”-. Études anciennes et identification des
ouvrages fondamentaux (monographies, histoires des théories politiques...)’. cf. as “Biblio-
graphies” das edições K. Sturm (1965) e R. M. Kingdon (1970).
Compléments et études récentes: E. E. Wolff, Widerstandsrecht, Die religion in Ceschichte und
Gegenwart, Dritte Ausgabe, Bd. 6 (1962), sp. 1681-1692); M. Marabuto, Les théologies politiques
des monarchomaques français, Thèse Droit, Paris, 1967; R. Benert, Inferior Magistrates em 16th
Century politlcal and religious thought, Ph. D. Thesis, U. of Minnesota, 1967; R. E. Ciesey, The
Monarchomach Triumvir: Hotman, Beza and Momay, Bibliotèque d'Humanisme et Renaissance,
XXXII (1970), págs. 41-43: De Iure Magistratuum. Vom Recht der Regierungen gegenüber ihre
Milbürgen, über und kommentiert v. W. Klingenheben, Zurique, 1971; R. E. Giesey, J. R. M.
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ordeal, Princeton, 1973; R. M. Kingdon, Quelques réactions à la Saint-Barthélemy à Texterieur

135
de la France, Actes du Colloque: L ’A mlral de Coligny et son temps, Paris, 1974; H. Kretzer,
Calvinismus und franzõsische Monarchie in 17. Jahrhundert. Dte politische Lehre der Akade-
mten Sedan und Saumur..., Berlin, 1975; U. Krautheim, Dte Souverãnltdtskonzeption in den
engltschen Verfassungskonflicten des XVII. J., Berna, 1977; M. W. Anderson, Royal idolatry:
Peter Martyr and the Reformed Tradition, Archiv für Reformationgeschichte, 69 (1978) págs.
157-201; T. Maruyama, The ecdesiology o f Theodor Beza..., Genebra, 1978; W. Schulze, Eine
deutsche Übersetzung von Bezas De ture magtstratuum in súbditos aus dem Jahre, 1615, Archiv
für Reíormationsgeschichte, 70 (1979), págs. 302-308); R. Stauffen La condamnation de l’abso
lutísme et 1’élaboration du droit de résistance au lendemais de la Saint-Barthélemy: 1’ouvre des
monarchomaques; lecture du De Jure magistratuum e des Vlndtciae contra tyrannos, Annuaire
de VÊcole pratique des Hautes Êtudes, v Section: Sciences reiigieuses, LXXXV1II (1979-1980),
págs, 451-455 et LXXXIX (1980-1981), págs. 552-553; E. Hildebrandt, The Magdeburg Bekenntnis
as a possible link between German and English resistance theories in the XVlIth century, Archiv
für Reíormationsgeschichte, LXXI 1980), págs. 227-253; E. P. Burki, Thomas Hobbes et
Théodore de Bèze, deux lecteurs de la Biblie, Cahiers de Philosophle politique etjuridique de
VUniversité de Caen, 1983,3, págs. 73-88).

Bernard ro ussel, Gilbert V1NCENT.

BLANC,Louis- 1811-1882
Organização do trabalho, 1840

De todos os socialistas dos anos 1840, Louis Blanc foi certamente o menos
teórico. Ele foi primeiro um jornalista defendendo incansavelmente o sufrágio
universal, o princípio de uma assembléia única, a centralização política, desen­
volvendo as implicações concretas de sua organização do trabalho ou enviando
a cada semana de 1861 a 1870 ao Temps sua carta da Inglaterra durante seu
exílio londrino. Ele reuniu a maioria de seus artigos nos 5 volumes de Questions
d ’a ujourd’h ui et de demain (Questões de hoje e de amanhã). Foi também um
orador familiar dos banquetes republicanos não somente quando por época de
sua famosa campanha de 1847, mas também após seu retorno do exílio em 1870:
ele reuniu suas intervenções orais de 1847 a 1881 no Discours politiques. No
restante ele fez uma sólida obra de historiador, publicando em particular Histoire
de dix ans (1830-1840), que teve uma certa repercussão em seu tempo, Histoire
de la Révolution de 1848 ou Histoire de la Révolution française em 12 tomos,
todos trabalhos que contrastam por seu volume com a brevidade de Organisa-
tion du travail (Organização do trabalho). Ora, fói precisamente esse texto curto
o único em que L. Blanc entrega um embrião de sistema que ia assegurar a
celebridade de seu autor até nossos dias, após ter desempenhado um papel
determinante dentro da Revolução de 1848, levandoo ao governo provisório, à
frente da Comissão de Luxemburgo e conduzindo-o enfim ao exílio, a partir de
agosto de 1848.

136
Organização do trabalho apareceu em agosto de 1840 na Revue du
progrès, dirigida por L. Blanc. O sucesso do artigo incitou seu autor a
publicá-lo em brochura algumas semanas mais tarde. A obra recebeu até 1848
cinco edições e uma sexta em 1882. Edições “aumentadas” com passagens
sucessivamente acrescentadas no interior do texto, com anexos e partes
suplementares, de sorte que, salvo a conclusão imutável de uma edição para
outra, a última versão do texto que atingiu a amplidão de um volume de
Questions d ’aujourd‘hui et de demain não tem mais muita coisa a ver com o
artigo original. É a esse que nós nos reportaremos.
Como explicar o sucesso de Organização do trabalho, confirmado por suas
edições próximas umas das outras até mesmo em 1848, quando nesse mesmo
ano aparecia, sob a pena de outros socialistas, obras tão importantes quanto
Qu’est<e que la Propriété?, de Proudhon, De VHumanité, de Pierre Leroux, ou
Voyage en Icarie, de Cabet? É o próprio texto que se deve interrogar primeiro
para compreender em seguida seu estranho destino em 1848.

Um projeto de reforma da sociedade

O título da obra já é um paradoxo, pois, do que se trata no corpo de


Organização do trabalho se não da desorganização do trabalho sob o império
da concorrência liberal? Louis Blanc mostra como a concorrência entre operá­
rios, entre máquinas e operários, entre patrões é nociva tanto aos proletários
quanto aos bem-providos. Ela conduz à superprodução geradora de crises
industriais. O povo que morre de fome se entrega aos “tristes prazeres da
embriaguez”, ao crime e à prostituição. “A família vai-se embora”, e a “podridão
moral” gangrena também a burguesia. Dentro dessa lógica contrária à ciência
econômica em que "a concorrência força a produção a crescer e o consumo a
decrescer”, os burgueses ameaçados pelo monopólio marcham em direção a seu
aniquilamento em proveito de algumas oligarquias industriais: a burguesia “não
percebe que todo seu sangue se escoa e ei-la que, com suas próprias mãos, fica
ocupada em rasgar as entranhas”. Ela é para ela mesma, como o dirá Marx, seu
próprio coveiro. Mas, longe de deixá-la enterrar-se, L. Blanc gostaria de convencê-
la de que seu projeto de reforma social a salvaria assim como salvará os mais
desfavorecidos: “Todos os interesses são solidários, e... uma reforma social é para
todos os membros da sociedade, sem exceção, um meio de salvação.”
A crítica, rapidamente resumida aqui, não tem nada de muito original: os
outros socialistas a haviam efetuado antes de Louis Blanc. Mas o essencial do
texto não está aí e sim na sua conclusão intitulada (enfim!) "De que maneira
poder-se-ia, segundo nós, organizar o trabalho”, onde, com muita prudência e
empregando forçosamente condições, Louis Blanc lança as bases de sua nova
ordem social. Quais são essas bases?
Investido “de uma grande força", o governo levanta um empréstimo para
a criação de fábricas sociais, cujo número será, no começo, necessariamente
limitado e se ampliará, por si mesmo, em seguida (por causa da “força de
expansão imensa” dessas fábricas), redige os estatutos e os faz serem votados

137
pela representação nacional para que tenham força de lei. Aí trabalhariam os
operários “que ofereceriam garantias de moralidade”, retribuídas, primeiro,
segundo a hierarquia das funções, antes de conseguir a igualdade dos salários,
sendo essa hierarquia regulada pelo governo, durante o primeiro ano, sendo
decidida, logo em seguida, pelos próprios operários, segundo o princípio eletivo.
Do lucro líquido, três partes seriam divididas: uma repartida em partes
iguais entre os membros da associação; outra destinada aos idosos, doentes,
enfermos e para ajudar outras indústrias em crise; e a última destinada aos
investimentos, para que a associação aumente o número de seus membros.
O meio consiste, assim, em servir-se da arma da concorrência para fazer
desaparecer a própria concorrência. A concorrência vira-se realmente contra
ela mesma para tornar-se uma “santa concorrência”: a fábrica social entra em
luta “não-subversiva” com a fábrica individual, até a “absorção sucessiva e
pacífica das fábricas individuais pelas fábricas sociais”. Por causa de suas
imensas vantagens, as fábricas sociais atrairão os trabalhadores e também os
capitalistas (a eles caberá o interesse do capita! sem participação nos benefí­
cios, salvo se eles próprios trabalharem).
Assim, em vez da concorrência, haverá a associação. As fábricas sociais
de uma mesma indústria se associarão, segundo o mesmo princípio, depen­
dendo de uma fábrica central, e, sempre segundo esse mesmo princípio, será
estabelecida a solidariedade das diversas indústrias. E poder-se-ia mesmo
imaginar um sistema de aliança internacional fundada sobre “as conveniências
recíprocas dos trabalhadores de todas as partes do mundo”.
A instalação de lojas e depósitos sanearia o comércio atual, “verme roedor
da produção”. A reforma agrícola, sobre a qual L. Blanc se estenderá mais em
suas Cartas sobre a Inglaterra (Lettres sur LAngleterre) e com a qual cons­
tituirá todo um livro II, “Trabalho agrícola”, na última versão de Organização
do trabalho, seria calcada sobre a reforma industrial, com a criação de uma
propriedade comunal, graças à supressão das sucessões colaterais.
Sem dúvida, essa reforma não poderia ser realizada de uma só vez: “A
humanidade foi afastada demais de sua meta para que nos seja dado atingi-la
em um dia.” A educação (obrigatória e gratuita) contribuiria para a mudança
dos costumes dentro dessa ordem, ela mesma transitória, e prepararia "a
realização completa do princípio de fraternidade”. A educação dissipará a
ignorância, e L. Blanc insistirá muito em seguida, em particular em sua
Histoire de dix ans, sobre o papel da ciência. É ela que permite compreender
que cada um, “qualquer que seja sua posição, seu nível, sua fortuna” e sua
classe, tem interesse “na inauguração de uma nova ordem social". Nada de
sangue vertido, essa “revolução social” tão necessária “é possível, até mesmo
fácil, realizá-la pacificamente”. O pacifismo intransigente de L. Blanc leva-o a
condenar toda insurreição: ele tenta travar a revolta dos operários das fábricas
de seda de Lyon, em 1834; ele reprovará a Comuna em 1871. Seus adversários
no governo provisório não escutarão nada sobre esse interesse comum entre
burgueses e proletários, mas saberão muito bem, em compensação, utilizar
esse pacifismo de L. Blanc para conter as multidões em 1848...

138
0 papel do Estado aparece então claramente: papel inicial, dentro dessa
transição para a nova ordem social pela criação de fábricas sociais (e, no primeiro
ano, a redação de seus estatutos); papel regulador, em seguida. Onipresente, o
Estado impede o restabelecimento de uma concorrência malfazeja, fazendo
respeitar o regulamento comum, recompensando o inventor, cuja patente ele
coloca a serviço de todos, assegurando a solidariedade entre indústrias diversas,
graças a essa parte do benefício que cada fábrica reserva para ajudar outros
ramos em crise. Aliás, essas crises seriam bem mais raras. Este papel aumentado
do Estado não deixa de inquietar os liberais e também o anarquista Proudhon,
que se pergunta por meio de que alquimia esse Estado, mestre e tirano do
mercado atualmente, como L. Blanc reconhece, poderia se transformar em
protetor da sociedade, assegurar sua missão tutelar, transformar-se, de opressor,
em “Estado-servidor”: como supor que o Estado possa “mudar de natureza,
voltar a ser, por ássim dizer, ele mesmo, de Satã tornar-se arcanjo e, após ter
vivido durante séculos de sangue e de carnificina como uma besta feroz, pastar
o citiso com os cabritos e dar de mamar aos carneiros” (La Voix du peuple, 3 de
dezembro de 1849). Proudhon engloba, além disso, dentro dessa crítica, Pierre
Leroux quando, se este último é favorável à manutenção do Estado, se alarma
todavia, com esse refortalecimento do governo “por conta da liberdade” em L.
Blanc (La République, 11 de fevereiro de 1850).
Podemos, daí em diante, medir a originalidde de Organização do traba­
lho. A obra se ressente de várias influências. Em sua composição, ela lembra
o método saint-simoniano*: uma parte crítica, o corpo do texto; uma parte
orgânica, a conclusão. Do saint-simonismo* também ele retoma essa vontade
“de reabilitar o princípio de autoridade em meio ao triunfo do liberalismo” e a
idéia de “organização da indústria e associação dos interesses”, como ele
explica mais longamente em um capítulo de Histoire de dix ans, consagrado a
essa escola. Mas ele recusa a retribuição segundo as capacidades.
A influência de Fourier, aliás citada, é manifestada na crítica da concor­
rência e em particular do comércio, mas também na idéia de uma “força de
expansão” das fábricas sociais que as levariam a ganhar terreno pouco a pouco
e a absorver a indústria privada do mesmo modo que o falanstério deve se
propagar por contágio. Existe ainda um toque fourierista na concepção do
trabalho atraente e a vontade de estabelecer uma “associação das necessidades
com os prazeres", mas a fórmula soa falsa em Louis Blanc, mais preocupado
com a moralidade e os deveres do que com o hedonismo...
É precisamente sobre o terreno da moral e dos deveres que aparece a
similitude mais surpreendente com uma outra teoria da época, a de Buchez, a
ponto de os seguidores deste último clamarem contra o plágio. O jornal
L ’A telier afirma que a doutrina de Buchez "engendrou evidentemente” a de L.

* e sa in t-sim o n ism o — palavras derivadas do nome Conde de Saint-Simon,


S a in t-sim o n ia n o
filósofo e economista francês (1760-1825), criador do S a in t-sim o n ism o - escola que se ocupava
do novo ordenamento social a partir dos primórdios pré-capitalistas já esboçados no primeiro
quartel do século XIX. (N. da T.)

139
Blanc. A única originalidade deste último teria consistido em desenvolver a
teoria da associação dentro do sentido do coletivismo (influência de Pequeur?)
e do igualitarismo. E verdade que a condição de moralidade para entrar na
fábrica social lembra as exigências de Buchez para entrar na associação, da
mesma maneira que a insistência sobre os deveres e o que será mais tarde
chamado “o ponto de honra do trabalho” fazem pensar no “devotamento” caro
a Buchez. Porém, L'Atelier reprova, além disso, em L. Blanc, um sistema
dentro do qual os trabalhadores, devem se libertar não por si mesmos, mas
serem libertados (já que, para serem libertos, é preciso possuir os instrumentos
de trabalho e que, para L. Blanc, é o Estado que os fornece).
Comparada às outras obras do ano de 1840, Organização do trabalho não
apresenta traços verdadeiramente característicos. Não há o minucioso plano de
cidade ideal descrito em Voyage en Icarie. Não há as visões filosóficas e
metafísicas de um Pierre Leroux: L. Blanc contenta-se com uma afirmação
sumária sobre a bondade da natureza humana emprestada a J. J. Rousseau e
insiste sobre a importância da educação dentro da formação do caráter (onde se
percebe a influência de Owen): não é a perversidade dos homens que engendra
essa desordem intolerável, mas sim "a tirania das coisas” (segundo uma fórmula
que se reencontra em Buret), nascida da ignorância. L. Blanc também não tem
o tom lapidário e mordaz de um Proudhon. Organização do trabalho figura mais
como síntese dos conceitos sociais da época do que como obra original, como
observa seu principal biógrafo: "Não há, propriamente falando, idéias novas
dentro da doutrina de Louis Blanc. Seu sucesso foi devido ao fato de ela ter
aparecido em boa hora, dentro de um ambiente superaraquecido, admiravel­
mente preparado para as perturbações da indústria e as campanhas da imprensa,
e por ter sido exposta sem pretensão científica, dentro de uma linguagem clara,
em fórmulas nítidas ao alcance de todos” (E. Renard, pág. 95).
Síntese ou ecletismo? Que alguns tenham, desde 1848, censurado Louis
Blanc por querer restaurar as corporações ou que, no regime de Vichy, sob
pretexto de que “o pensamento de Louis Blanc... pode e deve reter a atenção de
todos os animadores de nossa Revolução nacional” (P. Chanson, pág. 3), uma
obra completa tenha sido consagrada a Organização do trabalho, nos deixa
perplexos. Mas, a imperfeição da síntese aparece sobretudo na contradição
fundamental desta obra, que Proudhon e os seguidores de Buchez perceberam,
a saber, a justaposição do papel do Estado e da força própria das fábricas sociais.
Para que o Estado se as fábricas têm tanta capacidade de expansão? Solução
lógica de Fourier, mesmo tendo esperado o mecenas geral para fundar seu
falanstério. Inversamente, que importa esta força de expansão se o Estado é de
tal modo poderoso? Apesar de tudo, por sua brevidade e clareza, duas qualidades
raras nas outras produções socialistas da época, Organização do tabalho iria
fazer as vezes de um verdadeiro manifesto em 1848.

O destino de Organização do trabalho em 1848

Proudhon, que não poupava Louis Blanc, reconhece: “A organização do

140
trabalho: esse é o problema da Revolução de Fevereiro, e esse problema foi Louis
Blanc quem colocou” (La Voix du peuple, 19 de fevereiro 1849). Colocar o
problema não é resolvê-lo. L Blanc havia falado em utilizar a arma da concorrên­
cia contra a concorrência. Toda a arte da maioria moderada do governo
provisório, de 1848, preocupada em não tocar fundamentalmente as estruturas
da ordem estabelecida e em manter a suposta “liberdade” do trabalho, vai
consistir em fazer jogar a organização do trabalho contra a organização do
trabalho com a cumplicidade involuntária de L. Blanc. Este, em sua vontade de
evitar toda insurreição, aparece logo como um precioso aliado dos conserva­
dores: a partir de 25 de fevereiro, sob a pressão da multidão amontoada diante
da pefeitura e em resposta a uma delegação de operários que reclama a
organização do trabalho, L. Blanc redige um decreto para garantir a existência
do operário pelo trabalho, que permitirá evitar a explosão popular, mas no qual
ele toma o cuidado de não fazer figurarem as expressões: “direito ao trabalho” e
“organização do trabalho”, para poupar o governo provisório. Este respira e
imediatamente L. Blanc e o operário Àlbert, na véspera simples secretários do
governo provisório, são promovidos a membros por completo: L. Blanc seria bem
mais útil no interior do que no exterior desse governo...
A questão da organização do trabalho não pôde, entretanto, ser evitada.
Por falta de poder driblar o problema, ele será contornado habilmente no começo
antes de eliminá-lo e de eliminar fisicamente, na atroz repressão de junho, uma
grande parte daqueles que tiveram a audácia de colocá-lo: os operários... Duas
medidas contribuirão, sob a capa de organização do trabalho, para a erradicação
dela: a criação das fábricas nacionais, de um lado; a da comissão do governo para
os trabalhadores, dita Comissão de Luxemburgo, por outro lado.
A escolha de Pierre Marie como ministro dos Trabalhos Públicos, hostil ao
socialismo, e o descarte de L. Blanc, para a execução do decreto de 25 de
fevereiro, contendo a abertura das fábricas nacionais para os operários sem
trabalho, já dizem muito sobre o futuro funcionamento dessas fábricas. Fábricas
nacionais; isso soa um pouco como fábricas sociais: será melhor do que zombar
da plebe, pois elas não serão certamente germes de coletivismo. Muito pelo
contrário, toda a sutileza da instituição consistirá em simular uma tentativa de
socialismo, levando, de maneira completa, essas fábricas à catástrofe, para provar
a inanidade da organização do trabalho e fazer recair sua responsabilidade sobre
L. Blanc. Organizadas militarmente para enquadrarem melhor os trabalhadores
e não segundo os princípios de uma autêntica organização do trabalho, elas
empregavam os trabalhadores em trabalhos inúteis. Simples centros de caridade
e de esmolas, elas chegaram, como previsto, ao fracasso, e, como previsto, a
responsabilidade foi imputada a L. Blanc e à sua Organização do trabalho. A
lenda, que acompanhou L. Blanc e as fábricas nacionais por toda vida, dura ainda
hoje. Ela foi forjada tão logo o socialista foi obrigado a se defender longamente
em Páginas da história da Revolução de 1848 (Pages dhistoire de la Révolu-
tion de 1848) e a lembrar que elas não foram mais do que “uma ignóbil paródia”
de sua Organização do trabalho.
E, no entanto, a breve existência das fábricas nacionais ia revelar uma nova

141
ironia da História, pois o jovem Emile Thomas, colocado na direção delas, se
deixa contaminar pela organização do trabalho. Ele é conduzido a “socializar”,
por sua vez, sem chamar as coisas pelo nome delas. Ele gostaria de tornar viável
essa instituição, por definição, suicida. Ele se espanta com os trabalhos “perfei-
tamente inúteis” que os operários fazem e reclama, em lugar deles, projetos de
interesse público, tais como a construção de vias férreas ou de bairros operários
salubres em Paris (enquanto no Luxemburgo L. Blanc desenvolve seu projeto de
alojamentos operários na capital...). Ele chega mesmo a propor a criação de
“fábricas especiais”, agrupando os trabalhadores de uma mesma profissão, e não
existe muita distância entre a fábrica especial e a fábrica social, mesmo se o
diretor ousado demais não pretender generalizar seu modelo. Com sua ingenui­
dade, Thomas é mais perigoso do que Louis Blanc! Ele foi, então, parado; sem
compreender por que, enviado para a província e substituído à frente das fábricas
nacionais, cuja dissolução ficou daí em diante realmente próxima.
A segunda medida que o governo provisório tomou para organizar o
trabalho sem o organizar foi a criação da Comissão do governo para os
trabalhadores. Por ocasião da manifestação de 28 de fevereiro, uma delegação
operária reclamou de novo “a organização do trabalho”. Lamartine recusou-se a
“assinar essas duas palavras associadas juntas”. L. Blanc ameaçou demitir-se. Foi
então que Arago propôs a criação de uma comissão dos trabalhadores que fcaria
no Luxemburgo sob a direção de L. Blanc. Este aceita, para evitar a insurreição
(ainda mais uma vez), mas fez, assim, o jogo dos outros membros do governo
provisório, que o satisfazem sem dar prejuízo, já que a dita comissão não tem
nem orçamento, nem recursos, nem poder legislativo. Simples lugar de falatórios,
trata-se, como dirá E. Thomas, de limitá-la às palavras, de impedi-la de chegar às
ações (pág. 142). Sem dúvida, algumas medidas serão concedidas a L. Blanc para
que ele não se sinta logrado rápido demais, como o decreto de 2 de março,
abolindo a exploração abusiva da mão-de-obra e limitando a duração da jornada
de trabalho. L. Blanc, que sonha ainda em constituir um "parlamento do
trabalho”, chama para a Comissão, ao lado dos representantes dos operários e
dos patrões, personalidades tão diferentes quanto os fourieristas Toussenel e
Considérant, o coletivista Pecqueur, o antigo saint-simoniano J. Reynaud, o
bucheziano Pascal ou F. Leplay, personalização dessa vontade de síntese incons­
ciente na obra dentro da Organização do trabalho.
O Luxemburgo vai, de fato, transformar-se em uma espécie de tribunal dos
conselheiros, onde patrões e operários regulam amigavelmente suas diferenças.
Algumas realizações, todavia, chegaram a pôr em prática uma autêntica organi­
zação do trabalho, como a Associação dos Talhadores de Clichy, que contava com
50 operários no fim de março de 1848 e com 1.500 no mês de maio; a oficina das
bordadeiras..., no total uma centena de associações operárias reconhecidas pela
Comissão de Luxemburgo e fundadas de acordo com os princípios socialistas,
segundo o Almanach du Nouveau Monde, de L. Blanc (16 de agosto de 1849).
Se o Luxemburgo "contribuiu muito para manter a ordem”, como se felicitava
desse fato Lamartine (Histoire, II, pág. 78), essa reunião de operários que podiam
a todo momento soltar-se pelas ruas não constituiu menos um perigo para o

142
governo provisório. As primeiras manifestações de 1848 foram, em parte graças
à intervenção de L. Blanc, dispersadas aos gritos de “Viva o governo provisório”,
mas em 15 de maio a Assembléia foi invadida, e a plebe marchou para a
prefeitura. Após esse tumulto, a Comissão do governo para os trabalhadores
desapareceu e foi substituída por um comitê dos trabalhadores, presidido por
Falloux, em que L Blanc não estaria mais. Este, acusado de ter querido derrubar
o governo em 15 de maio, quando, ao contrário, ele havia feito tudo para
suspender a marcha para a prefeitura, será um dos primeiros socialistas a tomar
o caminho do exílio, em agosto de 1848, para evitar ser preso... No mês de maio,
os franceses elegeram, pelo sufrágio universal masculino, uma assembléia conser­
vadora. Eles escolheram logo como seu presidente a pessoa de Luís Napoleão
Bonaparte, que, em 1844, havia enviado um exemplar, com dedicatória, de
L ‘extinction du paupérisme para L. Blanc. Este recusará a anistia concedida pelo
imperador e só voltará para a França em 1870.
Alguns meses depois do início da Revolução de Fevereiro e sobretudo
depois das sangrentas jornadas de junho, consecutivas à dissolução das
fábricas nacionais, não resta nada das veleidades sinceras ou artificiais de
organização do trabalho. Louis Blanc tinha visto recusada, em 28 de fevereiro
e em 10 de maio, a criação de um Ministério do Trabalho (uma idéia emitida
com um conteúdo diferente desde 1841 por V. Considérant), sob pretexto de
que já havia um Ministério dos Trabalhos Públicos. Será preciso esperar até
1906 para a criação desse Ministério na França... Os decretos de 2 de março
vão ser rapidamente abolidos, e algumas fábricas sociais serão dissolvidas, em
1850, apesar de sua real prosperidade. Quanto à Constituição de 1848, ela
tomou bastante cuidado para evitar em seu texto as palavras "organização do
trabalho” ou “direito ao trabalho”, esse “achado de sonhadores sentimentalis-
tas” no dizer de um deputado.
O destino dessa Organização do Trabalho, destino duplamente para­
doxal - porque, de um lado, esse texto moderado e reformista, que só visava
às reformas graduais para chegar a uma ordem social, ela mesma transitória,
iria desempenhar papel importante dentro de uma revolução; porque, de outro
lado, essa organização ia ser voltada contra ela mesma em 1848 —terá sido o
fruto de uma artimanha da História? Bem cedo, ele revela o poderio dos
imaginários sociais, pois esse livro, de sucesso inegável, tinha sido definitiva­
mente muito pouco lido. Cada um, segundo a classe à qual pertencia, projetou
ali então seus temores ou suas esperanças, e foi a conjunção de uns e das
outras que foi determinante. Pondo de lado algumas exceções, como jornalis­
tas do Siècle ou do Constitutionnel, ou o deputado Léon Faucher, que
publicou em 1848 uma crítica rudimentar, os conservadores e os liberais não
haviam consultado a obra. Lamartine se gabava disso. Eles trataram, então, L.
Blanc de “comunista”, pelo motivo de este querer estabelecer a comunidade
das mulheres ao mesmo tempo que a dos bens, quando, ao contrário, L. Blanc
se havia oposto nesse ponto aos saint-simonianos e designava como meta de
seu sistema restaurar a família sobre bases sãs. Porém, a Organização do
Trabalho também não havia sido lida pelo povo, salvo por alguns operários

143
esclarecidos, como Albert L. Blanc tinha consciência disso: em 24 de fevereiro,
o operário Marche, vencido ao tentar definir a organização do trabalho que
sua delegação reivindica, fica mudo, e L. Blanc conclui, paternal: “Vocês
percebem que a organização do trabalho não é uma coisa fácil” (Revue des
Dexix Mondes, abril de 1848). Do livro, os operários tinham principalmente
retido o título, que soava como um slogan. E talvez nem mesmo o título inteiro,
mas somente suas duas últimas palavras. Se as primeiras manifestações de
1848 se fizeram aos gritos de "Organização do Trabalho”, muito rápido foi um
clamor mais pungente que saiu das entranhas do povo: “trabalho e pão!” que
se transforma em “Pão ou chumbo!”. O jornal L ’A telier tentará inutilmente
precisar que o problema social não era “uma questão de panela cheia”, L. Blanc
tinha compreendido, como ele o disse na Assembléia de 10 de maio, que
Revolução de 1848 era antes de tudo “uma revolução da fome”.
O futuro da obra não estava, entretanto, encerrado. Ela ia ser lida mais
atentamente em seguida, alimentando, no curso do século XX, dentro dos
meios operários e sindicais, debates de base sobre a organização do trabalho,
o direito ao trabalho e, enfim, ia ser inscrita dentro do preâmbulo da Cons­
tituição de 1946. O texto, que não envelheceu, sem dúvida por causa de seu
estilo despojado, além do fato de simbolizar um admirável resumo daquilo que
se chamou “o espírito de 1848”, apresenta hoje em dia um viço de interesse:
o tema da “solidariedade” não recuperou sua importância em 1981? Ora, um
dos esforços, freqüentemente incompreendidos, de L. Blanc dentro da Organi­
zação do Trabalho consistia em precisar o papel desse Estado “tutelar” que
retira uma parte dos benefícios de uns para revertê-la para os mais desprovidos
(desempregados, enfermos, idosos...), dentro dessa execução da solidariedade.

• Organisation d u travall, na Rem e du Progrès de 1* de agosto de 1840, Paris, Prevot, sem data
(a introdução de setembro de 1840 e a comparação dessa edição com o artigo e o texto de 1841
permitem datá-lo de 1840); Paris, ad. de livraria, 1841; Paris, Camille frères et Bruxeiles, Hauman,
1845; Paris, no escritório da Sociedade da indústria fraternal, 1847; ibidem, 1848; t IV de
Questions d'aujourdhui et de demain, 1881J?évolution française. Histolre de dix ans (1830-
1840), Paris, Pagnerre, 1841-1844,5 vol.; Histoire de ta Révolution française, Paris, Langlois &
Leclerq, 1847-1862, 12 vol.; Le Socialisme. Droit au travall, Paris, no escritório do “Nouveau
Monde”, 1849; Pages d ’hlstoire de la Révolution de février 1848, Paris, no escritório do “Nouveau
Monde”, 1850; Lettres sur VAngleterre, Paris, A. Lacroix, Verboeckhoven & Cie, 1870, 2 vol.;
Questions d ’aujourd'hui et de demain. Paris, Dentu, 1873-1884; Dix ans de Vhistoire d ’Angleterre,
Paris, C. Lévy, 1879-1881,10 vol.; Discours politiques (1847a 1881), Paris, Germer-Baillère, 1882.

► E. Renard, Louis Blanc, sa vie, son oeuvre, Paris, Hachette, 1922; J. Tchemoff, Louis Blanc,
Paris, G. Bellais, 1904; J. Vidalene, Louis Blanc, 1811-1882, Paris, PUF, 1948; G. Cahen, Louis
Blanc et la commission du Luxembou rg, Armo/es de 1’É cole libre des Sciences politiques, Paris,
Alcan, 1897; S. Riais, Louis Blanc. Une doctrine réformiste cohérente aux origines du radica-
lisme français, em Itinéraires, Paris, Econômica, 1982; L. Faucher, Du système de M. Louis
Blanc ou le travall, 1’association et 1’impõt, Paris, Gerdès, 1848; P. Chanson, L ’organisation
du travail selon Louis Blanc, membre du gouvernment provisoire en 1848, Paris, Ed. de
1’lnstitut d’Études corporatives et sociales, 1943; P. Vigier, La Seconde République, Paris, PUF,

144
1967; H. Guillemin, La première résurrectlon de la République; 24 février 1848, Paris,
Gallimard, 1967; A. Cuvillier, Hommes et idéologles de 1840, Paris, M. Rivière, 1956; Um
Journald’ouvriers, “L ’Atelier", 1840-1850, Paris, Ed. Ouvrières, 1954; E. E. Thomas, Histoire
des ateliers nationaux, Paris, Michel-Lévy frères, 1848; A. de Lamartine, Histoire de la
Révolutlon de 1848, Paris, Perrotin, 1849; A. de Tocqueville, Souvenirs, Paris, Gallimard, 1942;
P. J. Proudhon, Ouvres complètes, Paris, M. Rlvlère; Idée générale de la révolutlon au XI)C
siècle, 1924; De la capacité polltlque des classes ouvrières, 1924; Qu ’est<e que la propriété?,
1926; Confesslons d'un révolutlonnalre, 1929; P. Leroux, La République, 1849-1850-, L. N.
Bonaparte, L ’exttnctlon du paupérisme, Paris, Pagnerre, 1844; J.-A. Toumerie, Le ministère
du travall (origines et premlers développements). Paris, Ed. Cujas, 1971.

Armelle LE BRAS-CHOPARD.

BLANQUI, Auguste, 1805-1881


Instruções para um “pegar em armas”, 1868

“O cubo total da barricada e de sua contraguarda será de 144 metros;


sendo 64 pedras por metro cúbico, dão 9.186 pedras, distribuídas em 191
fileiras de 4 x 12, ou seja, 48 por fileira. Essas 192 fileiras ocupam 48 metros
de comprimento. Assim, a rua será desempedrada em uma extensão de 48
metros, para fornecer o material para o entrincheiramento completo.”
Em Instruction pour une prise d ’armes, curto texto de 1868-1869, que
circulou discretamente sem ser publicado durante o tempo em que seu autor
era vivo, a barricada estava no centro da insurreição blanquista: foi em torno
da barricada que se estruturou a guerra de rua; tudo parte dela, tudo reflui em
sua direção, tudo se organiza em torno dela.
Paris, “cidade santa”, Paris, “capital da inteligência e do trabalho”, Paris,
“verdadeira representação nacional”, Paris, “cidade-mãe”, como Blanqui havia
inicialmente denominado a capital, apenas pôde imaginar seu plano. A revolu­
ção seria parisiense ou não seria revolução. Blanqui plantou suas fortificações
a dois passos do amontoado de confusões dos bisbilhoteiros do Enjolras, o
cenário de Os Miseráveis, sobre o ossário das insurreições derrotadas: no
dédalo de ruas rasgadas por Haussmann, mas ainda e sempre ativas, animadas.
Será o coração da Paris de negociantes que fornecerá os víveres e os materiais
(“as requisições de todos os objetos serão feitas nas lojas dos respectivos
negociantes cujos endereços se encontram no Almanach du Commerce”).
O coração da Paris artesanal fornecerá sua inteligência e sua habilidade:
todos os seus “carpinteiros, marceneiros, fundidores, torneiros, pedreiros”,
capazes de improvisar material de guerra, e todas essas minúsculas indústrias,
de fundo de quintal instalarão fábricas de armamentos.
O coração da Paris trabalhadora fornecerá seus homens para a revolta e

145
suas mulheres e seus filhos para a fundição de balas. Trabalho coletivo,
realização comunitária, a barricada é, primeiro de tudo, uma construção
racional, um meio para vencer. Sua construção e sua guarda não poderão ser
deixadas à iniciativa desordenada dos populares. A sociedade barricadeira não
é festiva: a ociosidade, a fantasia, a desordem, o dispêndio inútil de energia são
banidos dela. Nada de insurgente fumando cachimbo sobre seu monte de
pedras, nada de revoltoso parando na loja do negociante de vinhos ou indo
para casa dormir quando bem quisesse.
“Voluntários a serviço da liberdade”, os revolucionários só estavam livres
dos “sargentos durões”. Na barricada, os passos são contados, as pedras são
contadas, as palavras são contadas, os minutos contam: tudo deve ser ordena­
do, planejado, organizado.
Nas fileiras populares, falta "a unidade e o conjunto que fecundam, fazen­
do-os concorrer para o mesmo fim, todas essas qualidades que fazem com que o
isolamento surpreenda com tanta impotência. Falta-lhes organização. Sem ela,
não há nenhuma probabilidade. A organização é a vitória, a dispersão é a morte.”
A barricada blanquista foi o antijunho de 1832 e o antijunho de 1848, em
que o improviso, a dispersão de iniciativas e a ausência de qualquer estratégia
precipitaram a derrota das insurreições. Pois, para Blanqui, o militar ultrapassa
o político: insurgentes organizados poderiam ter vencido, da mesma forma que
um Louis-Philippe, mais firme, teria facilmente triunfado sobre os revoltosos de
quarenta e oito que venceram por um feliz acaso em fevereiro de 1848.
A barricada blanquista foi também, e por antecipação, o antimaio de 1871
em que os partidários da Comuna se refugiaram em seu bairro, esperando com
resignação o ataque de Versallhes.
Base de concentração, a barricada não é uma mola inerte. Ela deve
certamente servir "para reter os bandos, obrigando-os a permanecerem em um
só lugar”, mas constitui o ponto de partida para múltiplas operações, também
organizadas, como aquelas dos operários das fábricas de seda, em novembro
de 1831. Em toda cidade é preciso saber agir e rápido. Se a organização das
barricadas exige o bairro como lugar de fixação, a vitória da insurreição
pressupõe um poder exterior à comunidade local, um poder exterior e secreto,
que saiba quebrar a maneira desorganizada e espontânea dos revoltosos
parisienses consagrados ao abandono.
A revolução é obra de profissionais que enquadram militarmente uma
massa de voluntários. É a projeção na luta do modo de funcionamento das
sociedades secretas blanquistas, as Famílias ou as Estações. É o momento forte
em que a organização clandestina deve dar toda sua capacidade, se desacele­
rando sem se perverter.
Tão logo estejam disponíveis, os braços áa insurreição são enquadrados
minuciosamente; Blanqui, ordinariamente pouco inclinado a demonstrações
teóricas, certamente não escolheu esse instante para longos desenvolvimentos
justificativos. A análise política, em seu caso, tem funções de denunciação e de
esclarecimento de uma realidade finalmente fácil de ser compreendida, ainda
que encoberta pela ignorância multissecular. Como uma barricada, a sociedade

146
tem duas faces: de um lado, o povo, os trabalhadores, os proletários da pena e
da ferramenta; do outro, os “parasitas dourados, os sanguessugas, bebedores
de suor e de sangue: reis, militares, padres, agiotas, cortesãs e janotas”;
vocabulário sem idade que atravessará todo o século, irá de Babeuf aos
partidários da comuna de Paris de 1871.
Tudo isso será proclamado para desagregrar o inimigo; para os voluntá­
rios, assim como para os militantes das sociedades blanquistas, mais vale um
manual de manobras do que um tratado de socialismo. Para eles também, nada
de sufrágio universal. Os chefes preexistem ao movimento e decidem, acima da
massa, o destino de cada um: jovens burgueses rompendo com sua classe,
militares desmobilizados, trabalhadores instruídos formarão a subliderança;
trabalhadores qualificados oferecerão seus conhecimentos, e todos os outros,
seu entusiasmo e seu devotamento à causa. Mas todos têm apenas um papel:
obedecer àqueles que tomaram a iniciativa do movimento (quando? como?
Blanqui, nem aqui, nem em nenhum outro lugar, responde) e principalmente
àquele que concentra em suas mãos todos os poderes: o revolucionário, para
quem o dever é “a luta sempre, a luta apesar de tudo, a luta até a extinção”,
Blanqui, o comandante-em-chefe.
É ele que tem uma visão “pan-ótica” da cidade, manobrando aqui tal
batalhão, levantando ali tal barricada; dele partem todas as instruções, para ele
convergem todas as informações. Demiurgo da revolução, instaura a ordem
dentro da rebelião, seguindo o modelo militar, dando às forças irregulares “o
aspecto de um exército parisiense em boa ordem, manobrando segundo as
regras da tática” para melhor preparar a ordem pós-revolucionária em torno
do "aparelho de uma força governamental” gerado na insurreição.
Ainda que todos os seus confrades franceses, republicanos, socialistas,
comunistas sonhem com reformas pacíficas, com sufrágio universal, com
associacionismo ou com comunidade, ele é um dos únicos a sonhar em voz alta
com a revolução comunista e com a ditadura parisiense.
Em Instruction, mais do que em qualquer outro texto de sua obra
esparsa, Blanqui faz blanquismo; ele se isola, dizendo-o, no insurrecional. Com
um traço de pena ele escamoteia o problema pré-revolucionário: para ele o
povo é espontaneamente mobilizado, cheio de boa vontade revolucionária, que
apenas espera seus pastores. Com algumas frases, evita habilmente a questão
pós-revolucionária: todos os membros do aparelho do Estado serão castigados,
a facilidade e a felicidade florescerão no trabalho, assim como a liberdade, a
sociedade será reconstituída com base na Justiça... Aqui, nada mais o interessa
a não ser erguer o capitel do blanquismo, contando de maneira obsessiva as
pedras, os homens, os fuzis, os subterrâneos e os esgotos, para economizar
forças, arauto de uma revolução de baixo custo, a cinco francos por dia.
Fascinante e muito frio, inclinado para a tomada do poder, taylorizador de uma
divisão do trabalho revolucionário. Suas falanges jamais agruparam mais de
dois mil homens; sua legitimidade carcerária dá medo; ele é único. Sua
lembrança encheu Tocqueville de “desgosto e de horror; (...) ele parecia ter
vivido dentro de um esgoto e ter saído de lá” (Souvenirs); Hugo foi cativado.

147
mas ficou também assustado (Choses vues). Os socialistas o evitavam, os
comunistas o odiavam. Minucioso estrategista da revolução, falhou completa­
mente: embastilhado por todos os regimes políticos franceses, da Monarquia
de julho à III República, todas as suas tentativas fracassaram: no domingo, 12
de maio de 1839, bastaram algumas horas para que a tropa destruísse suas
magras barricadas construídas no bairro de Saint-Denis; em 15 de maio de
1848, foi preso na armadilha da invasão da Assembléia Constituinte; no
domingo, 14 de agosto de 1870, os insurgentes blanquistas não chegaram
“nem mesmo a tomar um quartel de bombeiros no Boulevard de La Villette”
(Leon Blum, no Congresso de Tours, 1920). Em 31 de outubro de 1870, ele
passou uma parte da noite a assinar decretos de um governo provisório que
nasceu morto. Em outras “ocasiões” ficou encarcerado (junho de 1848, março
de 1871), vacilante (janeiro de 1870) ou ultrapassado pela amplitude dos
acontecimentos (fevereiro de 1848 e setembro de 1870).
Sua posteridade não foi mais bem assegurada: repelido por Leon Blum
como quase-leninista (Congresso de Tours), rejeitado por Rosa Luxemburgo
como “centralista conspirador” (Centralismo e Democracia, 1904), serviu de
instrumento a Lênin que só consentiu em aceitar sua filiação para compartilhar
com ele o gosto pela insurreição como arte, abandonando a herança do
blanquismo às balbuciações das revoluções pré-modernas (O Marxismo e a
Insurreição, 1917).
Instruction pour une prise d ’armes apareceu como uma autocrítica
permanente do blanquismo realmente existente, espécie de projeção ideal de uma
sociedade repentinamente ordenada, se reunindo funcionalmente em torno de
barricadas silenciosas. E, no entanto, o blanquismo escrito e o blanquismo de
ação repousam, os dois, sobre o mesmo mal-entendido: “O povo está 11”
Alguns quiseram “retirar o mofo” do blanquismo: reavaliando a atenção
dispensada por ele para realçar todo o lento trabalho que Blanqui impunha
que a humanidade fizesse antes de chegar ao comunismo (J. Jaurès, Introdução
aos Discours parlementaires); reinserindo-o em uma tradição utopista, para
revelar, em toda sua obra, uma “vontade de passar fora dos limites” e uma
tentativa de implantar “a riquíssima matéria utópica do século XIX nas
tradições revolucionárias e a intencionalidade comunista das idéias políticas
de Babeuf” (M. Abensour).
Instruction é, no entanto, reveladora do golpe de estado blanquista:
destinada a surpreender os que estão por cima, a revolução surpreende os que
estão embaixo. A sociedade das barricadas está sempre ausente ou é sonhada:
ela terá sempre como finalidade última se adaptar às exigências desse formidá­
vel relojoeiro cheio de um amor insensível pelo povo revolucionário.•

• Instructions pour une prise d ’armes (1868-1869). Paris, La Tête des Feudles, col. “Futur
anterieur", texto estabelecido e apresentado por Miguel Abensour e Vincent Pelosse, 1972
Textes choisis, apresentados por V. P. Volguine, Paris, Éditions Sociales, 1959.

148
► Blanqui et les blanquistes. Atas do colóquio Blanqui, Paris, SEDES, 1986, 294 p.

Michel OFFERLÉ.

BLUM, Léon, 1872-1950


Na escala humana, 1945

O homem de uma geração que ele próprio declara em declínio pode, tal
como Jaurès, dedicar seu discurso à juventude? Pode, tal como Renan, propor
sua reforma intelectual e moral? Seria preciso não trazer o peso do passado
para armar o quadro do futuro. As grandes crises destroem as instituições e
os homens, as guerras não poupam os responsáveis. Blum sabia disso e disse-o
com a evidência do jurista que constata e conclui. Mas a história, que não é
cega, não condena à expiação faltas que não foram cometidas. Se ela sanciona
a falência da classe dirigente, a derrota de 1940 não marca o fim da democracia;
ela preserva as probabilidades do socialismo. O socialismo e a democracia:
Léon Blum reencontrou na prisão as duas certezas que, depois do primeiro
dia, sustentaram seu comprometimento político.

Na prisão

Desse escrito na prisão, redigido em 1941 por um homem de setenta anos,


que concentrava sobre sua pessoa todos os ódios do novo regime, surgem
primeiro a confiança e a serenidade. São, segundo Blum, valores eternos que os
acidentes da história não podem destruir: a liberdade, a fraternidade e a justiça,
esses “imperativos” da razão e da consciência pessoal. Não há futuro para as
ditaduras porque a morte não tem futuro. O nazismo pode saquear “todos os
resultados adquiridos pelo progresso humano”, negar e ridicularizar “todos os
princípios ideais que foram seu elemento inspirador”, usar suas garras no
combate que ele dá às forças da vida. Não se pode desviar o curso do progresso:
nesse credo se encerra todo o otimismo de Léon Blum, a própria ingenuidade de
seus julgamentos. Basta observar o objetivo, o horizonte para não se desesperar.
“Não é o amor ao próximo, é o amor mais longínquo que eu te aconselho”, dizia
Nietzsche, que Blum gosta de citar. Não que o homem persiga o fantasma da
perfeição, ele já é atualmente uma forma de perfeição; trata-se simplesmente de
ampliar a sabedoria, a ciência e a arte que ele já soube criar nas dimensões da
justiça, da fraternidade e da paz.

149
Quando um homem pensa assim a respeito da humanidade, o que pode
significar um Hitler? O que podem significar a barbárie, a brutalidade e a
ferocidade primitiva? Não há mesmo mais ódio possível, pois isso seria
perverter seu combate e se entregar aos valores do outro.
Blum foi corajoso em sua denunciação pública do nazismo, foi sereno em
seu fechamento ao espírito de vingança, mas não se sabe bem se essas
qualidades lhe devem ser creditadas, de tal modo elas lhe parecem quase
naturais. Pela pena do autor é o socialismo quem fala. Em uma bela página, a
que fecha o livro, o autor, diz tudo o que fez seu combate desde meio século
atrás. Nela, o leitor reencontra, à altura de seu mito, o socialista que fala ao
coração, o racionalista que não duvida do gênio do homem, o sábio que não
crê no triunfo da força.
Para devolver essa palavra de amor, essa escritura patética, um pouco
anacrônica, do velho tranqüilo que jamais duvida, aqueles que, na Libertação,
editam seu livro, escolhem o título /1 1'echelle humaine (Na escala humana).
Com o risco, no entanto, de enaltecer o resto, a maior parte da obra em que o
autor ergue o ato de acusação da burguesia e anuncia o tempo do socialismo.

O tempo do socialismo

Aí o estilo torna-se frio, quase impessoal. Blum desmembra os fatos,


distribui as responsabilidades, formula suas conclusões. Àqueles que querem
resgatar as origens políticas do conflito - os homens de Vichy entorpecidos pelo
ódio da Frente Popular, o ocupante obcecado pela belicosidade do outro - , ele
opõe uma leitura antes de tudo sócio-econômica logo de saída. "Expressão
política do capitalismo moderno”, a burguesia não soube responder à concentra­
ção e à transformação industrial da produção. Ela que controlava tudo - a
finança e os ambientes de negócios, é claro, mas também as assembléias locais,
os quadros de funcionários, a imprensa, o Parlamento, mesmo quando parecia
pertencer a uma maioria popular - não soube preencher o papel de guia que
queria assumir. Ela havia tido a abnegação e a clarividência, a coragem e a
sabedoria, a probidade e a paciência, a modéstia e a razão, tantas qualidades que,
entretanto, não puderam resistir às transformações das condições e das oportu­
nidades. No momento em que precisou se adaptar, renunciar a seus privilégios,
ela se mostrou egoísta, mesquinha, sem imaginação.
Para se salvar, não hesitou em se aliar ao fascismo, a inventá-lo na Itália
e a aplaudi-lo na França.
Com a burguesia, a derrota trouxe um regime construído à sua imagem.
Um parlamentarismo sem bases, por não ter partidos sólidos, sem regras e sem
chefes. Blum não investe contra a Terceira República, mas toma o cuidado de
distinguir parlamentarismo e democracia, considerando mesmo, na sutileza de
um parágrafo, a hipótese de um regime presidencialista. Em um período em
que os valores são contaminados pelas ditaduras, ele ousa associar democracia
com autoridade: “Um regime representativo, parlamentar, em que a soberania,
cfue pertence à nação, é delegada, com efeito, a representantes eleitos, não é

150
de maneira alguma, incompatível, em princípio, com uma autoridade forte,
estável e contínua.” A democracia, como a República - as palavras parecem ter
aqui o mesmo sentido - , tem qualquer coisa de sagrado e de frágil também. É
preciso se mostrar digno dela e, quando fracassar, deve-se desculpá-la (passar
a mão sobre sua cabeça). Blum se recusa a preparar o requisitório (acusação)
de uma classe contra outra, mas ele herdou de Marx essa convicção de que a
história anuncia o triunfo do povo. A república toma a cor de seus dirigentes:
república burguesa ontem, república popular e social amanhã.
Não é que o povo ou a classe trabalhadora - aí ainda as palavras se
confundem - tenha sempre se mostrado à altura de sua missão. Faltou-lhe,
“para conduzir a nação, uma generosidade, uma magnanimidade, uma boa
presença ideal, uma evidência de desinteresse e de sacrifício em prol do
interesse da coletividade, tudo o que Nietzsche chamou, em algum lugar, de ‘o
grande estilo na moral’, tudo isso para que a moral se aproxime da religião e
da propaganda ao apostolado”. Talvez porque seus representantes naturais
tenham eles mesmos fracassado em sua tarefa; o Partido Comunista, sem
dúvida, esse “partido nacionalista estrangeiro”, desde sua origem condenado
por sua dependência de traições e facilidades, mas também a SFIO, incapaz de
associar o ideal ao real, o sentimento à razão.
Aqui, a crítica se torna mais sutil. Liberado das obrigações partidárias, o
autor pôde dizer “Tudo o que é verdade”, tomar distância, falar como um
sociólogo. Aquele que detém a soberania deve, segundo ele, se mostrar “o mais
digno, o melhor”, ser “o modelo e o exemplo”. O militante o era: “Surpreendia
por sua avidez de conhecimentos, pela maturidade de sua razão, pela gravidade
de seu julgamento.” Mas o responsável, o chefe? A segurança do Parlamento não
tirou o sabor de sua crença e obscureceu seu combate? Como representante do
povo, ele se tornou um profissional; garantiu a transparência e, à imagem dos
outros homens públicos, construiu a fronteira que o separava de seus mandantes.
Seria preciso citar aqui as longas passagens em que o autor opõe o sacrifício dos
pais (intelectuais) - Vaillant, Guesde e principalmente Jaurès - ao conforto de
seus herdeiros: “Tornamo-nos fortes demais, prudentes demais; estamos pouco
a pouco nos deixando fluir para dentro do molde da vida comum...” Isso não é
tudo, sem dúvida: o culto da unidade, a confusão entre a paz e a servidão, os
compromissos passados com o Partido Comunista tinham progressivamente
afastado a opinião de seus representantes socialistas. Mas tudo é limitado: o
homem público esquece sua meta, perde a razão quando negligencia o cidadão.

O socialismo e a democracia

Como separar responsabilidades e soluções? Estará morta a burguesia?


Viva o povo! Teria a representação nacional esquecido o povo? Viva o povo-
representante! Pois se o povo é soberano, o soberano só existe por meio de
seus representantes. Isso é mais um problema de identidade, já que o povo
representa a si mesmo mediante seus representantes. Velha ficção herdada de
89 que a esquerda, socialistas e comunistas confundidos, adapta, transpõe para

151
assegurar a legitimidade do partido. Blum já o dizia, no Congresso de Tours;
“Nós sempre pensamos, na França, que amanhã, depois da tomada do poder,
a ditadura do proletariado seria exercida pelos grupos do próprio Partido
Socialista, tornando-se, em virtude de uma ficção com a qual todos nós
concordamos, o representante de todo o proletariado.” Em À Vechelle hu-
maine, o autor fala da expressão natural, de representante legítimo. Ao povo,
o partido toma emprestado suas qualidades, ele se diz o povo.
É em suas relações com o povo que Léon Blum situa o homem. O homem
que se enriquece por intermédio da sociedade, mas que, sempre, lhe fornece o
que ela tem de melhor; o homem na sociedade, aquele que renuncia ao
egoísmo, que subordina “seus interesses particulares aos interesses mais
gerais” da humanidade; uma espécie de ideal, de modelo para a ação política.
Pois se ele não existe ainda em toda a sua pureza, é para ele que o socialista
deve tender, é a ele que deve, antecipadamente, personificar, falando ao
sentimento, cultivando o desinteresse e a grandeza da alma. Pode-se dizer que
Blum propõe um humanismo? De fato, essa expressão surge apenas raramente,
sob sua pena, e, ainda assim, no sentido particular de “gênero humano”, de
“pátria internacional”, de humanidade. Mas a direção está bem traçada: trata-se
de formar a consciência, de satisfazer a necessidade religiosa, de fundar uma
nova espiritualidade. Reencontrar Jaurès, em suma, sem o qual o socialismo é
apenas a razão fria e cálculo de interesses. Se a opinião pôde confundir
socialismo com comunismo, atribuir a um as perversões do outro, não seria
porque os socialistas teriam esquecido a dimensão espritual de seu combate?
“Marx forneceu a vontade da luta operária mais forte, o mais poderoso dos
reconfortos; quero dizer a convicção de que uma fatalidade histórica traba­
lhava para ela. Mas o que é inevitável não é necessariamente justo, nem é
necessariamente satisfatório para a razão crítica e para a consciência moral.
Então, Jaurès havia mostrado que a Revolução social não é apenas a conse­
qüência inelutável da evolução econômica mas que seria ao mesmo tempo o
fim de uma exigência eterna da razão e da consciência humana.” Léon Blum
que, em seus desenvolvimentos consagrados à degradação da burguesia, havia
aplicado apenas a mecânica marxista, a ponto de raciocinar em termos de
necessidade, de leis da história, reencontra nesse ponto a parte inflexível de
vontade. Não basta mais falar da força das coisas, é preciso, em caso de
necessidade, lutar contra o curso das coisas, contra os sentimentos vis, que,
quando permanentes, espreitam o homem e a humanidade.

O que impressiona, nesse caso, é, em primeiro lugar, a fidelidade. Em


Pour être socialiste, Léon Blum escreveu que “o socialismo não é apenas uma
doutrina, é uma moral, quase uma religião”. O socialismo apela ao instinto de
moralidade que a sociedade mercantilista reprime. Basta, para converter o
homem, suprimir a “noite americana” que o envolve, um pouco como se realiza
uma operação de catarata: “O socialismo, uma vez concebido, produz em nós
a mesma revolução espiritual. É uma espécie de fronha moral que se retira de
nossa inteligência.” Trabalho propriamente pedagógico que não apela ao puro

152
sentimento, mas que solicita a razão, “a adesão refletida, total”. O socialismo
associa a moral e a doutrina, os valores e as necessidades, mas em proporções
muito desiguais, pois a sociedade justa repousa sempre, para ele, na democra­
cia. A democracia é o princípio, o estado de espírito, a paixão, diria Tocqueville.
Mas então, em que o socialista se distingue do republicano que, como
mostrou Claude Nicoiet*, coloca os valores no centro de sua proposta? Para
cultivar as qualidades de coração —a sensibilidade, a bondade, o espírito de
fraternidade —, o socialismo não se exporia à banalização e à insipidez? Para
salvar a terra da liberdade, não deixa ele para o comunismo aquela da
eqüidade? Léon Blum vê bem o obstáculo que o espreita: colocado em posição
intermediária, a meio caminho entre o Partido Radical e o Partido Comunista
Francês, o socialismo deve, para salvar sua identidade, acentuar sua diferença.
Lembrar aos comunistas que não se pode alimentar o ódio e ignorar o
sofrimento moral. Mas dizer também aos radicais que a dignidade do homem
não se concebe sem segurança e responsabilidade. As circunstâncias deslocam
as ênfases: se, no Congresso de Tours, precisava-se em primeiro lugar manter
o pólo democrático, se a seguir, até a véspera da guerra, o importante era
acentuar a referência socialista, trata-se agora, face ao desafio das ditaduras,
de situar de novo a síntese, para marcar bem seu eixo central, seu coração.
Essa é a lição de À Vechelle humaine onde Léon Blum, liberado dos cons­
trangimentos que lhe eram impostos pela direção do partido, pôde, daí em
diante, em plena liberdade, falar a verdade.
Sobre todos os pontos, seu socialismo continua, sem dúvida, clássico: é
preciso, como sempre, “conciliar o Direito dos Povos com a Paz, os Direitos
do Homem com a Ordem, combinar a organização coletiva da produção e do
consumo com o desenvolvimento das liberdades pessoais”, em resumo, firmar-
se, ao mesmo tempo, em Marx e em Jaurès. Nem a guerra, nem a época, nem
as traições que destruíram a SFIO em 1940 tornaram insípida a doutrina do
autor. Não falta nem mesmo a referência à ditadura provisória do proletariado,
que Blum chama de férias necessárias da legalidade. Sobre o essencial,
portanto, seria desnecessário encurralar a palavra que detona. Se Blum é
humanista, não poderia ficar a favor da guerra: o lugar que a ética e a
democracia ocupam em seu socialismo continua imutável.
Totalmente diferente é, em compensação, o lugar que o socialismo deve,
daí em diante, ocupar na democracia. Como Georges Boris, Léon Blum pensou
que a guerra marcaria a aurora.de um socialismo do poder. Encarregado do
destino das democracias, como ele poderia recuar sobre si mesmo, privilegiar
sua distinção? Quando definiu a doutrina, Léon Blum dizia que a democracia
era o princípio do socialismo; afirma agora, com nova clareza, que o funciona­
mento da democracia deve sempre seguir os passos do partido.
Pode-se medir a distância percorrida desde os anos vinte quando, para
proteger o socialismo da contaminação radical, Léon Blum construiu sua
teoria do exercício e da conquista do poder. Tudo se passa como se não

Claude Nicoiet, L ’idée républlcaine en France, Paris, Gallimard, 1982.

153
existisse mais daí em diante o risco de assimilação ou, antes, como se não fosse
mais necessário se proteger de uma deterioração que não tem como acontecer,
pois a democracia só é concluída no socialismo e este não pode ser concebido
sem a democracia.
Sobre esse ponto, parece que Léon Blum retira, ao menos em parte, a
perplexidade que encobria sua construção doutrinária nas relações que ela
estabelecia entre o poder, o partido e a classe trabalhadora. O partido, como
foi dito, é para ele a expressão da classe trabalhadora. Ele lhe pede emprestado
sua força e sua qualidade e lhe dá sua confiança e sua fé, há entre os dois pólos
como que um fio condutor onde circulam a razão, a maturidade e a inteligência
da história. Relações de consubstancialidade tais que toda fraqueza de um
reage necessariamente sobre o outro. Quando o socialismo, repartido e
dividido, não representa mais seu papel de guia, a classe trabalhadora se afasta
dele, não pensa mais em recorrer a ele, como aconteceu na véspera da Segunda
Guerra Mundial. Ao contrário, quando o proletariado não sabe mais sacrificar
sua vida, torna-se demasiado prudente, esvazia o partido daquilo que foi sua
razão de ser.
Sobre o princípio, não se vê mais diferença entre ele e a concepção
comunista do partido da classe trabalhadora, mas ele existe de outra forma
sobre os mecanismos de funcionamento que só têm sentido dentro dos
vínculos que o partido e a classe trabalhadora mantêm com o poder. Aos
partidários da Terceira Internacional, que faziam da posse do poder uma
condição de ação socialista, Léon Blum lembrou, no Congresso de Tours, as
virtudes da propaganda e da pedagogia. Nada de mudança política sem
transformação social, nada de tomada do poder sem organização da classe
trabalhadora. Sob essa condição, o partido se precaveu contra todas as
tentações do porta-voz que, sob a cobertura de seu mandato, enuncia apenas
sua própria palavra. O governo forte, autoritário, realmente sempre se apóia
sobre a imaturidade das massas, disponíveis para todos os empreendimentos
oligárquicos. Um poder socialista sem preparação é um poder que aceita
romper seus vínculos com a classe trabalhadora e se encerrar dentro de uma
lógica ditatorial: “A ditadura do proletariado não é mais, então, a espécie de
expediente fatal ao qual todos os movimentos de tomada do poder têm
necessariamente recorrido no dia seguinte de seu êxito. É, dentro de seu
pensamento, um sistema de governo criado de uma vez para sempre”,
declarou Léon Blum, dirigindo-se aos partidários da Terceira Internacional
no Congresso de Tours.
A missão pedagógica que lhe repetem dá ao partido, segundo esse
autor, sua dignidade e seu caráter insubstituível. O partido, garantia da livre
competição das idéias, mas também, talvez até em primeiro lugar, ins­
trumento de formação e de educação. Deve-se acrescentar que é também
agente de transmissão do saber? O partido detém, como pensam os comunis­
tas, uma verdade que tira dos militantes mais conscientes, da vanguarda que
ele reúne em seu seio? Nessa questão reside, sem dúvida, o ponto falho da
argumentação de Blum. Pois o partido é também uma máquina que funciona

154
apoiada sobre uma lógica completamente surda aos estímulos que a rodeiam,
uma solicitação que segrega seus próprios interesses, se for necessário,
opostos às finalidades que ele persegue, o que a SFIO ilustrou, por exemplo,
no período entre as duas guerras mundiais, quando cultivou o ritual da
sanção do orçamento.
Léon Blum viu perfeitamente o que pervertia o socialismo, a saber, a
distância que, sobre todos os planos - geográfico, intelectual, político e até
econômico - , separa o homem público do cidadão: refletiu sobre os mecanis­
mos que poderiam reconstituir os vínculos, a ponto de dar realidade à ficção
do partido-povo que ele sustenta. Mas não desenvolveu verdadeiramente a
reflexão sobre os riscos que espreitavam sua própria construção intelectual.
Pois a concepção do partido-povo encerra bem todos os ingredientes que
produziram noutro lugar o regime autoritário. Basta, para isso, inverter os
fundamentos: tomar o partido pelo povo, esquecer o homem, única unidade
de valor do combate político. Como resolver o problema, a não ser pela
reflexão, pela referência permanente a uma ética que impregna todas as
fibras do socialismo? Vamos recompor os vínculos, eliminar as fronteiras,
nos diz Léon Blum, em À Vechelle humaine, não para negar o valor e a
especificidade da sociedade civil, mas justamente para submeter totalmente
a sociedade política à direção da sociedade civil. O processo de retroação
garante o funcionamento do sistema: a democracia, em suma, como recurso
permanente do homem político.
Em À Vechelle humaine Blum dá o produto acabado de um pensamen­
to inteiramente construído sobre um ato de fé. Que ele é assim espreitado
pelos erros de julgamento, nota-se bem quando exprime sua confiança no
processo de liberação que integrará definitivamente a URSS no campo da
liberdade; que diz, às vezes, não à moral sobre a análise, isso transparece em
seu repúdio, primeiro instintivo, ao nazismo. Mas foi a esse preço que ele
pôde exprimir, na adversidade, um otimismo sem falha e resgatar uma
palavra daí para a frente livre de toda censura, até mesmo (da censura) da
doutrina, da qual, no entanto, ele havia dito aos socialistas que era o “dever
supremo da consciência”. Nisto Léon Blum é revisionista. Certamente não
subverte os fundamentos de seu sistema de valores; permanece o socialista-
democrata que sempre foi, mas guarda para si próprio, para sempre, a parte
inalterável de julgamento. A doutrina não poderá mais, daí em diante, abafar
o grito da consciência.

• À V ech elle h u m a in e, Paris, Gallimard, 1971 (1! ed., 1945). U o e u v r e d e L éo n B lu m , Paris,


Albin Michel, 6 t., 1954-1973; S o c ia lism e d é m o c ra tiq u e , Paris, Denoêl-Conthier, 1972.

► C. Audry, L é o n B lu m ou la p o litiq u e du ju s te , Paris, Denoél, 1970; C a h iers L éo n B lu m ,


Jean Jaurès et Léon Blum, 1982 (11-12), L’identité du socialisme français: Léon Blum et les
néo-socialistes, 1984 (15-16); L éo n B lu m e tV É ta t, Table ronde, Paris, 4-5 de junho de 1972, CN
RS, Circa, 1973; J. Colton, L é o n B lum , Paris, Fayard, 1968; J. Lacouture,, L éo n B lu m , Paris,

155
Seuil, 1977; P. Renouvin, R. Rémond (sob a direção de), Léon Dlum, chef de gouvernement
(1936-1937), Paris, Presses de la Fondation nationale des Sciences politiques, 1981; G. Ziebura,
Léon Blum et le parti sociallste, Paris, A. Colin, 1967.

Marc sa d o u n

BODIN, Jean, 1530-1576


Os seis livros da República, 1576

Desde sua publicação, a obra de Bodin, Les Six Livres de la République,


conheceu um imenso sucesso. De 1576 a 1641, contam-se nada menos do que
37 edições da obra: 25 edições em francês e 12 em latim. Mas, depois de 1641,
Les Six Livres de la République (Os seis livros da República) não conhecerão
mais as honras da edição. No entanto, e isso é sinal de um retorno merecido
de sorte, o livro foi recentemente reimpresso por um editor alemão, uma
primeira vez em 1961 e uma segunda em 1977. No entanto, trata-se apenas de
uma reprodução fotográfica da edição de 1583 —a melhor. Não se dispõe,
portanto, como notamos, de uma edição científica da obra filosófica da qual
não exageramos quando dizemos que está na origem da representação moder­
na da vida política.
Em Les Six Livres de la République, Bodin concebe o Estado moderno.
Concepção totalmente teórica, por ser concepção do princípio. Esse princí­
pio é o da soberania. E ele que estudaremos em sua estrutura e em sua
significação.
Certamente, a palavra “soberania” foi utilizada na literatura política
muito antes que Bodin se apoderasse dela; a palavra designava, então, o caráter
determinado de um poder não-vassalo. É em um registro completamente
diferente que se situa Bodin: a soberania não é mais considerada atributo de
um poder, mas a própria substância da “república” ou, melhor, sua definição.
A esse respeito, Maquiavel, decênios antes de Bodin, abriu o caminho para a
nova maneira de pensar (e de fazer da) política. Mas, se ele menciona a noção
de soberania, não a elabora. Foi Bodin quem se encarregou dessa tarefa. Em
todo caso, segundo Bodin, pensar em política será pensar em soberania. A
soberania passou a ser, daí para a frente, o fecho da abóbada do edifício do
direito político, isto é, do sistema teórico dos conceitos e categorias que
presidem o nascimento e o desenvolvimento do Estado moderno. De Hobbes
a Rousseau, de Locke a Montesquieu até Hegel e Eric Weil, o sistema do direito
político se aperfeiçoará, refinará seus modelos e suas formas; ficará sempre no
interior de uma problemática cuja gramática, vocabulário e sintaxe foram
inaugurados por Bodin, há quatro séculos.

156
Logo, o que é a soberania? Ela é, dizíamos, o princípio do Estado. Eis
aqui as primeiras linhas da obra: “República é um governo justo de várias
famílias e daquilo que lhes é comum, com poder soberano. Colocamos essa
definição em primeiro lugar, porque é preciso procurar em todas as coisas seu
objetivo principal: e depois os meios para alcançá-las. Ora, a definição não é
outra coisa senão o objetivo do assunto que se apresenta: e, se ele não estiver
bem fundamentado, tudo que for construído sobre ele ruirá logo após” (Rep.,
p. 1) Existe, nesse ponto, uma dupla afirmação. Primeiramente, existe a
república se a soberania for colocada como princípio. Precisamos compreender
que um bando de malfeitores dirigido por um chefe ou, paralelamente, uma
população qualquer vivendo honestamente, com ou sem chefe, não são repú­
blicas nem formam Estados. Existe Estado ou república, se existir o governo
justo (ordem jurídica) e autoridade definida pela soberania. Daí a segunda
afirmação contida nas primeiras linhas da obra: a soberania do poder é a
definição da república ou do Estado. Mil páginas seriam necessárias a Bodin
para demonstrar essas duas afirmações ou, se preferir, essa única afirmação de
dupla interpretação.
A obra, com efeito, recusa dois preconceitos. Logo de início, o preconcei­
to segundo o qual basta que exista um chefe, isto é, um centro de autoridade
última para que esse chefe seja considerado “soberano”. Mas essa é a antiga
definição da sobrania como poder não-vassalo. Ora, a soberania do príncipe, de
acordo com Bodin, se ela remete à autoridade última e derradeira, não se reduz
a ela, como em sua definição. Sendo a prerrogativa do soberano (o monarca),
ela é, em seu conceito, o princípio do Estado, um princípio que dá forma e
estrutura à política do Estado. É por isso que a soberania não é o que
caracteriza o poder do chefe, é o que constitui o Estado ou a república.
Qual é essa constituição? Aqui, chegamos ao segundo preconceito. Para
constituir a unidade do reino, onde uma única lei (“governo justo”) se aplica
igualmente a todos, é preciso uma forma política tal que a “divisão”governa-
dor-governantes seja estabelecida, preservada e conservada. O Estado ou
soberania é essa forma. Entendemos que a soberania - forma da república bem
organizada —repousa sobre a separação do príncipe (soberano) da multidão
(povo). “E útil, escreve Bodin, que o príncipe soberano, para governar bem um
estado, tenha o poder das leis sob seu próprio poder; seria ainda mais
conveniente ao senhor no estado Aristocrático e necessário ao povo no estado
popular pois o Monarca está separado do Povo e, no estado Aristocrático, os
Senhores estão também separados do Povo miúdo de sorte que em uma e outra
república há dois partidos, a saber, este ou aquele que tenha a soberania, de
um lado, e o povo, do outro..." (p. 143).
Essa doutrina afirmada da separação das duas partes (governantes e
governados) é capital: exprime a estrutura fundamental do Estado, sua forma
teórica. O Estado, isto é, sua versão soberania, é o sistema político da
ordenação da multidão dentro da unidade de um princípio: o príncipe
(monarca) em pessoa. A multidão governada é reconduzida ao Um como a
seu princípio. Na verdade, essa problemática da ordenação ao Um não é

157
nova. A novidade de Bodin se atém, no entanto, a uma distinção essencial
que ele é o primeiro a estabelecer e que dará força ao tema da ordenação.
Com efeito, o tema do governo do Um já estava presente em São Tomás de
Aquino, assim como em Marsile de Pádua. Bodin assume a sua respon­
sabilidade: "Se, portanto, escreve Bodin, o sábio príncipe deve, no manejo
de seus súditos, imitar a sabedoria de Deus no governo deste mundo, é
preciso que ele se coloque, pouco freqüentemente, à vista de seus súditos, e
com uma majestade conveniente à sua grandeza e poder” (p. 617). Porém,
esse tema de imitação de Deus não é pura e simplesmente retomado pelo
autor dos Six Livres de la Republique. Serve para confirmar a doutrina da
separação (uma quase-transcendência) do príncipe dos súditos. Essa quase-
transcendência serve, então, para desenvolver a teoria inteiramente nova da
soberania, não como poder último (o que ela é, entretanto), mas unicamente
como poder perpétuo. A soberania do poder do monarca (ou, em geral, da
parte governante) se define pela perpetuidade, não por sua eminência. É
preciso entender por isso que o poder do soberano não está sujeito ou
submisso ao tempo —é nisso que ele é “perpétuo”. “A soberania é poder
absoluto e perpétuo de uma república... Aqui é necessário formar a definição
de soberania, porque não há nem jurisconsulto nem filósofo político que a
tenha definido: ainda que seja o ponto principal e também o mais necessário
de ser entendido no tratado da República. E tanto mais que dissemos que
República é um governo justo de várias famílias, e do que lhes é comum,
com poder soberano. Disse que esse poder é perpétuo porque pode aconte­
cer que se dê poder absoluto a um ou a vários por certo tempo, o qual ao
expirar faz com que voltem a ser apenas simples súditos: e, enquanto estão
no poder, não podem ser chamados Príncipes soberanos, pois são apenas
depositários e guardas desse poder, até que seja do agrado do povo ou do
Príncipe revogá-lo: o que permanece sempre compreendido” (pág. 122).
Esse texto e o citado mais acima, relativo à “divisão”, estão, sem dúvida,
entre os mais decisivos da imensa obra de Bodin. O primeiro formula a
estrutura teórica geral do Estado moderno: distinção entre o Um e o Múltiplo,
ordenação do Múltiplo ao Um. O segundo enuncia o principio do governo: a
autoridade prática, o poder que se exerce. Esses dois elementos são os dois
pilares do Estado moderno, os dois componentes da soberania. Assim, Bodin
tem razão quando afirma - como ele o fez muitas vezes! - a novidade de seu
empreendimento.
O poder é perpétuo - e absoluto; em que se fundamenta essa perpetui­
dade? É a distinção, estabelecida por Bodin, entre Estado e governo, entre o
soberano e os magistrados. Essa distinção é aquela sobre a qual repousam
ainda nossos modernos sistemas estatais. Para ser perpétuo, o poder pão deve
estar sujeito ao tempo, isto é, à necessidade, como disse Maquiavel. E preciso
que o Estado permaneça imutável quaisquer que sejam os tipos de governo
adotados. Quer o Estado seja governado “popularmente” ou “realmente”, seu
princípio —a soberania —permanece inalterado. Assim o Estado, como o poder
em que ele se fundamenta, é “perpétuo”. Essa é a essência da soberania,

158
segundo Bodin. É também a essência do Estado. Mas é conveniente devolver
a Bodin o que lhe pertence: afirmando ter sido ele o primeiro a definir
corretamente a soberania, afirmou igualmente ser o primeiro a operar a
distinção Estado-governo. Entre outros adversários culpados a seus olhos de
não terem compreendido esse ponto, cita Aristóteles: “Aristóteles tomou a
forma de governar pelo estabelecimento de uma república” (p. 338). E, um
pouco mais adiante, este julgamento sem apelo: “Teremos, portanto, como fato
consumado, que o estabelecimento de uma República é muito simples, ainda
que o governo seja contrário ao Estado” (p. 339). Está provado que a
posteridade teórica e prática não deixou de dar razão a Bodin.
Assim, a defíniçâo da soberania é a de ser "perpétua”; qual é a definição
de seu caráter dominante? O poder soberano se caracteriza por aquilo que
é absoluto e indivisível. Essas duas questões estão ligadas: absolutismo do
poder do Estado, executado pelo príncipe, e indivisibilidade da soberania -
que é una.
Bodin explica que, apesar de toda sua onipotência, o príncipe não é
menos submisso às leis da natureza e às leis divinas. De sorte que o soberano
pode muito bem derrogar às leis das quais ele é o autor, desde que não se
oponha, ao fazê-lo, à Lei de Deus. Está aí uma doutrina muito variada em suas
nuances, mas que, sob a cobertura de uma limitação do poder pela lei natural
divina, visa realmente a proclamar que o rei encontra em si mesmo a limitação
de seu próprio poder. O rei, como já vimos anteriormente, governa seus súditos
à imagem de Deus governando o mundo, de sorte que, sendo a imagem de
Deus aqui na terra, ele só pode julgar com justiça. O rei é, como tal, tido na
conta de agir em conformidade com as leis naturais. Isso se mostra, disse
Bodin, por uma “seqüência de razão”. Assim, o rei pode fazer o que quiser,
“desde que não faça nada contra a lei de Deus. Pois, se a justiça é a finalidade
da lei, a lei é obra do Príncipe e este é a imagem de Deus, é preciso, pela mesma
seqüência de razão, que a lei do Príncipe seja feita segundo o modelo da Lei
de Deus” (p. 161). Não se pode, portanto, dizer que Bodin limita a vontade
soberana pela lei divina, visto que sua vontade é considerada capaz de exprimir
a própria lei divina. Ele não é a imagem de Deus? Pode-se apresentar essa
seqüência de razão sob a forma de um silogismo: as leis divinas são justas —o
rei é a imagem de Deus - as leis do rei são justas (divinas). A isso se acrescenta
o seguinte: é um dado fundamental e determinante da teoria da soberania que
só exista um único soberano. De sorte que a questão que se coloca é saber
quem poderá julgar o soberano se este transgredir as leis da natureza. Para
isso seria preciso que houvesse um segundo soberano, juiz do primeiro. Existe
aí uma contradição nos termos.
É, aliás, por causa desta contradição que Bodin desenvolve sua teoria da
indivisibilidade da soberania, origem do slogan revolucionário da República
“una e indivisível”. O soberano não podendo instituir um outro soberano juiz
do primeiro, a soberania se torna indivisível e intransferível. É por isso que
Bodin pensa que a primeira marca da soberania consiste em “dar lei a todos
em geral e a cada um em particular: mas isso não é suficiente, pois seria preciso

159
uni-las, sem o consentimento da maioria, nem da igualdade, nem mesmo da
minoria” (p. 221). Logo, a soberania é indivisível, intransferível —e absoluta
é por isso que não há vontade, na república bem organizada, que lhe seja igual
e, a fortiori, superior. O soberano só conhece o inferior —os súditos é por isso
que a multidão é separada - “desunida” - do Um.
O que é verdadeiro para as limitações impostas à soberania pelas leis
naturais também o é para a limitação imposta pelo costume, pois, apenas a
vontade real dá força aos costumes. "E, por isso, diz Bodin, toda a força das leis
civis e dos costumes consiste no poder do príncipe soberano. Eis, portanto, a
primeira marca da soberania, que é o poder de dar leis ou comandar todos em
geral e cada um em particular, o que é incomunicável aos súditos” (p. 222).
O poder é, portanto, bastante absoluto, e as limitações que Bodin admite
a esse poder são, na verdade, todas verbais. Para que elas se tornem reais na
prática, seria preciso que um direito de resistência fosse reconhecido no caso
de um príncipe violar os costumes ou, pior ainda, a lei divina. Ora, não existe
nada disso. Para que exista um direito de resistência, é preciso que o povo seja
juiz do soberano; em outras palavras, que a soberania seja transferível e
divisível, o que ela não é. Se esse fosse o caso, diz então Bodin, o príncipe não
seria soberano (p. 302). Mas trata-se apenas de soberania e, sob essa relação,
nenhuma resistência é possível, nem pelo “caminho da justiça”, nem, acres­
centa Bodin, pelas “vias de fato” (págs. 302-303).
Os Six Livres de la République terminam com uma longa dissertação -
meio clara, meio obscura - falando sobre a “justiça harmônica”. Se a pos­
teridade não acreditou dever reter as variações misteriosas sobre o número
perfeito - uma muito bela e sutil combinação das proporções aritmética e
geométrica - aplicadas à difícil arte de governar os homens, ela reteve, mais
prosaicamente, o princípio da soberania. E ele quem preside a constituição dos
Estados e sua conservação. Não se poderia dizer se a harmonia dos números,
antiga idéia de Platão, governa secretamente os homens. Resta dizer que
Bodin, inventor da modernidade em política, não foi contestado sobre o ponto
decisivo de sua filosofia: em uma república bem organizada, a multidão é
conduzida pelo Um, todo o resto sendo apenas anarquia.

• Les Six Livres de la République, segunda reimpressão fotomecánica da edição de Paris,


1583, Darmstadt, Scientia Verlag Aalen, 1977.

► Henri Baudrillart, Jean Bodin et son temps. Tableau des théories politiques et des idées
économiques au seizième siècle, Paris, 1853; Roger Chauviré, Jean Bodin auteur de la
République, Paris 1914; Pierre Mesnard, L ’essor de la philosophie politique au X V f. siècle,
Paris, 1952, p. 473-546; Acts du Colloque International Jean Bodin, Munique, 1970; Juiian H.
Franklin, Jean Bodin and the rise ofabsolutist tbeory, Cambridge, 1973.

Gérard MAIRET.

160
BONALD, Louis de - 1754-1840
Legislação primitiva, considerada dentro dos últimos tempos unica­
mente pelas luzes da razão, 1802

Uma longa tradição tomou a Théorie du pouvoir politique et religieux


(publicado em 1796), como a obra maior de Bonald. Essa obra contém
certamente a primeira formulação dos princípios que Bonald desenvolveu em
seus escritos posteriores. No entanto, apesar de vários pedidos, Bonald recu­
sou-se, enquanto vivo, a fazer reeditar a Théorie du pouvoir politique et
religieux (Teoria do poder político e religioso). Esse livro, escrito durante a
emigração, em circunstâncias difíceis, parecia-lhe imperfeito.1 A leitura das
diferentes obras políticas de Bonald confirma esse julgamento.2 A Teoria do
poder político e religioso é uma obra de contorno relativamente difuso. Não
se encontra nela as reflexões sobre a linguagem e sua origem às quais Bonald
confere um papel crucial em todas suas outras obras. Certos conceitos centrais
de seu pensamento (os de poder, de ministro e de súdito) são utilizados nessa
obra com menos nitidez do que nos escritos posteriores. Ora, Bonald pretende
formular uma teoria ao mesmo tempo rigorosa e sistemática. A Legislation
primitive aparece a esse respeito como mais representativa de seu pensamento
chegando ao estado de maturidade.
A originalidade de Bonald, com relação a outros pensadores contra-re-
volucionários, tais como Burke ou Maistre, se deve ao fato de ele procurar
utilizar contra a Revolução as armas do próprio racionalismo. A monarquia,
a sociedade das ordens, a unidade da política e da religião não são jus­
tificadas por ele enquanto legado de uma tradição imemorial, própria de um
povo, mas enquanto expressões da ordem natural e racional, única e univer­
salmente válida. Bonald vê nas Luzes a fonte do fundamento da Revolução.
As luzes, pensa ele, triunfaram opondo ao antigo mundo a força da razão.
Ele quer, ao contrário, mostrar que a ordem monárquica, da nobreza e
religiosa é, na realidade, a única de acordo com a razão. Esse projeto
estratégico da volta das Luzes contra a Revolução constitui o cerne do
pensamento de Bonald. Esse só é compreendido com relação a seu contexto
histórico e intelectual. “Nós consideramos, escreve Bonald, como as únicas
luzes da razão, a legislação geral da ordem social. (...) Aqui temos a temer
que os mesmos homens que acusaram até o presente a fé dos cristãos de ser
simples demais e crédula demais não a acusam hoje em dia de ser racional
demais. (...) É porque a'fé começa a razão e a razão conclui a fé que vieram
à luz, de séculos em séculos, escritos sólidos e volumosos nos quais os
motivos da fé foram provados pela razão da autoridade e que apareceriam
outros, no futuro, onde esses motivos serão provados pela autoridade da
razão. (...) pois se pode dizer que a única autoridade que tem poder sobre o
ser racional é a razão.”3 Bonald quer demonstrar a necessidade de um
monarca, de uma nobreza hereditária e da união do político com o religioso,
e ele enfatiza sem cessar o caráter rigoroso e necessário de suas próprias

161
conclusões. Essa ordem social e política estando apenas de acordo com a
natureza, o legislador não precisa se preocupar em adaptar as instituições
que ele dá às circunstâncias, ao caráter do povo que ele institui; ele deve ao
contrário visar "à maior perfeição das leis e a empregar a retitude absoluta
dentro da regra universal”.4 Àqueles que censuram o absolutismo de seu
pensamento, Bonald responde: “Todas as vezes que se trata do geral, a
verdade é absoluta: pois absoluto e geral são sinônimos.”5
A ordem política da qual Bonald pretende demonstrar a necessidade não
tira, portanto, sua autoridade da história e da prescrição (no sentido jurídico
do termo tal como o emprega Burke), mas da natureza do homem e da
sociedade. Todavia, Bonald separa-se radicalmente da filosofia política moder­
na na medida em que a natureza de um ser significa, para ele, não seu estado
original ou elementar, mas sua perfeição e seu estado mais desenvolvido. E ele
reprova precisamente os filósofos modernos por terem confundido a natureza
e o estado original.9 A natureza do homem não se revela dentro do indivíduo
cronologica ou ontologicamente anterior à sociedade, mas dentro do sujeito
social vivendo e falando com seus semelhantes. O homem só alcança a
verdadeira humanidade e a razão pela linguagem. Ora, sublinha Bonald, a
linguagem é um fato social, ela só existe por meio da troca entre sujeitos
vivendo juntos e transmitindo-se, de geração para geração, o dom da lingua­
gem. Além disso, o homem só desenvolve as faculdades mais altas que
constroem sua humanidade pelo domínio de seus instintos e de suas paixões.
Ora, só a vida em sociedade permite esse domínio por meio da rede de
dependências e de deveres na qual ela encerra o sujeito. A sociedade definida
em geral é "a reunião dos seres semelhantes para a reprodução e a conservação
deles”.7 Ela existe certamente no estado natural; é a família. Mas esse estado
natural não revela a verdadeira natureza da sociedade. É um estado inacabado
e imperfeito, pois as diferentes famílias entram em conflito e assim colocam em
perigo sua conservação. Elas não podem, portanto, subsistir nesse estado. “Um
estado em que o ser não pode permanecer não é seu fim, seu estado natural,
e a sociedade não podia mais ficar estacionada dentro do estado doméstico,
assim como o homem não pode permanecer criança. (...) A verdadeira natureza
da sociedade é portanto o último estado de sociedade ou a sociedade pública,
assim como a verdadeira natureza do homem e seu estado necessário é a
sociedade em geral.”8 A “sociedade pública” nasce quando um poder exterior
às famílias estabelece entre elas a ordem e a paz.
Uma sociedade bem constituída comporta, segundo Bonald, três elemen­
tos: o “poder” que "quer com o conselho dos ministros”, “o ministério” que "age
sob a direção do poder” e os “súditos", enfim, para o bem dos quais são exercidas
a vontade e a ação dos dois primeiros elementos.9 O “poder” é, bem entendido,
exercido pelo rei. Bonald dá, em compensação, uma significação particular ao
termo “ministério”: é a nobreza inteira que forma a classe dos “ministros”. O
ministro torna eficazes as vontades do poder, ele é o meio-termo entre o poder
e o mundo ou entre o poder e os súditos. A nobreza preenche seu papel mediador
por meio de suas duas funções essenciais: julgar e combater. Os três termos de

162
poder, de ministro e de súdito constituem o reflexo dentro da ordem social, de
uma estrutura ontológica universal: causa, meio e efeito.10 Essa estrutura
ternária é reencontrada em toda parte: no próprio Deus (a Santíssima Trindade),
nas relações de Deus com os homens (Deus é a causa, Cristo é o mediador e os
homens são o efeito), dentro da Igreja (o papa, enviado de Cristo, o clérigo, i. e.
os ministros da religião, e os fiéis), dentro da própria família (o pai, a mãe e os
filhos) e dentro do indivíduo enfim (a vontade, os órgãos e os objetos submetidos
à ação).11 Por mais curiosos e mal fundados que sejam esses enfoques, eles
manifestam a potência da vontade sistemática em Bonald. Eles são compreendi­
dos a partir de seu projeto central: dar à ordem de antes da Revolução um lugar
inabalável dentro da razão e da natureza das coisas. Bonald sublinha cons­
tantemente essa unidade de estrutura universal para mostrar que sua concepção
de sociedade é a única de acordo com a ordem do mundo.
Uma sociedade bem constituída é também essencialmente unificada e
uniforme. Bonald insiste em particular sobre o fato de que o poder deve ser
único e de que ele não se poderia dividir. Ele censura Montesquieu por ter
“ignorado a verdade fundamental da união íntima e necessária do poder
legislativo e da função executora”. Ele chegou mesmo a, prossegue ele,
“consagrar como um dogma o erro oposto, a divisão e o equilíbrio dos
poderes. (...) J. J. Rousseau, ao contrário, a quem só faltou, para ser o primeiro
publicista de seu tempo, não ter o espírito distorcido pelos princípios religiosos
e políticos que ele tinha sugado junto com o leite", percebeu essa verdade.12A
própria Revolução teria sido útil se ela tivesse feito progredir a idéia da
unidade social e política. “Os inimigos da França quiseram destruí-la pela
Revolução, e a França tornou-se mais poderosa por meio da Revolução; se a
Revolução estabeleceu a unidade dentro de sua constituição, a uniformidade
dentro de sua administração, a união entre todas as suas partes, tripla
unidade, cimento indestrutível das sociedades, meio mais poderoso de seu
desenvolvimento e de seus progressos, uma sociedade fundada sobre essa base
não é mais a coisa do indivíduo, mas a coisa do público, non res privata sed
res publica, e então como diz J. J. Rosseau no Contrato Social,"“a própria
monarquia é república”.13 A paixão anti-revolucionária de Bonald não deixa
nenhqma dúvida, mas ao mesmo tempo sua tomada de partido preconcebida
em favor da unidade e da uniformidade o faz perceber a possibilidade de tirar
partido da Revolução e de sua obra. Outra vez, se está aqui nos antípodas da
crítica burkeniana da Revolução.
Essa preocupação de unidade e de uniformidade aparece com uma
nitidez particular na concepção da educação. Bonald distingue “a educação
pública” reservada às crianças nobres que o estado delas destina às funções
“públicas" (as funções judiciárias e militares), e “a educação particular e
doméstica” que devem receber os súditos não-nobres. A dimensão "pública” é
própria da nobreza, pois a nobreza se consagra unicamente às funções gerais
(julgar e combater), enquanto os não-nobres vivem dentro da esfera da
particularidade, pertencem a esse estado "em que as pessoas só se oçupam de
si e de seus próprios interesses”. A educação mais elevada, a educação pública

163
deve ser “perpétua” (/. e. sempre idêntica ao longo dos tempos), geral e
uniforme. Ela deve, portanto, ser assegurada por um corpo de ensinadores
único, estável, aplicando por toda parte e sempre os mesmos princípios. "É
preciso um corpo porque se precisa na educação pública de perpetuidade,
generalidade, uniformidade; mesma vestimenta, mesma alimentação, mesma
distribuição de horas de estudo e de repouso, mesmos mestres, mesmos livros,
mesmos exercícios, uniformidade em tudo e para tudo, em todos os tempos e
em todos os lugares”.14 Bonald deplora que a própria monarquia tenha cassado
da França o corpo que assegurava melhor essa uniformidade da educação: a
ordem dos jesuítas.
Dentro da ordem política desejada por Bonald, o poder é essencialmente
exterior à sociedade que ele rege. Sua exterioridade é a condição de sua
generalidade e de seu caráter "público”. A lei, diz Bonald, retomando a fórmula
de Rousseau consagrada pela Revolução, é a expressão da vontade geral.
Porém, por essa mesma razão, exalta ele, ela não poderia provir dos súditos
que são apenas particulares. Se a lei for feita pelo povo, ela será necessaria­
mente a vontade da maioria, quer dizer, de certos homens; ela não será coisa
pública, coisa que não pertence a ninguém. Para Bonald, a generalidade
autêntica implica a exterioridade e a transcendência. Mas que dizer então do
monarca cuja vontade é, para esse autor, a vontade geral por ser exterior ao
que ela regula? De fato, o princípio de exterioridade vale também para ele, pois
sua vontade deve ser apenas o reflexo e a aplicação de uma vontade superior.
Ele só detém uma soberania delegada, a soberania verdadeira está em Deus
somente. O princípio de exterioridade se introduz portanto. Ele se exprime
dentro deste “axioma (...), que pode ser visto como o fundamento da ordem
social: A soberania está em Deus... O poder é de Deus”} 5 Se o poder vem de
Deus, se as leis têm sua origem em Deus, os homens submetidos ao poder e
às leis não estão sob a dependência de outros homens. Colocar a fonte do
poder em Deus tem, primeiro, como efeito, segundo Bonald, assegurar a
independência dos homens com relação uns aos outros e sua submissão
comum a uma instância que nenhum deles domina. “O homem é por sua
natureza independente e sujeito a Deus apenas.”16 Se o poder vem de Deus,
aquele que o exerce é apenas o “ministro” de Deus; ele é responsável diante
dele pelo uso que faz de seu poder. 0 titular do poder só faz ocupar um cargo
do qual ele não tem a propriedade total e absoluta e se deve amoldar a uma
lei que lhe é exterior.
Essa lei foi formulada pela primeira vez no Decálogo. E um fato, escreve
Bonald, que o Decálogo constitui o conjunto das “dez leis enunciativas das
relações fundamentais da sociedade, leis das quais se percebem os traços em
todos os povos da Terra; é fato que jamais houve civilização no mundo, isto é,
razão nas leis e força nas instituições, senão nas sociedades judia e cristã, as
únicas entre todas que não tiveram leis falsas, absurdas, atrozes, contrárias à
natureza dos seres e de suas relações (...)”17 Bonald afirma assim (sem
argumentar mais sobre sua tese) que os dez mandamentos designam a ordem
social conforme à natureza das coisas. Por estarem de acordo com a natureza

164
entendida comó perfeição, eles descrevem as "relações necessárias” que os
homens devem manter entre eles. As sociedades que não respeitam essas
relações são não somente ilegítimas, mas frágeis também. Os homens perma­
necem livres; podem, portanto, afastar-se dessa lei fundamental dos seres, mas
a história se encarregará de lembrar-lhes que só uma sociedade de boa
constituição (Bonald joga com o duplo sentido do termo) é durável.18 A
Revolução acaba de mostrá-lo com força. Assim, a função essencial do poder
político é a de fazer respeitar uma lei da qual ele próprio não tem o domínio,
a lei dada por Deus que fixa as relações entre os seres.
De maneira mais geral, Bonald quer demonstrar que tudo o que
permite ao homem desenvolver sua natureza acabada supõe a intervenção
de um princípio exterior e, por último, de Deus. Quer se trate da linguagem,
da educação, da sociedade política, a estrutura lógica é a mesma: a ordem e
a perfeição só são possíveis se a fonte da regra for exterior àquilo que ela
regula. A própria razão não é a marca da autonomia ou da auto-suficiência
humanas, pois ela não é inata no homem. Só o conhecimento da verdade
constitui a razão do homem, “o homem não tem, portanto, razão antes de
conhecer a verdade; portanto, ele não descobre a verdade por sua razão; ele
recebe da razão de um outro ser o conhecimento da primeira verdade...”.19
A verdade, para Bonald, é sempre ensinada e recebida do exterior. "Esse
ensinamento necessário da verdade chama-se revelação, manifestação feita
pelo ser que sabe ao ser que ignora; e embora essa expressão só se aplique
ao conhecimento de verdades primitivas doadas por Deus mesmo aos
primeiros homens, é verdade dizer que o homem, mesmo hoje em dia, só
recebe seus primeiros conhecimentos pela revelação, isto é, pela transmissão
que seus preceptores lhe fazem da arte da palavra, meio de todo co­
nhecimento da verdade.”20 Isso explica a importância que Bonald concede à
questão da origem da linguagem. A linguagem não pode ter sido inventada
pelo homem, pois, para inventar, é preciso pensar e só se pode pensar se já
se tem a linguagem. “Nós não podemos pensar sem falar em nós mesmos.”21
A linguagem portanto foi doada ao homem por Deus. Bonald pensa encon­
trar aí a prova mais sólida da necessidade da revelação que é ao mesmo
tempo dom da linguagem e dom dos conhecimentos.22 Além da revelação
original, a linguagem e o conhecimento foram sempre doados aos indivíduos,
pois já existem quando os indivíduos aparecem e os recebem ou captam da
sociedade em que nasceram. Cada geração transmite e impõe à geração
seguinte a língua e o saber. Bonald critica com força os princípios educativos
de Rousseau. A educação não pode nem deve visar a arranjar a descoberta
espontânea da verdade pela criança; ela é necessariamente uma imposição
por uma instância exterior; só há educação pela autoridade.23
Ao princípio de exterioridade deve-se acrescentar um princípio de fixidez
e de perpetuidade. Dentro da sociedade política, o poder e seus ministros
devem ser fixos e perpétuos. Dentro de toda sociedade, existem indivíduos que
julgam e combatem, os notáveis. Porém, nas sociedades primitivas, essas
funções são asseguradas de maneira temporária os ministros nessas sociedades

165
são passageiros como o próprio poder. À medida que as famílias se multiplicam
e se aproximam, “as paixões fermentam mais”, e é preciso desde então um
“freio” permanente. O fato de que o poder seja pensado como um “freio”
mostra bem, porém, sua dimensão essencial de exterioridade. É preciso que
esse freio esteja perpetuamente em ação. Por um movimento de progresso às
vezes lento, o poder e o ministério tornam-se vitalícios, depois hereditários.24
A hereditariedade é a “forma perfeita” do poder e do ministério. Ela é, segundo
Bonald, uma defesa contra “o arbitrário”, em particular no caso dos ministros.
Se os ministros forem escolhidos pelo rei (ou pelo povo), sua designação será
o produto de uma vontade humana e estará, portanto, exposta à arbitrariedade
e à corrupção. Em um sistema fundado sobre a hereditariedade é a natureza
que escolhe os ministros. E preciso dizer, parece, que para Bonald o essencial
é que essa escolha seja subtraída às vontades humanas.
O poder e o ministério devem não somente ser fixos, mas também
proprietários. Devem possuir eles mesmos os meios materiais que lhes permi­
tam assegurar suas funções. Isso garante sua independência com relação
àquilo que eles regem. No caso da nobreza (o ministério), a propriedade
garante também a independência frente ao poder. Para Bonald, tanto os nobres
devem ser submissos ao poder do qual eles são os ministros em suas ações,
quanto devem dispor de uma posição independente (a eventual incompatibili­
dade entre esses dois objetivos não é nunca refletida pelo autor). Só a
propriedade fundiária chega mesmo a conferir uma independência e uma
estabilidade suficientes por ser independente das flutuações econômicas.25 As
funções judiciárias e militares devem, portanto, ser asseguradas por famílias
proprietárias de terras. Bonald considera que o estabelecimento de tropas a
soldo e a venalidade dos ofícios de judicatura, decididos pela monarquia
francesa, constituíram uma corrupção da ordem natural.26 Ele deplora também
que os proprietários nobres tenham deixado os campos, perdendo assim seu
vínculo com o resto da sociedade e expondo-se à acusação de ser só uma classe
parasitária.27
O projeto de Bonald é, sem dúvida nenhuma, o de defender a ordem
social e política pré-revolucionária. Todavia, Bonald foi efetivamente conduzi­
do a reinterpretar o Antigo Regime segundo categorias que ele lhe impõe do
exterior e que realmente nunca foram as suas (em particular o esquema
ternário, poder, ministro e súdito). Na realidade, Bonald reconstruiu uma
ordem que nunca existiu. Sua teoria é em definitivo menos conservadora do
que reacionária (no sentido neutro desse termo). Ela se ordena em torno da
rejeição da Revolução. Mas essa rejeição não consegue nem conservar nem
ressuscitar uma ordem antiga, desemboca sobre a proposição de uma nova
ordem. Por outro lado, tomado enquanto sistema teórico novo, esse pensamen­
to aparece como muito menos demonstrativo do que seu autor gostaria. Ao
lado de alguns argumentos sólidos, o sistema comporta muitas falhas concei­
tuais, enfoques incertos e de consecuções mal asseguradas. 0 pensamento de
Bonald oferece um interesse essencialmente histórico. A maioria dos pensa­
dores políticos escreve sem dúvida em referência a uma conjuntura histórica

166
e intelectual particular, mas alguns entre eles conseguem sobre essa base
elaborar teorias cuja validade e interesse ultrapassam suas condições de
emergência. Bonald não chega a tanto.

• Législation primitive..., 3 volumes, em Oeuvres de M. de Bonald, 15 volumes, Paris, A. Le


Clère, 1817-1853, vols. 2, 3 e 4.

► H. Moulinié, De Bonald, Paris, Félix Alcan, 1915; M. H. Quinlan, The historical thought o f
lhe Viscomte de Bonald, Washington, The Catolic University of America Press, 1953; R.
Spaemann, Der Ursprung der Soziologle ausdem Geist der Restauration, Studien über L. G.
A. de Bonald, Munique, Kosel Verlag, 1959; A. Koyré, Louis de Bonald, em Êtudes d ’histoire
de la pensée philosophique. Paris. Gallimard, 1971; G. Gengembre, Bonald, ses concepts et
Vhistoire, tese de terceiro ciclo, Université de Paris IV, Paris, 1983, datilografado.

B e r n a r d MANIN.

NOTAS
1. As pessoas surpreendem-se de que eu não tenha mandado reimprimir minha obra da
Théorie du pouvoir..., escreve Bonald. (...) Essa obra, composta sem ajuda e sem livros, com
reflexões e lembranças, em meio a todas as misérias da emigração e dos cuidados que devia ter
com meus filhos, foi impressa na Alemanha e enviada para Paris, onde foi apreendida pela polícia
e onde eu mesmo quase fui preso.f...) Desde esse momento, distraído por outras preocupações
públicas e domésticas, eu não mais me ocupei com essa nova edição. “Não haveria nada,” creio,
“para mudar nos princípios, mas seria preciso resolver melhor sua forma.” Esse fragmento é
citado no texto intitulado Da vida e em escritos do Sr. Visconde Bonald, em Oeuvres de M. de
Bonald, Théorie du pouvoir politlque et rellgieux, 2 vol., Paris, A Le Clère, sem data, L 1, págs.
7-8. No “Discurso preliminar” da Législation primitive, ele observa que a Teoria do poder
político e religioso “se ressentiu menos dos tateamentos inseparáveis de toda teoria nova do
que das circunstâncias penosas em meio às quais foi escrita", Législation primitive, op. cit., 2,
f, pág. 142. (O número árabe indica o tomo das Oeuvres, o número romano remete à divisão
interna da Législation primitive em três volumes.)
2. Cf., em particular, o Essai sur les lois naturelles de Tordre social e a Démonstration
philosophique constitutif de la societé.
3. Législation primitive, 3, II, págs. 143-144.
4. Ibidem, 2 , 1, pág. 259.
5. Législation primitive. Discurso preliminar, 2 , 1, pág. 8.
6. Ibidem, Discurso preliminar, 2, I, págs. 231-232.
7. Législation primitive, 3,11, pág. 36.
8. Ibidem,, 2 ,1, pág.s 233-234.
9. Ibidem, 3,11, pág. 36.
10. Ibidem, 3, II, págs. 55-56.
11. Ibidem, Discurso preliminar, 2 , 1, págs. 129-131.
12. Législation primitive, 3, II, pág. 42.
13. Ibidem, Do tratado de Westfália e do de Campo-Formio, 4,111, págs. 418-419.
14. Législation Primitive, Da educação dentro da sociedade, 4,111, pág. 73.
15. Législation Primitive, Discurso preliminar, 2,1, pág. 199.
16. Ibidem, Discurso preliminar, 2,1, pág. 199.

167
17. Ibidem, 3, II, pág. 6.
18. Législatlon primitive. Discurso preliminar, 2 ,1, págs. 153-154.
19. Ibidem, 2 , 1, pág. 354.
20. Ibidem, 2 , 1, pág. 355.
21. Ibidem, Dissertação sobre o pensamento do homem, 3, II, pág. 160.
22. Cf. ibidem, 3, II, págs. 57-58.
23. Ibidem, Da educação dentro da sociedade, 4, III, pág. 34.
24. Ibidem, Tratado do ministério público, 3, II, págs. 356-357.
25. Législatlon primitive, Tratado o ministério público, 3, II, pág. 326.
26. Ibidem, Tratado do ministério público, 3, H, págs. 289 e 334.
27. Ibidem, Tratado do ministério público, 3, II, págs. 389-390.

BONAPARTE, Luís Napoleão - 1808-1873


Idéias napoleônicas, 1839 (tendo como prefácio às edições de 1860
e de 1869 o ensaio A idéia napoleõnica, publicado desde 1840)

Se as prateleiras de nossas bibliotecas oscilam sob o fardo das memórias


dos grandes servidores do Estado, muito poucos homens que se tornaram
dirigentes da França tentaram expor seus próprios princípios de ação. No
entanto, reconhecendo a força e a paixão das quais dá provas o jovem sobrinho
do imperador, é preciso admitir que nós não nos ocuparíamos com seu
pequeno livro se o autor não tivesse em seguida se tornado presidente da
República e depois imperador dos franceses. Pois, enquanto “obra política"
propriamente dita, Des idées napoléoniennes (Idéias napoleônicas) testemu­
nha muito menos originalidade ou profundidade intelectuais do que outras
obras da época, como por exemplo Qu’est<e que le tiers état? Não se pode
nem mesmo defender sua introdução neste dicionário baseando-se na amplidão
de seu impacto sobre sua época: seu sucesso editorial foi, na verdade, bastante
modesto (três edições, seis traduções) em comparação com as célebres defesas
e ilustrações do Império publicadas sob a Restauração e a Monarquia de Julho,
principalmente com o surpreendente best-seller Mémorial de Sainte-Hélène
(1817), que foi ao mesmo tempo a principal fonte e o ponto de partida desse
ensaio de Luís Napoleão Bonaparte.
Quem diz obra de época diz circunstâncias históricas. O principal
motivo de Idéias Napoleônicas foi o de demonstrar que seu autor tinha
idéias, simplesmente, e que ele não era apenas, para repetir o sarcasmo de
um contemporâneo, um “tolo imperial”. O príncipe reconhecia isso: “Tudo o
que se conhece sobre mim até o presente”, escrevia ele a um amigo íntimo,
“não pôde dar idéias diferentes daquelas que se tem de um bravo jovem
ativo, ousado, apaixonado pelo exército, mas estouvado e incapaz de ter uma
conduta política; quero fazer o público mudar essa opinião.”1 Estamos no
meio de 1839, apenas três anos após o golpe de Estado fracassado de

168
Estrasburgo. Luís Napoleão vivia em exílio em Londres, mais convencido do
que conviria de que a opinião pública achou sua escapada ridícula. (Na
realidade o governo do rei “burguês” teve um momento de medo). De
maneira paradoxal e, para o autor, provocante, a lenda napoleônica aproxi­
mava-se de seu ponto culminante (um ano antes do retorno das cinzas),
quando depois de dez anos toda força política organizada em torno de um
“príncipe bonapartista” tinha quase desaparecido. No caso dos republicanos,
assim como no dos devotos dos dois ramos da monarquia, jornais, partidos
e sociedades multiplicavam-se, sustentados por uma produção editorial
impressionante lançada pelas “grandes cabeças” do liberalismo, do conser­
vadorismo e, mais recentemente, do socialismo. Quanto aos “napoleonistas”,
"o único teórico do bonapartismo foi o próprio Napoleão. Os escritores a seu
soldo não fazem teoria política”.2 Na ativa sobrou apenas essa inesquecível
evocação que é o Mémorial de Sainte-Hélène —esse texto, com mais de vinte
anos, que de qualquer maneira não era um manifesto sistemático próprio
para inspirar um movimento político atento ao discurso, às necessidades e
às oportunidades a serem aproveitadas na época.
Idéias napoleônicas foi escrita em um estilo deliberadamente magisterial
e apocalíptico: “Corrupção de um lado, mentira do outro, e ódio por toda
parte”, escreve o autor, jogando todo o diapasão sobre a corda que nossos
tempos chamariam De gaulliana, “eis nosso estado! (em 1799). E em meio a
esse caos de inteligência e de miséria, parece que não há mais idéia bastante
grande para que se reúna uma maioria, que não há mais um único homem
bastante popular para que personifique um grande interesse” (págs. 3-4).(3
Para responder a essa desordem sócio-histórica horrorosa, “a Providência”
ergueu “esse guia... um segundo Josué” (pág. 2), “o gênio civilizador do século”
(pág. 123), um fundador-guerrèiro à altura de Moisés, Maomé, César e Carlos
Magno. E, como esses outros grandes homens, incluindo Jesus Cristo, Napo­
leão tinha “em comum com a Divindade” o fato de ele “não morrer (...) nunca
inteiramente... A idéia napoleônica jorrou do túmulo de Santa Helena da
mesma forma que a moral do Evangelho se elevou triunfante apesar do suplício
do Calvário” (págs. 5-6).
Isso quanto ao estilo. Quanto ao conteúdo, não há necessidade de passar
em revista aqui a narrativa totalmente idealizada (e muitas vezes errônea) da
política imperial tanto interior quanto exterior. Como um maníaco conservador
de museu, o autor nos expõe o menor dos objetos que ele tem a seu cargo, sem
se preocupar com seu valor, seu interesse ou sua pertinência. O retrato que se
desenha, assim, é o do Mémorial..., ligeiramente suavizado com alguns traços
novos, notadamente com uma sensibilidade ao “social” e às “nacionalidades”.
Filho da Revolução, Napoleão I teria ratificado a destruição do sistema feudal
e instaurado a sociedade igualitária. Apaixonado pela liberdade, ele teria
compreendido rapidamente que esta só podia ser instaurada progressivamente
a reboque de uma autoridade de Estado duravelmente restabelecida. Dedicado
à paz, ele teria, todavia, aceitado que a guerra foi a única maneira de impô-la
contra as potências reacionárias coligadas. Dedicado ao progresso social e mais

169
particularmente à sorte das classes inferiores e dos pobres, ele teria visto que
só o Estado centralizador podia conduzir uma política capaz de levá-los de
volta à pátria definitivamente. E, enfim, a própria encarnação do patriotismo
francês, como ele sozinho, representante da grande nação, Napoleão teria sido
ao mesmo tempo imperador no sentido clássico, isto é, animado por uma visão
de império —visão que se traduz em termos modernos sob a expressão de
“Associação européia” (pág. 143). Em resumo, o único erro do tio, aos olhos
do sobrinho, foi o de ter querido mandar construir (ou melhor, de construir
ele mesmo) Roma de um dia para outro.
Se este sumário não faz justiça à afeição manifestada pelo autor, é preciso
contudo, constatar que o efeito cumulativo de seu enfadonho inventário não
pôde deixar de surpreender muitos leitores dos pálidos anos de 1830, qualquer
que tenha sido sua política pessoal e isso em virtude de um paradoxo bastante
singular: se é incontestável que a lembrança e a influência do "imperador”
tocavam de perto todos os recônditos da sociedade (e não somente da francesa),
não é menos verdadeiro que seu “princípio” era depreciado por regimes que, em
contraste com o império, tinham falta de popularidade e principalmente de brio.
Para compreender esse “princípio”, é preciso considerar o aspecto
"teórico” de Idéias napoleônicas, pois, mesmo se o autor se deixar levar por
suas formas grandiloqüentes, um pensamento verdadeiramente coerente dese­
nha-se sob sua pena. O autor coloca a obra de reconstituição da sociedade
(francesa e também européia) a crédito de Napoleão I enquanto homem-funda-
dor e não no ativo da Revolução e, menos ainda, no da república. O imperador
teria decididamente instaurado um novus ordo seculorum (“A idéia napoleô-
nica se fraciona em tantos ramos quanto o gênio humano” (págs. 8-9)). Se há
aqui a reivindicação pregada por esses outros “azuis”, os republicanos, o
sobrinho lhes contesta a pretensão de ter gerado a nova ordem. Sem demons­
tração real (ressente-se a ambivalência do autor com respeito à sua esquerda),
Luís Napoleão constata simplesmente que a república, em contraste com o
império, não é uma "designação de princípios”4 —entendamos aqui que lhe
falta um fundador, um "grande homem” - o que foi atestado por seu fracasso.
Ela é apenas uma forma de governo que não deixou de se procurar, até o
momento em que o Primeiro Cônsul veio em seu socorro. O império, em
compensação, apresenta-se não somente como (novo) regime, mas, metapoliti-
camente, como “designador de princípios”, encarnando a esse título a repúbli­
ca (cujo nome ornamentou sua moeda, até 1808). Em resumo, recuperando
apenas em seu benefício a Revolução, a “idéia napoleônica” se concebe como
diferente das outras dentro da arena política, pelo menos até a chegada em
cena do socialismo internacional revolucionário.
O fato de a república ser apenas uma “forma” enquanto o império é um
“designador de princípio” implica que este possui um certo conteúdo mutável
e mutante, adaptando-se às diversas necessidades e épocas históricas. Perma­
nece, contudo, imutável em seu fundo. Esse fundo é bem conhecido por nós:
o célebre “colosso piramidal” (pág. 107) construído sobre a ordem, a autori­
dade, a centralização de poder, o antiparlamentarismo, a restauração da

170
religião, mas com a subordinação desta ao Estado, a grandeza militar, a
soberania nacional, os trabalhos públicos aumentados, etc. Por trás desses
prescritivos e descritivos familiares, há uma essência implícita que se poderia
resumir assim: um homem, escrutando as profundezas do caos que engoliu
uma sociedade, a ponto de reduzi-la ao estado natural, apodera-se das rédeas
de um governo tornado ilegítimo por esse mesmo caos. Esse ato primordial de
violência encontra sua confirmação, sendo imediatamente submetido ao julga­
mento do povo, sob a forma de plebiscito (“apelo ao povo”). Se este aprovar,
o homem (desde então “grande homem”) torna-se sozinho detentor legítimo
da soberania nacional. Esse acontecimento fundador não se reproduz. Uma vez
aprovado, o chefe de Estado - que ele seja cônsul, presidente ou imperador é
de importância secundária —tem o direito de transmitir a soberania para seus
sucessores dinásticos. Dito isso, o apelo ao povo, como recurso prático, fica
sendo o símbolo teórico por excelência do chefe (e somente do chefe).
Se não considerei a referência que o autor faz à “Providência” na escolha
do “guia”, foi porque a religião desempenha apenas um papel estilístico dentro
da legitimidade bonapartista. Era uma maneira ainda natural de falar na época,
mas, no fundo, a doutrina emitida por Luís Napoleão —em forte contraste com
a da antiga monarquia, a quem, no entanto, ela se reúne sob muitos outros
aspectos - não tem nenhum vínculo orgânico com a religião e ainda menos
com a Igreja. Em oposição ao Antigo Regime, onde o “princípio” real admitia
o papel primordial do Primeiro Estado dentro do processo de legitimação e lhe
reconhecia (muitas vezes, é verdade, contra o bom prazer dos reis) uma base
de autoridade anterior e independente, a idéia napoleônica se gaba de consi­
derar a religião uma instituição, até mesmo uma emanação do Estado, subor­
dinada e submetida por este a suas próprias metas e fins (veja-se o exemplo do
Catecismo imperial de 1803).5
Resta a outra base tradicional da legitimidade política: o uso, famoso e
familiar, que o bonapartismo faz do consentimento popular. Aqui, o autor, como
seu augusto ancestral, é bem menos claro e convincente do que parece à primeira
vista. Pois, debaixo das banalidades da propaganda bonapartista sobre “o apelo
ao povo”, a realidade é bem outra, se bem que ela permaneça escondida, implícita.
“A Idéia napoleônica” não requer que o “grande homem”/fundador deva no
início ser conhecido pelas pessoas; sua vocação de salvador é sentida ou
ressentida interiormente. O povo, coisificado sob o termo de "nação”, só tem que
confirmar o ato fundador; ele não está munido do direito expresso de poder
voltar atrás em sua ratificação inicial, salvo na circunstância muito especial da
extinção da linha hereditária. Ele também não tem o direito de iniciar o apelo ao
povo, que permanece inviolavelmente nas mãos do chefe do Estado. É seu esse
direito, mesmo se ele diz detê-lo em nome da “nação”. Uma derrota desastrosa
em guerra (e. g., 1814-1815) não obriga o príncipe a ir “ao povo”, mais ainda, ela
não constitui uma razão suficiente para destituir o “princípio” reinante. Aliás,
nada de tudo isso pertence como propriedade particular ao pensamento do jovem
príncipe; e nada nas constituições em vigor para a maior parte dos dois Impérios
viria a desmenti-lo (bem ao contrário).

171
Realmente, nós lidamos aqui com um verdadeiro "terceiro” caminho dentro
da tradição francesa da legitimidade política. Pois atrás de sua fachada religiosa
e sobretudo democrática, o “designador de princípio” bonapartista, uma vez
autofundado, se transforma diretamente em sistema auto-suficiente e autojus-
tificado, não tendo praticamente (nem mesmo teoricamente, após sua fundação)
contas a prestar a nenhuma autoridade anterior ou superior. No nível de sua
“constituição”, assim como de sua vida cotidiana, a antiga monarquia tinha
constantemente de suportar a anterioridade e a alteridade de uma Igreja da qual
ela dependia para sua santificação. A república, por sua vez, é obrigada a tratar
com, quase se definir por, a exigência das eleições e de uma soberania na maioria
das vezes mista. Em compensação, o Estado bonapartista só deve referir-se a seu
chefe fundador e a seu Ato instaurador, ligado a uma aprovação nacional
posterior. Estão aí um alfa e um omega suficientes. O resto consiste em formas
e fachadas diversas, mutáveis, sustentadas por uma atividade contínua e um
pouco frenética para evitar que a verdade do Ato seja reconhecida na contradição
que ela implica - a saber, sua fundação pela destituição de uma legitimidade
anterior, dificilmente justificada já que esta era concebida evidentemente como
fundada em "princípio”. (Quando era Presidente da Segunda República, o
príncipe concordou mesmo publicamente que ele havia errado em ter por duas
vezes conspirado contra o regime de Julho, do qual reconhecia a legitimidade.)
O recurso final, portanto, apesar da impressão que dão a propaganda e a prática
bonapartistas, não pode ser a aprovação popular (coisa posterior e contingente),
mas a convicção e a coragem anteriores do “grande homem” dentro da unicidade
de seu Ato. (“O elogio ao imperador está nos fatos... Sua glória é como o sol; cego
é aquele que não o vê” (pág. 114)). O salvador se conhece, se escolhe, se ordena
e, muitas vezes, se coroa; em seguida a população aprova. O "designador de
princípios" não é, portanto, um sistema, mas um homem, um homem ágil e ativo,
“inimigo de toda teoria (entendamos ‘princípio’) absoluta” (pág. 37), glorifican-
do-se “sempre de só dever ao povo francês” (pág. 95), ele se encontra suscetível
de se acreditar “na obrigação de prestar contas de seus atos diante dos corpos
constituídos" (pág. 102), mas fazendo-o “com toda a boa vontade” (pág. 102) e
não legalmente preso a essa obrigação. Essa é, no final das contas, uma versão
francesa, pós-revolucionária, da teoria carlyliana ou maquiavélica segundo a qual
“um único homem é muito capaz de constituir um Estado” em virtude de sua
virtü (virtude, em italiano). (Ou ainda: "O nome de Napoleão é por si só um
programa.”)6
Resta considerar a praxis da idéia (ou melhor, do “grande homem”)
napoleônica. Trata-se de uma política que procura superar, quer dizer, desle-
gitimar a política e se subtrair a ela. O procedimento repousa sobre uma
separação nítida entre, de um lado, uma coisificação - na maioria das vezes
erigida em “nação”, mas também conhecida sob outras referências: “país”,
“França”, “povo”, etc. - e , do outro, uma realidade material: o Estado. “Nação”
implica simplesmente uma entidade empírica - a coletividade social inteira - ,
mas na realidade funciona como um sistema de discurso mais arbitrário.7
Ela se exprime, segundo Luís Napoleão (aqui retomando Rousseau e a

172
Revolução) pela “vontade geral”, da qual o único representante e mesmo a
única personificação é o imperador. Ele, como a "nação, está por definição,
excluído, do domínio da política; eles constituem mais o pano de fundo diante
do qual a vida política da sociedade se desenrola. Idéias napoleônicas, em
comum com a totalidade das obras e do bonapartismo, incluindo as cons­
tituições dos dois impérios, encobrem a posição exata da “nação” e sua relação
com o “homem nacional” (o imperador)8; entretanto,-torna-se claro que este
está munido da atribuição de poder exprimir melhor do que uma maioridade
atual o que é a vontade geral e, portanto, de agir contra aquela, dado o caso.
Enquanto “legislador” -“fundador”, o imperador é anterior não somente ao
Estado é ao governo, mas também, em certo sentido, à própria “nação”, à qual
ele dá a vida, “organizando-a”, quer dizer, dotando-a de uma admistração —ela
mesma cuidadosamente diferenciada da “organização política” que "ela domi­
na até um certo ponto” (págs. 50-51). A política propriamente dita está alojada
nos ministros, dentro de um Parlamento não munido de poder ou dentro dos
partidos que chegam apenas à última fileira do prestígio dentro da vida pública.
Assim, o discurso “nacional” permite ao sistema bonapartista enfeitar-se
com vestes “revolucionárias” (democráticas) sem, para tanto, erigir instituições
que dariam o direito a essa "nação” de partilhar verdadeiramente a soberania
exercida em seu nome. Repelindo a idéia da política em favor do governo por
um "grande homem” e^primindo-se por uma administração onde toda a
autoridade emana do imperador (págs. 51, 91), a idéia napoleônica reduz
consideravelmente os caminhos de contestação que marcariam uma república
mesmo presidencial e autoritária.9 Em resumo, a praxis da idéia napolêonica
ocasiona ao “guia nacional” esta flexibilidade em matéria de governo tão
gabada pelos bonapartistas. O fato de ser o único “nacional" de jure dentro de
um sistema centrado sobre a bifurcação entre “nação” e estado permite ao
imperador exercer um poder político sob uma égide metapolítica, anterior e
legitimante. Essa maneira de conceber a coisa pública admite mais facilmente
uma explicação como esta, oferecida por Luís Napoleão para justificar seu
“Ato” fundador de 2 de dezembro: “Sair da legalidade para entrar de novo no
direito.” 10
Contrariamente ao que se poderia pensar, a tendência imperial da “idéia
napoleônica” não tem nada em si contrário a suas ênfases sobre a "nação” e a
“nacionalidade” (o que é mais fácil de se compreender quando se concebe
“nação” como discurso político e não como uma entidade geográfica ou social).
Esse “sonho inebriante” que é a "Associação européia” poderia ser o “quadro de
felicidade” (págs 143-148) de qualquer regime (república jacobina, assim como
monarquia clássica ou “burguesa”). No entanto, só um autor tão entusiasmado
quanto o nosso por um sistema “grande homem” se arriscaria a falar da “Europa
napoleônica” (pág. 148) e a justificá-la com um vocabulário ligeiramente às
avessas do discurso "nacional”: Napoleão I, livre de todo preconceito nacional
só via... “nas diferentes nações da Europa os membros de uma única e grande
família” (pág. 7; sublinhas acrescentadas)
O que eqüivale a dizer que o discurso “nacional” não é sem riscos para toda

173
"idéia” ou sistema ligados ao “grande homem”. Uma referência constante demais
e propagada à “nação” —isto é, a tendência da ala “esquerda” ou “liberal” do
bonapartismo —presta seu flanco aos ataques daqueles que gostariam de munir
essa “nação” de atributos reais. No mínimo, isso arrisca a elevar um competidor
ao “segundo Josué” e, no máximo, roça o regime republicano.
Porém a dificuldade séria imanente à “idéia napoleônica” depende de sua
continuação e de seu desenvolvimento mais do que de sua fundação {contra­
riamente ao que se disse freqüentemente). Uma vez que o “guerreiro-funda-
dor” deixe definitivamente a cena pública, seu sistema, se não cair sobre um
“terceiro, [quarto, quinto...] Josué”, arrisca-se a se degradar, lenta ou rapida­
mente, em dinasticismo simplesmente — portanto, a correr o risco de uma
oposição crescente fazendo ela mesma um uso eficaz do discurso “nacional".
O autor reconhece que a hereditariedade do poder imperial representa um
ponto um pouco nevrálgico para sua “idéia”. Ele não ousa fazer apelo' à
legitimidade da linha direta (da qual ele não era de qualquer maneira ainda o
representante em 1839). Ele escava mais dentro do sulco central do bonapar­
tismo, perguntado-se “onde encontrar... atualmente esse homem extraordiná­
rio que se imponha ao mundo?”. E ele responde não reclamando os direitos
presumidos de sua família, mas sim falando “daqueles que sentem o sangue do
grande homem em suas veias” (págs, 151,161).

• L.-N. Bonaparte, Des idées napoléoniennes., Paris, 1839, VIII-266 p; L'idée napoléonienne,
Londres, 1840; L.-N. Bonaporte, Oeuvres, Paris, 1848,3 vols.

► Obras sobre o bonapartismo: Frédéric Bluche, Le Bonapartisme, Aux origines de la droite


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Steven ENGLUND.

NOTAS
1. Carta a Narcisse Vieillard, de l s de junho de 1839.
2. F. Bluche, Le bonapartisme (PUF, col. “Que sais-je?", 1891), pág. 22.
3. As citações entre parênteses referem-se à edição de 1860, precedida pelo pequeno
ensaio L ’idêe napoléonlenne, publicado primeiramente em Londres em 1840.
4. Ver Luís Napoleão Bonaparte, Considérations politiques et m/litaires sur la Suisse
(1883).
5. Todavia, o “princípio" bonapartista se serve do elemento eclesiástico de legitimidade
como fachada (“Napoleão, pela graça de Deus... imperador”, etc), e é, portanto, sob esse aspecto,
menos o verdadeiro filho da Revolução do que seu “irmão inimigo" o republicanismo, que não
somente suprimiu todo papel legitimante da religião como também desencadeou uma lenta
transferência do sagrado para a idéia secular de “nação”.
6. Luís Napoleão, diante da Assembléia Legislativa, em 31 de outubro de 1849. Minha
interpretação diverge nesse ponto da de Frédéric Bluche (do qual, entretanto, admiro os trabalhos
sobre o bonapartismo) quando ele escreve: “A propaganda napoleônica não enriqueceu o mito
fascinante do' super-homem vencedor do mundo...” (1981, págs. 22-23). Em um primeiro estudo
muito mais desenvolvido, Le bonapartisme, aux origines de la droite auloritaire (1800-1850)
(1980), Bluche sustenta que é um erro e um anacronismo qualificar o sistema bonapartista de
despotismo esclarecido. Trata-se mais, para ele, de um “absolutismo democratizado” (págs. 88-91).
De fato, os quatro termos —despotismo, esclarecido, absolutismo e democratizado —são perfeita-
mente aceitáveis dentro de seus próprios limites. Poder-se-ia pensar em outros que conviriam
também, em particular “nacional”, “autoritário”, e mesmo (tardiamente) “liberal” e “social”. Mas
eles são, no fundo, superficiais, não chegam ao ceme do assunto da mesma maneira que o conceito

175
do herói autojustificante —o equivalente leigo do “profeta” ou do eleito de Deus. Ver também J. G.
A. Pocock, The Machiavelllan Moment (Princepton, 1975), Parte Um.
7. Durante os séculos antes de Luís Napoleão, “nação” desempenhou um papel crescente e
variado dentro da história política francesa. Enquanto significativo político, designava diferentes
referenciais a serviço das metas das clientelas correspondentes a cada época. Tentar um resumo
geral (supra-histórico) de uma pretensa “essência” da idéia de “nação”, sem referência a uma época
particular, seria audacioso e sem grande utilidade. Basta dizer que o que se poderia denominar um
“discursoeriHiação” é um sistema de palavras e de textos empregando um vocabulário à base de
nação (nação, nacional, nacionalidade, nacionalista) e um vocabulário à base de pátria (pátria,
patriota, patriotismo), por meio dos quais um grupo ou uma instituição - seja ela comuna, Estado,
Parlamento, ou rei, ou seja, ordem, classe ou governo, etc. - concebe a si mesmo, concebe o mundo
e, ao mesmo tempo, avança um programa político, o todo se fazendo em nome da coisa pública e
para seu bemestar (utilitas publicam). Normalmente o discurso-em-naçáo toma a forma de um
apelo à unidade lançado a certos setores e exlcluindo outros, uns e outros sendo definidos segundo
critérios estabelecidos pelos arautos do discurso. Essa maneira de exprimir-se possui a vantagem
singular de parecer sempre ser empírica, quer dizer, de designar as coisas materiais - um país, um
povo, uma “raça” - quando, enquanto uma prática política, é mais “racionalista”, subordinada à
escolha e à definição do usuário. O efeito do discurso-em-nação, para retomar as palavras de Karl
Mannheim, é "to cast doubt upon the integrity of the adversary and to deprecate his motives”
(ldeology and Utopia). Por exemplo, no começo do século XVIII, o discurso “nacional” encontrava-
se na maioria das vezes nos movimentos de oposição da alta nobreza para quem “nação” denotava
as três ordens do reino, mas levava a conotação da “antiga nação dos Francos” em distinção com
o “povo” (vencido) gaulês (cf. Boulainvilliers, Saint-Simon). Subitamente, no curso de um momento
surpreendentemente breve (o inverno de 1788-1789), o terceiro estado apoderou-se do discurso (cf.
Sieyès) e desencadeou uma “política-em-nação” até então inédita por sua força e amplidão e que
excomungou (desnacionalizou) os arautos anteriores do discurso “nacional”, a nobreza. Ver
também a excelente análise do impacto do discurso nacionalista no fim do último século em A.
Siegfried, Tableau politique de la France de VOuest, págs. 410-440.
8. É verdade que Luís Napoleão, como seu predecessor no trono imperial, esquivou-se a
essas questões. Eis aí uma confusão que muitas vezes a história oferece ao teórico da política:
a doutrina, normalmente serva das circunstâncias, se inclina. Há portanto, como outros
observaram, pelo menos três bonapartismos, notadamente o de pleno reino, o do fim de reino
e o de fora do poder (isto é, o de oposição). Cada um resolve de maneira particular e oportunista
a espinhosa questão da soberania nacional, tendo como resultado um leque bastante grande.
Em um extremo, nas Rêveries politiques (1832), o jovem Luís-Napoleão, de volta da revolução
na Romagne onde (com seu irmão mais velho) lutou ao lado dos republicanos italianos contra
os austríacos, preconiza o plebiscito cada vez que há uma sucessão de chefe de Estado, mesmo
na linha hereditária direta. No outro extremo, há as contituições principais dos dois Impérios
que tiram do imperador toda obrigação de consultar a "nação”, da qual ele é o único
representante e detentor da soberania. Entre essas duas posições situam-se os impérios “liberais
- isto é, o Ato Adicional e a Constituição de 1870 - onde se alcançava facilemte a partilha da
soberania entre o imperador e uma assembléia parlamentar.
9. Uma tese recente tenta estabelecer uma profunda similaridade entre Bonapartismo e
gaullismo (por F. Choisel, Albatros, 1987). No decurso de uma comparação razoável, Choisel
entrega-se a algumas observações interessantes (sobretudo em matéria de política estrangeira,
como palavras mantidas por de Gaulle e por Luís-Napoleão em pleno poder). Mas, se o autor
não deixa nunca o terreno da teoria e da abstração para descer até a história vivida, é por boa
razão que sua tese não seria, então, sustentável. Pois, além das similaridades, banais ou
interessantes (mas quase todas já bem conhecidas), não se deve esquecer que a república
“gaullista” baseou-se sobre eleições regulares para a presidência e sobre uma soberania'
partilhada entre duas instituições “nacionais”: a presidência e a Assembléia. A “nação” não está
muda de jure, e de facto. Apesar de quaisquer pretensões da parte de um presidente “monarca”,
o sistema não gira em torno do “grande homem” que reina e governa ao mesmo tempo. Há,
portanto, limites ao recalque (senão, algumas vezes, à depreciação) da idéia da “política”. (E,

176
entretanto, falando da concentração de poder nas mãos do presidente Mitterrand, o candidato
disse: “Nós não estamos mais realmente sob uma República”, 1981.)
10. Choisel glosa com elegância este raciocínio: “O golpe de estado napoleônico... é a
ação ilegal de um chefe legítimo contra um poder legal, mas ilegítimo...”, op clL,..pág. 293. O
subentendido, eu diria, seria “chefe ‘nacional’” versus “poder ‘político’”.

BOSSUET Jacques Bénigne, 1627-1704


Política tirada da Sagrada Escritura, 1677-1709

Nós não conhecemos o estado dos manuscritos da Politique tirée de


VÉcriture sainte 1 e também ignoramos se Ledieu e o abade Bossuet, para
“reformar” o texto na cópia, dispunham de um original de Bossuet suficientemen­
te claro 2. Isso é muito mais importante do que a obra, síntese teórica do dado
concreto do Discours sur Vhistoire universelle (Discurso sobre a história
universal), que exigiu pelo menos um período de vinte e dois anos —atravessado
por momentos que implicaram pesquisas anexas muito difíceis —começando sem
dúvida em 1677. Pode-se, portanto, encontrar repetições, mais particularmente,
nas referências à Sagrada Escritura. Lachat, em sua edição das Oeuvres com-
plètes de Bossuet, reproduziu o texto da Politique de acordo com a edição
póstuma de 1709, do abade Bossuet, sobrinho do grande prelado. Uma redação
tão descontínua e a impossibilidade de estudar o manuscrito fundamental
tiveram ao menos uma vantagem: durante um período bem longo, Bossuet não
pôde ser muito sensível às paixões políticas e é uma coisa muito falsa opor a
Politique tirée de VÉcriture sainte ao Télémaque, de Fénelon.

Estruturas da política

De um modo geral, pode-se apresentar tanto em sua forma como em seu


fundamento a Politique tirée de VÉcriture sainte. É, em primeiro lugar, sua
divisão em livros, artigos, proposições que se conservará. A política, segundo
Bossuet, é uma lógica ou uma geometria de onde se tiram as conclusões dos
teoremas. Daí um índice das matérias que esclarece a obra de maneira bastante
fácil. Visivelmente, Bossuet, que trabalhou em sua obra até a morte (1704),
quis escrever uma obra fácil de ser consultada. Mas felizmente ele soube evitar
o gênero considerado demasiado difícil do dicionário. Daí vem a justa simpli­
cidade em sua redação. Assim, na sétima proposição do artigo 1. do livro II,
pode-se ler a propósito do governo monárquico apresentado como o melhor:
"Se ele é o mais natural, é conseqüentemente o mais durável e por isso também
o mais forte.” Bossuet seguiu as normas da lógica hipotético-dedutiva, e, já que
ela não ignorava os casos de aspecto criticável, a Politique tirée de VÉcriture
sainte se considera ser uma lógica da política.

177
Do ponto de vista do conteúdo, a Politique tirée de VÊcriture sainte foi
também uma lógica que ignorava voluntariamente as épocas. Certamente
Bossuet formulou hipóteses sobre a constituição das sociedades civis. Não se
deve por isso superestimar sua importância. Não se deve porque Bossuet não
pretende escrever sobre qualquer lugar.
Ele admite uma diversidade legítima do fato político, mas, insistindo que
“cada povo deve seguir, como uma ordem divina, o governo estabelecido em
seu país”, ele afirma: “Mas, como nós escrevemos em um estado monárquico
e para um príncipe que um dia será o soberano de tão grande reino,
voltaremos, de agora em diante, todas as instruções que tiraremos da Sagrada
Escritura para o gênero de governo sob o qual vivemos: se bem que, pelas
coisas que se dirão sobre esse estado, é fácil determinar o que diz respeito aos
outros” (livro II, conclusão). Dito de outra forma, a Providência quis que eu
vivesse neste ou naquele sistema de governo. É a partir desse sistema que devo
elaborar a política fundamental. A penetração de meu sistema, assim como sua
justificação, deverá procurar, ao menos apagogicamente, uma compreensão
dos outros sistemas.
Se se reunir forma e conteúdo, se entenderá melhor o verdadeiro autor
da Politique tirée de VÊcriture sainte. Sem que seja possível contestá-lo, é o
próprio Deus pela mediação dos textos sagrados. Em si mesma a idéia não é
nova. Mas Bossuet realizou-a com tanto rigor e vigor, que é permitido dizer
que, sob muitos pontos de vista, a política que ele preconiza é absoluta. Ela
não é apenas absoluta pela preocupação, menos decidida do que se poderia
supor para justificar a monarquia absoluta na qual ele vivia, mas ela também
é absoluta por suas razões. Eis um exemplo, o mais conhecido: o rei está por
direito divino dentro da sociedade civil e da monarquia hereditária (livro II,
artigo I prop. X). O que significa muito claramente - as mulheres estando
excluídas da sucessão - que o monarca brotando de sua linhagem pode exigir,
já que é absoluto,uma autoridade absoluta.
Nesse ponto, Bossuet se apoia nos apóstolos: "O respeito, a fidelidade e
a obediência que se devem aos reis, não devem ser alterados por nenhum
pretexto. - Quer dizer que se deve sempre respeitá-los, servi-los, quaisquer que
sejam eles, bons ou maus.”
"Obedecei a vossos senhores, não apenas quando eles forem bons e
moderados, mas também quando eles forem duros e zangados” (I. Petr.,o II,
18 e Rom. XIII, 4-7, livro II, art, l2, rop. IV). A religião dá à líogica política seus
argumentos peremptórios. Bossuet não está, de maneira nenhuma, em dificul­
dades, como Hegel, para justificar a monarquia hereditária: ela deriva, de
maneira absoluta, da Sagrada Escritura.

As intenções de Bossuet

Todos os comentadores estão de acordo em dividir a obra de Bossuet em


duas partes. A primeira parte é a mais teórica. O primeiro livro trata dos
princípios da sociedade, de Deus pai de todos os homens, da caridade entre os

178
homens, do amor à pátria, das leis e do governo. Pode-se considerar o primeiro
livro um pouco à parte - ele se limita a generalidades filosóficas. Todavia,
assegurando o fundamento religiosos de toda política coerente, “os princípios
primitivos que formaram os Impérios”, ele pretende denunciar toda política
ligada a qualquer coisa maquiavélica no sentido ordinário do termo. O segundo
livro determina a monarquia hereditária absoluta como a melhor forma de
governo. Apoiada na Sagrada Escritura, a dedução não deixa de ser lógica em
sua intenção (livro II, a rt Ia, Prop. IX). Bossuet estabelece que a verdadeira
natureza da autoridade é real, sem desmercer as formas aristocráticas e demo­
cráticas e suas estruturas mistas (livro II, art Ia, Prop.VI). Como Malebranche,
Bossuet sabe que é inútil filosofar contra a experiência, pois esta nos ensinou,
com pertinência, que a Providência Divina só quis, em todos os tempos, em todos
os lugares, que a monarquia prevalecesse. Concluindo pela superioridade da
monarquia hereditária, o segundo livro esclarece a significação da lógica política
como lógica do melhor. O terceiro livro apresenta de imediato o plano do qual
vão sair os mais importantes desenvolvimentos. Antes de tudo (liv III), a
autoridade é sagrada e paternal, em seguida ela é absoluta (livro IV), enfim ela é
submissa à razão (livro V). O livro VI conclui a primeira parte, desenvolvendo
pelos mesmos motivos o patriotismo, o bom senso e a paciência religiosa da
Quinta Advertência “os deveres dos súditos para com o príncipe”. Tudo isso
forma um conjunto coerente no qual Bossuet se apóia também nos autores
antigos —por exemplo: Tertuliano —, não se deixando jamais arrastar para dentro
de uma polêmica qualquer direta com os filósofos políticos de sua época. Esses
seis primeiros livros causam uma dupla impressão: por um lado, a intenção lógica
é tão pura que se acredita seguir uma axiomática, mas, por outro, a quantidade
de exemplos concretos extraídos da Sagrada Escritura dá à obra um certo
colorido (livro I, art 3a, Prop. VI, e livro III, art 3., Prop. IV).
Os livros seguintes colocam questões que o historiador da Filosofia não
pode realmente resolver. O abade Bossuet afirmou que havia um corte,
dizendo que os seis primeiros livros estavam “concluídos” já há muito tempo
e que “os quatro últimos estavam apenas esboçados, para falar mais claro,
apenas projetados”. Quando Bossuet se dedicou verdadeiramente à redução
dos quatro últimos livros? Em 1693,no fim do Commentaire des Livres
sapientiaux (“Sim, disse Bossuet a seus amigos de acordo com o Journal de
Ledieu, dentro de um ano vocês terão toda minha política e eu lhes colocarei
a solução nas mãos!”) ou mais provavelmente em 1700? Isso é uma coisa que
se deveria saber mais claramente para que se possa compreender a verdadeira
intenção de Bossuet É que os quatro últimos livros possuem uma significação
muito mais prática ou, para ser mais justo ainda, pragmática. O livro VIII trata
dos deveres particulares da realeza, e, com toda evidência, retomando os dadoís
da religião, Bossuet procura descrever a conduta religiosa do príncipe, que,
mais do que qualquer outro homem, deve se abandonar à Providência Divina
(livro VI, a rt 6a, Prop. VIII). O livro VIII trata ainda dos deveres da realeza,
mas não se inclina para a justiça. Os livros IX e X tratam dos recursos da
realeza: as armas, as riquezas, ou as finanças; os conselhos, a natureza da

179
guerra e da paz. Seria preciso pensar que essa parte pragmática é de alguma
maneira a aplicação da política geral exposta nos seis primeiros livros...?
Certamente assim foi entendido. Existiria então uma política geral, verdadeiro
tratado da autoridade e uma teoria aplicada onde se afirma que “os Reis da
França têm uma obrigação particular de amar a Igreja e de se ligar à Santa Sé”
(livro VII, a rt 6a, Prop. XIV) - tese que, embora recebida pela Igreja Católica
francesa tal como a conheceu Bossuet, não poderia, no entanto, estar direta­
mente desligada da Sagrada Escritura. Dir-se-ia que essa tese é um caso-limite.
Mas não podia figurar na primeira parte. Parece, portanto, que se deve
reconhecer uma dupla intenção por parte de Bossuet De um lado, a tentativa
transcendente de fundamento da autoridade real; de outro a preocupação
prática implicada na natureza de todo governo prudente.

Um livro que todo mundo leu

A Politique tirée de VÊcriture sainte, volume considerável (Oeuvres


completes, Paris, Lachat, 1864, volume XXIII, p. 477-664, e volume XXIV, p.
1- 259), é um livro que todo mundo pôde ler sem o saber. É a apoteose da
monarquia francesa que aspira à dominação e ao paternalismo, apoiando-se
sobre o caráter sagrado da realeza hereditária. Nesse sentido, pensamos que a
Politique de Bossuet é o reflexo, às vezes um pouco simplificado, da imagem
ideal da monarquia no reinado de Louis XIV. De uma ponta à outra, é só uma
questão de obediência dos súditos ao rei que obedece apenas a Deus. Th. Goyet
pôde mesmo, com justa razão, falar de uma “mística da obediência civil”3. A
partir do momento em que Bossuet, no seu livro I, resgata os princípios dos
Impérios, não se pode ficar admirado com suas deduções. A Providência
estabelecida como fundamento - sem os acordes majestosos, é verdade, do
Discours sur Vhistoire universelle ou das Oraisons funèbres encontramo-
nos, por assim dizer, sobre os trilhos.
Em um único ponto filosófico Bossuet parece embaraçado. Entende-se
muito bem o que significa a expressão: autoridade absoluta - da mesma forma
se vê o que significa autoridade real e paternal, mas percebe-se bem menos
qual é o sentido da expressão: "Que a autoridade real esteja submissa à razão”.
Que significa a palavra razão? Trata-se da Providência? Trata-se da razão
humana acabada? Ou é uma questão de entrecuzamento de duas determi­
nações? Em seu tratado De la connaissance de Dieu et de soi-même (capítulos
V, VI), Bossuet, quando denunciou o acaso, simples efeito da ignorância dos
caminhos de Deus, parecia gabar um entrecruzamento que a Politique não
desmente. Resta o fato de a linguagem de Bossuet ser muito imprecisa. Ele
toma por equivalentes os termos seguintes: razão, inteligência e sabedoria.
Ora, o texto em seu conteúdo sugere uma outra expressão: o razoável. A lógica
do poder político é, nesse caso, menos uma pura geometria do que uma
psicologia do razoável tendendo para o melhor. Não se trata aqui de uma
questão irrelevante. O fato de existir uma lógica da política nós devemos a
Bossuet. Em compensação, é mais duvidoso que exista uma razão política da

180
qual se poderia fazer uma crítica transcendental. Bossuet nos entretém com a
“verdadeira firmeza... fruto da inteligência” (livro V, a rt Ia Prop. II), assimila a
razão à prudência (ibid)e jamais operou a distinção de Kant entre o imperativo
afirmativo da prudência e o imperativo categórico. Esse é o ponto mais fraco
de sua doutrina e é o que todo mundo censura nele sem o ter lido. Quando se
trata das decisões do príncipe, elas só podem estar presas no interior de uma
inteligência, misturando as leis e os conselhos. Nós não encontramos, precisa­
mente por faltar uma razão política, nem distinção entre as diversas formas de
imperativo, nem a clara definição desse ato de decisão, já exposta por Pufen-
dorf. Não sabemos quando nos agarramos ao racional nem quando penetramos
o razoável. Daí o sentimento de arbitrariedade que traduziu bastante bem a
realidade histórica francesa. Mas, no fundo, tudo se reporta a esta única
questão: a prudência é uma virtude ou uma disposição pragmática?
Mas suspeita-se de que, se todo mundo conhece a dificuldade, conhece
também, em compensação, o sentido do absolutismo de Bossuet —o grande
prelado se dirige para uma espécie de totalitarismo. Uma passagem testemu­
nha essa orientação e dá a tonalidade desse totalitarismo. "Assim, Deus dá
ao príncipe o poder de descobrir as tramas mais secretas. Ele tem olhos e
mãos por toda parte. Nós vimos que os pássaros do céu lhe relatam o que
acontece. Ele chegou mesmo a receber de Deus, pelo hábito de lidar com os
assuntos, uma certa penetração que leva a pensar que ele adivinha. Se ele
perceber a intriga, seus longos braços vão surpreender seus inimigos até nos
confins do mundo: vão desenterrá-los no fundo dos abismos. Não há mais
refúgio seguro contra tal poder” (livro V, a rt 4o, Prop. II). Pode-se dizer que,
se aqui Bossuet força a realidade histórica, é que ele a vê como gostaria que
ela fosse e não como ela é. Antes de tudo, Louis XIV - “espírito abaixo da
mediocridade”, como escreveu Saint-Simon - na verdade não tinha olhos
nem mãos por toda parte; mesmo se fosse o caso de ele os ter, sua
capacidade de "penetração” era muito limitada. Mas fica claro que Bossuet,
ao escrever essas linhas, não pensava somente na monarquia como a melhor
forma de governo, mas era sensível à ostentação funesta e cintilante do
governo de um só, do qual E. de La Boétie, em seu Discours sur la servitude
volontaire, esclareceu o aspecto comovente e sentimental.4 Por mais que se
defendesse racionalmente a monarquia, não se poderia permanecer insensí­
vel diante dessa mística da dominação, encarnada na concentração de todos
os poderes nas mãos de um só homem, e essa mística da dominação foi
conhecida por todo mundo, mesmo por aqueles que desconheciam a Politi-
que, de Bossuet

O príncipe infeliz

A Politique santa, por ser tirada da Escritura Sagrada, não é, como se


poderia pensar, um elogio sem nuances da realeza. Excepcional é a situação do
príncipe. Se, na sociedade civil, todos são responsáveis perante ele, como Bossuet
não se cansa de repetir, em compensação, o príncipe é o último e derradeiro

181
responsável perante Deus. Essa esmagadora responsabilidade, essa conversa em
particular com o Juiz supremo obrigam o príncipe do bispo de Meaux a ser
magnânimo, grande: “Calai-vos, pensamentos vulgares: cedei aos pensamentos
reais. - Os pensamentos reais são aqueles que consideram o bem geral; os
grandes homens não nasceram para si próprios: os grandes poderosos, que todo
o mundo considera, são feitos para o bem de todos” (livro V, art 4o, Prop. II) —
Leibnitiz dizia do príncipe que ele era uma imagem privilegiada de Deus, e
Bossuet não o contradiz. Porém, ele insiste na inversão metafísica da res­
ponsabilidade: “O reis, exercei corajosamente vosso poder; pois ele é divino e
salutar ao gênero humano; mas exercei-o com humildade. Ele vos foi conferido
pelo exterior. No fundo, ele vos deixa fracos, mortais; ele vos torna pecadores; e
ele vos acumula, diante de Deus, de um maior encargo (liv. V, art. 4a, Prop I). A
magnanimidade ou ainda a majestade consiste muito menos na “pompa que
rodeia os reis" do que na aceitação irrevogável de sempre procurar o bem antes
de seu próprio bem. Em certo sentido, o príncipe é um alienado no meio de seu
povo: ele vive apenas para o povo, pelo povo e tem como única recompensa se
saber semelhante ao Agnus Dei qui tollit peccata mundi.
Portanto, Bossuet não considerou de modo nenhum o destino do rei
como particularmente invejável. É uma vida diante de Deus, uma vida angus­
tiante na qual se confundem o trabalho e a prece. Sem dúvida, como o expõem
a teoria da guerra e também a das finanças, não faltam ao rei conselheiros; e
ele pode mesmo na guerra delegar autoridade a um general experiente. Mas,
no fim, ele é o único responsável diante de um Juiz mais severo do que todos
os tribunais humanos, quero dizer, Deus. Certamente, a Providência Divina
habituou os reis belicosos a distinguirem em torno deles grandes capitães
(livro IX, a rt 6°, Prop. I), e Bossuet é demasiado realista para apagar as
conquistas (ver, porém, livro IX, a rt I a, Prop. VI); mas o princípio da guerra,
ato em si mesmo abominável e que apenas o rei pode decidir legitimamente, é
a eqüidade: “Um vencedor cristão deve evitar derramamento de sangue; e o
espírito do Evangelho é sobre esse ponto bem diferente daquele da lei” (livro
IX, a rt 5°, Prop. X). Nesse caso, a solidão do rei é extrema. Certamente não é
sempre agradável exigir o cumprimento de leis, que resultam de um contrato
firmado perante o Eterno e, a esse título, sagradas e invioláveis (livro I, art. 4a,
Prop. VI e VII). Outra coisa é conduzir a guerra. O título da VII proposição do
artigo 4a do livro IX é eloqüente: “Entretanto, Deus, acima de tudo, não ama
a guerra; e prefere os pacíficos aos guerreiros.” No espírito de Bossuet, nesse
caso o rei é entregue à ação insuportável da solidão. Ele só vive para seu povo,
só escuta sua consciência e, provocado em sua intrepidez, descobre em seu
isolamento que se pode enganar. Jamais um rei digno desse nome descansará
no incrível castelo de Sans-souci (sem preocupação). O rei deve adequar sua
existência, isto é, aquilo que ele faz de si mesmo, o seu destino, quero dizer, à
escolha de Deus. Toda a política de Bossuet se atém a um esforço de adequação
sobre-humano da existência ao destino. O enunciado do juramento de sagração
dos reis de França (livro VII, a rt 5a, Prop. XVIII) termina com uma curta frase
impondo a dura adequação da existência ao destino: "Que contas poderão

182
prestar a Deus os príncipes que negligenciaram o cumprimento das promessas
tão solenemente juradas?” E penoso e mesmo desditoso ser rei, pertencer a
todos sem pertencer a si mesmo. Certamente, em relação a Deus, os reis são
apenas homens como os outros (livro VII, a rt 6a, Prop. XII), mas suas faltas
lhes reservam uma humilhação que os homens comuns absolutamente não
conhecem. Sob o ponto de vista de Deus, existe apenas a extrema pequenez
do homem; porém, a alma do rei vive mais intensamente essa pequenez. Tanto
mais que fortemente submisso à sucessão hereditária, é menos um indivíduo
do que um intermediário, como Bossuet não se cansa de explicar. Mesmo que
a vida que ele transmite não pertença verdadeiramente ao rei; pertence
primeiro a Deus e ao povo.

Do sentido da Politique tirée de 1’Écriture sainte

Os quatro últimos livros da Politique tirée de VÉcriture sainte tendem a


transformar a infelicidade do príncipe, sua responsabilidade transcedente, em
felicidade para o povo. Sem estar verdadeiramente à altura de seu pensamento
filosófico habitual, Bossuet vai assinalar aspectos que, para Rousseau, serão
incompatíveis. Assim, por uma lado “um Estado florescente é rico em ouro e
em prata” (livro X, art. 2°, Prop. II), e, por outro, “as verdadeiras riquezas de
um reino são os homens: fica-se encantado ao se ver sob os bons reis, a
multidão incrível do povo pelo tamanho espantoso dos exércitos" (livro X, a rt
I a, Prop. XI). Sabe-se bastante bem como, denunciando em seu primeiro
Discours o luxo sem o qual a necessidade do ouro não pode ser concebida,
Rousseau determina estar a grandeza do povo acima de todas as riquezas.5
Porém, há mais: a referência constante à Sagrada Escritura desde que se desça
ao “detalhe” parece menos pertinente em razão de sua simplicidade. O
problema complexo dos impostos não é bem examinado; prega-se principal­
mente a moderação ao príncipe: “O príncipe deve ser moderado na cobrança
dos impostos e não sobrecarregar mais o povo” (livro X, a rt 1°, Prop. VII) —o
príncipe deve guardar-se perante Deus de toda avidez e proceder do mesmo
modo tratando-se do povo. O futuro contribuinte Rousseau e nós com ele
apreciaremos. Se não fosse a idéia de que o príncipe estivesse empenhado em
um caminho de responsabilidade angustiante, seriamos tentados a dizer que
Bossuet seguiu muito freqüentemente a moral mais comum e nunca deu
provas de nenhuma originalidade.
No entanto, essa obra chocou e encontrou seu verdadeiro par corres­
pondente em Le Contrat Social de J. -J. Rousseau. Certas passagens da obra
de Rousseau são uma resposta direta às teses de Politique tirée de VÉcriture
sainte: assim, se Deus, em Bossuet, delega o poder, este não pode jamais, como
Soberania, ser delegado, em Rousseau. Mas o que pareceu mais incrível foi o
rigor dos dois primeiros livros. Desde 1709, a monarquia francesa, para a qual
escreveu Bossuet, foi separada do povo, isolando-se completamente em Versa­
lhes, onde não se escutava mais nada, nem mesmo o choro das súplicas e as
lamentações dos aflitos. Bossuet, ao menos em Politique tirée de VÉcriture

183
sainte, começa a se limitar a teoremas e esquece (relativamente) que um
grande monarca deve estar em contato verdadeiro com seu povo. Certamente
todos os exemplos tirados da Sagrada Escritura fizeram-no interpretar de
coração aberto essa simbiose, mas não chegou jamais a fazer a teoria trans­
cendental. Livro de reprovações, pelo menos indiretas, contra a realeza - pois
Bossuet sabia muito bem que Louis XIV não era absolutamente o exemplo do
príncipe cristão como ele o concebia - , a Politique tirée de VÉcriture sainte
era também condenada por se basear no passado. Bossuet reconhecia sem
dúvida os progressos da espécie humana (progressos que politicamente atin­
gem a monarquia hereditária), mas a vontade, bastante estranha em si mesma,
de explicar toda a vida política a partir da Sagrada Escritura e das historietas
que ela relata, fez de sua obra um discurso ligeiro destinado a cair no
esquecimento, e o bispo de Meaux não conseguiu se inscrever no firmamento
do pensamento político. Feitas essas reservas, o historiador da filosofia consen­
tirá em ver em Politique tirée de VÉcriture sainte uma tentativa muito
audaciosa para fudamentar e justificar a função absoluta, totalitária e infeliz
da monarquia hereditária.

• Fonds français 12838: Politique tirée des propres paroles de 1’Écriture sainte

► A. Chérel, Uesprit de charité dam la politique de Bossuet. Le Correspondant, 1927; J.


Declareuil, Histoire générale du droit français, des origines à 1780, Recueil Sirey, 1925; L. Le
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Paris, 1867; F. Puaux, Les défemeurs de la souveraineté du peuple sous Louis XIV, Fis-
chbacher, 1917; C.-A. Saint-Beuve, Nouveaux Lundis IX. De la connaissance de 1'homme au
XVIII * siècle Lurtdl 22 septembre 1862.

Alexis PHILONEIKO.

NOTAS
1. Seguimos aqui o texto dado por Lachat em suas Oevures complètes de Bossuet, Paris,
1864, vol. XXII e XXIV.
2. Th. Goyet, L ’humanlsme de Bossuet, 1965, segundo volume, p. 467 e n. 443.
3. Ibid., p. 469.
4. Cf. minha dissertação sobre Hobbes, em Thomas Hobbes, Anthopologie und Staats-
philosophie, herausgegeben von O. Hõffe, Universitatsverlag, Friburgo, Sufça.
5. Alex Philonenko, Rousseau et la pensée du malheur, Paris, 1984 volume I capítulo IV.

184
B OULAINVILLIERS, Henri de, 1658-1711
Cartas sobre os Parlamentos, 1753

Em 1753 for publicada Letíres sur les anciens parlements de France


que Von nomme États généraux* (3 volumes), publicação póstuma do conde
Henri de Boulainvilliers. a primeira edição data de 1708: tratava-se de doze
“cartas” endereçadas a um destinário anônimo (10 na distribuição e 14 na
edição definitiva) cujo objeto era "a natureza das assembléias que na França
se chamavam estados-gerais do reino; sobre as causas que as tornaram quase
todas infrutíferas, e sobre o que se poderia nesse caso desejar ou fazer de novo
para torná-las verdadeiramente úteis e vantajosas”. (Lettre I, p. 2)

O vestígio de uma polêmica

Essa obra é essencial à inteligibilidade do pensamento político por dois


motivos: por um lado, ela testemunha de maneira essencial sobre uma
polêmica decisiva que marcou o pensamento político francês no início do
século XVIII, ou seja, a origem e o fundamento do poder monárquico: o
motivo era naturalmente a relação do poder real com as "assembléias
populares”, que a nobreza podia também reivindicar para s i- essa era com
efeito a posição de Boulainvilliers, convencido da preeminência e da indes-
trutibilidade da nobreza. Sua posição tem, no entanto, paradoxalmente, um
caráter "progressista”, por causa de sua própria posição "reacionária” (no
sentido estrito do termo): ele foi, com efeito, levado a acentuar o contrapeso
popular do poder real, no momento em que a reivindicação deste ao
“absolutismo” estava em seu clímax.

A metodologia da obra

O segundo interesse considerável desse texto é que ele institui um


método histórico —Boulainvilliers sendo antes de tudo um historiador - para
resolver essa questão política maior da origem do poder e de sua legitimação:
por isso ele adota um método de genealogia das instituições políticas que
encontrará no Esprit des lois, de Montesquieu —...que o menciona e o critica
cerca de quarenta anos depois... - uma posteridade e uma sistematização.
Trata-se, com efeito, de produzir “princípios claros e certos, isto é, estabe­
lecidos sobre um conhecimento distinto dos objetos que devem sempre ser
igualmente caros à sociedade” (p. 9): é, portanto, um método histórico posto a
serviço de uma espécie de cartesianismo político que Boulainvilliers prega e
pratica.

Cartas sobre os antigos parlamentos da França que se chama de Estados Gerais

185
A estrutura da obra

Boulainvilliers remonta assim à origem dos Parlamentos e estuda "a


maneira como Carlos Magno os reunia” (II). Mas ele postula, sem dificuldade,
uma eleição dos primeiros reis pelas assembléias: “Ninguém ignora que os
franceses, sendo originariamente povos livres que escolhiam seus Chefes sob
o nome de Reis, para fazerem cumprir as leis que eles mesmos tinham
estabelecido... mas não tinham nenhuma intenção de considerar essas leis
como legisladores arbitrários..." (p. 38). O mérito de Carlos Magno foi o de ter
restabelecido os Parlamentos em seus direitos. Quanto ao resto, os povos
instituíram por toda parte “instituições... para limitar o poder de seus Reis” (II;
p. 66): com isso Boulainvilliers visa especialmente à tese de La politique
fondée sur VÉcriture sainte, de Bossuet, apresentada como "um dos mais
vergonhosos testemunhos de indignidade de nosso século”, pela utilização da
Escritura Sagrada “ para forjar correntes novas para tolher a liberdade natural
dos homens e para aumentar o fausto e a dureza dos reis” (p. 68).
A intenção da pesquisa histórica de Boulainvilliers é, portanto, clara:
relatar a história política da nação francesa por meio do antagonismo entre a
realeza e as assembléias: depois de um desvio necessário sobre a própria
estrutura do feudalismo (IV-V), que mostra a libertação dos servos e a ruína
dos grandes feudos como modificação maior da antiga monarquia, ele acompa­
nha o nascimento dos primeiros estados-gerais e a evolução dos Parlamentos
até Felipe o Belo (VI). A partir desse núcleo, formulado no primeiro tomo,
Boulainvilliers pode desenvolver o conjunto da história política desde as
primeiras afirmações do poder real até Louis XI (VII-XIV).
Em certo sentido, paradoxal, Boulainvilliers pode ser considerado prolon-
gador da tradição manarcômaca - no sentido literal - , mas, daí para frente,
uma certa metodologia histórica é colocada a serviço de um projeto de retorno
à origem do poder monárquico para tirá-lo de uma reação contra a evolução
absolutista. Reação que reveste, assim, paradoxalmente um conteúdo “pro­
gressista” na qual ela afronta o absolutismo. Da mesma forma, é preciso, para
julgar a importância do texto de Boulainvilliers, separar seu aspecto circuns­
tancial do projeto que institui, entre o comprometimento político mais deter­
minado e o método histórico, de certa forma pré-sociológico...

Motivações e posteridade da obra

Quanto à posteridade da problemática de Boulainvilliers - além de sua


própria pessoa, que dá a imagem ao mesmo tempo interessante e estranha
de erudito apaixonado tanto pela política como pelas idéias de Espinosa e
pela astrologia! - , ela está ligada a essa corrente de crítica do destino
absolutista da monarquia. Formulada desde o começo do século XVIII,
quando Louis XIV ainda vivia, ela alimenta uma encarniçada polêmica: por
exemplo, os Treize livres des Parlements de France, pelo Judicium Franco-
rum de la Roche-Flavin (1732), que afirma em voz alta os direitos do

186
Parlamento, enquanto a célebre Histoire critique de Vétablissement de la
monarchie française dans les Gaules (1734), do abade Dubos, estabelece a
superioridade da monarquia, fazendo de Clóvis, chamado em seu socorro
pelos galo-romanos, o instigador da monarquia.
Essa polêmica de eruditos e publicistas teve um duplo efeito: alimentar
uma tradição de reivindicação de retorno aos Estados Gerais, que não se
reuniam desde 1614, e de discussão sobre o fundamento da monarquia, cuja
importância foi talvez subestimada pela Revolução Francesa: a reunião dos
Estados Gerais em 1789 pôde, em todo caso, ser mais bem avaliada graças à
luz da discussão à qual Boulainvilliers deu de certa forma uma legitimidade
ao pensamento político. Em segundo lugar, encontrou-se alimentada uma
concepção moderada e ‘ parlamentarista” da monarquia: assim, a tese do
historiador Lemontey, em seu Essai sur Vétablissement monarchique de
Louis XIV (1819) - portanto, no momento da Restauração - sustentando
que Louis XIV rompeu com a monarquia tradicional fundada “pelo clero
sobre as Sagradas Escrituras, pelos magistrados sobre o direito romano, pela
nobreza sobre os antigos costumes", mostra a perenidade da tese de
Boulainvilliers, até o século XIX. Chega a ser curioso observar que, além de
Augustin Thierry, Fustel de Coulanges retoma essa problemática, associando
a questão do fundamento do poder àquela das conquistas - antagonismo
entre os francos e os gauleses — do qual se encontrarão ainda ecos na
doutrina da Ação Francesa - questões que foram tratadas desde o século
XVI (Recherches sur la France, de Estienne Pasquier, depois da Franco-Gal-
lia, de François Hotman).
Com efeito, a política de Boulainvilliers, muda entre as especulações
quase mitológicas sobre o poder e o método sócio-histórico, traz o testemu­
nho do póprio trabalho do conceito político, empenhado em motivações
históricas.

• Lettres sur les Parlements, edição de 1753 (póstuma).

► Renée Simon, Henrl de Boulainvilliers, Paris, dois volumes.

Paul-Laurent a s so u n

187
BRUTUS Junius, cf. LANGUET Hubert

BURKE Edmund, 1729-1797


Reflexões sobre a Revolução Francesa, 1790

Publicadas em 1790 (antes da queda da monarquia), as Reflections on


the Revolution in France, de Burke, são um belo exemplo dos paradoxos da
história das idéias; essa obra de circunstância (que visava primeiro aos
defensores ingleses da Revolução Francesa) é com efeito uma das fontes
principais de correntes políticas tão diferentes, como o tradicionalismo contra-
revolucionário francês, o romantismo político (na Alemanha) ou o conservado­
rismo liberal (na Inglaterra).
Ora, nada parecia predestinar Burke ao papel de profeta da contra-revo­
lução; em 1789, Burke era um “Whig”* avançado, cuja influência estava
certamente em declínio, mas que conservava uma certa reputação, devido à
sua atuação passada em favor das grandes causas do liberalismo político:
campanha parlamentar contra os abusos dos colonizadores das "índias, defesa
dos insurgentes americanos contra a Coroa, luta contra a fraude e a corrupção
eleitorais. Era de esperar que Burke se tornasse um defensor da atuação da
Assembléia Constituinte, da qual certas idéias tinham origens ‘inglesas’”, que
os mais radicais dos Whigs não podiam deixar de ressaltar. Ora, exatamente, a
primeira intenção de Burke era mostrar, contra os apologistas ingleses da
Revolução Francesa, que esta, por haver interrompido deliberadamente a
continuidade da história política francesa, não tinha nada em comum com a
“Gloriosa Revolução” de 1688 que, longe de invocar direitos abstratos, visava
a restaurar os direitos adquiridos pelos ingleses.
As Reflections foram um sucesso imediato: onze edições em um ano,
trinta mil exemplares vendidos durante a vida do autor, as traduções francesa
e alemã fizeram logo aparecer o livro de Burke como uma referência obrigató­
ria para todos aqueles que, tanto no continente como na Inglaterra, tomavam
partido pró ou contra a Revolução Francesa. Burke opunha aos “Direitos do
Homem”, reivindicados pela razão racional, os direitos adquiridos pelos in­
gleses no curso de sua história: é a ele que responderão aqueles que, como Th.
Pain ou W. Godwin, defenderão a democracia e o direito originário dos homens
para designar e mudar seus governos. Para Burke, os direitos invocados pelos
revolucionários eram tão falsos “moral e politicamente”, quanto verdadeiros
“metafisicamente”: daí o sucesso das Reflections ...na Alemanha para os
adversários da Revolução que eram também os inimigos da Aufklãrung-, para
Gentz ou para Rehberg, que a combatiam, assim como para Kant e Fichte, que

* Whig —membro do Partido Liberal da Inglaterra. (N. da T.)

188
a defendiam, foi exatamente o problema da concordância da Teoria com a
Prática que a Revolução colocou. A defesa da história contra o projeto
revolucionário de reconstrução consciente da ordem social (“nossa história
não é nosso código”, dizia Rabaut-Saint-Etienne) não funcionará sem uma
defesa dos preconceitos contra a Razão, da experiência social contra o
julgamento individual: esses temas faziam parte do núcleo do pensamento
contra-revolucionário francês, de J. de Maistre e de L. de Bonald ao premier
Lamennais.
A extraordinária força do livro de Burke se deve, portanto, ao mesmo
tempo, além de a suas qualidades literárias, à clareza com a qual, aí, se
exprimem todos os temas do conservadorismo moderno e à lucidez que o
autor prova ter, muito antes dos desenvolvimentos terroristas da Revolução
Francesa. A ambigüidade do escritor político (liberal e contra-revolucioná­
rio) só pode ser um aspecto de um equívoco mais geral que explica os
conflitos de interpretação para os quais seu pensamento foi o estímulo:
Burke seria ao mesmo tempo um defensor do direito natural clássico e um
representante da tradição liberal inglesa, um adversário e um promotor do
historicismo moderno, um defensor das liberdades e um paladino do estado
autoritário. Todavia, mesmo se a obra de Burke estiver ligada às circuns­
tâncias, nada permite afirmar que ele tenha verdadeiramente diversificado
no que concerne às questões essenciais da filosofia política: o problema
central da interpretação é, portanto, tentar reconstituir a unidade de seu
pensamento.

Os “Direitos do Homem" e os “Direitos dos Ingleses"

Se o regime representativo que a Constituinte havia organizado estava,


sem dúvida nenhuma, bastante próximo da tradição política inglesa, os princí­
pios invocados pelos revolucionários implicavam, por seu radicalismo, uma
perturbação profunda no sistema de legitimação da ordem política. Se, como
afirma a Declaração dos Direitos de 1789 (arL 3fl), “ o princípio de toda
soberania reside essencialmente na Nação”, esta não tem apenas o direito de
fazer valer os “direitos adquiridos” contra eventuais usurpações da autoridade
real, mas também o de designar e, eventualmente, de distituir os governantes,
Portanto, na Inglaterra, tal doutrina não era, de forma nenhuma, uma simples
hipótese de escola; desde o Sens commun (1776), de Th. Paine, certos radicais
consideravam que o regime inglês era apenas imperfeitamente liberal; para
estes, já que a monarquia representava, no sistema britânico, um princípio
estranho ao da liberdade e da representação, seu único efeito era não de
moderar a ordem política, mas de introduzir nela o despotismo ao mesmo
tempo que a incoerência. Ao contrário, liberais como Burke podiam admitir
que se defendia com energia os direitos do Parlamento contra os abusos da
Coroa, mas isso não implicava para eles que se devia colocar em questão o
próprio princípio monárquico.
É precisamente contra tais concepções antimonarquistas e contra tudo

189
que pudesse favorecer sua difusão que as Refíections foram dirigidas primeiro.
O alvo principal de Burke é nesse caso o doutor Price, eclesiástico e fervoroso
defensor dos “Direitos do Homem" que, se bem que tenha reconhecido a
legitimidade da monarquia inglesa, defendia os princípios políticos incompatí­
veis com os fundamentos da ordem tradicional. Se, com efeito, o rei da
Inglaterra é, segundo Price, o “único rei legal no mundo”, é porque ele é “o
único que deve sua coroa à escolha de seu povo” (Burke, 1980, p.20). Ora,
como Burke não tem nenhuma dificuldade em mostrá-lo, a monarquia inglesa,
que supõe a hereditariedade do poder real, “em virtude de uma ordem de
sucessão estabelecida pelas leis do reino” (Burke, 1980, p. 23),não faz ne­
nhuma menção à idéia de uma designação (nem mesmo implícita) do Príncipe
pelo sufrágio ou pela escolha popular. Portanto, o essencial não é tanto o
lealismo afirmado por Price, mas o “princípio abstrato” que subentende sua
doutrina: o da “soberania de uma eleição do povo, para que a magistratura
soberana seja legalmente exercida” (Burke, 1980, p. 21).
A defesa da Revolução estava, portanto, no caso dos partidários in­
gleses, ligada a uma nova interpretação da tradição liberal inglesa e da
Revolução de 1688. A essa interpretação, Burke opõe duas objeções, uma
sobre o conteúdo da Bill o f Rights de 1689, outra sobre o fundamento de
sua legitimidade.
1) Burke constata primeiro a ausência na Bill de 1689 de qualquer idéia
de “direito geral de escolher aqueles que nos governam, de depô-los por má
conduta e de criar um governo para nós mesmos” (Burke, 1980, p. 26); muito
ao contrário, a Bill reafirma o vínculo indissolúvel entre “os direitos e
liberdades dos súditos” e a "ordem de sucessão da Coroa” (ibid., p. 27).
Certamente a própria Revolução “desviou-se da ordem estrita e regular da
sucessão”, mas “é contra todos os verdadeiros princípios da jurisprudência
estabelecer, em princípio, uma lei feita em um caso particular e para um
indivíduo particular” (ibid., p. 28): o advento de Guilherme não foi, falando com
clareza, uma “escolha”, mas uma “absoluta necessidade" atraída por uma
situação excepcional (a convocação de James teria mergulhado o reino em um
banho de sangue). Poder-se-ia, certamente, objetar que o Parlamento não podia
tomar a decisão de sustentar Guilherme de Orange sem se arrogar o direito de
decidir se a gravidade da situação política exigia uma modificação, mesmo
sendo excepcional e limitada, da ordem de sucessão. Isso seria não reconhecer
a significação exata da argumentação de Burke: não se trata tanto de afirmar
a intangibilidade da ordem monárquica quanto de exprimir que os povos não
têm direito algum de escolher ou de destituir seus governantes. O conflito
entre Burke e os defensores da Constituinte revela uma oposição entre duas
concepções de fundamentos do direito público; segundo a teoria da soberania
nacional, a Revolução fundamentou-se sobre os direitos subjetivos da Nação;
segundo Burke, ao contrário, a Revolução de 1688 era legítima, na medida em
que ela não traduzia uma decisão subjetiva do Parlamento, mas uma necessi­
dade superior que se impunha a ele.
Assim, a Revolução de 1688 de maneira alguma colocou de novo em

190
causa o princípio da monarquia hereditária: logo depois da pretensa “escolha"
de Guilherme, o Parlamento reafirmou que a continuidade do Reino repousa
sobre a sucessão hereditária da Coroa. Ainda que Burke de todo não defenda
a monarquia absoluta nem o despotismo, seu pensamento tem indiscutivel­
mente um componente “autoritário” que será valorizado tanto por seus
discípulos (Rehberg, 1793) quanto por seus críticos (Paine, 1958): até em sua
apologia das liberdades inglesas, ele nega o caráter procedente da liberdade
política.
Esse é, por exemplo, o tema maior de Direitos do Homem( 1791), de
Paine, que derruba completamente a argumentação de Burke: para Paine, foi
a deposição de James, de acordo com a vontade nacional, que, longe de ser um
expediente, estava plenamente fundada no direito, ainda que, em compensa­
ção, o Parlamento ultrapassasse seu poder, ao pretender submeter as gerações
futuras à ordem de sucessão dos monarcas (Paine, 1958, p. 11 sg.). Burke, ao
contrário, opõe a continuidade social à iniciativa revolucionária, para defender,
contra o ideal moderno da liberdade atuante e da razão política, a razão
superior da tradição da História.
2) A Revolução de 1688 é, portanto, legítima porque, restaurando as
liberdades historicamente adquiridas, restabeleceu a continuidade da his­
tória inglesa; não se tratava absolutamente, então, de transformar a socie­
dade em nome dos "Direitos do Homem”: “A Revolução teve por objetivo
conservar nossas antigas e incontestáveis liberdades, e essa antiga cons­
tituição, que é sua única salvaguarda” (Burke, 1980, p. 58). A interpretação
da Revolução deverá, portanto, apoiar-se sobre os princípios explícitos dos
juristas ingleses e não sobre a metafísica dos revolucionários franceses;
“Nessa famosa lei do terceiro ano do reinado de Carlos I, chamada the
petition o f rights, observa Burke, o Parlamento diz ao rei: ‘Vossos súditos
herdaram essa liberdade, eles não fundamentam sua reclamação em princí­
pios abstratos, como os direitos do homem, mas nos direitos dos ingleses, e
reclamam o patrimônio de seus ancestrais.’ Selden e os outros sábios que
redigiram essa petição de direito conheciam muito bem todas as teorias
gerais concernentes aos direitos do homem, como nenhum dos peroradores
de nossas cadeiras ou de vossa tribuna; tanto quanto, seguramente, o Dr.
Price ou o abade Sieyès. Mas, por motivos dignos dessa sabedoria prática,
que os conduziam a seu saber teórico, preferiram esse título positivo,
autêntico e hereditário, a tudo que pode ser caro ao homem e ao cidadão, a
este direito vago e especulativo, que teria exposto sua herança certa ao
esbanjamento e à depredação de todos os espíritos extravagantes e litigio-
sos” (Burke 1980, p.60).
Essa critica dos Direitos do Homem é hoje o dote mais célebre das
Réflexions. Denunciando na política revolucionária a transformação da meta­
física moderna em programa político, insistindo sobre as múltiplas contra­
dições entre o fato e o direito que produz a tentativa de encarnar os Direitos
do Homem, Burke, sem dúvida, deu, por antecipação, o modelo acabado de
todas as críticas ulteriores da Declaração de 1789.

191
Notar-se-á primeiro que alguma coisa da crítica de Burke se encontra na
Question juive, de Marx: os Direitos do Homem, privados tanto de valor
substancial quanto de garantias efetivas, traduzem antes de tudo o desnuda­
mento e o isolamento reais que produz a emancipação aparente dos indivíduos
na sociedade liberal burguesa.
Mais profundamente, o pensamento de Burke assinala uma crítica da
modernidade, o que exlica que ele seja, em nossos dias, reivindicado por
aqueles para quem a reconstrução de uma autêntica filosofia política - ou de
uma justa compreensão do direito - passa pela crítica do conjunto da política
moderna e de seus embasamentos metafísicos.
Pode-se explicar, assim, por que Hannah Arendt, embora preocupada em
encontrar " o tesouro perdido das revoluções modernas”, sempre defendeu,
das Origines du totalitarisme ao Essai sur la Révolution, a tese de Burke
contra os Direitos do Homem que não era, segundo ela, “ nem caduca, nem
‘reacionária’” (Arendt, 1967, p. 156-157). Reclamando a manutenção dos
direitos naturais do Homem, independente de qualquer organização política,
os revolucionários franceses desconheciam as obrigações e a própria grandeza
que decorrem do estatuto político do Homem. Mais ainda, fixando como
objetivo último da política a realização da integralidade dos Direitos do
Homem, a Revolução Francesa abria caminho para uma política de recons­
trução total da ordem social cuja verdade seria o totalitarismo do século XX.
E somente, observa Hannah Arendt, a homens reduzidos à sua simples
humanidade pela destruição de suas formas naturais e políticas de solidarie­
dade, que se pode impor uma servidão e uma opressão absolutas (Arendt,
1973, p. 299-300).
Num contexto diferente, numerosos críticos (R. Hoffmann e P. Levack,
1949: P. J. Stanlis, 1958; M. Villey, 1976) insistiram sobre a fidelidade por
muito tempo desconhecida de Burke ao direito natural clássico, tal como o
compreendiam Aristóteles, Santo Tomás de Aquino ou Cícero: o direito supõe
a conformidade com uma situação dada, com uma cidade singular à qual ele
permite encaminhar-se rumo à sua própria perfeição. Portanto, só há direitos
em relação a situações concretas (mesmo quando elas podem variar no curso
da história: a herança acumulada das liberdades inglesas estendeu progressi­
vamente ao conjunto do povo inglês as liberdades aristocráticas). Foi dentro
desse espírito que Michel Villey pôde justificar a Doutrina de Burke que ele
considera uma adaptação ao mundo moderno da doutrina clássica do direito
natural. A negação dos Direitos do Homem não consiste, para Burke, em
abandonar o dever de humanidade dos juristas ou em recusar o reconhe­
cimento dos “direitos” a todos os homens. Por um lado, certamente, “as
liberdades dos ingleses não são para os homens em geral, apenas os britânicos
a “herdaram”, mas, por outro lado, ele também defendeu os "direitos e as
liberdades dos povos e das classes mais diversas” (Villey, 1976, p. 132). Se não
há contradição entre essas duas posições, é que, uma vez abandonado o
pseudo-universalismo dos “Direitos do Homem”, devemos reconhecer que,
para "levar a sério” “os direitos dos irlandeses, dos indianos, dos americanos”,

192
é preciso assinar um compromisso "consistente, substancial” e reconhecer quç
eles são “diversos” (ibid.). Das análises de Burke, se conservará, assim, a
denúncia da hipocrisia inerente ao universalismo abstrato dos revolucioná­
rios: que significa a proclamação da propriedade em vista da espoliação do
clero e da nobreza ou a garantia da liberdade e da segurança diante dos
excessos das jornadas revolucionárias?
Os temas de Burke se encontram, todavia, da mesma forma, no contexto
muito mais "moderno” das críticas “liberais” do “construtivismo” dos Ilumina­
dos. Para F. A. Hayek, por exemplo, “as magníficas formulações do grande
visionário Edmund Burke” repousam em um esquema evolucionista antes da
carta: a própria história inglesa produziu, sem que isso correspondesse a um
desígnio consciente das instituições mais bem adaptadas aos costumes nacio­
nais do que aquelas que a razão humana poderia conceber. A oposição de
Burke aos “Direitos do Homem” seria assim um episódio dq conflito entre as
duas concepções da racionalidade social que se enfrentam na modernidade: o
"construtivismo e a ‘defesa da ordem espontânea’” (cf. Hayek, 1980,11, p. 25
e seguintes).

Direito natural clássico ou política moderna?

Se as Reflections puderam fecundar doutrinas tão diferentes, foi talvez


por elas repousarem sobre um equívoco maior: todos os grandes temas do livro
de Burke podem ser interpretados, ao mesmo tempo, como uma atualização
de uma concepção antiga (ciceroniana) da política e como uma defesa rigorosa
do liberalismo moderno. Essa tensão se encontra, ao mesmo tempo, na crítica
que Burke endereça às teorias do Contraí social e em suas concepções
econômicas.
1) É um dos méritoá da interpretação "jusnaturalista” de Burke o fato de
ter mostrado como sua crítica da política metafísica repousava sobre uma
concepção quase aristotélica da prudência política mais do que sobre um
simples ceticismo. Já em sua campanha contra os abusos perpetrados pela
Companhia das índias, invocou a Lei natural para defender os oprimidos e, nas
próprias Reflections, a referência aos "verdadeiros direitos do Homem” não
teria nenhum sentido sem o pressuposto de um padrão permanente que
permitisse avaliar os regimes positivos.
Por isso, poder-se-ia dizer com Stanlis que a "grande tradição do Direito
Natural de Cícero e dos Escolásticos, vencida de maneira irrefutável por
Hobbes e obscurecida por Locke, ressurgiu com toda sua força na réplica de
Burke aos revolucionários franceses” (Stanlis, in R. Kirk, 1958, p. VI)?
A análise da crítica feita por Burke da teoria do Contrat social mostra
neste ponto uma ambigüidade. Certamente fiel à idéia de qua a política é
uma “imitação da natureza (Burke, 1980, p. 53), Burke defende uma teoria
totalmente clássica que concebe a formação do direito como uma pesquisa
de um 'justo meio que é impossível definir”’, mas que "não é impossível de
se perceber”: “A razão política é um princípio de cômputo; ele soma, subtrai,

193
multiplica e divide moral e não metafísica nem matematicamente as verda­
deiras denominações morais” (ibid., p. 126). Em outros textos, no entanto, é
a uma argumentação quase “hobbiana” que recorre Burke para mostrar que
os direitos naturais não podem, enquanto tais, ser invocados contra a
autoridade política: “Como é possível para um homem reclamar, em nome
da sociedade civil, direitos que nem mesmo supunha existir, direitos que lhe
repugnam absolutamente? Um dos primeiros objetivos da sociedade civil,
que se tornou uma de suas regras fundamentais, é que ninguém seja ju iz
em causa própria. Apenas por isso, cada indivíduo despojou-se de uma só
vez do primeiro direito fundamental, que pertence ao homem, que não está
ligado por nenhum contrato, o de julgar por si mesmo e de sustentar seu
próprio direito. Ele abdica do direito de se governar, abandona até, tanto
quanto -possível, o direito de sua própria defesa, essa primeira lei da
natureza. Os homens não podem usufruir ao mesmo tempo dos direitos de
um Estado civilizado e de um estado que não o é. Eles abandonam, a fim de
obter justiça, o direito de determinar sobre cada coisa o que julgam mais
importante; e a fim de conservar alguma liberdade, eles a confiam por inteiro
a um depósito comum” (ibid., p. 120).
A crítica dos direitos do Homem é, portanto, fundada simultaneamente
sobre duas concepções diferentes, até mesmo antagônicas, do direito: em um
caso, Burke faz da pesquisa do direito uma imitação da natureza que procura
completar a ordem que ela objetivamente já contém; em outro, ele retorna ao
benefício do Estado, uma doutrina essencialmente subjetivista do direito natural.
2) Em um pequeno livro, brilhante e sugestivo, C. B. Macpherson chama
a atenção para a presença, em Burke, de duas concepções, profundamente
heterogêneas, da ordem social: a idéia hierárquica de uma cadeia de subordi­
nação natural (que legitima a defesa da aristocracia e do clero nas Reflections)
coexiste com a noção moderna, virtualmente individualista e igualitária, de
uma regulação espontânea das relações sociais pelos mecanismos do mercado
(Macpherson, 1980-).
Alguns anos depois das Reflections, em Thoughts on Scarcity, Burke
denunciará assim o sistema de proteção social de Speenhamland em nome
dos princípios mais radicais do liberalismo econômico. Ao fornecer aos
trabalhadores uma complementação salarial, em função de seus encargos de
família e do preço do pão, as autoridades de Speenhamland cometem uma
intervenção contra a natureza e ímpia nas leis do mercado (Burke, 1815-
1827, VII, p. 380, citado em Macpherson, 1980, p.52). Contemporâneo
intelectual de Adam Smith, Burke reencontraria assim as teses centrais da
economia política liberal: a ordem de mercado é ao mesmo tempo harmonio­
sa e justa e traduz a ação da Providência que “obriga os homens, quer eles
queiram ou não, a ligar o interesse geral a seu sucesso individual perseguin­
do seus próprios interesses egoístas” (ibid., 384-385, citado in Macpherson,
1980, p.59).
Para Macpherson, esse apego ao liberalismo econômico permite resolver
os paradoxos aparentes da doutrina de Burke. Este não defende uma ordem

194
qualquer de subordinação hierárquica, mas uma ordem especificamente ca­
pitalista: "Seu processo contra os princípios franceses era o mesmo que o
contra os princípios de Speenhamland: uns e outros destruiriam a sociedade
tradicional ao destruir a condição prévia da acumulação capitalista, isto é, a
submissão da classe trabalhadora” (Macpherson, 1980, p. 61).
Essa interpretação, se mostra bem como, no conservadorismo moderno,
a defesa da opressão impessoal do mercado se pode emparelhar com a apologia
da subordinação política da classe trabalhadora, não se dando conta, no
entanto, de todas as variações do pensamento de Burke. de fato, encontra-se
também nas Reflections uma crítica da burguesia e do utiiitarismo dos
“economistas” e uma denúncia da cumplicidade entre o espírito revolucionário
e a mentalidade “capitalista” (Burke, 1980, p. 230-239) que não combinam com
a imagem de um Burke unilateralmente “burguês”. Deve-se, em compensação,
notar a sutileza da análise burkeniana do conflito de classes na Revolução. Se
ele defende a nobreza francesa dos ataques excessivos dos quais ela era objeto
entre os revolucionários, mostra também, antes de Tocqueville, como o
enriquecimento da burguesia tornava os privilégios da nobreza muito menos
legítimos por eles não corresponderem mais a uma potência econômica real.
Objetos de uma desconfiança justificada por parte das classes populares, os
“capitalistas” eram igualmente invejados pelas antigas elites: a Revolução foi
tanto sua obra quanto de seus aliados, homens de letras e advogados.

A aridez da razão

Compreende-se a ambivalência da atitude de Burke a respeito do mundo


burguês quando se dá conta dos elogios que ele dirige à ordem tradicional.
Uma das páginas mais eloqüentes das Reflections, que evoca a figura de Maria
Antonieta e o contraste entre sua glória passada e as injúrias que a fazem
suportar os revolucionários, é um elogio da “cavalaria". “O século da cavalaria
passou. Aquele dos sofistas, dos economistas e dos calculistas sucedeu-o; e a
glória da Europa foi extinta para sempre" (Burke, 1980, p. 156). São estes
temas “góticos” que Thomas Paine ressalta para denunciar nas Reflections
uma defesa servil das velhas classes dirigentes (Paine, 1958, primeira parte,
passim). Ora, é preciso ponderar que Burke defende principalmente, nesse
caso, o espírito de liberdade que animava as antigas instituições e os costumes
“cavalheirescos”: “Era esse mesmo princípio que, sem confundir as categorias,
produzia uma nobre igualdade que pecorria todas as gradações da vida^ocial.
Era essa opinião que abrandava os reis, transformando-os em companheiros, e
que elevava homens comuns à honra de se tornarem um deles. Sem força e
sem resistência... ela forçava a autoridade severa a se submeter à elegância e
fazia conhecer um império superior às leis: o das boas maneiras" (ibid., p.
157-158). O mundo burguês é aquele da prosa mundana: “Tudo vai mudar,
todas as ilusões que tornavam o poder amável e a obediência liberal, que
davam harmonia às diferentes tristezas da vida, e que, por uma ficção cheia de
doçura, faziam girar, em proveito da política, todos os sentimentos que

195
embelezam e adoçam a vida privada, tudo iria se desvanecer diante desse
império irresistível das luzes e da razão (ibid., p. 158).
A defesa da ordem hierárquica não é, portanto, fundada em uma simples
nostalgia pelo passado feudal, porém mais por uma inquietude totalmente
moderna diante dos efeitos da racionalização das relações sociais, que nos
conduz à idéia de uma dialética da modernidade. As diversas tendências do
pensamento de Burke podem assim se integrar em uma figura unificada, se as
reconduzirmos à sua origem comum que é, sem dúvida, a crise da Razão
moderna.
Qualquer que seja seu apego ao classicismo aristotélico ou ciceroniano,
Burke não se coloca jamais, verdadeiramente, do ponto de Vista da restauração
de uma doutrina política pré-moderna. Já o havíamos notado a propósito de
sua relação complexa com as doutrinas do Contratsocial: a crítica dos Direitos
do Homem deve tanto a Hobbes quanto aos clássicos. Mais profundamente
ainda, como observou Roger Ayrault, o gênio de Burke foi compreender que
só se podia opor à idéia de contrato social sob a condição de “dominá-la por
ela mesma”, "ampliando-a muito além de todo Estado empírico e de todo fim
prático, esticando-a ao infinito no espaço e no tempo, colocando-a como uma
cópia enfraquecida do outro pacto, da aliança concluída e depois renovada por
Deus com o gênero humano” (Ayrault, 1961, p. 125). Em uma página célebre
das Reflections..., Burke mostra com efeito como: “cada contrato de cada
Estado particular é apenas uma cláusula no grande contrato primitivo de uma
sociedade eterna, unindo as naturezas inferiores às naturezas superiores,
correlacionando o mundo visível com o mundo invisível, de acordo com um
pacto firmado e sancionado pelo juramento inviolável que mantém todas as
naturezas nos lugares que lhes foram reservados” (Burke, 1980, p. 203). O
princípio subjacente à demonstração de Burke é que a análise da Vontade e
da Razão individuais faz aparecerem as contradições que só podem ser
resolvidas por um apelo a uma racionalidade mais profunda que ultrapassa as
capacidades do julgamento humano: o “verdadeiro” contrato que fundamenta,
ao mesmo tempo, o Estado e a história humana como realização dos desígnios
da Providência não tem, portanto, medidas comuns com as relações interin-
dividuais, elas mesmas sempre passíveis de revisão. A finitude humana nos
proíbe, assim, de acreditar que nossa razão sozinha poderia fundar e preservar
a ordem política; daí o caráter central da reabilitação dos preconceitos contra
o racionalismo estreito das Luzes; a tarefa do pensador é descobrir a "sabedo­
ria oculta que predomina nos preconceitos, mais do que expor os homens a só
viverem de acordo com o fundamento particular de razão que pertence a cada
um” (Burke, p. 180-181).
Além de sua influência sobre a política de seu tempo, a obra de Burke se
reveste, assim, de uma imensa importância filosófica, explicitando as moti­
vações da análise da Revolução ao mesmo tempo que funda o romantismo
político. Em Novalis, por exemplo, o elogio da época cavalheiresca será
acompanhado da mesma ambivalência a respeito do Estado, ao mesmo tempo
glorificado como figuração sensível do mundo invisível e denunciado como

196
encarnação privilegiada do artificialismo político dos modernos. Para o jovem
Fichte, em compensação, a defesa da Revolução passará pela inversão comple­
ta da compreensão de Burke a respeito da finitude humana: o elogio da ação
revolucionária reunirá a defesa da Razão, contra a “rotina”, e a redução
metódica do Estado às relações intersubjetivas.
As tensões que encontramos ao longo de toda essa análise procedem,
portanto, de um único foco; partindo de uma defesa da prudência dos antigos
contra a aridez da razão moderna, Burke opõe a esta a racionalidade imanente
da história humana; abriu, assim, o caminho tanto à recusa irracionalista da
metafísica moderna quanto à sua conclusão dentro de um racionalismo
absoluto. Léo Strauss viu muito bem essa dificuldade; ele observa que a
justificação da constituição britânica pela História supõe que a ordem política
não tira mais sua legitimidade da referência e uma norma transcendente, mas,
muito ao contrário, da racionalidade da evolução histórica: “O que poderia
aparecer como um retorno à equivalência antiga do bem e do ancestral na
verdade anuncia Hegel” (L. Strauss, 1954, p. 330).
Pode-se assim compreender a pluralidade das interpretações das quais as
Reflections foram o objeto. Aqueles que eram sensíveis à intenção de Burke
insistiram sobre as fontes clássicas, aristotélicas ou ciceronianas de sua crítica
à política das Luzes (ou Iluminismo). Aqueles que compartilhavam com ele o
pathos moderno da antimodernidade iriam desenvolver a oposição entre a
irracionalidade criadora e a aridez da razão que raciocina. Sua argumentação
contra as ilusões voluntaristas dos revolucionários podia também ser retomada
dentro do contexto de uma defesa da “ordem espontânea” de mercado contra
o “construtivismo” socializante. Pode-se estimar, todavia, que as interpretações
mais fecundas são aquelas que, com Hegel e Tocqueville, fazem ver, na origem
das tensões que atravessam sua obra, o caráter ao mesmo tempo dialético e
ineliminável das representações fundadoras da política moderna.

• Reflections on the revolutton in France (1790), editada por Conor Cruise 0 ’Brien, Londres,
Penguin Books, Pelican Classics, segunda edição, 1973, trad. In Réãexions sur la Révolution
de France (1790), apresentada por G. de Bertler de Sauvigny, Paris-Genebra, Slatklne; Works,
1815-1827, Londres, Rivington (ed.); Burke’s Politics, editado por R. Hoffmann e P. Levack,
Nova York, 1949.

► Marilyn Butler, editora, Burke, Paine, Godwln and the Révolution Controversy, Cambridge,
UP, Cambridge English Prose texts, 1984; Thomas Paine, Common Sense (1776), Penguin
Books, quinta edição, The Penguin American Libraiy, 1982; Id., The Rights o f Man (1791),
Londres-Nova York, Dent & Sons, E. P. Dutton & Co., Everyman’s Library, 1979; Hannah
Arendt, Essa! sur la Révolution (1963), trad., Paris, Gallimard, 1967; Id., The Origins of
Totalitarism (1951), Nova York e Londres, Harcourt, Brace, Jovanovich, 1973; Roger Ayrault,
La genèse du romantlsme allemand, Paris, Aubier-Montaigne, 1961; Carl B.Cone, Burke and
the Nature o f Politics, Universlty of Kentucky Press, dois volumes, 1957 e 1964; Michel Ganrin,
La pensée polltique dEdmond Burke, Paris, Librairie générale de droit et de jurisprudence,
1972; C. B. Macpherson, Burke, Oxford UP, Past Masters, 1980; Frank 0 ’Gorman, Edmund

197
Burke, hls Political Philosophy, Londres, Allen & Unwin, 1973; P. J. Stanlis, Edmund Burke
and the natural Law, Hann Arbor, 1958; Léo Strauss, Droit naturel et histoire (1953), Paris,
Plon 1954; Michel Villey, Critique de ia pensée jurldique moderne, Paris, Dalloz, 1976.

Philippe RAYNAUD

BURLAMAQUI Jean-Jacques, 1964-1748


Princípios do Direito Político, 1751

Passado o tempo das lendas em que Burlamaqui, concidadão de Rous-


seau e professor de direito na Academia de Genebra, era considerado o
principal inspirador de um Contratsocial, precisamente subtitulado "Príncipes
du droit politique.”(“Princípios do Direito Político"), o que sobrou daquilo que
é preciso chamar de sua glória (seus Príncipes du droit naturel foram
reeditados mais de sessenta vezes)? Sabe-se hoje que Burlamaqui quis menos
escrever uma obra original, como ele próprio indica na “Advertência” dos
Príncipes du droit naturel, do que propor manuais úteis aos jovens na
utilização dessa importante ciência que é a ciência jurídica. Aliás, foi principal­
mente por meio das informações assim reunidas sobre a ciência política e
jurídica dos séculos XVII e XVIII que o jurisconsulto pôde ter uma importância
para Rousseau, mais pelo material que ele fornecia do que pelas posições que
defendia, já que, a esse respeito, veremos, o Contrat Social é, antes de tudo,
uma crítica das idéias de Burlamaqui. Oferecendo uma espécie de síntese das
teorias elaboradas durante mais de um século, a obra assim produzida parece
hoje ter exercido sua principal influência sobre o pensamento liberal america­
no nos anos que deviam conduzir às primeiras declarações dos direitos do
homem (Harvey, 1937, e Gagnebin, 1944, 3a parte, p. 277-291). E, com efeito,
relidos sem que fosse postulado que se tratava do “mestre de Rousseau”, os
escritos de Burlamaqui testemunham um esforço importante - comparável ao
de Barbeyrac em suas traduções e anotações de Pufendorf - para modificar,
por diversas retificações, o alcance político das doutrinas produzidas pelos
fundadores do direito natural moderno.
Como sempre na tradição jusnaturalista, a concepção do poder político
desenvolvida por Burlamaqui nos Príncipes du droit naturel se baseia sobre
uma tese relativa ao estado de natureza em sua oposição ao estado civil e scbre
uma teoria, que resulta dela, da origem da sociedade, civil (origem de direito e
não de fato, como esclarece a abertura dos Príncipes, I, capítulo II, § 2®, a
questão de fato sendo, na verdade, “mais curiosa do que útil ou necessária").
Segundo uma descrição apresentada por Pufendorf (livro II, capítulo I, § 8a) e
retomada por Locke, Burlamaqui coloca (Príncipes du droit naturel, I, capítu-

198
Io IV, 9a) que aquilo que destingue a “sociedade civil” da "sociedade simples
da natureza" é "a subordinação a uma autoridade soberana que toma o lugar
da igualdade e da independência”: “Os nomes dos soberanos e do súditos, de
senhores e de escravos são desconhecidos pela natureza: ela nos fez apenas
homens, todos iguais, todos igualmente livres e independentes uns dos outros;
ela quis que todos aqueles nos quais colocou as mesmas faculdades tivessem
também os mesmos direitos; é, portanto, incontestável que nesse estado
primitivo e de natureza, ninguém tinha por si mesmo um direito originário para
comandar os outros ou de se arrogar em soberano” (Droit politique, I, capítulo
VI, § 3a). Disso resulta que - e a tese não é mais original - a soberania (a
autoridade política) só pode nascer de uma convenção ou de um contrato a
partir do qual os indivíduos se despojam de seu direito natural e se submetem
a uma autoridade (cf.II, capítulo III, § 6a: crítica da criação da soberania sobre
o direito de conquista).
Quanto aos efeitos do contrato (criação de uma soberania absoluta ou de
uma soberania limitada), Burlamaqui parece ainda, pelo menos em um primei­
ro tempo, seguir Pufendorf. Para este último, certamente, no estado de
natureza, o homem prova sua capacidade de sociabilidade, possui, diz Burla­
maqui, "afinidades sociais” (Droit naturel, II, capítulo IV, § 11,12 e 13, e
Eléments du droit naturel, IIa parte), mas (réplica de Pufendorf ao tema de
Hobbes) os “preconceitos” e as “paixões” fazem com que as leis naturais sejam
conhecidas e aplicadas apenas imperfeitamente: "A grande liberdade e inde­
pendência, que os homens gozavam, os lançaram em uma inquietação perpé­
tua; a necessidade forçou-os, portanto, a sair dessa independência e a procurar
um remédio contra os males que ela lhes causava e foi o que eles encontraram
no estabelecimento da sociedade civil e de uma soberania autoritária” (Droit
politique, I capítulo III § 5a). O raciocínio parece efetivamente muito próximo
ao de Hobbes (cf., por exemplo, Droit politique, I capítulo III, § 20: “Perpetua­
mente divididos e em guerra, o mais forte oprimia o mais fraco; eles não
possuíam nada tranqüilamente e não gozavam de nenhum repouso”), todavia,
com esta diferença capital que em princípio, sendo o estado natural considera­
do nesse caso já sociável, o estado civil deverá mais completar a natureza do
que destruí-la (Droit naturel, II, capítulo VI, § 2: “O estado civil não destrói o
estado natural, mas aperfeiçoa-o”) e, em conseqüência, a formação da socie­
dade civil não deveria requerer, como nas teorias absolutistas, a renúncia do
indivíduo à totalidade de seu direito natural. No entanto, a esse respeito,
Burlamaqui encontra em Pufendorf, como se sabe, uma versão absolutista da
teoria do contrato, já que, depois do contrato de submissão, o povo só tem
direitos com o consentimento do monarca: tem-se freqüentemente realçado,
sobre esse ponto, a inconseqüencia de Pufendorf (Derathé, 1970, p. 212) -
inconseqüência da teoria do contrato (em relação às teses sobre o estado
natural) que, todavia, fôra tornada possível pela associação de outras teses à
da sociabilidade natural que anulavam seu alcance em princípio liberal (cf.
principalmente a tese da origem divina dos contratos, por isso sacralizados e
invioláveis).

199
Os Príncipes du droit politique de Burlamaqui parecem, logo à primeira
vista, assumir essa inconseqüência quando segue Pufendorf no caminho de uma
teoria da soberania absoluta: o contrato é, com efeito, descrito como conclusão
de uma transferência total de soberania e, portanto, tanto ao que está escrito
quanto ao seu espírito, a teoria de Pufendorf dos dois contratos parece passar
tal qual nos escritos do jurisconsulto genebrino (cf. 1, capítulo VI, 6a: “É a
transferência e a reunião de todos os direitos de todos os particulares na pessoa
do soberano que o constituiem como tal e que produzem verdadeiramente a
soberania”, ou I, capítulo VII, § 12: a soberania “residia originariamente no povo;
mas, desde que um povo tenha transferido seu direito para um soberano, não se
poderia supor, sem contradição, que ele continue ainda sendo seu próprio
senhor”. Fidelidade a Pufendorf que leva até Burlamaqui a defender também a
tese da origem divina dos contratos (I, capítulo IV, §12) e que atrairia, sobre ele,
a crítica de Rousseau, estimando que se tenha assim "despojado os povos de
todos seus direitos” (Contraí social, II, 2).
Ora - é nesse ponto que se coloca no lugar a reflexão original de
Burlamaqui —, no quadro de Pufendorf, portanto absolutista, os Príncipes du
droit politique, vão, no entanto, procurar os meios de preservar os cidadãos
contra todo abuso de poder, e, para fazer isso, limites serão impostos à
soberania - se bem que a teoria política de Burlamaqui vá paradoxalmente
tomar a forma de uma teoria da soberania absoluta, mas limitada. Essa
pesquisa, que rompe tanto com Pufendorf quanto com Hobbes, faz aparecer
quatro limitações à soberania da autoridade política:
1) Burlamaqui desenvolve, com uma amplitude nova, um tema presente
também em Barbeyrac, a saber, aquele da divisão da soberania, isso por meio
de sua teoria do “equilíbrio dos poderes”, que, estranhamente, evoca Montes-
quieu (Esprit des Lois, XI, 4). Limitar a soberania é, com efeito, primeiro
partilhá-la: sem colocar a existência dos direitos naturais não transferíveis à
autoridade, “há uma outra maneira de limitar o poder daqueles a quem a
soberania foi confiada: é não confiar todos os diferentes direitos que ela
engloba a uma única e mesma pessoa, mas depô-los em mãos diversas, de
diferentes pessoas ou de diferentes corporações, para modificá-la ou restringi-
la” (Droit politique, I, capítulo VII, § 50). Para evitar os abusos do absolutismo
(despotismo) sem recorrer aos governos populares e a seus inconvenientes (a
licenciosidade), é preciso, portanto, proceder a uma “divisão dos direitos da
soberania por um contrato ou uma estipulação recíproca entre as diferentes
corporações do Estado: essa divisão produz um equilíbrio de poder que coloca
as diferentes corporações do Estado em uma dependência mútua que detém
cada um daqueles que fazem parte da autoridade soberana nos limites que a
lei lhes destina e que traz assim a certeza da liberdade”. Essa teoria da
separação dos poderes conduz à valorização dos “governos mistos”, que para
Pufendorf eram ‘“Estados irregulares’, mas que, para Burlamaqui, é sob a
forma de ‘monarquia limitada’ (o monarca é apenas uma parte da soberania”
e é preciso “colocar a outra em mãos diversas, por exemplo, em um conselho
ou em um parlamento”) ou até mesmo nas mãos da “aristocracia moderada

200
pela democracia” (aristocracia eletiva que dá ao povo “alguma parte do
governo”), "afastando-se igualmente da tirania e da licenciosidade, buscando
para os súditos uma felicidade certa” (II, capítulo II, § 30). Sabe-se que esse
ideal do "equilíbrio dos poderes”, no qual Burlamaqui encontra encarnações
na Esparta de Licurgo, na Inglaterra contemporânea e principalmente na
Constituição de Genebra (Gagnebin, 1944, p. 53 e seguintes), suscita as críticas
severas de Rousseau (“Neste caso, não vejo mais o soberano...Em todo Estado
político, é necessário um poder supremo, um centro onde tudo se conecte, um
princípio do qual tudo derive, um soberano que possa tudo”, Lettres écrites de
la Montagne, Carta VII). Em compensação, as obras de Burlamaqui serviram,
sob esse aspecto, de base para o ensino do direito político nos Estados Unidos.
Jefferson e os outros autores da primeira Constituição americana acreditaram
encontrar na idéia do equilíbrio dos poderes um dos ingredientes essenciais
dó liberalismo político.
2) Burlamaqui situa a limitação da soberania também como parte da
própria função do soberano: Ela se encontra limitada por sua própria
natureza, “pela intenção daqueles que a conferiram ao soberano e pela
própria lei de Deus” {Droit politique, I, capítulo VII, § 17). De fato, “não é
preciso confundir um poder absoluto com um poder arbitrário, sem limites”
(ibid.), sendo considerado que, mesmo absoluto, o poder resultante do
contrato não se estende “além dos limites da utilidade pública” (I, capítulo
VII, § 20): no mesmo sentido em que Locke falava sobre os “limites do bem
comum” (Second Traité, § 131), Burlamaqui ressaltava, portanto, que a
transferência dos direitos dos indivíduos, mesmo total, só foi consentida por
estes sob a promessa expressa ou tácita de que o príncipe governaria tendo
em vista o bem dos súditos e da sociedade em geral, o absolutismo não
anulando, portanto, esse pressuposto inerente à própria idéia do contrato.
Em conseqüência dessa limitação da soberania1pelas "obrigações da lei
natural” (assegurar a paz civil) e pelo objetivo das sociedades civis (es­
tabelecer o bem público), os governados têm o direito de resistir à tirania de
um príncipe que não toma para si a regra: “Salus populi suprema lex esto",
pois "nunca nenhum povo teve a intenção de se submeter a um soberano a
ponto de não lhe poder jamais resistir, mesmo quando estivesse em jogo sua
própria sobrevivência” (Droit politique, II, capítulo VI,§ 24) Nesse caso,
certamente Burlamaqui não inova, apenas segue as indicações de Grotius
{De jure bellis ac pacis, I, 4); todavia, o tema era apenas secundário na obra
de Grotius, preocupado antes de tudo com o fundamento dos direitos do
soberano, enquanto, na obra de Burlamaqui (assim como nas de Barbeyrac
e de Vattel) é essa parte de direito reservada ao povo, pelo contrato, que deve
ser compreendida na perspectiva do absolutismo, que é posta em evidência,
mesmo quando se esclarece que é preciso usar com prudência o direito de
resistência, para não expor inutilmente o estado a perturbações. Portanto, a
originalidade se situa menos no próprio tema do que nesse importante
deslocamento do acento, pelô qual a teoria do contrato social manifesta,
apesar de suas origens absolutistas, suas potencialidades liberais. A injustiça

201
de Rousseau, ao reprovar os jurisconsultos por terem "despojado os povos
de todos os seus direitos” se manifesta assim a respeito de Burlamaqui
(assim como a respeito de Barbeyrac): por não ser democrata no sentido que
Rousseau dá à democracia (II, capítulo II, § 42,43) o contrato social não
fundamenta a soberania do povo). Burlamaqui reserva apenas ao povo, por
meio de sua insistência sobre os deveres do Príncipe e de esclarecimento do
tema do direito popular de resistência, "alguma porção da soberania”.
3) É na mesma perspectiva que os Príncipes du droit politique (I,
capítulo IV, § 15) exploram a noção de Pufendorf de decreto ou de ordenação
da natureza do regime: ligado ao primeiro contrato, esse decreto, pelo qual o
povo reunido define a natureza da autoridade política antes de determinar seu
detentor, pelo segundo contrato, vai, em Burlamaqui, constituir “as leis
fundamentais do Estado”, isto é, “convenções entre o povo e aquele a quem
ele difere a soberania, que regulamentam a maneira pela qual se deve governar
e pelas quais colocam-se limites à autoridade do soberano” (I, capítulo VII, §
36). Não se poderia definir mais claramente a idéia de uma codificação
constitucional dos limites da soberania: se se imaginar que, ao mesmo tempo,
o Jusnaturae de Achenwall (1755) insistia também sobre o alcance da lex
fundamentalis a ponto de fazer um terceiro contrato, intermediário entre o
pacto de associação e o de submissão, seria conveniente que o quadro de
Pufendorf se prestasse, nesse caso, a um remanejamento que restituísse o
alcance da idéia contratualista. Seremos persuadidos disso mais ainda ao
sermos transportados (I, capítulo VII, § 42) às páginas onde Burlamaqui
explica que o Príncipe, em conseqüência da limitação constitucional de seu
poder, deve estar acompanhado ao determinar se esses atos estão de acordo
com as “leis fundamentais”, de um conselho, um senado, um parlamento, em
resumo, uma instância sem o “consentimento” da qual os atos de seu governo
não serão legítimos (graças à existência dessa instância, esclarece além disso
Burlamaqui, o recurso ao direito de resistência só poderá ser excepcional:
assim limitada, isto é, controlada, a soberania poderá ainda ser considerada
absoluta?
4) Visto que a reflexão de Burlamaqui parece conduzir o absolutismo
para tão perto de sua morte, torna-se secundário saber se seus escritos
recorreram ou não - o debate divide os intérpretes —ao tema dos direitos
inalienáveis, que presumiam não apenas uma limitação da soberania abso­
luta, mas também uma renúncia do príncipe ao absolutismo. Certamente se
lê nos Príncipes du droit naturel (I, capítulo VII, § 8a) que “há direitos aos
quais se pode renunciar legitimamente, e outros a respeito dos quais isso
não é permitido”. Mas pôde-se estimar (Derathé, 1970, p.371 e seguintes) que
o Droit politique não explorou esse tema, pois Burlamaqui, nesse ponto,
seguir Pufendorf, estimando que se pode alienar sua liberdade como se
aliena seus bens (I, capítulo VI, § 5°). Certos textos (I, capítulo VII, 2°)
permitiram outras leituras (Goldschmidt, 1974, p. 656 e seguintes), já que
Burlamaqui pôde sustentar também que nenhum povo tem o poder de
conceder a seu soberano um poderio “arbitrário e sem limites”, pois “nin-

202
guém se pode despojar de sua liberdade” (“isso seria renunciar à sua própria
vida, da qual ele não é o dono (...) e a seu dever, o que nunca foi permitido”).
O debate, convém dizer a verdade, não tem muita importância: a delica­
deza dos textos, a propósito dessa quarta limitação da soberania, manifesta
simplesmente que a retificação do absolutismo de Pufendorf na direção de um
absolutismo limitado conduziu Burlamaqui para muito perto de uma des­
truição do absolutismo. Assim, para refletir a lógica da idéia contratualista,
seria conveniente aos Príncipes du droit politique colocar, com a maior
clareza, o problema de saber se o “absolutismo contratual não seria no fundo
uma “contradictio in adjecto”.

• Príncipes du droit politique, Genebra. Barillot & Pils, 1751, obra póstuma publicada por
J.Vemet, segundo os cadernos do autor; Príncipes du droit naturei, Genebra, Barillot & Fils,
1747 (reeditado em 1748, duas partes em um volume); Eléments du droit naturei, obra póstuma
publicada em Lausanne, ed. Fr. Crasset, 1775 (sem dúvida pelos cuidados de G. Seigneux de
Correvon). réed. Vrin “Reprise”, Paris, 1981.

► Robert Derathé, J.-J.Rousseau et la Science politique de son temps, Paris, Vrin, 1970
(segunda edição, p. 84-89); Bernard Gagnebin, Burlamaqui et le droit naturei, Genebra, Ed. de
la Frégate, 1944; Victor Goldschmidt, Antropologie et politique. Les príncipes du système de
Rousseau, Paris, Vrin, 1974, principalmente p. 186 e seguintes, 218 e seguintes, 645 e seguintes,
667 e seguintes; R. F. Harvey, J.-J.- Burlamaqui, A liberal Tradition in American Cons-
titutionalism, Chapei Hill, The Úniversity of the North Carolina Press, 1937.

Alain RENAUT
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CALVINO, João (Jean Calvin) - 1509-1564
Instituição da religião cristã, 1536

A maior obra de João Calvino, Jnstitution de la religion chrestienne


(Institutio christianae religionis), publicada pela primeira vez em latim, em
Basiléia em 1536 (a tradução francesa data de 1541 e o texto definitivo de
1559), pertence incontestavelmente à história política, mesmo que não se possa
considerá-la uma obra de filosofia política: seu próprio objetivo, como indica o
prefácio, é promulgar a Reforma da religião, fornecendo-lhe seu corpo de
doutrina, princípios e regras: é, nessa qualidade, um dos pilares da doutrina
do protestantismo, nessa versão que constitui o “calvinismo” depois do
luteranismo.

As motivações políticas da Institution

Se bem que a obra se inicie com uma demarcação nítida em relação à


coisa política, tão nítida que pode ser considerada o primeiro elemento da
própria doutrina calvinista, é ao próprio poder que Calvino se dirige, na
carta-prefácio, na pessoa de Francisco I. Isso, para afirmar o princípio da
submissão dos Reformados ao poder político, em correlação com o princípio
de separação entre o que é de Deus e o que é de César, conforme a doutrina
de São Paulo.
Se esse texto é, entretanto, tão importante para a história das idéias
políticas, há pelo menos três razões para isso: em primeiro lugar, o próprio
Calvino é o inspirador de um regime, tanto político quanto espiritual, o de
Genebra —embora seja um fato notável ele não ter jamais preenchido sua
própria função: ele pode ser considerado o organizador e o doutrinário da
nova Igreja depois da publicação da Institution: em uma primeira fase, em
1537-1538 (Articles concernant Vorganisation de VEglise et du culte,
Confession de Foy), depois de novo a partir de 1541: foi preciso, todavia,

205
esperar 1559 para que ele se deixe levar para a luta pelo poder em Genebra
(precisamente no ano da edição final da Institutiori), de modo que o
calvinismo pode ser considerado a doutrina oficial do Estado genebriano.
Assim, sem ser o instrumento direto da codificação do Estado Protestante,
a Institution pode ser considerada fornecedora da referência e da superes-
trutura espirituais.
O segundo motivo da implicação política dessa obra consiste no fato de
ela conter uma dimensão sócio-política: a nova doutrina espiritual deixa um
lugar determinante para essa dimensão, definindo, de forma estrita e nova, a
articulação do político com o espiritual. É esse núcleo político que se deve
extrair do edifício assim construído para adquirir sua própria coerência.
Essa adquire todo seu efeito se se consideram suas bases concretas. É
precisamente a última fonte de implicação política maior da Institution. Esta
concepção da função política teve um papel determinante na elaboração da
constituição e da prática políticas dos Estados que foram recomendadas: o
calvinismo, saído de uma separação de domínios, tornou-se por isso mesmo
um componente maior da evolução da concepção do político. É na qualidade
de componente da modernidade política que a concepção calvinista “sobre-
determina” a problemática da modernidade: é esse “efeito político”, ao
mesmo tempo indireto e determinante, que deve permitir uma retomada da
Institution chrétienne.

O dualismo do espiritual e do temporal

A questão política se vê refratada de certo modo segundo as quatro


dimensões da Institution, correspondentes às quatro divisões da obra: partin­
do de Deus, Calvino esclarece sobre o homem —subordinando, assim, clara­
mente, a antropologia a uma teologia; daí, ele passa ao núcleo da doutrina
constituída pela doutrina da Graça e da Redenção; enfim, a questão da Igreja,
de sua função na expressão da fé, coroa e construção.
O primeiro artigo da política calvinista é, portanto, também o que funda
a sua subordinação do político: é apenas a Deus, criador do mundo, que
pertence a Soberania. Deus, governador do mundo: eis, de certo modo; o
postulado que divide o governo humano da Soberania, reservada a Deus.
Correlativamente, o conhecimento de Deus é accessívei apenas por sua
Palavra, sem mediação da instituição humana, isto é, do Magistério, a Igreja:
é apenas por intermédio do Espírito Santo, infalível nisso, que a mensagem
divina se impõe ao homem.
Além disso, entre o divino e o humano passa a fronteira absoluta que
colocou aí o pecado original que estabelece a concupiscência como raiz de
todo motivo humano. A liberdade humana está radicalmente subordinada à
verdade divina. Isso não impede que o homem deva querer o Bem: e é isso
que lhe destina uma tarefa na obra de redenção do Cristo. A Redenção
consiste, em certo sentido, no fato de Cristo retomar seu poder sobre as
almas pecadores: não é fortuitamente que Calvino destina a Cristo, além das

206
funções de Profeta e de Sacerdote, a de Rei. É o ideal cristão que o Cristo-Rei
reine como soberano sobre as almas.
Por todos esses aspectos, a Política é, portanto, por assim dizer, mais
ainda do que subordinada, “desrealizada” em relação à “coisa religiosa”. E, no
entanto, numa segunda dimensão da doutrina calvinista que a tomada de
responsabilidade do político suigeneris vai se impor. É o que aparece no livro
IV da lnstitution. Antes de tudo, de modo polêmico, Calvino recusa com
veemência, por meio do Anabatismo, uma desrealização absoluta do político,
acompanhada por uma desvalorização total do mundo; segundo seu próprio
resumo: "Já que pertencermos aos elementos do mundo, dizem, é uma coisa
por demais vil para nós, e indigno demais de nossa excelência nos ocuparmos
com preocupações sórdidas e profanas" (IV, C, xx, 2). O correlato disso é um
anarquismo que Calvino vilipendia como doutrina absurda e imoral “dessas
pessoas fora de si e bárbaras que gostariam de derrubar toda ordem es­
tabelecida, esses fanáticos que só buscam uma licenciosidade desenfreada e
que gostariam que os homens vivessem desordenadamente como ratos em
palha”. Calvino reencontra aí a violência de Lutero contra Münzer (cf. o artigo
que lhe é consagrado), mas por motivos diferentes, até mesmo opostos: Lutero
denunciava a utilização política sofista da doutrina espiritual. Calvino denuncia
a doutrina espiritual que despolitiza o homem, não levando em conta o vínculo
humano em sua positividade. Em Calvino, com efeito, a dualidade do espiritual
e do temporal não se exacerba jamais em um dualismo que fará do vínculo
social uma espécie de sombra, uma convenção sem substância. Nesse aspecto,
é verdade, ele se opõe, como Lutero, a um uso anarquizante da doutrina do
“Reino de Deus”.

A eminência temporal do político

Há, portanto, uma função positiva da “ordem civil”: subordinada direta­


mente ao reino espiritual, ela exprime a participação do homem na comunidade
de depois do pecado original. Assim como ela tem uma função de proteção da
doutrina de Deus —de tal modo que "idolatria, blasfêmia contra o nome de
Deus e contra sua verdade e outros escândalos da religião não sejam colocados
em evidência publicamente e semeados entre o povo” - assim também a
arrumação da sociedade humana, de modo que “a tranqüilidade pública não
seja perturbada, que cada um tenha protegido o que é seu; que os homens se
comuniquem simultaneamente, sem fraude nem nocividade, que haja hones­
tidade e modéstia entre eles, em resumo, que apareça forma pública de religião
entre os cristãos e que a humanidade conste entre os humanos” (op. cit., ibid.,
3). A Cidade deve, portanto, refletir, na ordem humana, a Ordem que é uma
característica maior da intervenção divina.
Assim, encontra-se, no prolongamento dessa linha, uma espécie de elogio
do estado social. Calvino afirma que “o poder civil é uma missão não apenas
sagrada e legítima para Deus, mas também consagrada e, em toda a vida dos
mortais, de longe a mais honrosa” (IV, xx, 4). A função política exprime,

207
portanto, uma espécie de eminência da vida terrestre e social. Por aí, Calvino
acha o meio de manter, dentro da doutrina, a dualidade das duas ordens,
fazendo passar para a ordem política alguma coisa do prestígio (analógico) da
outra. A função política é pois desejada e amada por Deus, sendo a ordem da
"vocação santa e legítima”.

A magistratura, função de ordem

Isso esclarece sobre uma certa ostentação dos “magistrados”, que “rece­
bem ordens de Deus, são autorizados por Ele” a representar “sua pessoa”. Isso
resulta em instituí-los “vigários de Deus”. Essa última linha da doutrina
calvinista conduz, portanto, para bem longe, aparentemente, da indiferença
política apregoada como princípio.
Com efeito, não se deve interpretar essa ostentação como uma santifica­
ção: Calvino reafirma de maneira conseqüente os efeitos do pecado original,
que teve por conseqüência “a malignidade dos julgamentos humanos”. Assim,
um governo humano tem, por sua própria natureza, seus defeitos: tudo se
passa como se todo poder tivesse necessidade de uma assistência divina e até
mesmo pudesse reivindicá-la em uma certa medida - já que introduziria uma
certa ordem, em si benfazeja, dentro dos grupos humanos. Mas não é possível
inferir da Palavra de Deus uma escolha política de governo. Esse é um dos
pontos, em suma, mais marcantes do calvinismo que relativiza a grande
questão sobre a qual se havia polarizado a reflexão política desde a Antigüi­
dade, ou seja, a escolha de um regime político, considerado o melhor. A
questão do “bem público” é relativizada radicalmente pela preeminência da
religião: trata-se simplesmente de vigiar para que, no mundo social, qualquer
que seja a forma escolhida, os interesses de Deus estejam salvaguardados da
melhor maneira possível. A mensagem preliminar dirigida a Francisco I
adquire assim sua consistência doutrinai e não apenas tática. Qualquer coisa
como um “agnosticismo político”, no sentido da impossibilidade de conhecer
o Bem Político.
Quando muito se pode ressaltar duas tendências, embora contraditórias
aparentemente, em que se mostra uma preferência da parte de Calvino: de um.
lado, uma certa justificação do regime de um só, a monarquia, porque a
Escritura Sagrada parece ligá-la à "sapiência divina” (ibicL, 8), mas principal­
mente uma espécie de preferência pelo regime colegiado “em que vários
governantes juntos ajudam-se uns aos outros, informam-se de seus serviços, de
tal modo que, se algum se coloca alto demais, os outros lhe servem de censores
e orientadores” (ibid., 10). Autocrático ou cogerido, o poder só é bom
enquanto preenche bem sua função de ordenar as relações humanas.
E assim que se deve entender as passagens da Institution que falam alto
como a expressão de um conservadorismo político: “Se essa sentença fôr uma
vez bem resolvida por nós ou implantada em nossos corações, será para saber
que pela própria ordem de Deus, pela qual a autoridade de todos os reis é
estabelecida, também os reis injustos vêm ocupar o poder; jamais essas loucas

208
e sediciosas cogitações nos virão ao espírito, que um rei deva ser tratado como
ele o merece e que não é razoável que nós nos tenhamos por súditos daquele
que não se mantém de sua parte com relação a nós como Rei” (ibid., 27). Esse
é um discurso de alguma forma exatamente simétrico àquele dos monarquistas
(monarcômacos).
Mas, se a liberdade do povo já estiver inscrita na ordem política e se os
magistrados instituídos para exercê-la vierem a traí-la, a resistência se
tornará legítima: “Se houvesse nesse tempo magistrados destinados à defesa
do povo, para reprimir o excesso de cupidez e de licenciosidade dos reis..., a
esses que seriam destinados a essa situação, desse modo, eu não os proibiria
de se oporem e resistirem à intemperança e à crueldade das leis, segundo o
dever de sua profissão, pois, mesmo se eles dissimulassem, fingindo não ver
os reis atormentarem desordenadamente o pobre popular, apreciaria vê-los
serem acusados de perjúrio por essa dissimulação pela qual traíram malicio­
samente a liberdade do povo” (ibid., 31). Assim, a resistência se exerce de
offício e não “pelas pessoas privadas”: quando muito se pode denunciar o
não-exercício da profissão consagrada dos magistrados; isso é mesmo, literal-
mente; um dever.
E que existe um outro elemento da vida pública: se o magistrado encarna
a autoridade, a lei, expressão da vontade razoável de Deus, se constitui em
“magistrado mudo”. Quanto ao povo, longe de ser soberano, deve obediência
ao magistrado e respeito à lei. É, de certa forma, o testemunho da função
política. Quando muito pode chamar atenção, excepcionalmente, para a não-
conformidade do magistrado à sua função e à lei: mas bem antes é o magistério
calvinista que determina, em última instância, as condições de regulação do
sistema.

A face real do ideal calvinista

Na verdade, é preciso levar em conta, nesse nível - e apenas nesse nível


—a implicação da Institution em um projeto institucional bem preciso, essa
“Cidade-Igreja” que é Genebra. Se a Institution precede o trabalho calvinista
de organização e pertence por direito a um plano superior, só resta dizer que
Genebra constitui a forma política que deve refletir de maneira mais imediata
os princípios da política calvinista ou, pelo menos, manifestar alguma coisa da
base real do "modelo”.
Ora, nesse lugar, é o consistório, corpo de pastores e de notáveis, que
exerce a magistratura suprema: ele tem, assim, por função assegurar a impreg­
nação bíblica do corpo social, pela elaboração de regulamentos e pela vigilância
do culto. Compreende-se, assim, que o ideal concreto da Institution consiste
nessa espécie de congruência entre as formas política e religiosa da ordem,
“ideal” ao qual a Bíblia —por seu intérprete supremo —forneceu seu paradig­
ma. Por isso, ela pode funcionar “utopicamente” como protótipo para as outras
formas políticas inspiradas no calvinismo (“luminar do qual todas as igrejas
voltadas para a Reforma Cristã possam seguir o exemplo”).

209
De Bèze fornecerá em breve uma clara sistematização dos elementos de
política presentes na Institution chrétienne: a função política, em contraste
com a posição luterana, vê reconhecida sua própria função, a ponto de o ideal
calvinista vir a repousar na realização da ordem cristã pela mão do Magistrado.
O poder civil encontra-se finalmente reforçado - é verdade que por esse desvio
radical que o subordina em princípio ao espiritual, pelo próprio fato da recusa
de Calvino em considerar que é possível colocar a questão política fora da
questão da salvação.

• Institutio christianae relfgionls, ed. latinas 1536, 1539, 1543, 1545, 1550, 1553, 1554,
1559-1560; ed. francesas 1541,1545, 1551,1553,1557.

► P. Imbart de La Tour, Les Origines de la Réforme, L IV: Calvin et ilnstitution chrétienne,


Paris, 1953; F. Wendel, Calvin, sources et évolution de sa pensée religieuse, Paris, 1953.

Paul-Laurent a sso u n

CAMPANELLA, Tomaso -1568-1639


A Cidade do Sol, 1602

A Cidade do Sol, do monge beneditino Campanella, foi publicada pela


primeira vez em italiano em 1602, depois apareceu em uma versão latina
(1613, 1623,1631) e pode ser considerada uma das primeiras publicações do
gênero ilustrado por Thomas More sob o nome de Utopia. Seu subtítulo é
“Diálogo sobre a República, no qual é demonstrado que a idéia de reforma da
República cristã está de acordo com a promessa feita por Deus a Santa
Catarina e a Santa Brigita”. Encontra-se nesse ponto, com efeito, uma projeção
da Cidade ideal, pois se trata de comunicar a imagem de uma “República
filosófica” de acordo com sua verdadeira essência, mais precisamente, adequa­
da à sua “idéia poética” (seguindo o manuscrito datado de 1643, editado em
Utrecht e conservado na Biblioteca Nacional, que foi utilizado por Alexandre
Zévaès para a edição francesa publicada pela Vrin em 1950 e à qual se
referirá aqui).

Um diálogo utópico

Essa obra se apresenta sob a forma de um diálogo entre “o grande mestre


dos hospitaleiros e o comandante de um navio genovês, seu hóspede”, a quem

210
ele narra sua viagem à ilha Toprobana (que pode ser identificada como a atual
ilha de Sri Lanka, antigo Ceilão). Segundo um procedimento freqüente, o país
de nenhum lugar (u-tópico) foi descoberto no decorrer de uma viagem. A
"Cidade do Sol" é descrita inicialmente pela sua geografia e sua topografia —
simbolicamente colocada sob o sinal do número sete: uma superfície de sete
milhas ao pé de uma colina, composta de “sete partes, sete zonas circulares
concêntricas”, comparadas aos sete planetas, o que dá uma impressão de
autonomia e de auto-suficiência que permite realizar, dentro de seus muros, o
sonho utópico, particularizada por um templo que une a religião à forma
política. Depois, vem a questão do "regime político” e da administração: ela é
governada por Hoh, o Metafísico, que “dispõe de maneira absoluta tanto do
poder temporal quanto do espiritual”, assistido por “três grandes chefes”,
“Poderio, Sabedoria e Amor” (Pon, Sin e Mor), respectivamente encarregados
das funções militar, das artes liberais e mecânicas, da pedagogia e da vigilância
de "tudo o que tem relação com a reprodução”. A regulamentação sexual
aparece aí como uma função mais central do que na Utopia de Thomas More.
Esses solarianos vivem, pois, sob a ditadura da virtude, sob o regime da
propriedade comum que previne todos os vícios do egoísmo e do amor-próprio.
Não existe nem mesmo funções de vestir e de alimentação que não sejam
regulamentadas e uniformizadas pelo médico, impondo as exigências da saúde.
Os magistrados têm por função prevenir todo conflito dentro desse universo
racionalmente regulado.
Em seguida vem o que parece ser o coração da utopia de Campanella: a
função pedagógica. O Chefe da Cidade é ao mesmo tempo o grande pedagogo.
Ora, essa função é exercida eletivamente pela seleção sexual, que tem por
motivação uma verdadeira santificação do ato de reprodução. É por esse
motivo que a Cidade do Sol tem preponderância sobre a sexualidade de seus
membros, pela limitação da idade na qual ela se torna possível (dezenove e
vinte anos para as mulheres e os homens, respectivamente) e uma verdadeira
“educação sexual”.
No plano econômico, os solarianos são guerreiros e agricultores, mas
nunca comerciantes. Dispõem de uma técnica avançada que lhes permite
navegar e até mesmo voar facilmente. A duração de vida de seus habitantes
atesta o valor da higiene física e moral que distinguem o modo de viver
solariano.
O coroamento dessa construção é a exposição da Metafísica, esse texto
que subentende o político e que se coloca no fim da obra como sua apoteose
(é verdade que antes da astrologia!), fundada sobre uma dualidade estrita do
Ser, identificado com Deus, e do Nada, simples ausência do ser, que se
distingue nitidamente da crença cristã na Santíssima Trindade: na falta de
Revelação - da qual se pergunta aqui se é carência ou ganho —os solarianos
professam uma metafísica do “poder, da ciência e do amor”, que permite dividir
os seres em “merecedores” e “não-merecedores”. Uma espécie de maniqueísmo
aflora nesse texto, que dá sua coloração naturalista ao “cristianismo” de
Campanella.

211
A revolução copernicana no político

Para compreender essa obra, não se pode ignorar a origem de Campanella


e sua posição, dramática, na realidade política. Entrou no convento dos Benedi­
tinos com a idade de quinze anos, teve uma formação tomista que não o impediu
de travar combate com as teorias de Aristóteles, sob a influência da fisolofia
naturalista de Telesio (1509-1588). Longe de ser uma tomada de posição abstrata
e desencarnada, a Utopia é uma criação que impôs época: a de Campanella
confirma isso, já que sua formalização de uma realidade institucional inteira­
mente nova é inconcebível sem uma revolução copernicana que ele aclama e faz
passar de certa forma para a ordem política (aliás ele conheceu Galileu em
Bolonha). Mas é também um homem que se encontra entre dois mundos, um
pouco como os solarianos que “admiram Copérnico”, mas “glorificam Ptolo-
meu”. No entanto, é essa época que viu a grande mutação do conhecimento
cósmico que impõe esse reajustamento da realidade humana exprimindo pela
Utopia: a “verdade” política deve de agora em diante girar em torno do saber da
Cidade, sobre o qual exerce o livre direito da reflexão utopista.
Não se poderia, sob esse ponto de vista, negligenciar o fato de que a
Utopia de Campanella se desenvolve à sombra de uma filosofia naturalista e
“sensualista” cujos primeiros escritos (notadamente a Philosophia sensibus
demonstrata, 1591), inspirados em Telésio, valeram a seu autor perseguições
do clero. Do “telesismo”, Campanella tirou um realisnio que alimenta para­
doxalmente seu “utopismo”: trata-se, à semelhança de seu mestre, de “deduzir
suas doutrinas da natureza das coisas e não de vãos discursos dos homens”
(dos quais a Escolástica ilustra a vacuidade). É exatamente da natureza real
(suposta) das coisas, da realidade humana, que Campanella pretende deduzir
a Cidade, que só pode ser chamada de “ideal” ao dar plenas medidas a esta
realidade —bem longe de substituir alguma “ficção”. A própria imaginação,
cujos direitos se vêem reconhecidos na Cidade, e que permite projetar essa
República em idéia, empresta sua legitimidade à força natural. Assim, é preciso
compreender que o narrador diz ignorar “a arte de argumentar”: ele apenas
conta e mostra.
Não se poderia mais ignorar que o autor da Cidade do Sol não é um homem
de escritório: é um conspirador que participou da revolta da Calábria contra a
dominação espanhola, o que lhe valeu a tortura e a prisão por um quarto de
século! A utopia aparece, nesse sentido, como fornecedora de uma mediação e
como substituto especulativo de um verdadeiro comprometimento político, cuja
motivação é a tomada do poder. A construção de Campanella pode, portanto, ser
sustentada pela esperança de que a Calábria libertada seria reedificada sobre os
planos da Cidade do Sol ou que esta tomaria corpo naquela...

O naturalismo político

Com efeito, A cidade do Sol só pode ser avaliada totalmente quando


referida ao conjunto enciclopédico do qual ela é, de certa forma, a conclusão,

212
a saber “a filosofia epilógica” (Realis philosophia epilogistica), obra que
Campanella não parou de elaborar, desde seus primeiros esboços, entre 1594
e 1601, até a edição completa que surgiu em Paris em 1637 como um
verdadeiro testamento intelectual: a “Política” aparece nele como a terceira
peça de um tríptico que contém a “Filosofia” e a “Ética” —A Cidade do Sol -
à que Campanella acrescenta a "Economia”.
Parece então que o mundo é estruturado como um organismo vivo, o que
permite elaborar uma antropologia fundada na sensibilidade - da “psicologia”
à ética. O caráter não normativo da ética só coloca melhor em relevo o fato de
que o imperativo conjugado de Deus e da Natureza é de ordem política: a
realização de uma Cidade ideal é, de certa forma, um dever imposto, ao mesmo
tempo, pela imitação do reino de Deus e pelas leis imanentes da natureza
humana.
É, sem dúvida, nesse sentido, que a sexualidade aparece como central:
ela parece fazer metáfora eletivamente a esse projeto de reprodução, que
abranda o ideal político sobre as opressões da realidade humana. Esse poder
da Cidade sobre os corpos orienta seu destino social, mas, em contrapartida, a
Cidade recebe sua própria energia: a Cidade do Sol, complementando sua
cabeça política, o Metafísico macho, se apóia sobre essa garantia da Natureza
que lhe oferece o “Conselho da Reprodução”, essa reunião das mães de família,
fiadoras da relação, cordão umbilical ligando a Cidade e a Natureza.

O U m e o utópico

Com efeito, a tentativa de reforma social de A Cidade do Sol parece se


apoiar sobre uma problemática de reprodução cristã da ordem social; é a
evolução de Campanella, depois dessa obra principal, que pode a confirmar.
Campanella utiliza os anos seguintes para construir uma metafísica e uma
teologia que possam servir de fermento para a reforma da catolicidade. Essa
consegue um elogio do papado, garantia da unicidade religiosa, que parece
contrastar com o naturalismo precedente. Realmente, é em nome desse
naturalismo cristão que o autor acaba por recusar, sob o nome de Ateísmo
vencido (1630, a primeira versão que data de 1605), o maquiavelismo e a
Reforma protestante. Tudo se passa como se o utopismo tivesse finalmente
necessidade desta referência a uma Autoridade única, como base da realiza­
ção messiânica do Bem Político (cf. o De Monarchia hispanica, 1640). Mas
é também por uma homenagem ao Estado centralizado moderno que é
concluído o itinerário do autor de A Cidade do Sol: é, na verdade, ao
predecessor do Rei-Sol que ele dedica sua epístola Ludovico husto GIII, regi
christianissimo, ad christianae rei patrocinium (1636). Não, será simbólico
o fato de que a Utopia campaneliana se abra sobre dupla perspectiva: de um
lado, a descoberta de uma possibilidade radicalmente nova de reinstitu-
cionalização do corpo social; de outro lado, a referência a uma Soberania
política cujo absolutismo deve justamente garantir o acesso do corpo social
à sua racionalidade?

213
• La Cité du Soleil: F. Thomae Campanellae civitas solis poética ideal republicae philoso-
phicae, Ultraiecti, anno MDCXLIII; nova edição por Alexandre Zévaès, J. Vrin, 1950; cf.também
a ed. Villegardelle, Paris, 1840

► Paolo Treves, La Filosofia política di Tommaso Campanella, Bari, 1930; Michele


Baldacchini, Vita di Tommaso Campanella, Napoli, 1847; L. Blanchet, Campanella, F. Alcan,
1920; Dareste de la Chavanne, Morus et Campanella, ou Essai sur les utopies conlempo-
raines de la fíenaissance et de la Reforme, Paris, 1843; J. Kvacala, Thomas Campanella,
ein Reformer der ausgehenden Renaissance, 1909; Uder die Genese der Schriften Thom.
Campanellas, 1911.

Paul-Laurent ASSOUN.

CAMUS, Albert —1913-1960


O homem revoltado, 1951

Emergindo no corpus duma obra de romancista e dramaturgo, esse


ensaio não é a única expressão do pensamento político de Camus, pois ele
também será encontrado em seus artigos publicados em Combat (reunidos
nos três volumes de Actuelles) ou nos do L ’Express, editados em 1987. Ele
transparece em Calígula, afirma-se em Les justes, onde se opõe à falta de
objetividade da ideologia revolucionária, e em L'état de siège (O estado -de
-sítio) onde ataca o totalitarismo. A reflexão de Camus sobre o homem
situa-se sempre no quadro da cidadania. No entanto, L ’homme révolté (O
homem revoltado) foi acolhido como um acontecimento insólito dentro da
obra de um escritor que, dessa vez, não se referia ao universo político no
âmbito de sua criação literária, mas lhe consagrava uma obra exclusiva. Sua
repercussão e o furor com que foi julgada por Sartre e seus amigos fizeram
dela o assunto de debate que dividiu a intelligentsia francesa. De fato, a
denúncia por Camus das tiranias contemporâneas e das camuflagens demo­
cráticas sob as quais elas se tentam dissimular antecipava-se a um movimen­
to de filosofia política que, vinte e cinco anos mais tarde, pretendeu dar o
golpe de misericórdia nos “mestres pensadores”*, responsáveis pela humi­
lhação do homem.

1. O inventário da revolta

“O que é o homem revoltado? E um homem que diz não.” Só o homem

* André Glucksmann, Les Maltres Penseurs, Graset, 1977

214
pode dispor dessa faculdade de recusa. Em contrapartida, no âmago da
negação, afirma-se uma reivindicação: a da mudança social. O revoltado não se
insurge somente contra o que possa sofrer, mas também contra o que veja ser
feito aos outros. Camus põe em foco a revolta metafísica e a revolta histórica.
“O escravo protesta contra a condição que lhe é imposta no interior de seu
estado; o revoltado metafísico protesta contra a condição que lhe é imposta
enquanto homem.” Segundo Camus, a revolta metafísica aparece de maneira
constante desde o século XVIII, embora se possa fazê-ía remontar a Prometeu.
Ele tenta demonstrá-lo com três ilustrações: a da negação absoluta de Sade e
dos dândis, a da recusa da salvação com Ivan Karamazov e a da afirmação
absoluta com Nietzsche.
"O sucesso de Sade, em nossa época, explica-se por um sonho que é
comum a ele e à sensibilidade contemporânea: a reivindicação da liberdade
total e a desumanização operada a frio pela inteligência.” Com Dostoievski, a
revolta dá um passo à frente, Ivan Karamazov vai tomar partido dos homens
contra Deus. O homem é para sempre inocente, Deus é para sempre culpado.
Em Nietzsche, o "pode-se viver revoltado?” tornou-se “pode-se viver sem
acreditar em nada?”. Anunciando a morte de Deus, ele se exalta diante da
liberdade assim restituída ao homem. Mas vê-se imediatamente aterrorizado
com o vazio no qual esse acontecimento mergulhou o mundo. Daí em diante
o mar está livre. Pode-se erguer a mais alta vela, mas para onde ir, se não existe
mais o Norte? Dostoievski já observara "Se Deus está morto, tudo é permitido”.
Privado de toda finalidade, o mundo marcha a esmo. A ausência de lei não é
liberdade. A servidão pode nascer também dos caos. Desde então a morte do
homem seguirá a morte de Deus.
Nietzsche recusa esse apocalipse. O desaparecimento de Deus força o
homem ao dever de se superar e, para chegar a isso, a criar seus próprios
valores. Camus se insurge contra a tentativa de captura de Nietzsche pelos
nazistas e pelas deformações que estes infligiram a seu pensamento, es­
pecialmente ao tema da vontade de poder que, nele, significa não uma vontade
de dominação e de humilhação, mas sim de criação.
Na realidade, os niilismos em nome da liberdade desembocam na revolta
histórica, a qual tem como primeiro efeito estabelecer a servidão. A revolta se
instala dentro da revolução e se faz opressiva.

2. A degradação revolucionária

O homem revoltado apresenta-se como a história do orgulho humano.


Ele levou os homens a empreenderem uma luta libertadora, contra a Igreja e
a Inquisição e depois contra o próprio Deus. Ora, hoje em dia, eles são presa
de ídolos sanguinários, sacramentados por ideologias inspiradas por políticas
impiedosas. Em sua denúncia da função ideológica, Camus vê um narcótico
deixando o espírito inerte. As ideologias substituem a religião pelo mito, que
dela herdou o sagrado. Destruindo toda transcendência, incluindo a da justiça,
elas são religiões laterais de nosso tempo. Na realidade, as mais ativas entre

215
elas entendem-se a si mesmas como princípio transcendental. Mesmo quando
apregoam a morte de Deus, não é para reconhecer a viuvez do mundo: uma
nova divindade foi erigida: a História.
Seus julgamentos são tão impiedosos como é simples sua lei: ela coroa o
vencedor e recusa todo recurso ao vencido, cuja derrota demonstra que ele
não estava mais dentro do sentido da História. Pelo desvio do dogma, ela
desemboca no empirismo maquiavélico: o fim justifica os meios, “a aristocracia
do sucesso substitui a aristocracia do sacrifício”. Três personagens encarnam,
para Camus, o triunfo sem limite do poder: Franco, tirano à antiga, manejando
o sabre e o garrote; Hitler, cujo hegelianismo primário pretende conduzir ao
inteiro desenvolvimento da Volksgemeinschaf, finalmente, Stalin, que dispõe
de um aparelho ideológico mais elaborado.
Como Evelyne Pisier mostrou no Colóquio de Nanterre, em 1985, a
condenação de Marx por Camus é essencialmente moral. Se ele aceita a
pertinência de sua denúncia da miséria, ele recusa um messianismo científico,
aliás de origem burguesa. Ora, o agnosticismo de Camus não se limita ao
campo religioso, ele se opõe também a toda fé política.
Antes de ser um precursor, Marx é um herdeiro. Camus reúne-se nesse
respeito a Arnold Toynbee, para quem o marxismo é uma heresia cristã,
profetizando a vinda a longo prazo de um paraíso terrestre. Por que a economia
estaria em marcha em direção a uma sociedade sem classe? Ele aprova Berdiaeff
para quem é impossível conciliar dialética e materialismo. Finalmente, para o
mediterrâneo Camus, amanhã não será necessariamente melhor. Camus professa
uma moral da felicidade. Ela apareceu desde Noces na inocência da juventude,
de uma felicidade humilde talvez, mas imediatamente perceptível, que se prende
a sua visão da justiça. O homem revoltado faz eco ao protesto de Kalayef em Os
Justos (Les justes): "Mas eu amo aqueles que vivem hoje em dia sobre a mesma
terra que eu, e é a eles que saúdo, é para eles que luto e que consinto em morrer.
E para uma cidade longínqua, sobre a qual não tenho certeza, não iria aumentar
a injustiça existente com uma justiça morta.”
Nada justifica a instauração de uma teocracia totalitária. Não será jamais
possível convencer seus servidores, pois não se persuade os representantes de
uma ideologia, isto é, de uma abstração fornecedora de uma certeza a baixo
custo. Sob seu domínio o homem nada mais é do que a matéria bruta da
História. O assassinato é ao mesmo tempo generalizado e legitimado. Assassi­
nam-se os seus, os outros, promovem-se ao acaso guerras ideológicas, internas
ou internacionais, todas expressões de um processo revolucionário em escala
planetária. “E, quando sobre a Terra enfim submissa e purgada de adversários,
a última iniqüidade tiver sido afogada no sangue dos justos e dos injustos,
então o Estado, tendo chegado ao limite de todos os poderes, ídolo monstruoso
cobrindo o mundo inteiro, será reabsorvido sensatamente dentro da Cidade
silenciosa da justiça.”
Camus tem horror à violência confortável, seria preciso "que o apelo ao
assassinato fosse feito por aqueles que têm o fuzil da execução... um mundo
onde o assassinato fosse legitimado, onde a vida humana fosse considerada

216
fútil, eis o primeiro problema político da atualidade. É próprio da máquina
totalitária criar o sentimento de culpa nas vítimas.
A recusa da revolução e a renúncia a fazer História valeram a Camus os
sarcasmos de Sartre e de seus amigos, ironizando sobre a aposentadoria de
Sísifo, instalado no conforto da República das belas almas. Sua resposta é
dupla: certamente a salvação temporal só é concebível com a classe operária,
mas esta não deve ser confundida com um partido político. Aliás, a recusa de
legitimar um historicismo criminoso não é a rejeição pura e simples de
participação na História: “Nao se pode implicar à História todo o mal... há nela
potencialidades de ordem e de progresso... é verdade, assim como não podemos
escapar à História já que estamos mergulhados nela até o pescoço. Porém,
pode-se pretender lutar, dentro da História, para preservar essa parte do
homem que não lhe pertence.”
Contra o exagero da Revolução, é preciso conservar o espírito de revolta.

3. A salvação pela revolta

A revolta é uma atitude espiritual, ela é testemunha a favor da justiça. É


preciso entender por isso não um princípio vago e abstrato, mas um conjunto
de valores concretos. Ela exige uma atenção constante para com o sofrimento
dos outros, um alerta contínuo para com o acontecimento que a causou. Assim
o revoltado se separa do revolucionário. A criatividade responde ao niilismo,
pois a revolta desvia a revolução de seus extravios, revelando uma entrada. O
“tudo ou nada” dos revolucionários chega à negação total; a revolta salva o ser
do nada: "Em vez de matar ou morrer para produzir o ser que nós não somos,
temos de viver e de fazer viver para criar o ser que somos.” Ela convoca os
homens para comungar desta afirmação da existência: “Eu me revolto, portan­
to, existismos.” Ela se exprime dentro desse duplo testemunho a favor da
justiça, dentro da comunhão.
Ainda que Camus não utilize freqüentemente a expressão, a justiça é para
ele a observação dos direitos do homem. Eles lhe permitem dar um conteúdo
concreto a um valor abstrato. Diante da injúria feita ao homem, impõe-se uma
moral, a do grito: “Dá a esses amordaçados a força de teu grito.” Renunciar ao
grito é perder a inocência. E preciso romper o belo silêncio das consciências
mudas. Assim, foi sobre esse imperativo de pureza que Camus se opôs a Sartre.
Para Camus, ser puro é se dar um absoluto moral recusando todo perecimento
dentro da história de um sistema político dentro de um Estado totalitário. É
afirmar valores que ultrapassam o poder. Para Sartre, ser puro é aceitar a
História, mesmo que, às vezes, se possa sujar as mãos nela. Este é exatamente
o núcleo do debate: religar a revolução com o universo lateral da imanência
ou insurgir-se contra a iniqüidade, em nome de um valor superior. Para dizer
a verdade, Camus é um espiritualista ateu para quem o espírito eleva o homem
acima da História. Essa necessidade de transcendência o desqualifica aos olhos
de Sartre, materialista ateu, que vê aí uma necessidade de Deus. No entanto,
a pureza de Camus não é confortável. Denunciar o escândalo é ação. A recusa

217
de resignação é virtude de Sísifo, calar-se é a perda da pureza. Ora, a inocência
perdida revela ao homem a convicção de seu exílio: “Sempre somos um pouco
culpados do mal dos outros... O homem não é inteiramente culpado, pois ele
não começou a História, nem totalmente inocente, entretanto, já que ele a
continua.” Viver em revolta é preservar em si, se não a inocência, para sempre
perdida, pelo menos a nostalgia da inocência. Ela suscita o sobressalto
profético, o do testemunho que afirma a verdade do homem dentro do presente
e não o do visionário, que promete um devir salvador.
Dentro desse combate em favor do homem real, ele celebra o sindicalismo
ao qual atribui as conquistas operárias. A revolta impõe a luta pelo homem
comum. Seu pendor o leva em direção ao aventureiro do quotidiano. Mas ele
não está solitário. Ele se que solidário.
“O mundo onde eu vivo me repugna, mas eu me sinto solidário com os
homens que nele sofrem.” É preciso portanto aceitar os outros, o que supõe a
rejeição do absolutismo de seu próprio orgulho, para se reencontrar com
outros e para uma comunhão ativa a serviço de valores comuns: a fraternidade
e a liberdade.
Comungar em fraternidade responde a seu gosto pelo grupo restrito, a
equipe sindical ou esportiva, a companhia de comediantes. A fraternidade é
feita com o diálogo e a modéstia. Os limites de nossa condição de homem só
nos concedem sucessos relativos. Daí a fidelidade ao homem pressupor a
concordância com a aproximação e a fragilidade das vitórias. Nada é definitivo;
a nova constituição não tem a garantia de ser continuadamente melhor do que
a precedente. É também a lição de La Peste (A peste) que, um dia, acordará
seus ratos para levá-los a morrer dentro de uma Cidade feliz. Daí, a própria
democracia não poderia ser um absoluto.. O Estado deve proteger mais do que
querer governar. A atração pelo pensamento anarquista jamais o deixou. Mais
libertário do que liberal, tocado pelo fermento anarquista do sindicalismo
revolucionário, seduzido pelo pequeno grupo que se situa na extremidade
oposta do centralismo burocrático que reina sobre massas anônimas. Como
Proudhon, ele observa que todas as revoluções conseguiram aumentar o poder
do Estado. Dentro do grupo restrito, o homem pode reconciliar-se com a
História, deixar o exílio, reintegrar-se no Reino. E o repatriamento, o retorno
a uma ordem onde se poderá reencontrar, segundo uma regra que foi dada em
conjunto a todos os homens. Estranha aparição da sabedoria no seio da
revolta. Dentro do excesso do Estado moderno, resultante das revoluções
messiânicas e das ideologias sacralizadas e imitado pelos Estados liberais, mas
supercentralizados, Camus denuncia “a embriaguez da alma”. Não que o
Mediterrâneo não conheça mais a violência, mas seu pensamento não cessou
de se insurgir contra ela, de negar sua legitimação. Sua mensagem é a da
pensamento solar, o “pensamento do meio-dia” que coloca a primazia do
homem. Ele se opõe ao “pensamento de meia-noite” que ensina o primado da
massa. A Europa, segundo Camus, sempre esteve nessa luta entre meio-dia e
meia-noite. “Dentro da miséria comum, a velha exigência renasce, a natureza,
de novo, se ergue diante da história. É claro que não se trata de desprezar nada

218
nem de exaltar uma civilização contra outra, mas sim de dizer simplesmente
que esse é um pensamento sem o qual o mundo atual não se poderá
desenvolver por muito tempo... Mas a juventude do mundo encontra-se sempre
em torno das mesmas margens.”
O homem revoltado se acrescenta às afirmações do individualismo
político, sobretudo por seu timbre patético. Por um pessimismo ao qual Camus
se recusa a se resignar. Enquanto o pensamento liberal ou libertário inscreves­
se dentro de um movimento linear do progresso humano, herdado do Século
das Luzes, o que anima 0 homem revoltado não se situa quer a favor, quer
contra a corrente de uma ascensão prometida aos homens. À regressão que
sempre reaparece, a revolta opõe um desafio sempre renovado.

• Uhomme révolté, ed. Gallimard, 1951.

► O debate suscitado pelo aparecimento de L 'homme révolté teve seu ápice no corpo da revista
Les Temps Modernes. A crítica de Francis Jeanson encontra-se no número de maio de 1952; a
resposta de Camus, os novos artigos de Sartre e de Jeanson foram publicados no número de
agosto do mesmo ano.
Sobre o pensamento político de Camus, cf. Le procès d'une époque: essai sur Ia pensée
politique d ’Albert Camus, tese sustentada na Faculdade de Direito de Aix-en-Provence em 1966
por Marc Codaccioni, e Camus et la politique, Atas da Conferência de Nanterre, 1985, sob a
direção de Jeanyves Cuérin, Ed. L’Harmattan, 1986.

René-Jean DUPUY

CHATEAUBRIAND, François-René de - 1768-1848


A monarquia segundo a Constituição, 1816

Nenhum dos textos de Chateaubriand aos quais se encontra ligado o


qualificativo de “político” aparece sem ser visto primeiro como um escrito de
circunstância, inseparável do contexto histórico mais imediato no qual foi
redigido.
Publicada em 1816, La Monarchie selon la Charte (A Monarquia
segundo a Constituição) não escapa a essa regra. No segundo ano da Res­
tauração, Chateaubriand, oponente decidido ao regime napoleônioco desde o
assassinato do duque d’Enghien, autor em 1814 de um libelo de combate —De
Bonaparte aos Bourbons - cuja influência sobre a opinião pública não parece
ter sido negligenciada, conta entre as personalidades mais importantes daquilo
que ficou convencionado chamar-se o “partido” ultra-realista. Ele acabara de
ser nomeado Par da França, enquanto as primeiras eleições da Restauração
levaram à Câmara dos Deputados uma imponente maioria que reivindicava
para si a mesma corrente de pensamento. A estranheza das circunstâncias quis,

219
no entanto, que essa Câmara, dita “não-encontrável”, se encontrasse em
oposição direta ao poder real ao qual ela censura, ao mesmo tempo, o fato de
conservar o essencial do sistema administrativo herdado do regime precedente
e o de testemunhar uma indulgência excessiva com respeito ao antigo pessoal
político saído da Revolução e do Império... Chateaubriand retomando e
desenvolvendo essas queixas, La Monarchie selon la Charte aparece assim
como a expresão de uma dupla tomada de posição, simultaneamente liberal e
contra-revolucionária. A obra reclama a ampliação dos poderes do parlamento,
chegando até a reivindicar - em nome da própria lógica da Constituição de
1 8 1 4 -0 princípio da responsabilidade governamental diante da representação
nacional. Mas ele se apresenta, ao mesmo tempo, como uma denúncia violenta
da frouxidão do regime com relação às grandes forças tradicionais (e principal­
mente a velha nobreza) sobre as quais se deveria apoiar. “As coisas políticas
da Revolução, e não os homens da Revolução, escreve Chateaubriand, eis todo
meu sistema.”
Paradoxalmente esses são os princípios do parlamentarismo que são
evocados contra a autoridade real, mas em nome mesmo de uma fidelidade
monárquica altamente proclamada... Evidentemente, a segunda intenção
tática da obra não deve, no entanto, conduzir a uma interpretação por
demais restritiva de seu conteúdo. Em sua aparente contradição, parece
realmente que são estas as duas palavras de ordem essenciais da Monarchie
selon la Charte - a defesa da Liberdade e a da Legitimidade - que
constituem os dados fundamentais sobre os quais a política de Chateau­
briand jamais deixou de se apoiar. Dois termos que, para o autor de Le Génie
du Christianisme, não poderiam em nenhum caso ser compreendidos como
antagonistas. Que ele vai, ao contrário, reunir e com uma total continuidade
na doutrina, para apresentá-los como estreitamente solidários e organica­
mente complementares.
Em favor da aceitação das “coisas da Revolução”, duas categorias de
argumentos são evocadas incansavelmente. Uma depende do pragmatismo
mais elementar: toda marcha para trás, toda tentativa de restauração do
Antigo Regime aparecem como historicamente impossíveis. Chateaubriand
está perfeitamente consciente do caráter irredutível das subversões operadas
na sociedade francesa pela grande tormenta revolucionária; pretender lutar
contra “o espírito do século” seria fatalmente se expor “à confusão e depois
à tirania”... As considerações do realismo político, todavia, vêm se juntar as
exigências de um imperativo moral muito real e profundamente vivido: a
recusa do “despotismo” no próprio sentido que Montesquieu dava a esse
termo; o apego ao valor supremo da Liberdade, considerada não somente
como um direito político, mas como um “direito natural” ou, antes, diz
Chateaubriand, “como um direito divino". A liberdade, escreve ele, “emana
de Deus, que não impôs qualquer condição ao homem quando lhe deu a
palavra...”
A Liberdade continuaria, no entanto, um nome vão se não fosse
assegurada pela “presença de instituições fixas que nos servem de abrigo

220
contra as paixões e as fantasias dos homens”. Ora - afirma o autor, e esse é
o segundo termo do díptico —, dessas instituições fixas, apenas a monarquia
legítima é capaz de assegurar seu funcionamento. Em favor do princípio
monárquico não somente são evocados os poderes da tradição e da memória,
o enraizamento na história, “as lembranças da velha França, a religião, os
antigos hábitos, os costumes da família, os hábitos de nossa infância, o berço,
o túmulo. É em seu próprio princípio, na medida em que ela escapa aos jogos
dos partidos e da facções, em que ela encarna “o poder paternal regulado
pelas instituições, temperadas pelos costumes”, que a monarquia é apresen­
tada como a melhor garantia das liberdades públicas. “A realeza legítima
constitucional, escreve Chateaubriand, sempre me pareceu o caminho mais
suave e mais seguro em direção à inteira liberdade.” Vai daí, com efeito, que,
se esta monarquia só tem um sentido “legítimo”, isto é, fundado na história,
ela só pode ser também - para não renegar “o espírito do século”, para
responder às necessidades presentes de sua função —“constitucional”, isto
é, definida no quadro de um sistema de disposições escritas, modulado por
uma justa repartição dos poderes, concedendo um amplo lugar ao princípio
da representação nacional.
Chateaubriand acaba assim por ver a Constituição de 1814 como “a
forma política preferível a todas as outras porque ela faz, da melhor forma,
entrarem em vigor a ordem e a liberdade”. É “um tratado de paz assinado entre
os dois partidos que dividiram os franceses”. Ela assegura a reconciliação da
velha França com a nova, equilibra-as uma em relação à outra. Reforça o
princípio de legitimidade adaptando-o às aspirações presentes da comunidade
nacional. Permite o desenvolvimento dos princípios de liberdade colocando-os
sob a garantia da perenidade da história. “Todas as bases de uma liberdade
razoável aí estão expostas; e os princípios republicanos se encontram nela tão
bem combinados que contribuem para a força e para a grandeza da monarquia.
” Partir de novo do ano zero da Revolução Francesa, restabelecer o fio de uma
continuidade histórica partida, assentar as bases de uma ordem política e social
enfim estabilizada, levando em conta, ao mesmo tempo, a herança do passado
e as mutações do presente, no próprio momento em que foi publicada La
Monarchie selon la Charíe, o sonho foi então amplamente partilhado. Ele não
é diferente daquele de um Benjamim Constant, de um Guizot ou de um
Royer-Collard. E a fidelidade com a qual ele foi perseguido que dá, entretanto,
à política de Chateaubriand uma unicidade e uma continuidade que lhe foram
muitas vezes contestadas.
Além das perspectivas amplamente traçadas de uma vasta visão histórica,
sem dúvida o homem nunca está ausente. É sem dificuldade que se encontra,
no plano anterior de cada um de seus escritos políticos (e principalmente
depois da grande derrocada de 1830), seu gosto essencial pelos valores de
recusa, sua vocação de exilado do interior, sua vontade altiva de solidão, - uma
certa maneira também de cultivar o menosprezo, a familiaridade das ruínas e
o fim fatal de toda grandeza e de toda beleza. Niilismo fundamental que o
conduziu, pouco a pouco, nos anos do regime de julho, em direção a um

221
profetismo cada vez mais sombrio. As velhas monarquias estão irredutivel-
mente condenadas a perecer: "As nações caminham para seu destino... Tudo
ontribui para a queda dos tronos... Deus entregou os cetros a pobres-diabos de
reis chamados novamente dos Invalides, a garotos banidos ou abandonados,
a garotas de cueiros ou na alvorada de suas núpcias...” Mas, com as velhas
dinastias históricas, é o próprio princípio de liberdade que está arriscado a ser
defmitivamente engolido. As nações européias caminham em direção ao
nivelamento no despotismo - despotismo de um homem ou das massas. Uma
multidão de “tiranos imundos” se prepara para tomar o lugar dos velhos
soberanos decaídos. Uma “sociedade-colméia” fará sua aparição, na qual todas
as diferenças serão abolidas, o indivíduo não será mais do que “ um átomo
dentro da matéria organizada”. Não estamos mais muito longe de Alexis de
Tocqueville e do “terror religioso” que lhe inspirou a caminhada irreversível
em direção à democracia. O historiador das idéias pode recusar esse pessimis­
mo; não pode nem contestar seu interesse nem se abster de se interrogar sobre
sua significação.

• Oeuvres complètes, Pourrat editora, 32 volumes.

► G. Dupuis, J. Georgel, J. Moreau, Politique de Chateaubriand, A. Colin, 1966, “Textes choisis


et presentés”.

Raoul G1RARDET.

CÍCERO, Marcus Tullius —106-43 a. C.


Da República, 55 a. C.

Esse tratado político maior, do orador e filósofo romano Cícero, pertence


à história das grandes obras políticas por um estranho destino: ignorado
durante toda a Idade Média e uma parte da modernidade —que só conhecia
dele, para dizer a verdade, a última parte, a parábola célebre do Sonho de
Cipião —, ressurgiu repentinamente em cena em sua quase-totalidade, a uns
vinte séculos de distância, quando, em 1819, um erudito italiano, Ângelo Mai,
pesquisador de autores inéditos, teve a idéia de copiar um palimpsesto na
Biblioteca do Vaticano: sob o texto aparente dos comentários dos Salmos de
Santo Agostinho, datado do sexto século, apareceu o texto do De Republica,
sem o qual um fragmento determinante de pensamento político autêntico teria
permanecido no esquecimento.

222
Uma obra no pós-golpe

0 mais notável é, aliás, a espécie de conspiração do silêncio, que parece


ter impressionado em sua origem o livro de Cícero: quase totalmente
ignorado pelos escritores do Império (com exceção da alusão parcelar de
Sêneca ou de Lampride na Vida de Alexandre Severo), inspirou, no entanto,
paradoxalmente, mais a literatura cristã, a ponto de suscitar, em Santo
Agostinho, a escritura de A Cidade de Deus, ou,em Lactâncio, a referência
à "lei natural” cíceroniana na denúncia das perseguições contra os cristãos.
Depois se produziu esse estranho efeito de metonímia, pelo qual uma parte
do tratado eclipsou de modo durável o conjunto: o Sonho de Cipiâo,
transcrito e comentado pelo grego Macróbio no começo do século Vi. O De
Republica, que não havia nem mesmo se aproveitado do retorno à Antigui­
dade da Renascença ou da pesquisa filosófica dos séculos XVII e XVIII,
estava, portanto destinado a ressurgir do nada no pós-golpe. Villemain
estabeleceu uma edição crítica, que durante muito tempo predominou
(citaremos o texto a partir dessa tradução).
Exemplar, nesse sentido do destino da obra política, de exercer seu efeito
teórico no pós-golpe, quando ela estava enraizada em um contexto histórico
muito determinado. A ponto de o autor do texto, redigido no fim da República
romana, despertar debates políticos bastante virulentos na Europa dos anos
depois de 1820; os princípios evocados por Cícero foram como que reativados
pela “valsa" dos regimes da época. Efeito típico de recorrência do próprio
texto político!

Reescrevendo Platão

É mesmo, de fato, fundamentalmente, uma reflexão sobre o regime


político enquanto tal, o que propõe o tratado de Cícero. O título indica sua
ambição: reescrever a República, de Platão, mas também “colocá-la em dia”. A
motivação estava no “Bem público”, mas, ao latinizar-se, a questão se es­
pecificou. E só comparar o encaminhamento geral das duas obras: onde Platão
partia da definição da justiça e da questão principal da relação da lei natural
com a convenção, antes de construir o plano do Estado justo, Cícero parece
abordar a questão por meio da “técnica” política, isto é, pela comparação das
formas de governo: é apenas em um segundo tempo que o problema da justiça
aparece, como que a caminho. Contraste surpreendente da “ordem das ra­
zões”: Platão vai do conceito para a realidade, Cícero vem para a especulação
- que culmina justamente na iluminação final de Cipião - a partir de um
modesto problema de escolha de regime.
Existe, portanto, uma referência a Platão: o fato de Cícero ter começado
um tratado Das leis depois de sua República atesta sua ambição de refazer o
caminho platônico, como que para se igualar ao fundador da filosofia política
grega. A racionalidade própria de Roma impôs, entretanto, mais um parentesco
com o projeto de Políbio (201-120 a. C.), que constitui, porém, uma verdadeira

223
ponte entre os pensamentos grego e romano. A questão dos regimes políticos
é abordada no quadro de uma investigação histórica, no sexto livro de
Histoires. A questão de Políbio sobre o Estado é, dentro de seu espírito, a de
Cícero: a forma do governo é vista como fator determinante de um Estado e,
além disso, de um povo. Porém, os regimes são concebidos menos como a
motivação para a escolha do Bem em si do que dentro de um quadro de um
ciclo de sucessão (anakyklósis), ao qual o próprio Estado romano está
submisso. Tudo se passa como se Cícero, nesse período determinante em que
se estimula a volta da República ao Império romano, desse aos personagens
de seu diálogo, ilustres representantes da grandeza romana —Cipião Emiliano,
Lélio, Filo e Manílio - , a tarefa de colocar de novo a questão de Políbio em
uma atmosfera intelectual que é a do neo-estoicismo de Panécio.

A estrutura da obra

É dentro dessa perspectiva que se pode compreender a estrutura da obra:


ela se organiza em seis livros que correspondem a três jornadas do diálogo,
dominado por Cipião que o interrompe freqüentemente com seus “oráculos”.
Seu desenvolvimento é claro: a primeira questão é a da forma política
adaptada ao Estado romano, a qual obtém como resposta a solução “mista”
de Políbio, ou seja, a combinação do que há de melhor nas três formas de
governo: monarquia, aristocracia e democracia (livro I). Mas a Constituição
“ideal” só retira seu verdadeiro valor de dentro da referência à própria
experiência do povo, cuja forma de governo deve ser a expressão apropriada
(livro II). É depois desse desvio "histórico” que Cícero encontra as questões
platônicas, como a do fundamento do governo que Lélio sustenta e à qual
Filo se opõe com argumentos, elaborados pelos Sofistas, da necessidade e
da força como fontes efetivas da lei (livro III). É isso que permite a Cícero
voltar ao Estado romano real, para esclarecer, à luz da análise precedente,
as questões específicas de sua organização (é nessa parte que o manuscrito
de Mal revela lacunas). O livro IV forneceu o coroamento metafísico da obra,
unindo a exigência do Bem Público à imortalidade da alma, como se a
política de Cícero se sustentasse, em última instância, sobre uma escatologia
do Bem, encarnada nas grandes figuras da Respublica.

A busca da coisa pública

Se se detalhar essa argumentação, perceber-se-á que seu ponto de


partida é uma justificação da prática da virtude política, apresentada como
digna do sensato: o exercício da “coisa pública” chega mesmo a ser exigido
para colocar a potência da sabedoria de acordo com o mundo. O modelo é
transportado para 129, para a comitiva de Cipião no tempo em que a virtude
republicana estava em seu apogeu. Portanto, são mais úteis “as ciências que
têm por efeito nos tornar úteis à república; pois é esse... o mais glorioso
benefício da sabedoria e o maior testemunho da virtude, assim como seu

224
maior dever” (tradução de Villemain, 1858, pág. 35). Ora, o objeto da “ciência
política” é a “coisa pública”, sabendo-se que o povo é “uma reunião consoli­
dada por um pacto de justiça e umâ comunidade de interesses” (op. cit., pág.
40), por um “espírito de associação” natural. O homem é, portanto, um
“animal político”. A questão é determinar que forma de “autoridade” é a mais
bem adaptada a essa função natural: quer ela seja "colocada nas mãos de um
só ou nas de algumas pessoas escolhidas pela multidão, pela universalidade”
(pág. 41). Cada uma dessas formas tendo “sua passagem escorregadia e
rápida em direção a um obstáculo vizinho”: o ideal de Cipião, inspirado em
Políbio, vai em direção a “uma quarta forma política” que “se forma pelo
balanço e pela mistura dos três primeiros” (pág. 45). Todavia, essa preferên­
cia por “um governo saído da mistura” das formas combina com uma
admiração da monarquia, por sua “simplicidade” e sua “unidade”. Sob esse
aspecto ocorre a articulação desse “modelo” com a tradição, pois se trata,
para Cipião, de “trazer para esse modelo” - transmitido pelos antepassados
- o que acaba de ser dito “sob a melhor forma de cidade", com “os olhos
fixos na República” (pág. 72). O modelo (no sentido platônico) encontra,
portanto, o modelo no sentido da tradição encarnada por Roma: é essa
confluência do universal e da coisa nacional que parece distinguir o modo
de pensar de Cícero.

O recurso à experiência

O que o segundo livro apresenta, a título de “esquema” entre os dois


níveis nada mais é do que a experiência. Ele se apresenta, nesse sentido,
como uma espécie de reescritura da história romana desde sua fundação até
a República. Aí se delineia o que seria tentado a chamar de o esboço de uma
política experimental, cujo objeto é “conhecer o andamento e o desvio dos
Estados, para saber em direção de qual obstáculo se inclina cada governo a
fim de retê-lo nessa tendência ou antecipadamente lhe opor barreiras” (pág.
122). Essa história é, no entanto e principalmente, subentendida por uma
mitologia histórica que tende a acreditar no papel diretor de Roma. É o
“gênio comum” de Roma que aparece como garantia histórica de acesso ao
verdadeiro Estado.
Mas nesse ponto acontece uma espécie de suspensão, no fim do livro II:
“Devemos olhar como nulo tudo o que foi dito até este momento da República
e... não devemos ir mais adiante se não ficar estabelecido que é falso pensar
que a coisa pública possa ser governada com o auxílio da injustiça, e que é o
contrário de toda verdade, que a coisa pública possa ser governada sem uma
justiça suprema” (pág. 152). Vê-se, portanto, despontar aí o "momento platôni­
co”, mas ele só se efetiva por sua posteridade e por seu efeito de ruptura em
relação ao “momento polibiano” da argumentação de Cícero: em outras
palavras, a Justiça é uma condição sine qua non, sem a qual toda demons­
tração empírica seria nula e não levada em conta. Mas vê-se a originalidade da
posição ciceroniana: a Justiça deve ser introduzida não contra a corrente da

225
ordem das razões, mas a favor dela, no pós-golpe do combate histórico, e não
de maneira fundadora e inaugurante.

A questão da justiça

Nada impede que não se possa dar um passo adiante sem discutir a
questão do fundamento do político à qual o livro 111 é consagrado: saber se
a Cidade repousa sobre a natureza ou sobre uma relação de forças conven­
cional. É nesta ocasião que se encontra definida pela boca de Cipião a lei da
natureza: ‘‘Existe uma lei verdadeira, a razão justa, de acordo com a
natureza, universal, imutável, eterna, cujas ordens convidam ao dever, cujas
proibições afastam do mal. Quer ela ordene, quer proíba, suas palavras não
são nem vãs junto aos bons, nem poderosas sobre os malvados. Essa lei não
poderia ser contrariada por outra, anulada parcialmente nem revogada por
inteiro... Ela não tem necessidade de uma nova interpretação ou de um novo
órgão. Não será uma em Roma, outra em Atenas; não será amanhã diferente
de hoje; mas, em todas as nações e em todas as épocas, essa lei reinará
sempre, única, eterna, imperecível; e o guia comum, o rei de todas as
criaturas, o próprio Deus fará o nascimento, a sanção e a publicidade dessa
lei, que o homem não pode desconhecer, sem fugir de si mesmo, sem renegar
sua natureza...” (III, 17, págs. 184-185). Esta passagem, cuja tintura estóica
não escapará, merece ser citada, pois fornece a definição do direito natural
que passará, como um fio condutor, por toda a tradição política, a ponto de
ser citada - como faz Santo Agostinho - ou pelo menos evocada. Ela permite
julgar principalmente o peso da concepção de Cícero sobre a teoria moderna
do direito natural, em primeiro lugar em Grotius, cujo tratado De la paix et
de la guerre (Da paz e da guerra) se inicia sob a égide ciceroniana. É
verdade que dentro dessa perspectiva moderna o direito natural encontrou
sua referência no próprio sujeito, portador de direitos, em uma espécie de
"Cogito político”, enquanto, para Cícero, ela exprime a dependência do
homem da lei natural, dentro da tradição do Pórtico. Face a esse hino à
natureza, em todo caso, os argumentos de Filo, renovados por Carnéade,
pesam pouco: quando muito lembram a função propriamente humana da “lei
da natureza”. Tanto mais que essa lei, se desequilibra de alguma maneira a
instituição humana, não tem sentido fora dessa mesma instituição: a Res
publica, ao mesmo tempo que se baseia sobre a lei da natureza, só pode ser
considerada “justa” quando informar a “razão justa” universal de uma
instituição de acordo com o espírito da época e do povo.

O mito político

Também os livros IV e V retornam aos costumes e à educação da


República primitiva, para dar à reflexão teórica precedente seu alcance de
alguma forma militante: função retórica no sentido estrito, que erige em ideal
o retorno ao espírito - histórico —mitológico da República primitiva. É essa

226
última junção do mito com a realidade da Res publica (coisa pública) que
Cícero torna emblemática, por assim dizer, pelo procedimento da narração do
Sonho de Cipião.
0 valor literário do procedimento não deve fazer esquecer sua função
política: no suposto Sonho, pode significar uma verdade, ainda que perma­
neça suspensa a questão da veracidade. 0 Sonho tem o valor de parábola,
mas também de acontecimento por onde alguma coisa é comunicada imedia­
tamente a um indivíduo. Ora, aquilo do que Cipião Emiliano, narrador e
sonhador, recebe a mensagem é justamente dessa República originária, pela
voz de Cipião o Africano, encarnação da própria virtude política. Por aí a
narração do próprio Cícero legitima a continuidade de um discurso que ele
retoma por sua própria conta: a obra política atesta assim sua função de
transcrição do mito para a crença (ideológica) e de sua prática corres­
pondente.
A função do Sonho é designar o destino político como um dever
implacável, situando-o na ordem cósmica. A evocação suntuosa do Universo -
que dá ao Sonho sua dimensão poética - tem por função filosófica inserir a
República política em uma espécie de República cósmica, "corrente universal”,
permitindo projetar uma comunidade augusta dos grandes espíritos que
mereceram a pátria. Do “movimento eterno” encontra-se assim deduzida a
imortalidade da alma, e desta a idéia de uma espécie de intangibilidade da
“posteridade” que assegura à Res publica sua eternidade.
Longe de ser uma simples conclusão retórica ou uma efusão formal, essa
última narração designa a mótivação da reflexão ciceroniana: enquanto a
República platônica estava inscrita na physis, a “ciência política” participante
do saber da Idéia, a Res publica de Cícero erige o próprio político como reflexo
da ordem cósmica no homem: a política torna-se assim a tarefa pela qual o
homem exerce sua função de participação no Cosmos. O programa estóico
passa por assim dizer do ético ao político, pela mediação da idéia romana do
imperium, conjugando direito e poder.

A motivação da obra

É essa problemática que prolongará o tratado inacabado Des Lois (Das


leis), investigando nas leis das Doze Tábuas, base da República romana, os
princípios da constituição, em uma espécie de teologia política.
O De Republica traça efetivamente uma espécie de linha de demarcação
na obra de Cícero, assim como em seu pensamento político. Essa obra tem
valor de testamento político, conclusão do curso de um quarto de século,
começado em 76 e coroado pelo consulado de 63: em 51, quando ele acaba a
obra, é procônsul da Cilícia e está empenhado na crise de confronto dos
triunviratos, que lhe custará a vida. Mas, principalmente, são, de alguma
maneira, os elementos do pensamento político greco-romano que Cícero reúne
antes dos grandes distúrbios introduzidos pelo Império e pelo Cristianismo: a
obra exprime sua síntese.

227
Síntese, porém, ambígua: canto do cisne de um certo "paradigma” da
especulação política, ela contém também uma espécie de “pragmática” que
indica uma abertura no modelo “ontológico” do político. Essa passagem da
obra a exprime de um modo maravilhoso: "Há na constituição dos Estados um
belíssimo encadeamento, assim como retornos periódicos de mudanças e de
vicissitudes. Compete ao sábio conhecê-los; mas, calcular sua aproximação e
juntar a essa previsão a habilidade que modela o curso dos acontecimentos e
os tem nas mãos, é obra do grande cidadão e, diria mais, do homem inspirado”
(I, 29, pág. 45). Nesse ponto atravessa-a, efetivamente, uma concepção da
logística política, da qual Maquiavel recobrará certos acentos e que faz do De
Republica muito mais do que uma obra de circunstância: bem colocada em sua
época, a obra exprime também uma apreensão do processo político a qual a
modernidade dá todo seu sentido retrospectivo.

• La République, traduzido do texto descoberto por M. Mal, discurso preliminar e suplementos


históricos por M. Villemain, Didier & Cia., 1858 (nossa edição de referência).

► F. R. Cowell, Cícero and the roman Republic, Londres, 1948; M. Paillane, Cicéron et les
sources du Drolt, Paris, 1946; C. Thiaucourt, Essal sur les traités phílosophiques de Cicéron,
Paris, 1885; Th. Mommsen, Hisloire romaine, t IV-V, Paris, 1863,1874.

Paul-Laurent ASSOUN.

CLASTRES, Pierre -1934-1977


A sociedade contra o Estado, 1974

“Tenho dificuldades em conceber como, em um século em que se


vangloriam belos conhecimentos, não se encontram dois homens unidos, ricos,
um em dinheiro e outro em talento (...) que sacrifiquem, um, vinte mil escudos
de seus bens, e o outro, dez anos de sua vida, a uma célebre viagem ao redor
do mundo, para estudar não pedras e plantas, como sempre, mas, dessa vez,
os homens e os costumes, e que, após tantos séculos empregados em medir e
considerar a casa, se lembrem enfim de querer conhecer seus habitantes.” (J.
J. Rousseau, Discours sur Vorigine de 1’inegalité).
A obra de Pierre Clastres é uma viagem, começada nos livros, prossegui­
da pelos caminhos e cedo demais interrompida. A sociedade contra o Estado
reúne algumas das mais ricas etapas dessa viagem.
Filosofar consiste em se maravilhar, dizia Sócrates a Teéteto, e a primeira

228
admiração de Clastres foi descobrir, em velhas narrativas esquecidas, uma
descrição do mundo “selvagem” que não correspondia em nada àquilo que o
conhecimento etnológico afirmava. A primeira viagem se efetuou na superfície
do discurso sobre as sociedades primitivas, antes mesmo de ir conhecê-las.
Viagem intelectual em que interrogava simplesmente a teoria etnológica,
citando-a pelo esforço de pensar o que ela realmente dizia. Esta realmente
hesitava, sem cessar, para caracterizar seu objeto, particularmente do ponto
de vista político, entre dua figuras contraditórias, a do excesso ou a da falta.
Definida de modo geral como sociedade sem poder, a sociedade primitiva
podia, em alguns casos, tornar-se o arquétipo da tirania, o símbolo do des­
potismo absoluto. Essa contradição não podia resistir a uma leitura atenta e
às narrativas dos inventores da América e ao conjunto das observações dos
etnólogos. Em sua Philosophie de Ia chefferie indienne (Clastres, 1974,
capítulo 2), escrita antes mesmo de sua primeira estada na Amazônia, Clastres
colocou as condições de um pensamento da sociedade primitiva e as hipóteses
que passaria o resto de sua vida tentando verificar.
Pensar sobre a sociedade primitiva, afirma o autor, necessita antes de
tudo levá-la a sério, isto é, romper com essa concepção espontânea que a
prende sob as categorias de falta, de ausência. Ausência de história, de
escrita, de economia, de política, o mundo selvagem é descrito e compreen­
dido como uma parada na infância da humanidade. E, para romper com essa
visão, é preciso nada menos do que uma revolução, a que faz com que o
olhar, ao pousar sobre o outro pare de ver a si mesmo. Parar de dimensionar
a sociedade primitiva pela bitola do Ocidente moderno impõe assumir, de
outra maneira diferente do encantamento, a ruptura com o etnocentrismo.
Precisamos entender que nesse processo Clastres não foi profeta. Claude
Levi-Strauss escrevia desde 1952 que “Na verdade não existem povos
infantis; todos são adultos, mesmo aqueles que não tiveram anotações de sua
infância e de sua adolescência” (Lévi-Strauss, 1973, pág. 391). Mas ele
tentou, como nenhum outro, pensar, até seu fim, sobre esse princípio. Para
assumir essa transformação teórica necessária, Clastres teve que lutar sem
parar contra o redutivismo dominante na antropologia sob duas formas, uma
vulgar, a seus olhos, e outra infinitamente mais sutil. Redutivismo vulgar é
o do evolucionismo cuja antropologia marxista dá uma versão moderna à
pretensão científica. Quando a prioridade do econômico reduz o político a
ser apenas o reflexo da infra-estrutura e a própria economia primitiva à de
“subsistência”, quando aliás, a história tem sentido e um fim, é impossível
conceber a sociedade primitiva como tendo uma existência, quer dizer, como
sociedade real. A crítica de Clastres do estruturalismo é mais discreta. Ele
pede muita coisa emprestada a Claude Lévi-Strauss, a começar pela técnica
de interpretação dos mitos da qual ele dá um exemplo soberbo em Le grand
parler. O limite do estruturalismo reside, de fato, em sua incapacidade em
analisar uma vez mais a sociedade como tal: “O que há de errado com o
estruturalismo, diz Clastres, é ele ser como uma teologia sem deus: é uma
sociologia sem sociedade” (Clastres, 1980, pág. 160).

22 9
0 projeto de Clastres é totalmente colocado a partir dessa dupla cons­
tatação: compreender a sociedade primitiva necessita, de, contra o redutivismo,
uma revisão do método, uma crítica explícita ou implícita do modelo da
etnologia. Ao mesmo tempo, é uma ética real do trabalho antropológico que é
requerida. Clastres exprime essa segunda exigência com doçura e nostalgia,
nas últimas linhas de sua belíssima narrativa da estada junto aos índios
Guayaki: "Testemunhar para uma fidelidade exemplar um saber muito antigo,
que, em um minuto, a violência selvagem do nosso dissipou” (Clastres, 1972,
pág. 350). Quanto ao modelo propriamente dito que ele construiu, atém-se a
algumas proposições articuladas em um processo simples: tentar apreender a
sociedade primitiva em sua positividade.
Primeiro elemento: o que é exatamente essa economia que se descreve
como sendo “de subsistência”, compreendida como apenas capaz de assegu­
rar uma vida de miséria? Clastres se apoia, nesse caso, além de sobre suas
próprias medidas da atividade dos índios com quem ele viveu (medida de
volume, de produção, de consumo, de troca e também do tempo gasto nessa
atividade), também sobre os trabalhos de Lizot ou Marshall Sahlins que
colocam em questão os pressupostos da noção de economia de subsistência:
valor central do trabalho, identificação da esfera econômica à produção de
um excedente. O primeiro junto aos Yanomamis (Amazônia) (Lizot, 1978), o
segundo junto aos Melonesianos (Sahlins, 1976), ambos colocam em evidên­
cia uma prática já dominada da economia: longe de serem "preguiçosos” e
miseráveis, os selvagens produzem o que é necessário à manutenção do
grupo, a um mínimo de troca em suas relações exteriores e se abstêm de
reter um excedente. Mais ainda, como des.taca Clastres (1974, pág. 167), o
excedente que poderia aparecer é sistematicamente destruído, consumido
em festas ou simplesmente queimado a contrário de toda “racionalidade” do
homo oeconomicus ocidental. Essa constatação produz ao menos três lições.
A primeira diz respeito ao estilo de vida dos índios: longe de serem
preguiçosos eles escolhem consagrar seu tempo a outras atividades em vez
de produzir; a dormir ou cantar, a suas festas ou a seus amores e a suas
guerras. A segunda lição é mais pesada, impõe a revisão das certezas
consolidadas concernentes ao sentido de algumas revoluções.Em um esque­
ma em que a história tem um sentido único, a revolução neolítica concordou
ter trazido para os homens, com a agricultura, a sedentarização, primeira
aceleração da história humana da qual a revolução industrial seria a segun­
da. Ora, diz Clastres (1974, pág. 171), isso não ocorreu em todos os lugares
assim e “a ausência de agricultura é compatível com a sedentariedade”. Lição
cruel para todo o historicismo, essa análise se desdobra em um ques­
tionamento profundo da própria natureza das sociedades primitivas. Uma
constatação se impõe realmente: o econômico não funciona aí como esfera
separada, autônoma, e isso por uma razão muito simples: não há falta de
economia, mas recusa dela, entendida como produção de um excedente.
Assiste-se aqui a uma primeira transformação da figura da ausência naquela
da recusa, para caracterizar a sociedade primitiva. A interpretação dessa

230
recusa é significativa do ser social das sociedades em questão: privando-se
de retirar um excedente econômico, os índios se protegem contra sua
conseqüência: a apropriação desse excedente por um pequeno número em
detrimento do resto do grupo, o açambarcamento do produto do trabalho
por um ou por alguns que execeriam, então, uma dominação sobre o
conjunto do corpo social. Sociedade de lazer e de abundância e não de
miséria, a sociedade indígena é marcada por uma recusa da divisão social
que implicaria a alienação do trabalho de cada um à satisfação das necessi­
dades dos outros. Realmente, diz Clastres, quando a troca e a reciprocidade
são substituídas pela dívida, aparece um poder novo de coagir, uma possibi­
lidade de coerção antes estranha à sociedade selvagem. A lição esclarece,
portanto, sobre a questão do poder: dessa maneira não haveria nenhuma
forma de poder, seria ainda uma forma de privação da sociedade primitiva,
“sociedade sem Estado”? Antes mesmo de examinar essa dimensão, é preciso
apreender o alcance da análise: contrariamente à tese do determinismo
econômico, a revolução neolítica não perturbou a existência social das
sociedades indígenas, e, mais ainda, quando o campo econômico se deixa
marcar como autônomo, é que uma revolução política aconteceu, a da
transformação da própria natureza do poder primitivo, deixando aparecer
uma divisão nova da sociedade entre dominantes e dominados.
Voltemos ao político. "Pessoas sem fé, sem lei, sem rei”, diziam dos
indígenas seus primeiros descobridores europeus, forma arquetípica como
Clastres gostava de chamá-la, porque ela lhe parecia poder também encobrir
uma versão amplamente divulgada do discurso da etnologia. Além do fato de
essa concepção ser absurda no segundo caso por ser contraditória ao próprio
projeto (Lévi-Strauss diz muito claramente “que não se deve definir uma
cultura qualquer por aquilo que lhe é recusado, mas antes por aquilo que lhe
é reconhecido como próprio dela para justificar a atenção que lhe é prestada”,
(1973, pág. 78), ela não resiste ao exame dos fatos. O poder na verdade existe,
identificável a um lugar e a uma figura, a do chefe, mesmo se ela não se
cansasse de inquietar o observador ocidental. Estranho poder, com efeito, esse
que é exercido em um espaço cuidadosamente regulado e limitado em que
evolui um chefe sem capacidade de coagir, definido mais por seus deveres do
que por seus direitos. Três atributos parecem, realmente, caracterizar a função
de chefe no caso dos indígenas (cf. Clastres, 1974, pág. 27 e seguintes). Ele é,
antes de tudo um “fazedor de paz”, regulador dos conflitos do grupo, modera­
dor, conciliador a serviço, seja lá como for, não de sua própria vontade ou de
objetivos por ele definidos, mas de um fim próprio ao grupo inteiro: sua
harmonia. Segundo atributo, o chefe deve ser generoso, pródigo com seus bens
em relação ao grupo; aí ainda se trata de um dever para ele e não de uma
prerrogativa. Por fim, o chefe é e deve ser bom orador. Carisma ou demagogia,
diremos, essa particularidade não tem nada de espantosa. Exceto se se
considerar, e aí sem dúvida está o essencial, que a palavra é o único, meio de
poder, o único instrumento do qual o chefe dispõe para exercer sua função.
Resta saber o que é essa palavra, o que ela diz e para que ela serve.

231
Observando-se de perto, diz Clastres, ela é vazia ou quase, vazia em todo caso
de qualquer ordem ou imposição com que um ser separado do grupo se
poderia impor ou reivindicar ser imposto por ele. “Jyvukugi não “faz" coisas,
ele é aquele que tem o hábito de falar (Clastres, 1972, pág. 105); a resposta do
indígena ao etnólogo no que diz respeito ao chefe e à precisão do aforismo.
Ela designa bem o ser do chefe, na oposição existente entre fazer e dizer, entre
o exercício da coação e o que é na verdade um dever de falar. O chefe fala
realmente, fala sem parar, e ninguém pára sua atividade para executar.
Espantoso discurso do chefe que diz aproximadamente: "Nossos ancestrais
acharam por bem viver como viviam. Sigamos o exemplo deles e, dessa
maneira, levaremos juntos uma existência pacífica” (Clastres, 1974, pág. 135).
Ato perfeitamente ritualizado, o discurso do chefe é vazio porque ele mesmo
está separado de sua palavra. Nesse aspecto reside o pensamento político dos
selvagens: o espaço da palavra descreve precisamente o do poder, e o chefe
está separado dele. Essa figura aparentemente tem duas significações. Antes
de tudo, existe realmente uma forma de poder e, se existe ausência na
sociedade primitiva ainda não é aí que se deve procurá-la. Por outro lado, esse
poder tem como primeira característica não ser coercitivo, e este é precisa­
mente o sentido da palavra: ser o extremo oposto da violência. Não-existência
de excedente econômico, não-violência do chefe, dois traços da sociedade
primitiva que é preciso, daqui para frente, tentar pensar em conjunto e não
como falta, pela bitola da sociedade estatal. Essa dupla ausência, na verdade,
está longe de ser experimentada pelo selvagem como privação, mas é desejada
e cuidadosamente procurada. Por meio dela a sociedade primitiva exprime não
uma incapacidade, mas uma recusa, recusa feroz que guia toda a organização
social. Nessa dupla recusa se exprime uma única e mesma coisa: a vontade de
conservar a sociedade em sua indivisibilidade. Impedindo pela retenção de sua
força de trabalho a aparição de um excedente que poderia ser apropriado por
alguns, como que negando totalmente ao chefe qualquer prerrogativa privada,
a sociedade tende a garantir a interdição de uma separação. Ela se obstina,
desse modo, a conspirar a aparição, de uma forma ou de outra, de uma
instância separada do social, instância de um poder destacado que se exerceria
sobre ela ou contra ela.
A interpretação dos mitos vem, nesse caso, confirmar a explicação social.
O mito dos Últimos Homens (Clastres, 1974, pág. 146 e sg.) esclarece a
complexidade e a riqueza da cultura dos índios Guaranis: o karaí é inspirado
e fala por meio de palavras poéticas. Ele fala da oposição do Bem e do Mal e
conta a origem da infelicidade. O Um é o Mal, diz ele, pois o Um significa o
incompleto, a finitude, o fato de “o homem ser um homem”, isto é, o fato de
os homens não serem deuses. Mas o Bem não é o múltiplo, o Bem é o ser
completo, ao mesmo tempo ele próprio e outro, homem e deus. O karaí não
fala em qualquer lugar nem em qualquer momento. Ele fala nesse momento
da existência de um povo que se pretende sem história em que os índios são
tomados de um frenesi de fugir para longe de suas terras, fuga desvairada para
frente, em direção a outro lugar, em direção a um país sem Mal. E ele incita os

232
índios a fugir. O que significa essa metafísica aparentemente opaca? Simples­
mente isto, diz Clastres: os índios sentem nascer no próprio seio de sua
sociedade uma corrupção que a perderá, uma alteração de seu ser que a
negará: “O Um é o Estado” (ibid., pág. 185). A palavra mítica reencontra, então,
para o etnólogo, o trabalho social: “O esforço permanente para impedir os
chefes de serem chefes é a recusa de unificação, é o trabalho de conjuração do
Um, do Estado” (ibid., pág. 186). Estranho pensamento, sem dúvida, que toma
o sentido oposto da metafísica ocidental e não entra nas categorias dos
pensamentos do direito natural concernente ao ser primitivo do homem. Como
pensar junto essa recusa do Um e essa luta perpétua contra a não-divisão da
sociedade? Será que não existe contradição (mas pode ser que ela esteja na
interpretação) entre um funcionamento social que concebe a sociedade como
unidade, erradicando toda divisão, e a recusa da figura do Um? Sem dúvida
não, desde que a sociedade não dividida e que recusa a divisão não seja uma
sociedade sem Lei. Mas a Lei não é a emanação de uma instância separada, é
lei da sociedade, dos ancestrais, impessoal. Aí reside o poder, que não é o de
coerção de alguns em nome da lei; é o da sociedade sobre ela mesma, que quer
impedir precisamente que surja sobre os homens esse outro poder, segundo a
fórmula de Hobbes, "visível para mantê-los sob respeito” (Léviathan, capítu­
lo XVII).
Poderíamos nos surpreender com o fato de só encontrar muito rara­
mente, sob a pluma de Clastres, referência aos filosófos dos séculos XVII e
XVIII. No entanto, muitas vezes o pensamento dele, alimentado pela observa­
ção e pela investigação local, reencontra as interrogações nascidas das ficções
construídas pelos filósofos do estado de natureza. O estatuto do estado da
guerra, em particular, ao qual Clastres consagrava seus esforços pouco antes
de sua morte, parece estritamente inverso àquele de Hobbes. Mesmo quando
a guerra é considerada a infelicidade do estado natural por este último, o que
explica as causas do preço muito pesado a ser pago para entrar na sociedade,
ela é, para Clastres, como que o ser positivo da sociedade primitiva, o que lhe
permite permanecer o que é. Ser favorável à guerra das sociedades primitivas
significa apenas que é preciso inverter o sentido da relação entre estuturas
sócias e violência: “Não é a guerra que é o efeito do desmembramento, é o
desmembramento que é o efeito da guerra” (Clastres, 1980, pág. 188). A
guerra, portanto, tem uma função bem precisa, perfeitamente desejada e
dominada: “A sociedade primitiva quer a dispersão e a guerra é o meio de se
chegar lá. A guerra, então, conclui o quadro da sociedade primitiva, dando-lhe
uma dimensão dinâmica: porque ela mantém a separação dos grupos, confirma
a realidade da comunidade primitiva como ‘totalidade e unidade’”. E ele
esclarece (ibid., pág. 192): “Totalidade naquilo em que ela é um conjunto
acabado, autônomo, completo, solícito em preservar sem cessar sua autono­
mia, sociedade no sentido pleno do termo. Unidade naquilo em que seu ser
homogêneo persevera na recusa da divisão social, na exclusão da desigualdade,
na interdição da alienação.”
Vê-se, nesse ponto, que o pensamento comum tem razão em considerar

233
as sociedades primitivas como sociedade sem Estado. Mas isso é dizer pouco
e de maneira incompleta sobre á realidade. Bem longe de serem privadas de
Estado, as sociedades primitivas, na verdade, são sociedades "contra o Estado”,
no sentido de que toda organização social se inclina na direção de um único
objetivo, impedir a cisão, a diferenciação de uma esfera do poder separada.
Aos olhos de Pierre Clastres essa descoberta ultrapassa amplamente o
conhecimento das sociedades primitivas. Ela permite, afirmando a primazia do
político (a não revolução social conduzida pelo neolítico mostra que é nessa
ordem que se efetuam as rupturas decisivas), efetuar uma classificação das
sociedades por dois modelos opostos. De um lado, aquele cujos traços princi­
pais são os seguintes: unidade de uma sociedade não dividida economica ou
social mente, existência de um poder não-coercitivo, sociedades, em resumo,
inclinadas contra a aparição do Estado. Do outro, o modelo das sociedades
divididas (divisão do trabalho econômico e social) caracterizadas pela exis­
tência de dominadores e dominados, presença de um poder coercitivo garanti­
do pelo uso da violência, sociedades em que o Estado indica a instância
separada do político. Essa classificação atrai duas observações e algumas
questões.
Antes de tudo, convém notar que o critério de separação não é existência
ou não do poder. Clastres o afirma com convicção: o poder realmente existe
na sociedade primitiva, mais ainda, ele é “universal, imanente ao social” (1974,
pág.20). O verdadeiro corte separa poder coercitivo e poder não-coercitivo e o
erro mais comum é confundir o que é um caso particular do poder (a relação
comando-obediência) com sua essência.
Aliás, uma vez operada essa distinção, duas hipóteses seriam logicamente
possíveis: uma privilegiando a continuidade tenderia a determinar transições
que assegurariam a passagem de um para outro modelo. A outra, ao contrário,
confirmaria a ruptura, a solução perfeita de continuidade, o desabamento total
(radical). E essa segunda hipótese que Clastres defende e que reencontra aqui
a interrogação inquieta de La Boétie no século XVII: “Como é possível tantos
homens, tantas cidades, tantas nações suportarem algumas vezes de um só
tirano, que tem apenas o poder que lhe é concedido, que não tem poder de
prejudicá-los, a não ser que queiram realmente aturá-lo e que não lhes pode
fazer nenhum mal, se não preferissem sofrer tudo dele do que o contradizer”
(La Boétie, 1978, pág. 174). Existe, portanto, servidão e, mais ainda, servidão
voluntária. A isso se acrescenta o fato de que, longe de ser fundada na natureza
humana, essa servidão aceita é, na verdade, o fruto de um terrível mal-enten­
dido, “desencontro”, diz La Boétie. É nesse aspecto, sem dúvida, que para
Clastres a experiência dos selvagens encontra sua parte de universalidade: ela
lembra que o ser humano é a favor da liberdade e aponta o lugar de uma
questão fundamental, a do "enigmático desencontro do qual se origina a
História” (Clastres, in La Boétie, 1978, pág. 231). Antes de voltar a essa
questão, é preciso que se permita levantar alguns problemas abordados
anteriormente.
Primeira interrogação, o que é exatamente esse dispositivo: sociedades

234
contra o Estado/ ruptura ("desencontro”) / sociedades com Estado? Pode-se
legitimamente pensar que não se trata, para Clastres, de uma seqüência
necessária, a persistência das sociedades primitivas o provaria. Entretanto, ela
é, sem dúvida, o destino comum da história das sociedades atuais estatais e é,
aliás, sem retorno. Resta a questão dos dois modelos opostos e de seus
estatutos. A alternativa me parece simples: ou se trata de dois tipos ideais no
sentido estrito que Max Weber dá a esse termo (Weber, 1965, pág. 181), e então
é perfeitamente possível que a realidade dessa sociedade concreta (primitiva
ou estatal) não corresponda exatamente ao tipo construído. Isso ocorrendo, a
diversidade das sociedades primitivas é compatível com o tipo ideal, da mesma
maneira que essa não é “uma exposição do real” (Weber, 1965, pág. 180), mas
uma construção intelectual que ajuda a explicá-la. Mas então, de maneira
também totalmente imperativa, a passagem de um ao outro dos tipos não pode
repousar sobre uma ruptura radical, uma inversão absoluta. A passagem de
um tipo ao outro necessita de transições, de flutuações incompatíveis com uma
transformação brutal.
A segunda hipótese faz, quanto a ela, repousar a construção sobre o
momento do corte que dá sentido aos dois estados opostos. É, portanto, esse
momento que tem valor explicativo e deve ser pensado. Mas, então, qual é
sua forma, qual é seu valor? É diferente das múltiplas versões do Contrato
no pensamento dos séculos XVII e XVIII? Em outras palavras, esse momento
é diferente de uma ficção filosófica construída para pensar sobre o ser social?
A posição de Clastres parece oscilar entre essas duas hipóteses. A referência
implícita à primeira lhe permite falar de uma "redução maciça já que a
história nos oferece, efetivamente, apenas dois tipos de sociedades absoluta­
mente irredutíveis um ao outro” (1974, pág. 170). A conclusão se torna clara
então, com a classificação que ela permite: "Existem, de um lado, as
sociedades primitivas ou sociedades sem Estado e, do outro, as sociedades
com Estado” (ibid.). Resta, portanto, que a definição tende a ser tautológica,
e poder-se-ia interrogar sobre a extensão do campo das sociedades primiti­
vas. O que são, por exemplo, as realezas africanas? Sem falar os Impérios dos
Altos Planaltos. Em outros termos, pode-se realmente considerar que existe
um modelo único da sociedade primitiva? A diversidade das situações
empíricas se deixará reduzir assim tão facilmente? Clastres parecia voltar
sobre o caráter redutor de tal hipótese, como Michel Cartry testemunhou
{Libre, 1978, pág. 42). Do mesmo modo, inverter a fórmula marxista da
primazia do econômico na do político não suprime o determinismo de uma
explicação desse tipo. Tanto esse autor (Clastres) é convincente, pois ques­
tiona a única determinação pela infra-estrutura, quanto a dúvida pode tomar
o leitor diante de uma fórmula também nítida: “A relação política do poder
procede e funda a relação econômica de exploração” (1974, pág. 169). Entre
dois esquemas inversos, mas simétricos em seus fundamentos sobre uma
única causa, não haveria lugar para uma explicação que deixaria aberto o
jogo de uma pluralidade de causas, reenviando a campos autônomos (econô­
mico, político), mas relacionados, que abandonaria a idéia de uma des-

235
continuidade radical por aquela de uuia duração lenta que deixa lugar à
mudança até mesmo à acidental? Pierre Clastres, é claro, não teve tempo de
colocar todas essas questões, e os debates que teve de enfrentar não as
facilitaram jamais. Mas voltemos à sociedade indígena, sem deixar de lado os
debates suscitados pela obra de Clastres. Ele foi censurado, às vezes (Pierre
Birnbaum, 1977), negando-se totalmente sua idéia do “bom selvagem”, de
valorizar a sociedade primitiva quando elas “mantinham um controle abso­
luto sobre seus membros" (pág. 10). Clastres, em outros termos, passaria
insensivelmente da explicação dos fatos para um julgamento de valor de um
tipo de sociedade preservada do Estado. A questão colocada é com certeza
legítima, do mesmo modo que é clara a resposta. A leitura de Clastres
conduz, com efeito, a uma constatação sem ambigüidade: A “sociedade
contra o Estado” é efetivamente “uma sociedade de opressão total” (Birn­
baum, pág. 15). Mais ainda, muitos dos elementos de análise trazidos por ele
trariam argumentos em favor dessa tese. Além do que já se sabia de um tipo
de sociedade perfeitamente regulada (divisão dos papéis entre os sexos,
função do casamento como troca, impregnação do religioso), Clastres desen­
volve límpidas análises sobre o estatuto da lei e a violência de sua inscrição
sobre o próprio corpo dos indivíduos. A atitude do etnólogo está, nesse caso,
longe da complacência, tendo lembrado que toda sociedade produz os meios
do chamamento da dureza e da imperatividade da lei, o auto faz um paralelo
do meio inventado pelos indígenas com aquele imaginado por Kafka (a
metáfora da máquina escrevendo a lei da Colônia penal) ou aquele mais real
dos campos de trabalho soviéticos. Efetivamente, o ato essencial à vida do
membro masculino da comunidade primitiva, que é sua iniciação, é precisa­
mente o lugar de uma tortura (Clastres, 1974, pág. 152 e seg.). O autor
descreve com precisão o ritual que é sistematicamente terminado por um
sofrimento do jovem rapaz (Clastres, 1972, pg. 164 e seg.), e ele o interpreta
como a vontade da sociedade em ressaltar um traço que seja para seu
membro a memória da lei. “A sociedade imprime sua marca sobre os corpos
dos jovens” (1974, pág. 157) e significa com isso que a lei comum se impõe
a todos. Resta dizer que uma vez mais esta lei tem um caráter bem preciso:
longe de ser expressão da vontade de um só ou de alguns, ela é a vontade
da sociedade como um todo. A partir desse fato, ela tem duas significações:
para os indivíduos, ela é a lembrança de sua igualdade perfeita (“você não
vale menos do que outro, você não vale mais do que outro” (ibid., pág. 159),
para a sociedade, ela é o sinal suplementar de sua não-divisão (a lei inscrita
sobre todos os corpos marca bem a recusa de um poder separado). Toca-se
aqui o extremo da não-separação: a lei não é inscrita diante do homem, no
frontáo de suas instituições, mas na sua carne, ela se incorpora a ele, se
incorpora à própria sociedade. E preciso então se esforçar para conceber
junto a idéia de uma sociedade em que não existe poder coercitivo separado
e a da violência de uma sociedade sobre si mesma que tem por função
torná-la incessantemente de acordo com seu ser. Estamos, aqui, longe do
mito da doçura e da imagem do “bom selvagem”, assim como nos afastamos

236
dele com Clastres quando ele descreve os “pesares do guerreiro selvagem”
(Clastres, 1980, pág. 209 e seg.). Que destino trágico tem, na verdade, o
guerreiro: ele só tem prestígio (e o chefe, poder de pressionar) durante a
guerra; portanto, ele é levado a desejá-la para se realizar, mesmo quando a
sociedade quer a paz. A lógica é então fatal, e a sociedade cruel, com relação
àquele que se individualiza para realizar seus próprios fins: o horizonte do
destino do guerreiro é partir só para combater um inimigo tornado imaginá­
rio para a sociedade e perecer abandonado sob as flechas do adversário. A
conclusão é clara: mesmo se a sociedade reconhece ao guerreiro e ao chefe
uma competência técnica, jamais ela os deixará transformá-la em competên­
cia política separada. É a própria sociedade que é o lugar do poder, e ele o
lembra em todos os sentidos, a cada instante, a todos os indivíduos. Daqui
para frente a imagem é clara e, se se abandona a questão da eventual
felicidade primitiva, sobra o fato de que a liberdade moderna não tem lugar
dentro desse dispositivo. Estaríamos mesmo no extremo oposto da definição
que dá dela, por exemplo, Tocqueville: “Cada homem, presumindo-se que
tenha recebido da natureza as luzes necessárias para se conduzir, traz ao
nascer um direito igual e imprescindível de viver independente de seus
semelhantes, em tudo que só diz respeito a si próprio, e a regular como
quiser sua própria existência” (Tocqueville, 1952, pág. 62). Por conseguinte,
Clastres queria, como afirma um de seus comentaristas (Chamboredon,
1984, pág. 564), “nos reconduzir ao ideal da Terra sem Mal que é a sociedade
sem Estado”? Essa questão ele respondia com um belo enunciado de
sabedoria intelectual: “Esperemos, trabalhemos, nada nos apressa” (Clastres,
1980, pág. 153). A morte acidental fez com que a obra de Clastres permane­
cesse suspensa nessa fórmula, deixando o leitor em companhia de questões
mais do que de certezas.
Qual é então a lição dos selvagens? Ela caberia em um enunciado simples:
o Estado não é inevitável. Por isso pode-se encontrar sociedades em que não
existe a cisão dominantes/dominados, senhores/escravos, isso não está escrito
na natureza humana. Isso quer dizer que uma vez que tenha ocorrido não há
retorno? Pode ser que Clastres pensasse assim, e Birnbaum pôde enfatizar uma
conotação pessimista, que não existe sem lembrar a de Hannah Arendt Mas
essa aproximação poderia talvez ser delineada mais adiante. Como Arendt,
Clastres cerca essa questão central que é a origem, o começo, mesmo se os
lugares em que ela se situa são diferentes. Para uma a figura deste enigma do
começo é o que ela chama de o “tesouro escondido", “tesouro sem idade”,
"tesouro perdido” das revoluções (Arendt, 1972, pág. 13); para o outro ela é
“o brutal desencontro que faz desabar o antes da liberdade no depois da
submissão” (Clastres, in La Boétie, 1976, pág. 232). Seja como for, é comum
a idéia de um acontecimento fundador, e, se, de um lado, o tesouro é sem
dúvida miragem que permanece sem nome, do outro, continua a ser difícil de
determinar o momento da reversão. Enfim, a questão do começo não se
dissocia daquela da violência: o surgimento da democracia é possível sem
violência? Pode-se pensar, nesse caso, na comparação das duas revoluções,

237
americana e francesa, e na interpretação que Tocqueville dá delas (cf. o
comentário de Mareei Gauchet, 1980, pág. 48 e seg.). O questionamento de
Clastres é diferente: a violência é o horizonte necessário do político? A resposta
pode ser negativa, mas sob condições que formula igualmente Hannah Arendt:
‘‘O poder corresponde à aptidão do homem para agir. O poder nunca é uma
propriedade individual: ele pertence a um grupo e continua pertencendo a ele
durante todo o tempo, que esse grupo não está dividido” (Arendt, 1973, pág.
153). Os selvagens parecem ter compreendido isso, e com Clastres percebemos
melhor o preço a pagar, o de uma sociedade perfeitamente integrada em que
a autonomia do indivíduo é impossível. A antropologia política de Clastres
apreende a tensão irredutível entre esses dois pólos. Ela aponta, aliás, a
questão decisiva, a da aparição do Estado. Enfim, ela deixa aparecer em
filigrana dois caminhos para aproximar-se de uma resposta: um privilegiando
a descontinuidade interrogava o enigma do ato fundador, o outro se prenden­
do à mudança procurava determinar, por meio de uma análise do social,
grupos (feixes) de causas e a parte do acidental. Sabendo que nenhuma das
duas conseguiu ainda obter resposta, poder-se-ia dizer: meditemos, auscul-
temos. O conhecimento é sempre relativo.
Acidental mente, mas também talvez pela natureza de seu questiona­
mento filosófico, a obra de Clastres está inacabada. Sua força reside em ter
colocado ao saber antropológico verdadeiras questões e de lhe ter imposto as
exigências metodológicas de seu projeto. Mas ela excede essa dimensão e
reúne as interrogações sobre o ser social do homem. “Adeus, selvagens, adeus,
viagens”, dizia Lévi-Strauss, e é exatamente o homem simplesmente enquanto
homem que está em jogo. Porque nos indígenas o homem ocidental encontrou
o seu outro e talvez, como diz Clastres, desse encontro “fatal para os índios,
não se sabe se, por algum contragolpe estranho, ele não trará igualmente em
si a morte inesperada de nossa história, da história de nosso mundo em seu
aspecto contemporâneo” (1972, pág. 142).
Porque o homem inventando a divisão descobriu junto a independência
e a violência, daqui para frente açambarcada, monopolizada por um ou alguns,
e para assumir a primeira tentando afastar a segunda, ele se esforçou para
sonhar e realizar instituições políticas, para pensar e viver as condições de uma
vida em conjunto que seja também meio da realização dele próprio.
Porque, enfim, se está claro que a um tipo de sociedade sem poder
separado, porém ao preço da total integração, se opõe aquele em que é possível
a autonomia do indivíduo, embora ao preço simétrico da divisão, o pensamento
moderno ainda não acabou de construir o espaço social que possa ser a um só
tempo da felicidade e da liberdade.•

• L a s o c ie té c o n tre l ’E ta t, Paris, Ed. de Minuit, 1974. Essa obra é, com exceção dos primeiro
e último capítulos, uma coletânea de artigos do autor, surgidos em diversas revistas. Citarei
sempor ostextos com as referências à compilação e não aos artigos originais; R e c h e r c h e s
d 'a n th ro p o lo g ie p o litiq u e , Paris, Seuil, 1980; C h ro n iq u e d e s ln d ie n s G u ayaki, Paris, Plon,

238
1972; Le grand parler, Mitos e cantos sagrados dos índios Guaranis, (Mythes et chants sacrés
des Indiens Guarani),Paris, Seuil, 1974.

► Etienne de La Boétie, Le discours de la servltude voluntatre, Paris, Payot, 1978, Apresen­


tação de Miguel Abensour e Mareei GaucheL Postfaces de Pierre Clastres e Claude Lefort;
Claude Lévi-Strauss, Anthropologie structurale deux, Paris, Plon, 1973; Jacques Lizot, Econo-
mie primitive et subsistance. Ensaio sobre o trabalho e a alimentação dos yanomamis, Libre, n.
4, 1978, pág. 69-114; Michel Cartry, Pierre Clastres, Libre, n. 4, 1978, pág. 39-49. 0 mesmo
número da excelente e efêmera revista Libre contém dois outros artigos consagrados a Pierre
Clastres após sua morte, que estão assinados por Claude Lefort e Mareei Gauchet; Marshall
Sahlins, Age de pierre, Age d ’abondance, Paris, Gallimard, 1976; Pierre Bimbaum, Sur les
origines de la domination politique, Rem e írançaise de Science politique (I), fevereiro 1977,
pág. 5-21. A este texto sucedem uma resposta de Pierre Clastres, Le retour des lumières, pág.
22-28, e um comentário de Pierre Bimbaum, pág. 28-29; Jean-Claude Chamboredon, Pierre
Clastres e a volta da questão política em etnologia. A propósito de Recherches d'anthropologie
politique, Revue írançaise de Soclologie, XX1V-3, julho-setembro 1983, pág. 557-564; Alex de
Tocqueville, L Ancien Régime et la Rivolution, Paris, Gallimard, ed. das Oeuvres complètes de
Tocqueville, tomo 2, introdução de Georges Lefebvre, notas de J.-P. Meyer, 1952, 2 volumes;
Hannah Arendt, La crise de la culture, tradução de diversos tradutores de Between Past and
Future, Paris, Gallimard, 1972; ld., Du mensonge à la vlolence. Essals de politique contempo-
ralne, tradução de Crises o f the Republtc, Paris, Calmann- Lévy, 1973; Max Weber, Essals sur
la théorie de la Science, tradução parcial de J. Preund de Cesammelte AufsãLze zur Wlssens-
chafíslhre, Paris, Plon, 1965, introdução de Julien Freund.

Pierre BOURETZ.

CLAUSEWITZ, KarI von - 1780-1831


Da guerra, 1816-1831

O Tratado no qual Clausewitz trabalhou de 1816 té sua morte, refazen­


do-o sem parar e deixando-o inacabado, transformou-se, principalmente
depois de 1870, na verdadeira Bíblia dos estados-maiores europeus: os
generais alemães e franceses, cujos exércitos se confrontaram em 1914,
reclamavam ambos para si o mesmo teórico para justificar a ofensiva
arrasadora e a mobilização total em vista de uma decisão rápida e esmaga­
dora. Menos célebre depois da experência da guerra de usura, condenada
por Ludendorff, em 1935, como militármente ultrapassada, a obra se encon­
trou, entretanto, investida, em uma tradição totalmente diferente, de uma
significação aparentemente renovada quando Lênin, que a havia lido em
1915 e havia reproduzido trechos dela anotando-os em um de seus cadernos,
proclamou que os marxistas haviam sempre considerado as teses de Clause­
witz “a base teórica da interpretação de cada guerra acontecida” (Oeuvres,

239
tomo XXI, pág. 314). No entanto, também desse lado, a glória de Clausewitz
iria desaparecer, já que Stalin decretou em 1941 que seria “ridículo pedir
lições hoje em dia a um contemporâneo de Napoleão.” Não se poderia, então,
evocar as teses do Tratado e interrogar sobre seu alcance, sem colocar duas
questões de legitimidade: 1) sobre essas adesões sem reserva: esses cultos
não são também traições?; 2) sobre as rejeições que lhes foram feitas: os
dados novos das relações interestatais tornaram verdadeiramente caducos
os pontos de vista de Clausewitz sobre a política militar?
Ora, para progredir no exame dessas questões, é indispensável que se
veja como - essa é pelo menos a hipótese que se gostaria de sugerir aqui —
as diversas dificuldades se instalam em torno do problema de saber qual tipo
de relação o Tratado estabeleceu exatamente entre guerra e política.
Ninguém ignora realmente a célebre fórmula a que se reduz freqüentemente
a evocação de Clausewitz: “A guerra é a continuação da política por outros
meios”, mas literalmente: “A guerra nada mais é do que o prosseguimento
da política de Estado por outros meios” (Clausewitz, 1955, pág. 42), ou “A
guerra nada mais é do que a continuação das relações políticas, pelos outros
meios restantes” (pág. 703). A interpretação mais tradicional, formulada, por
exemplo, por A. Rappoport e, durante muito tempo, ritual nas escolas de
oficiais do Estado-maior, consiste em desviar para uma direção “militarista”
o pensamento de Clausewitz: os objetivos da política e da guerra não se
distinguindo, o militar já que está subordinado ao chefe de Estado, perma­
nece o fato de que a vontade do Estado é essencialmente orientada para o
crescimento de seu poderio em relação aos outros Estados: o chefe de Estado
procura incessantemente as ocasiões de ganhos estratégicos, tanto e tão bem
que a política se completa plenamente durante a guerra e que, dando-se
como único fim a força militar, ela coloca tudo a serviço desse fim. Essa
interpretação se faz acompanhar muito logicamente de uma insistência sobre
os textos que abrem o Tratado e definem a guerra como “um ato de violência
destinado a coagir o adversário a executar nossa vontade” (pág. 51), visando,
portanto, por meio do “uso ilimitado da força” (pág. 52), a “desarmar o
inimigo” (pág. 53): Clausewitz seria o teórico de uma guerra absoluta e total,
“desenvolvimento extremo das forças” (pág. 54), terminando em uma decisão
sem apelo, quando um dos adversários não for mais capaz de prosseguir com
a luta. É esse conceito da guerra como “uso da força física em sua integrali-
dade” (pág. 52), portanto como gigantesca ofensiva exageradamente carac­
terizada pela “não-limitação da violência” (pág. 53), que Foch retomava à sua
maneira, situando a finalidade da guerra na obtenção, a qualquer preço, de
uma situação em que o inimigo “não poderá nem quererá mais combater”
(Príncipes de la guerre, 1903, pág. 40). Desde então compreende-se facil­
mente como, assim lido, o Tratado poderá, depois do primeiro conflito
mundial, aparecer como uma das origens teóricas do massacre - o grande
escritor militar que foi Liddell Hart formulou nesse sentido, como o lembra
R. Aron (1976, II, pág. 7 seg.), um verdadeiro requisistório contra o "Madhi
das massas e dos massacres mútuos".

240
Coube justamente a R. Aron, em seu magistral estudo do Tratado,
mostrar sobre que erro de leitura repousava essa interpretação. Clausewitz
começa realmente por colocar uma definição puramente abstrata da guerra,
um simples conceito formal, a partir da comparação entre guerra e duelo: é
nesse nível que aparece a noção de guerra absoluta. Mas, desde o § 6 do
primeiro capítulo ("Modificações na realidade"), o autor, abandonando o que
chama explicitamente “o domínio abstrato do conceito puro” (pág. 55), passa
"da abstração para a realidade” e reintroduz os dados concretos da guerra,
a saber, o espaço, o tempo e - este é o ponto essencial —a política (pág. 58:
“Aqui, um assunto que abandonamos no segundo parágrafo, isto é, o
objetivo político da guerra, requer de novo a nossa atenção”). Pois, os
adversários reais são Estados, cada um com interesses e objetivos próprios
em função dos quais são determinados os eforços consentidos. O uso, em
princípio, ilimitado da força se vê, portanto, de fato, regulado pelo uso de
uma medida: um gasto de forças, que "não estivesse em equilíbrio com o fim
fixado” tomar-se-ia “inútil” e, de toda maneira, "não poderia ser provocado”.
Não se consegue ver, com efeito, nesse caso, de onde o Estado “tiraria sua
influência sobre as massas” e aquilo que poderia ser a energia moral do
exército - essa energia moral da qual Clausewitz nunca deixou de ressaltar
que, mesmo na época moderna, era o ingrediente indispensável a uma
empresa militar (pág. 199 e segs., e carta a Fichte, de 11 de janeiro de 1809).
A guerra absoluta não é, portanto, de maneira nenhuma, o que preconiza o
Tratado, do qual toda análise visa, ao contrário, a tornar sensível “o caráter
irreal da ascensão aos extremos" (Aron, 1976,1, pág. 113), simples “fantasia
lógica” (Clausewitz, pág. 55) cuja função metódica é fazer aparecer, pela
reintrodução ulterior dos dados concretos, a natureza real da guerra, a
saber, sua subordinação de fato ao princípio cardeal da arte política: a
determinação justa de uma proporção entre o interesse em jogo e o esforço
dispendido (essa distinção entre a "teoria pura” e a “guerra real” foi também
corretamente interpretada por A. Philonenko, 1976, pág. 211).
Contra a interpretação tradicional que, fazendo da guerra a verdade da
política como procura de um poderio incessantemente aumentado, operava
uma verdadeira inversão da fórmula de Clausewitz, é preciso, portanto,
compreender que a guerra é apenas um “instrumento político”, uma “continua­
ção das relações políticas, uma realização delas por outros meios” (pág. 67).
Para seguir até o fim o pensamento desse autor, seria necessário, todavia,
precisar o que representam para ele "relações políticas": o que é realmente essa
“intenção política” que ele coloca como “o fim, do qual a guerra é o meio” -
meio que “não se pode jamais conceber independente do fim" (pág. 67).
Forçosamente, temos de reconhecer que, nesse caso, Clausewitz, por não ser
esse seu objetivo, não elaborou mais essa noção de “intenção política”,
limitando-se a mais freqüentemente insistir sobre o fato de que a forma da
guerra varia como varia a vontade de um Estado, e que essa vontade muda
segundo as circunstâncias e as épocas (pág. 67 e segs.). Entretanto, bastam
algumas indicações, parece, para impedir uma segunda interpretação, aparen-

241
temente mais fiel do que a interpretação “militarista” com relação à subordi­
nação da guerra à política e, no entanto, incompatível com a escrita e o espírito
do Tratado.
Lendo em Clausewitz que a natureza das guerras só se deixa compreen­
der a partir dos objetivos políticos dos beligerantes, Lênin acreditou realmente
ser fiel ao Tratado, sustentando que, se as decisões e os atos de guerra de um
Estado se explicam por sua política diante do conflito, bastava, para determinar
a significação de uma guerra, remontar às relações de classe que caracterizam
os Estados presentes: se a guerra é o instrumento de uma política, em virtude
da concepção marxista do aparelho político, toda guerra é, efetivamente, o
instrumento do qual se servem certas classes para chegar à dominação ou para
melhor "continuá-la”. As guerras revolucionárias, desde 1789, foram, nesse
sentido, guerras burguesas, condições do desenvolvimento capitalista, e a de
1914 é uma guerra imperialista (Oeuvres, tomo XI, pág. 158 e segs.) - e se
prestará, então, homenagem a Clausewitz por ter, tão justamente, tirado “as
lições filosóficas dos conflitos” (tomo XXIV, pág. 408). A incorporação pura e
simples do Tratado ao ponto de vista a partir do qual “Marx e Engels
visualizaram sempre as diferentes guerras” é, no entanto, como se vê, ampla­
mente ilegítima. Pois, se as guerras só dão seqüência à política quando são
guerras de classes, é preciso inverter uma vez mais a fórmula de Clausewitz e
escrever que o instrumento da única e verdadeira guerra é a política, isto é, a
luta de classes, que apenas se dissimula por trás dos conflitos militares; assim,
de novo, como na tradição dos estados-maiores, a guerra aparece como a
verdade da política, a política descobrindo sua essência na guerra e como
guerra. Ora, essa não é a relação que Clausewitz incitou a pensar entre guerra
e política.
A guerra não aparece efetivamente no Tratado como a essência da
política. Um dos raros textos em que o autor esboça sua representação da
“intenção política” coloca que a política se define não pela procura do poder,
mas pela da paz, mediante a realização de um equilíbrio entre os interesses,
tanto de maneira intra-estatal quanto de maneira interestatal: “Que a política
una em si e equilibre todos os interesses da administração interior, também
aqueles da humanidade e tudo o que o entendimento filosófico pode ainda
fazer valer, nós o admitimos por hipótese, pois a política não é nada além do
simples gerente de todos os interesses em face dos outros Estados” (pág. 705).
Texto decisivo: a finalidade de um Estado é defender e garantir os interesses
de seus membros e, do mesmo modo que no seio da sociedade, a garantia dos
interesses de cada um só é obtida por meio de sua coexistência; assim também,
entre os Estados, a política consiste em obter a garantia dos interesses de cada
Estado por sua coexistência com os interesses dos outros, quer dizer pela
garantia dos interesses do conjunto interestatal (cf. Aron, 1976,1, pág.173 e
segs.). O Tratado revela, portanto —como o estudo de R. Aron demonstra
claramente um Clausewitz defensor do equilíbrio entre os Estados, e é em
relação a essa concepção do objetivo político que é preciso compreender a
definição da guerra como “instrumento da política”. Aqui pode-se apenas

242
seguir a interpretação de Aron: “A tendência ao equilíbrio não basta para
prevenir a superioridade temporária de um Estado sobre os outros; esse
Estado acaba, portanto, perecendo por seus próprios sucessos, já que dirige
contra si a maioria dos outros membros da República européia.”A guerra seria
então um artifício da racionalidade política ou, se preferirem a terminologia de
Clausewitz, um momento da “lógica política”: onde as relações entre as
potências tendem a se desequilibrar, o Estado mais poderoso pode acreditar
que é de seu interesse obter sinais concretos de sua superpotência; entretanto,
ele só suscita, assim, a coalizão dos outros Estados cujos interesses estão
ameaçados: a guerra e a vitória dos coligados restabelecem, então, o equilíbrio.
Nesse sentido, a guerra continua realmente a política (o equilíbrio dos inte­
resses), mas utilizando temporariamente outros meios. Não existe, portanto,
uma lógica própria da guerra, pois ela só tem razão de ser no interior dessa
lógica profundamente política, que conduz ao restabelecimento da paz pelo
reequilíbrio das potências. Numerosas passagens do Tratado revelam, então,
todo seu alcance a partir dessa releitura aroniana, à qual conferem, em retorno,
toda sua força.
Com efeito, são esclarecidos todos os textos em que, derrubando anteci­
padamente a interpretação militarista, Clausewitz sublinha expressamente que
o chefe militar deve sempre estar subordinado ao chefe político (págs. 706-
707). Tomam também todo seu sentido as páginas em que o Tratado, sem
contradição com sua colocação inicial do conceito abstrato de guerra absoluta,
insiste sobre o fato de que, na verdade, as guerras se desenvolvem mais
freqüentemente sem chegar a extremos e podendo desembocar sobre uma paz
de compromisso, definida por uma retificação limitada das forças presentes: a
guerra pode, assim, conhecer “todos os graus de acuidade, desde a guerra de
extermínio até a simples observação armada” (pág. 59). A possibilidade de
acordo substitui, portanto, a ilimitação da violência desde que se retire da
guerra sua autonomia e que se recoloque o militar sob a dependência da
“inteligência do Estado personificada”, quer dizer, do político. Nenhuma
exaltação irracionalista, conseqüentemente, do dispêndio desmedido da força,
nenhuma apologia do chefe militar como o herói dessa falta de medida, mas,
totalmente ao contrário, a subordinação desejada da força à razão, do chefe do
exército ao chefe de Estado, à inteligência política como faculdade de calcular
prudentemente as motivações e as colocações.
Como medir a pertinência dessas teses hoje em dia? De que vale o apelido
à inteligência política em um tempo em que, seguindo certas análises, é a lógica
absurda do armamento e do superarmamento que, daqui para frente, tomará
o lugar da política e em que "a inteligência do Estado personificada" parece
ter se ocultado atrás da figura dos estratocratas? Coloquemos a questão de
outra maneira: quando Clausewitz insiste sobre a possibilidade, para numero­
sas guerras, de não ir até os extremos, não exclui, no entanto, em certos casos,
que a guerra possa vir a ser de extermínio e reunir-se a seu conceito abstrato.
No decorrer do Tratado, algumas indicações são dadas sobre os fatores que
podem engendrar uma guerra escapando à limitação da violência: a transfor-

243
mação das guerras modernas em guerras populares, em que o impulso das
massas é mais dificilmente controlável pelo político, aparece na maioria das
vezes como o maior risco - a irracionalidade das paixões podendo conduzir a
guerra a ultrapassar sua lógica política; pode acontecer também, observava o
autor, que uma seqüência de acasos produza a mesma ascensão a extremos, e,
em várias retomadas do assunto, o Tratado insiste sobre o fato de que nenhum
domínio racional abolirá jamais o acaso. Não fica menos claro que esses são,
para o autor, casos-limites não passando de um estudo filosófico da guerra, do
qual se tira a necessidade de apostar na razão e no controle mais vigilante
possível das paixões e das circunstâncias efetuado pela inteligência. Essa
aposta na razão permanece razoável hoje em dia? Todo o segundo volume do
Clausewitz de R. Aron é consagrado a defender a convicção de que, à questão
de saber o que poderá limitar a guerra, a resposta não será diferente, na era
nuclear, daquilo que era na época de Clausewitz: “o entendimento político” -
as armas nucleares apenas renovaram, sem agravá-lo, o risco inerente ao
equilíbrio de Estados armados (Aron, 1976, II, pág. 237). Mesmo se se
concorda, sem dificuldade, que o “cálculo dos riscos por meio inteligência”
permanece a melhor oportunidade de dominar a violência hiperbólica, essa
renovação do risco parece, todavia, ser de natureza a tornar necessária uma
nova interrogação sobre o entendimento político; não seria o caso na medida
em que: 1) o acaso que o cálculo racional não pode dominar possui, na era
atômica, um alcance totalmente diferente do da época da artilharia: 2) os
obstáculos à percepção do interesse comum têm, na época das “intransigências
ideológicas”, uma amplitude totalmente diferente da época em que Clausewitz
podia situá-las somente nas “paixões das multidões”.

• Vom K rle g e, Bonn, Dümmlers Verlag, 1952 (o editor, W. Hahleweg, retomou o texto da
primeira edição, publicada em 1833 e livrou a obra de múltiplas deformações, às vezes até
graves, que se haviam introduzido no correr de edições sucessivas); D e Ia G u erre, Paris, Ed. de
Minuit, traduzido por D. Naville, prefácio de C. Rougeron, introdução de P. Naville, 1955.

► R. Aron, P e n s e r la gu erre, C la u sew itz, Paris, Gallimard, 2 volumes, 1976 (no fim do segundo
volume, encontrar-se-á uma bibliografia racional dos principais estudos do T ra ta d o ); A. Philo-
nenko, E ss a is s u r la p h ilo s o p h ie d e la g u erre, Paris, Vrin, 1976, pág. 205-220: “Tolstoi e
Clausewitz”; E. Weil, Guerre et politique selon Clausewitz, in R e v u e fra n ç a ise d e S c ie n c e
p o litiq u e , volume 5, n2 2, abril-junho 1955. Reproduzido em E ss a is e t c o n íe r e n c e s. Paris, Plon,
1971.

Alain RENAUT.

244
COMTE, Auguste, 1798-1857
Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a socie­
dade, 1822

Pode-se hoje em dia ler Auguste Comte? A obra é imensa - dos seis
volumes do Cours de philosophie positive aos quatro do Système de politique
positive - , e as páginas que envelheceram mal são numerosas aí. A religião da
Humanidade e seus sacramentos, o Catéchisme positiviste, só interessam,
ainda, ao especialista; o homem de nosso tempo tem obras demais para
conhecer, para consagrar vários dias ao estudo de obras tão freqüentemente
inatuais. Pode-se, no entanto, ignorar Comte, centro do pensamento francês há
mais de um século? Tomou-se muito rapidamente o partido da leitura parcial:
no fim do século XIX, Comte estava constantemente inscrito no programa de
filosofia das Faculdades de Letras, mas somente para as lições programáticas
1 e 2 do Cours ou as famosas lições 48 a 51, ou, ainda, para o "Discurso sobre
o conjunto do positivismo” que abre o Système de politique positive. Nós
tomamos o mesmo partido parando em uma das primeiras obras sistemáticas
de Comte, aquela em que o projeto político é seguido com mais rigor: as cem
páginas densas e firmes do Plan des travaux scientifiques nécessaires pour
réorganiser la société (Plano dos trabalhos científícos necessários para
reorganizar a sociedade), de 1822. Nessa época, Comte tinha vinte e quatro
anos, não havia ainda acabado as transmutações sucessivas que mudarão, com
mais ou menos felicidade, a ciência positivista em filosofia positivista e depois
em religião positivista. Com seu Plano, ele fornece, ao mesmo tempo, seu
programa (que ele não terá de renegar) e o que ele mesmo chama de seu
“discurso sobre o método”: oferece, assim, o que permanece sendo, sem
dúvida, a melhor introdução à sua obra e, certamente, sua obra política
fundamental. Encontrar-se-ão nesse “opúsculo” dados suficientes para abordar
a questão da significação atual do positivismo e aquela - distinta - do sentido
do determinismo sociológico.
Como quase todos os pensadores políticos de seu tempo, Auguste Comte
foi levado a empreender uma reflexão filosófica social em seguida ao choque
da Revolução Francesa. Foi-lhe necessário compreender as causas e os meca­
nismos desse gigantesco confronto social para prevenir sua volta): “É preciso
- diz Comte —terminar a época revolucionária” (Plan, pág. 69)1. Essa tarefa
lhe parece tão primordial que ele acabará por dizer que “ a meta da política
prática é precisamente evitar as revoluções violentas” (pág. 96). O tema da
ordem na obra de Comte, que se desenvolverá em seguida, está presente desde
sua origem.
Mas, tomem cuidado, previne Comte, esse objetivo prático - pôr um fim
à crise aberta em 1789 —só pode ser alcançado se for empregado um trabalho
teórico', é preciso, para conduzir a sociedade, para "coordenar as relações
sociais”, para "direcionar a uma meta geral de atividade todas as forças
particulares”, uma doutrina, um princípio ou, melhor, um sistema-, esse

245
“sistema de idéias gerais” (pág. 63) que será, precisamente, o Système de
politique positive (Sistema de política positiva), título dado desde 1824 à
reimpressão (em uma brochura de Saint-Simon) do Plano e retomado na
grande obra posterior dos anos 1850.
Comte se entrega à tarefa e empreende o que chama então de “o
estabelecimento da ciência política” (pág. 72) ou (as duas expressões são
significativamente equivalentes) a elaboração da “nova doutrina social”. Ele
não duvida de que esse grande trabalho político só possa ser realizado por um
sábio, de fato um homem de ciências de sua época, e não por um desses
metafísicos que a humanidade tanto conheceu (assim, de Rousseau, que Comte
abomina, ele não se valerá mais, multiplicando ainda as reservas, apenas do
Montesquieu do Espritdes Lois e, principalmente, do Condorcet do Esquisse
d ’un Tableau historique des Progrès de l ’E sprit humain). Ele escarnece
desses legistas, dotados apenas da faculdade de persuasão, da eloqüência, que
não temem redigir dez Constituições em trinta anos e proclamá-las, uma após,
outra "eternas e irrevogáveis” (pág. 61), como se (e Comte sofre aí influências
de Burke) fosse possível fabricar, unicamente por meio de duzentos artigos de
uma lei constitucional, um novo sistema social! Essa empresa só pode ser bem
encaminhada pelos sábios ocupados no estudo das ciências de observação,
dotados dessa faculdade de exame e de raciocínio que é a única a dar a
capacidade e a autoridade necessárias.
O programa que Comte traça para esses sábios cabe em uma fórmula:
trata-se “de elevar a política ao nível das ciências de observação” (pág.77). Se
esse programa for realizado, estima o autor, só deverá necessariamente fazer
duas constatações científicas primordiais. Primeiro se constatará que, na
ordem das determinações, o estado da civilização vem em primeiro lugar, a
forma da organização social (relações entre as forças sociais e a natureza do
sistema político) estando sempre em segundo. De um para o outro existe
"dependência”, “derivação necessária”. E ainda preciso dizer o que Comte
entende por "estado da civilização”: É, em primeiro lugar, o momento do
desenvolvimento do espírito humano que se alcançou. Comte distingue muito
simplesmente, sabe-se, três estados: o estado teológico ou fictício (explicam-se
os fatos observados por meio de fatos inventados - em política, o direito
divino), o estado metafísico ou abstrato (explicam-se os fatos por meio de
abstrações - em política, o contrato social) e o estado científico ou positivo
(explicam-se os fatos por meio de leis gerais —em política, o positivismo). Ora,
diz Comte, a um dado estado do desenvolvimento do espírito correspondem
um estado da indústria e um estado das belas-artes, o todo formando o estado
da civilização. Esse conjunto determina por sua vez a forma da organização
social. Segunda afirmação do autor, vigorosamente dita e retomada de dez
maneiras: “A marcha da civilização” está "sujeita a uma lei invariável fundada
sobre a natureza das coisas” (pág. 86). Comte não hesita diante das fórmulas
mais nítidas: essa marcha da civilização é “natural e irrevogável", “determinada
e invariável”, “constante”; obedece a uma “lei necessária” que é uma lei de
“progresso não interrompido” (cf. particularmente pág. 89-92). Em 1822, o

246
sistema do positivismo é, portanto, determinista e idealista: os progressos
contínuos do espírito humano determinam de maneira irresistível o estado do
regime social2. A lei do desenvolvimento histórico é ao mesmo tempo necessá­
ria e necessitanter. ela exprime a ordem da natureza e implica que o que será
não pode ser diferente dessa lei natural prevista.
Auguste Comte pode então definir com precisão o que é o objeto da
ciência política ou da política positiva (pois não se deve esquecer a incerteza
própria da época. A distinção entre a ciência e seu objeto não era clara em
matéria política e duas proposições estavam justapostas sem que se sentisse a
diferença: é preciso elevar a política ao nível de ciência —logo a própria ação
política deve ser uma ação científica - e é preciso tratar a política de uma
maneira positiva, isto é, estudar a política como um astrônomo estuda o curso
dos planetas. "Política científica” e “ciência política” são expressões equiva­
lentes). A política positiva consiste em “coordenar todos os fatos particulares
relativos à marcha da civilização, reduzi-los ao menor número possível de fatos
gerais, cujo encadeamento deve colocar em evidência a lei natural dessa
marcha, apreciando em seguida a influência das diversas causas que podem
modificar-lhe a rapidez” (pág. 95). Compare-se à definição de ciência política:
“É preciso observar a ciência política como uma física particular, fundada
sobre a observação direta dos fenômenos relativos ao desenvolvimento coletivo
da espécie humana, tendo por objeto a coordenação do passado social e como
resultado a determinação do sistema que a marcha da civilização tende a
produzir hoje em dia” (pág. 130). Estes trabalhos implicam que o filósofo social
vá do passado ao futuro: ser-lhe-á necessário fundar uma "verdadeira história”
para descobrir as leis que presidem o desenvolvimento social da espécie
humana para poder dizer qual o sistema político destinado a ser estabelecido.
Isso feito, voltar-se-á ao presente e à ação política concreta que pode ser
deduzida das pesquisas teóricas do positivista.
E isto não acontece por si só! Augusto Comte não evita o problema da
ação, central em todo sistema determinista, examina minuciosamente a ques­
tão "dos limites nos quais está encerrada toda ação política real” (pág. 93).
Evidentemente, a resposta deveria ser a ação política é inútil, pois não poderá
mudar o que quer que seja na marcha irrevogável, invariável, irresistível da
evolução histórica. E, efetivamente, o autor tem fórmulas nesse sentido: “Tudo
está fixado, em política, a partir de uma lei verdadeiramente soberana, reco­
nhecida como superior a todas as forças humanas, já que ela deriva, em última
análise, da natureza de nossa organização (entendamos: a organização do
espírito humano) sobre a qual não se poderá exercer nenhuma ação” (pág.
103). E de evocar a lei da gravitaçâo, contra a qual ninguém pensaria em
empreender uma ação: Bukharin não dirá mais tarde que não se poderia fazer
greve contra um eclipse da lua? Em matéria social igualmente “ninguém é
bastante insensato para se levantar em insurreição contra a natureza das
coisas" (pág. 96).
Mas uma posição tão extrema, apesar de convir perfeitamente à lógica da
construção comteana, não era sustentável pelo reformador social que era Comte,

247
trabalhando apenas para melhorar a sorte dos homens, ser útil ao espaço
humano. Ele se empenhou, portanto, em uma discussão forçada, de onde resulta
que é justificado agir por três razões: 1) saber o que prescreve a lei natural da
evolução permite harmonizar a ação política e, portanto, tornar as mudanças
inevitáveis mais rápidas, apressar o progresso; 2) além disso, o próprio co­
nhecimento contribui para a evolução. Conhecer as leis da história, prever-lhes
os efeitos, não pode ser desprezado ainda que fosse porque existe "uma enorme
diferença entre obedecer à marcha da civilização sem se dar conta disso e
obedecer-lhe com conhecimento de causa” (pág. 96). “Facilita-se sua marcha
esclarecendo-a” (pág. 95). 3) enfim, o conhecimento permite pacificar a história.
A política prática, armada da ciência política, pode “tornar tão amenas quanto
possível as crises inevitáveis” (página 98). Encontra-se, assim, o ponto de partida
da construção de Comte em 1822: “A meta essencial da política prática é,
exatamente, evitar as revoluções violentas que nascem dos entraves mal com­
preendidos trazidos à marcha da civilização” (pág.96). A grande crise revolucio­
nária e suas violências não foram devidas essencial mente “à ignorância das leis
naturais que regulam a marcha da civilização”? (ibid.)
Vê-se bem, por meio dessas considerações, como Comte concebe a ação
política mais como o exercício de um poder espiritual (e que ele chama assim)
do que como prática “politiqueira”; no sábio de 1822 já se projetava o padre
da futura religião da Humanidade. Vê-se também, quanto à confiança na nova
ciência, a atribuição aos “sábios positivos” do "trabalho teórico da reorganiza­
ção social” (pág.73) e do governo moral, a desconfiança com relação à
democracia - a soberania popular estando fundada sobre a crença nefasta de
que todo indivíduo tem um “direito inato” de “se estabelelecer como juiz
supremo das idéias políticas gerais” (ibid.) - orientavam para uma divisão das
tarefas políticas e sociais em que a hierarquia só podia se introduzir.
Evocar o destino posterior da obra comteana ultrapassaria, evidente­
mente, o objetivo destas páginas, e só se poderia lembrar, para referência, as
duas etapas atravessadas a seguir por Comte, primeiro o imenso desvio pela
história e a classificação da ciências3 (a "física social”, logo depois chamada
“sociologia”, podendo apenas ser construída como termo da hierarquia enci­
clopédica), em seguida o abandono da “ilusão objetivista” em benefício da
“síntese puramente subjetiva” e de uma subordinação à moral e à religião (o
filósofo se tornando progressivamente o Grande-Padre da nova Igreja Univer­
sal). Houve regeneração do projeto inicial ou, ao contrário, essas transfor­
mações sucessivas já estavam inscritas nos opúsculos da juventude? Questão
difícil e apaixonante, que aflorará, a seguir, a resposta, que pode, aliás, ser
apenas matizada, mesmo quando os argumentos em favor da continuidade
(que desenvolve principalmente Pierre Arnaud) são fortes. O que importa, por
ora, é interrogar sobre a atualidade do positivismo a partir das idéias forçadas
do Plano, pois esse termo (positivismo) popularizado por Comte é atualmente
utilizado com constância.
Isso foi compreendido, mas é preciso ressaltar enfaticamente que aqueles
que reclamam atualmente do positivismo (a referência é quase universal no

248
caso dos homens de ciência e é mais discutida na ciências sociais) não o fazem
mais no sentido comteano. Como R. Boudon e F. Bourricaud notam, “é em um
sentido que não tem quase nada a ver com a variante comtista que os
sociólogos se dizem hoje em dia positivistas" (Dictionnaire critique de la
sociologie, 1982, pág. 81). Leszek Kolakowski (1976, pág. 11-18) retirou de
maneira luminosa as quatro regras do positivismo contemporâneo enquanto
posição filosófica relativa ao saber humano. Apresentadas de maneira breve,
essas regras são as seguintes: 1) Só existe no mundo fenômenos que se
manifestam, direta ou indiretamente, pela experiência: não existem seres
escondidos,‘“essências” que escapam por natureza ao conhecimento. Uma
proposição científica só pode portanto ser admitida, como o dizia Carnap, se
mantém uma relação com observações possíveis, relação que deve ser caracte­
rizada de maneira apropriada. É o empirismo último de toda ciência, no sentido
moderno. 2) Um saber é sempre necessariamente “abstrato”, permanece, como
escrevia Marx na Introduction, de 1857, “um produto do pensamento”. O
saber utiliza instrumentos conceituais, generalizações, teorias que estruturam
a experiência, mas que não têm nunca equivalentes reais no mundo empíri-
co:eles apenas estruturam, sempre de maneira aproximada, a experiência. Um
conceito não introduz jamais na realidade seres suplementares, pois não existe
nada no mundo que não seja objetos concretos singulares. É o nominalismo
do saber: toda ciência se exprime necessariamente por uma linguagem. 3) Os
julgamentos de valor e os enunciados normativos não têm valor cognitivo. Isso
não quer dizer evidentemente que o sábio não aja em virtude de julgamentos
de valores (só sobre a legitimidade de sua própria atividade científica) ou não
recorra, já que tenta descobrir uma solução científica, à especulação mais
arriscada, mas a conjuntura deve ser sempre, em seguida, confrontada com a
experência. 4) Se as ciências se distinguem, e às vezes muito acentuadamente,
umas das outras, os modos de aquisição do saber —o método científico —é e
deve ser da mesma natureza nas diferentes ciências. Existe uma “unidade
fundamental do método da ciência”.
Mesmo se o positivismo dos sociólogos é raramente tão específico quanto
esse que acabamos de descrever (ele se limita freqüentemente a proposições
gerais sobre a neutralidade necessária, sobre o respeito dos fatos e sobre a
exigência de seriedade metodológica), é incontestável que esse positivismo se
deve mais a Claude Bernard, a Darwin, à Lógica de John Stuart Mill do que a
Comte. O programa comteano constituiu certamente uma primeira versão do
positivismo, mas (mesmo sem evocar a religião positivista que alguém, como
Littré, por exemplo, rejeitou rapidamente para só conservar o “cientismo”,
precisamente) muitos de seus traços não entram mais no quadro contemporâ­
neo. Enumeremos: a concepção unitária e definitiva da ciência (pleiteia-se hoje
em dia a homologia dos métodos dentro de um universo de disciplinas
científicas em constante recomposição), o messianismo científico e o poder
político atribuído aos sábios, a redução de todos os fenômenos a uma lei única
dos “três estados”, a desconfiança com relação à matemática, a concepção de
uma validação empírica da teoria sem referência aos fatos “experimentais”

249
senão em termos gerais, etc. Basta ter Durkheim para se perceber que, desde
o fim do século XIX, a herança de Comte estava rigorosamente delimitada. Se
Durkheim "sempre reconheceu que dependia de Comte”, também multiplicou
as reservas que limitam singularmente a filiação: “Hoje em dia, escreve ele,
restam poucas coisas dos detalhes da doutrina” (pág. III dos Textes reeditados
em 1975), “A sociologia que ele construiu julgou não satisfazer de maneira
nenhuma as condições que ele próprio exigia de toda ciência positiva” (pág.
127). “A sociologia de Comte foi... mais uma filosofia do que uma ciência, na
medida em que ela foi marcada por idéias gerais e por uma certa indiferença
diante dos fatos de detalhes e da pesquisa especializada” (pág. 166). Durkheim
via exatamente, e isso não é mais surpreendente do que a obra de Comte, com
larga margem, que ela só tinha sentido sob o ponto de vista histórico, mesmo
se, de passagem, Comte deu interressantes “lições” de sociologia política, que
só serão compreendidas mais tarde (sobre o erro de querer conceber isolada­
mente das forças sociais o sistema político, sobre o sentido que se deve dar à
ação daqueles homens políticos que obtêm sucesso, sobre o caráter subalterno
para a explicação política da forma de um governo, etc.).
Quanto à posteridade política, era evidentemente outra coisa, já que a
doutrina comteana deixava a possibilidade —mais do que outras, talvez —de
leituras antinômicas (por exemplo, as de Alain e de Maurras). Mas, sem dúvida,
a influência mais importante do positivismo deve ser procurada em outro
lugar, na obra daqueles que viam em Comte, como observava Goblot (1928),
apenas um dos representantes (certamente “muito eminente e original”) de
uma “vasta corrente do pensamento... que o precede, o ultrapassa amplamente
e sobrevive a ele”, e que recorriam ao positivismo republicano, sobre o qual
insiste o livro recente de Nicolet (1982). Esse positivismo, de Gambetta a Ferry
e bem além, não é mais ou não é totalmente comtista e só retém da herança a
fórmula da política científica: apoiar (e o verbo pode tomar múltiplas acepções)
a ação política sobre uma ciência do social.
Mas existe um último ponto, capital, que a interrogação sobre a política
de Comte deve abordar, o do determinismo e daquilo a que este determinismo
obriga, pelo estratagema de um historicismo, tratando-se da filosofia política.
Aqui também, o importante é sublinhar que um abismo separa o deter­
minismo comteano do determinismo sociológico contemporâneo (pelo menos
aquele que parece ser o único coerente ao autor destas linhas). Para Comte, a
história obedece a uma lei, essa lei é conhecível e será cada vez mais bem
conhecida. A marcha da história é inalterável quanto ao fundo, a ação humana
pode modificar-lhe a forma, tornar, por exemplo, mais rápidas e menos
contundentes as evoluções. A teoria sociológica contemporânea, reencontran­
do em outro lugar uma tradição filosófica totalmente diferente, defende uma
posição que não está longe de ser exatamente o inverso daquela de Auguste
Comte. A concepção atual do determinismo não tolera mais, como Comte,
essas distinções arbitrárias entre fundo e forma; a ciência - incluindo a ciência
social —só se pode basear sobre um determinismo absoluto. Cada ato de cada
indivíduo a cada instante concreto está totalmente determinado. Nenhum

250
acontecimento escapa à determinação, o universo de hoje é integralmente
produzido por aquele de ontem. Mas passar, assim, de um determinismo que
hesita em dar o último passo, como o de Comte, para um determinismo
absoluto, implica direções muito afastadas do que se poderia acreditar (e
temer). De um lado, precisamente porque o determinismo é absoluto, a
determinação não é mais - nem pode mais ser - elucidável. A determinação
de um acontecimento é o resultado do jogo de uma variedade de determi­
nações de todas as naturezas e de todos os estatutos: efeitos de situação,
conseqüências dos fenômenos morfológicos, lógicas dos comportamentos
individuais, encaixe de séries aleatórias... Para o sociólogo, o mundo é total­
mente determinado, mas a soma concreta das determinações de um aconteci­
mento não pode por natureza ser conhecida (só pode existir uma inteligibili­
dade muito parcial e sempre mutilante). Essa posição é diametralmente oposta
à de Comte: um determinismo absoluto impedido de dizer que o universo atual
é necessário, que é o único possível. De um momento para outro, existe uma
infinidade de mundos possíveis (basta que duas séries de determinações se
encontrem de maneira aleatória para que a evolução do mundo mude: basta
um atentado contra um homem de Estado obter sucesso ou fracassar pelo jogo
de um microorganismo e o mundo mudará), mas existe sempre apenas um
único mundo que se realiza. Em outras palavras, e encontra-se aqui évidente-
mente uma posição filosófica clássica, o mundo é, ao mesmo tempo, totalmente
determinado e contingente. Ultima conseqüência: não se poderia ter, nesta
análise, lugar para a concepção segundo a qual a sociedade racional se
desenvolve por um processo necessário encarnando-se na história. Com efeito,
se o real é integralmente determinado, não é necessário nem redutível a um
sistema explicativo universal. Além disso, o desenvolvimento do mundo sendo
em grande parte imprevisível, o sábio não pode ter vocação, enquanto sábio,
para dirigir um universo do qual ele não pode prever o curso. Quanto à ação
política, ela não é mais desprovida de fundamentos. Se se admitir que não há
nem nunca haverá nenhum meio de saber qual será o resultado de um ato
político (ou que se saberá apenas com um grau de incerteza importante e
irredutível), o fato de esse ato ser além disso totalmente determinado não tira
seu sentido para a ação e não impede em nada empreendê-lo. Da mesma
maneira, o determinismo sociológico restitui todo o valor e o significado da
filosofia social: a ciência, pela natureza do determinismo utilizado no mundo,
não pode nem poderá jamais dar um sentido à existência humana e coletiva.
Ora, sem esse “encantamento do mundo”, a vida humana seria de natureza
totalmente diferente. Ciência e filosofia são, portanto, duas atividades das quais
a segunda nasce (lógica, e não cronologicamente) devido ao fato mesmo de a
primeira ter, ao mesmo tempo, vocação para prestar contas da totalidade das
atividades do universo e só o poder fazer retrospectivamente e sem jamais
conseguir chegar lá.
Comte conseguiu, em termos totalmente diferentes, chegar à constatação
do fracasso inevitável dessa ciência positivista que ele pleiteava no tempo do
Plano de 1822 e que devia permitir “dirigir para uma meta geral de atividade

251
todas as ações humanas” (pág. 63)? As hesitações dos anos de 1820 sobre a
possibilidade da ação política, as mutações posteriores do comtismo, da ciência
à filosofia e da filosofia à religião, puderam fazê-lo pensar, e o reformador social
abandona a ciência para encantar o mundo.

• Além do P la n o (do qual existe uma reedição -separada com uma apresentação de Angèle
Kremer-Marietti, A u g u ste C o m te e t la S cien ce p o litiq u e , Aubier-Montaigne, 1970), as principais
obras de Auguste Comte são, com a data da primeira edição: C o u rs d e p h ilo s o p h ie p o s itiv e ,
1830-1842; D isc o u r s s u r l e s p r i t p o sitif, 1844; D isc o u rs s u r 1’e n se m b le d u p o s itiv is m e , 1848;
S y s tè m e d e p o litiq u e o u T ra ité d e S o c io lo g ie in s titu a n t la R e lig io n d e 1'H u m an ité, 1851-1854
(o primeiro volume comporta o discurso sobre o conjunto do positivismo, o quarto volume
reproduziu em apêndice os seis “opúsculos primitivos do autor sobre a filosofia social" entre os
quais está o P la n o de 1822); C a té c h ism e p o s itiv is te , 1952: T e s ta m e n t d ’A u g u ste C o m te
(póstumo, 1884). Dessas obras existem várias reedições modernas e numerosas edições parciais
e antologias.

► Alain, Id ées, In tro d u c tio n à la p h ilo so p h ie . P laton , D escartes. H egel, C om te, P. Hartmann,
1947 (reedição 10/18, 1964); Pierre Arnaud, P o litiq u e d ’A u g u ste C o m te, Bordas, 1969; Idem,
S o c io lo g ie d e C o m te , PUF, 1969; Idem, L e “N o u v e a u Dieu", P r é lim in a ir e s à la p o litiq u e
p o sitiv e , Vrin, 1973; Raymond Aron, L es é ta p e s d e la p e n s é e s o c io lo g iq u e , Gallimard, 1967;
Emile Durkheim, T extes, I, É lém e n ts d 'u n e th é o rie so c ia le , V. Karady ed., Ed. de Minuit, 1975;
Edmond Globot, prefácio de M. Uta, L a th é o rie du s a v o ir d a n s la p h ilo s o p h ie d ’A u g u ste C om te,
Alcan, 1928; Henri Gouhier, L a vie d ’A u g u ste C om te, Gallimard, 1930; Idem, L a J e u n e ss e
d 'A u g u ste C o m te e t la fo rm a tio n du p o s itiv is m e , Vrin, três tomos: S o u s le s ig n e d e la lib erté,
1933, S a in tS im o n j u s q u ’à la R e sta u ra tio n , 1936, reedição 1964, A u g u ste C o m te e t S a in t-S i-
m o n , 1941, reedição 1970; Sarah Kofman, A b e rra lio n s: le d e v e n ir-fe m m e d ’A u g u s te C om te,
Aubier-Flammarion, 1978; Leszek Kolakowski, L a p h ilo s o p h ie p o s itiv is te , Denoèl-Gonthier,
1976; Angèle Kremer-Marietti, L e p o sitiv ism e , PUF, 1982; Idem, L e c o n c e p t d e S cien ce p o sitiv e ,
S e s te n a n ts e t s e s a b o u tiss a n ts d a n s les s tru c tu re s a n th ro p o lo g tq u e s d u p o s itiv is m e , Klin-
cksieck, 1983; Lucien Lévy-Bruhl, L a p h ilo s o p h ie d 'A u gu ste C o m te, Alcan, 1900; Émile Littré,
C o n serva tio n , ré v o lu tio n e t p o s itiv is m e , Lagange, 1852; \dem ," A ugu ste C o m te e t la p h ilo s o ­
p h ie p o s itiv is te , Hachette, 1863, Idem, A u g u ste C o m te e t S tu a rt MM , Baillière, 1866; Herbert
Marcuse, R a iso n e t révo lu tio n , Ed. de Minuit, 1968; Charles Maurras, L 'a ven ir d e V in telligen ce,
Nouvelle Librairie Nationale, 1976; Idem, R o m a n tis m e e t ré v o lu tio n , Nouvelle Librairie Natio-
nale, 1922; Conde Léon de Montesquiou, L e s y s tè m e p o litiq u e d'A u g u ste C om te, Nouvelle
Librairie Nationale, 1907; Claude Nicolet, L ’id é e r é p u b lic a in e e n F ran ce, E ss a i d ’h isto ire
c ritiq u e , Gallimard, 1982; Kenneth Thompson, A u g u ste C om te, The F o u n d a tio n o f S o c io ío g y ,
London, T. Nelson, 1976; W. M. Simon, E u r o p e a n P o sitiv is m in th e N in e te e n th C e n tu ry: A n
E s s a y in In te lle c tu a l H isto ry, Cornell University Press, 1963.

Pierre FAVRE.

NOTAS
1, As referências de nossas citações remetem à reedição, pelo própio Comte do P la n o , no
“apêndice geral” do S y s tè m e d e p o litiq u e p o sitiv e , tomo IV, 1854, págs. 47-136.
2. Esse tema, de um desenvolvimento ininterrupto do espírito, poderia fazer pensar em

252
Hegel, e existem certamente alguns pontos de encontro entre o comtismo e o hegelianismo. Mas
a influência de Hegel sobre Comte pode ser apenas muito indireta. Comte decidiu bastante
rápido (por volta de 1822) que lhe era indispensável, para salvaguardar a originalidade e a
homogeneidade de seu sistema, abster-se de toda leitura que tivesse uma relação, mesmo que
longínqua, com suas pesquisas. Mais tarde, por volta de 1838, se impedirá também de ler todos
jornais e revistas. Nesse aspecto, Comte está evidentemente do lado oposto da ciência moderna,
fundada sobre a integração e a avaliação permanentes das pesquisas concorrentes tendo o
mesmo objeto. Ele pôde, assim, escrever que “nunca leu, em nenhuma língua, nem Vico, nem
Kant, nem Hegel” e que “só conhecia suas diversas obras a partir de algumas relações indiretas
e certos extratos bastante insuficientes" (pág. 479 do tomo 2 da reedição do Cours, Hermann
editor, 1975). A influência determinante continua a ser a de Condorcet, estudado por Comte
muito antes.
3. Lembraremos que Comte solicita em vão a Guizot, em 1833, uma nomeação para uma
cadeira de história geral das ciências físicas e matemáticas no Colégio de França.

CONDORCET, Marie Jean Antoine CARITAT, Marquês de, -1743-1794


Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano

O Esquisse d'un Tableau historique des Progrès de VEsprit humain


(Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano) é, ao
mesmo tempo, a última e a única obra escrita por Condorcet facilmente
acessível ao leitor moderno. Enquanto os outros trabalhos do filósofo, com
raríssimas exceções, não foram editados desde 1849, data da segunda e última
publicação das obras completas de Concorcet, o Esboço, sozinho, teve mais de
vinte edições desde a primeira, publicada no terceiro ano à custa da Conven­
ção, até a edição Vrin de 1970, à qual nós nos referimos aqui.
A sorte privilegiada que a posteridade reservou a esse pequeno volume
parece ter duas causas essenciais. Antes de tudo, Concordet, muitas vezes
apresentado como filósofo de segunda categoria, teria conseguido, nessas
poucas páginas, a síntese perfeita das correntes do pensamento do século
XVIII. O Esboço, por conseguinte, não continha nenhuma originalidade, e seu
valor residia inteiramente no fato de constituir um quadro sinótico da filosofia
das Luzes (Condorcet, 1970, pág. VII), uma espécie de resumo filosófico.
Enfim, as circunstâncias da redação do Esboço contribuíram para destinar a
esse texto uma posição absolutamente especial. No dia 8 de julho de 1793,
denunciado à tribuna da Convenção pelo ex-capuchinho Chabot, Condorcet
fugiu e encontrou asilo na casa de amigos. Pelo texto responsável por sua
proscrição, ele incitava o povo contra a Convenção depois da adoção da
Constituição montanhesa de 24 de junho de 1793. Posto fora da lei, Concorcet
redige sua obra mais célebre durante os nove meses que dura sua reclusão
voluntária. Para ele, que recusa o exílio, a única saída é a morte, e ele sabe
disso. A redação do Esboço constitui exatamente “este desafio sublime ao reino
da morte” evocado por Michelet. Só “esse quadro da espécie humana, liberta

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de todas suas correntes, livre do império do acaso, assim como daquele dos
inimigos de seus progressos, e caminhando com passos firmes e seguros na
estrada da verdade, da virtude e da felicidade, apresenta ao filósofo um
espetáculo que o consola dos erros, dos crimes e das injustiças com os quais
a terra está ainda maculada e dos quais ele foi muitas vezes a vítima” {Esquisse,
1970, págs. 238-239). A lenda quer que Condorcet tenha redigido essa obra
sem rascunho (notas prévias) e sem obras de referência, já que, terminada sua
tarefa, deixou voluntariamente seu abrigo e foi ao encontro da morte. A
realidade sendo outra, como veremos, não tira nada da beleza do Esboço nem
a grandeza do espírito que a concebeu.
As numerosas edições que essa obra teve poderiam deixar compreender
que se trata de um texto cujo valor didático e a intensidade emocional,
certamente, não se evaporaram com o passar do tempo, mas que, de agora em
diante, não nos oculta mais nada. É totalmente paradoxal constatar que não
existe, hoje em dia, nenhuma edição que se possa qualificar de completa. O
texto que a maioria das edições reproduz, não é o Esboço, mas o seu prospecto.
Realmente, Condorcet, em sua reclusão, escreveu apenas uma espécie de plano
detalhado, um esboço da obra que projetava escrever. A dimensão dessa é
sugerida por alguns fragmentos redigidos pelo filósofo e raramente editados
em complementação ao prospecto. A abundância e o valor dos manuscritos de
Condorcet relativos ao Esboço são tais, que se explica mal tal carência. A parte
dos arquivos correspondente ao prospecto e aos fragmentos existe em vários
exemplares. Guardados inicialmente pela Senhora Condorcet e depois por sua
filha, esses folhetos foram entregues desde 1832 à biblioteca privada do
Instituto a fim de facilitar para Arago, então secretário perpétuo, a preparação
da segunda edição das obras completas. Uma segunda parte dos manuscritos
do Esboço foram entregues à Biblioteca Nacional pelo secretário do filósofo,
Cardot, em 1812. Ela é constituída de notas correspondentes a diferentes
períodos da redação do Esboço. Esses documentos, que têm um certo inte­
resse, foram indicados pela primeira vez por Léon Cahen, em 1893, mas nunca
foram utilizados para conduzir a uma boa edição crítica do Esboço.
O manuscrito do prospecto propriamente dito foi terminado e datado
pelo próprio Condorcet em 4 de outubro de 1793, isto é, seis meses antes da
prisão e da morte do filósofo. Se Condorcet deixou seu refúgio para ir ter com
a morte, foi deixando uma obra inacabada. Durante os seis últimos meses de
sua vida, Condorcet redigiu alguns dos fragmentos já citados do Esboço, em
particular o fragmento sobre a Atlântida cujo título faz referência explícita à
Nouvelle Atlantide de Francis Bacon, obra igualmente inacabada. A vestimenta
que a tradição impôs ao que se conveio chamar de Esboço ignora esse tipo de
detalhes. Qualquer que seja o texto, tal como ele é habitualmente apresentado,
merece interesse por si só. "Esse quadro... deve apresentar a ordem das
mudanças, expor a influência que cada instante exerce sobre o instante que
lhe sucede e mostrar assim... a marcha que [a espécie humana] seguiu, os
passos que "ela deu em direção à verdade e à felicidade. Essas observações
sobre o que o homem foi, sobre o que ele é hoje em dia conduzirão em seguida

254
aos meios de assegurar os novos progressos que sua natureza lhe permite
esperar ainda" (Condorcet, 1970, pág. 2). O filósofo definiu, assim, a meta de
sua obra. As dez épocas que compõem o Esboço são reagrupadas pelo próprio
autor em três grandes partes. A primeira reúne as épocas sobre as quais
“estamos reduzidos a adivinhar” (ibidem, pág. 8) a maneira pela qual o homem
progrediu. Essas três primeiras épocas são tratadas de maneira sucinta. A
segunda parte é composta das seis épocas seguintes. Nesse ponto “o quadro
começa a se apoiar em grande parte sobre a seqüência dos fatos que a história
nos transmitiu” (ibidem). Ela trata dos progressos do espírito humano, da
invenção da linguagem escrita alfabética até a República Francesa. O quadro
é, então realmente histórico: “Basta reunir, ordenar os fatos e demonstrar as
verdades úteis que nascem de seu encadeamento e de seu conjunto” (ibidem,
pág. 9). A terceira parte, enfim, é constituída somente pela décima época, a dos
progressos futuros do espírito humano, aquela das nossas esperanças. Essa
última época não pertencia ao projeto inicial do autor e foi redigida durante
seu período de reclusão. Ela desempenha um papel singular dentro do Esboço
e catalisou as críticas vindas de horizontes filosóficos os mais opostos. Essas
poucas páginas sozinhas teriam assegurado o lugar que o Esboço ocupa dentro
da história da filosofia política. Aí reside o sopro profético que inquieta Bonald
e está indicado o princípio de perfeição indefinida do homem que tanto irritou
Comte.
Em um suplemento da Théorie du pouvoir politique, Bonald opõe-se à
obra póstuma de Condorcet com um senso agudo de análise. A virulência de
sua crítica visa sobretudo à décima época de Esboço, aquela em que “o autor
divulga de maneira profética... Reaproximando essa última parte do Esquisse
des Progrès de L ‘E spirit humain dos escritos filosóficos que o haviam
precedido, escritos dos quais a Declaração dos Direitos é a análise, e a
República Francesa, a aplicação, pode-se olhar a obra de Condorcet como o
Apocalipse desse Novo Evangelho” (Bonald, 18591, pag. 721). Essa leitura faz
do Esboço um ato de guerra cujo verdadeiro autor é a filosofia e cuja vítima é
a sociedade inteira. O Esboço constitui “a última produção da filosofia no
processo que ela intentou à sociedade” (Bonald, 1859, pag. 723). Bonald não
vê aí a demonstração da existência de qualquer lei histórica dos progressos do
espírito humano. Segundo ele, Condorcet dá conta de uma investigação
ousada, destinada a colocar em dia “aqui e ali algum pensador que tenha
negado a existência de Deus, e a atacar a monarquia e a religião, para fazer
dele um dos pais de sua religião” (Bonald, 1859, pag. 722). Em resumo,
Condorcet teria concebido mais um quadro dos erros, e se Bonald concorda
em pensar que a Revolução Francesa marca uma virada essencial da história
da humanidade, ele precisa que a descrição da sociedade pintada pelo filósofo
das Luzes não tem nada de tranqüilizador para o futuro. Condorcet, para ele,
não é o campeão do otimismo e do determinismo triunfantes, muitas vezes
descrito pela historiografia revolucionária. É claro que Condorcet afirma a
vocação da espécie humana para a felicidade, “mas também contanto que
possamos nos servir de todas nossas forças” (Condorcet, 1970, pág.12). A

255
ferroada da inquietude e a liberdade das ações humanas determinarão os
progressos futuros do espírito humano. A décima época será tal como os
homens a farão, um único ponto permanece adquirido para Condorcet desde
a invenção da imprensa uma volta às trevas do obscurantismo lhe parece
impossível.
A leitura que Auguste Comte faz do Esboço, e, 1817, esclarece outras
dimensões dessa obra, demorando-se também mais tempo na análise da décima
época. A influência que teve essa meditação do Esboço sobre a gênese do
positivismo pode parecer suficientemente importante para que certos pesqui­
sadores não hesitem em repelir a paternidade de Saint-Simon em proveito da
de Condorcet, proclamado “verdadeiro pai espiritual do positivismo”. O co­
nhecimento do pensamento de Condorcet que Comte prova ter ao longo de
toda sua vida parece não se reportar apenas ao Esboço. Em 1819, na Revue
Occidentale, ele escreve um ensaio intitulado "Sur les travaux politiques de
Condorcet’’(Sobre os trabalhos políticos de Condorcet). Esse artigo tem como
finalidade explícita elucidar um paradoxo: como, enquanto tentava “fundar a
ciência social sobre uma teoria matemática” (Comte, 1970, pág. 483), Condor­
cet pôde empreender “um trabalho que tinha como finalidade observar a
marcha geral do espírito humano e da civilização”? (ibidem). Uma coexistência
tão antinatural só pôde se manter, segundo Comte, por causa da execução
viciosa de um projeto inicialmente brilhante. “Qualquer elogio que se possa
fazer da idéia geral de Condorcet, da empreitada concebida e projetada por ele,
estará sempre muito abaixo da verdade” (ibidem, pág. 484). Todavia, a maneira
pela qual Condorcet conduziu seu trabalho lhe parece totalmente inadequada
por três razões que já cercam a análise de 1819 e que aprofundará o estudo
posterior contido no Plan des travaux scientifíques nécessaires pour réorga-
niser la société, publicado em 1822.
Primeiramente, a divisão em dez épocas, determinada por Condorcet,
seria errônea por não estar distribuída em função do sistema de idéias mais
importante, nesse caso o das idéias morais e políticas. O Esboço descreve uma
espécie de “milagre perpétuo, e a marcha progressiva da civilização torna-se
um efeito sem causa” (Comte, 1830). Mais do que observar a marcha da
civilização, Condorcet a julga, o que o conduz, por exemplo, a desconhecer a
importância da aparição do Cristianismo para a humanidade.
Enfim, a última e a mais importante censura que Comte endereça esse
autor diz respeito à décima época, a que trata do futuro da humanidade.
Comte, longe de censurar a ousadia desse projeto, vê nele “a única visão
filosófica de grande importância introduzida por Condorcet na execução de
seu trabalho" (ibidem, pág. 305). Não é o aspecto ambicioso da empresa que
contraria Comte, pois ele afirma que “toda ciência tem por finalidade a
previsão” (ibidem). A falta de observação com a qual ela foi executada o
aborrece, mas é principalmente o fato de ela conter a afirmação do princípio
de uma perfectibilidade indefinida do espírito humano que lhe desagrada. Essa
fé em uma perfeição indefinida, “nos dois sentidos em que o termo é suscetível
de ser entendido” (Condorcet, 1970, pág. 237), vai conduzir Condorcet “à vã

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contemplação das esperanças mais quiméricas e até as mais absurdas” (Comte,
ibidem). Para Comte, a humanidade é suscetível de aperfeiçoamento, mas esta
capacidade de aperfeiçoamento é e deve ser definida: essa é a tarefa reservada
à ciência positiva. “Se, em resumo, a política não se tiver transformado em
positiva, é preciso atribuir isso em grande parte ao fato de que o Esboço
traçado por Condorcet foi executado dentro de um espírito absolutamente
contrário à finalidade do trabalho. Ele desconheceu inteiramente as condições
mais essenciais, de tal modo que a obra precisa ser refeita em sua totalidade”
(Comte, 1970, pág. 297).
Até em seus escritos mais tardios, Comte continua a saudar Condorcet
como seu pai espiritual, mesmo quando acrescenta a seu panteão pessoal o
nome de Kant, que ele descobre em 1824. No entanto, a leitura que faz do
Esboço é cada vez mais redutora. Em 1840, em seu curso de filosofia positiva,
Comte atribuiu as insuficiências do “infortunado Condorcet” ao deplorável
espírito revolucionário do qual o infeliz não soube se desfazer. Os sucessores
de Comte adotarão essa atitude condescendente com relação a Condorcet.
Assim, fazendo dele um de seus pais fundadores, mas ocultando a ambigüidade
de seu pensamento, o positivismo relegou Condorcet à categoria de filósofo de
segunda classe.
Quanto ao Esboço, a escola positivista continuou a se referir a ele como
a uma obra primordial, mas não a conhecendo profundamente. Comte deixou
uma leitura do Esboço com a qual a tradição filosofia francesa se contentou
até nossos dias, mas que não poderá satisfazer todo leitor atento, como provam
os trabalhos de Keith M. Baker.

• E sq u isse d ’u n T ableau h isto r iq u e d e s P ro g ré s d e V E sprit h u m a in (1794), Paris, Vrin, texto


revisto e introduzido por O. H. Prior, nova edição apresentada por Y. Beleval, 1970; O eu vres
c o m p lê te s, Paris, Arago 0 ’Connor, 1847-1849, 12 volumes.

► Léon Cahen, Um fragmento inédito de Condorcet na R e vu e d e m é ta p h y siq u e e t d e m o ra le,


Paris, 1893; Louis de Bonald, O e u v re s C o m p lê tes, Paris, Migne, 1859, tomo I; Auguste Comte,
O e u v re s C o m p lê te s, Paris, Mouton, introdução de Benedo Carneiro et Amaud, 1970; Idem,
C o u rs d e p h ilo s o p h ie p o s itiv e . Paris, 1830-1842,47! lição; Idem, Sur les travaux potiliques de
Condorcet, 1819, na R e v u e o c c id e n ta le p h ilo so p h iq u e, s o c ia le e t p o litiq u e , segunda série, II
(1895), pág.1-124; Keith Michael, Baker, C o n d o rcet: from n a tu ra l p h ilo s o p h y to s o c ia l m ath e-
m a tics, Chicago, Chicago University Press, 1975; Catherine Kinzler, C o n d o rce t, 1’In stru c tio n
p u b liq u e e t la n a iss a n c e d u c ito y e n , Paris, Le Sycomore, 1985.

Marie Claude ROYER

257
CONSTANT, Benjamin, 1767-1830
P rincípios de política aplicáveis a todos os governos, 1 8 0 6

Entre todas as obras contidas no presente volume, os Príncipes de


politique applicables à tous les gouvernements (Princípios de política apli­
cáveis a todos os governos) apresentam a particularidade digna de nota de só
se ter tornado acessível para nós muito recentemente, em sua primeira e
completa forma, tal como Constant os redigiu nos primeiros meses de 1806.
Conhecemos amplamente sua matéria, mas sob formas de segunda mão e
dispersas, pelos múltiplos reaproveitamentos que o autor tirou do manuscrito
inicial durante sua carreira política sob a Restauração - entre os quais um
livro, em 1815, por ocasião de episódio mais controvertido de sua vida política,
sua colaboração com Napoleão durante os Cem Dias, em que retoma o título,
modificado simplesmente por um acréscimo (Príncipes de politique applica­
bles à tous gouvernements représentatifs, et particulièrement à la Cons-
titution actuelle de la France), mas no qual reutiliza apenas parcialmente o
primeiro texto. A divulgação dos originais de Constant, em Lausanne e em
Paris, nos revelou a importância desse estoque primitivo no qual o que
conhecíamos de sua obra foi enxugado, deixando apenas o essencial. Corrigiu
a imagem de um homem perseguido por suas retratações infelizes, fazendo
sobressair, ao lado das sinuosidades e dos desvios de sua carreira, uma
fidelidade, jamais desmentida, do pensador a um sistema de convicções e de
idéias logo suspensa. E já que dispomos desde 1980 de uma edição do texto
original, parece que se impõe a necessidade de tomá-la daqui para frente como
referência —de recolocá-la, em suma, no lugar das obras que durante muito
tempo a substituíram. Esse texto original reúne dentro de um desenvolvimento
unificado os principais temas da reflexão de Constant sobre os “verdadeiros
princípios da liberdade”: limitação necessária da autoridade social e diferença
da liberdade dos Modernos para a liberdade segundo os Antigos. Assim, somos
levados a considerá-lo como o primeiro clássico do pensamento liberal em seu
estado propriamente contemporâneo: o que foi criado pela obrigação de pensar
sobre o reconhecimento do acontecimento fundador da modernidade política:
a Revolução Francesa.
Os Princípios de 1806 não são menos uma obra de circunstância do que
suas reutilizações posteriores. Constant acredita ter percebido um afrouxa­
mento calculado do despotismo napoleônico. Ele se precipita para a abertura
entrevista e redige apressadamente seu tratado, para finalmente ter de conser­
vá-lo retido em seu poder, suas esperanças tendo rapidamente se desvanecido.
O contexto explica a limitação do texto. Estava excluída a hipótese de o aperto
de ferro da censura imperial, mesmo ligeiramente afrouxado, deixar passar
uma discussão livre sobre os méritos comparados das diferentes espécies de
regime. Assim, toda consideração relativa aos mecanismos políticos foi des­
cartada em prol do exame de um dado mais profundo: "Existem (...) princípios
políticos independentes de toda constituição (...) aplicáveis sob todos os tipos

258
de governo, que não atacam as bases de nenhuma organização social, compa­
tíveis com a realeza e com a república, quaisquer que sejam as formas de uma
ou de outra” (PP, pág. 21). A restrição circunstancial contribui, no caso, para
pôr a nu uma idéia essencial. Ela não realça apenas uma consideração de
oportunidade mais ou menos mutilante, emprega também uma autêntica
convicção de base. O ponto determinante da ordem política não são as formas
institucionais, são as normas reguladoras da articulação central do fato
coletivo, a saber, a relação entre o Estado e a sociedade. Uma vez adquiridos
os justos princípios concernentes às atribuições e às limitações da autoridade,
o resto virá junto - assim como na situação inversa, a lição da Revolução é
precisa sobre isso, constituições que reclamam teoricamente falta de liberdade
podem abrir passagem para uma tirania de fato, por falta de uma definição
firme das condições efetivas da liberdade. Daí o uso da estratégia política,
baseada na indiferença relativa, pela identidade dos regimes que conduzirá
Constant a suas célebres variações. Em 1806, portanto, não há ataque frontal
ao despotismo estabelecido, mas um questionamento da base, sob a capa de
submissão aparente. Um regime integralmente eletivo é possível, o autor está
convencido disso, traçou seu plano, mas por que não a monarquia cons­
titucional, se ela comporta garantias relativas ao exercício dos direitos funda­
mentais que a tornarão mais liberal do que muitas repúblicas? E por que não
até mesmo o Império, como em 1815, se o tirano desprezado de ontem
consentir em se unir a compromissos que o levarão muito além daquilo que
ele pensa ter concedido? Nesse ponto, a rigorosa fidelidade do teórico a si
próprio reúne-se perigosamente às sinuosidades oportunistas do político...
Não é que Constant esteja desinteressado das questões constitucionais.
Pelo contrário. Elas constituíram a outra grande fonte de sua reflexão política.
E seu legado sobre o assunto permanece a parte mais desconhecida de sua
obra. Temos dele, sobre esse assunto, o manuscrito, ainda inédito, de um livro
importante que figura em seus documentos sob o título de Fragments d ’un
ouvrage abandonnésur la possibilite de la constitution républicaine dans un
grandpays. (Fragmentos de uma obra abandonada sobre a possibilidade da
constituição republicana em um grande país). A experiência revolucionária
deixa duas questões em aberto —as duas grandes questões que estão na origem
do pensamento desse autor e às quais se esforçam por responder de maneira
sistemática essas duas obras do período de 1802-1806: a questão das condições
internas de viabilidade de um regime representativo (nos Fragments sur la
possibilité de la constitution républicaine) e a questão da compatibilidade
prática da liberdade com a soberania do povo (nos Príncipes de politique). Em
linguagem da época, poder-se-ia dizer, a questão da anarquia, a questão do
despotismo. “A natureza e a história se reunirem apenas para estabelecer uma
grande república é coisa impossíveL.Não pode existir uma grande nação livre
sob um governo republicano”: essa é a objeção peremptória que Joseph de
Maistre opôs em 1797 à ambição revolucionária. Não é preciso se enganar
neste caso, dentro do contexto em que ela foi formulada, a crítica procede. É
indispensável responder-lhe. Primeiro sobre o plano do esclarecimento dos

259
princípios do governo representativo com relação ao modelo da democracia
direta à antiga, dentro do quadro restrito da cidade. Em seguida sobre o plano
da governabilidade intrínseca do regime de assembléia. Entre usurpação e
fraqueza, o exemplo das assembléias revolucionárias não é encorajador a esse
respeito. Problema em forma de quadratura do círculo: como controlar o
incontrolável? E o drama do poder por representação: uma vez constituído, um
poder delegado escapa ao domínio da coletividade da qual ele emana. Será que
sofre bloqueio interno? Ela não é culpada. Afasta-se de seu mandato, atribui-se
prerrogativas sem medidas compatíveis com suas atribuições? Ele tem a seu
favor a força e a legitimidade. Afora as vias extraordinárias da revolta ou do
golpe de Estado, só resta suportar este mal com paciência. Como prevenir os
abusos da representação nacional, como remediar suas disfunções ou sua
paralisia, como velar pela correspondência contínua de sua ação ao sentimento
da nação quando todos os poderes são igualmente eletivos e nenhum tem
sobre os outros a menor superioridade arbitrai? Não há bom funcionamento
do sistema representativo sem uma maneira de arbítrio entre os representantes
e os representados. É o que Constant se esforça em instalar, em seu projeto
constitucional, sob o nome de “poder neutro ou preservador”.
A idéia se inscreve na linha do “júri constitucional” preconizado por
Sieyès desde os debates sobre a Constituição do ano III, em função do mesmo
diagnóstico da doença infantil do parlamentarismo francês que Constant
apenas esclarece e desenvolve. Nós apenas começamos a compreender, por
motivos que se atêm aos desenvolvimentos contemporâneos do fato democrá­
tico, a perspicácia desses primeiros julgamentos e o alcance dos remédios
propostos. Pois, para resumir, a estabilização recente dos regimes repre­
sentativos obedeceu, de fato, ao espírito das soluções preconizadas por nossos
augúrios. No caso de Constant, esta apreciação do problema subentende a
maneira pela qual ele se acomodará à monarquia constitucional em seguida e
a visão de seu funcionamento que ele tentará fazer prevalecer. Por que não
um poder real, se esse, mediante uma sábia restrição de suas atribuições, dá
forma ao indispensável poder neutro? “Entre a monarquia constitucional e a
república, a diferença está na forma, ele escreverá. Entre a monarquia cons­
titucional e a monarquia absoluta, a diferença está na base” (Constant, 1818,
III, pág. 61). A polarização posterior do debate em torno da alternativa
monarquia/república tornará, por muito tempo, obsoleto esse tipo de reflexão.
E, no entanto, estamos nos dando conta de que no interior do republicanismo
mais rigoroso foi a a incorporação de um certo elemento monárquico que
permitiu ocasionar ao poder eletivo uma representatividade mais satisfatória.
Existe aí todo um novo futuro para o pensamento do autor, cuja retomada sob
esse ângulo, com razão, foi apenas estimulada.
Segunda questão, mais fundamental ainda, deixado à reflexão política
pela Revolução e seus seguidores: a questão do perigo da alienação radical da
soberania inerente ao próprio princípio da soberania do povo. Em certo
sentido, ela não passa de um caso de aspecto extremo da primeira. Como
impedir que a redução da influência da nação sobre seus representantes

260
chegue até a expropriação pura e simples e à “opressão do povo em nome de
sua soberania”? Esse foi o caso, no auge do processo revolucionário, do terror
jacobino, da tirania de um partido; e esse foi também o caso, no refluxo do
movimento, da ditadura de Bonaparte, da concentração do poder nas mãos de
um único homem. Nesse caso, não é mais por meio de um mecanismo
constitucional que se pode prevenir o mal de maneira válida. É um caso de
princípios e é sobre o plano dos princípios que se deve combatê-lo. O problema
é o da essência da autoridade legítima. Para reunir numa só fórmula a posição
de Constant, é o da extensão geral que se emprestou indevidamente à vontade
geral. Desde que se admita a existência de um poder que se estenda a tudo por
proceder de todos, torna-se impossível impedir que não se encontre em um
momento ou outro voltado contra aqueles que supõem se exprimir por seu
intermédio. Só existe uma única solução prática, que é a de denunciar o
sofisma constitutivo dessa autoridade absoluta e de fazer reconhecer o caráter
limitado de toda soberania. Esse é exatamente o objeto dos Príncipes de
politique em sua versão de 1806.
O combate se estabelece sobre duas frentes. Certamente ele é contra o
rumo terrorista do republicanismo extremo. Mas ele é primeiro contra a
rejeição do próprio princípio da soberania do povo em nome dos exageros que
ele acarretou em 1793. O que foi feito, então, em nome da vontade do povo
não libera sua essência fatal e não condena de maneira nenhuma a idéia. Sobre
esse ponto, o autor é muito mais claro do que seus sucessores na tradição
liberal que acreditarão sair dessa dificuldade fazendo economia ou decretando
a dissolução, da noção de soberania. Já que ele parte de Rousseau como o
pensador-origem e o principal inspirador do acontecimento, toma cuidado em
distinguir dois elementos em sua doutrina. Um primeiro, que ele aceita,
relativo à “fonte da autoridade social": “Toda autoridade que governa uma
nação deve ser emanada da vontade geral” (pág. 22). Um segundo, que ele
recusa, relativo à “extensão da autoridade social”: “A vontade geral deve
exercer sobre a existência individual uma autoridade delimitada” (pág. 25).
Deixemos de lado a validade filológica dessa interpretação de Rousseau —é
claro que ela é problemática. Limitemo-nos à questão da coerência básica dessa
atitude. Sua coerência prática não traz dificuldades: é evidentemente possível
receber “a Revolução sem o Terror” (Furet, 1981) e reivindicar suas conquistas
políticas dissociando-as do escorregão jacobino. É a posição que Constant
adotou desde Thermidor e sobre a qual não variará. Resta saber se a esta
coerência política, traçando uma linha nítida de divisão no seio da herança
revolucionária, corresponde uma autêntica coerência filosófica. Independente
da carta das proposições de Rousseau, se se considerar que a idéia de
soberania do povo marca a expansão do ponto de vista moderno por excelência
em política, o ponto de vista subjetivo, será possível proporcionalmente
aceitá-lo em parte sem o receber na totalidade? (Ferry, Renaut, 1985). A idéia
de um povo soberano conserva um sentido, em outros termos, fora de seu
desenvolvimento completo como idéia de uma subjetividade inalienável e
indivisível? O problema aparentemente mais abstrato é, na realidade, his-

261
toricamente o mais concreto. Ele é nem mais nem menos, efetivamente, o das
relações entre o desenvolvimento político moderno e os pensamentos que o
informaram. A resposta a lhe dar é em nosso sentido necessariamente ambígua.
Constant se engana sobre o alcance do pensamento de Rousseau, acreditando
poder parar o desdobramento da essência absoluta inscrita no princípio da
vontade geral. Rousseau é exatamente sob este aspecto o pensador-fonte da
modernidade democrática compreendida como afirmação da subejtividade
política. E, no entanto, Constant visa a alguma coisa de essencial justiça por
meio dos limites que ele pretende destinar à autoridade soberana. Pois foi a
partir destes limites (que têm como verdadeiro sentido marcar a divisão entre
a sociedade civil e o Estado) que se operou a materialização efetiva da
subjetividade social. Ele tem razão sob este aspecto preciso quando denuncia
em Rousseau um pensamento antimoderno, apoiado sobre sinais anacrônicos.
Foi no interior e em função de um quadro arcaico que Rousseau desenhou o
horizonte mais intransponivelmente moderno da representação política. O que
ele considera como as condições de estabelecimento e de expressão da vontade
geral é exatamente o que foi preciso ultrapassar na prática para que viesse o
reinado da vontade geral. Como existe uma “ilusão lúcida" do liberalismo,
existe uma “verdade enganadora” do subjetivismo contratualista à moda de
Rousseau. O desenvolvimento inteiro de nossa realidade política sai da con­
frontação e do ajustamento encontrado, nem bem, nem mal e com dificuldade,
entre essas duas interpretações do exercício da soberania democrática. Rous­
seau permanece aquele que designou a meta à qual ele responde. Constant fica
como aquele que deu nome ao meio pelo qual ele se concretizou. Eis de que
é feita a nossa verdade: do cruzamento recíproco e sutil de um duplo
reconhecimento com um duplo equívoco.
A argumentação de Constant a favor dos “princípios para substituir as
idéias recebidas sobre a extensão da autoridade social” se desdobra sobre dois
planos. Ela é apenas classicamente teórica, consiste apenas em demonstrar
racionalmente idéias falsas para estabelecer em seu lugar idéias corretas.
Contém uma bússola original, a primeira do gênero de que temos conhe-cimen-
to, que é uma bússola histórica. Não basta mostrar que um princípio é errado.
É preciso ainda tentar compreender por que ele foi acreditado, como ele se
pôde impor, contra toda evidência, às vezes, até a tragédia. Constant introdu­
ziu, sobre esse assunto, um tipo de interpretação inteiramente novo: a oblite-
ração do presente pela influência do passado. Ele próprio tem uma consciência
aguda da originalidade de seu tempo em relação às épocas anteriores e fica
surpreso, manifestamente, com a propensão de seus contemporâneos ao
desconhecimento deste fato. Este é o maior argumento que ele utilizará contra
“o espirito de conquista” fornecendo ao regime napoleônico sua alma: “Há
coisas que são possíveis em certa época e que não o são mais em outra. Esta
verdade, muitas vezes desconhecida, não é jamais reconhecida sem perigo...
Um governo que quisesse, hoje em dia, levar à guerra e às conquistas um
povo europeu cometeria, portanto, “um grosseiro e funesto anacronismo” (LM,
pág. 113 e 120). Do mesmo modo possuem esse espírito, que ele condena os

262
“imitadores modernos das repúblicas da Antiguidade”, cegos para as diferen­
ças “que nos distinguem essencialmente dos antigos, tornando quase todas
suas intituições impossíveis de serem aplicadas nos dias de hoje” (PP, pág.
420). Se o mito de uma jurisdição coletiva absorvendo inteiramente a exis­
tência dos indivíduos prevaleceu com certa força durante a Revolução, foi
independentemente de sua sedução intrínseca, a favor de uma confusão dos
tempos. Ao lado do erro, há a submissão dos viventes a uma herança que eles
acreditaram ser exemplar quando ela estava morta. A desgraça dos Modernos
se deve à sua ignorância de si próprios; ela tem raízes, em sua pouca aptidão,
para se compreenderem por aquilo que eles são à luz do vir a ser que os fez.
A dimensão histórica é capital para a compreensão do conjunto do
pensamento de Constant Ela comanda a coerência de seu pensamento, de
maneira que o modo de exposição adotado, muito à moda do século XVIII, no
tratado de 1806, pode em parte mascarcar, mas que é preciso saber reconstituir
se for o caso de querer medir exatamente o alcance transitivo do que constitui
provavelmente a primeira obra política organizada sob o ponto de vista da
história. Assim, a crítica de Rousseau só assume toda sua significação uma vez
relacionada à mudança da orientação histórica que lhe está subjacente. Reduzida
a sua expressão mais simples, a operação de Constant consiste em dissociar o
que as teorias clássicas do contrato percebiam junto em seu raciocínio: a
soberania coletiva e os direitos individuais (Raynaud, 1983). Ali onde os direitos
políticos do indivíduo supostamente conquistavam e se expandiam pela partici­
pação igual de todos na soberania, Constant instala a irredutível demarcação de
duas esferas. Frases famosas: “Existe uma parte da existência humana que, por
necessidade, permanece individual e independente e que está, por direito, fora
de toda competência social. A soberania existe apenas de maneira limitada e
relativa, no ponto em que começa a independência da existência individual para
a jurisdição dessa soberania" (PP, pág 49). A associação não se poderia apoiar
sobre a totalidade dos direitos dos contratantes; não faz parte do pacto cons­
titutivo da sociedade que se deve deduzir a preservação dos direitos individuais
como uma de suas metas imperativas; não existe conciliação e harmonia conce­
bíveis entre indivíduo, soberania e sociedade. Os direitos dos indivíduos —
liberdade pessoal ou “liberdade de ação”, liberdade religiosa, liberdade de
opinião “na qual está incluída sua publicidade”, garantia judiciária contra toda
arbitrariedade —são anteriores e têm de ficar exteriores à formação da autoridade
política. Existe toda uma série de objetos, diz Constant, “sobre os quais o governo
e a sociedade se devem abster de pronunciar-se e deixar os indivíduos perfeita-
mente livres” (PP, pág 58). É precisamente nisso que consiste a liberdade
específica dos Modernos: não mais na “participação ativa e constante no poder
coletivo", mas no “gozo pacífico da independência privada” (LM, pág. 501). A
originalidade radical de nossa época é ter separado a esfera de exercício da
"liberdade civil” da esfera de exercício do “interesse público”. A tarefa própria da
teoria política deve ser, portanto, basear essa diferença organizadora em princí­
pio. O que só pode ser feito mediante o reconhecimento da exterioridade
essencial dos direitos individuais em relação à autoridade social.

263
A operação marca uma reviravolta do pensamento político. Ela separa
duas épocas, duas maneiras de colocar o problema do homem em sociedade.
Com ela se sai da época do contrato —não se teria dificuldade em mostrar que
esse ou é "completo”, isto é, corresponde a uma redefinição inteira da
totalidade coletiva empregando a integralidade do estatuto dos seres que a
compõem, ou não tem sentido. Nossa tese é que essa transformação é
governada por uma mudança da economia temporal subjacente. O pensamento
do político segundo o contrato é um pensamento comandado pela opressão
originária; ele tem por horizonte obrigatório a conscidência ideal entre o
funcionamento social presente e a lei fundadora da própria sociedade. O que
se vê nascer em Constant é um pensamento desligado do problema da
constituição da sociedade e determinado correlativamente pela abertura his­
tórica. A orientação prevalece desde o princípio; no caso dele, desde seus
primeiros escritos. São testemunhas desse fato, por exemplo, essas linhas de
1796 que representam antecipadamente Tocqueville de maneira tão sur­
preendente: “A origem do estado social é um grande enigma, mas sua marcha
é simples e uniforme. Ao sair da nuvem impenetrável que cobre seu nas­
cimento, vemos o gênero humano avançar em direção à igualdade sobre os
resquícios de instituições de toda espécie...” (Constant, 1976, págs. 95-96).
Constant não é somente um homem penetrado pelo sentido histórico, existe
nele um autêntico filósofo da história. Sabe-se que trabalhou durante toda sua
vida em um grande livro sobre a história das religiões, cujos cinco volumes
ficaram para ser lidos e explicitados sob esse aspecto (Constant, 1824-1831). A
curiosidade e os conhecimentos do historiador não são periféricos com relação
aos interesses do teórico político. Desempenham um papel central dentro da
ordem de sua reflexão.
Precisamos, para determinar os termos dessa transição decisiva, esboçar
uma gênese do pensamento do contrato do qual se perdoará o caratér sumário.
Ela só pode ser compreendida, a nosso ver, no interior e em função das
transformações maiores que o poder monárquico conhece a partir do fim do
século XVI - o que é identificado geralmente sob o nome de aparecimento do
absolutismo. O contratualismo na teoria política, de Hobbes a Rousseau, é a
realização intelectual do movimento prático na obra dentro do absolutismo.
Esse consiste essencialmente em uma transformação da relação entre poder e
sociedade, tornando a confiar ao soberano o monopólio da instituição do
vínculo social. O rei era a cabeça do corpo plural, o elo mais elevado de uma
corrente hierárquica de comunidades orgânicas. A instância política torna-se o
órgão exclusivo pela vontade do qual a comunidade dos homens permanece
junta. O monarca encarnava em sua diferença sagrada a lei exterior editada
por Deus. Sob a capa de direito divino, o Estado tomou a seu cargo a tarefa
de manter o corpo social de acordo com seu princípio constituinte, o qual não
é mais dado, mas instaurado, devendo ser constantemente reinstalado. O ponto
crucial, nesse caso, é obter exatamente o equilíbrio entre o antigo e o novo que
se realiza no seio desse dispositivo revolucionário. Ele constitui a matriz da
reflexão política clássica e sua ambigüidade interna se encontra no caratér da

264
formação de compromisso de suas traduções teóricas. Traz em si três elemen­
tos principais como novidade: 1) o artificialismo social, o vínculo social resulta
da vontade e da ação refletida dos homens; 2) o individualimo: a instância
soberana de coesão, detentora exclusiva daquilo que une, só conhece os
indivíduos separados, como componentes de direito do corpo social; 3) a
essência representativa do poder, sua finalidade não é mais a de garantir a
sujeição a uma norma extrínseca, mas a de assegurar em última instância a
correspondência interna do corpo social a si próprio. Mas esses dados radical­
mente novos ficam compreeendidos, simultaneamente, no interior de um
quadro tradicional estruturado às avessas e contra toda a herança da antiga
economia da dependência em relação a um fundamento exterior. O modelo
ideal de comunidade humana permanece o da união exata e plena do corpo
social com seu princípio de ordem no conjunto de suas partes. Se existe
individualismo, é com o desígnio simultâneo de restabelecer o ajustamento
perfeito do átomo individual com o ser coletivo - senão sob forma de sujeição
completa da parte ao todo, pelo menos sob a forma de uma íntima adequação
da parte ao todo, que retoma seus contornos. Se existe artificialismo repre­
sentativo, da mesma maneira, é em conformidade com uma preocupação de
co- presença da instância soberana na soma dos seres que tomam emprestado
os traços da antiga união entre poder e sociedade - união indispensável para
assegurar a participação dos seres da esfera inferior na lei do além, da qual o
príncipe é o mediador. O que existe de moderno é a definição do fundamento
em termos imanentes e não mais transcendentes, é da determinação do
instrumento capaz de assegurar a coesão do todo sob o signo da união entre
o primeiro fundamento e o atual, a saber, a vontade susbstituída pela ligação
hierárquica e pela harmonia orgânica. Mas a meta organizadora, essa perma­
nece antiga. Permanece principalmente por seu modo de situar seu conteúdo
no tempo. Se não se faz mais referência a uma lei anterior à vontade dos
homens, o tempo legítimo permanece o de origem; é no passado fundador,
sempre, que a regra tem sua fonte; é para realizar (eventualmente para
recuperar-se contra o esquecimento) a união entre esse passado primordial e
o presente, entre o ato instituinte e a norma reinante que o poder soberano
deve trabalhar. O horizonte assim definido é rigorosamente extra-histórico. O
princípio racional e legítimo da organização coletiva existe como abstração
desde e para sempre; se não estava no ponto de partida, pelo menos está
idealmente, de uma vez por todas, parado; é, portanto, aquilo com que se trata
de encontrar uma coincidência definitiva. O que é preciso compreender bem é
o caráter precário do compromisso que assim se passou entre a visão antiga e
a visão nova da ordem social. Lida-se aqui com uma aliança de termos que se
tornam antagonistas quando levados a suas últimas conseqüências. Daí, de
resto, as interpretações perfeitamente contraditórias da corrente de pensamen­
to saída desse dispositivo intelectual. O perigo a ser evitado nessa matéria é a
unilateralidade. Não se trata de negar a pertinência de Hobbes e Rousseau à
modernidade política. Mas é preciso saber distinguir a parte do arcaísmo que
acompanha e, às vezes, sustenta as maiores inovações que o pensamento deles

265
introduziu; é importante em particular medir a pertinência à antiga ordem de
representação da opressão inatingível para conceber o fato coletivo dentro do
horizonte da unidade, da continuidade entre direitos do indivíduo e lei da
comunidade, da compenetração e da coparticipação entre poder e sociedade
que verdadeiramente articula e alimenta a reflexão contratualista. Pois tem-se
aí o próprio exemplo do dado de herança, de inspiração profundamente
tradicionalista, que, retomada dentro de um quadro definitivo, por outro lado,
por premissas individualistas, põe-se a funcionar e a ponderar em um sentido
moderno.É em Rousseau que essa contribuição dos Antigos ao parto (difícil
produção do espírito) da idéia por excelência do social-indivíduo aparece com
mais clareza. Um pensamento holista clássico não tem mesmo de se colocar à
questão da harmonia dos componentes particulares com o grupo em que eles
se inserem: começa por estabelecer a preeminência do todo sobre as partes, de
onde resulta o ajustamento exato dos seres, cada um seu lugar e em seu papel.
O problema de Rousseau é, em compensação, o de obter essa harmonia, que
para ele se deve constituir casando premissas anti-holistas - indivíduos livres
e iguais - com a necessidade de alcançar um resultado de inspiração holista —
a íntima reconciliação do indivíduo, da sociedade e da soberania. É a favor
dessa tensão interna, seria preciso mostrar em detalhe, que ele radicaliza a
reflexão de seus predecessores, elimina o que substituía neles concessões às
dominações existentes e traz, para inteira realização deles, as promessas
democráticas da idéia de soberania. A meta do poder é a correspondência
interna do corpo político com ele mesmo, pelo exercício de uma vontade que
une a ação de seus membros com a lei, emanando de sua operação constituinte.
Levada até o fim de maneira absoluta, essa pretensão de uma adequação
integral entre a vontade dos agentes e a vontade soberana, em torno de uma
norma que carrega a instituição de seu estar-junto, produz exatamente,
segundo Rousseau, a vontade geral, ou seja, a idéia de uma legitimidade
procedente da imanência participativa dos contratantes ao soberano, com
exclusão de toda separação no tempo (inalienabilidade) ou no espaço social
(indivisibilidade). Assim, a radicalização do esquema da unidade entre poder e
sociedade (na versão moderna, vontade substituída pela organicidade) conse­
guirá voltá-la contra a matriz monárquica no interior da qual tomou corpo. O
destino dos reis está reunido nesse desenvolvimento contraditório. No dia em
que seu poder se baseou sobre o conceito claro de soberania, a sorte deles foi
selada. Seu apogeu contém o princípio de sua queda. Intelectualmente falando,
o desenvolvimento da união entre poder e sociedade opera segundo um duplo
movimento de fusão, temporal e espacial. Fusão, para começar, da instância
coletiva da vontade e das vontades individuais. A primeira figura é obtida pelo
cruzamento da coerção do príncipe e do consentimento dos súditos, gerando
a comunhão coletiva em torno da lei constitutiva. Sua realização como unidade
subjetiva passa pela reabsorção do órgão separado de soberania. De autêntica
vontade constituinte, só poderia existir procedendo da coparticipação delibe­
rada dos cidadãos e da composição expressa de suas vontades particulares, sem
delegação nem divisão concebíveis. Vê-se como essa unificação no espaço do

266
corpo político que o estabelece, como ator refletido, chama correlativamente
sua unificação no tempo, pela fusão do original e do atual. Nada de distância
e de diferença admissíveis entre a legitimidade fundadora e a legalidade
presente. De ato verdadeiro da vontade geral, apenas reiterando de parte a
parte o contrato constitutivo e absorvendo de uma só vez o passado no
presente.'Assim como poder-se-ia explicar, a partir das condições dedutivas
dessa gênese, o estatuto problemático da idealidade muito particular que é a
soberania do povo segundo Rousseau (Filonenko, 1984). A soberania do povo
são os caracteres subjetivos, introduzidos no âmago do vínculo político pela
soberania do príncipe, conduzidos ao seu completo desenvolvimento. A idéia
democrática, naquilo que ela tem de especificamente moderno, sai do tubo de
ensaio monárquico. O que desvia à sua maneira as ambigüidades dos pensa­
mentos do direito natural são as contradições internas do dispositivo político
clássico. Elas lhe pertencem, participam dele, até mesmo nas críticas mais
destrutivas que elas lhe endereçam. Também são dissolvidas com seu desmo­
ronamento. Destruindo as bases do Antigo Regime, a Revolução não destruiu
menos os pressupostos alimentadores do contratualismo moderno.
A ruptura liberal é, sob este ponto de vista, filha do acontecimento. Ela
traduz teoricamente o que se passou de fato, o que acabou por se achar e se
impor, tateando, a despeito da gravidez obssessiva dos hábitos de pensamento
legados pelo poder do Antigo Regime e contra o desejo de se conformar aos
gloriosos modelos da Antiguidade. Pois Constant, como podemos notar, incrimi­
na os dois. Ele não se contenta em denunciar a miragem espartana. “O erro de
Rousseau e dos escritores mais amigos da liberdade, escreve ainda(...), vem da
maneira pela qual eles formaram suas idéias em política. Viram na história um
pequeno número de homens; ou mesmo um só, de posse de um poder imenso
que fazia muito mal. Mas a cólera deles se dirigiu contra os possuidores e não
contra o próprio poder. Em vez de destruí-lo, eles apenas pensaram em deslocá-lo.
Era um flagelo; eles o consideraram uma conquista, dotaram a sociedade inteira”
(PP, pág. 39. Comparar-se-á com a passagem de Tocqueville sobre os economistas
no capítulo III do livro III de LAncien Regime et la Révolution). O centro
(coração) do acontecimento, o que nele arruina as representações anteriores do
relacionamento entre poder e sociedade, tanto a elaborada pelos filósofos como
a efetuada pelos príncipes e seus súditos, consiste na dissolução do ideal de uma
comunidade unanimemente soldada com sua norma, unida em torno de seus
valores, pelo intermediário ou pelo laço moral (versão antiga), ou pela participa­
ção (versão moderna) no poder soberano, ou seja, o último vestígio da velha
ordem holista e hierárquica. Seria preciso mostrar como a ruptura está, em
última instância, com o religioso e a idéia de um dever-ser transcendente,
destinando fins comuns para a existência dos homens e determinando a boa
forma do estar-junto. Esse é o fato, essa é a mudança na economia simbólica do
social, aos quais a teoria liberal se esforça por emprestar uma linguagem: o
desaparecimento dos fins universais e objetivos, suscetíveis de se imporem
identicamente a todos os seres e de impregnarem de parte a parte o vínculo
coletivo. Não há mais possibilidade de submissão geral à busca de um bem

267
comum, pois esclarecer e definir seu ct -údo seria antes tarefa para teóricos.
Nenhuma identidade de pontos de vista deve ser procurada nem imposta aos
indivíduos, sobre as metas e os valores que possam presidir a boa vida: cada um
que defina os objetivos que pretende perseguir, que estabeleça sua própria idéia
do bem e ordene sua vida em conseqüência disso, dentro de um único limite: o
da preservação da mesma liberdade no caso dos outros (Manin, 1984). De
profundamente prescritiva, de fornecedora de sentido de grupo que ela era, a lei
torna-se essencialmente protetora da faculdade privada de levar sua existência à
sua maneira dentro do quadro de uma coexistência pacífica com o outro (o
próximo). Ela sanciona e organiza a ausência de unidade intelectual ou espiritual
na sociedade. Tornando-se prático, em outras palavras, o individualismo desfaz
o esquema da comunidade organizada de maneira homogênea e consciente para
um fim com o qual ele havia permanecido abstratamente compatível na sua fase
teórica, quando ainda constituía apenas o primeiro postulado dos pensamentos
da instituição da sociedade. Em sua última forma, aliás, sob a pressão do desgaste
individualista dos valores comuns, esse esquema do um substitui a clássica
participação em busca de um fim pela participação como um fim em si. Última
figura de compromisso possível entre a submissão individualista (que exclui a
submissão a um valor global predeterminado) e a opressão da inserção comunal
dos atores particulares dentro do grupo social. O ato do cidadão torna-se o meio
de obter o que produzia a dependência dos súditos. A obrigação cívica, sem outra
meta além dela mesma, substitui o conteúdo normativo que veiculava o laço
social. Onde se encontram imitadores à la Rousseau das repúblicas da antigui­
dade ou um conjunto deles, percebe-se bem, chegando a esse ponto da análise,
o completo despropósito de seu modelo quanto à natureza de uma vida cívica
organizada para a promoção do bem comum e de pertinência continuada, apesar
de tudo, mesmo se se limita, à beira da ruptura, à tradição de preeminência do
coletivo.
Aí se encontra igualmente, em Constant, a noção do poder neutro do qual
é outra componente, apreendida não do ponto de vista das formas ins­
titucionais, mas daquele do teor da ação do Estado. "Em matéria de opiniões,
crenças, luzes, haverá neutralidade completa da parte do governo” (LM. pág.
521). O papel do poder não poderia mais ser, de maneira nenhuma, o de
impulsionar uma finalidade coletiva. Constant terá de lembrar-se disso, de
maneira muito significativa, na última parte de sua vida, diante da "seita nova”
dos seguidores de Saint-Simon, anunciadora de muitas outras, e de suas
pretensões de restabelecimento da unidade das consciências sob a égide de um
poder espiritual. “A pretendida anarquia moral que vocês denunciam”, obje­
tará Constant aos defensores do papismo industrial, é, na realidade, apenas o
estado natural, desejável, feliz de uma sociedade na qual cada um, seguido suas
luzes, seus lazeres, sua disposição de espírito, acredita ou examina, conserva
ou melhora, faz, em resumo, uso livre e independente de suas faculdades"
(£Af,pág.561). Assim, também, essa neutralização espiritual da autoridade
social é apenas um aspecto de uma transformação geral das relações entre
poder e sociedade. Pois a imposição de sentido é apenas a ponta explícita de

268
um esquema voluntarista global, em que o poder supostamente mantém toda
a sociedade coesa e informada por meio de sua ação. Uma boa parte dos
Príncipes de politique é, por conseguinte, consagrada à crítica metódica dos
remanescentes dessa representação do papel dos governos, herdada do Antigo
Regime, em seus domínios mais concretos de aplicação, tais como a proprie­
dade, o imposto, a difusão das Luzes ou a indústria e a população. Constant
reagrupa essas seqüelas sob três chaves: as idéias de uniformidade, as de
estabilidade e o desejo inconsiderado de melhorias prematuras (PP, pág. 385).
Três casos de figuras-modelo do voluntarismo político, quer se tratasse da
“mania de nivelar um país por instituições uniformes”, da ambição de parar “a
marcha natural da espécie humana” ou, ao contrário, de forçar o curso do
tempo por meio de reformas abusivamente antecipadoras. Não somente não é
da alçada do poder decretar a norma comum do bem-viver, mas ele não poderia
moldar e reger a atividade da socieade, isto é, o vir-a-ser (le devenir). Além do
respeito pela liberdade de exame e de iniciativa das pessoas, acontece a tomada
em conta da autonomia da sociedade civil como ator histórico. “Está na
natureza dos governos serem estacionários, enquanto está na das nações
serem progressistas” (LM, pág. 545).
De maneira geral, em função dessa dissolução do esquema da unidade por
decisão a operação liberal deve consistir em dissociar o que o direito natural se
esforçava em unir: o poder e a sociedade, a instituição original do corpo político
e seu funcionamento atual. Primeira cisão em relação à imanência ideal do
princípio soberano à comunidade dos cidadãos: o governo representativo, tal
como a Revolução o impôs de fato e tal como encontra sua doutrina mais clara
em Sieyès. “O povo só pode falar, só pode agir por intermédio de seus
representantes” (Archives parlementaires,Primeira série, t VIII, pág. 595). A
liberdade política, segundo os modernos, não é o exercício direto da soberania
do povo, à moda antiga, é sua delegação e seu controle. “Os indivíduos pobres",
diz Constant como imagem, “fazem eles mesmos seus negócios; os homens ricos
empregam administradores. É a história das nações antigas e das modernas. O
sistema representativo é uma procuração dada a um certo número de homens
pela massa popular que quer que seus interesses sejam defendidos e que,
contudo, não tem tempo de defendê-los ela mesma” (LM, pág. 512). Ainda não
seria suficiente a visão caricatural de uma privação da posse política alegremente
consentida em nome da perseguição dos prazeres privados e dos interesses
particulares. Em 1818, Constant corrige a perspectiva em relação a sua proposta
inicial de 1806. Sob o golpe da revolução ainda próxima, sua idéia é prioritaria­
mente protetora. “A liberdade dos tempos antigos era tudo que assegurava aos
cidadãos a maior parte no exercício do poder social. A liberdade dos tempos
modernos é tudo que garante a independência dos cidadãos contra o poder” (PP,
pág. 432). A paz tendo voltado, a liberalização das instituições estimulada, ele
entrevê um perigo inerente a essa absorção dos indivíduos numa atividade
puramente civil. Se “o perigo da liberdade antiga era o de que os homens
estimassem um preço baixo demais para os direitos e os prazeres individuais”,
há um perigo específico da liberdade moderna, que é o de “renunciarmos

269
facilmente demais a nosso direito de partilhar do poder político” (LM, págs.
512-513). E Constant procede, a partir daí, a uma eloqüente reabilitação da
liberdade política, como o “meio de aperfeiçoamento mais poderoso, mais
enérgico que o céu nos deu” (LM, pág. 513). Submetendo "a todos os cidadãos,
sem exceção, o exame e o estudo dé seus interesses mais sagrados”, ela
“engrandece o espírito deles, enobrece seus pensamentos e estabelece entre eles
todos uma espécie de igualdade intelectual que faz a glória e a potência de um
povo” (ibid.). A organização representativa não poderia, portanto, ser compreen­
dida como um sistema de descarga de função. O problema dos modernos é que
estão divididos entre duas liberdades correspondentes a dois eixos separados da
atividade coletiva. Não se trata de escolher uma em detrimento da outra. Trata-se,
diz Constant, “de aprender a combinar uma com a outra” (LM, pág. 514). As
instituições não têm somente que garantir a independência dos indivíduos na
vida civil. É preciso simultaneamente que elas “consagrem a influência dos
cidadãos sobre a coisa pública” (ibid.). Essa correção vale, na realidade, uma
mudança de perspectiva. De uma concepção limitativa, dentro do quadro de um
jogo de resultado nulo, em que o que ganha a liberdade individual é perdido pela
liberdade política e reciprocamente, passa-se a uma concepção dinâmica em que
a ampliação de uma se junta à extensão da outra. Sinal de um pensamento em
ressonância com o movimento profundo da história, contra seus próprios pontos
cegos. Pois essa crença simultânea do poderio pública e da autonomia individual
é a própria dinâmica do fato democrático, ou seja, o que transbordará da
percepção liberal e o que o princípio de limitação da soberania, tal como Constant
o coloca e o mantém, por outro lado, impede de pensar.
Segunda ruptura relativa à união ideal do original e do atual ou do
funcionamento presente do corpo político com seu princípio constituinte: a
integração da história com dimensão política. O fator determinante, nessa
circunstância, reside na inversão radical do tempo social legítimo: estava alojado
no passado e agora se encontra projetado no futuro. Todo pensamento possível
da relação entre e sociedade sai daí modificado. A idéia da separação da sociedade
civil e do Estado não tem outro fundamento verdadeiro. Ela procede diretamente
da consideração do parâmetro da mobilidade. Em verdade, quem diz legitimação
por um passado primordial diz imobilidade. A regra coletiva por excelência é a
fidelidade a esse fundamento, bloqueado de uma vez por todas. O que a união
íntima do poder e da sociedade se encarrega ao mesmo tempo de traduzir e de
produzir. O poder é a instância que assegura a manutenção em conformidade
com a lei de origem. Sua inseparabilidade quanto ao todo social é função da
continuidade que se estabelece entre o presente e o passado fundador. A teoria
contratual da instituição do social procede de uma transformação interna desse
esquema temporal que substitui, tanto no ponto de partida quanto no de
chegada, o desejado pelo recebido, o intencional pelo substancial. Mas ela rebate
o princípio de imobilidade com o imperativo de alinhamento sobre as condições
do pacto inicial: o ato soberano é aquele que realiza a coincidência com o ato
criador. Ela fica presa até o fim nos embaraços estruturais da legitimação pelo
passado. A subversão é a invasão súbita de um tempo produtor aberto sobre o

270
futuro que o introduz. Impõe para iniciar uma apreensão completamente dife­
rente da política e da sociedade. Desqualifica, de um lado, a problemática da
origem, torna-a relativamente indiferente - “a origem do estado social é um
grande enigma”, subentendendo um enigma que seria inútil querer penetrar;
Constant escreverá explicitamente mais tarde que ela “não pode servir de base
para nenhum sistema” (LM, pág. 523). De outro lado, desloca a questão da
essência social e da legitimidade política sobre a direção processo cumulativo ou
oculta o verdadeiro segredo do destino. Tanto as origens do estado social são
impenetráveis e um fraco ensinamento para nós, quanto, ao contrário, diz
Constant, “sua marcha é simples e uniforme”. É em função desse "movimento de
progressão, ao qual a espécie humana obedece com uma perseverança e uma
atividade infatigáveis”, que se trata de pensá-lo (LM, pág. 523). O problema da
proveniência é suplantado pelo problema da destinação. Não é mais o de onde
viemos que é suscetível de nos esinar alguma coisa de decisivo sobre nossa
identidade, sobre nossas esperanças e nossos deveres; é o para onde vamos. A
resposta de Constant é: para a igualdade. Ele vê o curso da história escandido
por quatro revoluções: “a destruição da escravidão teocrática, da escravidão civil,
do feudalismo e da nobreza privilegiada”, nas quais reconhecia também passos
em direção a uma mesma meta. “A perfectibilidade da espécie humana não é
outra coisa senão a tendência em direção à igualdade” (LM,pág.591). A inversão
da perspectiva teórica não funciona sem enormes conseqüências práticas. A
tarefa de um governo legítimo não poderia mais ser, dentro do novo quadro, a
de manter a adequação do corpo social a uma primeira instituição: sua instituição
é o vir a ser, é o movimento constante que o atravessa e o desloca. O dever do
ator histórico em geral é, portanto, o de consentir no movimento, de esposá-lo,
de trabalhar para o progresso que lhe dá um sentido. Mas o poder não é e não
poderá ser o ator privilegiado da história. Pois a história não é algo que se possa
desejar. Ela se faz mediante interseção das ações de todos, ninguém a produz
por meio de intenção deliberada. Eis o verdadeiro limite da ação, do Estado: o
vir a ser. Na medida em que seu papel é o de preservar, de legislar, de determinar,
em suma, de querer, o poder é essencialmente estacionário segundo a fórmula
de Constant que citamos anteriormente. A sociedade é que é propriamente o
agente da história, que é progressista, na medida em que é interação permanente
de vontades privadas, cuja pluralidade e independência liberam tendências
inovadoras, ao passo que a instância que quer falar por todos acaba fixando e
parando, mesmo quando pretende precipitar o movimento. Se é dever absoluto
do poder não se estender sobre a esfera das liberdades civis, é também, em última
instância, porque essa é a verdadeira sede do progresso. Aquilo que, levando em
conta o passado, o poder realizava ao tutelar a sociedade até o ponto de se
confundir com ela, passará a ser, levando em conta o futuro, a tendência de
deixá-la compor-se e mover-se fora dele. Assim também é, tacitamente, que tal
estatuto de gerador da novidade confere ao indivíduo moderno, inclinado para a
fruição de “seus prazeres privados e de seus interesses particulares”, a dignidade
completa de agente social. Até no exercício desse direito de aparentemente
ignorar a opressão coletiva, ele se abre ao bem coletivo. A separação da sociedade

271
civil e do Estado é, nem mais, nem menos, uma abertura de princípios à mudança
histórica. 0 liberalismo ou o consentimento organizado para o incompreensível
da história.
Tais princípios estando firmemente estabelecidos, poder-se-ia acreditar
haverem terminado de uma vez por todas com as pretensões extremistas dos
doutrinários da soberania do povo. A unidade subjetiva da vontade geral
pressupunha a coextensão do soberano aos membros do corpo político. O que
dele resta quando se instala em seu lugar a dupla demarcação que se acaba de
desengajar entre a sociedade civil e o Estado? A sociedade não exerce
diretamente o poder por si mesma, mas por delegação. O poder é limitado em
sua ação, acerca da sociedade, primeiro formalmente, pelos direitos dos
indivíduos, e, em seguida materialmente, pelo fato do movimento progressivo
da história, que instala no seio da atividade coletiva um princípio de fecundi-
dade, subtraído por natureza à tomada da vontade política - sob a condição,
naturalmente, de repetir a perspectiva de um fim da história pelo restabe­
lecimento da possibilidade de um fim transparente da ação histórica e política
para si mesma. As críticas que Constant formula, ao contrário da ambição
saint-simoniana de transportar o mundo “de um estado provisório para um
estado definitivo”, são, sob esse ponto de vista, capitais. “Nada é definitivo
sobre a terra; o que tomamos por definitivo é apenas uma transição como
qualquer outra" (LM, pág. 561). A verdade dos Modernos é a limitação da
soberania. Em função da qual toda idéia de um sujeito político parece dever
ser banida: as condições necessárias para a sua realização não são opostas às
articulações políticas preponderantes daqui para frente? Numa sociedade livre
não poderia mais haver lugar, doravante, para uma reconciliação, na prática,
entre individualidade, sociedade e soberania e, menos ainda, para uma coinci­
dência da coletividade inteira com seu sentido instituinte. E, no entanto, foi o
ponto de vista do sujeito que a levou em direção à dinâmica democrática. Nesse
sentido, Rousseau teve razão contra Constant. Mas ele a levou não somente
respeitando os limites que suas primeiras fórmulas pretendiam excluir -
diferença do poder, separação dos indivíduos —mas tomando-as como suporte
de sua realização. E nesse outro sentido foi Constant quem teve razão contra
Rousseau. O reinado da vontade geral finalmente se estabeleceu, a despeito da
privação da posse representativa e, por seu intermédio, mediante a laboriosa
colocação no lugar (nunca acabada, aliás) de uma organização reflexiva no
interior desse mecanismo substitutivo. Sem atentar para sua própria neutrali­
dade espiritual nem para as liberdades individuais, o Estado soberano ampliou
desmesuradamente, do mesmo modo, sua esfera de ação, até dar corpo liberal
a essa figura de uma responsabilidade completa de sociedade pelo poder que
parecia indissociável do despotismo. Ora, se, por uma de suas linhas, a
dinâmica do Estado moderno conduz ao despotismo pelo retorno ao sonho de
uma sociedade inteiramente unificada, para a qual a intuição de Constant
permanece plenamente pertinente - o totalitarismo é o poder mais moderno a
serviço do mais antigo esquema coletivo —em compensação, contra todas as
previsões liberais, ele eqüivale a um crescimento do Estado que participa

272
plenamente do aprofundamento democrático. Ele não pretende parar a história
em nome de uma ciência terminal que a humanidade teria adquirido como seu
destino: organiza a apreensão do futuro, dá forma ao poderio coletivo de se
produzir no tempo. Não se estende sobre o território das independências
privadas: favorece a expansão delas, emprestando corpo, pelo desenvolvimento
de seus instrumentos burocráticos de investigação e regulamentação, à capa­
cidade global da sociedade de se governar a si mesma.
A ilusão liberal, diante do acontecimento revolucionário, foi de acredi­
tar que era possível tirar dele lições definitivas. E “nada, decididamente, é
definitivo sobre a terra”. A encarnação jacobina da soberania do povo não
dá a última palavra sobre o assunto, por mais perspicaz que seja sua análise.
Um instante parado em seguida a esse terrível fracasso, o movimento retoma
seu curso, ultrapassando irresistivelmente aqueles que haviam acreditado
poder designar limites. Constant morre em dezembro de 1830. Ele viu a
revolução de julho como o triunfo do liberalismo moderado, que não cessara
de preconizar sobre o espírito de reação. Faleceu em pleno acordo coma
história. Foi saudado como um das grandes figuras do momento. Coroamen-
to de uma carreira que, não tendo alcançado verdadeira consagração públi­
ca, fez jus a funerais nacionais. Alguns meses mais tarde, em abril de 1831,
Tocqueville embarca com Gustave do Beaumont para seu périplo americano.
Ele trará de volta o sentido da história, libertado dos entraves e dos véus que
o obscureciam no meio das nações européias. Encontrará na América ampla
confirmação das conclusões que o guiaram dedutivamente, que lhe determi­
naram separar do quadro estreito da comparação política ordinária, a eterna
Inglaterra dos liberais franceses desde Montesquieu (Furet, 1984). É que aí
ele não poderia saber existir um meio-termo entre um Estado social em que
o povo governa a si próprio e um Estado social em que “um poder externo
à sociedade age sobre ela e a força a caminhar por um certo caminho”, como
anota em janeiro de 1832 num de seus cadernos de viagem (Tocqueville,
1954, pág. 258). É preciso, em outros termos, que a soberania do povo seja
reconhecida ou o seja completaménte. Essa é a insubstituível lição do
laboratório de além-Atlântico: “Na América, o princípio da soberania do povo
não está oculto nem se mostra estéril como em certas nações; ele é reco­
nhecido pelos costumes, proclamado pelas leis, estende-se com liberdade e
atinge sem obstáculo suas últimas conseqüências” (Tocqueville, 1961, pág.
54). Tocqueville vai libertar-se, nos Estados Unidos, do quadro de pensamen­
to no qual a experiência revolucionária havia encerrado seus predecessores
imediatos: nenhum regime de liberdade será possível sem uma limitação da
soberania popular. Encontra, assim, razão para se abrir plenamente ao
futuro que pressente, fazendo as pazes com Rousseau por cima de suas
críticas liberais: a dinâmica democrática é caminho irresistível ao império do
povo soberano. No intervalo de quatro meses que separa o enterro solene e
vitorioso do velho apóstolo da liberdade, segundo os Modernos, e a partida
com ares de conversão do jovem aristocrata para a terra da democracia,
existe o rompimento de dois grandes momentos da reflexão política.

273
• A edição dos P r ín c ip e s d e p o litiq u e a p p lic a b le s à to u s g o u v e m e m e n ts utilizada neste estudo
(e citada PP) é aquela obtida por Etienne Hoffmann, Genebra, Droz, 1980, 2 volumes.
Remetemos além disso à colatánea de textos que publicamos sob o título D e la lib e r té c h e z les
M o d e rn e s (LM), Paris, “Pluriel”, 1980. Outros textos de Constant aos quais se faz referência:
D e la fo rce d u g o u v e r n m e n t a c tu e l e t d e la n é c e s sité d e s ’y r a llie r (sl), ano IV, (1796);
C o lle c tio n c o m p lè te d e s o u v ra g e s p u b lié s s u r le g o u v e r n è m e n t r e p r é s e n ta tif e t la c o n stitu tio n
d e la F ran ce, fo rm a n t u n e e sp è c e d e c o u rs d e p o litiq u e c o n stitu tio n n e lle , Paris, 1818-1819,4
volumes; D e la re lig io n c o n s id é r é e d a n s s a so u rce, s e s fo rm e s e t s e s d é v e lo p p e m e n ts , Paris,
1824-1831,5 volumes.

► Luc Ferry, Alain Renaut, P h ilo s o p h ie p o litiq u e , 3: D e s d r o its d e V h om m e à 1’id é e republi-


c a in e , Paris, PUF, 1985; François Furet, La Révolution sans la Terreur? Le débat des historiens
du XIX siècie, L e D ébat, ns 13, junho de 1981, págs. 40-54; Idem, Naissance d’un paradigme:
Tocqueville et le voyage en Amérique (1825-1831), A n n a le s ESC, 39 année, n! 2, março-abril de
1984, pág. 225-239; Bernard Manin, L es deux libéralismes: marchés ou contre-pouvoirs,
I n te rv e n tio n , ns 9, maio-julho de 1984, págs. 10-24; Alexis Philonenko, Jean -Jacqu es R o u sse a u
e t la p e n s é e d u m a lh eu r, Paris, Vrin, 1984, 3 vol.; Philippe Raynaud, Un romantique libéral:
Benjamin Constant, E sp rit, março de 1983, pág. 49-66; Alexis de Tocqueville, D e la d é m o c ra tie
e n A m ériq u e, O e u v re s c o m p lè te s, Paris, Callimard, 1961,2 vol.; Idem, V o yages e n S ic ile e t a u x
É tats-U nis, O e u v re s c o m p lè te s, Paris, Callimard, 1954.

Mareei GAUCHET.

CORÃO (Al-Qor’ãn) - 6 1 0 -6 3 2

Os ocidentais perguntam muitas vezes aos orientalistas se o Corão é uma


obra política. A resposta é, evidentemente, positiva, sobretudo quando se
admite que a essência do político se encontra no campo religioso... Mas o Corão
não é só isso.
O Corão (Al-Qor’ãn significa propriamente A Recitação, a leitura, por
decorrência, enquanto a Bíblia é O Livro) é a compilação das revelações que
Deus fez ao profeta Maomé, principalmente pela mediação do arcanjo Gabriel
(Jibril), nos anos 610-632 da era cristã, na Arábia e mais particularmente em
Meca (Mekka) e em Medina (al-Madina, que significa a cidade).
Essa mensagem de Deus encerra a profecia monoteísta (aos olhos
dos muçulmanos) e foi revelada em partes. Também o texto do Corão é
dividido em cento e quartoze capítulos (su ra sf, eles próprios divididos em
versículos numerados. Pode-se representar o ciclo da Profecia como um arco
ascendente indo de Adão a Maomé, depois uma linha reta - que se quebra
às vezes, pois os Homens são atraídos pelo Mal —indo em direção à Parusia.
Mas, nesse caso, a interpretação (o sentido é mais forte em árabe: o Ta’w ilé

274
a hermenêutica espiritual) permite ao indivíduo libertar-se da história: o
Corão é a Palavra de Deus que baixou na História e que produz uma prática
de ascensão na meta-história.
As divisões, assim como os títulos, letras ou sinais colocados na frente de
cada Capítulo (ou sura), datam, verdadeiramente, apenas do século X, e a
ordem de classificação deles não concorda com a cronologia nem com sua
importância, ainda que os mais longos estejam no começo, e os últimos
possuam apenas alguns poucos versículos. A tradição muçulmana indicou na
frente de cada Capítulo se ele foi revelado em Meca ou em Medina. O capítulo
96 é considerado o primeiro, pois teria sido revelado ao Profeta quando ele
meditava na gruta do monte Hira. Todos os capítulos, menos um, começam
pela fórmula litúrgica: “Em nome de Deus, o Misericordioso...” Os autores
muçulmanos não conseguiram jamais propor conclusões idênticas no que diz
respeito à classificação dos capítulos. Em francês, a experiência de Régis
Blachère (cf. bibl.) merece ser assinalada.
O próprio Corão foi e ainda é objeto de comentários que preenchem
volumes inteiros dentro da tradição árabe-muçulmana, a qual engendrou uma
categoria particular de sábio-conhecedor-das-Escrituras. Nesse sentido, o Islã
é parte integrante do monoteísmo e, como o Cristianismo e o Judaísmo, seus
predecessores assumidos na matéria, produz uma divisão do trabalho religioso
que consiste, igualmente aí, em despojar os leigos da gestão dos bens da
salvação4.
Isso, em verdade, está em sintonia com Bourdieu quando escreve: “Os
sistemas simbólicos se distinguem fundamentalmente conforme sejam produ­
zidos e, ao mesmo tempo, apropriados pelo conjunto do grupo, ou, ao
contrário, produzidos por um corpo de especialistas e, mais precisamente, por
um campo de produção e de circulação relativamente autônomo: a história da
transformação do mito em religião (ideologia) não é separável da história da

275
constituição de um corpo de produtores especializados em discursos e ritos
religiosos, isto é, no progresso da divisão do trabalho religioso, que é, ele
mesmo, uma dimensão do progresso da divisão do trabalho social, portanto da
divisão em classes, e que conduz, entre outras conseqüências, a retirar dos
leigos a posse dos instrumentos de produção simbólica”5.
A constituição do corpo ortodoxo do texto corânico é uma ilustração
perfeita desse processo.
O Corão é, antes de tudo, uma mensagem recebida em árabe que se
declara ser ele mesmo um sinal (aya) de Deus (al-Qor'an) (LXXXI, 19; LVI, 79,
80; XLI, 2-3, etc.).
Num segundo momento, depois da instalação de Maomé em Medina,
apareceu a idéia de tomar notas (elas serão fragmentárias e sobre materiais
aleatórios).
Em seguida a esse período, logo após a morte do Profeta, o Império
estendendo-se, seu Sucessor (califa) Abu Bakr continuou a citá-lo, pois co­
nhecia o texto de cor e vários personagens da comitiva do Profeta igualmente.
Existem, portanto, algumas recensões individuais.
É Ótman (terceiro califa, 644-656), ao proceder à recensão sistemática
sobre uma base mais ampla, quem irá estabelecer a Vulgata. Mas, paralela­
mente, desenvolvia-se um primeiro corpo de sábios, originais, típicos: os qári
ou leitores - recitadores do Corão, que difundem - além da limitação escrita
— um texto sabido de cor, do qual certas divergências não são apenas
normativas, morfológicas ou dialetais (é para isso, cf. infra, que aparecerão
mais tarde os gramáticos). Enfim, como última fase da constituição de uma
doxa (indiscutível), o califa Abd-al-Malic, quando os Omáiadas consolidam seu
poder, faz com que a ortografia do Livro Sagrado seja uniformizada.
No entanto, o Islã não se constituiu nem se institucionalizou em Igreja com
clero separado. Existe sob esse aspecto uma característica que diz respeito à
própria natureza do Corão, mas também às condições históricas da Revelação.
Contrariamente à Tora, à Bíblia cristã e aos Evangelhos, o Corão não
é uma crônica de acontecimentos nem uma compilação de jurisprudência,
mas, fundamentalmente, o conjunto de normas da vida política, social,
familiar e religiosa para um quarto da Humanidade, isto é, para todos os
muçulmanos.
Mas, além disso, o Corão anula a lei revelada até então, pois tanto os
cristãos quanto os judeus, antes deles, manipularam - aos olhos dos muçul­
manos —as Escrituras e recusaram-se a admitir a missão de Maomé6.
As condições mesmas da luta do profeta Maomé7 para se impor fizeram do
Corão um texto político. Não é possível ignorar em que condições o Profeta e
seus fiéis tiveram de conquistar primeiro os árabes contra eles próprios, e a
emigração (Hijraf constitui um corte radical que será seguido de uma mutação
essencial: a Profecia vai transformar-se em código. A extensão do Islã, em menos
de um século, a territórios cuja amplitude só foi ultrapassada pela diversidade,
implicava que os sucessores do Profeta se servissem da mensagem religiosa, por
meio de seu vetor exaltado, que era a língua árabe, para transformar o conjunto

276
do projeto escatológico em sistema político-jurídico. Coutrariamente ao cris­
tianismo, o Islã não é maometismo, mas coranismo. 0 Corão inova nesse
sentido, com relação às Escrituras judias e cristãs, que sempre tiveram um
estatuto ambíguo sobre o plano político. Mesmo se admitirmos que a religião é
uma das maneiras de realização (política) do homem, ela está ligada como tal às
vicissitudes da história na qual ela perpetua a afirmação de um absoluto. Dentro
do quadro do Islã, trata-se de uma praxis: constituição de atitudes mentais e
sociais a partir de um texto imutável cuja característica de totalidade é indis­
pensável à inteligibilidade e que produziu muito rapidamente instituições uni­
formes. As práticas são prescrições intangíveis.
Assim, compreende-se melhor por que os Ocidentais, partindo de fatos
isolados e não considerando o texto corânico em sua totalidade enquanto
sistema de relações internas, acrescentaram à incompreensão debates tanto
falsos quanto intermináveis sobre o Islã. Realmente, os europeus separam o
que está unido, sem dúvida por causa de um encaminhamento diferente na
história da autonomia (relativa) do político. O Corão não é nem socialista nem
democrata nem reacionário, ele é o vetor pelo qual o leitor muçulmano conclui
sua própria ascensão dentro de uma ordem do mundo na qual a palavra de
Deus instaura uma maneira de conhecimento perfeitamente original. Longe de
despedaçar o homem pelo fanatismo e pela submissão, essa práxis é bastante
revolucionária: a história tem um sentido, isto é, um fim, de duplo sentido de
começo e de término. Os árabes e todos os povos islamizados formam a
comunidade (Umma) depositária da última expressão da vontade divina, que
deve mostrar à humanidade inteira o horizonte da Salvação.
Mas o leitor não-muçulmano e nãoarabófono não adere a essa tese.
Experimenta, portanto, algumas dificuldades para apreender o que faz sentido
para o muçulmano atuante. Tanto mais que esse fica pouco à vontade quando
vê um não-muçulmano, com um Corão nas mãos (o que é impuro), ler ou recitar
em árabe. As dificuldades se acumulam, portanto, para um leitor ocidental. O
problema da tradução é quase insolúvel, de um lado porque a tradição muçulma­
na implica o fato de que o desenvolvimento da língua árabe está ligado à
Revelação, o próprio Corão determinando ter sido revelado em árabe (Capítulo
46, versículo 12; 39 e 28; esses dois versículos contêm a palavra “Arábia”). Mas
isso não é nada ao lado dos próprios problemas de tradução em si. Se traduzo,
por exemplo, o versículo V, 3 por: “Acolho o Islã como religião para vós”, não
indico o sentido forte da relação Islâ/Imans (fé), pois Islã significa aqui a entrega
total a Deus. Assim, é a religião.
Mas como a interpretação não era mais evidente em árabe, os pensadores
árabe-muçulmanos desenvolveram, de uma maneira surpreendente, as inves­
tigações filológicas e gramaticais. Realmente o paradoxo do texto corânico é
duplo. Em primeiro lugar, ele é a nova ideologia pela qual o profeta Maomé,
porta-voz supremo, transmitia a mensagem irrefutável de Deus para quem
queria pronunciar-se sobre o verdadeiro e o falso. Mas, na ausência (e depois
do desaparecimento) do Profeta, esse documento devia ser consultado. Fatal­
mente era preciso ser interpretado. Também para cortar logo desvios possíveis,

277
o próprio texto foi fixado muito cedo e se transformou, assim, em Livro, já
que era essencialmente uma recitação.
O outro lado do paradoxo é que o sistema de escrita que apresenta o
Corão permite menos uma leitura, propriamente falando, do que serve de
suporte visual à recitação de um texto conhecido de cor e cuja ortoépia (arte
de bem pronunciar — tajwil) desempenha, além disso, um papel vibratório
não-neglicenciável.
Mas como, por outro lado, a palavra personalizada de Deus é una,
indivisível e imutável, muito rápido foram colocados os limites da inter­
pretação: os Hadith (a tradição dos ditos do Profeta e dos loggii por analogia)
encontram- se associados ao desenvolvimento do fato corânico; elementos
não-dissociáveis que vão constituir a ortodoxia, que os ocidentais chamam
impropriamente o Sunismo, por intermédio dos avatares de uma teologia sem
teólogos, mas com jurisconsultos rapidamente transformados em sábios redun­
dantes, enquanto se desenvolviam teofanias e um esoterismo paralelamente
oculto,que faziam, também, do Corão, o mais belo dos poemas místicos... se
nos for dada a graça de descobrir a chave ou de encontrar um Mestre que nos
ensine o Caminho.

• As edições são (quase) tão numerosas quanto as da Bíblia exceto que - enquanto essa é
traduzida sem outros problemas além dos da tradução - os muçulmanos se repugnam em
traduzir o texto pelas razões anteriormente expostas. Também, poucas traduções têm graça aos
olhos deles. No entanto, existem muitas delas,em francês, que são boas e úteis. A mais corrente,
reeditada muitas vezes, é aquela de Kasimirski, de 1840, por exemplo, a edição de 1981 dos
“Clássicos Garnier”. A edição Garnier-Flammarion de 1970 possui um prefácio notável (e uma
cronologia muito útil) de Mohammed Arkoun, autor, aliás de obras poderosas sobre o Islã, entre
as quais um notável E n s a io s o b r e o p e n s a m e n to islâ m ic o (E ssa i s u r la p e n s é e isla m iq u e). As
edições Gallimard, coleção F olio de 1967, publicaram um Corão traduzido por Denise Masson,
autora também dos trabalhos mais sofisticados produzidos por uma francesa: M o n o th é ism e
c o r a n iq u e e t m o n o th é is m e bibliqu e. D o c trin e s c o m p a r é e s Desclée de Brower, 1976.
Uma edição de luxo bilíngüe pode ser creditada à Maisonneuve et Larose. Essa editora publicou
o grande clássico aos olhos dos orientalistas: Régis Blachère, L e C oran , tra d u c tio n d e ...se lo n
le re c la s s e m e n l d e s s o u r a te s en fo n c tio n d e s q u a tre p h a s e s d e la p r é d ic a tio n , 3 volumes Paris,
1947-1951. Mas Régis Blachère é também o autor de uma tradução do Corão na ordem da
Vulgata, Paris, 1957, assim como de uma obra sobre o C orão, coleção “Que sais-je?", 1966.
Outras versões poderão ser igualmente consultadas, como a de Mohammed Mamidullah no
Clube Francês do Livro ou ainda a de Si Hamza Boubakeur, editada por Fayard.
Para aqueles que gostariam de ir (muito) mais longe, na falta de ler os comentários árabes,
podem fazer uma idéia da complexidade do fenômeno corânico, tentando ler Pierre Crapon de
Craponne, L e C oran : a u x s o u r c e s d e la p a r o le o ra cu la ire, s tru c tu re s ry lh m iq u e s d e s s o u ra te s
m eq u o ises. Publications orientalistes de France, Genebra, Arábia, 1981.
Enfim, a melhor obra escrita por um muçulmano é, a meu ver: Muhammad Khalaf Allah, Al-Fann
a l-O a sa si fi-l-Q ur’a n ( L ’a r t d u r é c it d a n s le C oran ), Cairo, 1965.

Bruno ET1ENNE.

278
NOTAS
1. Plural da palavra sura, cuja tradução é controvertida.
2. Para a versão xiíta, cf. Daryush Shayegan, Qu’est<e qu'une révolution religieuse?
Paris, Les Presses d’Aujourd’hui, 1982, pág. 227.
3. Diferente das outras utopias, a Cidade ideal muçulmana é realizada, não está por fazer,
se bem que, às vezes, príncipes indignos o esqueçam. É preciso então retificar (voltar à doxa)
as tendências à Jahiliyya.
4. Sur le pouvolr symbolique, Annales, maio-junho de 1977, pág. 409.
5. Bourdieu, ibidem.
6. Sobre o naskh, a revogação da Lei revelada aos Judeus e aos Cristãos, e sobre a
diferença com a tese cristã (não existe revogação, mas realização sobre um novo plano), ver L.
Gardet, Dieu et la Destineé de 1’H omme, Paris, Vrin, 1967, pág. 216 e se.
7. O profeta Maomé teve de fugir de Meca (12 do mês de Rabi, ou seja, 24 de setembro
de 622) e se refugiar em Medina. Esse acontecimento marca o começo da era muçulmana, a
Hégira (Hijra) que começa em 16 de julho de 622. O ano 1979 corresponde a 1400. Sobre a
vida do profeta, a obra mais accessível é também das mais sérias: M. Rodinson, Maomé, Paris,
Seuil, 1961.
8. Hégira, nota precedente.
9. Se Israel está ainda na Esperança e se a Cristandade propõe uma mensagem de paz
pela prática da Caridade, o Islã está centrado sobre a Fé.

CROCE, Benedeto, 1866-1952


M aterialism o h istórico e econom ia marxista, 1 9 0 0

O volume que B. Croce publicou sob esse título, em 1900, é na verdade


uma compilação de ensaios que apareceram na Itália e na França entre 1895 e
1899. Ele nos conduz, portanto, a um período muito particular da vida e da
atividade intelectual de Croce, durante a qual ele se interessou intensamente pelo
marxismo e pelo movimento socialista, de tal maneira que pôde passar, aos olhos
de alguns e durante alguns meses, por um "marxista”e mesmo por um “camara­
da” socialista. E como, no correr dos anos, o conteúdo crítico dè seus ensaios se
afirmou resolutamente, sobre o plano econômico particularmente, ele foi natu­
ralmente considerado um marxista liberto de sua condição, protagonista da crise
e da revisão do marxismo que se manifesta no fim do século XIX em vários países
europeus. No prefácio da primeira edição desse volume, foi preciso que ele
procedesse, portanto, a alguns ajustes. E, certamente, Croce, mesmo quando
publicou seus primeiros artigos em 1895 e em 1896 —aqueles que foram a
origem do mal-entendido - não era marxista nem socialista, mas o interesse que
tinha pelo pensamento de Marx e a maneira pela qual se inseriu no debate de
então sobre o materialismo histórico puderam realmente criar essa ilusão.
De que se tratava na verdade? Da descoberta por Croce do marxismo e do
socialismo e dos efeitos benéficos que essa descoberta teve em sua atividade

279
intelectual. 0 próprio autor se exprimiu diversas vezes sobre esse ponto, seja em
sua biografia intelectual (Contribuição à crítica de mim mesmo), seja em um
ensaio célebre intitulado Como nasceu e como morreu o marxismo teórico na
Itália: 1895-1900, que escreveu em 1938 e publicou em apêndice a Materialismo
histórico e economia marxista a partir da sexta edição, de 1941. Mas é
necessário precisar que essa descoberta foi feita por meio dos escritos e da
influência de seu mestre na Universidade de Roma, Antônio Labriola. E, con­
seqüentemente, as relações de Croce com o marxismo são também e em primeiro
lugar suas relações e sua amizade com o mestre que o iniciou no pensamento de
Marx e de Engels, o pai do “marxismo italiano”, autor nesses mesmos anos de
três ensaios notáveis sobre a concepção materialista da história. Como se sabe,
as relações intelectuais com um mestre que é também um amigo são algumas
vezes complicadas, principalmente quando o “discípulo” tem uma grande auto­
nomia intelectual e pretende sem dúvida proceder da maneira mais adequada
para exercer sua própria influência sobre o “mestre”.
Croce, portanto, recebe e lê, com o entusiasmo daquele cujo espírito se
ilumina, o manuscrito do primeiro ensaio de Antônio Labriola, intitulado Em
memória do Manifesto dos comunistas, e se tomar seu editor na Itália, à sua
própria custa. Ele fará o mesmo com seus dois ensaios seguintes: O materialismo
histórico, elucidações preliminares e Por falar em socialismo e em filosofia. O
amigo e discípulo é, portanto, também o e, se editor está vivamente interessado
pela interpretação crítica e vigorosa que Antônio Labriola dá materialismo
histórico, tem também sua própria idéia, mesmo se, em um primeiro tempo —
como ele próprio conta - escuta muito, trabalha muito e fala pouco.
Logo, os ensaios de Croce sobre o marxismo são um diálogo crítico com
Marx, é claro, mas mais diretamente com Antônio Labriola; eles têm uma
história que se entrecruza com os ensaios do eminente professor romano —
primeiro marxista italiano a ter uma dimensão teórica - sobre o materialismo
histórico. O primeiro ensaio, teoricamente importante, de Croce, intitulado
Sobre a forma científica do materialismo histórico (1896), remete exata­
mente, não ao marxismo em geral, mas à forma na qual ele é apresentado por
Labriola em seus dois primeiros ensaios. Seu segundo maior ensaio —Para a
interpretação e a crítica de alguns conceitos do marxismo (1898) - se refere
ao terceiro ensaio de Labriola, publicado na Itália sob os cuidados de Croce,
antes de ser editado na França um pouco mais tarde. Ele propõe aí uma
interpretação complexa de 0 Capital, e Marx, de sua teoria do valor e da
mais-valia, que não lhe nega todo interesse teórico, mas que se pronuncia
também em favor da escola “austríaca”, dita da economia pura, como sendo
aquela que fornece uma verdadeira teoria científica do valor e da economia.
São essas teses econômicas de Croce sobre O Capital que provocam a ruptura
teórica pública entre os dois amigos. Labriola critica as teses de Croce em um
posfácio da edição francesa de seu terceiro ensaio (Socialismo e filosofia,
1899). E Croce lhe responde, cortês, mas vigorosamente, num artigo publicado
na Itália no mesmo ano: “Recentes interpretações da teoria marxista do valor
e polêmicas sobre esse assunto”. Ainda em 1899, Croce publicará um último

280
artigo sobre O Capital para demonstrar que a lei da baixa tendência da taxa
de lucro apresentada por Marx no livro III repousa sobre um erro de raciocínio.
O “parêntese marxista” (Gentile) na vida de B.Croce se fecha. Tem-se daí
para frente a impressão de que ele não tirará mais nada do estudo do marxismo
e de que sua intenção é de não mais se ocupar com ele. Fechará o parêntese
compondo esse volume em que reúne seus diferentes escritos... “como que
dentro de um círculo”, escreve. Mas esse círculo é também o do marxismo
teórico a propósito do qual Charles Andler fala, então, de dissolução. Essa é
pelo menos a tese que ele sustenta uns trinta anos mais tarde em "Como
nasceu e como morreu o marxismo teórico na Itália”. Croce conta aí este
episódio de sua vida e suas relações com Labriola, ilustrando-o com numerosos
trechos de sua correspondência pessoal, e conclui assim: “O marxismo teórico
se esgotou por volta de 1900, na Itália e no mundo inteiro.”
O que se havia esgotado ou secado - dir-se-á - não fora simplesmente o
interesse de Croce, e essa conclusão não revela uma visão muito narcisista da
história do pensamento e a passagem posterior de Croce para uma posição de
hostilidade declarada com relação ao marxismo? Gramsci observará que é
preciso distinguir esse ponto de vista retrospectivo de um Croce “liquidante”
do marxismo, do ponto de vista “revisionista”, que era o seu, no final do século.
O marxismo teórico se acaba porque ele sucumbe a suas contradições e não
resiste à crítica. É a crise do marxismo do final do século XIX que Croce evoca
assim e que ele julga como se fosse um enterro definitivo. E isso nos conduz
a evocar de passagem o papel desempenhado nesse assunto por um outro
amigo e correspondente de Croce, o marxista francês George Sorel. Foi em
Devenir social, revista marxista da qual Sorel é um dos fundadores, que foram
publicados vários ensaios de Croce; foi com um prefácio muito elogios de
Georges Sorel que apareceu em Francês, em 1897, de Giard & Brière, o volume
intitulado Ensaios sobre a concepção materialista da história, que reúne os
dois primeiro ensaios de Labriola. Quanto a seu terceiro ensaio publicado
primeiro na Itália (Discorrendo di fdosoãa e di socialismo, 1898) depois na
França, um pouco mais tarde (Socialisme et philosophie, por Giard & Brière,
1899), traz o subtítulo Cartas a G. Sorel. Foi efetivamente sob a forma livre
de cartas teóricas endereçadas a seu amigo G. Sorel, e cujo ponto de partida é
o prefácio deste a seus dois primeiros ensaios, que Labriola tentou aprofundar
as questões teóricas insuficientemente desenvolvidas antes e particularmente
aquelas que dizem respeito à filosofia que contém implicitamente o materialis-
mo histórico. Mas entre a edição italiana e a francesa muita coisa aconteceu.
Como diz Labriola em seu prefácio, "Nesse meio-tempo, M.G.Sorel se deu de
corpo e alma à pretensa Crise do marxismo”, e Labriola se encontrou daí em
diante na situação de um pedagogo que “começa, sabendo, um diálogo didático
com um amigo e este passa imediatamente para o outro lado”.
É exatamente como Croce, em Para a interpretação e a crítica de alguns
conceitos do marxismo, que aparece na Itália e na França em 1897, e, em
1898, Georges Sorel traz a guerra para dentro do santo dos santos, a teoria
marxista do valor. Na Alemanha com Bernstein, na França com Sorel, na Itália

281
com Croce, “a crise do marxismo" e, mesmo, a do socialismo estão na ordem
do dia. Antônio Labriola, cujos nome e atividade teórica estão ligados àqueles
de B. Croce e de G. Sorel e que não pretende ser confundido com aqueles que
conduzem essa “guerra de sucessão” e principalmente com aqueles que
pensam em tirar proveito político da situação — seus inimigos —, vê-se
constrangido a colocar as coisas no devido lugar. É o que ele faz na edição
francesa de seu terceiro ensaio. Sorel é atacado no prefácio, e Croce, cujas
teses teme que lhe sejam atribuídas, no posfácio. Onde se vê que a história das
relações entre Croce e Labriola, das quais falamos anteriormente, deve ser
restituída ao quadro mais amplo da história do socialismo e do marxismo —
com esse momento crítico da crise do marxismo - para ser verdadeiramente
compreendida. E a pessoa e os escritos de G. Sorel são o elo da corrente
necessário para perceber esse vínculo. Enquanto entre Croce e Labriola é a
ruptura pública que intervém, entre Croce e Sorel se afirma uma certa
solidariedade. Na sua resposta às críticas de Labriola (Interpretações recentes
da teoria marxista do valor, 1899), Croce dar-se-á o trabalho de mostrar o
interesse teórico das idéias de Sorel, que Labriola tratava com total desprezo,
e como elas convergiam com as suas. Posteriormente Croce fará traduzir para
o italiano e prefaciará as Reflexões sobre a violência, e sua revista La Critique
publicará as cartas que Sorel lhe endereçou de 1895 a 1922 (vol. 25, 1927).
Resta citar um último protagonista que desempenha nesse debate sobre
o marxismo um papel de primeira categoria: trata-se do jovem filósofo neo-
idealista Giovanni Gentile, que publicou em 1899 um livro intituíadoA filosofia
de Marx do qual falaremos noutro lugar. Mas deve ser dito desde já que a
contestação de Gentile da interpretação crociana do materialismo histórico é
um momento capital desse debate do final do último século. Ele não apresen­
taria mais hoje em dia tanto interesse para quem procura ter uma idéia exata
da natureza do marxismo, se, a partir da reconstrução já rica que Antônio
Labriola apresenta dele, nós não tivéssemos esses dois caminhos opostos, um
- o de Croce - afirmando que a filosofia de Marx é alguma coisa secundária e
até mesmo desprezível, o outro - o de Gentile - afirmando o contrário, que a
filosofia de Marx é essencial.
Voltemos a Croce, no momento, e evoquemos para começar dois artigos
dos quais um é anterior ao primeiro ensaio importante. Sobre a forma
científica do materialismo histórico. O primeiro se intitula “Sobre a his­
toriografia socialista: o comunismo de Tommaso Campanela”, e Croce rejeita-o
no fim do volume, se bem que ele tenha sido escrito antes de todos os outros,
em 1895.0 segundo é consagrado às “Teorias de Padre Loria”. Ora, esses dois
artigos são interessantes se considerados juntos, porque, ao escrevê-los, sob a
incitação de Labriola, B. Croce realiza no campo do movimento socialista -
italiano particularmente - uma função cultural relevante que podemos dora­
vante chamar, depois do artigo sobre Loria e depois dos Cadernos da prisão*,

* Uma seleção desses textos de Gramsci foi publicada no Brasil por está mesma editora, sob o
título Cartas do Cárcere. (N. do T.)

282
de Antonio Gramsci, a crítica do “lorianismo”. Gramsci, retomando uma
exigência cultural capital aos olhos de Labriola, fará do “lorianismo” uma
rubrica permanente de seus Cahiers, na qual conduz a guerra contra as
múltiplas formas de charlatanismo intelectual presentes no movimento operá­
rio; elas são sempre acompanhadas de deformações grosseiras do materialismo
histórico, que, em vez de enriquecê-lo e aperfeiçoá-lo como deveriam fazê-lo,
conduzem-no sempre a fórmulas mágicas, por meio das quais se dispensa um
trabalho intelectual e político real, dando a ilusão - perigosa - de que a
situação está sob controle. Para Labriola, portanto - antes de Gramsci —, o
lorianismo é o sintoma da imaturidade social, política e intelectual do movi­
mento socialista. Poder-se-ia mesmo dizer que este conceito permite perceber
radicalmente a maneira que ele tem de conhecer sua função cultural dentro do
movimento socialista italiano. Pois a crítica do lorianismo é apenas, no fundo,
a outra face — negativa — do trabalho de apresentação de um marxismo
autêntico, que ele tenta levar a bom termo em seus diferentes ensaios. E, se
essa apresentação é a face positiva, não se deve deixar de ressaltar que o
segundo ensaio —Sobre o materialismo histórico: esclarecimentos prelimi­
nares — procede de uma maneira essencialmente crítica, desobstruindo o
caminho de todas as falsas interpretações que o atravancam. Se Labriola sabe
relacionar com a imaturidade "objetiva” do movimento socialista todas as
formas supersticiosas e acríticas do marxismo, não deixa de experimentar
menos reações dolorosas de intolerância apaixonada com relação a elas.
Pode-se, portanto, imaginar o prazer que experimentou ao ler o artigo de Croce
sobre as teorias do Padre Loria, que gozava, verdadeiramente, de renome
internacional, e que conseguiu impunemente plagiar Marx e se fazer passar ao
mesmo tempo por inventor da concepção materialista da história e como o
crítico das insuficiências de Marx. Percebe-se também, nessa ocasião, que
espécies de esperanças Labriola nutria em relação a esse seu jovem discípulo
cheio de talento e doutamente formado pelos métodos mais rigorosos da crítica
histórica e intelectual. No artigo sobre Tommaso Campanela, são as insuficiên­
cias da historiografia socialista, na pessoa de Paul Lafarge - genro de Marx —,
que Croce ataca, denunciando ao mesmo tempo a ignorância de Lafarge dos
trabalhos sérios sobre a questão e, logo, de uma documentação, o que o
conduz a erros de fato e ao recurso de pseudo-explicações “marxistas” com­
pensatórias. “No curso de seu trabalho, Lafarge utiliza com a maior facilidade,
como se tocasse realejo, a nova concepção materialista da história, reduzida,
por sua conta, a uma fórmula cômoda, que lhe basta pronunciar para que tudo
seja explicado” (pág.188 da décima edição do livro de Croce, Laterza, 1961).
Diletantismo intelectual e fraseologia em vez e no lugar da explicação real,
essa é a essência do lorianismo sem Loria, isto é, do charlatanismo e da vaidade
literária pelo menos.
O lorianismo é o desprezo da filologia, no sentido em que os italianos
a compreendem, com base em J.B.Vico, como o estabelecimento crítico tanto
dos textos quanto dos fatos em sua particularidade histórica concreta, e é
também a inaptidão para apreender um conceito, para trabalhar com concei-

283
tos segundo uma arte que supõe ter-se o indivíduo apropriado da história da
inteligência humana. A esse respeito, o artigo de Croce sobre Loria com­
preende uma página sobre o prefácio da Contribuição à crítica da economia
política, de Marx, tal como foi traduzida e interpretada por Loria, que
Gramsci reproduzirá nos Cadernos da prisão como o exemplo típico da
crítica filológica e conceituai do lorianismo por Croce. Loria, inventor da
concepção materialista da história, é também o crítico das teorias de Marx.
“Segundo ele —escreve B. Croce —, Marx reduz o desenvolvimento econômi­
co à mudança dos instrumentos técnicos." E, para estabelecê-lo, Loria se
refere ao famoso prefácio de 1859. Croce começa, então, citar esse texto na
tradução correta que Labriola fez dele no primeiro de seus ensaios. Depois
que ele reproduz a versão de Loria, na qual figura, como um verdadeiro
demiurgo, um conceito inventado por ele: “o instrumento produtivo ou
técnico”, Croce comenta:
"Substituir a expressão ‘forças materiais de produção”' por aquela “de
instrumento técnico” é completamente arbitário; pois Marx afirma: 1) que a
vida social não-econômica depende do econômico; 2) que a economia tem um
desenvolvimento objetivo e natural; 3) que as épocas revolucionárias são
preparadas de fato pela contradição que se forma entre o progresso da riqueza
e a organização (jurídica) da propriedade... Mas, mesmo que tenha, em
qualquer outro lugar, colocado em relevo a importância histórica das in­
venções técnicas e invocado uma história da técnica (O Capital), ele nunca
sonhou em fazer do “instrumento técnico” a causa única e suprema do
desenvolvimento econômico. “Grau de desenvolvimento das forças de produ­
ção materiais”, “modo de produção da vida material”, “condições econômicas
da produção”, essas expressões e outras semelhantes que encontramos na
passagem anteriormente citada afirmam bem que o desenvolvimento econômi­
co é determinado pelas condições materiais, mas elas não reduzem de maneira
nenhuma todas as suas condições à única “metamorfose do instrumento
técnico”. Marx nunca propôs essa pesquisa de uma causa última da vida
econômica. Ele não tinha uma filosofia tão barata. Não havia inutilmente
“flertado” com a dialética de Hegel a ponto de partir logo em seguida à procura
de “causas últimas” (op. cit., pág. 43).
Como se vê, a crítica do lorianismo compreende um esforço de recons­
trução dos conceitos precisos, utilizados por Marx, contra as simplificações
abusivas, e uma vontade muito nítida de interpretar o conjunto da doutrina
dentro de um sentido antimetafísico. É dessa orientação antimetafísica da
interpretação crociana do marxismo que se deve partir para perceber o
sentido das teses que ele formula em suas memórias de 1896 Sobre a forma
científica do materialismo histórico. E, se Croce toma como referência a
exposição que Labriola fez do materialismo histórico em seus dois primeiros
ensaios, é porque, segundo ele, além de algumas formulações contestáveis e
considerando a própria substância das coisas, aí se encontra uma inter­
pretação não-metafísica da doutrina de Marx que é fiel à essência profunda
dessa substância.

284
A primeira afirmação de Croce é, portanto, de que o materialismo
histórico não é uma filosofia da história. É verdade que Labriola afirmou
precisamente o contrário, chegando até a falar de uma "filosofia da história
última e definitiva”, e é verdade também que se encontram, em Marx e em
Engels, formulações que têm esse sentido. Mas, segundo Croce, a crítica
histórica deve saber julgar, baseando-se sobre o fundo, sem parar para verificar
a palha (o que fica por cima) das palavras, as maneiras simples de falar, e
sabendo distinguir o que um autor produziu efetivamente da idéia que ele
podia ter aperfeiçoado. Esse critério de interpretação claramente formulado
por Croce e do qual é difícil contestar seus argumentos, nos impele, no entanto,
para um terreno instável em que se torna muito difícil distinguir o trabalho do
historiador das idéias do trabalho do teórico crítico que pretende separar,
dentro de uma doutrina, o núcleo são, que quer conservar, dos elementos
caducos que rejeita: Gentile, por sua vez, negará a tese crociana segundo a qual
o materialismo histórico não seria uma filosofia da história, sem rejeitar, no
entanto, o critério de interpretação formulado por Croce, mas acrescentando,
imediatamente, que toda a questão está em trazer argumentos sólidos a favor
da tese sustentada. (Cf. a correspondência Croce-Gentile em apêndice a G.
Gentile La filosofia di Marx. págs. 175-200 e a nota de Croce em Para a
interpretação..., pág. 83).
Ambigüidade, dizíamos quanto à natureza da empresa de Croce que
começa seu ensaio afirmado que, considerada em sua verdadeira natureza,
a concepção da história exposta por Labriola não é - apesar de suas
afirmações contrárias —uma filosofia da história e que dirá, algumas páginas
mais adiante: “Parece-me, pessoalmente, que se faz um elogio melhor da
concepção materialista da história afirmando não que ela é ‘a filosofia da
história última e definitiva’ mas afirmando que justamente ‘ela não é uma
filosofia da história’” (pág. 9). Pode ser realmente? Mas será que se trata de
saber qual dos dois, Labriola ou Croce, faz o mais belo elogio do materialis­
mo histórico? Não seria melhor saber o que é o materialismo histórico por
seu próprio intermédio? Na verdade, o que aparece nitidamente é que Croce
tem uma estratégia em relação a seu mestre e amigo Labriola e em relação
ao próprio materialismo histórico: “eu não queria, dirá ele brevemente a seu
amigo Gentile, trazer água para o moinho daqueles que parecem jogar o bebê
junto com a água do banho. Os defeitos do materialismo histórico não devem
fazer com que se despreze sua enorme riqueza.” {La filosofia di Marx, pág.
187).
Portanto, o materialismo histórico não é uma filosofia da história, isto
é, ele está no nível das exigências críticas do pensamento moderno que é
antiteológico, antimetafísico, antiespeculativo e que recusa, conseqüente­
mente, a possibilidade de estabelecer umalei do desenvolvimento da história
univerasal. É preciso poder-se referir às intenções de uma providência divina,
como na antiga metafísica, ou a um autodesenvolviemnto da Idéia, como no
caso de Hegel, em que o conceito universal engendra seu conteúdo particu­
lar, para pretender apreender no curso da história concreta a realização

285
progressiva de um plano predeterminado, fazendo da história uma “história
proposital”. Pode-se muito bem filosofar hoje em dia sobre a história, porque
se tem a necessidade de elaborar conceitos de maneira crítica para pensar
sobre a história real, mas essa reflexão consegue precisamente a condenação
de toda filosofia da história. Sob esse aspecto, a interpretação crociana de
Marx implica uma concepção das relações entre Marx e Hegel a que vale a
pena reportar, quanto mais não fosse pelo fato de ela reaparecer mais tarde
na França sob a pena de L. Althusser. Não se trata somente, para Croce, de
opor o materialismo histórico à filosofia da história de Hegel, mas também
de uma concepção muito mais geral da ruptura de Marx com Hegel.
Hegeliano, Marx? Sem contestar o que é para ele uma evidência, a saber "a
inspiração hegeliana de Marx” (pág. 84, n.l), da qual nós o vimos fincar pé
contra as elucubrações de Loria, ele afirma nitidamente a originalidade
radical de Marx com relação a Hegel, ainda aí a despeito ou além das filiações
históricas e das semelhanças externas. “O vínculo entre as duas concepções
me parece ser de ordem puramente psicológica, porque o hegelianismo era
a cultura na qual o jovem Marx se formou e é natural que cada um ligue aos
velhos pensamentos outros novos, concebendo-os como desenvolvimento,
como correção, como antítese” (pág. 5)...
“E quanto à dialética hegeliana dos conceitos, parece-me pessoalmente
que ela tem uma semelhança puramente exterior e aproximativa com a
concepção histórica dos períodos econômicos e das condições antitéticas da
sociedade” (pág. 5).
Embrenha-se do mesmo modo, segundo Croce, em uma falsa direção
que conduz a tomar o materialismo histórico por “um materialismo metafí­
sico”, quando se imagina, a partir de um conceito célebre de Marx no
prefácio de 1873 de O Capital, que ele colocou a “matéria” no lugar da Idéia
hegeliana. É a linha seguida por Plekhanov que afirma que o marxismo é um
monismo materialista, o que aos olhos de Croce não significa estritamente
nada, já que, no materialismo histórico se trata de pensar a história, sem ter
a ambição de filosofar sobre “os elementos das coisas” para saber se são
“dedutíveis um do outro e se se unem em um princípio último” (pág. 6). Não
é que Croce ignore ou conteste que os fundadores do materialismo histórico
se tenham valido do “materialismo metafísico” ao qual os levou a evolução
da esquerda hegeliana, e é certo que essa filosofia “deu seu nome e alguns
pontos particulares à concepção deles da história”; mas, diz Croce, “parece-
me também totalmente certo que o nome tanto quanto esses pontos particu­
lares sejam estranhos à verdadeira significação da doutrina”. Não existe
nenhuma relação intrínseca entre materialismo histórico e materialismo
metafísico, o nome do primeiro é “uma simples maneira de falar”, e,
conseqüentemente, Lange, em sua História do materialismo, teve toda
razão em não tratar do materialismo histórico.
Sem dúvida, não é inútil dissipar um equívoco ocorrido. Quando Croce
fala de materialismo metafísico, não entende este último termo, parece-me,
no sentido em que Engels o tomava opondo matafísica e dialética, no

286
prolongamento da oposição hegeliana do entendimento e da razão. Dialética
ou não —poder-se*ia dizer - o materialismo é uma metafísica, isto é, uma
concepção do real que coloca a “matéria” como a substância verdadeira de
todas as coisas e que reduz a este único "elemento” todos os elementos do
real. É essa a análise que faço de seu pensamento, pois é preciso esclarecer
que Croce não é explícito sobre esse ponto.
Simples maneira de falar, portanto, é a razão do emprego deste nome
materialismo histórico que se explica por fatos ligados à formação intelec­
tual de Marx e de Engels, mas que não se justifica intrinsecamente. A
maneira de falar não é, no entanto, inocente e induz a interpretações da
doutrina que a esterilizam, a deformam e fazem com que seja rejeitada. Esta
deformação traz um nome: o economismo, e parecer bem ser a conseqüência
do materialismo metafísico arbitrariamente introduzido na doutrina. “Nume­
rosos são aqueles - escreve Croce — que imaginaram que o materialismo
histórico significava que a história é apenas a história econômica e que todo
o resto é uma simples máscara, uma aparência sem substância.” Engels, no
fim de sua vida, e Labriola, em seu, Ensaios, fizeram justiça a essa pretensa
redução da história integral apenas ao“fator econômico”. Mas, como foi
assim, Croce pôde se voltar para seu mestre e lhe perguntar "se não parecia
também a ele que a denominação deveria ser mudada para desfazer a
confusão, por assim dizer, intrínseca, que está nela” (pág. 7) e ele voltaria,
nas últimas linhas de seu artigo, a esse assunto, propondo chamá-lo daí em
diante "concepção realista da história”. Reexaminando a questão em seu
terceiro ensaio, Labriola não lhe dará verdadeiramente satisfação. Pos­
teriormente, em compensação, Gramsci, nos Cadernos da prisão, fará suas
todas essas reservas críticas de Croce.
No ponto em que estamos, sabemos muito bem o que o materialismo
histórico não é ou não deve ser, para ser o que é verdadeiramente quando é
compreendido e utilizado de maneira inteligente. Nem filosofia da história com
seus planos preestabelecidos e sua necessidade absoluta que encaminha a um
Deus ou a uma Razão transcendente, nem uma metafísica materialista reme­
tendo também, à sua maneira, a uma realidade transcendente a história dos
homens, que se chama matéria. Mas não sabemos ainda positivamente o que
é, senão quanto a seu conteúdo - pois vimos Croce aceitar as proposições mais
conhecidas do materialismo histórico —, pelo menos quanto a sua posição. Ora,
todo o problema para Croce — uma vez que se tenham eliminado suas
deformações e algumas vezes também suas fraquezas - é um problema de
posição. E, nesse ponto, Croce vai proceder de uma maneira radical, da qual
não é fácil perceber o sentido profundo. Enunciemos primeiramente a tese
antes de tentar explicá-la: o materialismo histórico só é e só deve valer como
uma simples regra empírica para a pesquisa histórica, uma simples regra de
interpretação. Enquanto tal, ela é rica e preciosa e permite ao historiador
resolver numerosos problemas deixados até então sem solução. Ele existe,
portanto, sob a forma de aforismos ou de proposições gerais tiradas da
experiência, que não têm nenhum alcance absoluto, e vive nas obras his-

287
toriográficas concretas em que essas regras de interpretações são utilizadas
com discernimento pelo historiador, que as utiliza no lugar onde podem e
devem ser utilizadas. No artigo consagrado ao Padre Loria, Croce se exprime
da seguinte maneira a respeito do materialismo histórico: "Sobre a significação
precisa que lhe repetem, tive recentemente a ocasião de dar meu palpite. Marx
e Engels nunca reduziram essa concepção a uma teoria rigorosa e solidamente
racional e não podiam operar essa redução, pois, nesse caso, os elementos
constitutivos de uma teoria não estão presentes. Um e outro não nos deixaram
a este propósito nada além de aforismos gerais e aplicações particulares. E essa
concepção, para permanecer verdadeira e fecunda com relação à historiografia,
não deve sair desses termos: forma aforística de enunciação e forma prática de
aplicação. Os esforços feitos em outra direção arriscam-se e desnaturá-la. Ela
deve servir de aviso e de estímulo aos intérpretes da história e deve viver nas
obras históricas que inspirou e inspirará. Aquele que a compreende bem acolhe
em si as sugestões que ela traz; mas sugestões não querem dizer conclusão”
(pág.29).
Labriola e Engels aproximavam-se dessa verdade quando falavam de um
simples- método, mas a palavra método não é justa, pois convém mais para
designar as construções racionais a priori dos filósofos da história; os partidá­
rios do materialismo histórico não utilizam outros métodos diferentes daqueles
de todos os historiadores que conheciam a arte da “filologia”. Portanto, não é
método, mas regras empíricas de interpretação para serem utilizadas com
discernimento. E, portanto, idéias certas, dados, conteúdos da experiência, da
vida, sintetizadas em fórmulas gerais, mas não teoria no sentido próprio do
termo, pois, tratando-se do conteúdo concreto da história, não existe lugar para
uma teoria.
Começando por afirmar que o materialismo histórico não era nem uma
filosofia da história, nem uma metafísica materialista, Croce vem nesse
momento colocar simplesmente que ele não é, de maneira nenhuma, uma
filosofia. E é o sentido dessa tese que é preciso tentar agora precisar.
Notemos primeiramente que, a partir das próprias premissas de Croce, se
pode chegar a uma conclusão totalmente oposta que se formula assim:
certamente o materialismo histórico rompe com as antigas filosofias ra-
cionalistas e materialistas, e, sob a forma em que Marx e Engels o deixaram
para nós - que corresponde aproximadamente à descrição de Croce - , ele
não é ainda uma filosofia. Todavia, o materialismo histórico contém implici­
tamente uma nova filosofia, autônoma e original, restando, agora, apenas
elaborá-la. Essa nova filosofia, que é irredutível às filosofias do passado, mas
que não foi ainda sistemática e cientificamente tematizada, já tem um nome,
indicativo de uma orientação: é filosofia da práxis.Essa solução é a do
“marxismo italiano”, que se encontra embrionariamente em Labriola e que
será posteriormente desenvolvido por Gramsci ou por Rudolfo Mondolfo. À
sua maneira, o livro de Gentile A filosofia de Marx contribuirá para o
desenvolvimento dessa orientação. Croce não ignora sua existência, como se
pode ver em uma nota de Para a interpretação...-. “Sob esse aspecto (isto é,

288
limitando a afirmação à doutrina do conhecimento) poder-se-ia falar, com
Labriola, de um materialismo histórico enquanto filosofia da práxis, isto é,
como uma maneira particular de conceber e de resolver, e mesmo superar o
problema do pensamento e do ser” (pág. 110). Ele percebe sua existência,
mas não lhe diz respeito. Por seu lado, ele tem em vista, daqui em diante, a
elaboração de seu próprio sistema filosófico, cujas linhas diretrizes já estão
presentes no volume que explicamos. A realidade é espírito, isto é, história.
As formas universais do espírito, que a filosofia tem por tarefa conceber na
autonomia específica delas e em suas relações, são o espírito teórico e o
espírito prático que comportam, cada um, dois momentos, os do pensamento
e da expressão estética, de um lado, e os da utilidade {ou da economia) e da
ética, de outro. São momentos distintos do espírito, e a unidade dos distintos
não suprime sua distinção. Se se ousa dar um alcance filosófico às propo­
sições gerais do materialismo histórico, cai-se em erros filosóficos graves,
como os que consistem em não reconhecer o pleno valor autônomo das
verdades do conhecimento ou dos princípios éticos. Essa é uma primeira
razão para reduzir o materialismo histórico a uma simples regra empírica
para a pesquisa. Essa redução tem, então, um sentido totalmente negativo,
e é assim que os marxistas italianos a perceberão —Gramsci em particular.
Ela significa: a filosofia de Marx, na medida limitada em que ele tem de uma,
é uma pobre filosofia; a verdadeira filosofia da qual a cultura moderna
necessita é aquela que estou elaborando, a da unidade e da distinção dos
momentos da realidade que é espírito, isto é, história. Mas essa redução tem
também uma significação positiva que se poderia chamar de antidogmática.
É que, para Croce, o conhecimento está longe de se reduzir apenas ao
conhecimento abstrato dos momentos universais mais formais do espírito
que nos dá a filosofia. O conhecimento concreto é o conhecimento histórico
que os conceitos filosóficos podem somente esclarecer e orientar. Trata-se,
então, de explicar os conteúdos empíricos particulares que não se deduzem
das formas universais. Do abstrato ao concreto não existe passsagem. Esta
é a tese de Croce: nessa perspectiva afirma, como ele o faz, que as idéias do
materialismo histórico são regras empíricas para a pesquisa e não têm em
seu espírito uma significação pejorativa: são essas “regras” quê enriquecem
a consciência com a qual o historiador aborda a realidade e a interroga; e
que, unidas a seu discernimento sempre desperto, permitem ao conhe­
cimento concreto progredir. Marx - diz Croce - não nos deu “definição”
sutilmente elaborada da “sociabilidade”, mas ensinou-nos “a penetrar o que
a sociedade é em sua realidade efetiva”. É por isso que popõe chamar sua
doutrina de “concepção realista da história” e seu fundador de “o Maquiavel
do proletariado” (págs. 112-113).

• M a te ria lism o sto r ic o e e c o n o m ia m a rx istica , Edizione Sandron, 1900 e 1907; a partir da


terceira edição, 1918, Edizione Laterza; M a té ria lism e h isto r iq u e e t é c o n o m ie m a rx iste, tradu­
ção de A Bonnet, Giard ÃBrière, 1901, reeditado pelas Editoras Slatkine, Genebra, 1981.

289
► A. Labriola, Essais sur la conceptlon matérialiste de Vhistolre, tradução A. Bonnet, Ciard
& Brière, 1897; reeditado em 1970 por Gordon & Breach; Idem, Sociallsme et philosophie
(Lettres à G. Sorel), tradução de A. Bonnet, Giard & Brière, 1899; G. Gentile, La filosofia di
Marx Firenze, Sansoni, 1924; R. Mondolfo, Umanlsmo dlMarx. Studi filosofl, 1908-1966,intro­
dução de N. Bobbio, Einaudi, 1975; A. Cramsci, II materiallsmo storico e la filosofia di B. Croce,
Einaudi, 1949, tradução francesa em Cramsci dans le texte, Editions Sociales, 1975, e Gahiers
de la Prlson, Callimard; B. Croce, Contributlon à ma propre critique, tradução de J. Chaix-Ruy,
Nagel, 1949.
Sobre a relação Croce-Centile, cf. o artigo sobre La philosophte de Marx.

Jacques TEXIER.

290
DANTE ALIGHIERI, 1265-1321
De Monarchia, 1310 (?)

Essa obra, escrita em latim por Dante Alighieri no começo do século XIV
—situa-se geralmente a redação no começo dos anos 1310 —pode ser considerada
o tratado em que o pensamento político dantesco se enuncia mais explícita e
completamente, enquanto o De Convívio o exprimia anteriormente, de maneira
mais alusiva, e A Divina Comédia de maneira necessariamente parabólica. Esse
tratado revela que existe uma política dantesca sui generis, organizada como tal,
e não uma simples posição conjuntural de Dante sobre a “coisa política".

A motivação da obra

Mas, além desse interesse centrado sobre a própria pessoa de Dante, a obra
merece interesse como exemplar da natureza da obra política, em um período de
grosseira articulação da modernidade: o De Monarchia articula, com efeito,- uma
posição estratégica, diretamente ligada aos estímulos da prática política, com um
plano de respaldo teórico, fortemente apoiado sobre uma metafísica. A obra é
efetivamente um eco, entre muitos outros, da prova de força decisiva que opõe
o Estado monárquico moderno, em busca de sua soberania, ao poder espiritual
encarnado pela Igreja Mas ele se quer simultânea - e prioritariamente, para o
próprio Dante — uma dedução exata dessa posição estratégica a partir de
princípios rigorosamente definidos. Pode-se, assim, apreender ao vivo o trabalho
próprio de racionalidade da obra, procurando basear de jure uma tese ligada à
posição histórica própria do autor. Assim como esse trabalho não é a produção
de razões que refletem mecanicamente a posição do autor que teria sido
adquirida antes da obra, é dentro da própria obra que se encontra informado
(no sentido literal) o projeto do ator histórico, autor da obra.
O que o título indica, a Monarquia ou Império é tanto o objeto da reflexão
política, sobre a qual ela se exerce, quanto a reconstrução do “verdadeiro”

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conceito de Monarquia, isto é, a Monarquia segundo seu princípio, com o qual
sonha Dante. Como o Defensor pacis, de Marsile de Pádua, o modelo do
gênero, poder-se-ia considerar o DeMonarchia categórico a favor daquela, no
debate que o opõe à Igreja - o que constitui bem o efeito desejado. O fundo
histórico da obra é a oposição sem piedade a que se entregam os Guelfos, fiéis
à autoridade temporal do papado, e os Gibelinos, que defendem a prerrogativa
imperial. Em Florença eles se opõem mais tarde sob a denominação do Negros
e Brancos. Divisão político-religiosa complicada ao extremo pela oposição das
famílias e dos povoados. Nascido em uma família de simpatia guelfa, o autor
do De Monarchia adere aos Brancos; depois de ter participado do poder em
1300, a entrada de Charles de Valois, então aliado de Bonifácio VIII (repre­
sentado no Inferno entre os condenados!), condena Dante ao exílio em 1302.
Depois de ter participado de uma tentativa de reconquista em 1304, Dante se
encontra reduzido à inação: o De Monarchia segue de maneira muito próxima
o aparecimento do imperador Henrique VII, coroado em Milão (1310), a ponto
de Ozanã reduzir a obra a “um manifesto eloqüente” puramente partidário
(Dante et la philosophie catholique au XIIIe siècle, sétima edição, pág. 363).

A estrutura em tríptico

A originalidade da obra reside, realmente, menos em sua escolha do que


na argumentação que a sustenta.
Essa se reparte segundo um tríptico, no qual cada uma das três partes
oferece uma estrutura, apesar disso, complexa. No primeiro livro, trata-se de
deduzir a necessidade do princípio imperial do princípio finalizado de unidade
pela paz, para mostrá-lo necessário ao bem-estar (benesse) do mundo. O
segundo livro sonda a origem do Império, à luz de uma questão tópica: a de
saber se os Romanos podem ser considerados como tendo exercido de jure o
poder universal. Por isso, o Direito chega a ser identificado com a Vontade de
Deus. O último livro refuta as objeções contra a primazia do imperador tiradas
da Sagrada Escritura e, depois, da história. Depois de ter recusado à Igreja o
direito de dar autoridade ao Império, Dante chega a basear a independência
dos poderes sobre a dualidade própria da natureza humana, depois da última
necessidade de um princípio único dominante - por onde se reencontra a idéia
expressada no começo.
Vê-se imediatamente que o político é decifrado como sustentáculo de
uma posição metafísica prévia de inspiração aristotélica. Onipresente em De
Convívio, a referência aristotélica inaugura a demonstração do De Monarchia.
A questão primitiva de saber "se a monarquia temporal é necessária ao
bem-estar do mundo” é, com efeito, imediatamente conectada à definição da
“operação própria à essência da espécie humana”, ou seja, o exercício do
intelecto, tanto na vida especulativa quanto na vida prática (o que o Convívio
já havia percebido). A paz se confirma, então, como condição necessária, logo,
como sinal distintivo dessa vida finalizada da qual as formas sociais são a
expressão. Desse modo, é exigida Vordinatio ad unum, essa referência ao Um,

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que atesta que o Imperador dá sua substância política, pelo exercício de seu
poderio, a este requisito metafísico: a própria liberdade dos súditos só se pode
desenvolver pela virtude do poderio do súdito regulador que assegura o reflexo
da meta única no tecido social, o que foi realizado, em resumo, pela primeira
vez no mundo, isto é, "fenomenalizado", no Império Romano, com Augusto.
Esse finalismo integral tem por conseqüência uma espécie de teodicéia
política, que dá seu sentido ao segundo livro: torna-se realmente essencial
mostrar que o Império Romano não é o efeito do acaso ou da violência, mas
sim da Providência - o que requer uma espécie de revisão radical da Cidade
de Deus, de Santo Agostinho. O direito deve ser, para isso, identificado com a
vontade de Deus, a fim de que seja santificada a instância imperial criadora de
direito. Dante opera, assim, uma volta à mitologia fundadora de Roma, cujo
poder é reativado, a ponto de parecer se impor como o lugar santo do Político,
a Jerusalém em que se situou o berço do Império. Realmente, é como uma
antecipação de Maquiavel, uma justificação do Príncipe romano que soube dar
leis aos homens e garantir a justiça universal por seu cetro. O nacionalismo
italiano pode, porém, encontrar o que lhe pertence nessa teodicéia, já que ele
tem conexão por meio de Enéias com essa virtude originária.
Por meio dessa dupla aproximação —de princípio e histórica —, Dante
pôde avançar sua tese, em seu terceiro livro, com a força de uma conclusão
atraída por suas premissas. Ele desce, com efeito, dessa vez, sobre o terreno
da áspera polêmica entre os defensores das duas teses, mas protegido, de ora
em diante, por sua ordem de razões metafísico-históricas. Os argumentos do
Pontífice e de seus defensores são, por isso mesmo, reduzidos a um discurso,
que contradiz a ordem do mundo previamente descrita. É até a imagem do sol
clareando a lua que é preciso dissipar, mostrando que o Imperador não recebe
seu “brilho”, de jure, do Papa, mas que ele se resume à sua própria potência.
É preciso também, à luz da mitologia do livro II, recusar a famosa “doação de
Constantino”, sobre a qual se apoiava miticamente a reivindicação papal.
Trata-se, enfim, de refutar o argumento tão sugestivo da redução à unidade das
coisas do mesmo gênero, requerendo reduzir o Papa e o Imperador, ema­
nações do gênero humano, a um só homem que, nesse caso, só poderia ser o
Papa, pois ele mesmo não se poderia submeter ao Imperador! Por isso mesmo,
ele “limita” o primeiro à função de “pai”, o segundo se achando definido como
"soberano”. Logo, o Soberano só tem que prestar contas a Deus.
Mas nesse ponto parece necessário um apoio positivo da tese até então
resgatada somente por refutação. É o papel desempenhado pela antropologia
dantesca: sua concepção do homem como meio-termo entre os seres inferiores
(corruptíveis) e superiores (incorruptíveis), estes tendendo, por sua vez, a uma
beatitude nesta vida e no além, o que satisfaz a filosofia e a religião, respectiva­
mente. Em razão do pecado original que cria obstáculo a esse programa, uma
dupla instituição é necessária, celeste (papal) e terrestre: o Imperador se afirma
o mediador obrigatório da felicidade terrestre. Quando muito ele deve poupar
esse pai espiritual, figura de um poder espiritual que pertence apenas a Deus,
respeito que combina demais apenas com a evocação de sua impotência

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A soberania como ética

Vê-se, presentemente, que a tese rigorosa da obra de Dante está longe de


esgotar seu valor: Dante recria, de certa maneira, um gênero —o da apologia
do Império —dando-lhe um alcance profundamente original.
Pode-se notá-lo por essa posição do político, enquadrado entre uma
fundamentação metafísica e uma antropologia, ela própria centrada sobre uma
ética. O Imperador, súdito da soberania, é mais do que uma escolha política: é
o requisito do mundo e da natureza humana. Fornecedor da paz, mediador de
Deus, ele é também o modo de acesso à sabedoria. Dante escreve, assim,
alguma coisa como o poema da modernidade política, sobre a qual ele se
antecipa, por isso mesmo; o tema passa a ser, daí em diante, o vínculo
indestrutível entre o Súdito Soberano, exercendo seu poder dentro dos únicos
limites de seu poderio, Universal encarnado no Um —talvez o Imperador e
os súditos, que só fazem legitimar o Súdito por sua obediência, mas que só
podem participar de sua própria essência participando do Poder imperial.
Mas, antecipando-se totalmente à dialética moderna da Soberania que
surgirá entre os séculos XVI e XVIII, Dante se distingue de forma nítida,
justamente por essa mediação ética que substitui o político. Se realmente a
ética se vê determinada a um destino político, ela permanece a reserva
necessária entre o indivíduo e o soberano, entre os súditos e o Súdito. Daí o
efeito contrastado: de um lado, essa relação ética impede essa relação de se
"politizar” de lado a lado de certa maneira (seria um contrasenso interpretar
nesse sentido a concepção dantesca da soberania retrospectivamente, à luz da
soberania moderna); mas, de outro lado, a ética impõe uma espécie de
“substancializaçáo” antropológica do bem político, que se encontra fundamen­
tado até no ser do mundo, o político tornando-se, assim, uma espécie de fato
cosmológico. Talvez esteja aí o paradoxo central dessa problemática, quer
dizer, seu lugar próprio.
Nesse sentido, o De monarchia é bem mais do que um texto de
circunstâncias. Se a tentativa de Henrique VII, marchando sobre a Itália, pôde
ser o fermento histórico da construção, é mais além que alcança a obra: como
apelo do pensamento do Um para que pudesse garantir, enfim, a posse do
Universal. O encontro com o Imperador, que não chegou a ocorrer, tendo
Dante esperado em vão que ele viesse a Florença em 1312, quando se dirigia
para Roma, é um pouco simbólico desse cruzamento do Dircuso sobre o Um
e sua encarnação temporal. Assim como Henrique VII morreu em 1313, o De
Monarchia é também o canto fúnebre de uma ambição!
Mas alguma coisa da ambição de legitimar a soberania se pôs a caminho,
de tal modo que, quando o De Monarchia foi impresso pela primeira vez em
Basiléia, em 1559, pôde cair sobre um terreno alimentado pelos teóricos da
soberania, a começar por Bodin. Obra para ser relida dentro dessa perspectiva,
como se Dante, fixando essa ambição de totalização do político, tivesse
também, no domínio político, entrevisto o meio do caminho entre o Paraíso e
o Inferno, ao qual seria devotada uma certa figura da modernidade.

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De Monarchia, ed. Bâle, 1581.

► Boccace, Vie de Dante; Ozanam, Dante et la philosophie catholique au X l lf siècle, Paris, 1839;
F. X. Kraus, Dante, sein Leben undsein Werk, sein Verhãltnts zur Kunst und zur Politik, Berlim,
1897; Etienne Gilson, Dante et la philosophie. Paris, 1939; Passerine, Dante as a political thinker,
Oxford, Claredon Press, 1952; Ercole Francisco, II pensiero político dl Dante, Milão, 1928;
Augustin Renaudet, Dante humaniste, Paris, Les Belles-Lettres, 1952; Arrigo Solmi, II pensiero
político dl Dante, Flrenze, 1922; Jacques Goudet, Dante et la politique, Aubier, 1979.

Paul-Laurent ASSOUN.

DARWIN, Charles, 1809-1882


A origem das espécies, 1859

Quando, em 1859, Charles Darwin se decidiu a publicar a obra que


reorientou de maneira decisiva o olhar de nossa cultura sobre o mundo vivo,
sabia que ia provocar polêmicas apaixonadas e ataques violentos, mas não pôde
esperar mais. Desde os vinte anos consagrou suas pesquisas e todos os recursos
de sua inteligência ao problema central que o ser vivo coloca: como explicar, ao
mesmo tempo, a diversidade e a semelhança das múltiplas espécies?
Desde 1838, ele compreendeu qual processo se encontra em ação na
natureza; depois, acumulou pacientemente as observações que sustentavam
sua teoria; começou, em 1856, a escrever sem pressa uma exposição sis­
temática, completa, argumentada dessa teoria; submeteu regularmente os
fragmentos dessa futura obra a alguns amigos. Mas, em junho de 1858, um
zoólogo que seguia suas pesquisas na Malásia, Alfred Russell Wallace, lhe
mostra, em uma carta, suas próprias conclusões a propósito do mesmo
problema; elas são idênticas. Sob pena de perder a prioridade de uma des­
coberta para ele já antiga, resolve-se a publicá-la sem esperar mais. Em julho
de 1858, uma comunicação comum dele e de Wallace é lida diante da
Sociedade Lineusiana de Londres; depois redige rapidamente um “resumo” de
sua grande obra; esse resumo, já volumoso, pois sua versão em francês contém
578 páginas*, aparece em novembro de 1859, sob o título de L ’Origine des
Espèces (A Origem das Espécies). Em alguns dias todos os exemplares foram
vendidos, e a polêmica que Darwin havia previsto se desencadeou; ela atingiu
seu ponto culminante a 30 de junho de 1860 no decorrer de uma reunião, em
Oxford, com Thomas H. Huxley, amigo de Darwin, que o vence com vantagem;

* Todas as referências concernem à tradução de Edmond Barlier, publicada em 1980 pelas


Editions Maspero com prefácio de Colette Cuillaumin.

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em pouco tempo o pensamento científico e, também, a opinião pública adotam
o “darwinismo”.
Mas o que traz de tão revolucionário A origem das Espécies? Essencial­
mente, duas idéias para sacudir a visão que a sociedade da época tinha do
conjunto dos seres vivos: 1) as diferentes espécies são o resultado de transfor­
mações graduais a partir de uma origem comum; 2) essas transformações
resultam de um mecanismo rigoroso: a seleção natural. Darwin forneceu um
conjunto coerente, de uma lógica rigorosa: a realidade de uma crônica (a
evolução das espécies) foi justificada pela existência de um processo (a seleção
natural), do qual essa crônica é o resultado.
De fato, em sua obra, essas duas idéias-força são articuladas na ordem
inversa dessa que acabamos de adotar; ele expõe em primeiro lugar, a partir de
mil exemplos, a evidência de uma lutíy entre os indivíduos; essa luta, levando-se
em conta a extrema variabilidade dos seres, não pode ter como conseqüência
uma transformação progressiva da espécie; ele conclui pela possibilidade de uma
diferenciação progressiva da “grande árvore da vida, cujos galhos mortos e
quebrados sumiram dentro das camadas da crosta terrestre, enquanto suas
magníficas ramificações sempre vivas e renovadas sem cessar, cobrem sua
superfície" (pág. 143). Quanto à palavra que se tornou a palavra-chave de sua
teoria, Evolução, ela só aparece na sexta edição dessa sua obra.
A idéia de que as espécies são aparentadas umas com as outras já havia
sido emitida e retomada várias vezes, de tal maneira são espantosas certas
similaridades das formas anatômicas; o esqueleto de um cão e o de uma foca
manifestam tantas correspondências que é tentador atribuir-lhes uma origem
comum. Desde 1721, Montesquieu emitia a idéia de uma filiação entre es­
pécies, idéia retomada por Maupertuis, por Diderot, e pelo próprio avô de
Charles Darwin, Erasme Darwin; mas quem fez disso um verdadeiro sistema
explicativo, ao qual Broca deu mais tarde o nome de transformismo, foi
Lamarck. Ele também propõe uma explicação dessas transformações sucessi­
vas, explicação essa que leva em conta essencialmente a tendência natural dos
seres vivos para a complexificação, a modificação dos órgãos em função de seu
uso ou não-uso, enfim, a transmissão dos caracteres adquiridos.
O conjunto apresentado por Lamarck constitui também um todo
coerente. No entanto, a doutrina quase unanimemente aceita em sua época
continuou a ser o fixismo, única compatível com uma interpretação literal
da Bíblia: as espécies são tais como Deus as criou; sua maravilhosa dis­
posição é a marca de uma vontade divina que as dotou de órgãos precisa­
mente adaptados ao papel que Ele lhes atribuiu. Os cientistas mais es­
tabelecidos (principalmente Cuvier) defendiam, contra Lamarck, a tese da
invariabilidade das espécies e o vencem com ampla margem perante a
opinião pública; Lamarck morreu na miséria, esquecido, em 1829. Sua obra,
entretanto, deixou vestígios; as discussões que ele provocou prepararam os
espíritos para um questionamento decisivo.
Esse questionamento só poderia abalar as certezas anteriores se repou­
sasse sobre uma argumentação dificilmente refutável; foi o que Darwin trouxé.

296
Ele não expôs de repente uma teoria, não a afirmou; examinou e refletiu em
voz alta a propósito daquilo que observou.
Sua aventura pessoal lhe proporcionou uma oportunidade excepcional de
ver a realidade das espécies, e ele soube aproveitá-la. Muito jovem (com vinte e
dois anos), embarcou como “naturalista” do Beagle, navio encarregado de ir
explorar as costas este e oeste da América do Sul, Patagônia, Terra do Fogo,
Chile, Peru, assim como as ilhas do Pacífico. No decorrer dos cinco anos desse
périplo, manifestou uma notável aptidão para observar com acuidade todas as
produções da natureza e para registrar com precisão as inúmeras informações
que recolheu; maravilhou-se com a diversidade das formas vivas, mas, além dessa
admiração, procurou compreender como essa diversidade sepôde instaurar e
manter; a questão para ele tinha face dupla; entre espécies vivas em regiões
vizinhas apareciam diferenças; simultaneamente, entre espécies geograficamente
muito afastadas, uma convergência era evidente. Ainda que sua formação de
zoólogo não o conduzisse de maneira nenhuma a colocar em dúvida a apresen­
tação clássica de espécies imutáveis, a idéia de uma transformação progressiva
se impôs, pouco a pouco, a seu espírito. Segundo a apresentação que ele próprio
dá de seu itinerário intelectual, a idéia da modificação das formas vivas no curso
das gerações não foi, em seu caso, uma teoria preconcebida que ele se esforçou
em justificar mais tarde; ela foi, ao contrário, o resultado inevitável da acumula­
ção de fatos oque ele soube examinar. A realidade desse percurso pessoal é sem
dúvida mais complexa; quando voltou para a Grã-Bretanha estava persuadido de
que a evolução do Vivente era um fato, mas compreendia que esse fato não podia
ser admitido (de tal modo ele ia contra as idéias admitidas) se não fosse
apresentado como a conseqüência inevitável de um mecanismo que não pudesse
ser posto em dúvida.
Esse mecanismo, que constitui o dote específico de sua obra, lhe foi
sugerido, em 1838, pela leitura do livro de Malthus, Essai sur le príncipe de
population (Ensaio sobre o princípio de população). Sabe-se que esse autor
afirma nessa obra que o crescimento natural dos efetivos de uma população é
necessariamente “geométrico” (isto é, sua taxa de crescimento anual é cons­
tante) enquanto o dos recursos disponíveis (alimentares) é “aritmético” (seu
crescimento anual é constante); portanto, virá o momento em que os recursos
serão insuficientes, o que tornará necessária uma limitação dos nascimentos.
Darwin não retoma realmente a argumentação pouco convincente de
Malthus (em virtude de que lei os recursos teriam um desenvolvimento
aritmético?); ele a transporta, constatando que todas as espécies são excessiva­
mente proliferas, a tal ponto que os recursos são sempre insuficientes para
assegurar a sobrevivência de todos os indivíduos procriados. Apenas alguns
entre eles poderão sobreviver e participar da perpetuação da espécie; serão
aqueles cujas características terão as melhores armas para sair vencedores da
competição inevitável que se estabelece. Tudo se joga, portanto, sobre o fato
de os indivíduos não serem igualmente “aptos” para a “luta pela existência”;
desvios se produzem e provocam uma dinâmica evolutiva. A frase-chave da
obra é, sem dúvida, esta:

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Se variações úteis a um ser organizado se apresentam, certamente os indivíduos que são
objeto delas têm melhor chance de vencer na luta pela existência; pois, em virtude do
princípio poderoso da hereditariedade, esses indivíduos tendem a deixar descendentes
tendo a mesma característica que eles - dei o nome de seleção natural a esse princípio
de conservação ou de persistência do mais apto (pág. 140).

O termo “seleção”, que teve tanto sucesso, lhe foi inspirado pelo compor­
tamento dos criadores que dirigem artificialmente os cruzamentos em seus
rebanhos, tendo em vista melhorar tal ou tal característica, rapidez dos cavalos,
produção de leite das vacas, etc.; seu sucesso não pode ser colocado em dúvida,
sobretudo para um inglês consciente da superioridade das espécies assim
selecionadas por seus concidadãos. Mas a escolha dessa palavra não foi feliz e
será fonte de muitas incompreensões. Os dois mecanismos são, na verdade, de
essências totalmente diferentes.
Os criadores têm um objetivo; pensam no futuro e se esforçam para
transformar esse futuro de acordo com seus desígnios; os atos deles agora são
guiados por seu conhecimento (mais ou menos preciso) das conseqüências que
esses atos terão amanhã. A seleção artificial, tal como ela é desde muito tempo
praticada, tem por natureza uma finalidade, que é justamente tornada possível
pela intervenção do homem.
A natureza, totalmente ao contrário, só conhece o presente. As forças que
ela põe em jogo, as interações complexas que provoca entre cada ser vivo e
seu meio só dependem da realidade atual. Tal grão vai germinar, tal animal vai
resistir às agressões do mundo exterior e, um dia, procriar; a conclusão da
aventura deles não corresponde a nenhum objetivo, ela resulta somente do
jogo rigoroso dos mecanismos do instante.
É justamente aí que se situa a revolução darwiniana: a história do ser
vivo é reintegrada na história da matéria e resulta dos mesmos determinismos.
A palavra “determinismo” implica que apenas o passado e o presente intervém,
não o futuro, pois este não tem existência. A problemática do estudo dos seres
vivos foi totalmente perturbada.
Compreende-se o vigor das reações face a tal apresentação da realidade;
a revolução conceituai que ela implica tem a mesma violência que aquela que
fez abandonar três séculos antes a visão de um universo do qual nossa Terra
constituía o centro.
E, no entanto, toda argumentação de Darwin repousa sobre uma afirmação
gratuita (pode-se mesmo dizer dogmática) e da qual sabemos agora ser contrária
à realidade. Para explicar a transformação de uma população, de um grupo, é
preciso, com toda evidência, conhecer o processo de transmissão de seu patrimô­
nio biológico entre as gerações; ora, Darwin não conhecia esse processo, não o
podia conhecer e, parece, não tinha nem mesmo verdadeiramente consciência de
não o conhecer. Trata-se, no entanto, do problema central; ele o resolve sem
mesmo o colocar: “Em virtude do princípio da hereditariedade, os indivíduos
tendem a deixar descendentes tendo a mesma característica que eles." Tudo é
explicado pelo recurso ao “princípio da hereditariedade”, da mesma maneira que

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o movimento dos planetas é explicado pelo princípio da gravitação universal. Mas
a que corresponde este princípio?
A resposta começou a ser fornecida seis anos depois do aparecimento de
A Origem das Espécies, na (agora) célebre comunicação de Mendel diante da
Sociedade de História Natural de Brünn. Ele também propõe uma revolução
conceituai de primeira grandeza: nega a transmissão de caracteres. O que os
pais transmitem aos filhos não é tal característica, são os fatores (dizemos
atualmente os genes) que neles governam essa característica; e, nas espécies
sexuadas, cada pai ou mãe transmite apenas a metade dos fatores que possui.
De repente, toda a articulação lógica de Darwin cai por terra. Essa foi a
conclusão dos biólogos que, em 1900, trinta e cinco anos depois de sua
publicação, enfim compreenderam as afirmações de Mendel. Também houve
oposição com toda força ao mendelismo, considerado como uma teoria ico­
noclasta: ela colocava em dúvida os fundamentos da doutrina doravante quase
universalmente adotada. E, no entanto, a evidência estava a favor de Mendel;
é um fato, os cromossomos existem aos pares e um único membro de cada par
se encontra em um espermatozóide ou em um óvulo.
O paradoxo foi resolvido graças a uma síntese, cujo nome é revelador: o
neodarwinismo. Segundo esse título mesmo, o darwinismo conservou o
essencial; foi renovado, simplesmente, misturando-se nele algumas doses de
mendelismo; é a negação da modificação completa da problemática trazida por
Mendel: ter-se-ia tido a idéia de desenvolver depois de Copérnico um sistema
intitulado neopitolomismo?
Com efeito, a partir de Mendel dever-se-ia compreender que o discurso
concernente à evolução se desenvolve necessariamente sobre um plano duplo:
os “objetos” cuja evolução é constatada são formas, estruturas, metabolismos,
funções; mas os “objetos” que são transmitidos são genes agindo sobre essas
formas, essas estruturas, esses metabolismos, essas funções. Os primeiros
correspondem ao que é observável, são os fenotipos; os segundos são os
elementos dos mecanismos que procuramos elucidar, são os genotipos. A
tomada em conta simultânea dessas duas realidades constitui toda a dificul­
dade de uma apresentação racional da evolução.
Para ultrapassá-la, os fundadores do neodarwinismo tiveram de recorrer
essencialmente às técnicas matemáticas, o que permitiu uma formulação
rigorosa. O objeto, cuja transformação, ao longo das gerações, é daí em diante
estudada, não é mais a forma de um órgão, mas a freqüência, na população das
diversas categorias de genes (os “alelos”) que governam esse órgão. “Isso” que
evolui, não é nem um indivíduo, nem uma coleção de indivíduos, mas uma
coleção de genes. A problemática foi, portanto, totalmente transtornada. As
mutações trazem, de maneira aleatória, outros genes; a sorte desses alelos
novos depende da capacidade dos indivíduos que os receberam de sobreviver
e procriar, quer dizer, de seu valor seletivo; em função dos desvios de valores
seletivos entre indivíduos, pode-se calcular o ritmo das transformações das
diversas freqüências, das quais o conjunto representa a “estrutura genética”
da população. Esses cálculos levam em conta os alelos introduzidos pela loteria

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elementar que é a procriação; quando o efetivo do grupo é pouco elevado,
esses alelos provocam uma modificação sem causa da estrutura genética, a
"deriva”; assim podem ser precisadas as partes na evolução do acaso (a deriva)
e da necessidade (a seleção natural).
Progressivamente, essa construção tomou um procedimento imponente
e seus promotores não hesitaram mais diante de uma terminologia acentuada-
mente triunfante. Assim, o célebre matemático R. Fisher enunciou, por volta
de 1930, o que ele chamou de “teorema fundamental da seleção natural”. Neste
teorema, ele demonstra que o efeito da luta pela vida é melhorar o valor médio
do grupo, e essa melhora é tanto mais rápida quanto maiores forem os desvios
dos valores seletivos individuais. Imagina-se as conseqüências de tais afir­
mações quando elas são transportadas para a competição no seio das socie­
dades humanas, o que não faltava ao próprio Fisher fazer.
Mas, depois de uma fase de sucessos não-contestados, em que o neodar-
winismo era apresentado como “a” teoria sintética da evolução, fissuras graves
apareceram no edifício. A mais inquietante foi a dificuldade de explicar a
importância do polimorfismo, quer dizer, da diversidade das dotações genéti­
cas dos indivíduos no seio de uma mesma população.
Essencialmente, a seleção natural tende a homogeneizar; segundo Dar-
win, ela elimina as características desfavoráveis e, a longo prazo, só deixa
subsistirem as características favoráveis; segundo os neodarwinistas, ela elimi­
na os “maus” genes em proveito dos "bons”. Mas essa eliminação é realizada
por um excesso de mortalidade que representa um custo biológico para a
população, o “fardo genético”. Os cálculos mostram que o ritmo com o qual se
desenvolveu a evolução das espécies corresponde a um fardo genético dificil­
mente suportável.
Para eliminar essa dificuldade, o mais simples é admitir que todos os
alelos são “neutros”, isto é, que os valores seletivos são todos iguais. Há cerca
de 10 anos numerosos trabalhos, principalmente aqueles do genético japonês
Motoo Kimura, tiveram como meta explorar as conseqüências dessa hipótese.
A estrutura genética de uma população não é mais, então, submetida a
nenhuma pressão; ela evolui sob o simples efeito do acaso.
O poder explicativo dessa teoria, que alguns apresentaram como “não-
darwinismo”, é relativamente bom, mas está longe de ser total; de fato, a
questão não é saber qual dos dois modelos, seleção ou não-seleção, está de
acordo com a realidde, mas que lugar é preciso conceder a cada um deles em
nossa explicação dessa realidade. A resposta a essa questão não pode ser dada
atualmente e não se vêem mais caminhos de pesquisa que permitam concluir.
A colocação em evidência de efeitos seletivos só pode ser realizada se
esses efeitos forem importantes: os testes permitindo desviar a “hipótese
nula”, ausência de seleção, são muito pouco comprovadores: para revelar
desvios de valores seletivos da ordem de 1%, as observações devem ser feitas
sobre várias dezenas de milhares de indivíduos, em condições rigorosamente
controladas; ora, na natureza, esses desvios são necessariamente fracos,
salvo raras exceções.

300
Somos, assim, levados a procurar critérios indiretos, notadamente aque­
les que concernem às variações das freqüências dos diversos alelos em dado
conjunto de populações; em função de um grande número de hipóteses,
pode-se avaliar a dispersão dessas variações; constata-se que a dispersão real é
dificilmente compatível com a hipótese da ausência de pressão seletiva, mas o
desvio é principalmente devido a um pequeno número de lugares submetidos
seja a seleções uniformizantes (que reduzem a variação), seja a seleções
diversificantes (que a aumentam).
Nessas condições, a discussão tem por objeto menos a existência ou não
de pressões seletivas do que o poder explicativo dos diversos modelos: tal
modelo é retido provisoriamente não porque represente a realidade, mas
porque é, no conjunto, coerente com o que se conhecia dessa realidade. Nessa
ótica, o modelo neutralista é bastante satisfatório, mas não é o único.
Modelos repousando sobre a análise dos efeitos seletivos simultâneos de
múltiplos genes em interação são ativamente estudados; retomam, portanto, a
idéia inicial de Darwin, mas não alcançam, paradoxalmente, resultados que
dêem um grande lugar ao aleatório: o vir-a-ser de um alelo é função não
somente de seu efeito próprio sobre o indivíduo que dele é dotado, mas
também de efeitos de alelos mais ou menos próximos, agindo sobre todas as
outras funções; esse vir-a-ser resulta, assim, do encontro de séries causais
independentes, isto é, segundo a definição que dele dava Augustin Cournot,
do acaso.
O que resta hoje em dia, no florescer das pesquisas suscitadas pelas
descobertas muitas vezes inesperadas sobre a estrutura do material hereditá­
rio, de A Origem das Espécies?
Nossa visão da realidade do vivente está muito longe daquela de Darwin;
sabemos, o que ele ignorava, o que é o mecanismo da transmissão do
patrimônio biológico; a seleção natural não pode explicar sozinha nem o estado
atual das espécies, nem o que podemos reconstituir de sua evolução.
Para tanto, o dote de Darwin permanece decisivo; ele representa uma
bifurcação definitiva no caminho de nossa cultura. Essa bifurcação não resulta
da acumulação preciosa dos dados de observação dos quais regurgita seu livro;
ela não resulta também da descoberta de um mecanismo natural: a seleção. Ela
corresponde a uma maneira nova de olhar o Vivente, o conjunto dos Viventes,
incluindo os animais ditos superiores, e até mesmo o homem. A barreira entre
o que só é material e o que está vivo se esfuma; as mesmas leis se aplicam a
todos, com o mesmo rigor, com os mesmos determinismos. Darwin nos ajudou
a compreender que o homem faz parte do universo que ele interroga, que,
interrogando-o, se interroga a si mesmo.

• Vorigine des Espèces au moyen de la séledion naturelle ou de la lutte pour Vexistence


dansla nature, 1859; Paris, Maspero, 1980.

301
► A. Jacquard, Concepts en génetique des populations, Paris, Masson, 1977; Idem, La
sociologie, em Le temps de la réflexion, Paris, Callimard, 1980,1, pág. 377-392; R. Lewontin,
The genetic Basls o f evolutlonary Change, New York, Coíumbia Univ. Press, 1974; M. Sahlins,
Critique de la sociologie, Paris, Callimard, 1980.

A lb e r t JACQUARD.

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO,


Paris, 26 de agosto de 1789

Duzentos anos após a sua redação, a dificuldade que hoje temos em ler a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, se prende, sem
dúvida, à mistura da familiaridade e da estranheza que ela continua a suscitar.
Tydo se passa como se, de fato, a familiaridade de um texto tão freqüentemente
citado, comentado e parafraseado, lhe tivesse de há muito retirado todo o
mistério, o consenso recente sobre a reincorporação no direito positivo francês
pelo Conselho Constitucional acabando por desencorajar qualquer tentativa de
nos interrogarmos sobre o seu sentido. Inversamente, a plêiade de interpretações
filosóficas, jurídicas ou políticas continua a alimentar a intuição de que ela teria
sempre uma parte enigmática, uma vela a erguer para que se pudesse descobrir
o verdadeiro alcance de um texto que, no entanto, se quer explícito pelo seu
propósito de arrolar os “direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”.
Ao inseri-la no corpus das obras políticas, é sem dúvida a um sentimento
de estranheza que nos curvamos^ pois se trata de um texto sem autor, sem data
e quase sem propósito definido. E verdade, porém, que seu preâmbulo se refere
ao autor coletivo dessa enunciação de direitos: "Nós, representantes do povo
francês, constituídos em Assembléia Nacional...” Mas, logo a seguir, faz ques­
tão de ocultá-lo na impersonalidade das formulações, na invocação do Ente
Supremo, numa atitude de reconhecimento que elimina qualquer referência
ao enunciador para permitir que as próprias verdades se enunciem por si
próprias, sem se submeterem de que modo for àqueles que as declaram. Da
mesma maneira, a Declaração parece trabalhar incansavelmente no mas-
caramento do- contexto de sua elaboração, pois faz questão de ser bastante
ampla na indicação dos oponentes contra os quais se volta. Ao se referir a
ignorância, a esquecimento ou desprezo, a infelicidade popular ou a corrupção
governamental, ganha na busca de uma intemporalidade o que perde em
capacidade polêmica. Manipulando, enfim, categorias abstratas que se reme­
tem umas às outras como se lhes proibindo de formar um conteúdo definido,
o texto pretende realizar essa estranha alquimia que transformasse um ma-

302
nifesto de combate num edifício sem determinação política, ou, melhor, sem
outro objeto que o de conter todas essas categorias. Uma espécie de metapoií-
tica, em suma, que situa no plano de categorias do universal as condições de
possibilidade de uma política legítima.
As principais críticas feitas à Declaração, no século XIX, tiveram por
base, é compreensível, essas mesmas características, as mais severas sendo as
que globalizavam essas três deficiências para opor de diferentes modos a
realidade social à ficção de um homem abstrato que propunha. Fossem elas de
origem tradicionalista, utilitarista ou materialista, todas visavam, na realidade,
um mesmo ponto: a impossibilidade de retirar o homem de sua situação
concreta para especular em abstrato sobre seus direitos. Contrapunham aos
direitos universais do homem a realidade da história, pois somente ela lhes
dará um sentido objetivo e torna necessariamente plural a liberdade (E. Burke,
1790), ou então se acentuará que as proteções oferecidas são frágeis, por
preferirem “muralhas de papel” - que são “declarações de direitos” - à idéia
de uma positividade das normas em função de sua utilidade social (J. Bentham,
1822). Ridicularizar-se-á a sutil distinção entre direitos do homem e direitos
do cidadão para melhor denunciar, com o senhor da emancipação política,
uma concepção do homem egoísta, distinto e separado de seus semelhantes
(K. Marx, 1844).
Seja qual for o conteúdo dessas críticas e do que as distingua do ponto
de vista de suas conseqüências filosóficas ou políticas, é sem dúvida a célebre
fórmula de Joseph de Maistre a que melhor resume seu argumento cõmum:
“Já vi franceses, italianos, russos etc, em minha vida; sei muito bem, graças a
Montesquieu, que até se pode ser persa, mas, na verdade, posso declarar que
jamais encontrei o tal homem-, se ele existe, é sem que eu saiba” (J. de Maistre,
1797, cap. VI). Visem elas preservar a tradicional tentação da tábua rasa, onde
se optará pela- maximização da utilidade coletiva ao invés de proteção da
autonomia individual ou, ainda, a substituição dessa última pela política de
emancipação total através do social, elas têm em comum sua vontade de
solapar a pretensão de sustentar uma identidade do homem pela deses-
tabilização que a diferença de situações acarreta, delineando a partir delas o
projeto dos direitos comuns da humanidade.
Talvez surpreenda a muitos a constatação de que essa objeção se fazia
presente desde as discussões de 1789. Se se examina os argumentos daqueles
que duvidavam da possibilidade dessa atitude, ou até mesmo recusam sua
oportunidade, uma imagem nos vem incessantemente ao espírito, quase sem­
pre formulada em termos idênticos: “Por que conduzir os homens ao topo de
uma montanha, de onde se lhes mostrará o amplo domínio de seus direitos, se
depois se terá de trazê-los de volta à planície, recolocando-os no esquema de
uma ordem política onde cada um deles terá que encontrar a cada passo os
limites de sua liberdade?” (Malouet e também Landine, no curso dos debates
do Ia de agosto, in Archives parlementaires, t VIII, pp. 323-325). Vários
delegados se contentam em retirar do debate uma justificativa de se afastarem
da polêmica sobre uma declaração para se consagrarem à tarefa que julgam

303
mais urgente, que era a de redigir uma constituição-, outros, no entanto, talvez
mais espertos... ou mais perversos, desenvolvem a partir dele um raciocínio
diferente, sob forma de comparação com a América que, a um só tempo,
fascinava e metia medo.
Malouet, por exemplo, se interroga de uma forma que antecipa Tocque-
ville sobre a utilidade real dessa “exposição metafísica” a que uma declaração
eqüivaleria: "Sei que os americanos não tomaram essa precaução; eles retira­
ram o homem do seio da natureza e o colocaram em sua soberania primitiva.
Mas a sociedade americana, recentemente formada, é totalmente composta de
proprietários, pessoas já acostumadas à igualdade, estranhas tanto ao luxo
quando à indigência, conhecedoras apenas do jogo dos impostos e dos
preconceitos que as dominem, não tendo encontrado na terra que cultivam um
só traço de feudalismo. Esses homens estavam sem dúvida preparados para
receber a liberdade em sua plena manifestação, pois seus gostos, seus cos­
tumes, sua posição os conduziam à democracia’’ (Archives parlementaires, T.
VIII, p. 322). Mas, logo em seguida, suas palavras o levam a constatar a
diferença de situações: “Temos por concidadãos um número imenso de pessoas
privadas de qualquer propriedade, que esperam, antes de mais nada, obter sua
subsistência a partir de algum trabalho garantido, de uma polícia justa, de uma
proteção contínua, que se irritam algumas vezes —tendo justa causa para isso
- com o espetáculo chocante do luxo e da opulência,” para concluir, de modo
brutalmente franco, que "os homens colocados pelo destino numa situação de
dependência preferem antes o estabelecimento de justos limites que a extensão
de sua liberdade natural” (ibid., p. 322-323).
Desde 1789, como se vê, já se distinguia o esquema da vacuidade ou dos
perigos do formalismo e do voluntarismo, esquema que, em seu desenvolvi­
mento, se poderá praticar sob duas formas contraditórias, das quais se conhece
o destino. Para alguns, a constatação do intervalo entre o caráter formal dos
direitos e a realidade social nutre uma crítica a seu déficit de capacitação
subversiva, de sua impotência para encaminhar a uma real emancipação do
homem. Para outros, ao contrário, esse mesmo intervalo abre caminho a um
excesso de subversão, a afirmação de direitos abstratos abrindo espaço para
uma contestação indefinida da realidade que resultará na erosão, a partir do
interior, de toda ordem social. Que reflexos dessas objeções se poderá encon­
trar na argumentação dos defensores do projeto? Será somente em Sieyès, na
sua “exposição racional dos direitos do homem e do cidadão”, que se irá ter a
refutação mais cabal desse tipo de crítica.
Será que a proclamação dos direitos do homem restringiria a liberdade
de enunciá-los? Sieyès se esforça por demonstrar que, longe de sacrificar uma
parte desta última ao integrar a sociedade, o homem a reencontra estendida e
protegida à sua frente. Para fazer isso ele repele a objeção de forma tal que até
se poderia imaginá-la dirigida contra Marx: “O estado social não estabelece
uma injusta desigualdade de direitos paralelamente à desigualdade natural dos
meios; ao contrário, ele protege a igualdade dos direitos contra a influência
natural, mas perturbadora, da desigualdade dos meios. A lei social não é de

304
modo algum feita para enfraquecer os fracos e fortalecer os poderosos; ao
contrário, ela é capaz de colocar os fracos ao abrigo das manobras dos fortes”
(E. Sieyès, p. 194).
Mas Sieyès vai mais longe ainda no desenvolvimento dessa idéia segundo
a qual, longe de ser máscara que acoberta a efetiva existência de desigualdades
sociais, a afirmação da igualdade natural dos direitos tem uma função corretiva
no que toca a uma realidade inigualitária. Seja como extensão da própria lógica
da afirmação dos direitos do homem, seja como radicalização tática de seu
discurso, pode-se descobrir sob sua assinatura, em 1789, fórmulas e pensamen­
tos que somente imaginaríamos possíveis em 1793. Sabe-se, escreveu ele, que
“aqueles cidadãos cuja má sorte condenou à impotência na provisão de suas
necessidades, têm justo direito à assistência de seus concidadãos etc. Sabe-se,
também, que nada é mais adequado ao aprimoramento da espécie humana, nos
campos da moral e do físico, do que um bom sistema educacional e de
instrução pública” (ibid., p. 197). Nota-se que Sieyès não foi seguido nesse
ponto, tanto que a redação final não apresenta esse tipo de proposições.
Tratar-se-á de alguma derrota política? Talvez se possa imaginar que as
circunstâncias, impondo a não-conclusiva declaração, tenham impedido tal
acréscimo. O próprio Sieyès reconhece, em outra parte, que “não é na
declaração dos direitos que se deve encontrar a relação de todos os benefícios
que uma boa constituição possa trazer aos povos. Basta dizer que os cidadãos
têm direito a tudo aquilo que o Estado possa fazer por ele” (ibid., p. 198).
E verdade que isso não está dito de modo tão explícito, mas pode-se
pensar que é esse espírito que triunfa, notadamente quando se chega à fase da
discussão sobre um ponto e se verifica que Sieyès e seus adeptos saem
vitoriosos, que é o da complementaridade de direitos e deveres. Foi o abade
Grégoire quem suscitou esse debate sobre deveres, acentuando uma vez mais
o caráter perigoso da enunciação de direitos ilimitados: “É sem dúvida
essencial que se faça preliminarmente uma declaração dos deveres que conte­
nham os homens nos limites de seus direitos; sempre nos vemos levados a
exercê-los com magnanimidade e largueza, ao passo que os deveres são por
vezes esquecidos ou negligenciados. É imperativo estabelecer uma forma de
equilíbrio, mostrar ao homem o perímetro que pode percorrer e as barreiras
que podem e devem contê-lo” (sessão de 4 de agosto, Archives parlementaires,
L VIII, pp. 340-341). A tal apelação Sieyès responde, de modo conclusivo, que
é inútil precisar os deveres desde que eles derivam diretamente da consciência
dos direitos. Mas a resposta aos argumentos levantados pelo abade Gregório
vai além de simples recusa de uma inflexão moralizante do projeto de declara­
ção; ao se recusarem a juntar um complemento ao texto, seus redatores
esclarecem bem qual o sentido de seus propósitos.
Mas Sieyès leva às extremas conseqüências a exploração da dialética dos
direitos e deveres: “Ê portanto uma verdade eterna (...) que a ação pela qual o
poderoso mantém sob seu jugo o mais fraco não poderá jamais transformar-se
em direito; por outro lado, é sempre um direito aquilo que o mais fraco faz
para escapar do jugo do poderoso, além de ser um dever no que toca a si

305
próprio. É necessário, por isso, que nos atenhamos apenas às únicas relações
que legitimamente possam ligar os homens entre si, ou seja, aquelas que
nasçam de um engajamento natural” (E. Sieyès, 1789, p. 194). Ater-se apenas
às únicas relações que legitimamente possam ligar os homens entre si é dizer
pouco, pois a escolha das mesmas repousará sem dúvida numa definição do
direito a partir do indivíduo, o que implica um conceito que leva imediatamente
à noção de reciprocidade. Em outras palavras, mesmo que esteja a ponto de
estabelecer a definição dos deveres do homem em sociedade, é da consciência
mesma do direito que se espera o reconhecimento da obrigação subjetiva de
alguém em relação a um terceiro. A contrário da problemática dos deveres,
postula-se, portanto, que a afirmação do direito será suficiente para assegurar
o equilíbrio, desde que admita, seja da parte de quem o enuncia, seja da parte
de quem com ele se beneficia, a exploração e o reconhecimento de uma
dimensão interpessoal da existências dos indivíduos: “Os limites à liberdade
individual somente existem a partir do ponto em que ela comece a prejudicar
a liberdade de outrem” (ibid., p. 196).
Tudo se passa, no entanto, como se esse raciocínio implícito não fosse
suficiente, e logo se entendeu ser necessário arranjar uma proteção suplemen­
tar: "Caberá à lei reconhecer tais limites e demarcá-los”, acrescenta Sieyès. A
expressão foi lançada por ele, e ninguém ignora o sucesso que teve sua
inclusão no texto final da Declaração: “A liberdade consiste em poder fazer
tudo aquilo que não prejudique a terceiros. Assim, o exercício dos direitos
naturais de cada homem não terá limites senão aqueles que assegurem aos
demais membros da sociedade o desfrute desses mesmos direitos. Tais limites
serão apenas os determinados pela lei” (art 4a). É uma formulação decisiva,
que coloca difíceis problemas de interpretação, pois trata ao mesmo tempo da
definição do conceito central de liberdade e da natureza dos laços sociais que
ela envolve e sustenta. O primeiro problema diz respeito à dúvida quanto à sua
interpretação extensiva ou restrita da liberdade. De fato, se a leitura do texto
realça ora a negação (... aquilo que não prejudique...), ora a afirmação (...
tudo...), o que se tem aí são concepções infinitamente restritivas ou limitadas
ou, então, praticamente aberta ao infinito da autonomia individual. Literal­
mente, a solução reside sem dúvida na fórmula central, aquela que resolve o
dilema da liberdade na afirmação da intersubjetividade e da reciprocidade.
Reconhecer isso acarreta o imediato deslocamento da dificuldade, que
ressurgirá sob a forma de outras perguntas: - Como estabelecer limites à
liberdade? - Qual deverá ser o estatuto da instância que os regule, a saber, a
lei? Essa interrogação se torna ainda mais vigorosa em outras passagens se se
acrescenta à definição preliminar de liberdade aquilo que a precise em matéria
de opinião. O movimento da Declaração, quanto a esse ponto, é exatamente
similar: num primeiro tempo, ele tem o cuidado de dar à liberdade de opinião
os mais abrangentes contornos possíveis, referindo-se não apenas à liberdade
de pensar, que é atributo individual, mas de comunicar, que é outra forma de
imaginar o espaço de uma inter-subjetividade e de uma relação entre indiví­
duos. Logo a seguir, no entanto, adverte quanto aos possíveis “abusos” dessa

306
liberdade e advoga que ela seja sempre sancionada por instrumento legal (art
11). Quererá isso dizer, uma vez mais, que a concepção desse instrumento
proíbe que nos entreguemos completamente a uma idéia de liberdade que
apenas se refira à interpersonalidade? Quererá dizer, principalmente, que se
aceite o risco e que se ignore o perigo que haveria em torná-la furtivamente
subordinada ao exercício de uma vontade à margem dos princípios buscados?
A economia global do texto prevê sem dúvida a eventualidade de
objeções ao caráter arbitrário da lei, e ergue algumas barreiras a seu pleno
exercício. São formais no que se refere a interditar sua retroatividade ou a
exigir a proporcionalidade das penas, mas, acima de tudo, bem determinadas
no que toca às condições de elaboração legislativa e sua natureza de expressão
da vontade geral (art 6a). Mais, ainda: não se leva em conta que possam ocorrer
conflitos entre os direitos proclamados e a lei que se supõe inclui-los? Não
havendo campo adequado onde possam medir forças, não nos deveremos
contentar com a idéia de que a vontade expressa pela lei não possa, se mal
aplicada, gerar o infortúnio dos que por ela sejam responsáveis? Cai-se, neste
ponto, no âmago da ambivalência da Declaração, pois ela se atém aos
conceitos essenciais do que sejam liberdade e igualdade e, ao mesmo tempo,
permite dupla leitura da relação que se estabelece entre os direitos naturais e
os direitos civis.
Por uma primeira leitura poder-se-ia inferir que, ao não indicar uma
distinção clara entre esses direitos, a Declaração busca menos estabelecer uma
relação vertical e hierárquica de uns com os outros do que produzir as
condições para o prolongamento do natural dentro do social. Assim o demons­
traria a complexa estrutura dos dois artigos iniciais, “Os homens nascem e
permanecem livres e iguais no que toca a seus direitos”, fórmula que parece
estabelecer uma fusão entre o nascimento (natureza) e o fato de permanecer
(obviamente social). Mais ainda: a estrutura cruzada desses dois artigos
sublinha a imbricação natureza (“os homens nascem...”) / sociedade (“as
distinções só se poderão estabelecer a partir da utilidade comum”) / sociedade
(“o objetivo de toda associação política...”) / natureza (“esses direitos são a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”). Tudo se
passa, portanto, como se o projeto de sociedade se achasse embutido no
enunciado de uma referência ao direito natural que assim se recompõe: “Os
homens nascem (e permanecem) livres e iguais em direitos (...). Esses direitos
são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão."
Nesse sentido, o laço social parece concebido por meio de uma relação
horizontal entre os homens, que os coloca em contato uns com os outros e
sanciona a exploração de uma “dimensão transversal das relações sociais em
que os indivíduos são o limite, mas que a elas conferem sua identidade na
medida em que são os sujeitos da ação” (C. Lefort, 1981, p. 66). Tal construção,
no entanto, se duplica a partir de que funciona por meio de insistente
referência à lei, claramente percebida por Jürgen Habermas que nela descobre
uma dupla influência e uma delocação: “Os fisiocratas se ligam nesse ponto a
Rousseau, entendendo que não se poderá conceber os direitos do homem a

307
não ser como direitos do cidadão, e que não há liberdade a não ser no âmago
do Estado” (J. Habermas, 1963, p. 125). Ao fim desta, é sobretudo uma
dimensão vertical do vínculo social que se põe em ação, aquela que cauciona
a liberdade no relacionamento dos cidadãos com a lei e a faz permanecer igual
para todos porque eles são ‘‘iguais diante de seus olhos” (art 6S). Por esse
modo de ver, o cidadão é sem dúvida mais livre do que o homem, e nesse
vínculo ele está efetivamente separado de seus semelhantes, cada indivíduo
sendo uma entidade cuja autonomia se liga apenas à transcendência da lei.
Será para preservar uma igualdade fragilizada pela naturalidade dos direitos
que se inscreve essa concepção da lei? Sejam quais forem, em todos os casos,
as suas finalidades, ela descreve bem o quadro de uma ambivalência, pois a
liberdade, concebida de início como infinitamente articulada com as relações
interpessoais, se vê conduzida a fronteiras e a um espaço delimitados pela lei
que parecem fomentá-la na medida em que a protegem (cf. P. Bouretz, em
Droits, 1988).
Que pensar dessa ambivalência? Poder-se-ia dizer, sem dúvida, que
arruina finalmente a tentativa inicial e que, deixando como último recurso a
capacidade da lei dar um conteúdo aos direitos naturais, ela abole sua
relevância e desfigura sua função de questionamentos do poder, invertendo a
relação que deveria ligá-los à política. Ao invés de constituírem uma norma
intangível que estabeleça as fronteiras do exercício legítimo do governo em
relação aos indivíduos, eles se tornariam o próprio objeto, a própria finalidade
do exercício do poder. É exatamente essa, ao que parece, a interpretação de
Hannah Arendt em referência e comparação com os norteamericanos. Para ela,
os franceses atribuíram um sentido todo particular dos direitos do homem" de
forma alguma concebidos como direitos pré-políticos que nenhum governo
tenha direitos de modificar, mas como o próprio conteúdo e o próprio objetivo
final do governo e do poder" (H. Arendt, 1963, p. 157).
Levado às suas últimas conseqüências, tal raciocínio permitirá unificar
as mais severas críticas contemporâneas levantadas contra os direitos huma­
nos, as que visam o estatuto teórico do subjetivismo jurídico moderno. Para
Leo Strauss ou Michel Villey, se bem que de modo diferente, encontrar-se-á no
horizonte da noção moderna de direito subjetivo que triunfou em 1879 uma
total confusão entre fato e direito. Se numa visão abrangente se pode dizer
que ela consolida a vontade coletiva de fixar os critérios finais de justiça, tudo
é possível, inclusive sua própria negação, por pouco que ela proceda da
expressão dessa vontade. A crítica pode até se radicalizar, chegando a manifes­
tar-se como tentativa humanista de reconduzir o direito até o homem, visto a
um só tempo como seu autor e objeto, uma dissolução do jurídico no histórico;
começa por afirmar, contra os Antigos, que o direito não é objeto, inscrito na
natureza das coisas, mas decorre da condição humana e conclui com a
inferência de que um acordo de fato bastará para instituir o direito (cf. M.
Villey, 1983).
No melhor, então, ‘‘os direitos do homem exprimem e querem exprimir
aquilo que todo mundo realmente e de toda forma deseja; eles consagram o

308
interesse particular de cada um, tal como cada um o conceba ou possa ser
facilmente levado a conceber” (L. Strauss, 1953, p. 197). No pior, o subjetivismo
jurídico não apenas perde sua capacidade crítica da positividade da ordem
estabelecida, mas poderá reconduzir a ela, já que, ao rebater o enunciado de uma
norma transcendente sobre uma vontade que lhe dá conteúdo, acaba abolindo
seu regulamento. Decorre daí a nítida distinção entre o direito e o fato,
permitindo a retorno à concepção de direito natural dos Antigos, que apresenta
a dupla vantagem de “restaurar a transcendência do justo" e de resgatar os
valores jurídicos da fragilidade de seus fundamentos subjetivos (cf. L. Ferry e A.
Renaut, 1985, pp. 54 e segs.). Tais interpretações, no entanto, oscilando entre
uma luminosa revelação da ambigüidade dos direitos do homem e a negação da
possibilidade de um humanismo moderno, não correrão o risco de permanecer
impotentes para refletir sobre as noções de igualdade e de liberdade tais como
as que o totalitarismo renega? Optando por resolver a ambivalência do dis­
positivo imaginado dentro do contexto das revoluções modernas pela escolha de
uma de suas faces, não terão o inconveniente de deixar de lado a outra, assim
reduzindo as potencialidades contidas na própria Declaração de 1789?
Sem anular a lógica evocada, inegavelmente inscrita no âmago do texto,
pode-se no entanto escolher a que a duplique ao procurar manter a ambigüi­
dade assumida. Não se poderá, pois, imaginar que, nesse sentido, uma es­
pecificidade da Declaração francesa é a de perceber desse modo a virtualidade
do conflito, apreendido através da pluralidade dos pontos de vista e do possível
desacordo entre os indivíduos implicados em suas reivindicações em nome do
direito? Conseqüentemente, o que aparece como tendência francesa de não
poder livrar-se do absolutismo da lei para privilegiar o voluntarismo, transfor-
mar-se-ia numa espécie de pragmatismo. É o texto de Sieyès que uma vez mais
nos dá a chave da questão: “Vê-se bem que a unanimidade, sendo difícil de
alcançar até mesmo num grupo relativamente pequeno de homens, torna-se
impossível numa sociedade de vários milhões de indivíduos. A união social tem
seus fins, e é necessário usar todos os meios possíveis para se chegar a ela, o
mais importante dos quais sendo a decisão por maioria. Convém notar,
entretanto, que mesmo assim se chegará a uma espécie de unanimidade
mediata, pois aqueles que unanimemente quiseram reunir-se para gozar das
vantagens da sociedade também quiseram valer-se de todos os meios necessá­
rios para a obtenção dessas vantagens. A própria escolha dos meios é subme­
tida à pluralidade, e todos os que têm algo a dizer a respeito estão preliminar­
mente convencidos de que é indispensável recorrer a ela. Conclui-se que há
duas hipóteses em que a pluralidade se substitui com razão à unanimidade. A
vontade geral é, em suma, a vontade manifestada pelo maior número de votos”
(E. Sieyès, 1789, pp. 199-200).
O que deduzir desse trecho algo enigmático? A unanimidade só se
consegue com a primeira decisão constituidora da sociedade, deixando neces­
sariamente confiada à pluralidade a escolha das formas de gestão e organiza­
ção para o bem comum. Entre esses dois polos se coloca, no entanto, algo que
evidencia um acordo quanto ao desejo de maximizar essas formas. Em outras

309
palavras, os homens não estabelecem uma sociedade apenas para se atribuírem
vantagens, mas para colocarem-nas ao alcance do maior número possível.
Depreende-se que os meios para essa aplicação generalizada devem ser subme­
tidas ao crivo da pluralidade, pois foi estabelecido que ela constitui o alvo final
da ordem social. Poder-se-á aplicar a tais considerações ao texto da Declara­
ção? Seria necessário, para isso, admitir que emana da verdadeira unanimidade
o momento da congregação social, ocasião em que se celebra uma espécie de
recomeço, de inauguração de uma nova fase na dramatização de ruptura com
o passado. O preâmbulo representaria, portanto, essa inauguração ao invocar
o sentido global dos direitos do homem: conhecimento, comparação e reivin­
dicação, que identificam posicionamento contestatório do poder absoluto.
No que toca ao texto dos dezessete artigos, ele emanaria dessa unanimi­
dade mediata de que Sieyès nos fala, aquela que descreve os meios para que
se busque, num esforço comum, as vantagens da vida em sociedade. Pode-se
então refazer sua interpretação segundo os conceitos contemporâneos de um
John Rawls, por exemplo, que abrem diante de nós o caminho para a
reformulação de um humanismo moderno através das imagens das teorias do
contrato sem a necessidade de recorrermos à ficção da natureza humana.
Estabelecido que toda sociedade é “uma tentativa de cooperação para a busca
de vantagens mútuas”, mas esclarecido que a dificuldade para alcançá-las
reside na ocorrência simultânea de “conflitos e identidade de interesses” (J.
Rawls, 1971, p. 30), o objetivo dos artigos da Declaração seria o de resolver a
contradição pelo enunciado de uma concepção pública da ordem social através
de acordo quanto a princípios mínimos. A definição da liberdade decorreria
então do primeiro princípio da teoria da justiça: “Cada pessoa deve ter acesso
a um sistema de liberdades de base iguais para todos que seja compatível com
o mesmo sistema para terceiros” (ibid., p. 91). Quanto à igualdade, ela
abrangeria de um duplo ponto de vista a noção de identidade entre os
indivíduos, embora reafirmando sempre o princípio das diferenças pessoais.
Por essa identidade se entenderia tanto a afirmação de igual fruição das
liberdades fundamentais, quanto a uniformidade da submissão à lei, “seja a
que pune, seja a que protege” e a igualdade de acesso aos “cargos e empregos
públicos” (art 6S), cuja escassez deve ser compensada pela “garantia de
não-nepotismo” (J. Rawls, 1971). Inversamente, o princípio das diferenças
pessoais iluminaria uma das passagens mais enigmáticas da Declaração: “As
distinções sociais não podem ser fundamentadas senão na utilidade comum”
(art l 2). Se se admite, com efeito, que não induz necessariamente a referência
a um legicentrismo que submeteria à vontade geral a tarefa de lhe dar
conteúdo definitivo, ela por certo funciona como enunciado de um princípio
regulador. Em outras palavras, significaria menos a afirmação do ideal de uma
igualdade real do que a formulação de um dispositivo: "Para tratar todas as
pessoas de maneira igual, para oferecer uma verdadeira igualdade de conve­
niências, a sociedade deve consagrar mais atenção aos menos favorecidos, quer
pelos dons naturais, quer pela origem. A idéia é corrigir o peso das contingên­
cias em busca de maior igualdade” (J. Rawls, 1971, p. 131).

310
Conseqüentemente, a presença da lei no centro do dispositivo significaria
menos seu reino absoluto (a lei pode tudo...) que o reconhecimento de suas
finalidades. Fixando limites, estabelecendo fronteiras ao exercício da liberdade,
menos para o indivíduo do que entre eles, ela constataria a necessária presença
da pluralidade. Em outras palavras, nessa reiterada referência se operaria o
reconhecimento de que o acordo unânime quanto a valores de base e o
universalismo dos direitos deve ceder também ao reconhecimento pragmático
da existência do conflito. É precisamente porque o exercício de seus direitos
fundamentais por qualquer indivíduo pode chocar-se com o de outrem como
obstáculo, que caberá exclusivamente à lei regular sobre a questão. A definição
da vontade coletiva como decisão da pluralidade levantaria parcialmente,
portanto, a hipoteca do voluntarismo: a lei que fixa os conteúdos e estabelece
limites à liberdade é menos o exercício de uma vontade unificada da sociedade
em relação a si própria do que a sanção do reconhecimento da pluralidade em
seu âmago.
Não há dúvida de que os limites naturais do texto da Declaração se
condicionam pelo caráter relativamente indeciso da escolha entre essas duas
interpretações. Uma, dando à lei encarregada de proteger os direitos do homem
a ordenação sagrada que se atribui, transferindo a si mesma o sentido trans­
cendente que eles possuem, impedindo assim que seu conteúdo não venha a ser
utilizado para tolher-lhe a ação; outra, atribuindo-lhe a ordenação mais modesta
de expressão duma pluralidade social erti busca de meios para efetivamente
garantir tais direitos, expressão essa desde logo voltada para a integração e o
debate. É sabido que a história francesa de há muito optou pela primeira
hipótese, favorecendo uma concepção que torna soberana a lei e interditando
que o legislador mandatário do povo se veja contraditado pelo controle de um
órgão, especializado ou não. No entanto, essa longa prevalência está hoje
revertida pela prática institucional, sob os efeitos conjugados e complementares
de uma Constituição que reintroduziu a Declaração de 1789 nas normas do
direito positivo e da política jurisprudencial do conselho constitucional que lhe
acentua a relevância ao reincorporar suas disposições. Não se poderia, então,
conseqüentemente, pensar que esse movimento - que por muitos aspectos se
liga àquele que os Estados Unidos conhecem desde o início do século XIX —
permite nova leitura das virtualidades da Declaração, que verá nos direitos do
homem o ponto de apoio de um autocontrole da democracia?
Encontrar-se-á o incentivo para tal interpretação no enunciado oferecido
no próprio preâmbulo da Declaração. Pois ele sem dúvida procura afirmar a
legitimidade dos poderes ao reclamar respeito para seus atos, mesmo que
subordinando-os a inventário, submetendo-os a comparação e, portanto, a
julgamento de sua conformidade a um objetivo que a eles precede e comanda.
E, sobretudo, a referência à idéia de “reivindicações dos cidadãos” não pode
ser fortuita. Salvo se se admitir que o texto resulta num paralogismo, ao realçar
tanto a intangibilidade dos direitos do homem quanto sua permeabilidade
diante da lei, a fórmula sem dúvida esclarece por novos ângulos a lógica posta
no seu devido lugar. Como admitir, em verdade, que seja confiada à onipotên-

311
d a da lei a interpretação do conteúdo que se deva atribuir aos direitos do
homem, se se reconhece que eles têm igualmente o propósito de permitir que
reivindicações sejam levantadas stfb seus auspícios? É mais fácil entender que
está menos em jogo a definição da instância autorizada a lhes dar um conteúdo
legítimo do que a legitimidade de reivindicação em seu nome, mesmo que
contra a vontade da maioria que se exprime através da lei. Infere-se daí que a
presença dessa última não implica necessariamente tal visão substancial que a
orna de imutabilidade e a sacraliza, embora permita uma concepção processual
que a insira no elenco dos instrumentos que uma sociedade política invente
para dirimir seus conflitos internos.
Em tal quadro, a distinção dos direitos do homem e da lei positiva faz
pleno sentido e a concepção subjetiva do direito encontra sua efetividade. Os
primeiros estabelecem, no fundo, os contornos de entendimento quanto aos
princípios basilares duma ordem social, entendimento que incorpora a escolha
de certo tipo de procedimentos que lhe dê conteúdo. A lei, no que lhe toca,
permanece no nível desses procedimentos e, ao ser formalizada, somente
exprime uma organização parcial do espaço aberto pelos princípios basilares.
Decorre disso que ela pode originar-se não da unanimidade, mas da regra
majoritária admitida como procedimento legítimo que está sujeito à possibili­
dade de reclamações e correções pelos mesmos meios. Em outras palavras,
mesmo que seja explicitamente invocada para dar conteúdo aos direitos do
homem, a lei permanece sob o controle da conformidade ao seu sentido e
questionável sob seus pontos de vista. Longe de alterar as virtualidades
emancipatórias dos direitos do homem, sua declaração significaria mais a
abertura de um processo indefinido de contestação em seu nome, a possibili­
dade de que nada possa refrear definitivamente a reivindicação que se faça em
nome do direito, ou, com maior precisão, do direito de obter tais direitos.
Se tal leitura se distancia da límpida solenidade que seus redatores sem
dúvida quiseram dar à Declaração, na medida em que somos por ela forçados
a embaçar-lhe o texto nessa busca de maior clarificação, talvez se possa ao
mesmo tempo considerar que ela tem o mérito de restituir-lhe contemporanei-
dade no levantamento histórico da democracia. Pode-se, então, concluir - com
Claude Lefort, que a defende - contra as críticas que Burke e Marx, notada-
mente, lhe fizeram, apontando que “tomando por alvo a abstração do homem
sem determinação, todos os dois denunciam o universal fictício da Declaração
francesa e não reconhecem o que ela nos lega: a universalidade do princípio
que reconduz o direito ao questionamento de si próprio” (C. Lefort, 1896, p.
51). Da mesma maneira, revelando nesse princípio o único ponto de vista a
partir do qual uma trava de segurança humana pode ser armada contra a lógica
do poder, atenua consideravelmente a crítica proferida em nome do direito
natural dos Antigos. Adquirindo o estatuto de valores antagônicos à hipertrofia
do Estado totalitário e de seu controle dos indivíduos, os direitos do homem
reencontram a potência efetiva de uma norma que não se dissolve na his-
toricidade. Não pode e não deve ser debitado à Declaração que tenha sido
necessário para reconhecer isso a trágica experiência de sua negação.

312
Cabe-nos, agora, uma referência a seu estranho destino. Para retirar os
direitos do homem das críticas filosóficas sobre direitos abstratos ou formais,
tornou-se necessário acentuar sua natureza de direitos historicamente ante­
riores e logicamente superiores ao direito positivo. Mas, para tomá-los a sério
segundo a formulação de Ronaid Dworkin, tanto na perspectiva jurídica
quanto na perspectiva política, foi também necessário admitir que eram
passíveis de apreciação (cf. R. Dworkin, 1977). Quer se trate de pretender
utilizá-los hoje como garantias contra a expressão de uma vontade política,
ainda que majoritária, ou de imaginar que se possa reivindicar em seu nome
uma extensão da democracia, é forçoso reconhecer que se poderá encontrar
antinomias entre direitos e que é numa história que se poderá descobrir a
solução para elas (cf. P. Bouretz, 1988). Desse ponto de vista, a Declaração é
bem mais do que um texto, uma história que sobrecarrega de significados
distintos seu naturalismo inicial e pode confundir-se largamente como o da
democracia. Infatigavelmente interpretados pela lei que busca atualizá-los, o
juiz que vise protegê-los ou a reivindicação democrática que mais geralmente
deles se nutra, os direitos do homem moldam essa figura paradoxal de uma
forma imutável, mas com um rosto em constante transformação.
A tradição filosófica que os sacraliza, ao atribuir-lhes o papel de uma
espécie de definição do humanismo político, deve então concluir que eles
somente delineiam os contornos de uma imagem, seu conteúdo sendo defini­
tivamente influenciável pelas elocubrações da democracia sobre si própria.
Essa constatação, longe de alterar sua potencialidade, descreve no entanto as
condições de sua modernidade. Ao enunciar princípios submetidos a reco­
nhecimento público, a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, reclama
uma problemática necessariamente não-histórica e universalista. O fato de que
seja reinterpretada ao longo de uma história em que esses direitos se particu-
larizem não significa quer a sua vacuidade, quer sua colocação em foco. Indica,
simplesmente, que eles são menos o horizonte insuperável da política moderna
que suas condições de possibilidade, o ancoradouro de sua especificidade
como reconhecimento da legitimidade duma pesquisa de soluções para o
conflito, alimentado pela deliberação dos indivíduos e a perseguição de seu
consentimento. Interpretação que realça sua familiaridade com a democracia
e devolve sua singularidade à dessa concepção do fato político que jamais se
cansa de autorizar o questionamento de seus fundamentos e de suas práticas.

• Archives parlementaires de 1789 à 1860, ed. M. J. Mavidal, Paris, 1875, t VIII, de 5 de maio
1789, a 15 de setembro 1789.

► Hannah Arendt, Essai sur la révolution, 1963, trad. M. Chrestien, Paris, Callimard, 1967;
Jeremy Bentham, Sophismes anarchiques, in Taclique des assemblées législatives, ed. e trad.
por E. Dumont, Paris, 1822, t 2; Pierre Bouretz, L’héritage des droits de Phomme, Esprit, set.
1988; Edmund burke, Réflexions sur la révolution de France, 1790, trad. G. de Bertier de
Sauvigny, Paris, Genève, Slatkine, 1973; Droits, ns 2, Les droits de 1’homme, Paris, 1985; Droits,

313
ns 8, La Déclaration des droits de I'homme de 1789, Paris, 1988; Ronald Dworkin, Taking Rights
Seriously, Cambridge, Massachussetts, Harvard Univesity Press, 1977; Christine Fauré, Les
déclaratlons des droits de Vhomme de 1789, textos e apresentação, Paris, Payot, 1988; Luc
Ferry, Alain Renaut, Philosophie politique, 3: Des droits de Vhomme à Vidée républicaine,
Paris, PUF, 1985; Jürgen Habermas, Théorie et pratique, 1963, trad. G. Raulet, Paris, Payot,
1975; Claude Lefort, Uinvention démocratique, Paris, Fayard, 1981; \d., Essais sur le politique,
XIXe-XXe sièdes, Paris, Seuil, 1986; Joseph de Maistre, Considérations sur ia France, 1797, ed.
J. L. Darcel, Genève, Slatkine, 1980; Karl Marx, La questionjuive, 1844, trad. M. Simon, Paris,
Aubier, 1971; John Rawls, Théorie de ia Justice, 1971, trad. C. Audard, Paris, Seuil, 1987;
Emmanuel Sieyès, Reconnaissance et exposition raisonnée des droits de l’homme et du citoyen,
1789, in Ecrits politiques, ed. R. Zapperi, Paris, Editions des archives contemporaines, 1985.
Este texto, lido em 20 e 21 de julho ao Comitê de constituição está também anexado ao sumário
da sessão de 21 nos Archives parlementaires, op. cit., p. 256-261; Leo Strauss, Droit naturelet
histoire, 1953, trad. M. Nathan e E. de Dampierre, Paris, Plon, 1954; Michel Villey, Le droit et
les droits de Vhomme, Paris, PUF, 1983.

Pierre BOURETZ.

DESCARTES, René, 1596-1650


Cartas à Princesa Elisabeth, 1643-1649

No Discours préliminaire de VEncyclopédie, d’Alembert celebrava com


paixão o alcance político da obra de Descartes: “Pode-se vê-lo como um chefe
de conspiradores, que teve a coragem de ser o primeiro a se levantar contra
um poder despótico e arbitrário e que, preparando uma revolução gloriosa,
lançou os fundamentos de um governo mais justo e feliz que não pôde ver ser
estabelecido” (ed. Picavet, Paris, 1894, pág. 54). Essa imagem de Epinal (cidade
francesa célebre por sua fábrica de imagens) pode hoje em dia se prestar ao
riso. Ela testemunha, entretanto, um fato pouco contestável: toda uma corrente
valeu-se de Descartes, no pensamento francês da primeira metade do século
XVIII, para abandonar sua metafísica, conservando as idéias diretrizes do
método e da física cartesianos, e tentar universalizá-las, principalmente em
direção às esferas políticas e sociais da existência humana. Marx assinalou, em
La Sainte Famille, o que devia a Descartes, sob esse ponto de vista, L ’Homme-
Machine de LaMettrie. Poder-se-ia também mostrar como, em Sieyès, parágra­
fos inteiros da brochura Qu’est<e que le tiers état? (O que é o terceiro estado?)
apresentam-se como uma extensão do método cartesiano na “arte social” (cf.
M. Leroy, 1931, pág. 7-8). Trata-se, nesse caso, de transposições. Pois, de fato,
o próprio Descartes não consagrou à política nenhuma obra distinta e ordena­
da. Seu pensamento político, se é que existe, transparece somente por docu­
mentos tardios (só em 1646, como veremos, é que ele esboça um comentário
de Maquiavel), fragmentários (trata-se, essencialmente, de cartas), devendo-se

314
mais às circunstâncias (um pedido formulado pela Princesa Elisabeth) do que
a um projeto racional. Por conseguinte, a própria existência desses textos
coloca o problema de sua posição: se a política não recebe, na célebre carta a
Picot que serve de prefácio aos Príncipes de la philosophie, nenhum lugar na
árvore filosófica, as páginas políticas da obra de Descartes devem (ou não) ser
consideradas como uma excursão de sua filosofia, escapando à lógica do
pensamento cartesiano —ou, ao contrário, contribuem para esclarecer e até
mesmo precisar seu alcance?
Resgatemos a dificuldade com a qual se confrontam as interpretações
mais sérias. Muitas vezes notou-se que (cf. por exemplo Lefèvre, 1956, pág. 110
e segs.) Descartes manifesta uma atração evidente pelo universo político, por
meio da atenção que dá à Princesa Elisabeth e à Rainha Cristina da Suécia,
convencido como está de que as “pessoas que nascem importantes” a quem
coube o exercício do poder sabem “ultrapassar longamente em erudição e em
virtude os outros homens” (carta a Chanut de I a de novembro de 1646). Ele
chega mesmo a comunicar à soberana sueca suas cartas (a Elisabeth) sobre a
moral e seu Traité des Passions (Tratado das Paixões), como se desejasse
"prestar algum serviço”, enquanto filósofo, a um desses seres que podem pôr
suas ações "tanto pelo bem geral de toda a terra” (a Chanut, 26 de fevereiro
de 1649). E, no entanto, Descartes não deixará de testemunhar, ao mesmo
tempo um recuo diante das questões políticas, recuo esse simbolizado pela
última carta que escreveu (a Breguy, em 15 de janeiro de 1650), menos de um
mês antes de sua morte: "Desejo apenas tranqüilidade e repouso, que são os
bens que os mais poderosos Reis da terra não podem dar àqueles que não
sabem tomá-los por si mesmos.” Segundo o que se acentuará, a atração
cartesiana pelo lugar do poder ou essa desvalorização dos bens públicos face
aos bens, estritamente privados, do lazer e da paz da alma, interpretar-se-á
muito evidentemente de maneira muito diferente a relação entre a empresa
filosófica de Descartes e a esfera política.
Se se quisesse esboçar uma tipologia das interpretações, conviria dis­
tribuí-las segundo suas respostas a uma questão formulada assim: pode-se
retirar ou não da obra de Descartes o esboço de uma política?, se não, por quê?
e, se sim, qual? Dois pontos de vista parecem possíveis então:
1) Pode-se insistir sobre a abstenção cartesiana em matéria de política,
contando não somente com a ausência de uma obra propriamente política, mas
também com os protestos explícitos de incompetência nesse domínio: "Creio que
apenas aos soberanos, ou àqueles autorizados por eles, cabe se intrometer a
regular os costumes dos outros” (a Chanut, 20 de novembro de 1647). Foi assim
a própria idéia de filosofia política que Descartes teria recusado. Quanto à
significação de tal recusa, os intérpretes podem lê-la de novo de duas maneiras:
como uma significação antes de tudo filosófica e como uma significação profun­
damente política./! interpretação filosófica consiste em reler a abstenção à visão
cartesiana da história: enquanto a filosofia visa a uma “ordem racional”, a de uma
alma "liberta do tempo”, a política intervém, por definição, no temporal ou no
histórico, ou seja, em um registro que Descartes considera escapando por

315
essência à racionalização; em conseqüência, "uma sociedade racional seria
intemporal, uma sociedade temporal seria irracional” (Gouhier, 1940, pág. 271).
O projeto mesmo de instaurar a razão no registro político (portanto, na história)
seria assim “contrário à lógica da visão cartesiana do mundo” (ibidem), como
seria percebido claramente desde o Discours dfe la Méthode, em que o autor
condena a empresa utópica dos “reformadores” que querem transformar o
mundo de acordo com a razão (Sexta parte). Logo, seria preciso esperar Leibniz
e seu esforço para estabelecer, dentro da história, relações de ordem (senão
certas, pelo menos prováveis), para que a recusa cartesiana de um tratamento
racionai da política possa ser abalada e para que se abra verdadeiramente, para
os herdeiros de Descartes, o caminho da filosofia política (cf. Belaval, 1960, pág.
84 e segs.). A interpretação política da abstenção cartesiana é mais audaciosa:
ela pretende colocar em evidência uma verdadeira “crítica cartesiana da política"
(Guenancia, 1983, pág. 11 e segs.) —no sentido em que, contra a representação
organicista da sociedade como uma totalidade superior a seus membros, Des­
cartes faria valer a liberdade individual como “o maior de todos os bens” (a
Cristina da Suécia, em 20 de novembro de 1647). A recusa cartesiana da política
teria, então, o valor de um protesto contra todas as formas de totalização em que
o indivíduo é apenas o membro indiferenciado do corpo social: por “preocupação
de não aprisionar a liberdade individual em um projeto coletivo” (ibidem, pág.
47), por vontade de “resistir à tentação, até mesmo à obsessão da política e de
não expor nossa liberdade à cobiça de um projeto comunitário”, a Razão
cartesiana se daria como única tarefa construir “uma verdadeira teoria da
individualidade humana” (pág. 56) para a qual "filosofar é aprender a dizer eu”;
se, para esse autor, "o ego é tão essencial quanto o cogito”(pág. 61), a experiência
do pensamento é, por definição, apolítica, que quer dizer “rebelde à lógica das
sínteses totalizantes” que serão visadas, ao contrário, por todos os filósofos
políticos da modernidade. Em resumo: "pensador profundamente estranho ao
espírito das filosofias políticas” (pág. 92), Descartes libera o homem da onipotên­
cia do coletivo; “é, sem dúvida, o primeiro ateu desta nova religião, a política”
(pág. 98), e, como tal, apelando à individualidade para não se alienar ao todo (a
Elisabeth, em 15 de setembro de 1645: “Se um homem valesse mais, sozinho, do
que todo o resto de sua cidade, não teria razão para querer se perder para
salvá-la”), ele traria mais para um pensamento antitotalitário dos direitos do
homem do que o conjunto das teorias do direito natural, cuja obsessão contra-
tualista participa da reabsorção alienante do indivíduo dentro da comunidade.
2) Do lado oposto desses diversos diagnósticos que concluem, por
motivos diferentes, por um recuo cartesiano para fora do político, encontram-
se interpretações para tentar retirar, a partir de um material certamente
restrito e disperso, uma política de Descartes. Já que, apesar de tudo. Descartes
aceitou comentar O Príncipe para Elisabeth da Baviera, dispõe-se, nesse caso,
pelo menos de um esboço do que poderia ter sido sua filosofia política - esboço
além disso apenas menos desenvolvido do que sua filosofia moral, essa também
conhecida por meio das cartas a Elisabeth, e, quanto a moral, como todo
mundo sabe, é indicada no prefácio dos Príncipes como o mais alto ramo da

316
árvore filosófica. Todo o problema sera, então, sobre essa vertente da exegese,
determinar o que é essa política cartesiana. Ainda aí, os intérpretes se dividem
na verdade segundo duas opções. De um lado (A. Chérel, 1935, pág 309, e
também - com mais nuances - P. Mesnard, 1936, pág 190 e segs.), imputa-se
a Descartes uma certa adesão ao maquiavelismo (Mesnard, pág. 208: "A
aprovação maciça que fornece aos Discours sur Tite-Live mostra que na obra
de Maquiavel o fundo da doutrina lhe é nitidamente simpático”) e faz-se da
correspondência com a princesa palatina um momento importante na elabora­
ção do "mecanismo da Razão de Estado” — mecanismo que Descartes não
negaria, mesmo se, com um certo otimismo, lhe parecesse possível que “nas
mãos de um príncipe virtuoso, a Razão de Estado... mudaria a segurança em
generosidade pública” (pág. 212). Em compensação, mais sensíveis às reservas
deste autor com respeito às máximas propostas em O Príncipe, outros intér­
pretes analisam “o que separa Descartes de Maquiavel”, a saber “que ele liga
sempre a relatividade política a um absoluto moral” (R. Lefèvre, 1957, pág.
152): crítica de Maquiavel, a contribuição cartesiana à filosofia política partici­
paria portanto de um movimento de resistência à autonomização da política
com relação à moral.
O respaldo de uma eventual “política de Descartes” é, pois, devemos
confessar, bastante confuso. Face a tais divergências, o mais sábio é sem dúvida
consultar os documentos principais e - resistindo à tentação de elaborar, a
partir de um material tão restrito, vastas construções - dar prova de pondera­
ção. Se se deixar de lado as poucas cartas a Chanut já citadas, dispomos
realmente de três documentos:
1) As indicações fornecidas, como foi dito, em o Discours de la Méthode
(1637): na segunda parte, Descartes insiste sobre a variação das leis dentro da
história e sobre a impossibilidade de querer nivelar de uma só vez todas as
legislações (como escolher na verdade os melhores costumes e leis, já que “todos
aqueles que têm sentimentos fortemente contrários aos nossos não são por isso
bárbaros e selvagens, mas vários usam tanto ou mais que nós a razão”?); em
conseqüência, seria absurdo “que um particular tivesse a intenção de reformar
um Estado mudando todos os seus fundamentos e derrubando-o para endireitá-
lo”: a razão, em matéria política, não saberia, portanto, se um lugar devia voltar
para ela, visar sem cessar a uma “nova reforma” - em outras palavras: como os
“grandes caminhos” entre as montanhas, aplainados por sua freqüente visitação,
são mais accessíveis do que tis veredas escarpadas, o razoável nesse caso é seguir
as “leis comuns”, elaboradas pelo soberano e consagradas pelo uso; daí, na sexta
parte, a passagem, já evocada, em que Descartes indica que “no que toca os
costumes, cada um segue seu parecer de maneira tão forte que se poderia achar
tantos reformadores quantas são as cabeças, se fosse permitido a outros que não
aqueles que Deus estabeleceu como soberanos sobre seus povos (...) tentar
mudar qualquer coisa sob esse aspecto”. No nível do Discours, se não existe
política racional, existe pelo menos uma atitude politicamente razoável e que
consiste em estender a respeito de seu soberano a primeira regra da moral
provisória “obedecer às leis e aos costumes de meu país”.

317
2) Um julgamento sobre Hobbes em uma carta de 4 de janeiro de 1644 a
um padre jesuíta; "Eu o acho muito mais hábil em Moral do que em Metafísica
ou em Física; não obstante eu não possa de maneira nenhuma aprovar seus
princípios nem suas máximas, que são muito ruins e perigosas, por suporem
todos os homens maus ou por lhes darem motivo para sê-lo.” A indicação é
importante: ela induz menos, é forçoso constatar, a idéia de uma crítica cartesia-
na da política como tal do que aquela de uma condenação por Descartes de toda
filosofia política fazendo da maldade do povo e do Príncipe os princípios da
reflexão sobre o funcionamento das sociedades. Em resumo, seria surpreendente
que, convidado dois anos mais tarde para comentar os ensinamentos do Príncipe,
Descartes se tivesse entregue a uma apologia de Maquiavel.
3) As cartas à Princesa Elisabeth: a correspondência com a princesa
palatina se estendem de maio de 1643 a março de 1649, e as informações que
ela forneceu sobre o pensamento político de Descartes estão bem longe de se
reduzir às duas cartas de 1646 sobre MaquiaveJ. O “vazio quase total” do qual
se teria necessidade para acreditar na idéia de uma "crítica cartesiana da
política” (Guenancia, pág. 11: “Exceto uma carta. Descartes não nos deixou
texto sobre a política”) participa, pois, de uma representação quase tão
legendária quanto a de um Descartes “chefe de revoltosos”.
0 que nos dizem essas cartas? Para apreciar-lhes o conteúdo é indis­
pensável restituir brevemente o contexto, em matéria de reflexão sobre a
política, no qual o o autor escrevia à "sua Princesa”. Muitos dos supostos
equívocos dessas páginas - principalmente com relação a Maquiavel - desapa­
recem se se dá ao trabalho de comparar as cartas a Elisabeth e as idéias que
exprimiam os contemporâneos de Descartes. Como às vezes foi lembrado
(Mesnard, pág. 192 e segs., Lefèvre, pág. 130 e segs.), se O Príncipe havia sido
traduzido para o francês desde 1553 e para o latim desde 1560, existe em todo
caso dois autores que, face à recepção na maioria das vezes severa das teses
de Maquiavel, contribuíram para uma primeira reabilitação, Justo Lipse (do
qual os Politiques aparecem em francês em 1590) e Charron (Sagesse, 1601):
nos dois casos, insiste-se sobre a necessidade de distinguir entre o bem do
reino e o bem do indivíduo, entre a Razão de Estado e Razão moral (Charron,
livro III, capítulo 2: “A justiça, virtude e probidade do soberano caminha de
maneira um pouco diferente daquela dos privados: ela tem comportamentos
mais amplos e mais livres, por causa da grande, pesada e perigosa carga que
ele carrega e conduz”). Dessa maneira se inaugurou um vasto movimento que
devia trazer uma garantia filosófica inesperada para a política de Richelieu,
muito satisfeito de ver a ação governamental poupada de qualquer outro
critério de avaliação que não o do sucesso: entre os próprios amigos de
Descartes, Silhon publicou em 1634 um verdadeiro panegírico do Cardeal, Le
Ministre d'Etat, Guez de Balzac redigiu em 1631 um Prince, para celebrar o
reinado de Luiz XIII, antes de dar em 1658, depois da morte de Descartes, um
Aristippe inteiramente consagrado a defender a idéia de uma impossível
submissão da ação política às regras da moral. É com relação a essa corrente
literária, simbolizada da melhor maneira pela Apologie pour Machiavel escrita

318
em 1641, por encomenda de Richelieu, pelo cônego Machon, que é preciso
situar as observações de Descartes.
Ora, se nos dermos o trabalho de confrontar as cartas a Elizabete com
essa produção contemporânea, elas tomam incontestavelmente um relevo
totalmente diferente. Limitar-nos-emos a destacar aqui dois de seus aspectos.
1) O horizonte político faz parte integrante da reflexão cartesiana sobre
a existência humana. "Se bem que cada um de nós seja uma pessoa separada
das outras e cujos interesses, por conseqüência, são de alguma maneira distintos
daqueles do resto do mundo, deve-se, todavia, pensar que não se saberia subsistir
sozinho e que somos na verdade uma das partes do universo, e, mais particular­
mente ainda, uma das partes de terra, deste Estado, desta sociedade, desta
família, às quais estamos unidos por nossa morada, nosso juramento, nosso
nascimento. E é preciso sempre preferir os interesses do todo do qual fazemos
parte do que os de nossa pessoa em particular" (a Elisabeth, em 15 de setembro
de 1645). Podemos certamente (Guenancia, págs. 106,251) atrair a atenção sobre
a frase que segue: “Todavia com comedimento e discrição, pois estaríamos
errados em nos expo a um grande mal, para causar somente um pequeno bem a
nossos pais ou a nosso país; e se um homem valesse mais, sozinho, do que todo
o resto da cidade, ele não teria razão de querer se perder para salvá-la.” Todavia,
não é mais preciso inverter a regra e a exceção: a regra é que é insensato atribuir
"tudo a si mesmo" e, se é difícil medir exatamente até onde a razão ordena que
nós nos interessemos pelo (bem) público (...), basta satisfazer sua consciência, e
pode-se nisso “dar muito a sua inclinação” (a Elisabeth, em 6 de outubro de 1645)
—pois, de fato, “gostaríamos de perder nossa alma, se fosse possível, para salvar
os outros” (15 de setembro). Portanto, a regra é clara: ela inscreve na própria
moral um princípio de solidariedade. Que a regra conhece exceções, que em
certos casos seria absurdo sacrificar o indivíduo ao grupo, isso é puro bom senso:
fica que, “quando amamos a Deus e por Ele nos unimos voluntariamente com
todas as coisas que Ele criou” (a Chanut, em 6 de junho de 1647), comprovamos
que “é uma coisa mais alta e mais gloriosa fazer o bem aos outros homens do
que consegui-lo para si mesmo: também são as maiores almas que têm mais
inclinação para isso” (a Elisabeth, em 6 de outubro de 1645) —essas "almas
maiores” entre as quais, como foi visto, Descartes situa aqueles que, governando
os homens, podem “tanto pelo bem geral da terra”. A individualidade bem
compreendida se manifesta pois na solidariedade, e é dessa que participa a
empresa política enquanto obra para o “bem comum”. Bem longe de opor os
valores da individualidade aos da comunidade (se se quiser: de defender a moral
contra a política), Descartes reúne estreitamente bem privado e bem público: “Se
pensássemos apenas em nós, só poderíamos desfrutar de nossos bens particu­
lares; enquanto, se nos considerássemos como partes de algum outro corpo,
participaríamos também dos bens que lhe são comuns, sem sermos para isso
privados de nenhum daqueles que nos são próprios" (ibidem). A moral abre sobre
a política: as cartas sobre a política só poderiam ser, por conseguinte, o
prolongamento daquelas sobre a moral.
2) Essa simples constatação já destrincha, por si mesma, a questão do

319
“maquiavelismo” de Descartes. Comentando Maquiavel, Descartes se empenha
decididamente na contracorrente das idéias em voga e pleiteia a submissão da
política à moral. Esse contraste com os textos contemporâneos esclarece a carta
de setembro de 1646. Certamente nela aprova-se a idéia de "que um príncipe
deve sempre evitar o rancor e o desprezo de seus súditos e que o amor do povo
vale mais do que as fortalezas”. Mas, enfim, isso não autoriza a concluir que
exista uma simpatia por Maquiavel. Pois é principalmente a uma inversão
metodológica que procede Descartes, com relação aos passos seguidos em O
Príncipe-, generalizando a exceção, Maquiavel se dá um governo proveniente da
usurpação, fundado sobre a maldade de um príncipe criminoso que não hesitaria
em recorrer a qualquer meio para conservar seu poder; ao contrário, Descartes
coloca que “para instruir um bom príncipe, ainda que recentemente entrado no
Estado”, é preciso “supor que os meios dos quais ele se serviu para se estabelecer
foram justos”. Certamente o acesso ao poder não é sempre irrepreensível; mas
se se decreta metodicamente que o poder é virtuoso por sua origem (o que
acontece na maioria das vezes, pois “Deus dá o direito àqueles a quem ele dá a
força”), a moral não poderá estar ausente da política, e o príncipe não poderá tão
facilmente fazer do crime sua lei: o poder sendo apenas legítimo em sua origem
pela virtude, ele só será reconhecido, em seu próprio exercício, se testemunhar
uma preocupação com o Bem, se ele não cessar de ser justo (Lefèvre, pág. 147
e segs.) —visto que “o povo sofre tudo o que se pode persuadi-lo de ser justo e
se ofende com tudo que imagina ser injusto”, consagrando, assim, o príncipe
criminoso à sua perda. Não se insistirá aqui sobre a continuação dessa crítica de
Maquiavel no plano da política exterior (novembro de 1646): Descartes contesta
ponto por ponto, também aí, os princípios maquiavélicos —pois se, certamente,
contra os inimigos, pode-se juntar raposa e leão, é preciso, em compensação,
considerar a aliança como um vínculo sagrado de amizade e não como um
simples artifício que permite que se submeta mais facilmente seu aliado, atacan­
do-o de surpresa. Ainda nesse caso é a suposição maquiavélica que está em causa:
supondo os aliados profundamente “maus”, Maquiavel priva-se de toda confiança
nas alianças; por conseguinte, a palavra dada não poderia mais ter lugar em
política. Se, ao contrário, acredita-se na virtude possível dos povos e dos
Príncipes, nada mais impõe fazer da guerra o horizonte inevitável das relações
entre Estados.
Limitaremos aí essa análise das cartas sobre Maquiavel. Descartes pode
ter dito “não ter notado nada de mal” nos Discours sur Tite-Live (novembro
de 1646): enquanto Elisabeth, em sua resposta de 10 de outubro, tinha querido
defender Maquiavel mandando Descartes reler essa segunda obra, seu corres­
pondente não cede nada no fundo e, mesmo se a polidez para com a princesa
lhe impõe uma certa clemência com relação aos Discours, não hesita em
lembrar sua crítica geral: Maquiavel escreveu sobre os príncipes um livro tal
que "os particulares que o lêem têm menos motivo para invejar sua condição
do que para lastimá-la”.
Existe, portanto, realmente, nas cartas de Descartes, o esboço de um
pensamento político (evocou-se aqui apenas o princípio) que esclarece o

320
alcance de uma moral culminante significativamente na “generosidade”. Não
se encontrará, no entanto, nem uma contribuição para a história da “Razão de
Estado” (Descartes é o adversário, não o herdeiro, de Maquiavel), nem uma
grandiosa rebelião do "individualismo racional" contra os estragos da filosofia
política. Mais simplesmente: uma insistência sobre o sentido e a importância
da moral na cidade. Poder-se-á estimar desusado, até mesmo retrógrado com
relação a Maquiavel, essa recusa obstinada de dar autonomia à política,
separando-a da moral. Que o Príncipe deve “manter exatamente sua palavra,
mesmo quando isso lhe for prejudicial”, que ele deve tratar seus súditos de
maneira a "evitar o rancor e o desprezo deles” - tais exigências podem,
comparadas aos imperativos da Razão de Estado, parecer ingênuas, mas será
fatal que, ao entrar na política, "condene-se a si mesmo à lógica da eficácia”?

• Correspondence, Paris, PUF, ed. por C. Adam e G. Milhaud, 1960 (as cartas a Elisabeth se
encontram nos tomos VI e VII).

► Yvon Belaval, Lelbniz critique de Descartes, Paris, Gallimard, 1960 (primeira parte, capítulo
II); Albert Chérel, La pensée de Machiavel en France, Paris, 1935; Henri Gouhier, Essais sur
Descartes, Paris, Vrin, 1949 (pág. 266 e seg.); Pierre Cuénancia, Descartes et 1'ordre politique,
Paris, PUF, 1983; Roger Lefèvre, L "humanisme de Descartes, Paris, PUF, 1957 (livro II: “La vie
social"); Maxime Leroy, Descartes social, Paris, Vrin, 1931; Pierre Mesnard, Essaisur ia morale
de Descartes, Paris, Boivin, 1936 (pág. 191 e seg.: “La morale et la politique”); Marguerite Neel,
Descartes et la princesse Elisabeth, Paris, V. O. Puf, págs. 106-109.

A la in RENAUT.

DIDEROT, Denis, 1713-1784, ver RAYNAL, abade Guillaume

DUPLESSIS-MORNAY, sobrenome de MORNAY, Philippe de, 1549-1623,


ver LANGUET, Hubert
DURKHEIM, Émile, 1858-1917

L ições de sociologia, 1 9 5 0

Contrariamente a muitas idéias recebidas, contrariamente mesmo à lenda


tenaz que o adorna com atributos carismáticos do “pai fundador”, Émile
Durkhein não teve esste sucesso intelectual fácil que se gosta de lhe reconhecer
freqüentemente. A um século de distância, a recepção uniformemente reprova-
dora dç seus primeiros trabalhos espanta ainda por sua unanimidade. “Não
somente não adiro, como também não compreendo e me recuso a reconhecer
como científico qualquer coisa que se possa construir sobre essa base e com esses
materiais” (Lucien Herr, Reuue universitaire, 1849, 2, pág. 487). “Não se
suspeita de que se enuncie assim uma coisa absolutamente impensável e de que
se mostre grandemente impregnado desse misticismo que se gosta de criticar em
seus adversários” (Charles Andler, Revue de métaphysique et de morale, 1896,
4, pág. 245). Ou ainda: “Pensamos que compreendida como a fez o Senhor
Durkheim, a sociologia cessaria bem depressa de ser uma ciência e de ser uma
moral” (Léon Brunschvig e Elie Halévy, Revue de métaphysique et de morale,
1892, 2, pág. 566). Só restará ao pensamento tradicionalista, imediatamente em
afinidade com o que será mais tarde a crítica de direita da "Nova Sorbonne”,
retomar por sua conta e depois vulgarizar essa visão, para consolidar a reputação
do sociólogo francês. Pierre Lasserre fez-se, assim, desde 1907, um adversário
das letras clássicas (La doctrine officielle de VUniversité, crítica do ensino
superior do Estado, defesa e teoria das letras clássicas, Paris, 1907) antes que
Hubert Bourgin o apresentasse como o fiador científico da perversão partidária
e politicante da Escola Normal. Surpreendente destino se se imaginar que dentro
do mesmo movimento, visto pela esquerda, esta sociologia não parece menos
nefasta. Paul Nizan fustiga “essa doutrina de obediência, de conformismo e de
respeito social” (Les chiens de garde. Paris, 1932) e Karl Mannheim prega ao
pelourinho esse “positivista burguês” (Essays on the sociology o f knowledge,
Londres, 1952). No estrangeiro, realmente, apesar de um incontestável sucesso
de curiosidade atraído pela voga das ciências sociais, o entusiasmo não foi maior.
Teria havido, segundo o historiador de Chicago Émile Benoít Smulyan, uma
filiação direta entre o projeto de Durkheim e o dos pensadores tradicionalistas
franceses Maistre e Bonald (H. E. Barnes ed., An introduction to the history o f
sociology, Chicago, 1966). O sociólogo teria apenas retomado, segundo Robert
Nisbet, "as idéias do conservadorismo francês” para transformá-las em teorias
fundamentais de uma forma renovada de dogmatismo (R. Nisbet, The sociologi-
cal tradition, Londres, 1967). Isso para não falar dos vereditos sem apelo de
ex-radicais americanos, como Lewis Coser ou Alvin Gouldner. Hoje em dia ainda,
mesmo se Durkheim, indício de consagração certa, tornar-se motivo de disputa
dentro da competição entre as ciências sociais (Chamboredon, 1984), permane­
ceria suspeito a priori: Raymond Aron tinha-o em baixa estima, e a maioria dos
especialistas em história das idéias dele só quer reter seu suposto profetismo da
Razão de Estado.

322
Por que essa desconfiança e como explicar essa hostilidade? Logo à
primeira vista (desde as Règles de la méthode sociologique Regras do método
sociológico, que apareceram sob forma de artigos no ano de 1894) a intenção
durkheimiana se apresenta como uma dupla crítica: crítica da técnica intros-
pectiva da tradição filosófica, por lhe opor a razão empírica dos fatos; crítica
do idealismo moral engendrado por essa busca de si, por substituí-la por um
exercício renovado da razão prática como intelectualismo moral fundado sobre
a análise científica das sociedades. O conflito de legitimidade já é uma razão
suficiente para explicar a demonstração de resistência. Mas existe mais, se se
desejar lembrar bem dá máxima fundadora da empresa sociológica, segundo a
qual a sociedade precede o indivíduo. Isso quer dizer, na verdade, que, longe
de chegar ao conhecimento de si e do mundo pela consciência de si e dentro
do único embargo reflexivo de seu ser, o indivíduo é de repente dado ao
mundo, anterior e exteriormente a toda experiência originária de si. Correlati-
vamente ela significa também que, longe de possuir uma natureza imutável
todo o tempo e em todo lugar (cujo sinal seria, por exemplo, uma razão
universal), o indivíduo é estreitamente dependente da sociedade à qual per­
tence. Contra o congenitivismo cartesiano, contra sua ideologia da imanência
instantaneísta e seu mito do despertar para o mundo, a sociologia afirma sua
existência, revelando a vontade de poder que habita a afirmação da soberania
sem limite do súdito. Oposta a toda forma de afirmação transcendental, ela
convida, ao mesmo tempo, a duvidar da existência de uma natureza humana.
É mais do que seria necessário para lhe dar um cheiro de enxofre! Não se
explicaria a hostilidade da qual Durkheim foi alvo se ela não remetesse também
diretamente aos motivos filosóficos que revela e designa. Vigoroso reques-
tionamento dos títulos e da legitimidade do subjetivismo, a intenção sociológi­
ca é também uma ofensiva intelectual de grande estilo contra as funções sociais
que esse último preenche. É sob esse ângulo e a respeito desses motivos que
se deve propor a reler as Leçons de sociologie de Émile Durkheim. Para ver,
nessa obra, precipitar-se a dupla crítica, sempre atual, evocada anteriormente.
Mas também, já que a moda da época está na especulação filosófica, para ver
aí se desenhar em vão os limites inerentes a esse gênero de empreendimento.
Lembremos, antes de abrir a obra, o lugar dessas lições (professadas,
segundo o testemunho de Mareei Mauss, entre 1898 e 1900) dentro do itinerário
intelectual de seu autor. A partir de 1895, todos os comentadores estão de acordo
com relação a isso, as preocupações de Durkheim mudaram. Ele passou a se
interessar menos por objetos particulares, divisão do trabalho, família ou suicídio
e a aspirar a compreender a realidade social em seu conjunto. No ano precedente,
a redação das Règles de la méthode forçou-o a se interrogar sobre a natureza e
a especificidade do “fato social”. Pretendeu, então, apreender os aspectos
originários e permanentes do funcionamento das sociedades. Pouco importam
aqui as razões biográficas e intelectuais dessa reorientação (Lacroix, 1981;
Besnard, 1982). Todas o levaram a crer que, no princípio, todos os fenômenos
sociais eram de origem religiosa: “A religião é o mais primitivo dos fenômenos
sociais” escreveu ele em uma prestação de contas de 1895 (La science sociale

323
et 1’action, pág. 253). Mas o mais interessante do ponto de vista da construção
doutrinai é ainda o conjunto das revisões que acompanharam a formulação dessa
hipótese. Essas forçaram-no a abandonar o rígido determinismo morfológico do
qual a Division du travail (Divisão do trabalho) oferecia o modelo terminado, a
rever sua concepção realista do “substrato”, a descobrir a importância das
“maneiras de fazer” para finalmente conceder um peso maior às representações
coletivas. Tudo se passou em outros termos, como se Durkheim começasse a
crítica do objetivismo no qual o encerrava sua primeira tentativa de elaboração
da sociologia e apresentava confusamente o caráter originário e fundador das
práticas. Sob formas diferentes, a Éducation morale ou a Évolution pédagogi-
que são testemunhas desse encaminhamento. Basta acrescentar que sua ação
militante em favor do capitão Dreyfus lhe assegurou, de maneira certa, possibili­
dades abertas à ação humana e o afastou de toda tentação mecanicista, para
perceber a posição estratégica das Leçons de sociologie. Desenvolvimento da
hipótese religiosa - formulada em termos que já são os das Formes élémentaires
de la vie religieuse (LS, págs. 188-190) —, elas afirmaram essa reorientação
teórica. Manifestação da confiança renovada do sociólogo em ação, elas ates­
taram seu proselitismo militante e confirmaram seu empenho moral.
Portanto, não é surpreendente que a obra peça emprestado alternada-
mente os aspectos de um sumário das ambições sociológicas, de um manifesto
reformador e, finalmente, de um tratado do saber-viver para uso das gerações
jovens. Consagrado sucessivamente ao exame da crise das sociedades contem­
porâneas, das funções do Estado em sua forma democrática moderna, do
regime da propriedade depois das regras protetoras da pessoa humana para
terminar pela definição de uma nova moral contratual, o argumento retoma,
sobre a base do estudo dos fatos e dentro da linha da revolução inaugurada
pela filosofia positiva, a maioria dos problemas clássicos da filosofia política.
Invariavelmente, a análise positiva precede o enunciado das prescrições nor­
mativas e permanece sempre rigorosamente distinta dele. O Estado é assim
definido como um grupo particular cujo papel é explicitar certas repre­
sentações coletivas. E por isso que, se ele foi fundado para esperar uma forma
de respeito da parte dos atores sociais, não é, no entanto, nunca justificado
substituí-los totalmente ou impor-lhes uma maneira de ver que seria aquela de
seus agentes apenas. A democracia se caracteriza, por sua vez, pela extensão
das comunicações entre o Estado e os cidadãos: consagração da emancipação
histórica do indivíduo, ela aparece como uma forma eminentemente moral da
organização civil. Muitas análises, muitas ocasiões de apreender um aspecto
da crise moral das sociedades atuais. Globalmente essas provêm do estado de
desorganização que reina no universo econômico; mas, devido ao fato da
importância das funções econômicas nas sociedades de hoje em dia, ela
ultrapassa esse meio restrito e se estende ao conjunto da sociedade. É essa a
razão pela qual não parece a Durkheim existir reforma mais urgente do que
restaurar uma forma de corporações. Suas funções sociais passadas lhe
parecem garantir sua utilidade a vir (LS, pág. 45-76). Elas serão estes quadros
morais que fazem falta cruelmente à vida econômica. Apresentarão também a

324
vantagem de serem esses órgãos intermediários entre o indivíduo e o Estado
cuja ausência faz com que este tenda a tornar-se cada vez mais sufocante no
instante em que o indivíduo está, aliás, abandonado apenas a suas próprias
forças (LS, pág. 236-243). Concordando com uma reforma progressiva da
herança que perde cada vez mais suas razões de ser (LS, pág. 236-243), elas
tornariam-se, desse modo, os órgãos eminentes de uma sociedade mais justa.
Liberalismo republicano fora de uso, ingenuidades otimistas, filosofia es­
treitamente meritocrática de bolsista, conservadorismo congenital ou mesmo
pensamento pré-facista (com relação aos usos políticos posteriores da corpora­
ção), sob que epítetos não se sonharia sepultar considerações muitas vezes
julgadas muito curtas! O caráter contraditório dessas apreciações deveria,
entretanto, dar o que pensar. Certamente essa “visão do mundo” não procede
de nenhum utopismo desenfreado. No entanto, ela não elimina nenhuma razão
de empreender e de esperar. De sorte que, no final das contas, esse liberalismo
bem temperado parece merecer menos severidade e mais estima.
O primeiro interesse das Leçons de sociologie é, desse modo, fazer ver,
em atos, as perspectivas abertas pela análise sociológica das instituições, ou
seja, para compreender, retomando um exemplo infinitamente sugestivo, a
chegada, a permanência e a solidez da noção de propriedade (LS, pág.
152-202). As definições habitualmente propostas pelos juristas e pelos filósofos
são impróprias a semelhante investigação. Nascidas da prática jurídica e
submetidas a ela, as primeiras visam somente a sintetizar um conjunto de usos
codificados. Destinadas a basear na razão a instituição, as segundas conduzem
na maioria das vezes, a justificar um estado de fato: a doutrina kantiana da
propriedade, sublinha, por exemplo, esse autor, garante o direito do primeiro
ocupante e traz seu complemento espiritual ao privilégio instituído da posse
(LS, págs. 161-162). Mas essa recusa tem outras razões além das corporativas.
Se se admitir, realmente, que, em uma dada sociedade, a idéia de propriedade
não foi imposta em um dia, todas essas definições (além mesmo do anacronis­
mo ao qual se arrisca sempre conduzir sua utilização sem precaução), longe
de serem um ponto de partida efetivo, não são nunca mais do que um dos
resultados dos processos dos quais elas marcam o término e aos quais se trata
de restituir o encadeamento. Essa impropriedade se atém, portanto, àquilo que,
em vez de se colocar em presença do ser que designa, é, ao contrário, um
elemento a ser explicado se se quiser compreender como esste ser pôde
aparecer tal como está. Compreende-se que a observação empírica (quaisquer
que sejam suas dificuldades) seja o único meio de escapar aos limites da
introspecção: essa conduz, na melhor das hipóteses, apenas a formalizar a
opinião que temos de um fenômeno, enquanto, sozinha, uma história efetiva
(ou, se se quiser, uma genealogia) permite dar conta das características atuais
da propriedade, sob seu duplo aspecto de usos e de representações. Desse
ponto de vista, a analogia entre a coisa apropriada e a coisa religiosa parece
evidente; positivamente,uma e outra possuem um caráter sagrado; simultanea­
mente, as duas excluem de seu domínio todos os indivíduos diferentes da­
queles que são socialmente reconhecidos como aptos a entrar em contato com

325
elas (LS, pág. 175-178). Mais precisamente ainda, considerado sob o ângulo
das práticas às quais ele remete, o direito de propriedade parece progressiva­
mente se desligar de execuções rituais; as cerimônias propiciatórias ao uso do
campo na Roma antiga, por exemplo, feitos prescritos destinados a repelir o
caráter sagrado da terra para sua periferia e mecanismos coletivos de atestação
do caráter religioso de seu recinto, têm por efeito limitar o uso do domínio
àquele que se baseou em concluir esses feitos (LS, págs. 183-186). Abandonan­
do o terreno da investigação e o da coleta dos materiais, Émile Durkheim pôde,
então, propor alguns elementos de reflexão para uma história social da
propriedade (14® lição, LS, págs. 187-197). Dentro de uma cultura religiosa
organizada em torno da família, tudo leva a crer que o caráter reverenciado do
solo implica o uso de tecnologias sociais de dessacralização que têm por efeito
associar estreitamente aos olhos de terceiros bens e maneiras instituídas de se
comportar a seu respeito. Esse contexto e estas práticas fazem nascer repre­
sentações coletivamente partilhadas que são a forma originária da relação de
propriedade. É fácil compreender, para acabar, que sob a influência de
transformações múltiplas (como a afirmação do poder patrimonial que faz do
chefe de família seu representante ou como a extensão das atividades comer­
ciais dentro das sociedades agrícolas que tem por conseqüência multiplicar os
bens móveis ao lado dos bens imobiliários) essa relação estreita entre uma
pessoa e uma coisa dá nascimento à idéia moderna de propriedade como poder
reservado de um indivíduo sobre essa coisa.
Poder-se-á, com razão, achar essas considerações desconcertantes com
relação à ambição que as habita e censurar-lhes, por exemplo, o pequeno
número dos materiais sobre os quais elas se apoiam. Elas não permanecem
menos uma admirável lição de método (por causa disso). Por sua teimosia em
preferir os fatos a toda forma de reflexão especulativa. Por seu encarniçamento
em procurar a razão mais dentro das coisas do que dentro da própria razão.
Pelo lugar que concedem à indução metódica, o que, pensando bem, é ainda
a melhor maneira de não esquecer que não existem “fatos” em si, pois esses
só têm sentido por meio da interpretação que os une. Por sua prudência
paradoxalmente: convidando a nunca confundir as instituições com as jus­
tificações que seus autores propõem ou com as imagens coletivas que as
motivações do presente impõem, elas previnem tanto a tentação do profetismo
social quanto os erros das filosofias da história. Seremos também tentados a
opor a essas reflexões o caráter a priori da hipótese religiosa a partir da qual
elas se desenvolvem. Mas como ignorar, para isso, tudo o que as aproxima do
empreendimento quase contemporâneo de um filólogo erudito de além-Reno
para colocar em dia “a genealogia da moral"? Como ignorar, da mesma
maneira, tudo o que aparenta semelhante investigação ao esforço de Max
Weber para prestar conta do nascimento da profissão política? Como ficar
cego, ainda, a tudo o que essa história social da propriedade tem de homóloga,
em princípio, com essa história da loucura ou esta história da prisão que, mais
perto de nós, propõe Michel Foucault? A despeito de seus difamadores, a
análise das formas da objetivação social inaugurada aqui por Émile Durkheim

326
não perdeu nada de sua pertinência nem de sua fecundidade. A questão da
origem efetiva das instituições permanece, em certo sentido, uma questão
incontornável. Desde que se deseje compreender como e por que elas adquiri­
ram essa característica de evidência prática maciça que se impõe a nós, apesar
de tudo. Desde que se deseje decifrar esse enigma político sempre recomeçado:
como que se impondo por sua força própria, elas conduzem o mundo muito
mais do que o fariam se fossem o instrumento dócil de nossos fins. Em que a
insistência fetichista de Durkheim sobre a sociedade não é essa metafísica
devorante que bons autores, defensores apesar de tudo do idealismo, quiseram
denunciar sob o nome de socioiogismo; ela é somente o outro lado do homem,
a marca extrema de seu esforço para dominar por causa do temor que lhe
inspira o poder de fetichização das sociedades.
Essa denúncia rigorosa de todas as formas de mistificação inerentes à
cumplicidade do subjetivismo e do espiritualismo não inclina de forma alguma o
autor a uma forma de ceticismo desabusado. Nessa França de fim de século,
nostálgica de seus sonhos fraternos que fugiram, tomada por uma espécie de
vertigem idealista e preocupada de afirmação leiga e republicana, esse segundo
aspecto das Leçons de sociologie merece também reter nossa atenção. Encon­
tra-se no cerne do proposto a maneira que a sociologia tem como missão,
segundo Durkheim, de retomar ao pé da letra o programa das ciências políticas
e morais e de levá-lo a termo; tornando, enfim, científicas disciplinas que só têm
de ciência o nome, mas isso com a finalidade de estabelecer, sobre esse saber, a
moral que a degenerescência das sociedades modernas requer imperiosamente.
É preciso se reportar à Éducation morale para perceber o propósito intelectual
em toda sua amplitude. A arquitetura das Leçons dá-lhe somente a trama. O
ensino da sociologia é seu centro de gravidade. Pois, se é impossível deduzir uma
moral dessas proposições de fato, que são os resultados sociológicos, o co­
nhecimento das sociedades em geral e da sociedade em que vivemos em
particular tem em si mesmo uma virtude ética. Exercício racional por excelência,
ele prepara cada um para esse exercício racional que será seu comportamento
quotidiano. Ensino do sentido objetivo do mundo, simultaneamente, mostra
também o que é razoável esperar. A ciência das sociedades se transforma, assim,
em pedagogia da liberdade que prepara o indivíduo para querer o que sua razão
lhe havia ensinado ser necessário e para combater o que essa lhe fará reconhecer
como injusto. Existe, para dizer de outra maneira, a objetivação social. Mas
compete a cada um, isoladamente, conhecer suas formas e funções para que o
homem em grupo possa tentar dominar certos efeitos dela, por exemplo,
favorecendo o aparecimento de um direito mais justo.
Historicamente, constata o autor, o desenvolvimento do Estado é rigoro­
samente paralelo à emergência do indivíduo (LS, págs. 91-104). Que deve,
portanto, ser mantido pelo promotor, o guardião e a garantia da pessoa dentro
da forma jurídica na qual esta toma consistência. Estabelecendo essa lei
intencional, Durkheim não cede de maneira nenhuma a um otimismo que não
seria admissível. Ele sabe muito bem, e a história assim como a sociologia o
confirmam, que não se trata nem de um movimento universal, nem de um

327
movimento regular, nem de um movimento contínuo. Esse paralelismo se faz
acompanhar de repentes e de regressões dos quais a teoria dos ciclos políticos
do autor enviará o eco (Lacroix, 1981). Mas essa lei basta para convencer da
inanimidade de toda forma de mística do Estado (do tipo daquela “que as
teorias sociais de Hegel deram a expressão mais sistemática de certa forma",
LS, pág. 90), por preferir, em todos os casos, uma moral rigorosamente
individualista. Revelando os fundamentos sociais da invenção história da
individualidade, a sociologia percebe a causa do valor que aquela acaba por
revestir e justifica a obediência ao Estado, enquanto este persegue sua obra
civilizadora a serviço da pessoa. Porém, mostrando inversamente que o
indivíduo é uma conquista social infinitamente frágil, e, portanto, infinitamente
preciosa, da qual o Estado foi apenas o instrumento, a sociologia justifica o
fato de o cidadão chamar este último à ordem tão logo o pegue em falta.
Percebe-se, então, como esse retorno final a uma forma de kantismo, ao lado
e além do estudo científico das sociedades, vem corrigir a virulência da crítica
inicial da filosofia, na qual se enraizava, no começo, a.sociologia. A crítica das
teses e dos usos sociais da filosofia não assina aqui de maneira nenhuma a
sentença de morte da ambição filosófica; na melhor das hipóteses ela reivindica
apenas a extensão de sua exigência de razão.
Finalmente, é tranqüilizador e estimulante ver Durkheim recorrer ao mais
estrito determinismo em sua pesquisa (apenas por isso não existe explicação
possível fora de tal decisão de método) e se fazer ao mesmo tempo o apóstolo da
autonomia individual. Toda a argumentação dessas Leçons tende a prová-lo: não
existe de fato contradição alguma entre a idéia segundo a qual a sociedade
precede o indivíduo e a realização individualista final da intenção sociológica,
simplesmente porque não se trata de proposições da mesma ordem. Seria
mesmo, ao contrário, melhor método desconfiar dessa idéia intempestiva de
“coerência doutrinária" que projetamos a posteriori sobre as "obras” para
descobrir nelas supostas "contradições”, consolidar nossas repulsas ou justificar
nossas denuncieis. Essa representação ingenuamente totalizante impele sempre
o intérprete a rebater rápido demais um sobre o outro o universo da prática
intelectual e o da prática política que, mesmo sendo aspectos estreitamente
associados da vida de um mesmo indivíduo, obedecem, no entanto, a lógicas
relativamente autônomas. Poder-se-ia, então, reconhecer nesta última e implícita
advertência um ensinamento maior dessas Leçons de sociologie. não é do
interesse de quem quer que seja confundir rápido demais as ordens de práticas
como as referidas, das realizações científicas e das aspirações possivelmente
fundadas em razão. Isso seria, em outros termos, antes se enganar de adversário
do que promover um processo de questionamento à sociologia para se dar a
satisfação de se acreditar empenhado no serviço dos direitos do homem.•

• La Science sociale et Vaction (introdução e apresentação de J.-C. Filloux), Paris, PUF, 1970.
Todas as referências citadas dentro do texto remetem à segunda edição das Leçons de
sociologie, Paris, PUF, 1970.

328
► S. Lukes, É m ile D u rk h eim : h is life a n d w ork, A historical and criticai study, Londres, Allen
Lane, The Penguin Press, 1973; V. Karady, Durkheim, les Sciences sociales et PUniversité; billan
d’un semi-échec, R e v u e fra n ça ise d e so c io lo g ie , XVII, 2, abril-junho de 1976, págs. 267-311; P.
Besnard e outros, A propos de Durkheim, R e vu e fra n ça ise d e so c io lo g ie , XVII, 2, abril-junho
de 1976 (número especial com as contribuições de P. Besnard, P. Birnbaum, M. Cherkaoui, J.-C.
Pilloux, V. Karady, B. Lacroix); J.-C. Filloux, D u rk h e im e t le s o c la lism e , Genebra, Droz, 1977;
B. Lacroix, D u rk h e im e t le p o litiq u e , Paris-Montréal, Presses de la Fondation nationale des
Sciences politiques, Presses de 1’Unversité de Montréal, 1981; J. C. Alexander, T h e o re tic a l lo g ic
in s o c io lo g y , volume 2: The a n tin o m ie s o f c la s sic a l th o u g h t: M a rx a n d D u rk h e im , Berkeley
Los Angeles,University of Califórnia Press, 1982; P. Besnard, L’anomie dans la biographie
intellectuelle de Durkheim, S o c io lo g ie e t s o c ié té s (Regards sur la théorie), XIV, 2, 1982, pág.
45-53; J.-C. Chamboredon, Émile Durkheim: le social objet de Science; du moral au politique?.
C ritiq u e (Aux sources de la sociologie), 445446, junho-julho de 1984, pág. 460-531.

Bernard LACROIX.
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esc
FANON, Frantz, 1925-1962
Os condenados da terra, 1961

Les damnés de la terre (Os condenados da terra)*, uma obra marcante,


um livro-testemunho: o Ocidente racista, colonialista e imperialista está no
banco dos réus; o marxismo organizado foi intimado a sacudir suas cumplici­
dades, a proceder a suas autocríticas e a se voltar para o Terceiro Mundo para
aí mudar completamente de procedimento; no Ocidente, a revolução do
proletariado não está mais na ordem do dia, mas a violência revolucionária tem
outras palavras, outras armas, outros combatentes, outros terrenos: a luta de
classes apenas se deslocou; na escala internacional, a urgência é o antiimperia-
lismo; nova guerra justa, a luta dos povos colonizados parirá esse socialismo
que o proletariado ocidental não cessa de malograr. Mao-Tsé Tung, Guevara e
Fanon: três vozes a favor de uma Tricontinental, embalando juntos as ilusões
de uma juventude ocidental dedicada ao novo mito terceiro-mundista.
A de Fanon grita a meio-caminho de dois mundos: nascido em Forte-de-
França, em 1925, de origem martiniquense, F. Fanon fez seus estudos de
medicina na França; foi na Argélia que, a partir de 1953, exerceu a psiquiatria, e
foi o psiquiatra que pouco a pouco se engajou na FLN. Enviada a Lacoste em
1956, sua carta de demissão da clínica de Blida dá o tom: “Medi com assombro
a amplitude da alienação dos habitantes deste país... devo afirmar que o árabe,
alienado permanente em seu país, vive em um estado de despersonalização
absoluta” (reproduzida em Pour la Révolution africaine, 1964). Colaborando
regularmente na redação clandestina de El Moudjahid, foi como membro da
delegação argeliana que Fanon participou em 1960 da segunda Conferência dos
Povos Africanos, em Túnis, e que, em seguida multiplicou contatos e viagens na
África. De pele negra e cultura francesa, Frantz Fanon escolheu tornar-se um
militante da luta da Argélia por sua independência. Publicado com um prefácio

Publicada no Brasil por esta mesma editora (N. do T.).

331
de Jean-Paul Sartre, alguns meses antes da morte, por leucemia, de Fanon e de
serem assinados os Acordos de Evian, Os condenados da terra testemunharam
essa destruição total e essa escolha: a Argélia deve ter valor de exemplo; o
combate que trava o colonizado para recuperar sua identidade jamais se legitima
de modo diferente, mas forja o homem novo de amanhã, essa “verdade" universal
contra as mentiras universalistas de um Ocidente de humanismo regional. A
mensagem dos Damnés (condenados) é simples: para que nasça o homem novo
é preciso, ao homicídio, opor o homicídio.
O colonialismo é uma violência absoluta: “O colonialismo não é uma
máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão, é a violência contra o estado
natural.” A violência que presidiu a arrumação do mundo colonial e que, com o
tempo, ainda se radicaliza, obedece a uma lógica de desumanização. O racismo
que a fundamenta e a conduz consegue despojar o colonizado de toda identi­
dade, a ponto de animalizádo: testemunhando essas “perturbações psiquiátri­
cas” das quais Fanon escolheu prestar contas no último capítulo dos Damnés e
que o fazem concluir por uma natureza específica da dominação colonial: “É
preciso lembrar-se de que um povo colonizado não é somente um povo domina­
do. Sob a ocupação alemã, os franceses permaneceram homens; sob a ocupação
francesa, os alemães permaneceram homens. Na Argélia, não existe apenas
dominação, mas, literalmente, decisão de ocupar simplesmente um terreno. Os
argelianos, as mulheres em haik, os palmeirais e os camelos formam o panorama,
a tela de fundo natural da presença humana francesa.” Já em 1962, em Peau
noire, masques blancs (Peles negras, máscaras brancas), Fanon fez do racismo
o pilar central do sistema colonial e, passando de Hegel a Sartre, concluiu: “É o
racista que cria a inferioridade.” Nos Damnés, o mesmo tema foi martelado para
que fosse libertada da argola aprisionadora do economismo marxista a análise
da alienação: “Quando se percebe de maneira imediata o contexto colonial, fica
patente que o que divide o mundo é, em primeiro lugar, o fato de pertencer ou
não a tal ou tal espécie, a tal raça. Para os colonizados, a infra-estrutura
econômica é igualmente uma superestrutura. A causa é conseqüência: é-se rico
por ser branco, é-se branco por ser rico...”
Uma violência dessa natureza só se poderia inclinar diante de uma
violência ainda maior; uma alienação dessa natureza só se apaga por meio
de um gesto regenerador de violência: assim, Fanon fundamenta a legitimi­
dade da violência, necessidade psicossociológica tanto quanto política, da
qual descreve as modalidades e os progressos no decorrer do processo de
“liberação”. Danças, magia, forças sobrenaturais: no estágio primitivo, o
colonizado só tem recursos emocionais, mas, como toda violência, que traz
em si mesma sua própria racionalidade, é formadora e positiva, “Esta práxis
violenta é totalizante, já que cada um se faz elo violento da grande corrente,
do grande organismo violento que surgiu como reação à primeira violência
do colonialista. Os grupos se reconhecem entre si, e a nação futura já é
indivisível. A luta armada mobiliza o povo, quer dizer, ela o joga em uma
única direção, de sentido único.” A violência é, ao mesmo tempo, título de
legitimidade e programa pedagógico: onde a descolonização se faz amena,

332
suas mentiras arriscam retardar o processo de liberação; onde, como na
Argélia, ela é só violência, induz a uma liberação “autêntica”: “Costas contra
o muro, a faca encostando na garganta ou, para ser mais preciso, o eletrodo
sobre as partes genitais, o colonizado vai ser intimado a não contar mais
histórias... o colonizado descobre o real e o transforma no movimento de sua
práxis, no exercício da violência, em seu projeto de libertação.” A repressão
colonial, longe, portanto, de quebrar os impulsos, escande “os progressos da
consciência nacional”, provoca uma espécie de “ponto de não-retorno” a
partir do qual o povo colonizado não mantém mais contabilidade: “Ele
registra os vazios enormes feitos em suas fileiras como uma espécie de mal
necessário. Pois, assim como decidiu responder pela violência, admite tam­
bém todas as conseqüências. Exige somente que não lhe peçam mais para
manter contabilidade para os outros.” F. Fanon pretende assumir até o fim
a idéia do mal necessário em uma "representação” da qual reivindica o
maniqueísmo: “O aparecimento do colono significou sincreticamente morte
da sociedade autóctone, letargia cultural, petrificação dos indivíduos. Para
o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono.
Tal é, portanto, essa correspondência, termo a termo, dos dois raciocínios.”
Do terrorismo individual à insurreição nacional, o gesto de violência obedece
a uma mesma terapêutica: no nível individual, a violência, insiste Fanon,
desintoxica, desembaraça o colonizado de seus complexos de inferioridade
e o reabilita a seus próprios olhos, legitima-o também aos olhos de seu
"povo”. Fanon vai mais longe ainda em sua justificação da violência como
“práxis absoluta": o crime é um trabalho e “trabalhar é trabalhar para a
morte do colono”, assumindo pessoalmente seu crime; é, portanto, o grupo
que exige de cada indivíduo um “ato irreversível”, como na Argélia, onde
Fanon constata que a maioria dos lideres rebeldes condenados à morte ou
procurados pela polícia francesa podiam tirar dessas condenações um acrés­
cimo de legitimidade: “A confiança era proporcional ao caráter desesperado
de cada caso. Um novo militante estava seguro quando não podia mais voltar
a entrar no sistema colonial.” Do mesmo modo que libera o indivíduo, a
violência, esta "meditação da realeza”, unifica o povo e faz a nação.
Assim forjada “no sangue e na cólera”, a nação dos Condenados não se
poderia deixar reduzir às considerações sociológicas e políticas do marxismo
clássico: o proletariado colonizado não é o sujeito revolucionário e nenhum
partido tem vocação para conduzi-lo,
Essas reflexões sobre a violência acompanham na verdade uma análise
particular das classes sociais que compõem o povo colonizado: o fanonismo
difere do maoísmo: o proletariado, forçosamente urbano, relativamente privi­
legiado, ideológica e materialmente corrompido por seu estreito contato com
o poderio colonial, não é imediatamente capaz de violência revolucionária;
quanto à burguesia dita nacional, não é nunca “mesmo provisoriamente”
revolucionária, é essencialmente contra-revolucionária e se presta a servir de
suporte ao neocolonialismo, “para penetrar, a alma em paz, o caminho horrível,
por ser antinacional, de uma burguesia clássica, de uma burguesia burguesa,

333
grosseira, besta, cinicamente burguesa...” Sobram evidentemente os campo­
neses, e Frantz Fanon não hesita em parodiar os textos célebres: “É claro que,
nos países coloniais, somente os camponeses são revolucionários. Eles não têm
nada a perder, mas tudo a ganhar. O camponês, o desclassificado, o faminto é
o explorado que descobre mais rapidamente que a violência, sozinha, paga.
Para ele não existe compromisso nem possibilidade de conciliação.” O mili­
tante deve, portanto, aprender que a agitação política nas cidades “será sempre
impotente para modificar o regime colonial” e que é preciso reunir “as únicas
forças espontaneamente revolucionárias do país”, essas massas rurais "que não
cessaram jamais de colocar o problema da liberação em termos de violência,
de terra a ser retomada dos estrangeiros, de luta nacional", que "obedecem a
uma doutrina simples: fazer com que a nação exista. Não há programa, não há
discurso, hão há resoluções, não há tendências. O problema está claro: é
preciso que os estrangeiros partam”.
Dessas reflexões constituem-se tantas salvaguardas políticas: uma vez
independente, a Argélia não poderia imitar certos Estados da África negra
saídos de uma descolonização "falsa” e outorgada, da qual Fanon condena
o procedimento sem concessão. Uma burguesia nacional, incompetente e
cúmplice do neocolonialismo, chauvinista e racista por imitação, que gover­
na por intermédio de uma burocracia parasitária. Sobre o plano insti­
tucional, ela escolheu “a solução que lhe pareceu a mais fácil”, a do partido
único: não fez outra coisa senão prolongar as virtualidades nefastas contidas
dentro da emergência de todo partido nacionalista pois, “fetichismo da
organização”, "a noção de partido é uma noção importada da metrópole”;
mas a instituição do partido único faz do novo Estado independente o novo
causador da fome do povo: “O partido único é a forma moderna da ditadura
burguesa sem máscara, sem disfarces, sem escrúpulos, cínica.” Quer ela
esteja acompanhada ou não do referente marxista-leninista. E, mesmo quan­
do descobre a necessidade de um líder popular, “Nos países desenvolvidos...
a ditadura burguesa é o produto do poder econômico da burguesia. Em
compensação, nos países subdesenvolvidos, o líder representa o poder moral
ao abrigo do qual a burguesia, magra e sem posses, da jovem nação decide
enriquecer.” Em algumas páginas portanto são varridos cinqüenta anos de
debates teóricos “no seio do movimento operário internacional”; quanto ao
papel da burguesia, a necessidade da etapa burguesa na construção do
socialismo, Fanon recusa o debate, priva-se de justificar sua condenação da
burguesia invocando um papel qualquer de freio no desenvolvimento econô­
mico e social: “Não se trata de decifrar a condenação colocada contra ela
pelo julgamento da história... É preciso se opor de maneira resoluta a ela
porque, literalmente, ela não serve para nada.”
É à violência ainda, chave de todas as soluções, que Fanon apela para
assegurar à independência uma autenticidade nacional. Já que o colonialismo
privou o povo de seu caráter nacional, é o povo que o deve recuperar: não
existe solução política diferente daquela do "governo pelo povo para o povo;
para os deserdados e pelos deserdados”, ora, é a violência que "ergue o povo

334
à altura do líder” e o preserva dos planos de mistificação: "Quando participa­
ram, na violência, da libertação nacional, as massas não permitem mais a
ninguém apresentar-se como ‘libertadores’.” E Fanon, em 1961, não temeu
fazer,da Argélia do futuro o "tipo ideal" da autêntica independência nacional
e do argeliano do futuro, “o homem novo”. A mesma simplicidade de raciocínio
preside na verdade suas soluções culturais: política e cultura coincidem, assim
como violência e nação. Os cantores da negritude como os promotores do
despertar do Islã, ao se voltarem para o passado de sua identidade perdida para
sempre, tomam o rumo errado: eles crêem na obrigação histórica de "raciali-
zar” suas reivindicações culturais, de provar ao Ocidente a existência de uma
cultura não-“bárbara”, mas essa atitude os conduz “a um beco-sem-saída”.
Cultura e nação, cultura nacional e luta de libertação se fundem reciproca­
mente: "A luta de libertação não restitui à cultura nacional seu valor e seus
contornos antigos. Essa luta que visa a uma redistribuição fundamental das
relações entre os homens não pode deixar intactas nem as formas, nem os
conteúdos culturais desse povo. Depois da luta, não há somente o desapareci­
mento do colonialismo mas também o desaparecimento do colonizado."
A violência é a única fonte de humanidade? Terrificante e curto pensa­
mento, e também o canto mais desesperado...

• P ea u n o ire, m a sq u e s b la n c s (Prefácio de F. Jeanson), Paris, Seuil, 1952; L A n V d e la


R é v o lu tio n a lg érie n n e, Paris, Maspero, 1959 (reeditado em 1966 sob o título S o c io lo g ie d ’u n e
révo lu tio n ); L e s d a m n é s d e la te r r e (Prefácio de J.-P. Sartre), Paris, Maspero, 1961; P o u r la
ré v o lu tio n a fr ic a in e (escritos políticos), Paris, Maspero, 1964.

► Renate Zahar, L 'O eu vre d e F ra n tz F an on , Paris, Maspero, 1970. Apreciações dos D a m n é s


d e la terre: Jean-Marie Domenach, E sp rit, abril de 1962; Jean Carret, Y ou n g S o c ia list, New York,
dezembro de 1965; Jean Lacouture, L e M o n d e, 23 de dezembro de 1962; Nghe Nguyen, Lm
p e n sé e , ns 107, 1963'

Evelyne pisiER.

THE FEDERALIST (O FEDERALISTA), 1787-1788

No dia 17 de setembro de 1787, o novo projeto constitucional votado pela


Convenção de Filadélfia foi submetido à deliberação do povo americano nas
convenções dos Estados. A fim de ganhar a opinião pública para o projeto,
Alexander Hamilton, chefe das forças a favor da ratificação dentro do Estado

335
de Nova York - onde a campanha dos delegados para a convenção foi
particularmente acirrada fez apelo às contribuições de James Madison e de
John Jay para uma série de cartas endereçadas ao povo desse estado, devendo
expor e defender os princípios da futura constituição. O Federalista, (The
Federalist), uma série de 85 ensaios dos três autores, aparecida de 1787 a 1788
sob o nome de Publius nos jornais novaiorquinos, foi a forma final que tomou
esse projeto.
Ainda que a influência política real da obra seja controvertida, a presença
em Filadélfia de seus dois principais colaboradores —Hamilton e principal­
mente, Madison, o “pai da Constituição” - justifica a importância que se dá
ainda hoje à obra-prima do pensamento federalista, julgado, segundo os
próprios Jefferson e Madison, "a exposição mais autêntica do texto da Cons­
tituição Federal, tal como foi concebida pelo grupo que a preparou e pela
autoridade que a aceitou” (Madison).
O Federalista figura assim, junto com a Declaração da Independência, de
1776, e com a própria Constituição de 1787, entre os textos “sagrados”
resultantes da fundação da república americana. Serviu depois, enquanto texto
privilegiado da exposição do pensamento político e jurídico dos pais-funda-
dores, não somente de autoridade incontestável nas decisões da Corte Supre­
ma, mas, igualmente de ponto de partida indispensável a todo estudo da
cultura política da época.
O argumento geral de O Federalista foi apresentado desde o primeiro
ensaio de Hamilton (Hamilton, 1957, pág. 5). Visa primeiro a justificar a forma
federal do plano proposto e seu projeto de criar um governo central mais
“enérgico” do que aquele estabelecido sob os Artigos de Confederação (ensaios
2 a 35). Procura em seguida demonstrar a “conformidade da constituição
proposta com os verdadeiros princípios do governo republicano” (ensaios 36
a 85). A organização dos ensaios responde, assim, ao objetivo de refutar as
principais objeções endereçadas ao plano por seus adversários, que persistiam
em conservar os princípios dos Artigos - a soberania e a igualdade dos estados
- , assim como a união confederada fundada por eles em 1778.
Sob essa primeira constituição, o governo federal, dotado de um só
órgão, o Congresso, era provido apenas de poderes extremamente restritos,
limitados essencialmente, enquanto agência central de uma aliança, às relações
exteriores. Não dispunha, em outras palavras, de nenhum meio real para impor
sua vontade aos estados. Nessas condições, conflitos entre o poder central e
os poderes locais não paravam de surgir: os estados eram acusados, jus­
tamente, de resistência e usurpação sobre a autoridade federal, assim como de
transgredir mutuamente seus direitos violar os princípios de suas próprias
constituições. Esses ataques aos direitos fundamentais da propriedade e do
contrato eram o feito do partido dos "fazendeiros-devedores” que, na maioria
dos estados, haviam conquistado o controle das legislaturas, em detrimento
dos interesses estabelecidos, e em parte legítimos, dos comerciantes-credores.
A “Shay’s Rebellion”1 foi sem dúvida o acontecimento desencadeador do
movimento em favor de uma reforma dos Artigos, que culminou com o apelo

336
a uma segunda convenção constitucional, a fim de "tornar a constituição do
governo federal mais adequada às exigências da união”.
Ora, o plano estabelecido pela Convenção, que conservava o essencial do
espírito do projeto preparado por Madison para essa assembléia, recolocava, de
maneira forte, em questão o princípio da soberania dos estados. Tal como foi
apresentado e justificado no decorrer da segunda parte de O Federalista, o
projeto previa a criação de uma república nacional, mediante a constituição de
um governo federal mais poderoso, operando não mais sobre os estados, mas
diretamente sobre os cidadãos, e cuja legitimidade repousaria, do mesmo modo
que aquela dos estados, sobre o povo soberano. Seus poderes seriam ampliados
aos negócios domésticos e reforçados ao mesmo tempo pela supremacia de seus
atos legislativos e pela criação de um ramo judiciário que deveria controlar a
constitucionalidade das leis estaduais.2 As objeções dos antifederalistas ao
projeto constitucional diziam respeito, essencialmente, não à necessidade de uma
reforma dos Artigos, no sentido de um governo mais eficaz, mas à importância
dos poderes que lhe eram concedidos sob o novo plano. As críticas do projeto
argumentavam em favor da necessária salvaguarda de uma soberania real dos
estados como dispositivo essencial ao espírito republicano do regime. Segundo
os antife-deralistas, o sucesso de um regime popular dependia antes de tudo da
virtude cívica de seus cidadãos e, retomando uma idéia comumente atribuída a
Montesquieu, defendiam a tese segundo a qual somente as comunidades restritas
—cujos cidadãos, pouco numerosos e homogêneos, permaneciam próximos de
seus representantes —eram suscetíveis de favorecer essa condição indispensável
à manutenção do regime republicano. Temendo a criação de uma aristocracia
nacional, escapando do controle local, denunciavam as tendências despóticas que
deviam inevitavelmente nascer, dentro do corpo político, de uma transferência
do poder soberano dos estados para o governo nacional “consolidado” e de uma
ampliação do quadro republicano na extensão do território nacional.3 Face a
essas críticas, Publius expõe, no decorrer da primeira parte da obra, os argumen­
tos em favor do plano: só um governo federal dotado de poderes adequados às
tarefas nacionais poderia tirar partido de forma plena das vantagens oferecidas
pela União dos estados e assegurar da melhor forma a segurança nacional (2-5),
a tranqüilidade doméstica (6-10), a prosperidade comercial dos estados (11-13) e,
principalmente, ao contrário dais conclusões antifederalistas, a salvaguarda do
caráter republicano do regime (10, 14, 51).
O vínculo entre o princípio federal e o espírito republicano, no âmago do
argumento de Publius, foi formulado da maneira mais concisa possível por
Madison na conclusão do célebre décimo ensaio, cuja demonstração consegue
colocar o princípio federal como o princípio garantidor do republicanismo do
regime: “A extensão e a sábia estrutura da União nos oferecem, contra os males
que afetam ordinariamente um governo republicano, um remédio republicano”
(Madison, 1957, pág. 76). O ensaio permite, dessa maneira, unir os dois níveis
da reflexão conduzida pelos três autores ao longo dos ensaios; pois, se O
Federalista é um comentário dos princípios da Constituição de 1787, é também
uma reflexão sobre a natureza do regime popular que os pais-fundadores

337
pretendiam instaurar e sobre os problemas políticos específicos que sua
fundação coloca. A essa reflexão sobre a democracia articula-se a problemática
do direito: “a União bem feita” permitirá enfim a realização da síntese
republicana da liberdade e da ordem que os fundadores se propõem a realizar.
Contra os regimes de fato populares, “os partidários do despotismo
depreciaram todo governo livre como incompatível com a ordem social”
(Hamilton, pág. 59), tirando argumentos “do espetáculo das perturbações pelas
quais... (as Repúblicas) eram continuamente agitadas e dessa sucessão rápida
de revoluções que as mantinham, em um estado de oscilação perpétua, entre
os excessos do despotismo e ps da anarquia” (Hamilton, 1957, pág. 58). “Os
amigos da liberdade teriam sido forçados a abandonar, como desesperada, a
causa dessa forma de governo” se os grandes progressos da ciência política,
“cuja eficácia dos diferentes princípios era absolutamente ignorada ou imper­
feitamente conhecida dos antigos”, não houvessem permitido “formar modelos
mais perfeitos” (Hamilton, 1957, pág. 59).
Ora, às novas descobertas colocadas no princípio do regime americano (2),
"que tendiam a melhorar os sistemas populares de governo civil”, Publius
adicionou o princípio federal, “a majoração da órbita na qual se movem atual­
mente nossos sistemas políticos” (Hamilton, 1957, pág. 60). Essa última inovação
permitirá cumprir enfim a dupla tarefa implicada pela fundação de um regime
popular: “Não somente garantir a nação contra a tirania de seus chefes, mas
ainda defender uma parte da sociedade contra a outra” (Madison, 1957, pág.
432).
Segundo Publius, a principal garantia contra a tirania dos chefes será
sua “dependência com relação ao povo” e, precaução suplementar, "a dis­
tribuição dos diferentes poderes em departamentos diferentes”, reforçados
pelos contrapesos e freios legislativos (Madison, 1957, pág. 430). Mas, para os
males específicos do regime popular, vindo da sociedade, um remédio eficaz
será encontrado no princípio federal.
A origem das perturbações com as quais sempre sofreram as democracias
foi a “violência das facções”, aquela exercida por “um certo número de cidadãos
formando a maioria ou minoria, unidos e dirigidos por um sentimento comum
de paixão ou interesse, contrário aos direitos dos outros cidadãos ou aos
interesses permanentes e gerais da comunidade” (Madison, 1957, pág. 58). Em
um regime popular, realmente, uma facção majoritária pode “executar suas
violências e escondê-las sob as formas da Constituição” (Madison, 1957, pág. 71).
Ora, que método pode ser encontrado para "defender o bem público e os
direitos individuais contra os perigos de tais facções e, ao mesmo tempo,
preservar o espírito e a forma do governo popular?” (Madison, 1957, pág. 71).
Madison apresenta os “dois métodos com a finalidade de evitar os malefícios
das facções”, para excluir imediatamente a primeira: “uma é prevenir as causas,
a outra, corrigir os efeitos” destas facções. Prevenir as causas é impossível, pois
seria preciso ou bem destruir a liberdade, sob pretexto de ela sustentar as
facções, ou, então, dar a todos os cidadãos as mesmas opiniões, as mesmas
paixões e os mesmos interesses. Ora, o primeiro meio é tão insensato quanto

338
o segundo é impraticável, pois “é na natureza humana que se devem procurar
os germes das facções”. Da falibilidade da razão humana e da diversidade das
faculdades do homem, principalmente naquilo que concerne à aquisição da
propriedade - cuja proteção “é o primeiro objeto do governo” nascem a
multiplicidade das opiniões e dos interesses e "a divisão da sociedade em
partidos diferentes” (Madison, 1957, págs. 68-69).
Então, pode-se apenas corrigir os efeitos. Madison expõe as vantagens da
forma republicana e federal a esse respeito. Enquanto na democracia pura, isto
é, direta, "não há nada que possa reprimir o desejo de sacrificar o partido mais
fraco ou um indivíduo sem defesa” (Madison, 1957, pág. 72), em uma república,
ao contrário, isto é, uma democracia representativa, o princípio da repre­
sentação terá, ele mesmo, como efeito, “depurar e ampliar o espírito público,
fazendo-o passar por dentro de um meio formado por um corpo escolhido de
cidadãos” (Madison, 1957, pág. 73).
Mas, se os planos dos facciosos são menos perigosos em uma república do
que em uma democracia, é principalmente devido ao maior número de cidadãos
e ao território maior que a república pode reunir: “Estendam sua esfera, ela
compreenderá uma variedade maior de partidos e de interesses; vocês terão
menos a temer em ver uma maioria ter um motivo comum para violar os direitos
dos outros cidadãos” (Madison, 1957, pág. 434). Assim, contrariamente aos
pressupostos antifederalistas, cujo ideal político era a comunidade autônoma,
restrita e homogênea, “quanto mais uma sociedade se estende (e se diversifica),
contanto que seja dentro de uma esfera prática, mais ela está em estado de se
governar por si mesma e —felizmente para a causa republicana —a esfera prática
pode ser levada até uma imensa extensão, por uma modificação e uma combina­
ção judiciosa do princípio federal” (Madison, 1957, pág. 435).
Desde o livro de Charles A. Beard, An Economic Interpretation o f the
Constitution (1913), o décimo ensaio se encontra no centro das controvérsias
relativas à interpretação de 0 Federalista. Para Beard, fiel à causa da his­
toriografia progressista, a Constituição de 1787 marcou e confirmou uma
traição dos ideais democráticos da Declaração de Independência, por ter sido
o instrumento de forças representando as comunidades financeira e comercial
preocupadas exclusivamente com a defesa dos direitos de propriedade.
Dentro dessa perspectiva, o décimo ensaio apareceu como o reconhe­
cimento explícito do “determinismo econômico dos pais-fundadores, que colo­
cavam como fim primeiro do governo a proteção da diversidade das faculdades
humanas, em particular daquela que concerne à aquisição da propriedade,
justificando com isso a distribuição desigual da propriedade” (Beard, 1960,
pág. 156-157). Desse primeiro postulado resulta, segundo Beard, toda a
argumentação de O Federalista a favor de um sistema político que visa a
"romper a força do governo majoritário, para impedir a violação dos direitos
de propriedade das minorias e restringir as legislaturas dos estados que haviam
conduzido ataques vigorosos contra a capital” (Beard, 1960, pág. 154).
A leitura atenta de M. Diamond procura reconstruir mais precisamente a
teoria política subjacente a O Federalista e reaproximá-la da tradição filosófica

339
européia. Ele nota, particularmente a propósito do décimo ensaio, o caráter
iockiano e anithiano de seus pressupostos. Segundo Diamond, os pais-funda-
dores pretendiam, pela constituição de um regime liberal, favorecer um certo
tipo de sociedade: “a república comercial moderna” (Diamond, 1972, pág. 648).
Desse ponto de vista, o sistema federal contribui, pela ampliação do quadro
republicano, para o desenvolvimento e para a extensão da divisão do trabalho
dentro de um vasto território aberto às atividades comerciais, permitindo assim
estabelecer uma economia diversificada. Essa sociedade pressupõe, na ver­
dade, a livre busca do interesse privado, a proteção igual da propriedade e um
vasto campo comercial. O remédio proposto por Madison contra o espírito de
facção, a pluralidade social, tira sua eficácia do fato de que a multiplicidade de
graus e de tipos de propriedade engendrada por essa sociedade mascara e
entrava a divisão da sociedade em classes, substituindo-a pela luta salutar entre
interesses diferentes.
A filosofia escocesa das “Luzes” é, segundo G. Wills, que retoma nesse
caso a tese inicialmente proposta por D. Adair, a referência filosófica que
domina o pensamento de Publius. Essa influência pode efetivamente ser
revelada no interesse que trouxeram os pais-fundadores pelas análises de
ciência e de economia políticas resultantes dessa tradição, assim como em sua
formulação, emprestada principalmente de Hume, da natureza da crise de
1787 e dos remédios apropriados para serem empregados. Certos autores,
entre os quais B. Bailyn, G. Wood e J. G. A. Pocock, ao contrário, minimizaram
a importância da filosofia das Luzes para o pensamento político da fundação
e sustentaram que a corrente ideológica dominante era a da tradição inglesa
da oposição do começo do século XVIII, a do Country Party, que havia sido
difundida nas colônias por publicistas radicais. Essa corrente, resultante das
tradições republicanas grega e florentina, ofereceria um ideal social oposto
àquele do direito natural moderno, privilegiando a vida pública e colocando a
virtude cívica como única garantia do regime republicano.
Mas, na primeira fileira das interpretações que ultrapassaram a simples
procura das influências para entregar-se a uma comparação entre a revolução
americana e a Revolução Francesa, é preciso citar, além da obra clássica, mas
muito discutida, de H. Arendt4, as preciosas anotações que J. Habermas
consagrou a esse tema em Theórie et praxis. Habermas centrou sua análise
sobre a questão das relações entre direito natural e revolução. Ele vê no
fundamento da constituição americana não somente uma retomada da teoria
lockiana do contrato, mas, principalmente na linha da filosofia escocesa, uma
concepção das relações entre direito e sociedade, muito diferente daquela que
ocorreu na Revolução Francesa: a sociedade, considerada uma base natural do
direito, totalmente independente do Estado, se organiza segundo suas próprias
leis, notadamente, é claro, a da concorrência que rege o jogo dos interesses
privados. E por meio desse simples jogo de interesses, sem que seja necessária
uma intervenção voluntarista do Estado (modelo francês), que se realizam,
quase automaticamente, os direitos naturais que a filosofia lockiana havia
tematizado. Essa interpretação nos parece ter o mérito de atrair a atenção

340
sobre um aspecto decisivo dos fundamentos americanos dos direitos do
homem e de abrir, desse modo, uma perspectiva interessante para as análises
comparativas das duas grandes revoluções do fim do século XVIII.

► Douglas Adair, F a m e a n d th e F o u n d in g F ath ers, Norton, 1974; Hannag-Arendt, On


R e v o lu tio n , 1963, Paris, Callimard, 1967; Bernard Bailyn, The Id e o lo g ic a l O rig in s o f th e
A m e r ic a n R e vo lu tio n , Cambridge, Harvard University Press, 1967; Charles A. Beard, An
E c o n o m ic In te r p r e ta tio n o f th e C o n stitu tio n o f t h e U n ite d S ta tes, 1913, New York, Mac Millan,
1960; E. S. Corwin, The progress of Constitutional Theory between the Declaration of Inde-
pendence and the Meeting of the Philadelphia Convention, em A m e r ic a n H ts to r ic a l R e view , 30,
1925, págs. 511-536; Martin Diamond, The Federalist, em T he H ís to r y o f P o litic a l P h ilo s o p h y ,
Chicago, Rand Mac Nally, 1972, editado por L. Strauss e Joseph Cropsey; Max Farrand, The
R e c o r d s o f th e F e d e r a l C o n v e n tio n 0 Í 1 7 8 7 , New Haven, Yale University Press, 1937; Jurgens
Habermas, T h eó rie e t p ra tiq u e , Paris, Payot, 1975; Alexander Hamilton, The P a p e r s o f
A le x a n d e r H a m ilto n , New York, Columbia University, 1961-1979; Alexander Hamilton, James
Madison e John Jay, L e F é d éra liste, 1788, Paris, Livraria geral de direito e jurisprudência,
Biblioteca dos textos e estudos federalistas, prefácios de A. Esmein e A. Juve, 1957; James
Madison, The P a p e r s o f J a m e s M a d iso n , Chicago, London, University of Chicago, 1962; J. G. A.
Pocock, T h e M a c h ia v e llia n M o m en t, Princepton, Princepton Unviersity Press, 1975; Herbert J.
Storing, W h at th e A n tt-F ed e ra lists W ere for, Chicago and London, University of Chicago, 1981;
Garry Wills, B x p la in in g A m eric a , New York, Doubleday, 1981; Wood, T he C re a tio n o f th e
A m e r ic a n R e p u b lic , 1776-1787, Chapei Hill, University of North Carolina, 1969.

Schuyler STEPHENS.

NOTAS
1. Trata-se de uma rebelião dos fazendeiros de Massachussetts contra a tomada de suas
terras endividadas.
2. Para uma análise mais completa da evolução do pensamento jurídico dos pais-funda-
dores da Declaração da Independência até a Convenção de Filadélfia, cf. E. S. Corwin (obra
citada em bibliografia).
3. Sobre o pensamento antifederalista, cf. H. J. Storing (obra citada em bibliografia).
4. Sobre a interpretação de H. Arendt, cf. A. Enegrén, L a p e n s é e p o liliq u e d e H. A ren dt,
Paris, PUF, 1984.

FÉNELON, François de Salignac de La Mothe, 1651-1715


Telêmaco, 1699

François de Salignac de La Mothe Fénelon, preceptor dos infantes da


França, arcebispo-mor de Cambrai, foi um pensador político importante e um
homem político de grande envergadura. Foi em Telêmaco, publicado sob o
reinado de Luís XIV, que elè expôs de forma mais concreta e clara suas idéias

341
políticas. Deixemos a Voltaire a tarefa de nos apresentar essa obra. "Quase todas
as obras que honraram este século - escreve o autor de Candide - , eram de um
gênero desconhecido na Antigüidade. O Telêmaco (Télémaque) está entre elas.
Fénelon, o discípulo, o amigo de Bossuet, depois transformado contra sua
vontade em rival e inimigo dele, compôs esse livro singular, que se pode
classificar ao mesmo tempo como romance e poema, substituindo por uma prosa
cadenciada a versificação. Parece que ele quis tratar o romance da mesma forma
que o Senhor de Meaux tratou a história, dando-lhe dignidade e encantos
desconhecidos e, sobretudo, tirando dessas ficções uma moral útil para o gênero
humano, moral inteiramente negligenciada em quase todas as invenções fabulo­
sas. Acreditou-se que ele havia composto ese livro para servir como tema de
instrução ao Duque de Bourgogne e aos outros infantes franceses, dos quais foi
preceptor; assim como Bossuet havia feito sua História universal para a edu­
cação do seu Senhor. Mas seu sobrinho, o Marquês de Fénelon, herdeiro da
virtude desse homem célebre, que mais tarde iria morrer na batalha de Rocoux,
assegurou-me o contrário. Com efeito, não teria sido conveniente que os amores
de Calipso e de Eucaris fossem o tema das primeiras lições que um padre tivesse
dado aos infantes da França.” Voltaire prossegue: "Ele só fez essa obra quando
estava confinado em seu arcebispado de Cambrai. Com muita leitura dos antigos
e nascido com uma imaginação viva e calorosa, ele elaborou um estilo que era
só seu e que brotava da fonte em abundância. Estive com o manuscrito original
em mãos: não há rasuras. Ele o compôs em três meses, em meio a infelizes
debates sobre o quietismo, não desconfiando de quanto essa distração era
superior a suas ocupações. Consta que um empregado doméstico roubou-lhe
uma cópia dessa obra e que a fez imprimir. Se isso for verdade, o arcebispo de
Cambrai deve a tal infidelidade toda a reputação que teve na Europa, mas
também lhe deve ter perdido para sempre o prestígio que tinha na corte. Houve
quem visse em Telêmaco uma crítica indireta ao governo de Luís XIV. Sésostris,
que triunfava com excessivo fausto, e Idomeneu, que se comprazia no luxo em
Salente e se esquecia do necessário, pareciam retratos do rei, embora, afinal de
contas, seja impossível ter-se em casa o supérfluo senão pela superabundância
dos artigos de primeira necessidade. O Marquês de Louvois parecia, aos olhos
dos descontentes, estar representado sob o nome de Protésilo, fútil, duro,
arrogante, inimigo dos grandes capitães que serviam ao Estado e não ao
ministro... As edições dessa obra foram inúmera. Eu vi quatorze delas em língua
inglesa.” (Voltaire, Oeuvres complètes, Paris, 1817, L XIV, págs. 63-63)1.
Não se poderia apresentar melhor o Telêmaco de Fénelon, explicar seu
projeto e descrever a acolhida que lhe foi reservada. É com grande pertinência
que Voltaire sublinha o aspecto mais surpreendente da obra. Sempre preocupado
em pintar a imagem de um bom rei, Fénelon, para ilustrar seu pensamento,
descrevia também os maus reis e seus vícios. Luís XIV acreditou reconhecer-se
nesses últimos e teve grande amargura com isso. A verdade nos obriga a dizer
que os leitores de Fénelon também acreditavam descobrir, dentro do quadro dos
reis indignos, o ReiSol. O Telêmaco pareceu, então, ser essencialmente uma
crítica ao governo de Luís XIV, e essa ainda é, em nossos dias, a opinião corrente.

342
A ambição de Fénelon era, no entanto, maior, mais extensa. Certamente ele
não pretendia mudar nada do princípio fundamental que governa toda A Política
com base na Sagrada Escritura, de Bossuet Fénelon escreve: “Lembrem-se de
que um rei deve ser submisso à religião e jamais tentar regulá-la; a religião vem
dos deuses, está acima dos reis. Se os reis se intrometem na religião, em vez de
protegê-la, acabam por colocá-la sob servidão” (Fénelon, Oeuvres complètes,
Toulouse, 1810, t VI, pág. 297). Além disso, Fénelon, como Bousset, acredita que
não existe condição mais infeliz do que a do rei. Porém ele realça duas idéias. A
primeira é expressa por uma fábula: procurava-se no curso de uma assembléia
um homem digno de ser rei. Ninguém conseguia satisfazer os convencionais até
que, por fim, observou-se um homem: “Ele não havia sido percebido antes por
causa de suas vestes simples e descuidadas, de sua atitude modesta, de seu
silêncio quase contínuo e de seu ar frio e reservado. Porém, quando se dedicaram
a observá-lo, descobriram em seu rosto um não-sei-quê de firmeza e de educação:
notaram a vivacidade de seus olhos e o vigor com o qual ele fazia até os menores
gestos. Questionaram-no, admiraram-se com ele e resolveram fazê-lo rei. Ele se
defendeu sem se emocionar: disse que preferia as doçuras da vida privada ao
brilho da realeza; que os melhores reis eram infelizes por não fazer quase nunca
o bem que gostariam de fazer e por fazer muitas vezes, para surpresa dos
aduladores, os males que não queriam fazer. Acrescentou que, se a servidão é
miserável, a realeza não o é menos, já que é uma servidão disfarçada. Quando se
é rei, dizia ele, depende-se de todos aqueles de que se necessita para se fazer
obedecer. Feliz daquele que não é mais obrigado a comandar!" (t V, pág. 177).
Fénelon insiste também, como Bossuet, sobre a terrificante responsabilidade dos
reis que devem prestar contas a Deus de tudo o que é bom ou ruim dentro do
Estado. Como Bossuet, ainda, ele insiste sobre o trabalho esmagador reservado
aos reis. Os reis, escreve Fénelon, “consomem-se” mais rápido do que os outros
mortais. A segunda idéia está, de certa maneira, contida na primeira. Centro do
Estado, o rei está exposto às adulaçòes, às mentiras e, se ele não conseguir
discernir a verdade, perder-se-á na infelicidade. “Oh! Como um rei é infeliz por
estar exposto aos artifícios dos malvados! Está perdido se não repelir a adulação
e se não amar os que dizem audaciosamente a verdade. Eis as reflexões que eu
fazia em minha desventura...” (t V, pág. 77). Fénelon, excelente pedagogo, acha
que o segredo da boa pedagogia repousa na repetição. Sem cessar ele retorna a
essa idéia. Ele arranja a cada vez um aspecto um pouco novo. Mas o tema não
muda. Que se julgue: “O mais infeliz de todos os homens é um rei que crê ser
feliz tornando os outros homens miseráveis. Ele é duplamente infeliz por sua
cegueira: não reconhecendo sua infelicidade, não se poderá curar dela; teme
mesmo conhecê-la. A verdade não pode trespassar a multidão dos aduladores
para chegar até ele. Ele é tiranizado por suas paixões; não conhece mais seus
deveres; não experimentará jamais o prazer de fazer o bem nem sentirá os
encantos da pura virtude. É infeliz e digno de sê-lo: sua desdita aumenta todos
os dias; ele corre atrás de sua perda, e os deuses se preparam para confundi-lo
com uma punição eterna” (t V, pág. 165). Os reis que se deixam levar pelas
adulações são, na realidade, infelizes e indignos. Fénelon retorna sem parar ao

343
tema da adulação e, fazendo isso, visa à corte de Luís XIV. Será realmente
necessário explicar quão colericamente o grande monarca leu essas linhas?
O bom leitor de Fénelon encontrará, lendo Telêmaco, toda uma psicologia
do rei. Sempre guiada para as duas grandes idéias que já expusemos, essa
psicologia é realmente penetrante e instrutiva. Ela traz à luz todos os perigos
que ameaçam os homens detentores do poder. Não se exageraria de modo algum
afirmando que em nossos dias essa interpretação severa conserva seu valor. O
poder, segundo Fénelon, possui uma dimensão sobre-humana. Para possuir o
poder sem afundar no erro e no vício, é preciso possuir uma virtude sublime.
Compreende-se melhor o discurso desse homem sábio que prefere a vida privada
e suas doçuras às dificuldades trágicas da realeza e do poder.
Fénelon divergiu de Bossuet quanto a um ponto muito importante dentro
da doutrina do poder e expôs seu pensamento acorrentando-o ao grande tema
que consideramos. ‘‘Eu lhe perguntava em que consistia a autoridade do rei, e
ele me respondeu: Ele pode tudo sobre os povos; mas as leis podem tudo sobre
ele. Ele tem um poder absoluto para fazer o bem e as mãos atadas desde que
queira fazer o mal. As leis lhe confiam os povos como o mais precioso de todos
os depósitos, com a condição de que ele seja o pai de seus súditos. Elas querem
que um só homem sirva com sua sabedoria e moderação à felicidade de muitos
homens; e não que muitos homens sirvam, com sua miséria e sua servidão frouxa,
para adular o orgulho e a fraqueza de um só homem... Não é mais por ele mesmo
que os deuses o fizeram rei; ele só o é para ser o homem dos povos: é aos povos
que ele deve todo seu tempo, todos seus cuidados, toda sua afeição; e ele só será
digno da realeza na mesma proporção em que se esquecer de si mesmo para se
sacrificar ao bem público” (L V, págs. 150-151). As leis que alicerçam a autoridade
do rei são, no espírito de Fénelon, não somente as leis da religião, mas também
as leis da ética absoluta. E, por um paradoxo bem visível, o rei só terá autoridade
na medida em que, submetendo-se a essas leis, esquecer sua própria pessoa. Essa
doutrina foi olhada como revolucionária. Ela arruinaria de fato o conceito
fundamental da realeza absoluta.
Qual é a primeira tarefa à qual deve se consagrar um rei capaz de “se
sacrificar para o bem público”? Fénelon foi muito mais claro do que se pensa
geralmente. A primeira tarefa da autoridade real autêntica é a educação. “Para
as crianças, Mentor dizia que elas pertenciam menos a seus pais do que à
república; são filhos do povo, são a esperança e a força dele... O rei, acres­
centava ele, que é o pai de todo seu povo, é ainda mais particularmente o pai
de toda a juventude, que é a flor de toda a nação. É na flor que se devem
preparar os frutos. Que o rei não desdenhe velar e fazer velar pela educação
que se dá às crianças; que ele tenha firmeza para fazer observar as leis de
Minos, que ordenam que se eduquem as crianças dentro do desprezo da dor e
da morte” ( t VI, pág. 88). Sente-se renascer o ideal platônico. A educação,
segundo Fénelon, não se deve dirigir somente à inteligência: é preciso formar
também os corações e os corpos. “Que eles aprendam a ser ternos com seus
amigos, fiéis a seus aliados, eqüitativos com todos os homens...” “Mentor
acrescentava que era capital estabelecer escolas públicas para acostumar a

344
juventude aos mais rudes exercícios do corpo.” Fénelon - como Fichte mais
tarde, como mostrei (L 'oeuvre de Fichte) - quer uma educação total e é ao rei,
que realiza plenamente a autoridade real, sacrificando-se ao bem público, que
ele confia essa alta e nobre missão da qual tudo depende. Realmente, só a
educação total torna os súditos capazes de servir sua pátria na paz e na guerra.
Fénelon não quer que o rei se intrometa em tudo. Duas idéias devem ser
bem distinguidas. Em primeiro lugar, o rei não pode tudo velar e intrometer-se
em tudo. E preciso que ele saiba cercar-se de um bom governo e de bons
servidores que agirão lealmente em nome da autoridade real. Essa idéia é um
belo sonho. Em segundo lugar, o rei deve saber preservar-se de tudo querer
regulart há na natureza das coisas uma dinâmica interna que as faz florescer.
É por isso que o comércio deve ser tão livre e aberto quanto possível e
sustentado por sua dinâmica interna que o vivifica e entende. Fenelon é um
apóstolo do liberalismo. Da mesma maneira o problema demográfico, tâo
importante na vida de uma nação, será resolvido por um pensamento liberal.
O povo só pede para se multiplicar, as famílias querem crescer. O rei não deve
se intrometer nesse problema: deve somente dar um impulso muito simples,
favorecendo os nascimentos. Enfim, é preciso preservar-se de regular toda a
vida econômica da nação, promulgando regulamentos, aumentando os impos­
tos —como se, esmagado pelo imposto, o trabalhador pudesse encontrar mais
forças dentro de si para conseguir pagar —, imaginando taxas. A economia deve
ser livre, em sua essência o homem é um trabalhador. Que se lhe permita agir
sem o oprimir: a riqueza multiplicar-se-á. Essas idéias são naturalmente muito
utópicas. Fénelon, prisioneiro de seu século, deu um passo muito tímido em
direção à filosofia política liberal. Tímido, mas que não deixa de ser importante.
Porém, uma tarefa mais elevada - menos elevada na verdade do que aquela
que impõe a exigência da educação - deve preocupar o rei. Fénelon, como todos
os seus contemporâneos, foi um espírito perturbado pela guerra. Ele a deve ter
visto mesmo de muito perto. Fazia-se a guerra no território de sua diocese. Para
Fénelon, um rei autêntico devia possuir a arte da guerra para defender a justa
causa de sua pátria Um verdadeiro rei, diz ele, é um rei que conhece a paz e a
guerra Um rei que só conhece a guerra é um meio-rei, pois ignora a justiça A
teoria feneloniana da guerra é mais complexa do que se possa imaginar.
Encontram-se nela idéias políticas e estratégicas muito justas. Fénelon refletiu
muito, por exemplo, sobre a preparação da guerra e sobre sua conduta
Todavia, em sua meditação sqbre a guerra, Fénelon revelou o cerne de seu
pensamento. Ele acredita que o mais seguro meio de evitar a guerra consiste em
mostrar-se absolutamente verdadeiro, totalmente sincero e ele imagina que tal
sinceridade será o cimento do mundo, concebido como uma república universal
na qual cada povo é "apenas uma grande família”. Fénelon quer que não se veja
mais cada país como independente, mas o gênero humano como um todo
indivisível. Um leitor de Fénelon escreveu: “As pessoas não se limitam mais ao
amor por sua pátria; o coração se estende, torna-se imenso, e, por meio de uma
amizade universal, abraça todos os homens. Daí nascem o amor pelos es­
trangeiros, a confiança mútua entre as nações vizinhas, a boa fé, a justiça e a paz

345
entre os príncipes do universo, assim como entre os particulares de cada estado.”
Foi expressado com grande justeza o sonho político de Fénelon que emana do
Telêmaco. Esse sonho era o da paz universal e perpétua. Ele não morreu com
Fénelon. Uma grande tradição desenvolveu-o. O século XVIII foi alimentado por
esse sonho,2 e um grande filósofo, Kant, ligou-se a ele.
Fénelon trouxe um duplo julgamento sobre seu pensamento político. Lá
para o fim de sua obra nasce uma expressão sob sua pena. Ele fala do “rei
filósofo”. Fénelon sabe bem que o rei filósofo é uma figura utópica. Mas é
somente um tal rei que pode utilizar os princípios políticos que ele desenvol­
veu. Tanto mais que Fénelon julga sua filosofia política digna de ser colocada
entre as utopias. Mas ele escreve também: “Mas, ai!, meu filho, como a realeza
é enganadora! quando observada de longe, vê-se apenas grandeza, brilhos e
delícias; mas, de perto, tudo é espinhoso... Teme portanto, meu filho, teme uma
condição tão perigosa: arma-te de coragem contra ti mesmo, contra tuas
paixões e contra os aduladores” (L VI, pág. 202). Escrevendo um pensamento
tão justo, tão penetrante, Fénelon trazia um outro julgamento sobre seu
pensamento político. Ele lhe parecia perfeitamente concreto e realista.
Assim, utopia e realismo uniram-se no pensamento político do arcebispo
de Cambrai. Todo o discurso político de Fénelon pareceu ambíguo. Não sabia
dosar em sua proposta a parte do realismo e a da utopia. Viu-se diminuir aos
poucos a profundidade da política feneloniana. E a obra encontrou sua
verdade: ao fim de contas, era apenas um romance curioso e, como disse
Voltaire, “de um gênero desconhecido na Antigüidade”.

• Oeuvres complètes de M. François de Salignac de La Mothe Fénelon, Toulouse, 1810, 19


vol. Os dois primeiros compreendem uma Vie de Fénelon (Vida de Fenelon) redigida pelo abade
de Fenelon.

► Cardeal de Bausset, Histoire de Fénelon, archevéque de Cambrai, composée sur les


manuscrits originaux, Versailles, 1817, 4 vols.; A. Philonenko, Fénelon politique, Boletim
especial da Associação amical dos antigos alunos e alunas do Liceu Fenelon, 1983. Citar-se-á
como lembrança o primeiro volume das Oeuvres de Fénelon na coleção Pléiade, que não
contém texto político algum.

NOTAS
1. Respeito ao pé da letra o texto original de Voltaire - procedo da mesma maneira
naquilo que toca a Fénelon. (Nota do autor)
2. Ver meus Essais sur la philosophie de la guerre.

Alexis PH IL O N E N K O .

346
FEUERBACH, Ludwig, 1804-1872
A essência do cristianismo, 1841

Feuerbach talvez não mereça figurar num Dicionário de obras políticas,


o que automaticamente se asseguraria a Rousseau, Kant e Hegel. Exprimir-nos-
íamos mal querendo dizer com isso que ele não teria a oferecer em filosofia
política nenhum escrito que possa, por seu valor, ser comparado com o
Contrato social, a Doutrina do direito ou com a Filosofia do direito. A
realidade é ao mesmo tempo mais simples e, para o comentador, mais cruel.
Se consultarmos, efetivamente, a obra oficial de Feuerbach, isto é, os escritos
publicados quando ele ainda vivia e pelos quais ele quis ser responsável, não
encontraremos nenhum texto político, nenhum traço suscetível de constituir
uma obra política no seu sentido mais aceito. E, sem dúvida, pode-se realçar
aqui e ali, dentro deste ou daquele tomo, um pensamento político. Mas isso é
muito raro e seria uma tarefa pouco séria reunir essas poucas idéias num todo
que seria em verdade artificial, sem coerência e, sobretudo, indigno de
Feuerbach. Alguém por certo nos dirá que será necessário recorrer a seus
textos inéditos. Essa idéia também não nos parece aceitável —os inéditos são
freqüentemente muito afetados. Mas o que conta na história das idéias e da
filosofia são os textos oferecidos ao público e, por isso mesmo, suscetíveis -
com a condição de que sejam lidos —de transformar a maneira de compreender
o mundo, de apreender a realidade social e política. Os escritos de Feuerbach
não tocam s política —sua obra oficial da primeira à última página só trata
verdadeiramente de religião. Vê-se, portanto, o paradoxo que existe em colocá-
lo entre filósofos, como Rousseau, Kant, Hegel, e outros autores políticos por
excelência.
Tal paradoxo é, entretanto, mais aparente do que se concorda em dizê-lo.
Feuerbach — mesmo que não seja mais visto como um grande filósofo —fez
época. Ele fez época no sentido preciso que Bossuet confere a tal expressão.
Fazer época, nos diz o bispo de Meaux, é obrigar as consciências a parar e,
fazendo isso, a considerar as idéias, as concepções que as animam. Em seu
grande livro Uessence du christianisme (A essência do cristianismo), Feuer­
bach fez época- propondo uma filosofia do homem que recolocava em questão,
ao menos indiretamente, as concepções políticas e sociais. Conceitos essenciais
pareciam atingidos em seu próprio âmago. As pessoas sentiam-se obrigadas a
pensar de maneira diferente. F. Engels declarou que os espíritos ligados ao
marxismo nascente descobriram-se todos, com entusiasmo, discípulos de Feuer­
bach. Em compensação os espíritos partidários da ordem estabelecida acredita­
ram dever se opor ao autor de A essência do cristianismo. Esse livro, publicado
em 1841, marcou verdadeiramente uma data dentro da história do pensamento
filosófico e político. Imagina-se mal o poder das reações, as disputas, as contro­
vérsias. Foi um verdadeiro tumulto, e nos esgotaríamos ao querer apreender com
exatidão e profundidade todos os pensamentos que nasceram então. Depois, o
tempo fez a sua obra. A essência do cristianismo desapareceu pouco a pouco no

347
esquecimento. Outras filosofias atraíram a atenção do público. Não se conseguiu,
no entanto, esquecer a questão originada na obra fundamental de Feuerbach:
qual é a função de uma teoria fundamental da religião dentro do desenvolvi­
mento de uma filosofia política?
A filosofia da religião de Feuerbach intervém nesse caso de uma maneira
dramática e essencial. Seus resultados a conduziram a contestar a validade do
fundamento para o qual Rousseau, Kant e Hegel fazem apelo. A filosofia da
religião de Feuerbach, apoiada sobre uma hermenêutica poderosa e enérgica,
descobre que o único fundamento absoluto de todo pensamento humano é o
homem como razão, como vontade, como coração. Examinando a religião,
Feuerbach faz ver que Deus nada mais é do que o homem que alienou sua
consciência. Se o homem conseguir superar sua alienação, se, fazendo isso,
conseguir reencontrar-se, voltar a si mesmo, descobrirá que sua consciência é
o fundamento único de sua visão do mundo e, conseqüentemente, também de
seu pensamento político. Não é preciso dizer, como Kant, que: “Toda autori­
dade vem de Deus.” Tal proposta é ainda a de uma consciência alienada. É
preciso dizer que toda autoridade se baseia e se legitima no âmbito da
consciência humana que, por sua potência, seu entendimento, suaa vontade e
seu coração, sabe o que é verdadeiro, justo e bom. Vê-se o imenso alcance do
pensamento de Feuerbach: é a recolocação em questão mais decisiva e mais
radical do princípio sobre o qual a grande filosofia clássica da política se apoiou
incessantemente.
Essa contestação não podia intervir em um momento, por assim dizer,
arbitrário da história do pensamento. Era preciso que Feuerbach conseguisse
primeiro elaborar sua doutrina. Era preciso que seu pensamento na teoria da
religião adquirisse uma consistência real, uma grande solidez, uma verdadeira
coesão interna para que o imenso desafio que ele lançasse ao pensamento
político clássico fosse concebível e realmente enérgico. De certa maneira -
levando em consideração gravíssimos contra-sensos - foi exatamente assim
que foi entendida a transtornante recolocação em questão do pensamento
clássico que emanava de A essência do cristianismo. As pessoas encontravam-
se diante de uma idéia muito inquietante: Feuerbach, para retomar a feliz
expressão de H. Avron, operava uma transformação do sagrado. Ele fazia do
homem um Deus para o homem, e, dentro dessa transformação do sagrado,
ele arruinava os fundamentos do pensamento de Rousseau, de Kant e de Hegel.
Marx e seus discípulos refletiram longa e profundamente sobre o sentido desse
pensamento tão decisivo. E preciso dizer também, para ser verdadeiro, que o
pensamento religioso e, sobretudo, o pensamento protestante, se sentiram
abalados. K. Barth em sua História da filosofia protestante no século XIX
definiu o pensamento de Feuerbach como uma “antiteologia”. Ele quer dizer
com isso que o autor de A essência do cristianismo conserva o sentido do
sagrado, do religioso, mas que ele o desloca em direção ao homem. Pode-se
tirar dessa proposição uma importante conseqüência: uma filosofia política
protestante não pode "contornar”, como se diz, a filosofia da religião de
Feuerbach.

348
Por que o pensamento de Feuerbach pareceu tão decisivo, tão essencial,
tão novo?
A resposta deve ser procurada na obra, na própria A essência do
cristianismo. Não foi todo mundo, é preciso que se diga, que soube encontrá-la
— há sempre espíritos cegos. Assim, um pensador particularmente limitado
acreditou ver em A essência do cristianismo um prolongamento do pensamen­
to de Hegel. Feuerbach redigiu páginas incendiárias contra esse infeliz, um
certo Bruno Bauer, que ele chamava de "ultra-hegeliano".
Se abrirmos A essência do cristianismo, se a lermos com um espírito
aberto, encontraremos um primeiro elemento de resposta e não será inútil
considerar o imenso erro de Bruno Bauer. Em numerosas páginas, des­
crevendo em uma língua às vezes hermética as estruturas da religião cristã,
Feuerbach critica o pensamento religioso com muito tato, fineza e cordiali­
dade. Sem dúvida compreende-se sem dificuldade que se trata sempre de
substituir Deus pelo homem - mas Feuerbach, e nisso ele se mostra original,
novo, decisivo, descreve com muito respeito as grandes estruturas divinas que
ele quer tornar humanas. Suas páginas sobre o amor divino - na realidade o
amor que o homem tem pelo homem - são de grande elevação. E verdadeira­
mente animado pelo sentido mais profundo do sagrado que ele analisa as
grandes idéias de reconciliação, de perdão e de liberdade. Ele não zomba
vulgarmente da religião —abstração feita da última parte de seu livro que trata
de teologia —, ele não cede freqüentemente à ironia. Transpondo o lugar do
sagrado, voltando do amor divino para com o homem ao amor do homem para
o homem, Feuerbach pretende, ao celebrar as grandes idéias da religião,
preparar a sagração do homem. Esse pensamento é totalmente novo. Em vez
de pintar Deus como um ser imaginário, como uma ficção absurda, como se
fazia no século XVIII, e de crer que, fazendo isso, ia cassá-lo do pensamento
político e social, Feuerbach celebra-o, e sua dialética é muito precisa. Quanto
mais o sagrado for respeitado, adorado mesmo, mais seu deslocamento para o
homem contribuirá para magnificar a essência do homem. O sagrado deve ser
transferido de Deus para o homem. Para o homem verdadeiramente ganhar
alguma coisa nessa transferência, é preciso que o sagrado conserve sua
potência —mais justamente ainda, se essa fórmula nos é autorizada, é preciso
que o sagrado consagre o homem. É o que o pensamento do século XVIII não
parece ter percebido e é a ruptura que dá toda novidade ao profundo
pensamento de Feuerbach. Vê-se sem dificuldade o alcance político dessa
dialética admirável. Diferentemente dos pensadores do século XVIII, não se
procura depois de ter cassado Deus tomar o homem em sua nudez como
princípio do pensamento e da filosofia política. O homem que toma o lugar de
Deus em Feuerbach é um ser nobre. Nada limita, em sua essência, sua razão,
sua vontade, seu coração. O homem é o fundamento glorioso e absoluto, e,
quando um Kant, por exemplo, diz “Toda autoridade vem de Deus”, pensador
iludido pela religião da qual não soube descobrir a essência, ele se engana:
“Toda autoridade vem do homem.”
Quiseram retirar de Feuerbach esse sentido do sagrado e, para fazê-lo,

349
basearam-se muitas vezes em algumas páginas em que aparece uma ironia
mordaz. Apoiaram-se também muito sobre o fim da obra, no qual o autor critica
a essência não-autêntica da religião com um furor que contrasta muito com as
primeiras análises. É difícil contestar esses pontos. Não se pode resistir sempre
ao fogo da inteligência. Feuerbach é culpado, mas não muito mais do que
qualquer outro. E, depois, há exemplos. Em suas sábias filosofias, os grandes
pensadores cristãos se deixaram levar à ironia, enquanto eram levados pela
polêmica. O próprio Kant, espírito sereno entre tantos, abriu a porta à ironia.
No que concerne ao fim da obra - a essência não-autêntica da religião - ,
convém dizer que o furor de Feuerbach se explica pelo fato de ele atacar não
a religião, mas a teologia e a imagem de Deus que ela causa. Eis um exemplo
desse furor: “Ó vós, filósofos religiosos alemães de visão estreita, vós que nos
lançai na cabeça os fatos da consciência religiosa, para embrutecer nossa razão
e nos subjugar a vossa superstição pueril, não observai, portanto, que os fatos
são tão relativos, tão subjetivos quanto as representações das religiões?" Ainda
um exemplo: “Ó vós, profundos e grandes filósofos, estudai principalmente a
língua do asno de Balaam!... eu vos garanto que, estudando de maneira
aprofundada essa língua, reconhecereis e encontrareis vossa língua mater­
na...’' Isso não se manifesta evidentemente segundo a lei do senso do sagrado.
Quem o negaria? E, entretanto, mesmo nessa parte tão polêmica, tão dura,
encontram-se belas páginas, reflexões claras e serenas em que se reconhece o
senso do sagrado. Mesmo em sua crítica da teologia, Feuerbach não esquece
que desacreditar Deus é desacreditar o homem do qual ele quer fazer um ser
nobre, liberando sua consciência, fundamento de toda filosofia e, em particu­
lar, da filosofia política e social.
Porém, há um outro elemento de resposta cuja importância, todavia, é
mais difícil de perceber. Antes de Feuerbach, os espíritos que contestavam a
religião concebiam mal sua gênese. Para explicar o nascimento da repre­
sentação de Deus, seus predecessores encontravam-se em um extremo emba­
raço, e, paradoxo muito digno de consideração, muitos não o sentiam verda­
deiramente. O pensamento deles era freqüentemente de uma simplicidade
quase cômica. Eles invocavam a imaginação, fonte de erros e de superstição.
Dentro da gênese da religião, a imaginação era um poder cego. Assim, a
imaginação, incapaz de perceber bem os fatos históricos precisos, conduzia o
espírito humano a conceber milagres e, em tão bom caminho, a conceber um
Deus capaz de tudo e, por exemplo, de fazer falar um asno. Esse gênero de
explicação tão divulgado não trazia na realidade nenhuma clareza. Esses
“livres-pensadores” acreditando progredir faziam apenas reproduzir demons­
trações obscuras, já dadas na mais alta Antigüidade. Bem mais! Suas idéias
eram ainda menos claras do que as de um Lucrécio. Quando esse autor tão
venerável nos explica que o medo deu origem aos deuses, exprime um
pensamento muito justo e muito profundo. Ele foi, além disso, caro a Feuer­
bach e isso diz tudo.
O pensamento de Feuerbach pareceu uma outra vez original e novo, pois
deu uma explicação muito precisa da gênese da religião e da representação de

350
Deus. Ele mostrou o mecanismo que conduz a consciência a colocar um
Absoluto, um Deus do qual ela depende. É a tão célebre dialética da alienação.
A glória de Kant consistiu em desenvolver dentro da teoria do esquematismo
transcendental o movimento pelo qual, ligando as intuições e as categorias, o
espírito humano alcança o conhecimento. A glória de Feuerbach consistiu em
desenvolver dentro da teoria da alienação o movimento pelo qual, ligando a
razão, a vontade e o coração, o espírito humano chega à religião. Porém
Feuerbach não é Kant —ele não tem, como o autor da Crítica da razão pura,
o gosto por uma demonstração conduzida segundo a ordem das razões. Sua
doutrina da alienação, em vez de reunir-se em um capítulo, como a teoria do
esquematismo transcendental, desenvolve-se pouco a pouco em sua obra, e
acontece muitas vezes que Feuerbach se mostre, em seu discurso, muito
secreto, muito implícito, ousar-se-ia dizer. Resumamos o movimento dessa
dialética. A reflexão mais superficial conduz o homem a achar em si a razão, a
vontade e o coração. Ele não possui certamente essas faculdades em sua
perfeição. Sua razão está limitada, sua vontade acabou, seu coração é pequeno.
Todavia, mesmo limitada, a razão é um objeto de admiração para o homem; ele
não sabe tudo, mas saboreia a perfeição de um silogismo. Da mesma maneira,
acabada, a vontade é um objeto de admiração para o homem; ele não pode
querer tudo, mas saboreia a perfeição de uma decisão corajosa. Enfim, se bem
que pequeno, o coração é um objeto de admiração para o homem; ele não pode
amar tudo, mas saboreia a perfeição do amor infinito que ele leva a um ser
humano. Dentro de sua razão, sua vontade e seu coração, o homem cria a
experiência da perfeição. Dessa mesma maneira as idéias da razão, da vontade
e do coração, revelando uma perfeição, o seduzem. Logo, ele é tentado pela
idéia de uma razão infinita, de uma vontade infinita e de um coração infinito.
Ele sonha - “A religião, diz Feuerbach, é o sonho do espírito humano” - com
um ser que uniria em si a razão infinita, a vontade infinita e o coração infinito.
E esse sonho, de uma força impressionante, o conduz a conceber este ser, a
conceber Deus. Esse sonho é sustentado pela tentação que a perfeição da
razão, da vontade e do coração exerce sobre o espírito do homem. 0 homem
não pode resistir à tentação de projetar todas suas potências em um Absoluto.
Ele concebe Deus como razão infinita, como vontade infinita, como coração
infinito e ele se submete a Ele como princípio absoluto. Deus, colocado como
unidade das potências levadas ao infinito, desvenda-se, então, como o mestre
absoluto do homem, e a religião encontra seu ato de nascimento. Em toda essa
operação tão complexa — não podemos entrar no detalhe da dialética da
tentação —o homem não cessa de pensar o homem em sua essência. É ao
gênero humano que na realidade ele atribui as potências concebidas em sua
infinidade. Mas a idéia de Absoluto compreendida na de perfeição e princípio
da projeção das potências conduz irresistivelmente a colocar um Deus. Duas
conseqüências decorrem daí. De um lado, em sua verdade, em sua essência, o
Deus colocado como Absoluto é humano: a razão divina e a razão humana são
homogêneas, pois, tanto para uma como para outra, duas vezes dois são quatro
- da mesma maneira a vontade divina e a vontade humana são homogêneas,

351
pois, tanto para uma como para outra, nada é mais fundamental do que a lei
moral —enfim o coração divino e o coração humano são homogêneos, pois
tanto para um como para o outro, o amor ocasiona uma alegria infinita. De
outro lado, desse Deus resultante de sua alma, segundo a dialética da tentação,
o homem consente em ser o servidor. Ele aceita, como quer o movimento da
alienação, essa servidão com uma consciência clara, total. Mas o servidor,
tendo preferido à sua liberdade a de Deus, espera deste que por sua razão ele
o esclareça, que por sua vontade ele o guie, que por seu coração ele o ame.
Fazendo isso, ele dá ainda mais peso à sua servidão e à sua alienação. O homem
é apenas uma criança que o pai esclarece, guia e ama. Em seus Estudos
luteranos, Feuerbach insistirá com energia sobre a idéia de que a consciência
religiosa se apodera sempre, como uma criança, do Pai que é Deus em sua
relação com ele. Em A essência do cristianismo, ele escreveu: “A religião é a
essência infantil da humanidade.”
Devemos então nos perguntar em que toda essa filosofia — às vezes
redigida em um estilo obscuro e hermético —poderia contribuir para a reflexão
política. Uma evidência se impunha: não se podia mais perseverar em fazer de
Deus o fecho da abóbada do pensamento político. Os teólogos por muito tempo
haviam acreditado poder tratar com desprezo os escritos muitas vezes medío­
cres dos “livres-pensadores". Mas certos espíritos eram mais difíceis de se
refutar. Situações cômicas e confusas apareciam. Dissemos o que pensamos do
livro de Bergier —Le déisme réfuté par lui-même (O deismo refutado por si
mesmo) —, dirigido contra Rousseau e onde tudo se encontra misturado.
Feuerbach fez época. Ele anunciou um amanhã difícil para os partidários do
trono e do altar. Jamais, se descreveu como ele, com vigor, a gênese da
consciência religiosa. E essa gênese implicava uma conseqüência política
admirável. Voltando para si mesmo, reencontrando suas potências, compreen­
dendo a verdadeira significação da projeção dessas potências no Absoluto, o
homem percebia, enfim, o sentido sagrado da humanidade dentro da liberdade.
A infinita liberdade de Deus vista dentro do movimento da alienação pela
consciência religiosa ia ser enfim substituída pela liberdade humana, como
totalidade concreta e absoluta. Não podíamos liberar essa conseqüência mais
elevada enquanto refletíamos sobre o sentido do sagrado e seu deslocamento.
Só a dialética da alienação nos autoriza a dar seu pleno valor à liberdade
humana ou, melhor, para se exprimir à maneira de Feuerbach, à liberdade
humana como sendo o Valor dos valores. Não é de Deus que procede toda
autoridade - é da liberdade humana. Com efeito a liberdade humana coino
Valor dos valores funda exigências, obrigações, determinações e, nesse sentido,
comanda. O puro princípio de toda política aparece então: é a liberdade
humana concreta como totalidade efetiva e absoluta.
Feuerbach não era um fanático. Ele atribuía à filosofia um poder
modesto. Não acreditava que bastava escrever um livro para transformar o
mundo.
E, então, isso nos coloca uma questão muito estranha e muito difícil.
Feuerbach, que só concedia uma modesta potência a sua filosofia e que não

352
acreditava que uma teoria da alienação pudesse bastar para reduzir a
alienação, estava muito confiante na força de suas idéias e em sua realização.
Qual era o fundamento dessa confiança? Como Feuerbach concebia a
libertação do homem? Como compreendia a conclusão da odisséia da cons­
ciência dentro do movimento da alienação? O que torna essa questão tão
estranha e tão difícil é o fato de que Feuerbach não parece ter acreditado -
se nos é permitida uma expressão um pouco vulgar — que suas idéias
formariam uma bola de neve e que elas encontrariam, assim, úma força
sempre maior e, por fim, irresistível.
Fica-se tentado a resolver dessa maneira essa difícil questão: o autor é
um homem que acredita na Revolução. O homem não pode permanecer
indefinidamente oprimido. Ele se rebelará contra o jugo da religião. Ele
brandirá o estandarte da liberdade e, então, bruscamente quebrará as cor­
rentes da alienação, perceber-se-á como o ser nobre, princípio e fundamento
de toda verdade política, quero dizer, de uma política humana. Essa leitura não
é inteiramente falsa. Feuerbach foi um homem que acreditava na Revolução
da liberdade. Suas simpatias sociais são bastante conhecidas. Poder-se-ia
acrescentar uma precisão. Feuerbach foi uma vítima da censura religiosa e
política. Sua primeira obra, que tratava da morte e da imortalidade da alma foi
censurada sem piedade, e a grande carreira universitária que o esperava foi
aniquilada de uma só vez. Está estabelecido acreditar que essa dolorosa
experiência — e seu resultado pungente - fez de Feuerbach um homem
revoltado, penetrado por um sentimento de injustiça que nada podia apagar.
E vê-se a seqüência: concluir-se-á pouco a pouco que o autor só vivia na
esperança de uma Revolução absoluta, instaurando a liberdade humana,
destruindo todas as correntes, derrubando todas as Bastilhas, demolindo o
trono e o altar, superando, enfim, a alienação. Mas, como se diz - frequente­
mente de maneira superficial e sem consciência clara - , é bonito demais para
ser verdade. Não é proibido pensar que Feuerbach sonhou com uma Revolu­
ção. Mas ele não acreditou nela de uma maneira assim tão precisa como se
gostaria de pensar. Em sua obra oficial não há nenhum texto tratando da
Revolução dentro dessa perspectiva. Veremos que há algumas idéias sociais e
políticas. Mas não se vê como poder-se-ia fazer de Feuerbach um teórico de
uma Revolução que conduzisse para o abismo a alienação.
Na realidade, ele colocava em outro lugar sua esperança e era na filosofia
da religião que encontrava o motor da liberação da humanidade e da superação
da alienação.
Feuerbach não desenvolveu em termos rigorosos a dialética da decepção e
da liberação. Ela deriva, entretanto, com uma grande necessidade, do princípio
que ele não cessa de afirmar com força: a religião deve satisfazer a consciência
humana. Isso quer dizer que, se Deus não satisfaz a consciência, ele entra em
agonia e libera o homem, abandonando, por falta de força, as correntes nas quais
ele o mantém. Da mesma maneira, o milagre - fundamento da religião -,que
acaba por iludir, liberta a consciência de seu domínio mágico. Tudo em Feuer­
bach conduz à idéia dessa dialética da decepção que é preciso olhar como

353
processo histórico muito lento, muito profundo, compreendendo também aces­
sos de febre que se chama de revoluções. Não seria possível, com uma infinidade
de correções, reencontrar dentro do pensamento marxista a herança dessa
dialética profunda. Em Marx também o homem quer ser satisfeito e é guiado por
cruéis decepções que ele faz progredir em direção a um futuro radioso.
A questão não é, de maneira nenhuma, saber qual sentido se deve dar à
ausência de um tratado de filosofia política —composto segundo as regras da
arquitetônica mais acabada - dentro da obra oficial de Feuerbach, e, em todo
caso, não é ao que Marx visa quando medita sobre o pensamento do autor de A
essência do cristianismo. Em suas célebres Teses sobre Feuerbach - tão
freqüentemente comentadas com muita penetração — Marx resume assim a
carência do empirismo superior de Feuerbach, que ele assemelha, com razão, a
um materialismo: “O defeito de todo materialismo passado (incluído o de
Feuerbach) é que o objeto, a realidade, a materialidade só são tomados sob a
forma do objeto ou da intuição, mas não como atividade sensível-humana,
como prática." O pensamento de Marx é, nesse caso, de uma potência raramente
igualada. Ele nos explica em poucas palavras que a filosofia de Feuerbach,
tendendo a um empirismo superior ou, se se preferir, a um materialismo,
permaneceu uma filosofia contemplativa, preocupada somente com a dimensão
teórica da realidade. Feuerbach, escreve Marx, “considera portanto, em A
essência do cristianismo, a relação teórica a única verdadeiramente humana,
enquanto a prática só é percebida e fixada sob sua forma fenomenal vulgar e
judaica. Ele também não compreende a significação da atividade revolucionária,
crítico-prática” (primeira tese). Perceber-se-á bem o pensamento de Marx voltan­
do para a dialética da decepção, tão importante em Feuerbach. Essa dialética é
teórica no sentido em que ela se limita ao movimento da consciência e não
percebe o homem em totalidade como realidade ativa, como práxis. Poder-se-ia
deixar-se levar à ironia e escrever que a história da decepção é apenas uma
história dos estados de alma. Eis porque, conduzido por Marx diante da realidade
terrificante das fábricas inglesas, Feuerbach, teórico da consciência, fala da
virtude e mostra-se impotente diante da verdadeira tarefa, que consiste em
elaborar uma política fundando uma atividade, uma práxis concreta.
Essa última tese sobre Feuerbach - a décima primeira - formula-se
assim: “Os filósofos simplesmente interpretaram o mundo de maneira dife­
rente; trata-se de modificá-lo.” Feuerbach, segundo Marx, interpretou o mundo
como todos os filósofos. Ele não mudou nada. Introduzamos, no entanto, uma
correção. No espírito de Marx, Feuerbach era o último filósofo. Ele foi
entretanto incapaz de recolher os frutos de seu imenso esforço. Viu-se como
Feuerbach criticara decisivamente Hegel. F. Engels nos permite compreender
o que isso significava para os marxistas. Em seu livro consagrado a Feuerbach,
o inseparável amigo de Marx explica o que representava a filosofia hegeliana
para o materialismo dialético. O sistema hegeliano, escreve ele, era gigantesco.
Nada lhe escapava. Ele compreendia uma Ciência da lógica e uma Fenome-
nologia do espírito que fundavam uma filosofia do direito, da religião, da
estética e uma história da filosofia. Esse sistema gigantesco era uma inter-

354
pretação idealista do mundo, repousando sobre estruturas dialéticas muito
estudadas e muito precisas. Do ponto de vista do conteúdo, o sistema hegeliano
compreendia em si todo o pensamento filosófico em seus momentos essenciais.
Do ponto de vista da forma, a segurança e a precisão do pensamento hegeliano
pareciam insuperáveis. Era a apoteose da filosofia. F. Engels insiste sobre o
sentimento dos contemporâneos de Hegel: eles assistiam ao "triunfo do
pensamento”. O amigo de Marx esclarece que, após a morte de Hegel, a
influência de seu sistema, longe de se enfraquecer, aumentou ainda e culminou
em 1840. Era, escreve F. Engels, o reinado da Hegelei.
Foi então que apareceu Feuerbach e, em seus escritos - aquele intitulado
Crítica de Hegel, mas também A essência do cristianismo - , deu um golpe
mortal em um sistema que se olhava como a obra perfeita da filosofia. Acreditou-
se ver, assim, desmoronar o gigante hegeliano e, para os marxistas, aquele que
o havia abatido pronunciava as últimas palavras da filosofia. Ele era admirado.
Certamente ele interpretava ainda o mundo. Mas sua interpretação, segundo
Marx, percebida em sua profundidade verdadeira, chamava absolutamente algu­
ma coisa de novo porque ela era a interpretação última. Todo o pensamento de
Feuerbach se resume em uma proposição —essencial para o pensamento político:
a antropologia é a verdade da religião e da teologia. Essa tese que resume todo
o pensamento de Feuerbach foi vista pelos marxistas como o fim da filosofia. O
mundo estava, enfim, fundamentalmente interpretado.
Ora, se segundo Marx essa interpretação chamava qualquer coisa de
novo, a despeito de seu caráter radical e acabado, ela era totalmente incapaz
de compreendê-lo com força e energia. Esse momento novo era a vinda
gloriosa da práxis. Toda teórica, a interpretação que constituía o sistema de
Feuerbach não permitia conceber uma outra realidade que não a interpretação.
Ela não via, por princípio, que não bastava mais interpretar o mundo, mas que
era preciso modificá-lo penetrando a realidade da "atividade humano-sensível
prática". Certamente, refutando Hegel, Feuerbach atingia o limite absoluto da
interpretação. Mas ele não conseguia perceber esse momento novo que era a
práxis e ele não viu que a verdadeira filosofia política se enraizava na prática
revolucionária em que Marx encontrava o lugar do pensamento político e da
ação política autênticos.
Assim, um pensamento filosófico, que havia surpreendido o mundo por sua
novidade, ia dar em uma novidade imensa que ele não podia perceber, segundo
Marx. Esse foi o destino de Feuerbach. Compreende-se, então, como A essência
do cristianismo perdeu muito de sua influência e se tornou um livro entre
outros, e Feuerbach, para muitos, um filósofo qualquer, sem grandes méritos e
desprovido de genialidade. Esqueceu-se até de como ele tinha abatido o gigante
hegeliano e suas objeções tão pertinentes pareceram superficiais. Não se viu mais
de modo nenhum a contribuição que sua teoria da religião trouxera para o
pensamento político. Assim é a história. O pensamento político em particular
mostrou-se incapaz de compreender o que havia sido perdido.
Quanto a Feuerbach, uma coisa ficou clara. Sua vida o ensinou que
existem três grandes livros que a história não pode fazer cair no esquecimento

355
e dos quais a humanidade se alimenta. O primeiro é a Bíblia. O segundo é o
Corpus Juris Civilis. 0 terceiro é O Capital. Ele só conseguiu perceber a
importância de O Capital, de Marx, no fim de sua existência. Ele sabia que
haviam visto nele - talvez erradamente —o último verdadeiro filósofo. Lendo
Marx, ele descobriu com dificuldade e sem chegar à evidência uma realidade
que ultrapassava a idéia até então aceita da filosofia - a práxis. E foi mais a
evidência do coração do que a luz da inteligência que o conduziu a ver O
Capital como o terceiro grande livro. Será que ele compreendeu verdadeira­
mente que O Capital fundava o amargo destino de sua filosofia como inter­
pretação última? É permitido que se duvide disso, e não há poder mais forte
do que a dúvida para selar um destino, na medida em que a dúvida nos conduz
freqüentemente a abandonar tudo.

• S à m tlic h e W erke. Neu herausgegeben von Wilhelm Bolin und Friedrich Jodl.

► W. Bolin, B io g ra p h isch e E in leitu n g (em SM'', Bd, XII); K. Marx, u. Engels, D ie d e u tsc h e
Id e o lo g ie , 1845/1846, hrsg. S. Landshut, Stuttgart, 1953; MEGA, I, 5; K. Marx, T hesen ü b e r
F eu erb a ch , MEGA, 1,5; R. Haym, F eu erb a ch u n d d ie P h ilo so p h ie; Fr. Jodl, L u d w ig F eu erbach
u n d M a x S tir n e r (Oesterr., Rundschau, Viena, 1911, 26 Bd.); K. Lówith, Von H e g e l z u
N ie tz sc h e , Zurique, 1941; H. de Lubac, D ie T ra g õ d ie d e s H u m a n ism u s o h n e Gott, Salzburgo,
1950; H. Arvon, F eu e rb a c h e t la tra n s ío rm a tio n d u sa c ré ; A. Philonenko, Étude leibniziènne:
Feuerbach et la monadologie, R e v u e d e M ó ta p h y siq u e e t d e M o ra le, 1970, n° 1.

Alexis PHILONENKO.

FICHTE, Johann Gottlieb, 1762-1814


O Fundamento do direito natural, 1796

Primeiro paradoxo; um tratado de história das idéias políticas deve


consagrar um capítulo a Fichte; ora, sua maior obra política, a Grundlage des
Naturrechts, somente agora, perto de dois séculos após sua publicação, acaba
de ser traduzida para o francês, enquanto ainda faltam as traduções de sua
Staatslehre e de sua Rechtslehre (1812-1813), assim como diversas versões de
sua Doutrina da Ciência (exceto a de 1804). Segundo paradoxo: Fichte passa
muitas vezes por um idealista fanático e um precursor do pangermanismo
nazista; ora, Jaurès, socialista humanista perfeito, lhe consagra um lugar
central em sua tese latina; vê nele “a imagem majorada, ampliada de Kant”, a
de um filósofo que "se apaixona pelos direitos do homem e pela dignidade!”
Ilusões de um jovem normalista? Exatamente...

356
Sob a impulsão de R. Lauth, na Alemanha, e a de A. Philonenko, na
França, assistimos desde os anos sessenta a um lento e paciente trabalho de
edição e interpretação, do qual surgiu pouco a pouco a imagem de um Fichte
que não era aquele que se acreditava ser: não um metafísico delirante, mas
crítico, com uma profundidade insuspeita, da metafísica dogmática; não um
teórico pangermanista de um Estado autoritário, mas um pensador "apaixona­
do” pela liberdade e pelo direito.
Fichte comparou sua Doutrina da ciência à Revolução Francesa: do
mesmo modo que esta última, escreve ele, “libertou a humanidade das
correntes materiais, meu sistema a libertará do jugo da coisa em si, das
influências exteriores, e seus primeiros princípios fizeram do homem um ser
autônomo” (carta a Bagessen, de abril de 1795). Dir-se-á talvez que a compa­
ração, supondo-se até mesmo que ela não seja desmedida, é pelo menos infeliz:
a "verdade” da Revolução não é o Terror de 1793, e o inferno, assim como a
filosofia de Fichte, não está cheio de boas intenções? Essa questão hegeliana
merece reflexão. Mas para respondê-la, a leitura das célebres Contributions
destinées à rectifier les jugements du public sur la Révolution française
(1793) não basta; obra da juventude, apenas esboçada, de maneira ainda muito
imperfeita, projeto filosófico que só encontrou sua primeira formulação satis­
fatória em 1796, com o Fondement du droit naturel. Para dar um resumo
dessa obra difícil, considerar-se-á somente a maneira pela qual Fichte pretende
basear uma nova filosofia da história que, pela primeira vez na história da
filosofia, faça justiça à idéia de liberdade.
Sabe-se como em 1793, nas Contributions, Fichte havia defendido a
Revolução Francesa contra seus críticos “reacionários” — essencialmente
Burke e Rehberg (cf. sobre esse ponto, de A. Philonenko, Theórie et praxis
dans la pensée morale et politique de Kant et de Fichte en 1793). Os
panfletos anti-revolucionários, pelo menos na Alemanha, haviam tomado a
forma de uma recolocação em questão global da Aufklürung e, notadamente,
da possibilidade de um governo racional dos assuntos políticos. Afirmavam
assim um divórcio entre a teoria (o “doce sonho” de uma constituição
baseada sobre a razão) e a prática (a realidade do Terror, inevitável se se
confere a uma pretensa vontade geral um poder absoluto). A resposta a tais
objeções só podia, do ponto de vista da Aufklürung, ser operada sobre o
plano da história, pois a própria crença na idéia de progresso foi ques­
tionada, e era preciso, conseqüentemente, recomeçar sobre novas bases.
Duas respostas foram elaboradas:

— a de Kant, que consistiu em mostrar como a maldade (quer dizer, o


egoísmo) não implicava inevitavelmente, muito pelo contrário, um divórcio
entre a teoria e a prática, pois a natureza, com uma malícia providencial, pode
se servir do próprio confronto desses egoísmos para forçar os homens,
perfeitos demônios, a entrarem em um estado de direito (cf., neste livro mesmo,
o artigo sobre Kant);

357
— a de Fichte, que, recusando essa naturalização da história, tentou
negar a própria premissa do raciocínio reacionário, isto é, a hipótese da
maldade humana:"... Essa velha idéia de um estado natural, essa guerra de
todos contra todos que compreenderia o direito, esse direito do mais forte que
deveria reinar sobre a terra, tudo isso é falso” (Contributions, trad. Payot,
1974, sob o título Considerátions sur la Révolution française, pág. 146).
Estimando que o estado natural não é nem bom, nem mal, mas neutro, pois é
o estado da liberdade ainda indeterminado, esse autor devia colocar clara­
mente, desde 1793, os princípios de seu "idealismo semântico” (cf. A. Philo-
nenko, op. cit., pág. 88) e afirmar todo o poder da liberdade na história: “A
experiência em si mesma é uma caixa cheia de caracteres jogados desordena-
damente; é o espírito humano que, sozinho, dá um sentido a esse caos, que tira
daqui uma Ilíada e dali um drama histórico à Schlenkert” (Contributions,
trad., pág. 101).
As fraquezas do texto de 1793 são numerosas sem dúvida: ainda
prisioneiro de um pensamento do tipo do de Rosseau do estado natural e de
uma visão exclusivamente moral do fato político, Fichte só consegue denun­
ciar o Estado colocando-o sob um ponto de vista pré-político (o do estado
natural), o que contradiz profundamente o projeto, que, no entanto, já é o
seu, de fundar uma filosofia do futuro. Desde as Conférences sur la
destination du savant, criticará nesses termos aquele que, apenas um ano
atrás (cf. Contributions, pág. 103), era adornado com todas as virtudes:
“Rosseau... tinha a energia, mas mais aquela do sofrimento do que aquela da
atividade... Para ele o retorno é um progresso.” Ora, “é diante de nós que se
coloca o que Rousseau, sob o nome de estado natural, e os poetas, sob a
expressão idade de ouro, situaram atrás de nós” (trad. Vrin, págs. 81-87). E,
na Grundlage des Naturrechts, é o Estado racional, único verdadeiro estado
natural do homem, que virá ocupar esse futuro que o texto de 1794 deixava
ainda indeterminado: "... nenhum direito natural, isto é, nenhuma relação
jurídica entre os homens é possível, se não estiver dentro de uma comuni­
dade e sob leis positivas... Mas o que perdemos de um lado reganhamos de
outro com lucro, pois o próprio Estado torna-se o estado natural do homem
e suas leis devem ser nada mais do que o direito natural realizado”
(Sàmtliche Werke, III, págs. 148-149).
Se “o verdadeiro caráter da humanidade é ter o futuro em perspectiva”,
se o exercício da liberdade, a práxis, é a razão última de nossa existência sobre
a terra (cf. Conférences..., págs. 85-90), a tarefa essencial de uma doutrina do
direito é dupla:
1) Ela deve, primeiro, colocar em dia as condições de possibilidade da
liberdade dentro da história: se a liberdade, como pensam os que aderem ao
determinismo da causalidade natural, é apenas uma ilusão, o que Espinosa
chama de “delírio”, o projeto político não tem nenhum sentido. Portanto, seria
preciso, sobre essa primeira vertente, reabordar o problema colocado por Kant
em Critique de la raison pure com a terceira antinomia (a antinomia da
liberdade e do determinismo).

358
2) Mas, supondo-se que a questão da própria possibilidade da liberdade
seja resolvida, resta descrever a natureza das instituições políticas que podem
ser compatíveis com ela. É então para a teoria de Rousseau da vontade geral
que Fichte se deverá se voltar.

A liberdade e o determinismo

É no capítulo II da Crundlage des Naturrechts que Fichte empreende


uma crítica da solução trazida por Kant para a terceira antinomia. Repousan­
do sobre a distinção do mundo sensível (fenomenal) e do mundo inteligível
(numenal), a solução kantiana coloca a validade absoluta do princípio de
causalidade (do mecanismo) no nível dos fenômenos, reconhecendo total­
mente a possibilidade de uma liberdade do homem enquanto númeno. Essa
solução ergue, aos olhos de Fichte, uma dificuldade perigosa: não conduzi­
ria, na verdade, a submeter integralmente ao determinismo as ações huma­
nas consideradas fenômenos e, por isso mesmo, a tornar rigorosamente
impossível, ao nível da história visível, a distinção entre uma ação livre e uma
ação determinada por uma causalidade natural qualquer? Daí a questão de
Fichte: “Onde se encontra o limite dos seres racionais?” Ou, em outros
termos, como distinguir o homem do animal no nível dos fenômenos? (cf. a
carta a Reinhold de 29 de setembro de 1795 e, na Grundlage, págs. 80-81).
Sem dúvida, será percebida melhor a pertinência dessa questão um pouco
surpreendente em sua aparente ingenuidade, se se imagina, por um lado, que
ela é efetivamente insolúvel dentro do quadro de uma leitura ortodoxa da
Critique de la raison pure e, por outro lado, que, sendo a história, por aquilo
que dela sabemos, da ordem do visível, do fenomenal, a colocação em dia dos
critérios ou dos sinais visíveis da liberdade poderia apresentar, com efeito,
algum interesse.
A terceira Critique traz realmente um elemento novo com relação à
Critique de la raison pure: concedendo uma certa legitimidade ao princípio
de finalidade e, no próprio mundo fenomenal, já permite fornecer um primeiro
critério visível da liberdade. Do mesmo modo que os seres organizados devem
ser pensados sob a idéia de finalidade e, por isso, referidos à hipótese de um
criador inteligente (Deus), as ações humanas que apresentam também o
caráter de finalidade serão igualmente relacionadas à idéia de um autor
inteligente (o homem).
Mas esse critério é insuficiente aos olhos de Fichte, pois a finalidade é
equívoca pelo próprio fato de se aplicar tanto às ações humanas quanto aos
seres organizados. É preciso, portanto, ir mais longe ainda se quisermos
apreender verdadeiramente os sinais da liberdade (do reconhecimento do
outro) e conseguir distinguir entre uma finalidade que é apenas natural e uma
finalidade que supõe efetivamente uma causa racional (cf. Grundlage, pág. 37;
Conférences..., pág. 47).
É dentro dessa perspectiva que o capítulo II da Grundlage se entrega a
uma verdadeira fenomenologia do corpo humano a fim de aí revelar, ao nível

359
do visível e não somente ao nível numenal, as marcas da liberdade. Não se
trata, portanto, de maneira nenhuma, como acreditou Hegel, de uma “dedução
do corpo”. O encaminhamento de Fichte se inscreve, muito pelo contrário, no
espaço aberto pela Critique de la facultê dejuger. como Kant, Fichte, de fato,
distingue cuidadosamente “três ordens do real” (cf. A. Philonenko, Kant und
die Ordnungen des Reellen, em Êtudes kantiennes, Vrin, 1981):

- a ordem das coisas naturais que dependem do mecanismo;

- a ordem dos seres organizados que não se poderiam confundir, como


o fazem os cartesianos, com simples máquinas, e que apenas são pensáveis sob
o conceito de uma finalidade natural.

- a ordem da vida, definida por Fichte, a partir de Kant, como “a


faculdade de agir conforme as representações”.

Essa terceira ordem nos conduz mais próximo daquilo que procuramos
(os sinais visíveis da liberdade): pois, se de um lado, a vida enquanto faculdade
de agir conforme representações, portanto, intencionalmente, é exatamente
um analogon dessa liberdade, de outro, o mundo vivo é, de modo diferente do
mundo dos simples seres organizados (plantas, tais como a árvore da qual nos
fala a respeito a terceira Critique), o mundo da individualidade absoluta
(analogon da personalidade): a individualidade dos seres organizados é apenas
relaüva, o que testemunha a possibilidade de enxerto (posso com efeito
considerar a árvore como um indivíduo, mas posso também considerar tal
galho ou, mesmo, tal folha igualmente um indivíduo, pois posso enxertá-lo em
outra árvore). O ser vivo, ao contrário, é um indivíduo absoluto: seus membros
não pderiam viver independentemente dele.
A análise de Fichte consiste em aprofundar essas distinções kantianas
dentro do sentido de busca dos critérios empíricos (visíveis) da vida. Uma vez
descobertos esses critérios, restará apenas operar uma nova distinção, no seio
da ordem do vivente, entre a humanidade e a animalidade (Grundlage, págs.
76 a 85).
O principal sinal empírico da vida é, aos olhos de Fichte, a articulação do
corpo, pois a articulação, que não é enxertável, manifesta a capacidade do
corpo vivo não somente de se mover livremente, conforme a representação de
finalidades, mas também de utilizar a natureza como um meio. Desse modo, o
corpo articulado não é apenas organizado: “O homem é uma planta perfeita,
mas é mais ainda” (ibidem, págs. 77-78). Todavia, o corpo animal também é
articulado; dir-se-ia, por isso, que o animal é dotado de liberdade, que é um ser
racional? A resposta de Fichte reúne-se nesse caso às de Kant e de Rosseau;
ela anuncia o existencialismo contemporâneo: o animal é certamente dotado
de “movimento livre" (freie Bewegung), mas esse movimento livre permanece
ainda determinado (bestmmte freie Bewegung): "Por seu instinto, um animal
já é tudo o que pode ser; uma razão estranha já tomou conta de tudo por ele.

360
Porém, o homem, ao contrário... vem ao mundo em estado bruto” (Kant,
Réflexions sur Véducation, trad., pág. 70). Em termos sartreanos, diríamos que
existe uma natureza animal, mas não existe uma natureza humana, porque
o homem é livre. O animal não tem história, não é um ser político, não tem
necessidade de educação. O homem, ao contrário, “é apenas indicado e
esboçado”, não existe nele “nenhum determinismo (Bestimmtheit) da articula­
ção, somente uma determinabilidade (Bestimmbarkeit), nenhuma estrutura­
ção, apenas uma estruturabilidade” (Grundlage, pág. 80), e, conseqüente­
mente, seu corpo articulado não pode “de maneira nenhuma ser pensado sob
um conceito determinado...”. Fichte pode, então, concluir,nestes termos, que:
“Todo animal é o que é, só o homem originariamente não é nada" (ibidem); o
corolário desse capítulo II se esforça por completar essa fenomenologia por
uma análise dos sinais empíricos da indeterminaçâo humana que evoca tanto
as Conjectures sur le commencement de Vhumanité, de Kant quanto certas
passagens da Phénoménologie de la perception, de Merleau-Ponty.

A organização política da liberdade

Tendo indicado os símbolos empíricos da liberdade, podemos esperar não


.somente que a idéia de uma filosofia do futuro possua um sentido, mas também
que a doutrina do direito não seja inaplicável, que tenha um objeto: a
intersubjetividade (se a liberdade do outro não podia ser reconhecida nos
fenômenos, a própria idéia de relação jurídica, quer dizer, de uma relação entre
seres livres, não tinha nenhum objeto. Cf. Grundlage, pág III). Resta talvez o
essencial: como conceber uma organização política que seja compatível com a
liberdade humana? —problema tão espinhoso, que Fichte, em 1796, recusa
confundir direito e moral e situa no egoísmo, no interesse, bem entendido, a
única motivação da realização do direito (cf. Grundlage, págs. 1 a 17). Se é
preciso distinguir a simples legalidade (conformidade à lei, quaisquer que
sejam os motivos) da moralidade (conformidade desinteressada à lei), para que
a constituição jurídica não permaneça um “doce sonho”, não estaríamos nos
arriscando a recair numa visão mecanicista da história? Em outras palavras,
pode-se separar o direito da moral sem o reduzir à história (à posição de um
simples produto do jogo dos egoísmos)?
A resposta a essa questão teria que ser procurada dentro da interpretação
que a Grundlage dá da vontade geral de Rousseau. No caso presente, nos
limitaremos a esboçá-la.
A diferença entre a vontade geral e a vontade de todos, Fichte escreve,
"não é de maneira nenhuma tão incompreensível como se pretende. Cada
indivíduo particular quer conservar para si tanto quanto possa, enquanto os
outros querem conceder tão pouco quanto possível; mas, precisamente porque
essa vontade que é a dele é em si mesma conflituosa, o elemento contraditório
suprime a si mesmo e o que resta como resultado último é que cada um deve
ter o que lhe revém. Quando duas pessoas são concebidas como estando em
comércio uma com a outra, pode-se sempre supor que cada uma delas queira

361
levar vantagem sobre a outra. Mas, como nenhuma das duas quer sair
perdendo, esse aspecto da vontade delas se anula reciprocamente e sua
vontade comum consiste no fato de cada uma obter o que é de direito"
(Grundlage, págs. 106-107).
Para esclarecer esse texto e dar a perceber em que ele permite elaborar
uma resposta às questões colocadas, lembraremos o que segue:
a) A vontade geral de Rousseau, o Contrato social é explícito pelo menos
sobre esse ponto, não é nem a maioria, nem a unanimidade, nem a soma dos
pontos comuns entre os diversos indivíduos. Segundo a fórmula enigmática do
capítulo III do livro II, ela é a “soma das diferenças” que subsistem quando se
tiram, dentro da consideração das vontades particulares, “os mais e os menos
que se entredespedaçam”. Fichte, sem dúvida com razão (cf. A. Philonenko,
Théorie etpraxis..., capítulo 19), interpreta essa “soma das diferenças” como
uma integral no sentido matemático, isto é, como uma adição de quantidades
infinitamente pequenas. Essa interpretação* tem a vantagem de dar um
sentido à idéia de vontade geral (muito freqüentemente mal distinguida da
vontade de todos) e de explicar a aversão de Rousseau pelas associações ou
pelos partidos políticos: na Assembléia Legislativa, semelhante à monadologia
de Leibniz (não esqueçamos que o modelo da integral é de Leibniz), é preciso
que cada ponto de vista particular seja levado em conta enquanto tal para que
se possa, segundo a fórmula do direito romano, “atribuir a cada um o seu”.
Para lesar o outro, em compensação, portanto para sair do direito, é preciso
se associar a outros, pois, fora do direito, o mais forte não é nunca bastante
forte para ser sempre o mestre: eis aqui os “mais e os menos que se
entredespedaçam”.
b) Para que funcione o mecanismo da vontade geral, é preciso, por assim
dizer, que a Assembléia Legislativa seja análoga a uma festa (cf. J. Starobinski,
La transparence et 1’obstacle, págs. 116-121), que cada indivíduo dentro dela
se comunique total e diretamente com os outros: pois é somente sob essa
condição que é possível a cada um perceber o que é justo (de direito), isto é,
situar a si mesmo e aos outros no seio dessa totalidade. A comunicação não
poderia ser indireta nesse caso, e a democracia se opõe a todas as formas de
alienação da vontade geral (notadamente nos contratos de Hobbes e de
Pufendorf), como a festa no teatro (onde a comunicação se efetua por
intermédio de um terceiro termo, a cena). Inspirando-se em Rousseau, Fichte
fará do direito o lugar da intersubjetividade direta (cf. A. Philonenko, introdu­
ção à Critique de la faculté de juger).
c) Conseqüentemente, o direito não se confunde nem com a moral (pois
sua realização repousa não sobre o puro respeito à lei, mas sobre o interesse
que se pode compreender bem contanto que cada um conheça seu lugar
dentro da totalidade social), nem com a história (já que o processo pelo qual

* A. Philonenko retomou e desenvolveu magistralmente essa interpretação em Jean-Jacques


Rousseau et la philosophie du malheur, t III, Paris, Vrin, 1984.

362
se resgata a vontade geral é, se se ousa dizer, sincrônico, estrutural, e não
diacrônico).
É à luz dessa teoria da vontade geral, herdada de Rousseau, que conviria,
sem dúvida, interpretar a construção fichteana do direito e, notadamente, a
difícil antinomia do liberalismo e do absolutismo que ela coloca no lugar
(organiza). Tal análise ultrapassaria evidentemente o quadro deste artigo.
Limitar-nos-emos, portanto, a sublinhar, à guisa de conclusão destinada a
prevenir certos mal-entendidos que poderia suscitar a leitura da Grundlage,
que o projeto de Fichte escapa à alternativa voluntarismo/historicismo à qual
algumas vezes se pretendeu reduzi-lo: contra a leitura hegeliana que faz do
fichteísmo um puro e simples “idealismo moral”, é preciso lembrar o cuidado
que Fichte tem ao distinguir o domínio do direito daquele do ético. Que essa
distinção não tenha por isso o sentido de uma adesão a esse "realismo” no qual
Léo Strauss (c.f. Droit naturel et histoire) acredita ver a verdade da filosofia
política moderna, está aí, por outro lado, o que sobressai bastante claramente
da reinterpretação fichteana do conceito de vontade geral. O pensamento
político de Fichte conheceu, como se sabe, uma evolução que o conduziu às
paragens do autoritarismo. Talvez esteja aí, como já o pretendia Rousseau, a
conseqüência inevitável de um projeto político que visa a “achar uma forma de
governo que coloca a lei acima do homem”. Pois, quando essa “forma não é
suscetível de ser encontrada... é preciso passar para a outra extremidade e
colocar, de uma só vez, o homem tão acima da lei quanto for possível,
conseqüentemente estabelecer o despotismo arbitrário e o mais arbitrário
possível” (Rousseau, carta de 1767 ao marquês de Mirabeau). Seguramente
menos sábio e menos prudente do que aquele dos liberais de sua época, o
pensamento de Fichte não se limita menos, como o de Rousseau, à tentativa
filosoficamente mais rigorosa a fim de tornar inteligíveis as condições de
possibilidade de ações políticas livres.

• L e F o n d e m e n t du d ro it n atu rel, trad. A. Renaut, Paris, PUF, 1985.

► E. Cassier, L es s y s tè m e s p o st-k a n tien s, Presses universitaires de Lille, 1983; L. Ferry, La


distinction du droit et d e 1’éthique chez Fichte, A rc h iv e s d e p h ilo s o p h ie d u dro it, 1982; Idem,
L 'id é a lism e a lle m a n d e t la R é vo lu tio n fra n ça ise, Passé-Présent, 1983; ldem, P h ilo s o p h ie
p o litiq u e , 1 e II, Paris, PUF, 1984; R. Lauth, Le problème de I’interpersonalité chez Fichte,
A rc h iv e s d e p h ilo so p h ie , 1962; X. Léon, F ich te e t s o n tem p s, Paris, A. Collin, 1922-1927; A.
Philonenko, L a lib e rté h u m a in e d a n s la p h ilo s o p h ie d e F ich te, Paris, Vrin, 1966; ldem, T h éo rie
e t p r a x is d a n s la p e n s é e m o ra le e t p o litiq u e d e K a n t e t d e F ich te e n 1 7 9 3 , Paris, Vrin, 1983;
R. Schottky, La Grundlage des Naturrechts de Fichte et la philosophie politique de 1'Aufklãrung,
A rc h iv e s d e p h ilo so p h ie , 1962.

Luc FERRY.

363
FOUCAULT, Michel, 1926-1984
Vigiar e punir, 1975

Surveiller et punir (Vigiar e punir) não comporta nem prefácio, nem


introdução, nem conclusão. Nenhuma justificação. Seu começo, uma hipótese
de trabalho, uma proposição, o avanço de uma possibilidade a experimentar:
“Poder-se-ia fazer uma história dos castigos tendo como base uma história de
corpos? (5. et P., pág. 30), ou ainda: ”Poder-se-ia fazer a genealogia da moral
moderna a partir de uma história política dos corpos? (ibidem, página de
abertura). Nada imposto. Uma possibilidade entre outras; certamente não mais
verdadeira do que as outras, mas talvez mais pertinente, mais eficaz, mais
produtiva do que alguma outra. E é isso que importa: não produzir alguma
coisa verdadeira, no sentido de ser definitiva, absoluta, peremptória, mas
fornecer “peças” ou “pedaços”, verdades modestas, percepções novas, estra­
nhas, que não impliquem o silêncio surpreso ou o zunzum dos comentários,
mas que sejam utilizáveis por outros como as chaves de uma caixa de
ferramentas.
O método, efetuação ou atividade dessa perspectiva, é chamado por
Foucault de genealogia (ibidem, págs. 27, 34 e de abertura). É claro que o
termo é retomado, e não apenas o termo de Nietzche; mas Foucault faz dele
um uso e uma utilização que lhe são próprios. A genealogia apanha o poder
em seu exercício ao nível de seus meios e de seus instrumentos. Ela insiste em
descrever suas invenções incessantes, seu infinito biscate. Em sua oficina só
descobre máquinas ou maquinárias, aparelhos de madeira ou de ferro, arqui­
teturas, pedaços de papel, fichas e escrituras, livros de ciência, tratados de
conhecimento e todas espécies de linguagem, nunca nada além de materiali-
dades. Vê o poder totalmente ocupado em combiná-lo seguindo destinos
imprevistos, para fabricar seu espaço e seu tempo, jogando segundo as leis da
ótica e da mecânica.
A genealogia é física e microfísica do poder. Se descobre o corpo do
poder é para vê-lo sempre se aplicar sobre outros corpos. Sobre o que um
corpo poderia agir se não sobre um outro corpo? A genealogia adota o ponto
de vista dos corpos, o do corpo torturado, preparado, marcado, mutilado,
decomposto, forçado, submisso, o do corpo que se reparte, que se organiza,
que se separa e que se reúne. A lei de exercício do poder é aquela do corpo a
corpo, de corpos que se aplicam sobre outros corpos, para investir sobre eles,
submetê-los, dominá-los, para formá-los, educá-los, fabricá-los, corpos que
resistem a essa aplicação. A genealogia descreve seus efeitos: produção de
almas, idéias, saber, moral, isto é, produção de poder que se reconduz sob
outras formas. O poder é ao mesmo tempo causa e efeito. Seguindo essa
perspectiva, a análise do poder, de qualquer tipo de poder, em qualquer esfera
que se exerça, será peça de uma genealogia da alma e da moral.
Em resumo, a genealogia é “anatomia política”; definiu e descobriu um
novo campo de estudos, o “corpo político”: "poder-se-ia sonhar com uma

364
‘anatomia' política... Nela tratar-se-ia do ‘corpo político’ como conjunto dos
elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de substitutos, de vias
de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que
invistam sobre os corpos humanos e os submetam, fazendo deles objetos de
saber” (S. e P., pág. 33).
Toda uma tradição falou do poder procurando sua origem (Rousseau),
suas condições ou suas causas (Marx-Engels), reduzindo-o a outra coisa - à
luta de classes, por exemplo —fazendo dele um efeito, um produto ou uma
superestrutura. Como se o poder devesse sempre ser explicado, interpretado,
como se tivesse um sentido inscrito no ser ou na história; dependia de quem
determinasse da melhor maneira esse sentido ou essa natureza do poder. A
anatomia política rompe com esta tradição: não procura tanto explicar o poder
quanto descrevê-lo. Separa o poder como perspectiva própria, específica,
irredutível. Não que faça do poder uma nova substância da qual procuraria
definir a essência. À idéia de uma essência do poder, ela opõe o poder como
exercício. Dissolve a grande unidade do poder, sua identificação simples
demais com o Estado e seus aparelhos: ao poder ela opõe as relações de poder
e a pluralidade de “micropoderes” que elas constituem. A anatomia política faz
aparecer o poder como produtor, ela obriga a conceber as relações de poder
não como relações de repressão, de interdição ou de defesa, mas, muito mais
profundamente, como relações de produção. A anatomia política desqualifica
a divisão que coloca todas as funções positivas de um lado e o poder do outro,
que os serviria, favoreceria ou, ao contrário, que os atrapalharia e coagiria.
Conceber o poder como produtor é mostrar sua própria e específica eficácia
produtiva; é somar sua tecnologia ao número das outras tecnologias produti­
vas. O poder se exerce sempre em vista dos efeitos de poder que poderá tirar
de seu exercício. A anatomia política é “economia política” no sentido de
análise dos modos de produção de poder e “economia política” do corpo, já
que os efeitos do poder são obtidos por investimento ou submissão de corpos,
isto é, produção de corpos, almas, idéias e saber. Produzir, sempre produzir,
esse é o único imperativo do poder. Em proveito da economia, é preciso opor
os lucros de poder, as mais-valias de poder, os efeitos de “superpoder” que ele
tira de seu exercício.
Mas essa especificidade da tecnologia do poder não quer dizer nem
independência, nem autonomia. O “corpo político” é, ao contrário, relação de
relações: relação do corpo do poder com os corpos sobre os quais ele investe
e que lhe resistem; relação das diferentes relações de poder entre eles; relação
das relações de poder e das relações de produção; relação das técnicas de poder
e dos procedimentos de saber. Dependem de sua articulação. Articulação
complexa, sempre instável, perpetuamente móvel e provisória, da ordem do
compromisso. A anatomia política faz assim o corpo social aparecer como
conjunto desarmônico, um pouco como um barco bêbado, trabalhado, metra-
Ihado por uma multiplicidade de conflitos, rangidos, resistências, desacordos
irredutíveis à grande contradição de classes. Colocam tantos problemas de
conjuntura para o poder, que exigem suas soluções: inscritas em nenhuma

365
parte do ser, submissas a nenhuma outra necessidade além da urgência de sua
resolução, talvez não tenham jamais um caráter racional e científico demais,
seriam mais “improvisações” ou “invenções” se seu nascimento não fosse lento
e se elas não obedecessem à coerência de estratégias finalmente calculadas.
Em todo caso, são tantas as ocasiões em que o poder é jogado em batalhas
singulares, em que ele deverá sempre ser jogado sem jamais estar seguro de
seus resultados.
0 que não acontece sem colocar uma série de problemas estreitamente
sobrepostos: 1) Problema da articulação relações de poder — relações de
produção, ponto de encontro entre a perspectiva marxista e a anatomia
política. 2) Problema da relação entre os “micropoderes” e o poder do Estado,
ou problema de uma anatomia do corpo social. 3) Problema das constantes no
exercício do poder e problema de sua finalidade.

Sobre as relações poder —produção

Seguindo a perspectiva da anatomia política não se poderia limitar a


fórmulas como: as relações de poder se "deduzem” das relações de produção.
Primeiro porque é preciso distinguir os níveis: não é evidente que a articulação
seja a mesma na escala da Fábrica e na escala do Estado. Em seguida, porque
essa relação de “dedução” parece rápido equívoco e vem realmente eliminar
os problemas de poder que coloca necessariamente o funcionamento de um
aparelho de produção. Se toda relação de produção é, ao mesmo tempo,
relação de poder, não é porque uma se deduza da outra, mas porque o
nascimento assim como o funcionamento de um modo de produção implicam
a resolução de problemas específicos de poder.
Especificando, a análise da "integração disciplinar” (ibidem, parte III,
“Discipline”, e em particular págs. 177-179,219-223). Ela merece ser compara­
da àquela da “cooperação” por Marx em O Capital (livro I, seção 4, capítulo
XIII), pois têm o mesmo objeto: a disciplina da fábrica. Marx se atém a
“deduzir” o despotismo da direção capitalista das exigências do capital: a maior
extração possível de mais-valia. E ele se refere à necessidade do despotismo na
resistência dos operários. Mas efetivamente só há dedução na aparência: Marx
enuncia mais as implicações de tendência do capital e faz como se sua
satisfação viesse de si mesmo, fosse natural, de tal modo que as submissões do
corpo são sempre dadas como efeitos. A análise de Marx apaga dessa forma o
que a de Foucault faz aparecer: entre a exigência do capital (a mais-valia) e a
solução (a fábrica disciplinar), existç uma anatomia política: a disciplina
{ibidem, pág. 217). Sua “invenção” e sua extensão foram sem dúvida chamadas
e provocadas pelas transformações do aparelho produtivo, mas elas não se
deduzem dele: “As mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão
do trabalho e a elaboração dos procedimentos disciplinares sustentaram um
conjunto de relações muito próximas. Cada uma das duas tornou a outra
possível e necessária; cada uma das duas serviu de modelo para a outra”
(ibidem, págs. 222-223). A integração disciplinar, que define a fábrica capitalis-

366
ta, está, além disso, se colocando como solução para um conjunto de problemas
de poder, seguindo o princípio de uma nova economia de poder tal como ela
é formulada no panotismo: “O desenvolvimento das disciplinas marca a
aparição de técnicas elementares de poder que dependem de uma economia
totalmente diferente: mecanismos de poder que, em vez de virem ‘por dedu­
ção’, se integram do interior à eficácia produtiva dos aparelhos, ao crescimento
dessa eficácia e à utilização daquilo que produz" (ibidem, págs. 220-221). O
modo de produção capitalista não produziu a disciplina; encontra-se, ao
contrário, na conjunção das duas exigências solidárias: “Esse triplo objetivo
das disciplinas responde a uma conjuntura histórica bem conhecida. É, de um
lado, o grande crescimento demográfico do século XVIII... O outro aspecto da
conjuntura é o crescimento do aparelho de produção... O desenvolvimento dos
procedimentos disciplinares responde a estes dois processos ou, sem dúvida,
mais à necessidade de ajustar sua correlação” (ibidem, pág. 220). Enfim, o
despotismo do capital não poderia ser explicado pela única exigência da
mais-valia, não mais do que pela resistência dos explorados, já que a fábrica é
imediata e indissociavelmente disciplinar, pois supõe e efetua a colocação no
lugar dessa nova tecnologia para investir sobre e sujeitar os corpos: submissão
que não é, portanto, o efeito do capital, mas que o modo de produção
capitalista, inversamente, supõe.
O nascimento da fábrica disciplinar, isto é, do modo de produção
capitalista não tem como única condição de possibilidade a tendência do
capital a aumentar a força produtiva do trabalho. A “dedução” marxista
esquece a outra condição, a “invenção” de uma nova tecnologia ou de uma
nova microfísica do poder, destinadas a satisfazer também e ao mesmo tempo
uma estratégia de poder. Desse “esquecimento” podem-se enunciar algumas
conseqüências:
a) De encontro à necessidade marxista, é preciso reintroduzir na articu­
lação poder —produção um elemento de contingência, de arbitrariedade, que
Foucault exprime por meio do termo “invenção”. O modo de produção
capitalista não vem apenas do capital; responde a um problema de conjuntura
que o próprio capital contribuiu para provocar. A solução é também de
conjuntura: a fábrica disciplinar responde tão bem à tendência própria do
capital quanto ao investimento ou à apropriação dessa tendência por uma
estratégia de poder.
b) A fábrica disciplinar une duas exigências específicas (de um lado a
mais-valia, do outro a docilidade), de modo que produzirá seus efeitos dos dois
lados ao mesmo tempo. Seguindo o princípio da integração, as duas tecnolo­
gias, produtiva e política, são indissociáveis: produzir é disciplinar e disciplinar
é produzir: a produção das riquezas será ao mesmo tempo produção de
homens dóceis (ibidem, págs. 208-210). Os efeitos de poder não vêm tanto do
capital quanto da anatomia panótica integrada ao aparelho produtivo.
c) A integração disciplinar dá o exemplo de um tipo de exercício do poder
que não se articula de algum modo a partir do exterior sobre o aparelho de
produção para servi-lo, protegê-lo ou favorecê-lo. E manifesta, inversamente,

367
que o capital não utiliza, seguindo uma relação de meio a fim, as técnicas
disciplinares para obter um máximo de mais-valia. As relações disciplinares são
constitutivas do modo de produção capitalista; elas definem a própria modali­
dade de produção do capital.
d) Portanto, deve-se dizer que as relações de produção em regime
capitalista são mais disciplinares do que são capitalistas: e, de maneira mais
geral, que o poder nas sociedades ditas capitalistas é, nelas, menos capitalista
do que disciplinar: "O crescimento de uma economia capitalista chamou a
modalidade específica do poder disciplinar, daí as fórmulas gerais, os procedi­
mentos de submissão das forças dos corpos, a ‘atomia política’, em resumo,
poderem ser postos a trabalhar por regimes políticos, aparelhos ou, ins­
tituições muito diferentes” (ibidem, pág. 223). Inversão de perspectiva que
fornece o princípio de uma nova divisão das sociedades: elas devem ser
caracterizadas menos por seu modo de produção do que por sua anatomia
política; ou mais exatamente, o que caracteriza um modo de produção não é a
exigência econômica, da qual ele procede em parte, mas exatamente a anato­
mia política que ele coloca para trabalhar e que, definitivamente, o constitui.
Essa é a parte perdida da “dedução” marxista; ela é considerável.
e) Se existe tanta proximidade entre o poder e o capital, não é que o poder
sirva o capital, mas que a relação de produção capitalista exerça, efetue, na
busca do lucro que o caracteriza, a própria operação do poder. Não existe
exterioridade entre os dois; talvez não existam dois níveis, infra-estrutura e
superestrutua, mas uma mesma anatomia política. Se o governante é realmente
o irmão do patrão, não é porque eles se prestam serviços mútuos, mas porque,
mais profundamente, são os agentes de uma mesma modalidade de poder. Se
eles são cúmplices, não é por causa do lucro, mas como servidores de uma
mesma maquinaria de poder que a buca do lucro, em particular, faz funcionar:
"O poder dentro da vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como
uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma
maquinaria. E, se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um ‘chefe’,
é o aparelho inteiro que produz ‘poder’ e distribui os indivíduos nesse campo
permanente e contínuo" (ibidem, pág. 179).
f) Não existe harmonia entre lucro e poder, entre a tendência do capital
e a anatomia política do modo de produção capitalista: se o modo de produção
capitalista se define exatamente por sua anatomia política, essa não se deduz,
é isolável, tem uma “relativa autonomia”, ela não lhe é necessária. Daí a
possibilidade de conflitos, de atritos entre a tendência ao lucro e as estratégias
de poder que o revestem, entre relações de poder e relações de produção,
conflitos que não surgem somente da oposição dos explorados. Ou, melhor, a
resistência dos explorados, assim como o nascimento de um novo tipo de
criminalidade ou de ilegalidade, poderáexigir a definição de uma nova econo­
mia do poder, a colocação no lugar de uma nova anatomia política que não
satisfará necessariamente as exigências do lucro. É porque, para parafrasear
Marx, a humanidade não se coloca jamais problemas que possa resolver; pois,
observando de mais perto, as soluções não estão contidas nos problemas.

3 68
Para resumir essa mudança dentro da perspectiva: não se poderia
caracterizar o regime de produção capitalista apenas por sua finalidade
(produção da mais-valia), mas pelo “corpo político’’ que coloca em jogo, isto é,
por seu modo de produção. Ou, ainda, o que caracteriza um modo de produção
é menos o fim para o qual serve do que sua anatomia política. E preciso
dissociar finalidade produtiva e modo de produção e deslocar a acentuação
da primeira para a segunda. O modo de produção capitalista, o “corpo político”
do capital é como o entremeio conjuntural, portanto não necessário, que, por
bloqueios e submissões de corpos que supõe e produz, articula finalidade
produtiva e estratégia de poder. As relações de poder são, portanto, cons­
titutivas do modo de produção, longe de serem seu efeito, elas são seu coração;
e se a infra-estrutura da sociedade capitalista está situada exatamente no nível
da produção, esta é mais política do que econômica. Melhor do que colocar
sempre a questão do poder em termos de lucro, perspectiva teleológica, a
anatomia política nos ensina, ao contrário, a ver o motivo principal no “corpo
político”, conjunto dos dispositivos minuciosos e ínfimos que asseguram, pela
tomada e a produção dos corpos, que efetuam, ao mesmo tempo, lucros de
produção e mais-valias de poder. Sem esquecer que são os pequenos lucros de
poder que permitem os grandes lucros de produção. Em resumo, nossa
sociedade não é disciplinar porque é capitalista.

Sobre a articulação dos “micropoderes”com o Estado

A anatomia política não poderia localizar o poder somente dentro do


Estado, identificar as relações de poder com as relações do Estado com os
cidadãos. Ao Estado e ao poder do Estado se opõe o que Foucault chama de
focos de poder, que são tanto Estados dentro do Estado quanto poderes locais
e regionais. Uma companhia de mineração é um exemplo disso, assim como
uma fábrica, uma escola, uma cidade operária, um hospital, uma caderneta de
poupança, a célula familiar... É permeando o conjunto desses “micropoderes”
que o poder se difunde dentro do corpo social. A análise do poder implica,
portanto, um deslocamento da atenção sobre objetos, instituições até então
“poupadas” e uma mudança de escala na descrição que deve descer até aos
detalhes e às pequenas ninharias do poder (ibid., págs. 141-142). Mas a
anatomia política não se limita a fazer a anatomia minuciosa desses “micropo­
deres”. Estuda também as inúmeras relações que se mantêm entre eles,
desmonta suas redes e as relações que o Estado e seus aparelhos nutrem com
elas, seguindo seus objetivos estratégicos e suas invenções táticas. Essa seria
a anatomia política do corpo social: não uma análise do Estado e de seus
aparelhos, nada mais do que uma análise dos “micropoderes” dispersados
dentro da sociedade, mas o estudo das relações deles, das articulações deles
ao mesmo tempo laterais e verticais. O modelo seria o último capítulo de Vigiar
e punir, “Le carcéral”, do qual se podem tirar as seguintes regras:
a) Desmembrar o Estado. Sem dúvida o panotismo de nossas sociedades
disciplinares nos habituou a ver nesses “micropoderes”, nesses Estados dentro

369
do Estado, tantos efeitos, ramificações ou produtos do Estado. Mas não se deve
ceder à ilusão retrospectiva e fazer do efeito panótico um ponto de partida,
uma regra geral e universal. O Estado que conhecemos, o Estado de nossas
sociedades disciplinares não começou como um centro que se teria estendido
continuamente, que teria inchado e teria se complicado progressivamente. É,
ao contrário, um problema totalmente diferente da possibilidade de uma
centralização do poder.
b) Abandonar a idéia de um centro por aquela de uma rede de poder.
O poder não vem do centro do Estado. 0 Estado não é centralizado. A
centralização não pode ser um estado de fato. É um imperativo estratégico
para o poder. O objeto de tentativas constantes e sem cessar renovadas. Não
pode passar nunca de um efeito. Não o efeito do bom funcionamento dos
aparelhos de Estado, mas o exercício do poder no conjunto dos Estados dentro
do Estado, focos de poder locais e regionais. Como mostra o que Foucault
chama as “carreiras disciplinares”, o aparelho judiciário seria totalmente
incapaz de encher as prisões sem o mecanismo geral do “arquipélago carcerá­
rio”, a superposição graduada e hierarquizada do conjunto dos microespaços
disciplinares que asseguram a ordem e a tomada constante e contínua do poder
sobre os indivíduos (ibidem, quarta parte, capítulo III, “Le carcéral”, pág. 306
e segs.). Os aparelhos do Estado se apoiam sobre eles, encontram neles a
energia que os anima, sua consistência e solidez. O jogo do poder está dentro
do sistema de substituição e de devolução por meio do qual o Estado e seus
aparelhos vivem do exercício dos micropoderes para, em compensação, refor­
çá-los e legitimizá-los. O poder do Estado está situado dentro destes poderes
de base; ele não provém mesmo da extensão periférica de seus aparelhos, mas
de seu exterior.
Pois não se poderiam confundir esses “micropoderes” com ramificações
dos aparelhos de Estado. O poder é exercido aí com mecanismos e modalidades
específicas. Se, juridicamente, o poder é exercido por leis, os Estados dentro
do Estado são regidos por regulamentos (sobre a oposição da lei e da regra ou
do regulamento: cf. ibidem, págs. 180-186 e 223-225). A diferença não é
somente de escala: “As disciplinas conteriam o mesmo tipo de direito mudan-
do-o de escala e tornando-o por isso mais minucioso e sem dúvida mais
indulgente. É melhor ver nas disciplinas uma espécie de contradireito" (ibi­
dem, pág. 224). A lei define um espaço de liberdade, traça seus limites, de
maneira tal que em seu interior cada um possa fazer o que quiser; ela define
uma divisão simples e grosseira entre o permitido e o proibido; estabelece a
igualdade dos cidadãos que deixa dentro de sua indistinção já que é indiferente
à existência singular deles. O regulamento toma os homens a seu cargo dentro
desse espaço deixado vazio (ibidem, pág. 180). O regulamento se interessa pelo
mais sutil da conduta ou do comportamento. Distingue, diferencia, individua­
liza, hierarquiza. Impõe gestos, atitudes e hábitos. Mede os desvios que
sanciona. Impõe a obrigação contínua e minuciosa dessas prescrições ao longo
da existência. Normaliza e moraliza ao mesmo tempo (ibidem, págs. 180-185),
“La sanction normalisatrice”). O regulamento, e a sanção que o duplica, é um

370
dos operadores da investida do poder sobre os homens que fabrica, treina e
torna dóceis, de modo que os indivíduos formados e educados dessa maneira
reproduzam em suas vidas, em sua conduta e talvez também em suas idéias e
vontades a mesma fórmula do poder exercida sobre eles: "Esse poder não se
aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma interdição àqueles
que ’não o têm’, ele investe sobre eles, passa por eles e por seu intermédio; se
apóia sobre eles...” (ibidem, pág. 31). Graças a ele o normal rejeitará o anormal;
o integrado, o marginal,;o inteligente, o “idiota”; o trabalhador, o vagabundo;
e o racional, o louco. Poderão, então, ser tomados a cargo pelos aparelhos
legais (polícia, justiça, sanidade...) que se encarregarão de reeducá-los.
Ao direito se opõe o contradireito dos mecanismos disciplinares integra­
dos ao conjunto dos dispositivos que nos educam, cuidam de nós e satisfazem
nossas necessidades. O que não impede que o poder seja exercido em nossa
sociedade disciplinar seguindo o princípio da junção deles. O que não é sem
efeito, como o mostra o constante desvio do judiciário em direção ao peniten­
ciário, a passagem e a mudança do juiz da infração em juiz de moralidade. O
“fator dirigente” vai ser colocado dentro do funcionamento desses micropo-
deres disseminados e combinados em rede ou em "arquipélago” sobre os quais
se articula o jogo do Estado e de seus aparelhos. “No âmago da cidade e como
que para dar-lhe coesão, existe não ‘o centro do poder’, nem um núcleo de
forças, mas uma rede múltipla de elementos de natureza e de níveis diversos...”
(ibidem, pág. 314).
c)Nem diáletizar, nem totalizar. A sociedade não é uma grande unidade
dividida em dois pólos solidários e contraditórios. Ela é retalhada em uma
infinidade de “partes” singulares, dispersadas e disseminadas em todos os
lugares em que o poder é exercido e jogado seguindo modalidades específicas.
O Estado não tem o privilégio da totalidade: é uma “parte” que se opõe às
outras, que se articula com as outras. Para fazer conter o todo, na base,
mecanismos, dispositivos e uma tecnologia política; no topo, estratégias e
táticas: “Finalmente o que preside todos esses mecanismos não é o funciona­
mento unitário de um aparelho ou de uma instituição, mas a necessidade de
um combate e as regras de uma estratégia” (ibidem, págs. 314-315). Não
existem jamais partes sem o todo, cujo princípio de coerência ou de coesão
está situado nas relações de forças, seguindo a fórmula de uma batalha
perpétua.
O conjunto é trabalhado por uma multiplicidade de conflitos, atritos e
resistências. Conflitos entre as exigências da produção e as estratégias de
poder que as revestem. Atritos ligados à inércia dos Estados dentro do Estado,
ao funcionamento específico dos micropoderes que, como mostra o exemplo
da prisão, conduz o Estado para a invenção de novas táticas: desejada por
ninguém e, no entanto, mostrada como evidente, a prisão é imediatamente
objeto de uma constatação de fracasso. A esse respeito, fanse-á, de seu fracasso,
sua utilidade: controlar as ilealidade; dividi-las, opô-las umas contra as outras.
E, principalmente, resistências disseminadas, confrontos localizados das ilega­
lidades que nascem em todo lugar em que o poder é exercido.

371
Mas é preciso parar para pensar sobre essa noção essencial de ilegali­
dades. As ilegalidades não são a luta de classes. Falar de ilegalidades é não
recusar nenhuma delas, ao contrário da luta de classes que introduz um
princípio de exclusão em seu cerne. A classe operária teria um privilégio
exclusivo na luta contra o poder; pelo fato de "sua missão histórica” qualquer
outra ilegalidade deveria se dobrar perante sua lei ou perecer. A noção de
ilegalidades permite, ao contrário, compreender que não existe “ missão
histórica” nem privilégio dentro da luta contra o poder; ela implica mais a idéia
de uma igualdade, mostra a difusão lateral das formas de revolta ou de
rebelião, a possibilidade de uma confraternização dentro das resistências ao
poder. O desenvolvimento de uma nova forma de criminalidade pode desregu-
lar a economia do poder pelo menos tanto quanto a luta operária. Ou, melhor,
estabelecem-se redes, substituições, retiradas e retomadas entre as ilegali­
dades, de tal modo que as respostas do poder se dirigirão sempre ao conjunto
do corpo social seguindo táticas de "gestão”, de oposição recíproca, de
utilização (ibidem, pág. 277 e segs.).

Sobre as constantes dentro do exercício do poder

a) A "batalha perpétua". O poder nunca deixou de ser exercido, ele não


conhece descanso; nada está jamais consumado, tudo está sempre por ser
feito, o poder só é exercido como batalha. Ele é desempenhado sem cessar
em qualquer nível que seja exercido; vive dentro do elemento ou dentro da
idéia de uma “batalha perpétua” (ibidem, pág. 31). Essa batalha não tem
somente a forma de reações e lutas, revoltas ou guerras. É claro, o poder
batalha primeiro contra as “ilegalidades” e Vigiar e punir descreve de fato
a história do confronto do poder com as ilegalidades desde a época clássica.
A prisão é o produto de certa regra do poder a esse respeito. As ilegalidades
são o motor das transformações dentro da tecnologia do poder. Mas, dentro
dessa batalha perpétua, dentro dessa guerra infinita, a reação às ilegalidades,
sua repressão ou sua gestão, é apenas a face visível, a parte aparente do
iceberg.
O poder batalha mesmo quando, aparentemente, não há resistências; é
exercido como se tivesse sempre resistências a ele. E não somente por
previdência, prudência ou precaução, mas porque ele é menos um aparelho de
repressão do que um aparelho de produção. A primeira tarefa do poder é
positiva: produzir. Apenas a seguir, e em conseqüência, ele precisará reprimir,
mas sempre tendo em vista efeitos úteis e positivos, o que Foucault chama de
gerir. Nietzsche já havia mostrado essa idéia: quanto tempo, sofrimentos e
violências foram precisos para tornar o homem capaz de promessas? (Généa-
logie de la morale, segunda dissertação). Ou ainda: "O que existe de essencial
ou de inestimável em toda moral é que ela é uma opressão prolongada”
(Par-delà le bien et le mal (Além do bem e do mal), af. 188). 0 poder não
começa reprimindo as ilegalidades, ele tem à primeira vista a iniciativa, ele
produz, portanto já está dentro do elemento da resistência. De fato existem

372
apenas ilegalidades, ilegalidades de poder, ilegalidades contra o poder. Não
existe poder legítimo, como aquele que Marx postulava, fazendo-o derivar das
relações de produção. Não existe estado natural; existem apenas confrontos de
poder sem nenhuma justificação no ser ou em qualquer base material.
b) O corpo-a<orpo. Se o poder é exercido sempre como batalha perpétua,
esta tem a forma de um corpo-a-corpo. Não somente é preciso conceber o poder
como corpo, como algo físico, como “corpo político”, mas a tomada dos corpos
que efetua, bloqueios e submissões, obedece às leis de uma física. Essa noção
desqualifica a oposição violência —ideologia (ibid., pág. 31) e implica a idéia
de um materialismo do poder, que se poderia chamar, seguindo uma expressão
de Foucault, materialismo das “ínfimas materialidades" (ibidem, pág. 35),
materialismo que não é nem o dialético ou histórico, nem o mecanicista do
século XVIII, mas mais um materialismo físico. O poder mobiliza, retoma,
inventa sem cessar as matérias de seu exercício. Erguer a panópolia punitiva
é fazer o catálogo dessas ínfimas materialidades: encontram-se aí, ao mesmo
tempo, tenazes, rodas, patíbulos, cerimônias e rituais, representações ditas
imateriais e, também, pedras, muros, espaços, suas almas, com seus saberes e
suas ciências. Nenhuma dessas “matérias” é, por natureza, um elemento de
poder; mas, inversamente, não existe nada de que o poder não se possa
apropriar, de que ele não se possa apoderar para fazer dele um instrumento
de sua tecnologia. Uma anatomia política se constrói a partir dessas ínfimas
materialidades, em função de sua disposição, de sua articulação específica,
seguindo o princípio da física (ótica, mecânica, fisiologia...) e segundo certa
regra do poder.
Mas isto implica a) ampliar consideravelmente a panóplia do poder, se
liberar de tudo a priori, se se quiser levantar o catálogo de suas armas, ir
procurar em seus lugares funções que lhe podiam parecer estranhas. Indis-
sociavelmente não existe nada que, dentro da ordem material ou imaterial,
seja ou possa ser estranho ao poder e nada que, ao mesmo tempo, tenha uma
natureza política; b) é preciso reconsiderar completamente a oposição da
matéria e do espírito, do corpo e da alma, do idealismo e do materialismo.
Nas relações de poder, não existe jamais,nada além de corpos, confronto de
corpos, e o próprio pensamento não escapa a essa física universal, seja
quando funciona como instrumento da tomada do poder sobre os corpos,
seja quando for seu efeito. O pensamento se dirige sempre ao corpo, talvez
mesmo lhe dê corpo, é uma maneira de ser, para um corpo, indispensável.
Em todo caso, não existe relação de “reflexo” entre a matéria e o espírito e,
sem dúvida, é tempo de sair da oposição entre materialismo e idealismo.
Quem existiu primeiro, o ser ou o pensamento? É uma questão que não tem
mais sentido dentro da perspectiva da anatomia política, dentro da pers­
pectiva de uma física do poder; c) não existe tática de poder que seja
unívoca. Toda tática de poder, todo dispositivo de poder compreende um
pólo negativo e um pólo positivo. Definir-se-á uma administração de poder
seguindo a relação positivo-negativo em uma tática de poder. Quando se fala
do poder, aponta-se habitualmente sua função negativa, seguindo um tipo de

373
articulação poder — produção que faz, do poder, algo improdutivo e, da
produção, o único pólo positivo. Diz-se que o poder serve, permite, favorece
ou, ao contrário, freia, coage. A anatomia política descobre o poder como
produtor e mostra como desempenha o pólo positivo (produzir) sobre o pólo
negativo (coibir).
Vigiar e punir dá o exemplo de várias "administrações” do poder a
administração dos suplícios se caracteriza como uma lógica da despesa, da
proibição, do terror, da atrocidade. É dessa operação negativa que o poder tira
seus efeitos positivos de produção: “reativar o poder”, “reconstituir a soberania
ferida por um instante” (ibidem, pág. 51 e segs.). Em resumo, uma produção por
despesa O inverso da administração panótica: as disciplinas tiveram primeiro
uma função negativa, o que Foucault chama de disciplina-bloco (ibidem, pág.
211), tal como ela funciona na cidade empestada. O panotismo define a “inversão
funcional” das disciplinas (ibidem, pág. 211), verdadeira inversão dentro da
administração do poder: a lógica da despesa é substituída pela lógica de um poder
que será exercido de alguma forma sem ter que se exercer, em que sua função
negativa (coagir) poderá ser tanto mais fraca quanto sua função positiva (de
produção) for mais forte (ibidem, pág. 208). E suas funções negativas funciona­
rão seguindo o mesmo princípio: a sanção disciplinar age pela intensificação,
repetição dos mecanismos disciplinares: "Castigar é exercer” (ibidem, pág. 182).
O pólo negativo é “isomorfo” para o pólo positivo, ele o serve, intensifica-o,
multiplica-o. Da mesma maneira para a relação, dentro da prisão, entre a privação
de liberdade (pólo negativo) e o projeto penitenciário (pólo positivo), da mesma
forma para a relação da prisão com o conjunto dos dispositivos disciplinares
integrados às funções produtivas.
Mas há uma outra razão que faz das táticas de poder uma função
complexa. E que toda tática de poder ao mesmo tempo que é uma arma para
o poder é também uma arma contra ele, seguindo uma administração da perda
e do lucro. Assim, uma das armas principais do poder dos suplícios é a
publicidade, a festa, a cerimônia. E é também, seguindo a ambigüidade dos
suplícios, uma arma do povo contra o poder (ibidem, pág. 61 e segs.). E, sem
dúvida, todo dispositivo de poder contém de maneira indissociável a possibili­
dade de seu retorno. Não existem jamais lucros sem perdas; e, de certo modo,
o problema econômico do poder é o de fazer com que os lucros excedam
sempre as perdas. Essa é talvez a razão essencial pela qual o poder está
incessantemente batalhando, a razão pela qual não pode conhecer o descanso:
a ambigüidade de seus dispositivos, a possibilidade permanente de seu retorno.
Disso se deve tirar uma conseqüência: o poder não está simplesmente no
lugar em que o colocavam habitualmente, para onde se aponta o cacete. Seus
aparelhos são muito mais sutis e astuciosos, eles organizam a produção: o
poder apodera-se, investe sobre nossas necessidades para produzir seus efeitos
de poder. Ele não vem apenas coibi-las, dirigi-las ou canalizá-las, está mais
integrado, imiscuído dentro do processo da satisfação delas. De tal modo que
o poder encontra sua energia em nossas próprias necessidades. Essa é a
maquinaria disciplinar; d) não há finalidade do poder. Seu futuro não está

374
inscrito em nenhuma parte; não tem nada em si que decida sua história. Os
dispositivos de poder não têm sentido, são precauções (ibidem, pág. 141). Não
se pode nem mesmo dizer que nasceram para a utilização que se faz deles: a
história das táticas disciplinares não é a história de sua melhora ou de seu
aperfeiçoamento, é mais a de suas apropriações, de suas investidas sucessivas
dentro das estratégias imprevistas e que não lhes eram destinadas. Do mesmo
modo com relação à prisão, sobre a qual Vigiar e punir mostra bem que não
foi “inventada” para o uso que no final das contas se faz dela. As transfor­
mações políticas não surgem de nenhuma necessidade, de nenhuma racionali­
dade pré-fabricada. Não existem nunca mais do que problemas exatos ou
conjunturais para o poder, resistências a seu exercício, retornos ou desvios
imprevistos e soluções "vergonhosas”, invenções “mal-intencionadas” e “dissi­
muladas”, talvez sempre a curto prazo, ao acaso das improvisações, das
tentativas, dos ensaios, que não respondem a nenhuma teleologia: "As forças
que estão em jogo na história não obedecem nem a uma destinação nem a uma
mecânica, mas simplesmente ao acaso da luta. Elas não se manifestam como
formas sucessivas de uma intenção primordial; também não tomam o caminho
de um resultado. Aparecem sempre dentro da eventualidade do acontecimen­
to” (Hommage à Jean Hyppolite, pág. 161, PUF).
A anatomia política não é uma nova tentativa para justificar o poder, para
demonstrar seu exercício necessário, para deplorar seus excessos, nos prome­
ter sua crise incessante, com o que todas essas tentativas comportam de
reduções arbitrárias, de ilusões para nós de torná-lo próximo, familiar e amável.
A anatomia política, pelo contrário, desumaniza o poder. Há algo de comum
no texto do suplício de Damiens e no regulamento redigido por Léon Faucher
para a casa dos jovens detentos de Paris (S. et P., págs. 9-13): não por seu
sentido, mas a mesma busca infinita no detalhe, a mesma “consciência”, os
mesmos escrúpulos. É preciso ser sensível a esses detalhes para provar a
crueldade meticulosa do poder, sua selvageria minuciosa e regulada, sua
barbaridade sutilmente calculada e ritualizada. O poder é talvez mais humano
hoje em dia, mas seus rituais detalhados, suas astúcias minúsculas, seu
formalismo traem sempre a mesma ferocidade. O poder jamais será humano;
aliás, o próprio homem provém dessa inumanidade; ele é a favor da forma
disciplinar. A anatomia política não nos promete nada, não prediz nada; ela
torna o poder detestável para nós; nos ensina a não ceder a suas “doçuras” (as
aspas são da tradutora), a desmascará-lo em toda parte em que é exercido,
qualquer que seja a forma que tome. Mas, assim como ela nos mostra que nada
está em jogo; nos permite também ouvir as vozes das diferentes ilegalidades;
ela tem esperanças: “Dentro dessa humanidade central e centralizada, efeito e
instrumento de relações de poder complexas, corpos e forças sujeitados pelos
dispositivos de cativeiro múltiplo, objetos para discursos que são eles próprios
elementos dessa estratégia, é preciso escutar o estrondo da batalha” (ibidem,
pág. 315).

375
• S u r v e ille r e t p u n ir , Paris, Gallimard, 1975.
Sobre o método utilizado por Michel Foucault em S u rv e ille r e t p u n ir, se consultará em
particular, do mesmo autor, L a v o lo n té d e sa v o ir, Paris, Gallimard, 1976, pág. 107 e segs.

► L 'im p o ssib le p ríson , Pesquisas sobre o sistema penitenciário do século XIX reunidas por
Michelle Perrot, Paris, Seuil, 1980; Gilles Deleuze, Ecrivain non: un nouveau cartographe, C ritique,
n° 343, dezembro de 1975; Jeremy Bentham, L e pan optiqu e, precedido de L 'o e il du pou voir,
colóquio com Michel Foucault, posfácio de Michelle Perrot, Paris, Belfond, 1977; Hubert L. Dreyfus
et Paul Rabinov, M ic h e l Foucault, un p a rc o u rs ph ilosoph lqu e, Paris, Catlimard, 1984.

F r a n ç o i s EWALD.

FOURIER, Charles, 1772-1837

Teoria dos quatro movimentos e dos destinos gerais, 1808

Um “socialismo”paradoxal

“Hoje em dia, é pela honra da razão que se ultrapassam todos os


massacres dos quais a história transmitiu a lembrança. É pela doce igualdade,
pela terna fraternidade que se imolam três milhões de vítimas.”
Um erro de ótica fez com que Fourier fosse classificado, segundo a célebre
definição de Marx, entre os “socialistas utópicos”. Recolocada dentro de seu
contexto histórico, a Théorie des quatres mouvements et des destinées géné-
rales, de onde as linhas anteriores foram tiradas (pág. 316), é esclarecida dentro
de um sentido totalmente diferente. Fourier, bem no começo do século XIX, sob
o Consulado primeiro e depois sob o Império, sanciona o fracasso da filosofia das
Luzes a partir de seus efeitos tangíveis: o Terror, o estado de guerra permanente.
Estabelece a constatação dos maiores flagelos de seu tempo: “A indigência, a
privação de trabalho, os sucessos da fraude, as piratarias marítimas, o monopólio
comercial, a captura dos escravos” (pág. 2). Não faz isso para estigmatizar os
prazeres dos ricos, mas para procurar, ao contrário, o meio de generalizá-los: “O
aspecto da opulência de outros é o único estímulo que pode irritar os sábios,
geralmente pobres, e excitá-los à procura de uma nova ordem social capaz de
ocasionar aos civilizados o bem-estar do qual estão privados” (pág. 28). Toma o
exemplo da militarização forçada da nação e transforma-a na sedução de “armas
industriais" inspiradas em uma "política galante” (pág. 172). Apodera-se do
sonho napoleônico de dominação mundial para convertê-lo na eminência de uma
“unidade universal” do globo terrestre percorrido por “bandos de cavalaria
errante” passeando seus espetáculos desde a Pérsia e o Japão até o cantão de
Saint-Cloud (pág. 158).

376
Novo mundo sim, mas principalmente novo olhar sobre um mundo livre
para os “enganos”, para a "leviandade” de “ciências incertas” que não tomaram
conhecimento do fato de que o destino social é encontrado dentro de uma
ordem “que favorece as paixões comuns a todos os homens” e “os seduz pelo
atrativo do ganho e das voluptuosidades” (pág. 8).

O livro

Fourier, desde 1803, em Lion, estava de plena posse de uma teoria que
ele apenas aperfeiçoará em detalhe. Em 1808, para “responder ao desejo de
certas pessoas”, “sondar a opinião pública e prevenir o plágio” (pág. 318), faz
uma exposição sumária de suas idéias, sob a forma de um “prospecto e anúncio
da descoberta”. O que explica a composição do livro, concebido como uma
escolha de amostras cujas três partes se dirigem respectivamente a três
categorias de leitores: aos "curiosos”, a primeira parte teórica sobre as “fases
do movimento” e “a atração apaixonada”; aos “voluptuosos”, a segunda parte
que trata do sistema dos amores e da gastronomia; aos “críticos", a terceira,
sobre “o espírito mercantil”. Esse modo bizarro de apresentação compõe o que
R. Barthes (Sade, Fourier, Loyola) qualificou de “metalivro”, um livro que fala
do Livro (jamais publicado sob forma de um sistema continuado; o Tratado da
associação doméstica agrícola de 1922 adotará uma divisão análoga). Proce­
dimento inerente ao próprio caráter do projeto: o "doméstico” societário,
estudado dentro da ótica de uma Harmonia universal, implica, ao mesmo
tempo, "a minúcia dentro do detalhe” (Barthes) e a colocação em perspectiva
de toda a sociedade, do Universo, portanto de múltiplas entradas. Longe de ser
incompleta, todavia, a obra de 1808 é a exposição mais accessível e mais
verídica das intenções do autor que jamais pensou num sistema fechado, nem
na única fundação de um lugar: “o Falanstério”, mas cuja visão é universal e
cósmica, assim como ela é indissociavelmente industrial e voluptuosa.

A civilização em questão

Na história das idéias políticas, essa obra intervém como um desmancha-


prazeres. Ela introduz aí um tom desconhecido, irreverente. Intima a filosofia, a
política, a recente economia política a remediarem os males que elas jamais
souberam impedir a fim de conduzir à felicidade. Denuncia o “charlatanismo”
dos moralistas: “se formos escutá-los, bastam apenas lugares medíocres e póuco
lucrativos; se um emprego dá um retorno de cem mil libras, devem-se aceitar só
dez mil para comprazer a moral. Eles são bem mais ridículos em suas opiniões
sobre o amor; querem fazer reinar nesse setor a constância e a fidelidade, tão
incompatíveis com o desejo da natureza e tão fatigantes para os dois sexos que
nenhum ser se submete a elas quando goza de plena liberdade” (pág. 73).
O tom é de uma inversão, de um “desregramento absoluto” com relação a
um certo tipo de discurso. Permite um sobrevôo dos regimes e dos governos.
Introduz uma concepção da história como “movimento social”: cuja “civilização”,

377
que o século XVIII considerou seu fim, é apenas uma das "fases” (a quinta),
"subversiva”, “incoerente”, à qual, uma vez descobertas as leis do movimento,
sucederão as fases da felicidade. Essa relativização basta para indicar que a
civilização não poderia ser nosso “destino social”. Palavra-chave do livro, a
civilização não se deixa reduzir à classe nem à sociedade burguesa. Fourier fixa
nela os caracteres ainda desconhecidos da linguagem qualitativa de sua época
(Th. Zeldin, Histoire des passions françaises, tomo II, pág. 9) a partir dos modos
de produção e de troca e das relações matrimoniais: a licença comercial ou livre
concorrência e o casamento exclusivo acompanhado da liberdade civil (mas não
amorosa) da mulher (pág. 218). Essa nova ótica é determinante para a compreen­
são dos dois grandes problemas da existência humana: a produção de riquezas,
que entrava na “espoliação do corpo social” pelo comércio (bancarrota, agiota­
gem, monopólio, parasitismo improdutivo); o gozo dos prazeres constantemente
limitados pelo casamento exclusivo e os “casais incoerentes” que só proporcio­
nam, aos homens, “aborrecimentos” e, às mulheres e às crianças, servidão
(Segunda Parte, “Première Notice”, pág. 110 e segs.).

Falsidade do grupo de casais

Esse último caráter, concernente aos “costumes amorosos”, é, com efeito,


determinante de toda história social: “Existe, em cada período, um caráter que
forma o eixo mecânico e cuja ausência ou presença determina a mudança de
período. Esse caráter é sempre tirado do amor” (pág. 89). Também é na direção
da “invenção” de uma sociedade não gravitando mais em torno do grupo de
família que Fourier orienta sua busca. A crítica do “sistema opressivo dos
amores” (pág. 144) está no centro da Théorie des quatres mouvements. A saída
da civilização e a sedução da passagem para a "ordem societária” harmônica
não se podem estender sem o deslocamento da vida de casal, o reagrupamento
dos indivíduos e dos sexos sob uma outra forma. Uma idéia resumida dele é
dada no “casal progressivo” (pág. 177): “tribos” masculinas e femininas que
dividem as atividades, as despesas e a educação das crianças, e que não
conhecem mais, em conseqüência da liberdade amorosa das mulheres, o
vínculo conjugal fixo.

A "descoberta"

Esse tom corta radicalmente aquele de alguns reformadores que já


haviam preconizado, no fim do século XVIII, certas formas racionais de
associação (Babeuf ou L’Ange), mas concebendo sob a salvaguarda da vida
em família, do igualitarismo ascético, de restrições morais imperativas. O
“Discurso preliminar” apresenta sem dúvida a “descoberta” como a seqüên­
cia de uma reflexão sobre uma associação agrícola formada pela reunião de
famílias camponesas. Dessa associação,, mesmo não a tendo inventado,
Fourier recebe a idéia (alusão a “certos estudiosos, os economistas... que
indicaram, eles próprios, várias vantagens que resultariam dela” (pág. 7).

378
Mas ele a trata como problema: como a associação é possível, como ultrapas­
sar “o obstáculo que opõem as paixões?” (ibidem). A solução está no fato de
ser necessário que a associação seja “natural e atraente”, que ela não
responda a uma “atração apaixonada”. A descoberta da “ciência”, da qual
se glorifica Fourier, reside nessa conjunção: para ser viável, a associação não
pode ser medíocre. Longe de se opor às paixões, a associação deve lhes
oferecer toda possibilidade de desenvolvimento. A ciência da atração apaixo­
nada à qual conduz essa reflexão é a do conhecimento ou do "cálculo” de
novos grupos, desconhecidos ou ainda não praticados na civilização, que
tiram sua força e sua coerência do próprio paroxismo das paixões das quais
eles favorecem o livre desenvolvimento: “A ordem societária que irá suceder
à incoerência civilizada não admite nem moderação nem igualdade de
nenhuma das visões filosóficas; quer paixões ardentes e refinadas; desde que
a associação esteja formada, as paixões se acomodam tanto mais facilmente
quanto são mais vivas e mais numerosas” (pág. 9).

A ordem das paixões

A associação é um dispositivo passional. Ele se concretiza na idéia de


uma “Falange” ou de um “cantão”, mas, o texto demonstra-o a todo momento,
não tem sentido ele se estender quase imediatamente a todo o globo terrestre.
Fourier chamou o conjunto desses dispositivos de “séries”, inspirado em sua
“idiossincrasia dos números” (W. Benjamin, Paris,capitale d u X lX siècle) por
causa da analogia com as séries geométricas formando seqüências ordenadas
e graduadas, “equilíbrio da rivalidade entre os grupos extremos e os médios”
(pág. 9). Ele os havia chamado, originariamente (a segunda edição que data de
1841 unificou o vocabulário a partir de notas posteriores), de “seitas”. Essa
palava explica melhor as primeiras intenções e ter-se-á interesse em conservá-la
para a leitura. O primeiro modelo da ordem societária é o dos “círculos”, dos
“cassinos” (pág. 119), todas sociedades de prazer. Mas como tudo a que se
refere, Fourier dá a esses alguns “ares de felicidade” (pág. 28) emprestados à
civilização dos desenvolvimentos inesperados. Com as “seitas progressivas”,
ele não se contenta em associar semelhanças e igualdades (pág. 120), especula
também sobre a emulação provocada pelas diferenças. Somente sob essas
condições as paixões atraem umas às outras, se combinam ("a ordem combina­
da”), produzem.

A produção passional

A linguagem da Théorie des quatre mouvements oscila constantemente


entre a do gozo e da consumação e a da produção. Existirá um Fourier
economista e um Fourier sibarita? Um que se interessa pela produção social e
outro que se interessa pela consumação doméstica? Na verdade essas duas
linguagens não estão separadas, elas se transformam uma na outra. Passando
ao “campo doméstico” que, como Barthes exprimiu tão nitidamente, é aquele

379
do desejo, Fourier só se desvia do político para anunciar a “solução de todos
os problemas” (pág. 6). É que, ao passar para o plano da paixão, toca no próprio
princípio do produtivo. A paixão depende da ordem da produção. Ela é a força
que leva o produto ao “triplo”, ao "quádruplo”, ao "quíntuplo” (pág. 162),
engendrando prodígios industriais. Nas seitas progressivas (séries) se manifes­
tam “um ímpeto que ri de todos os obstáculos e um verdadeiro fanatismo para
sustentar a honra da seita... No fogo da ação, eles executam o que parece
humanamente impossível, como os granadeiros franceses que escalavam os
rochedos de Mahon” (pág. 164). No caso das crianças, em particular, essa
produtividade passional se exprime com uma nitidez que justifica toda es­
peculação sobre a ordem a vir: “As sociedades de famílias incoerentes têm a
propriedade de aumentar a repugnância pelo trabalho agrícola e manufaturei-
ro e pelas ciências e as artes. A criança se recusa a trabalhar e a estudar... e
torna-se destruidora desde o momento que consegue formar grupos e reuniões
livres e apaixonadas” enquanto “a criança adquire propriedades opostas
dentro da sociedade de seitas. Ela estuda sem parar e presta serviços incalcu­
láveis... basta o estímulo dado pelas seitas” (pág. 65). De maneira mais genérica
a atração industrial coloca em ação a mesma força que a das paixões, devido
ao fato de ela não reprimir nenhuma delas, especialmente o amor, seu eixo
central: "A cultura não pode ser exercida por meio de atração se não existir
dentro do cantão amores de toda espécie” (pág. 172). Esse impulso produtivo
procedente da própria paixão é o que Fourier chama de “mudar a marcha das
paixões sem mudar nada em sua natureza” (pág. 10).
Quantitativa, a produção recebe também da paixão traços qualitativos
novos: variedade dos produtos, multiplicidade das escolhas propostas ao
consumo, excelência, refinamento (“Gastronomie combinée”, pág. 165 e
segs.). Não existe ordem societária sem luxo, ao mesmo tempo "interno”
(satisfação dos sentidos) e “externo” (qualidade de produtos). A produção
passional é variada, graduada segundo todos os gostos. É preciso, também
sobre esse aspecto, se referir à edição de 1808, para compreender as
intenções de Fourier. A análise da atração apaixonada, no centro da parte
teórica, repousa sobre o recenseamento dos “focos de atração” (pág. 77).
Existem três deles: “o luxo dos cinco sentidos, as seitas progressivas e a
unidade universal”. As paixões mais importantes, ainda não citadas, pois
pertencem à nova ciência, são as que tendem para as seitas e só podem se
desenvolver nelas. Chamadas em seguida de “distributivas” por distribuírem
todas as outras dentro das séries, são, na primeira edição, “refinamentos”:
“engrenante”, “variante” e “graduante”. Essa linguagem indica melhor, e
diretamente, as qualidades que serão exigidas da produção: uma diversidade
dentro do refinamento da qual mesmo as classes opulentas na civilização não
podem ter uma idéia e que concernerá a todas as classes sem que seja
necessário uma revolução igualitária (esse é o segredo do socialismo para­
doxal de Fourier que mantém as classes “ricas” e “pobres”, mas unicamente
para a manutenção do estímulo passional).

380
A unidade dos movimentos

O vínculo estabelecido entre paixão e produção ultrapassa o psicologis-


mo. Fourier mobiliza as “propriedades ainda desconhecidas” da única força
que comanda o movimento social e que, por ela mesma, é criativa. Se nós o
lermos dentro de uma perspectiva econômica, diremos que ele recusa conside­
rar a economia como um sistema de operações isoláveis, mas estuda a
produção e o consumo em sua coordenação geral, dentro de um conjunto mais
vasto. “Economia generalizada”, tal como G. Bataille a compreenderá. Essa
economia concilia naturalmente o movimento social com “movimentos” que
comandam o universo. A articulação entre os “quatro movimentos”, material,
animal, orgânico e social (haverá cinco em seguida, acrescentando a esses o
aromai) (pág. 30), o “quatro” tendo sido escolhido talvez por sua potência
iluminista de evocação), o problema dos destinos, a atração apaixonada, deve
ser compreendida dentro dessa perspectiva. A ordem concebida sobre a base
das paixões é a mobilização da potência criadora universal. Sob o título de
“criações”, Fourier apresenta o “quadro do curso do movimento social” (pág.
33). Começa de forma aparentemente “curiosa”, mas perfeitamente coerente,
a exposição dos “destinos gerais” pela evocação da criação terrestre de uma
“coroa boreal” que deve melhorar os climas e as culturas (pág. 41). Um mesmo
movimento produtivo leva as criações cósmicas e as do homem. A mais furiosa
das paixões (as paixões são "tigres enfurecidos" na civilização), o mais irrisório
dos gostos (a rivalidade dos amadores de pêras que ilustra a exposição da
formação de seitas ou séries, em "Nota A”, pág. 294), em sua incompreensibi-
lidade, são a “bússola” do movimento universal. Adotando um tom, dessa vez
apocalíptico, meio sério, meio irônico, seu inventor tem todas as razões de se
proclamar “possuidor do livro dos destinos” (pág. 191).

Modernidade da obra

Fourier não se situa dentro do quadro de um humanismo do qual ele


recusou, de maneira constante e segura, a tradição. Mas só se desvia dele para
pensar melhor sobre o humano. Apenas ele o vê de um outro ângulo, quer dizer,
relativamente ao indivíduo, de um centro diferente do eu, contrário egoísta do
“harmonismo” ou “unitarismo” (pág. 86), relativamente ao movimento social, a
partir do Universo. A descentralização mais forte é a de conceber a Terra como
um planeta, um entre os globos, submetido ao crescimento e ao definhamento.
Dessa visão decorre a potência de um alegorismo universal, que sempre cons­
tituiu a parte enigmática da Théorie des quatres mouvements, tida como
resultado de um delírio imaginativo. Fourier pensa o mundo em sua totalidade
como um hieróglifo do qual propõe o deciframento (hieróglifo dos mundos
animal, vegetal, orgânico, geométrico e planetário) tendo como base as paixões
humanas (em particular, pág. 286 e segs.). Nova ciência "fixa”, que não é uma
parte supérflua, mas integrante (necessária) da obra, com a condição que se veja
nela uma ciência se propondo fins novos, passional de um lado a outro. À

381
natureza, muitas vezes à sua destruição, que não tem nenhuma influência sobre
os fenômenos fundamentais, climas, espécies, Fourier opõe uma nova forma de
aliança, indo ao encontro do princípio criativo. Esse aspecto da obra é, do ponto
de vista do historiador, aquele pelo qual ela pertence ao romantismo nascente
(que, contemporaneamente, se exprime, na Alemanha em torno do Athenaeum
de Schlegel e de Novalis) e se reúne ao iluminismo* (por intermédio, principal­
mente, de Cl. de Saint-Martin). Doutrina das analogias que encontrará eco em
Baudelaire (as “correspondências” são “analogias” no sentido fourierista). Mas,
ainda sobre esse ponto, o procedimento de Fourier, que constitui sua incontes­
tável originalidade, é o da apropriação indevida. Ele se apodera da poesia do
romantismo, das “visões de Deus”, do “código divino" do Iluminismo, para
fazê-los falar de alguma coisa a mais: a transformação do mundo social, iminente,
quer dizer, possível a qualquer momento, com a condição de se mudar de
princípio e de determinar sua posição exata. Por isso, na aurora do século, ele é
o pensador da modernidade. Ele explora suas possibilidades oferecidas pela
liberação das forças produtivas, segundo as exigências do desejo. Essa visão
fantasmagórica sobressai, certamente, do maravilhoso, mas desse “maravilhoso
real” do qual fala Barthes, que acompanha e estimula o que forma o básico da
história, o quotidiano.

Interpretações, Fourier e fourieristas

O livro não teve, de maneira imediata, nenhum eco. É retrospectivamente


que podemos apreciar sua importância histórica, a partir da fundação da
"Escola societária”, dos discípulos dos quais o primeiro foi Just Muiron, em
1814, e o mais conhecido V. Considérant A evolução dessa escola não pode
ser desenvolvida aqui; pode-se ler sua mais completa exposição em La société
testive de Henri Desroches. Com relação à Théorie des quatre mouvements,
sua ação foi essencialmente censurante, como o exprime sem rodeios o
“Prefácio dos editores” da segunda edição de 1841: atenuar, apagar tudo o que
poderia parecer ser uma teoria liberatória do amor, apresentar um Fourier
“moral” (ver em particular p. XXIX). Mas mesmo as precauções utilizadas pelos
editores deixam transparecer que incontestavelmente, aos olhos dos leitores
contemporâneos do livro, o sentido que Fourier queria imprimir à ordem
societária como o lugar que ocupava entre os defensores da associação e
àqueles que depois de 1830 serão chamados de “socialistas", era marcado
justamente por sua teoria dos amores.
Além dos problemas e dos impasses do “fourierismo aplicado”, será preciso
esperar o século XX para que uma atenção ao texto faça sair Fourier do
Falantério, para separar as implicações universais da obra: A. Breton, dentro da
ótica poética da revolução surrealista (Ode à Charles Fourier), W. Benjamim,
naquela da “fantasmagoria” do século XIX (Paris, capitale du XIX* siècle).
Desde os anos 60, assistiu-se a uma renovação dos estudos fourieristas a

* Iluminismo: filosofia das luzes

382
partir, em particular, de um melhor conhecimento do conjunto dos escritos e
de sua nova organização em torno do Novo mundo amoroso, manuscrito
colocado à parte pela Escola e revelado pelã edição feita por S. Debout (1967).
Esse esclarecimento faz sobressair a audácia da Théorie des quatre mouve-
ments, dentro das idéias gerais que ela dá desse “novo mundo”, já em 1808,
plenamente concebido, senão totaimente elaborado.
É difícil e delicado classificar as diversas interpretações de autores que
fórmulas não poderiam resumir (ler-se-á mais adiante sua lista sucinta). Diga­
mos simplesmente que elas procedem todas, em maior ou menor grau, de uma
reflexão sobre o sentido da utopia que está longe de esgotar a idéia associativa
e principalmente a construção de uma associação parcial. Graças a Fourier, e
a partir dele, a utopia é contemporânea do mundo sendo feito, do qual ela é o
inverso e o acompanhante. Também, o texto por si mesmo, independentemente
de toda “realização”, torna-se uma força histórica constantemente corrosiva e
reatualizável (o que Barthes exprimiu da maneira mais límpida). A utopia de
Fourier não consiste na projeção de um sonho no futuro ou em algum outro
lugar, mas nessa força capaz ainda de opor às construções efêmeras do político
e às necessidades da economia “a imensidade de nossos desejos" (pág. 72).

• Oeuvres complètes, tomo J, Paris, Editions Anthropos, 1966; o texto da primeira edição é
apresentado por Madame S. Debout, dentro da Théorie des quatres mouvements et des
destinéesgenerales, nova edição, Paris, J. J. Pauvert, 1967.

► Roland Barthes, Sade, Fourier, Loyola, Paris, Seuil, 1971; Pascal Bruckner, Fourier, Seuil,
1975; Simone Debout, LVtopie de Charles Fourier, Payot, 1978; Henri Desroches, Lasociété
festive, du fouriérisme écrit aux fouriérismes aplliqués. Paris, Seuil, 1975; Jean Coret, La
pensée de Fourier, Paris, PUF, 1974; René Schérer, Fourier ou la contestation globale, Paris,
Seghers, 1970; André Vergez, Fourier, Paris, PUF, 1969.

René SCHÉRER.

FREUD, Sigmund, 1856-1929


Mal-estar na civilização, 1929*.

Mal-estar é uma palavra curiosa, discreta, quase tímida, muito fraca ou


muito forte segundo a maneira pela qual se quiser entendê-la. “Houve um

* Versão ligeiramente modificada de um texto publicado em Le Temps de réflexion, Callimard,


1983, sob o título “Permanência do mal-estar”, (“Permanence du malaise")

383
mal-estar”, isso pode ser um sinal que anuncia a morte próxima ou quase nada:
um vacilo, uma imprecisa perturbação, difusa, que se apagará sem deixar
nenhum outro traço além da própria lembrança vaga da perturbação, vindo
outra vez insidiosamente inquietar, advertir de que o tempo da quietude
terminou e com ele o da segurança tranqüila do corpo, da confiança ingênua
em um equilíbrio, sempre o mesmo, ao longo de suas variações, suas rupturas,
que fazem a vida, de se restabelecer, quer se trate do corpo biológico ou do
social. E eis que agora, a perturbação tendo vindo, não se trata mais disso de
forma alguma. Corre o boato de que um passageiro clandestino está a bordo:
ele pode tanto desembarcar despercebido quanto fazer o navio em pedaços...
Freud não fala de crise e sim de mal-estar. Isso quer dizer mais ou menos?
Uma crise, qualquer que seja sua duração e sua amplitude, chama sua
ultrapassagem, sua solução. Tem como protótipo - a nossa em todo caso, se
empenha bastante em nos convencer disso - uma crise de crescimento. Uma
doença que entra em sua “fase-crítica” pode vir a ter uma saída fatal ou um
desenlace feliz; a fase será, de qualquer modo, decisiva, trará a decisão. Um
“simples mal-estar” não permite nem diagnóstico seguro, nem prognóstico
provável; desarma nosso saber, escapa de toda influência. Aqueles que vêm
consultar o psicanalista sabem bem a diferença entre uma situação de crise e
um estado de mal-estar. De um lado, abandono doloroso, luto impossível,
flexão do desejo, angústia que conhece ou acredita conhecer seu objeto: o
apelo para “sair disso” pode, então, ser urgente. Do outro lado, a queixa ou,
pior, a constatação sem queixa de um mal-estar que se exprime fracamente,
dentro de uma insipidez reprodutora da ausência de relevo da existência;
dentro da trivialidade dessas expressões que não são de ninguém: “me sinto
agoniado”, "não me encontro”, “não sinto nada realmente”, "sinto-me vazio”.
Nada de sintomas localizados nesse caso, que, mesmo aos olhos daquele que
sofre ou possui, fariam alusão, por sua aberração, sua insistência, a um conflito
ignorado, a exigências contrárias que, cada uma por sua vez, reclamam o que
lhes é devido. Nada além de um mal-estar, indefinível, indefinido, do qual se
chega à conclusão que só se sai produzindo sintomas, enfim, dizíveis, enfim,
expressivos. Os sintomas: nossa cultura privada (é por isso que alguns os
“cultivam”, e não apenas para não cair no disforme).
Em 1919, no dia seguinte àquele que merece ainda ser chamado a
Grande Guerra, Valéry publica La crise de Vesprit (A crise do espírito). Em
1935, no período seguinte à tomada do poder pelos nacional-socialistas,
Husserl pronuncia, em Viena, sua conferência “A crise da humanidade euro­
péia e a filosofia”. Em 1929, Freud escreve Das Unbehagen in der Kultur.
Nada sobre crise nesse título com uma palavra que sugere, ao contrário,
estabilidade relativa, coerência, até mesmo harmonia, tanto quanto pode
oferecer uma forma terminada desta. Nada de Europa com aquilo que seu
papel histórico, sua “figura espiritual” como diz Husserl, pode implicar quanto
a valores a propagar, manter, e defender. Nada de apelo a uma tarefa filosófica,
ainda que qualificada de infinita, e nada que ipdique o discurso de um profeta
quer seja de infelicidade ou de salvação. À palavra Zivilisation, preferiu

384
Kultur1, como se fosse preciso preservar-se de toda ênfase, exorcizar logo a
atração em direção ao “superior”.
Essa preocupação encontra sua base no julgamento que o autor faz de
seu ensaio, como testemunham estas linhas, muitas vezes citadas, que ele
endereça a sua amiga Lou Andreas-Salomé: “Esse livro trata da civilização, do
sentimento de culpa, da felicidade e de outras coisas elevadas do mesmo
gênero e me parece, certamente a justo título, totalmente supérfluo quando o
comparo com meus trabalhos anteriores que procediam sempre de alguma
necessidade interior2. Mas o que podia fazer? Não é possível fumar e jogar
cartas o dia todo. Não posso mais fazer longas caminhadas, e a maioria das
coisas que se lê deixou de me interessar. Escrevo, e o tempo passa, desse modo,
muito agradavelmente. Enquanto me abandonava a esse trabalho, descobri as
verdades mais banais”3.Mesma constatação desabusada, quase no final da obra:
“Nenhum me deu, como esse, a impressão tão viva de dizer o que todo mundo
sabe e de usar papel e tinta e, em seguida, mobilizar tipógrafos e impressores
para contar coisas que, propriamente falando, se explicam por si mesmas”4.
Julgamento autodepreciador? Esse não é o gênero de Freud. Ou simples­
mente lúcido? O fato é que o livro não parece responder a uma exigência do
pensamento. Não são tanto as repetições, a retomada de idéias já várias vezes
enunciadas, nem a hesitação do que é proposto e seus desvios que atrapalham
a leitura: Freud está habituado a isso. Chega a ser mesmo essa a sua maneira
de inovar, pela repetição, a insistência verdadeiramente impulsiva, a única
capaz de fazer trabalhar o espírito sobre o que lhe resiste. Mas onde está a
inovação em Malaise?5 Sob que sinais se pode reconhecer aí a erupção de
alguma coisa recalcada do pensamento? O leitor chega mesmo a ter a oportu­
nidade de ficar surpreso, irritado, vendo Freud tirar tão pouco partido de seus
maiores dotes. É assim que a noção de instinto de morte se vê reconduzida a
uma “tendência nativa do homem para a maldade, a agressão, a destruição e,
portanto, para a crueldade também”, como se essa intuição genial, louca,
verdadeiramente inaceitável, que alia em uma só palavra, Todestrieb, o que
anima todo desejo e o que figura o inanimado, viesse apenas confirmar o velho
adágio Homo homini lupus (Homem lobo do homem). Outro exemplo: o
princípio do prazer, considerado como regente do curso das excitações des­
tinando-lhes uma descarga imediata, sem contemplação nem ordenação, é
comparado aqui a uma regra prudente de hedonismo. E, mais estranho ainda,
dentro de uma obra que não hesita em definir o fundamento e a finalidade de
toda civilização, o complexo de Édipo é apenas evocado em Malaise, enquanto
Freud não pára de ressaltar sua universalidade e de marcar, em termos que a
antropologia contemporânea não desaprovaria, a eficácia estruturante, “civili-
zadora”, da proibição do incesto.
Seria, então, o que, esse Mal-estar? Seria, efetivamente, como sugere seu
autor, a recreação de um velho cansado que, uma vez em férias da análise,
deixa o “subsolo do edifício”6 para se abandonar ao prazer —tentação da qual
só se sabe que se tornou irresistível com a idade e a consagração7 - da
dissertação estivai? Na falta de longas caminhadas na montanha, um passeio

385
ou uma excursão8 para o lado das “coisas elevadas”. E as coisas elevadas, para
todo psicanalista sem dúvida e para Freud com certeza, são necessariamente
coisas “banais”. Dessa equivalência, Freud faria a experiência à sua custa.
Sente-se o autor, durante todo esse seu livro, pouco à vontade, e seu leitor
sente-se como ele.
Para isso, existem várias razões. Tratar da civilização, das obrigações que
ela impõe e das renúncias que exige, e das aspirações que, apesar de tudo,
permanecem vivas, intocáveis, no sentido de mais união, mais amor, para que
enfim seja completada a “bela totalidade”, que grande assunto fora este
precisamente para aquela a quem Freud confessava sua decepção diante dos
resultados de seu próprio trabalho. Sim, como Lou — aquela que Freud
chamava afetuosamente de sua "compreensiva” e cujo pensamento era, segun­
do ele, totalmente animado pela necessidade de síntese - havia tido trabalho
para reencontrar dentro do movimento civilizador a expressão multiforme de
Eros! Mas ele, Freud, é como se fosse um pouco o filho desse deus! A ciência
que ele fundou chamou, sem hesitação e literalmente, análise, desligamento
do que tem matéria. E deu-lhe como objeto a exceção, a alteração, o diferente,
o parcial - o que ele chama de o “inconciliável”, tudo que se opõe à incansável
pretensão que destina a Eros: reunir, fazer ficar junto. Mais ainda: nessa
ciência e no método que ela se deu, é o próprio espírito de seu fundador que
trabalha, esse instrumento de grande precisão feito para dissecar, separar,
decompor - porém sem dilacerar - o tecido da psique humana. Tantos sonhos
do homem Freud representam esse desejo tão contrário à natureza de Eros; e
cada novo texto escrito mobiliza e relança um impulso de saber derivado do
impulso sexual, mais “selvagem” do que “civilizado”.
No próprio princípio de uma reflexão global sobre a civilização haveria,
portanto, alguma coisa estranha e mesmo contrária ao método psicanalítico.
Daí o embaraço de Freud, que encontra um motivo suplementar nisso: todo
discurso sobre a civilização, quer denuncie seus erros ou exalte suas reali­
zações, não será mais ou menos idealista? Não exige necessariamente que seja
feita referência a ideais que ameaçariam o estado de coisas existente - pois tal
discurso só se justifica nas épocas em que uma grande perturbação da História
coloca em questão a própria base de uma civilização? Ora, Freud sempre teve
uma posição bastante ambígua com relação àqueles que chama de os “profis­
sionais do ideal”. Se gosta de dialogar com eles é para chamá-los de volta à
realidade, a das coisas e do homem. Tem estima pelo excelente Dr. Putnam, o
americano que leu Bergson, e pelo pastor suíço Pfister, que deseja encontrar
na psicanálise uma nova pedagogia, mas não se priva de zombar deles com
respeito. "Profissionais do ideal”: a ironia da expressão por si só fala de
desconfiança. Não é que faltem a Freud ideais, não é que não tenha obedecido,
até mesmo de maneira exemplar, como homem privado e público, como
pesquisador e terapeuta, às virtudes mais tradicionais, quer dizer, aquelas que
lhe foram transmitidas por sua cultura. Mas, parece que a seus olhos todas
essas virtudes - a integridade, a coragem por ocasião do sofrimento, a dupla
recusa do compromisso e do abuso do poder —são evidentes: seria inútil delas

386
se ocupar! E príncipalmente a função de produção de ideais dependente de
uma instância intrapsíquica, sob suas duas formas o “eu ideal” e o “ideal do
eu”, não poderia ser delegada sem ser aviltada (vejam as massas que se
dedicam a um chefe se oferecendo a encarná-las). A moral de Freud é
silenciosa, ela não legisla nem prega. Como sua ciência, ela não se instala
dentro do universal, mas encontra-o como por acaso dentro da percepção do
mais particular9. Dir-se-ia que, para se confrontar com o mal, o ódio e o
desencadeamento das paixões dentro da realidade psíquica (individual e social)
e por ter reconhecido na obra dentro do inconsciente uma lógica imperiosa
que desdenha todas as outras lógicas, faltam a Freud, em compensação,
algumas certezas simples: uma sabedoria sem ilusões, tão perceptível nos
primeiros capítulos de Malaise, mas também ao abrigo da análise corrosiva.
Freud talvez seja uma das últimas figuras do sábio - ou do herói que chega
às margens da sabedoria - que nos propõe o mundo moderno. Daí sua
facilidade em recusar a “tagarelice sobre o ideal”.
Todavia, essa tagarelice não foi denunciada, como notou recentemente
Paul-Laurent Assoun10, em proveito do ceticismo, mas em nome de um
naturalismo: “Tenho muito respeito pelo espírito, mas a natureza será que ela
o terá também? Ele é apenas um pedaço dela, e o resto parece poder passar
muito bem sem esse pedaço”11.
Façamos uma pausa sobre esse apelo à supremacia da natureza. Pode-se
encontrar aí apenas um eco - dependendo mais do humor do que de uma
profissão de fé, um traço do espírito dirigido contra o Espírito... - ao anúncio
feito por Valéry dentro do texto famoso ao qual fazíamos alusão ainda agora:
“Nossas outras civilizações...” Porém a palavra de Freud diz outra coisa. Ele
não nos faz voltar somente à dura lei da vida que deseja que tudo seja perecível.
Deixa menos ainda um lugar para a idéia de que a decadência e a mortalidade
de uma civilização se poderiam ater a destinos contrários. Se o espírito e suas
obras são no final das contas apenas um “pedaço” de uma natureza indiferente,
a cultura traz em si mesma uma precariedade essencial: ela não tem nenhuma
autonomia nem se beneficia com nenhum privilégio. Vem daí a necessidade,
para quem pretende elucidá-lo, de adotar um método regressivo, redutor se se
quiser porém em um sentido bem particular.
E digno de nota que Husserl, em La crise de Vhumanité européenne (A
crise da humanidade européia), se tenha colocado essa questão em termos
muito parecidos, tendo, porém, lhe dado uma resposta totalment. diferente.12.
Ele também reconhece que “a ordem do espírito humano se baseou sobre o
físico”13 e que, em conseqüência disso, as ciências do espírito não deveriam —
se têm a ambição de atingir a exatidão, o estabelecimento de leis e o domínio
pela técnica que obtêm as ciências da natureza - considerar o espírito
enquanto espírito. “Se o mundo, escreve Husserl, fosse formado por duas
esferas de realidade que têm, pode-se dizer, a mesma dignidade, a natureza e
o espírito, sem que uma dependa da outra quanto ao método e ao conteúdo, a
situação seria diferente. Mas somente a natureza constitui por si mesma um
mundo fechado; somente ela pode ser explorada puramente como natureza,

387
sem ruptura dentro do encadeamento das conseqüências; ora, ela é a base
causai do espírito”14. Mas, como lembramos, imediatamente uma reviravolta
acontece: Husserl não fala apenas da possibilidade de “fundar uma ciência
rigorosamente fechada e geral do espírito”, não apenas imputa à tese prece­
dente, em que se afirmava com sua "evidência” o objetivismo triunfante, sua
“parte de responsabilidade na doença da Europa”, mas também mostra como
aquilo que consideramos ambiente material é obra do espírito. O ambiente
histórico e geográfico dos gregos da Antigüidade, por exemplo, é a "repre­
sentação do mundo” deles. Contra esses irmãos inimigos e complementares -
como ainda podemos verificar atualmente - que são o cientificismo e o
irracionalismo, lembra com uma firmeza admirável os poderes da filosofia, com
a condição de se compreender por filosofia, como na Grécia antiga - esse
“lugar do nascimento” da Europa - não um trabalho de especialistas do
espírito, mas a própria cultura.
A posição de Freud não pode ser nem aquela que Husserl sustenta nesse
texto, que tem o aspecto de um manifesto, nem aquela que ele denuncia.
Seelische Apparat: “aparelho da alma”. Será que se mediu bem o que essa
expressão continha de discretamente provocador com relação tanto ao es-
piritualismo quanto ao positivismo? A alma tem um aparelho, a alma é um
aparelho, mas é uma alma! e ela pensa e fala... Pode-se, deve-se considerá-la um
aparelho ótico, diferenciado em peças e funções, como um sistema nervoso
distribuído em redes de neurônios. A suposta dignidade do objeto, sua real
complexidade, não invalida o modelo. Mas é um tópico subjetivo que pode ser
constituído, não a autonomia de uma coisa. Tratando-se de civilização, a
questão vai se deslocar das obras para o trabalho, das produções para o
processo. Sobre a natureza das civilizações, sobre as figuras múltiplas que elas
tomaram ao longo do tempo e do espaço, a psicanálise não tem nada de
específico para dizer: essa é a tarefa dos historiadores e dos etnólogos, daquilo
que se chamava, no tempo de Freud e de Husserl, as “ciências do espírito”.
Mas perceber os determinantes do "processo civilizador”, traçar de novo os
caminhos dos quais se serviu o ser humano para se civilizar e avaliar o que
isso lhe custou, interessa-lhe diretamente. Pode-se mesmo chegar a dizer que
ela só se preocupa com isso.
A que se deve, então, a decepção que causa o Malaisel Ao fato de Freud
não descrever aí o trabalho cultural no lugar em que ele efetivamente o
colocou a nu, ou seja, essencialmente, dentro do destino aleatório, polimorfo,
jamais terminado, dos impulsos (instintos) sexuais, no lugar em que uma
oposição nítida entre o que seria da ordem da natureza humana e o que
dependeria da cultura perde toda pertinência. Não uma oposição, mas sim uma
tensão permanente, ativa desde a origem. Nós não podemos, como Freud,
pensar sobre um estado, podemos apenas imaginá-lo, quer ele seja o estado da
natureza ou o estado da civilização. Apenas o movimento se deixa pensar,
sendo o próprio pensamento movimento que ignora o que o impele como a
forma acabada em que poderia encontrar o descanso. Portanto, uma tarefa sem
fim; mas, em seu princípio, Freud postula o instinto, não o espírito.

388
Existe apenas o mito, tal como aquele que Totem e tabu conta, para
responder à questão do aparecimento do cultural; e, como todo mito, o da
horda primitiva e da morte do pai responde invocando a realidade do aconte­
cimento: no começo era o ato. Ora, com o Malaise, nós não somos nem
deportados para o terreno do mito nem levados para o do trajeto dos instintos
e, mais uma vez, a velha e fictícia oposição entre as aspirações do indivíduo e
as obrigações impostas pela sociedade é utilizada incessantemente. Final­
mente, Freud só pode apelar para aquilo que ele chama de sua própria
“mitologia”, ou seja, sua última teoria dos instintos, na medida em que ela
oferece, em sua oposição vidmorte, união-desunião, um referente universal,
como se ele renunciasse à análise.
Note-se que nossa reticência diante de Malaise não se exprime da mesma
forma com relação ao conjunto da obra "sociológica” de Freud. Para tomarmos
apenas um exemplo, Massenpsychologie trata de um objeto bem determinado:
a identificação com o líder —do hipnotizador ao condutor de povos —e dos
indivíduos entre si. Também a investigação pode produzir nesse caso noções
novas, chegando mesmo a fazer do livro uma das análises mais fortes e mais
modernas — começa-se a perceber enfim15 — das diversas modalidades do
vínculo social. O Malaise se situa, na maioria das vezes, em um nível de
generalidades tal que desencoraja a discussão. Como recusar, como aceitar
proposições liminares do tipo “os homens buscam a felicidade” de onde, no
entanto, vai emanar todo o desenvolvimento consecutivo? A mistura de
audácia e de prudência, que, aliás, assegura ao pensamento desse autor sua
força demonstrativa, no caso presente, singularmente, não se apresenta. Daí
esse mal-estar que acompanha progressivamente a leitura, devido ao fato de
não lidar nem com o verdadeiro nem com o falso.
Paradoxo: as páginas de Malaise que acho as mais atraentes são aquelas
em que Freud faz a teoria psicanalítica intervir menos, aquelas em que, com
um tom tranqüilo, se exprime o velho sábio, aquelas em que, por exemplo,
estabelece uma espécie de revisão e balanço das diferentes técnicas que
utilizamos para evitar o sofrimento. Dir-se-ia que ele as experimentou todas,
desde o uso de tóxicos à sublimação apelo trabalho intelectual ou pela
contemplação estética, passando pelo amor, e que conseguiu ultrapassá-las.
A droga: ela assegura um prazer imediato, ocasiona um sentimento de
independência eufórica e até mesmo de triunfo maníaco com relação a um
mundo exterior hostil; mas o organismo e a realidade não tardarão a fazer
ouvir sua dura chamada à ordem. A yoga: totalmente orientada para a
dominação dos instintos, pode trazer a quietude, mas ao preço de uma
“diminuição inegável das possibilidades de prazer”; e principalmente, observa
Freud, “a alegria de satisfazer um instinto ainda selvagem, não domesticado
pelo Ego, é incomparavelmente mais intensa do que a de saciar um instinto
domado”16. A atividade do criador ou a do pensador: ela só está ao alcance de
um pequeno número de pessoas e, mesmo para esses eleitos, não preserva
ninguém dos golpes do destino nem da dor. A arte: a “leve narcose” em que
ela nos mergulha e fugidia. A ação que visa a transformar o mundo: tem como

389
protótipo o paranóico que pretende “corrigir por meio de sonhos os elementos
do mundo que lhe são intoleráveis e depois inserir suas quimeras na reali­
dade”17. E assim por diante...
Nada de muito bom em tudo isso, dir-se-á. Talvez. Porém, notar-se-á
primeiro que essas linhas, escritas há mais de meio século, visam, na maioria
das vezes, à salvação na qual as gerações seguintes se precipitaram e que
elas acreditaram haver inventado. Sem dúvida, Freud se exprime nessa época
como um homem de sua idade - em 1929 ele tinha setenta e três anos -
mas, em sua crítica serena de nossas crenças, ele antecipou mais do que
retardou. Por outro lado, toda sua avaliação repousa sobre uma idéia, sobre
uma convicção intransigente. Se o Malaise, de maneira bastante surpreen­
dente, começa por voltar, por meio do aspecto de um exame do “sentimento
oceânico”, à questão da religião ou, melhor, da religiosidade, já tratada dois
anos antes em L'avenir d ’une illusion (O futuro de uma ilusão), é porque
seu autor tem necessidade, desde o início, de aplainar as dificuldades. A
alteração provisória dos limites do Ego não autoriza a postular uma união
ilimitada com o Todo que as emoções do estado amoroso não devam levar a
pensar, mesmo quando elas nos fazem acreditar nisso, que uma fusão com
um outro está a nosso alcance. Recusar o sentimento oceânico, rejeitar
encontrar nele o fundamento da religião para trazê-la de volta à necessidade
de proteção do pai, esse é, para Freud, o meio de desacreditar progressiva­
mente todas as tentativas - e elas são numerosas e ressurgem sem cessar
sob nomes novos apenas - que prometem ao indivíduo ou à coletividade uma
mudança de estado, isto é, a obtenção de um estado sem conflitos: boa
natureza ou boa sociedade, espelhos do infinito. Daí a crítica, in fine, do
comunismo, então rico ainda de esperanças; daí também a insistências,
durante toda a obra, irredutibilidade da divisão e dos conflitos, intrapsíqui-
cos e sociais, e a necessidade de baseá-los, mitologicamente, sobre o dualis­
mo inadmissível dos instintos de vida e de morte.
Acontece que se negligencia, que se esquece mesmo o conteúdo de
Malaise. O título deixará sua marca. Pode-se tomar por demasiado geral o
propósito de Freud, julgar inaceitável a decisão que toma de medir o vir-a-ser
coletivo de uma civilização pelo tamanho do desenvolvimento do indivíduo.
Contudo, continuar-se-á a encontrar na simples palavra “mal-estar” uma indi­
cação pertinente quanto ao estado de nossa civilização. Estamos sempre nesse
estado, na época do mal-estar. Depois de tantos esforços vãos para vivê-lo e
pensar sobre ele como qma fase de crise, estamos nele mais do que nunca.
“O mundo terá sido algum dia transformado de outra maneira que não
pelo pensamento e seu suporte mágico, a palavra?” A questão foi colocada por
Thomas Mann18 e ninguém duvida de que Freud teria respondido afirmativa­
mente. Mas ela foi colocada em pleno “tempo do desprezo" que foi primeiro
desprezo arrogante do pensamento, um tempo em que, perniciosamente, a
“magia” das palavras mudou de campo, passando du Dichter ao Filhrer,
daquele que, poeta ou pensador, esclarece o obscuro para aquele que conduz
na noite, que leva à morte pelo encantamento verbal. Como poderia o

390
pensamento deixar de duvidar então de seus poderes e mesmo de seu direito
à existência?
Mal-estar, Unbehagen. Seria de esperar encontrar muitas vezes a palavra
sob a pena daquele que dedicou sua vida ao estudo das perturbações do
psiquismo. Ora, Freud só a utiliza, fora, é claro, o caso do texto do qual tratamos
aqui, em duas ou três ocasiões. E, mesmo assim, a propósito de uma forma de
neurose que classifica dentro da categoria das "neuroses atuais". Essa indicação
é preciosa para nós. Neuroses atuais, o adjetivo, nesse, caso, reúne duas
acepções. Atuais no sentido em que as condições do presente parecem suficientes
para explicar seu início. E atuais principalmente no sentido em que elas
"atualizam”, encontrando uma expressão imediata, direta, em sintomas somáti­
cos ou em uma angústia difusa, sem pedir emprestado os caminhos que
conduzem à formação do sintoma psiconeurótico19. Freud invoca para explicá-lo
um “defeito de elaboração psíquica”. Portanto, nada de simbolização e prevalên­
cia do registro “econômico”: mais tensão do que conflito, mais paralisação e alívio
do que crise, mais expressão do que criação, mais “agir” dentro do corpo e no
exterior do que perturbação.
Falar de mal-estar dentro da cultura é, qualquer que seja a explicação que
se dê - e sabe-se que Freud em sua obra o submete a um sentimento de culpa
—pelo menos para indicar o efeito que pode ter, uma vez transposto para a
vida coletiva, um defeito de elaboração psíquica. Somente, e é sem dúvida aí
que Freud não faria suas as palavras de Thomas Mann que citei anteriormente,
a tarefa de elaboração, o movimento de simbolização não são destinados ao
“pensador”. É essa mesma a tarefa, infinita como diria Husserl, da civilização.
Por suas instituições e aquilo que as anima, por suas empresas e suas obras,
uma coletividade, quer sua extensão seja restrita a um território, quer ela se
expanda ao longo do mundo, apresenta-se a si mesma, se reflete. Só existe
pensamento coletivo pelo refletido. Uma civilização não poderia portanto ser
objeto de pensamento para seus atores, para aqueles que a vivem e a edificam:
ela pensa sobre eles. E assim que compreendo a recusa de Freud, tão
firmemente reiterada, de derivar da psicanálise, apesar das solicitações a esse
respeito, uma Weltanschauung qualquer, assim como sua repugnância com
relação aos “construtores de sistemas”. O Welt, o mundo, não se deixa ser
pensado como tal, principalmente se o pensamento, que é trabalho, que é
movimento, pretende se confundir com uma Schauung, com uma visão. Mas
o mundo pensa sobre si mesmo, se representa, se diz, se dá a ver. Daí o respeito
que Freud não parou de ter pelos grandes sucessos da civilização, desde a
ciência até a arte, e pelos heróis civilizadores, de Edipo, o transgressor
involuntário, a Moisés, principalmente nesse momento em que, tomado de
paixão colérica, sobrepuja seu desejo de quebrar as tábuas (das leis): nos dois
casos, pontos-limite em que se articulam a “selvageria” e a “civilização”. Então
pode-se esclarecer também uma frase bastante enigmática que se encontra em
Malaise: “A civilização é um processo particular que se desenvolve acima da
humanidade”20. 0 processo sem motivo, portanto, e sem agente, como todo
processo inconsciente. Assim como o inconsciente só é identificável por suas

391
formações - diferentemente de Jung, não há “mundo” do inconsciente em
Freud —, ninguém, nem indivíduo, nem grupo, nem classe, nem nação, pode
pretender encarnar a civilização. Resta dizer que se pode confiar no movimen­
to civilizador, sempre retomando seu processo e não progresso.
Incontestavelmente, com Malaise, essa confiança foi abalada e, mesmo,
parece perdida. Existem bastantes motivos para o desencantamento de Freud.
Alguns são explicitamente confessados e, sendo reconhecidos por toda parte,
reúnem o leito das “verdades banais”: a vertente destruidora, no que diz respeito
à natureza e aos homens, do domínio científico e técnico, a agressividade e o
egoísmo, a liberdade escarnecida... Outros são mais secretos e dependem,
segundo penso, do afastamento crescente do qual Freud pôde ter a dolorosa
experiência no campo da própria psicanálise, ao mesmo tempo no seio da
comunidade que se constituiu em torno de seu nome e na prática terapêutica,
afastamento entre a ciência do psiquismo e seus efeitos que se poderia, de um
modo certamente abrupto, formular assim: a psicanálise é verdadeira, mas, no
entanto, não funciona como deveria! De Au delà du príncipe de plaisir até
Analyse fínie et analyse indéfínie, Freud só irá acentuar uma constatação que
o afasta sempre mais do modelo original da talking cure: a magia das palavras
deixa de ser operante. Com a neurose da existência, ou com o que se chamará
mais tarde de neuroses de caráter ou estruturas narcisistas, efetua-se uma espécie
de retorno às neuroses atuais. O conflito, em vez de se apresentar e, por esse
meio, se abrir à mobilidade da interpretação, se repete no presente sempre
oferecido do corpo e da realidade, que oferecem sempre também novas circuns­
tâncias explicativas. O mal-estar está também, para Freud, dentro dos limites - a
“rocha” - contra os quais se choca o poder da análise, no desafio da reação
terapêutica negativa: que dure meu sofrimento, que se perpetue o mal-estar,
contanto que sejam meus!
Daí o fato de Freud recorrer maciçamente, em Malaise dans la civili-
sation, ao instinto de morte no combate que este trava com Eros, como se a
oposição, mais fecunda, mais dialética e menos desigual entre Logos e
Ananke tivesse tido de lhes ceder o lugar. Como se torna discreto, então, o
apelo aos possíveis recursos de Eros! Como é tímida a “voz do intelecto”! A
necessidade pode ser negociada e vencida. A morte não, principalmente
quando ela não é mais percebida como passagem para uma outra vida nem
como um acontecimento natural e sim como algo que não cessa de nos
consumir por dentro21. O que nos oferece nossa civilização como única
certeza partilhada por todos? Uma certeza que, impotentes para pensar
sobre ela, não podemos também nada fazer quanto a ela. Além disso, o fim
entrevisto da espécie humana nos deixa quase indiferentes, a indiferenciação
provocando a indiferença. O Mal-estar pode ser concluído assim: “Os ho­
mens de hoje em dia levaram tão longe o domínio das forças da natureza
que, com sua ajuda, se tornou fácil exterminarem-se mutuamente até o
último deles.”22
A “neurose coletiva”, da qual sofreríamos, seria uma neurose atual, no
sentido freudiano, isto é, uma neurose não criadora e vazia de desejo,

392
impotente para elaborar e transformar seus conflitos, capaz apenas de gerar
suas tensões sem nunca tomar partido? Se se consentir em uma transposição
sempre aleatória do individual para o coletivo, muitos sinais nos levam a crer
nisso. Cada um nesse caso poderá convocar aqueles que lhe parecerão os mais
decisivos: encontrar-se-ão confusamente revelados o afluxo das imagens que
impedem o julgamento, a inflação da informação que se anula a si mesma, a
violência quotidiana (da delinqüência juvenil ao automóvel que mata...), a
banalidade do Mal, o curvar-se sobre si mesmo e a ignorância do que esse “si
mesmo” poderia ser, o declínio da língua, a feiúra e a tristeza de nossas cidades
novas... Algumas vezes nos felicitamos por não mais aderir a nenhuma grande
crença coletiva, futura tirania, outras vezes gememos por não acreditar mais
em nada. O quadro clínico de nossa apatia febril, não há um quotidiano que
não o saiba pintar, não há um mensal que não o saiba analisar. O aborrecido
é que descrições e comentários nos são de pouca valia: refletem o já visível,
nos melhores casos, tornam-no legível. A consciência do mal-estar nos torna
apenas mais morosos e culpados.
Podia-se, ainda no começo do século, opor o mundo civilizado ao mundo
não-civilizado23. Já a Grande Guerra fez da Razão seu grande cadáver. Depois
nós “progredimos” e conseguimos instalar a barbárie dentro de nossos muros
por meio de uma gestão racional da morte. Pois todas nossas paixões coletivas
são racionais, todos nossos crimes são realizados em nome de um ideal. O que
resta da oposição, finalmente tranqüilizadora, sobre a qual se apóia Freud
ainda, entre as forças instintivas selvagens e as exigências civilizadoras, se as
segundas servem de máscara para as primeiras?
Hoje em dia, não se fala mais de civilização, jamais no singular, em
tempo algum, fazendo-se dela um privilégio do Ocidente. Fala-se de de­
senvolvimento. Refere-se apenas a um só modelo: o desenvolvimento econô­
mico. A oposição clássica mudou de aspecto: passou a ser sociedades
industriais versus sociedades em vias de desenvolvimento. Não há outra uni­
versalidade, só essa universalidade de fato. Mas ela não é legítima; aliás, ela
não tem necessidade disso. Pode-se também, paralelamente e com alguma
hipocrisia, professar um relativismo cultural e celebrar a diferença, sem
hierarquia, de milhares de "culturas” espalhadas pelo mundo. Certamente a
predominância do referencial econômico é cada vez mais contestada, mas a
crítica se oculta quando o econômico nos chama à ordem, fazendo sentir
duramente sua desordem. Quanto ao relativismo cultural, começamos a ver
a que ele pode conduzir: menos a uma "prova do estranho”24 - fecunda
naquilo que faz vacilar a certeza, demasiada confiança assegurada no
“próprio” e no “consigo” - do que a uma aceitação fraca, passiva, que
chegou mesmo a perder os atrativos do exotismo, de múltiplas e quase
infinitas identidades culturais. Paradoxalmente, o “quanto a si” encontra-se
valorizado então. O que Freud dizia justamente da felicidade - é assunto
individual - se vê transposto à escala coletiva: a cada cultura cabem seus
mitos e seus hábitos, suas crenças e seus valores, a cada uma cabem suas
escolhas e soluções.

393
Sem dúvida, tal atitude de respeito pela diversidade das culturas é
intelectualmente sã. Mas é preciso que se admita que ela é dificilmente
conciliável com uma criação cultural qualquer que seja ela. Que obra de arte
e do espírito se poderia ter imposto se seus autores não tivessem tido a
convicção e a vontade de tornar as outras caducas ou vãs?
A surpresa foi muito grande para alguns, ao ver um etnólogo que tanto
fez para nos fazer tomar consciência da complexidade e do refinamento de
culturas obscuras, negligenciadas ou dizimadas e durante muito tempo tidas
como atrasadas e, correlativamente, para rebater o orgulho das grandes
civilizações, escrever hoje em dia: “A maioria dos povos que chamamos de
primitivos se designa ela mesma com um nome que significa ‘os verdadeiros’,
‘os bons’, ‘os excelentes’ ou, então, simplesmente ‘os homens’; e eles aplicam
aos outros qualificativos que lhes negam a condição humana, como ‘macacos
da terra’ ou ‘ovos de piolho’25. Não concluamos, porém, que se trate de um
exemplo a ser seguido! Deve-se, todavia, reconhecer, não pela afirmação de
uma supremacia, mas pela certeza de que sua particularidade vale para o
universal, uma das condições de existência de uma cultura, a menos que ela
prefira seu mal-estar a suas obras.
Uma civilização não é um “suplemento da alma”26. Ela é a alma de um
povo, o produto desse “aparelho da alma” cujo jogo de diferenças e conflitos
internos só pode assegurar o dinamismo criador. Coloquemos, pois, a questão
do inconveniente: uma “civilização de massa”, totalmente orientada para a
redução ao mesmo, será possível? Não existirá aí uma contradição em seus
termos? Ou ainda: uma massa tem alma? Essa seria a questão que Freud
abordou diretamente em Massenpsychologie. Ela ressurge, latente, em seu
Malaise e induz ao nosso (mal-estar) pela impotência e incerteza culpada em
que nos encontramos quanto à possibilidade de propor ou mesmo de imaginar
uma resposta.
Quanto mais nosso mundo se deixa conhecer dentro de seus determi­
nantes, menos ele deixa que se pense sobre ele em seu futuro e sua finalidade.
Será que esse paradoxo faz a atualidade do mal-estar?

• A obra de Freud é particularmente avessa a toda classificação por setores. Seria, portanto,
arbitrário rotular esse texto freudiano como “Sociologia" ou “Política” e outro como "Teoria
geral” ou “Clínica”. Quem imaginaria, por exemplo, o partido que Elias Canetti em Masse et
puissance soube tirar do caso Schreber?
Feita essa reserva, se assinalarão, entre os textos que podem mais diretamente solicitar a
reflexão sobre o social, as obras e os artigos seguintes:

27
► A moral sexual civilizada e a doença nervosa dos tempos moderno (1907), em La vie
sexuelle (A vida sexual), PyF, 1969; Totem etlabou (1913), Payot, 1923; Considerações atuais
sobre a guerra e a morte 8 (1915) em Essa is de psychanalyse, novembro, traduzido, Payot,
1981, leitura que se prolongará na de Por que a guerra?2* (1933), carta aberta a Einstein, em
Résultats, idées, problèmes, volume II, PUF, 1985; Psychologie des foules et analyse du moi
(1921), em Essais de psychanalise, novembro, tradução, Payot, 1981; L'avenir d ’une illusion

394
(1 9 2 7 ), P U F , 1971; Vhomme Moise et la religion monothéiste (1939), G allim ard, 1986. P a ra
u m a e x p o sição e u m a in te rp re ta ç ã o d e c o n ju n to , ler-se-ão as o b ra s, c ita d a s em n o tas, d e E u g è n e
E n riq u e z , De la horde à VEtat, essal de psychanalyse du lien social, G allim ard, 1983 e d e S e rg e
M oscovici , L ’ãge des foules, F ayard, 1981.

J. B . PO N TA LIS.

NOTAS
1. Sabe-se que Freud se recusa a debater sobre a diferença de sentido das duas palavras.
Mas ele adota a palavra K ultur.
2. O alemão diz D ra n g : o impulso do Trieb.
3. Carta de 28 de julho de 1929, em S. Freud, C o rr e s p o n d a n c e d e 1873 a 1939,
Gallimard, 1966.
4. Essas são as primeiras linhas do capítulo VI de M a la ise d a n s la C iv iliz a tio n , pág. 71
da tradução francesa, PUF, 1971.
5. Op. cit., pág. 73.
6. A expressão se encontra em uma carta a Binswanger (C o rresp o n d a n ce , op. c it., pág.
470) que, aos olhos de Freud, tinha um gosto pronunciado demais pelas alturas.
7. Notar-se-á que foi pouco tempo antes da publicação de Malaise que Freud se viu
homenageado por Thomas Mann (“O lugar de Freud dentro da civilização moderna"); que foi
em 1930 que ele recebeu o prestigioso Prêmio Goethe e em 1932 que Einstein se volta para ele,
por iniciativa do Instituto de Cooperação Intelectual da Sociedade das Nações, a fim de lhe pedir
para responder à “questão mais importante na ordem da civilização”: “Por que a guerra?” Eis
portanto, Freud, durante tanto tempo desconhecido ou rejeitado como simples pesquisador,
chamado a tomar o lugar de grande pensador, isto é, intimado a responder não apenas às
questões que seu trabalho coloca e nos seus termos, mas àquelas que o “tempo presente” supõe
colocar e para as quais se exige resposta imediata.
8. A palavra, em sua acepção metafórica, virá sob a pena de Freud: “No fim de uma
excursão parecida”, op. cit. pág 13.
9. Outra carta a Lou Andreas-Salomé ( l e de abril de 1917): “Você sabe que eu me
preocupo com o fato isolado e que espero que jorre dele próprio o universal.”
10. Cf. Freud em colocações sobre o ideal, em Idéa u x , n 27 da N o u v e lle re v u e d e
p sy c h a n a ly se , 1983. Peço emprestado também a P. L. Assoun a citação que segue.
11. Carta a Pfister, de 7 de fevereiro de 1930.
12. E. Husserl, L a c r is e d e V h u m a n ité e u ro p é e n n e e t la p h ilo s o p h ie (1935). Nós nos
referimos à tradução de Paul Ricoeur, em R e v u e d e m é ta p h y síq u e e t d e m o ra le, n* 3, 1950,
págs. 225-258.
13. lb id e m , pág. 231.
14. lb id e m , pág. 232.
16. M alaise..., op. cit., pág. 24
17. lb id e m , pág. 27
18. Precisamente por ocasião da conferência em homenagem ao 80saniversário do
nascimento de Freud. Cf. Freud et 1’avenir (1936), tradução francesa em N o b le sse d e V esprit,
Albin Michel, 1960.
19. Para mim as concepções “modernas” da somatização e a distinção estrita que elas
tentam estabelecer com a conversão histérica não fazem mais do que retomar a “velha” teoria
freudiana das neuroses atuais à qual só podemos, aqui, fazer alusão.
20. M alaise, op. cit., págs. 46 e 77. Freud precisa que essa intuição se im p õ e (eu sublinho)
a ele e permanece “sob a influência dessa concepção”.

395
21. Cf. J. B. Pontalis, Le travail de la mort, em E n tre te r è v e e t la d o u leu r, Gallimard,
1977.
22. Op. cit., pág. 107.
24. Cf. o ensaio de Antoine Berman que traz esse título, Gallimard, 1983.
25. Claude Lévi-Strauss, L e r e g a r d élo ig n é , Plon, 1983, pág. 26.
26. Formas atuais e degradadas desse apelo ao suplemento: um “projeto de sociedade’’,
por favor; um “grande desígnio”, por piedade.
27. L a m o ra le se x u e lle c iv ilis é e e t la m a la d ie n e rv e u se s d e s te m p s m o d e m e s .
28. C o n s id é ra tio n s a c tu e lle s s u r la g u e r r e e t la m ort.
29. P o u r q u o i la g u e rre .

396
GAULLE, Charles de, 1890-1970
Discurso de Bayeux, 16 de junho de 1946

Pronunciado para rejeitar a 4* República ainda não nascida, o discurso


de Bayeux deve incontestavelmente sua posteridade à 5i República, da qual
constituirá retrospectivamente o texto fundador. A importância histórica do
gaulismo resulta antes de tudo de dois atos, marcantes por si mesmos, mas
ainda mais naquilo em que são excepcionalmente atribuídos a um homem: o
repúdio enérgico à ocupação alemã, em junho de 1940, e o estabelecimento de
uma nova República, em junho de 1958. Aceitar-se-á, portanto, tomar esse
discurso como uma obra política, ao menos naquilo que resume e interpreta a
ação política de seu autor e precisamente esses dois momentos-chave entre os
quais ele estabelece a unidade que faz um pensamento.
Consubstanciai ao gaylismo, o nacionalismo lastreia todos os seus racio­
cínios e dá ao discurso sua introdução:

Bayeux e sua vizinhança foram testemunhos de um dos maiores acontecimentos da


história. Atestamos que eles foram dignos disso. Foi aqui que, quatro anos depois do
desastre inicial da França e dos Aliados, começou a vitória final desses mesmos Aliados
e da França; foi aqui que o esforço daqueles que não tinham jamais cedido - e em torno
dos quais, a partir de 18 de junho de 1940, se havia reunido o instinto nacional e refeito
'o poderio francês —tirou dos acontecimentos sua justificação decisiva.

Tudo está aí, nesse parágrafo, ou quase: a História, tribunal supremo,


mas também a história cuja realidade importa pouco se o resultado autoriza
reconstruí-la - imagine-se a equação entre a França e seus Aliados não
somente na vitória, mas até no desastre inicial; o esforço, virtude entre as
virtudes, sem o qual nada se faz, mas com o qual tudo é possível; o instinto
nacional, celeiro da ação coletiva, ainda que de início se reduza ao gesto de
um só; poderio francês, colocado como único objetivo primordial, já que
condiciona todos os outros. Nacionalismo primordial, certamente, mas não

397
integral, exceto por esquecer que o gaulismo reclama para si a continuidade
francesa. Revolução e República incluídas, e que o verbo de De Gaulle não
deixa entrever nenhum traço da xenofobia pré-racista do pensamento de
Maurras.
Um democrata escrupuloso desalojará certamente sem demasiada dificul­
dade essa ou aquela frase monarquista de sob a pena do General1. Mas não se
lerá nenhuma que faça eco ao anti-semitismo de Maurras2 ou de Barres3,
diferença radical que deveria impedir todas as filiações sumárias sob pretexto
de um nacionalismo historicista comum.
Outro traço distintivo do pensamento contra-revolucionário, o gaulismo
é um estadismo, e o discurso de Bayeux, um hino ao Estado:

Foi aqui que sobre o solo dos ancestrais reapareceu o Estado; o Estado legítimo porque
repousava sobre o interesse e o sentimento da nação; o Estado cuja soberania real tinha
sido transportada para o lado da guerra, da liberdade e da vitória, enquanto a servidão
conservava apenas a aparência; o Estado salvaguardado em seus direitos, dignidade e
autoridade em meio às vicissitudes do desenlace e da intriga; o Estado preservado das
ingerências do estrangeiro; o Estado capaz de restabelecer em torno dele a unidade
nacional e imperial...

Tradicionalista a referência aos ancestrais e à concepção militar da


legitimidade, aliás confirmada pela história da França (“sempre é por causa
da guerra que os Merovíngios, os Carolíngios, os Capetos, os Bonapartes, a
35 República, receberam essa autoridade suprema”, de Gaulle, mais uma vez,
se inscreve dentro da continuidade histórica), mas para os antípodas da
exclusão, já que muito pelo contrário a absoluta necessidade de Estado vem
da diversidade “dos povos” que habitam a França e “das raças que a
compõem” (Ibidem). Compreende-se que René Rémond tenha visto no
golismo a perpetuação de uma terceira direita, pois seu estadismo monárqui-
co-republicano se distingue tanto do legitimismo quanto do liberalismo. A
ponto de alguns poderem, em total boa-fé, recusar até o pertencimento à
direita de uma corrente tão profundamente jacobina e encontrar para ela,
ainda por cima, afinidades com a corrente dos seguidores de Rousseau -
como René Capitant —, até mesmo com o socialismo trabalhista. No entanto,
não há nenhuma necessidade de puxar de Gaulle para a esquerda a fim de o
separar de um Tocqueville ou de um Maurras, e a assimilação de tal ou tal
socialismo, mesmo sendo ele antibolchevista, acertará sempre sobre o culto
do Chefe. Aceitação da Revolução com a condição de não mais se dividir em
seu prosseguimento, supremacia do Estado sem o qual não se poderia
perpetuar a grandeza da Nação, auto-identificação proclamada à dita Nação
e para tanto vocação para dirigir o dito Estado, legitimação dessa pretensão
pelo ato militar da explosão, perpetuação do poder fundada, assim, pelo
recurso ao “consentimento da imensa massa francesa”, reconhecimento, por
seu lado, "de uma elite, espontaneamente jorrada das profundezas da nação
bem acima de toda preocupação de partido ou de classe”, mas execração dos
corpos intermediários mantendo “a rivalidade dos partidos" e “nossa perpé-

398
tua efervescência política”, é o bonapartismo que se prolonga no gaulismo.
A admissão dos procedimentos democráticos não é tanto uma questão de
princípio, mas mais uma necessidade realista:

Tanto é verdade que os poderes públicos só valem, de fato e por direito, quando estão de
acordo com o interesse superior do país ou se repousam sobre a adesão confiante dos
cidadãos. Em matéria de instituições, construir sobre outra coisa seria como construir
sobre areia.

A própria ditadura não suscita uma condenação a princípio, mas deve ser
descartada porque ela conduz o poder ao exagero e a nação ao fracasso:

O que é a ditadura senão uma grande aventura? Sem dúvida seu início parece vantajoso.
Em meio ao entusiasmo de alguns e à resignação de outros, dentro do rigor da ordem
que ela impõe, a favor de um cenário brilhante e da propaganda num único sentido, ela
aparenta primeiro um dinamismo que faz contraste com a anarquia que a precedera. Mas
é o destino da ditadura exagerar seus empreendimentos. À medida que germinam entre
os cidadãos a impaciência com as opressões e a nostalgia da liberdade, torna-se necessário
para ela lhes oferecer a qualquer preço a compensação dos êxitos cada vez mais extensos.
A nação torna-se uma máquina à qual o mestre imprime uma aceleração desenfreada.
Quer se trate de projetos interiores ou exteriores, as metas, os riscos, os esforços
ultrapassam pouco a pouco as medidas. A cada momento se erguem, fora e dentro,
obstáculos multiplicados. No final, a mola se parte. O edifício grandioso desaba em meio
à infelicidade e ao sangue. A nação se encontra despedaçada, pior do que estava antes
que a aventura tivesse começado.

Em 1958, muitos intelectuais, alguns até brilhantes, acreditaram que de


Gaulle havia traçado de maneira antecipada o destino de seu reinado. Dez anos
mais tarde, foi "a imensa massa francesa” que pareceu confirmar esses
sombrios prognósticos. Porém, se o vínculo se desfez efetivamente, a nação
não caiu mais - o que soma tudo e não desagrada aos fanáticos seguidores do
Chefe, permanece em seu ativo.
As instituições não ficaram insensíveis a esse não-desabamento, foram
elas que ofereceram ao discurso de Bayeux seu pretexto, tendo primeiro
projeto da 4* República acabando por ser rejeitado pelo referendo de 6 de
maio, e sua posteridade, a 5è República tendo-se descoberto nesse momento,
doze anos antes de acontecer; mas também, independentemente dessas
peripécias que lhe dão consistência histórica, a articulação central do
raciocínio gaulista. Tendendo para a grandeza da França, convencido da
necessidade de um Chefe, o gaulismo é uma concepção do Estado que a
instabilidade pós-revolucionária da França e a auto-exclusão do General do
poder conduzem a uma doutrina constitucional. Só ela justificará efetiva­
mente a recusa dessa 4S República que o rejeita, só ela confia ao Libertador
uma nova missão. Além disso, só ela completa a demonstração: sem grande­
za, a França não seria a França. Sem um Estado forte, a França não será
grande. Sem Chefe, o Estado não cofiservará nenhuma força. Sem ins­
tituições sólidas, nenhum Chefe se manterá.

399
As especificidades da França tornam particularmente indispensável o
recurso a uma terapia institucional:

No decorrer de um período de tempo que não ultrapassa duas vezes a vida de um homem,
a França foi invadida sete vezes e praticou treze regimes, pois tudo se limita dentro das
infelicidades de um povo. Tantos abalos acumularam em nossa vida pública venenos nos
quais se intoxica nossa velha propensão gaulesa para divisões e querelas.

Isto, ao qual se reúne o risco anteriormente evocado de ditadura,

basta (...) para compreender a que ponto é necessário que nossas instituições democráti­
cas novas compensem, por si mesmas, os efeitos de nossa perpétua efervescência política.
Além disso, existe aí para nòs uma questão de vida ou de morte, no mundo e no século
em que estamos, em que a posição, a independência e até a existência de nosso país e da
União francesa se encontram inteiramente em jogo.

Mais do que o conteúdo das soluções institucionais pregadas, é a


primazia dada à solução constitucional que confere nesse caso a originalidade
ao gaulismo. Quanto aos mecanismos, não atestam nenhum gênio inventivo
particular, mas retiram, do assim chamado revisionismo de entreguerras assim
como dos projetos dos movimentos tecnocráticos da resistência, o todo
transmitido e ajustado por dois fiéis tão diferentes e complementares quanto
são Michel Debré e René Capitant, correntes tecnocrática e populista do
jacobinismo revisado. A separação dos poderes servirá de princípio primeiro,
tanto melhor que libere uma preeminência para o Chefe:

Todos os princípios e todas as experiências exigem que os poderes públicos,: legislativo,


executivo e judiciário sejam nitidamente separados e fortemente equilibrado e que, acima
das contigências políticas, seja estabelecida uma arbitragem nacional que faça valer a
continuidade em meio às combinações.

A seguir vem o bicamerismo, segundo princípio discriminante face à


esquerda reinante. Para justificá-lo, todos os argumentos habituais são
justapostos sem escolha nem, mesmo, hierarquia: a idéia, cara a Benjamin
Franklin, de que é preciso esfriar os projetos impetuosos da “Assembléia
eleita pelo sufrágio universal e direto”; o reconhecimento de que “também
a vida local tem suas tendências e direitos”; a necessidade de uma “organi­
zação de forma federal” para conservar “sob nossa bandeira” os territórios
de além-mar e a Sarre (Saarland); a vantagem em fazer “valer na confecção
das leis esse fator de ordem administrativa que um colégio puramente
político tem forçamente tendência a negligenciar”; o interesse, enfim, em
produzir “representantes das organizações econômicas, familiares e intelec­
tuais, para que se faça ouvir, dentro do próprio Estado, a voz das grandes
atividades do país”.

Do Parlamento, composto de duas Câmaras e exercendo o poder legislativo, decorre


necessariamente que o poder executivo não poderia proceder, sob pena de vir a parar

400
nessa confusão dos poderes na qual o Governo logo não seria mais nada além de um
amontoado de delegações (...)

É, portanto, do chefe do Estado, colocado acima dos partidos, eleito por um colégio que
engloba o Parlamento, porém muito mais amplo e composto de maneira a fazer dele o
Presidente da União Francesa ao mesmo tempo que da República, que deve proceder o
poder executivo. Ao chefe do Estado cabe a carga de fazer concordar o interesse geral
quanto à escolha dos homens com a orientação que emana do Parlamento. Cabe a ele a
missão de nomear os ministros (...), a função de promulgar as leis e de aprovar os decretos
(...), a tarefa de presidir os Conselhos do Governo (...), a atribuição de servir de árbitro
acima das contigências políticas (...).

Presidencialização sem regime presidencial, toda originalidade da 5®


República está no discurso de Bayeux, e com a inspiração as regras que a
explicam: escolha presidencial do Primeiro Ministro e dos outros ministros,
manutenção de uma responsabilidade colegial do governo “diante da repre­
sentação nacional”, e, uma vez essa concessão concedida, arbitragem ativa
do Presidente, “normalmente pelo conselho", “nos momentos de grave
confusão” pela dissolução, “se fosse o caso de a pátria estar em perigo”, pelo
recurso aos poderes excepcionais. Tudo está aí em 1958, salvo o referendo,
curiosamente omitido por aquele mesmo que acabava de impô-lo em outubro
de 1945. Está aí tudo da 5S República, até a reforma de 1969, que falhou,
tentando incorporar uma representação sócio-profissional ao Senado. Tudo,
exceto a eleição direta do Presidente pelo povo.Essa ruptura, de Gauile não
a ousou em 1946, assim, como não ousará em 1958, “para levar em
consideração prevenções apaixonadas (...) desde Luís Napoleão” e já que a
seus olhos a questão só se colocava para seus sucessores na cabeça do
Estado (“por causa da História do passado e das circunstâncias do presente,
a maneira pela qual eu chegaria lá seria apenas uma formalidade sem
conseqüência quanto a meu papel”, Mémoires â’espoir, II L ’effort, pág. 20).
Resta dizer que a eleição direta do Presidente, indizíve! por não ser aceitável
antes de 1962, estava necessariamente inscrita na lógica de Bayeux, como
Léon Blum percebeu logo, ainda que todo mundo o tenha esquecido durante
uns quinze anos: “Para um chefe do executivo assim concebido, a ampliação
do colégio eleitoral não poderia bastar. Toda soberania emanando necessa­
riamente do povo, seria preciso descer até a fonte da soberania, isto é,
submeter a eleição do chefe do executivo ao sufrágio universal (...). Aí está
a conclusão lógica do sistema: esse seria também o único meio de fundamen­
tá-lo no direito” (Le Populaire, 21 de junho de 1946). Blum era hostil a ela,
mas levava a lógica instituicional gaulista até seu término. De Gauile se
confessa favorável a ela, mas, constitucionalista menos convicto ou político
mais avisado, não diz uma palavra sobre ela, tanto a coisa era impossível.
Qualquer que tenha sido, a renovação escondida de Bayeux modificou
duravelmente o sistema político francês. Restaria demonstrar por que ela
não o podia fazer pela via gaulista da reunião, mas, ao contrário, dando
consistência moderna às máquinas partidárias que o discurso de Bayeux

401
denuncia como uma potência então mítica, dando sentido e constância às
divisões políticas amaldiçoadas pelo General.
Porque a modernização institucional da França seguiu os caminhos do
gaulismo, ela se afastou de seu ideal miticamente unitário demais. Mas o
unanimismo deveria estar no centro de um pensamento unindo o culto militar
do herói - "não se faz nada de grande sem grandes homens e estes o são por
tê-lo desejado” (Le fil de Vépée - O Tio da espada)-, o relativismo cristão - “à
nossa senhora, a França, nós não temos nada a pedir exceto talvez que no dia
da liberdade ela nos queira abrir maternalmente os braços e nos envolver
docemente em sua boa e santa terra” - e o universalismo revolucionário —
“existe um pacto vinte vezes secular entre a grandeza da França e a liberdade
do mundo” (Londres, 1 de março de 1941).
Extremo orgulho e extrema humildade desse homem que se identificava
com a França a ponto de fazê-la sobressair e que resume uma das últimas frases
do discurso de Bayeux: “Nós temos de fazer uso, entre nossos irmãos, dos
homens que podemos para ajudar nossa pobre e velha mãe, a terra.”

• A obra de Charles de Gaulle foi editada em Paris pela Livraria Plon desde 1954: M é m o ires
d e g u e rre . Aí se encontram textos militares publicados originariamente por Berger-Levrault:
Vers V a rm ée d e m étier, 1934 L a F ra n ce e t so n a rm é e, 1938; L e fíl d e Vépée, conferências
pronunciadas diante do Marechal Pétain, em 1927, e publicadas em 1932. Ela compreende
igualmente as C artas, n o ta s e c a d e r n o s d e a n o ta ç õ es e, é claro, os D isc u rso s e m en sa g e n s, que
também apareceram em livro de bolso (Plon, 1970 “Le livre de poche”, 1974). O discurso de
Bayeux figura no tomo 2, D a n s V atten te, fevereiro de 1946 - abril de 1958.

► Jean Touchard, L e gau llism e, 1 9 4 0 - 1969, circulação policopiada, Institut d’Études politiques
de Paris, 1972, editado por Oliver Robin, Seuil, “Le Point”, 1978; Jean Charlot, L e p h é n o m è n e
gau lliste, Paris, Fayard, 1970; Idem, L e gaullism e, Paris, A. Colin, “U2”, 1970; Id., L e g a u llism e
d 'opposition , Fayard, 1983; René Rémond, L a d ro ite e n F rance de la p re m iè re R estau ration à la
Ve R epu bliqu e, Paris, Aubier- Montaigne, primeira edição, 1968; Institut Charles de Gaulle,
A p p ro ch es d e la p h ilo so p h ie p o litiq u e d u g é n é ra l d e Gaulle, Atos do colóquio dos dias 25 e 26 de
abril de 1980, Paris, Ed. Cujas, 1983; Jean Lacouture, D e Gaulle, Paris, Seuil, 1984 e 1985, dois
tomos; Nicolas Wahl, Nas origens da nova constituição, R evu e fran çaise d e so c ien ce politiqu e,
volume IX, Paris, março de 1959; Pierre Dabezies, Gaullisme et giscardisme, P o u vo irs, n. 28, Paris,
PUF, 1979; Jean Baudoin, Gaullisme et chiraquisme, P ou voirs, n. 28, Paris, PUF, 1984; L a
C o n stitu tio n d e la F* R epubliqu e, sob a direção de Olivier Duhamel et Jean-Luc Parodi, Paris,
Presses de la Fondation nationale des Sciences politiques, 1985, e particularmente Odile Rudelle
L e g é n é r a l d e Gaulle e t félection d ire cte d u P ré sid en t d e la R épu bliqu e.

Olivier DUHAMEL.

NOTAS
1. Em suas M é m o ir e s d ’e s p o ir (M em órias d e esp e ra n ç a ), evocando maio de 1958, de
Gaulle escreve assim: “Deverei aproveitar a ocasião histórica que me oferece a ruína dos partidos

402
para dotar o Estado de instituições que lhe devolvam, sob forma apropriada aos tempos
modernos, a estabilidade e a continuidade de que está privado há 169 anos?”
2. “Dinastias judias e metecas. Dinastias estrangeiras!", proclama Maurras em Mes idées
politiques (pág. 155). Sabe-se, ou dever-se-ia saber, que, longe de se isolar em um anti-semitismo
desusado e marginal, Maurras convidava, ainda em 1944, à caça aos judeus e, principalmente,
a “um legítimo contraterror” à família Worms que ainda escapava ao “campo de concentração”
(L’action française, 2 de fevereiro de 1944). Ele foi ouvido e Pierre Worms foi preso e
assassinado quatro dias mais tarde.
3. “Eu não tenho necessidade de que me digam por que Dreyfus traiu... Que Dreyfus é
capaz de trair, eu o concluí por causa de sua raça”, escreve Barrès em Scènes et doctrine du
natlonalisme (t I, pág. 161).

GENTILE, Giovanni, 1875-1944


A filosofia de Marx, 1900

Esse livro é composto de dois ensaios (Uma crítica do materialismo


histórico eA filosofia da prdxis) dos quais o primeiro foi publicado de maneira
autonôma em uma revista italiana em 1897. As datas são importantes nesse
caso, pois esses trabalhos estãos estreitamente ligados aos de B. Croce sobre
o mesmo assunto e, igualmente, aos de A. Labriola (ver o artigo consagrado a
B.Croce). O primeiro ensaio remete às contribuições iniciais de Croce que
datam de 1895 e 1896, portanto, também aos dois primeiros ensaios de
Labriola. Sua matéria é precisa e limitada: trata-se da questão de saber se o
materialismo histórico é ou não uma filosofia da história. De maneira mais
exata ainda, trata-se de saber se se poder falar de filosofia da história a
propósito do materialismo histórico tal como foi apresentado por Labriola. Do
mesmo modo, pode-se dizer que se trata de uma discurssão da tese sobre esse
assunto, defendida por Croce, que também partia dos dois ensaios de Labriola
e concluía a partir desse seu exame que o materialismo histórico não era uma
filosofia da história, mas um simples cânone para a pesquisa histórica (ver a
exposição dessa tese no artigo de Croce), do qual ele se felicitava.
Quando Croce voltou a abordar essa questão, em 1898, na dissertação
intitulada Pela interpretação e a critica de alguns conceitos do marxismo,
aconteceu a discussão com Gentile; é preciso levá-la em conta para compreen­
der a evolução de seu pesamento. Na verdade, ele manteve sua tese apesar da
argumentação de Gentile, mas, por outro lado, modificou-a um pouco, tornou-
se mais interrogativo e multiplicou as críticas sobre algumas proposições de
Marx, de Engels e de Labriola, sem falar de sua interpretação de O Capital e
da teoria marxista do valor, que não é, segundo ele, propriamente uma teoria
do valor. Essta é a primeira fase da discussão, na qual se coloca também em
questão a filosofia geral de Marx, sua concepção do mundo ou de sua
“metafísica”, mas somente de maneira indireta, e se precisa que a questão não

403
está aí, pois o que se discute é a concepção da história. A distinção bem nítida
dessas duas questões é encontrada tanto em Gentile como em Croce. No caso
deste último, ela não surpreende, já que, como vimos, o materialismo histórico,
simples cânoneempírico para a pesquisa, não é uma filosofia da história e seu
nome é uma simples maneira de falar. Marx é realmente materialista, mas, em
resumo, isso é um assunto privado, tão negligenciável quanto a crença
religiosa de um físico. No caso de Gentile, em que todo seu esforço vai consistir
em colocar em evidência a filosofia de Marx em seus diferentes níveis, essa
separação nítida é absolutamente surpreendente, mas é um fato. Ele sus­
tentará, em seu prefácio, que se pode discutir a concepção da história de Marx
sem a intervenção de sua filosofia geral (pag.3 e segs.). Portanto, somente em
um segundo momento, Gentile começa a apresentar a Weltanschauung de
Marx. Ele o faz a partir de uma análise, completamente discutível talvez, mas
certamente fascinante, das Teses sobre Feuerbach, de K. Marx, que Engels
havia publicado como apêndice a L. Feuerbach e o fim da Filosofia clássica
alemã, filosofia chamada por ele de “filosofia da práxis”. Por isso, somos
levados de volta, para compreender este segundo momento da discussão sobre
o marxismo, ao terceiro ensaio de Labriola: Por falar de socialismo e de
filosofia. Os dois primeiros foram consagrados à concepção materialista da
história, o terceiro pretende essencialmente resgatar e elaborar a filosofia geral
que é imanente ao materialismo histórico, que existe implicitamente nele,
assim como o universal existe no particular e do qual Labriola sublinha a
originalidade e a independência com relação às filosofias anteriores. Existem
também dois momentos em Labriola e uma passagem do particular (a história)
para o universal (a concepção do mundo), porém nota-se, pela maneira que ele
tem de colocar o problema da filosofia do marxismo em termos de imanência,
que a distinção dos domínios não é absolutamente uma separação. Labriola,
portanto, precede Gentile nessa busca da filosofia de Marx, e sua designação
como filosofia da práxis é de Labriola. Suas conclusões sobre o valor e a
originalidade dessa filosofia do marxismo são, aliás, totalmente opostas. Para
Labriola, é uma filosofia nova que responde às exigências da cultura e da
história moderna; para Gentile, o que ela tem de valioso vem do idealismo, mas
ela se autodestrói de fato pela contradição intransponível entre sua forma
idealista e seu conteúdo materialista. Apesar desses julgamentos muito dife­
rentes, paradoxalmente, pode-se sem dúvida afirmar que G. Gentile, mais do
que A. Labriola, foi o fundador da tradição marxista italiana da filosofia da
práxis. Pode-se também pensar que por motivos muito diferentes, o caminho
seguido por eles foi o mesmo e que, nos dois casos, se trata de uma reação ao
ascetismo filosófico que caracteriza a interpretação de Croce do marxismo: não
chega a ser nem mesmo um método, diz Croce, mas um simples cânone
empírico para a pesquisa histórica. Quanto a Gentile, a leitura de sua corres­
pondência com Croce durante o ano de 1897 permite afirmar sem contestação
que ele descobriu, primeiro, que Croce não leu corretamente Labriola e que,
em particular, ele não levou em conta seu conceito central, o da necessidade
histórica imanente do processo da história. Trata-se, no entanto, de um

404
conceito filosófico. Portanto, o materialismo histórico é realmente uma teoria,
uma filosofia da história. A recusa de sua tese da parte de B. Croce e os
argumentos que ele lhe opõe —Marx é um revolucionário, preocupado em uma
crítica concreta, não tem uma cabeça filosófica —o obrigam a aprofundar sua
investigação, a estudar a formação intelectual de Marx, a pôr em evidência tudo
que ele deve a Hegel e, finalmente, a resconstruir a “metafísica” de Marx. Croce
saiu-se bem, ainda assim, inventando a tese do jovem Marx: realmente esse
Marx filósofo existiu, antes de 1848, porém o Marx da maturidade critica as
condições econômicas da sociedade moderna, analisa a história, faz política e
não se ocupa mais com filosofia. Para Labriola, as coisas são menos evidentes,
mas pode-se pensar que, como marxista, ele não se entusiasmou pela recusa
crociana de conceder ao materialismo histórico todo seu alcance teórico e ao
marxismo todo seu valçr filosófico. Seu antidogmatismo tornou-o desconfiado
a respeito dos sistemas e daquilo que ele chamou de hiperfilosofia. Mas a boa
filosofia expulsa a ruim: ele é an ti positivista. Depois da publicação por Croce
de Pela interpretação e a crítica de alguns conceitos do marxismo, ele
censurou Croce, que ficou absolutamente estupefato, por não ter levado em
consideração as teses desenvolvidas por Gentile em seu primeiro ensaio {La
filosofia di Marx, Sansoni, pág. 218). Essa reação explica bem o gosto de
Labriola pelo conceito teórico e autoriza a pensar que, ao escrever seu terceiro
ensaio não era somente às questões de Sorel que respondia, mas que,
indiretamente, dialogava com seu amigo Croce. A filosofia da práxis foi a
resposta “ao simples cânone de interpretação” de Croce.
São, portanto, três séries de ensaios entrecruzados —para não falar aqui
de G.Sorel cujo papel parece de menor importância até “a crise do marxismo”.
E esse entrelaçamento é o de percursos que são intelectuais, mas também
políticos. Quando Gentile interviu na discussão, resultou em efeitos precisos
de distanciamento e esclarecimento nas relações complexas entre Croce e
Labriola. Os argumentos de Gentile, que concernem em particular ao pensa­
mento real de Labriola e seu conceito muito seguro da necessidade histórica,
tiveram uma grande força. Apoiado em seu princípio de que não se deve ater-se
à palha das palavras, mas à substância de um pensamento, e também não ao
que um autor pensa dele, mas ao que ele faz verdadeiramente, Croce encon­
trará argumentos apoiando-se sobre o caráter real da atividade de Marx e de
Engels, que lhe permitirão manter sua posição: o materialismo histórico não é
uma filosofia da história e o socialismo não é uma utopia. Porém, ele estava
abalado e, particularmente, descobriu progressivamente a profundidade das
divergências que o opunham a Labriola. Gentile aprofundou a cunha; ele não
perdeu nenhuma ocasião de reforçar a distância, primeiro com precaução,
depois com resolução. E quando as dificuldades sobrevieram com as críticas
de Croce à teoria marxista do valor e a O Capital e a nascente “crise do
marxismo", ele não fez nada, é o mínimo que se pode dizer por antífrase, para
remover e suprimir os atritos psicológicos que aparecem sempre nessas
circunstâncias. Progressivamente, de mês a mês e de carta em carta, assistiu-se
à tomada de consciência de Croce. Em fevereiro de 1897, confiou a Gentile:

405
"Há algo de intencional na sua forma, [de seu primeiro ansaio, J.T.] Eu quis
acentuar o acordo; e, sem calar a divergência [entre ele e Labriola], colocá-la,
por assim dizer, em segundo plano” (/I filosofia de Marx, pág. 187). Em janeiro
de 1898, as coisas ficaram mais claras: “Creio que você estava certo ao
identificar algumas divergências importantes entre a maneira de pensar do
Professor Labriola e a minha. Mas sou de tal modo reconhecido a Labriola pela
influência salutar que exerceu sobre meus estudos, aprendi tanto com ele, que
quase não percebi durante muito tempo, a existência dessas divergências,
completamente ocupado, como estava, em afirmar as semelhanças...” (ibidem,
pág. 209).
O outro aspecto desse relacionamento triangular diz respeito às posições
políticas. Subjetivamente falando, Labriola é marxista e socialista, Gentile
parece hostil ao marxismo e ao socialismo, e Croce tem simpatia por um e por
outro. Do materialismo histórico, ele dirá que não quer jogar fora o bebê com
a água do banho. Está consciente daquilo que lhe deve: não somente o sentido
da realidade social e de suas lutas e a oportunidade de elaborar este ou aquele
conceito de sua filosofia - como esse da autonomia do momento do econômico
ou da utilidade —mas, mais fundamentalmente, seu despertar para o gosto da
especulação filosófica. Antes de rejeitar sem o compreender os intelectuais
deveriam fazer como ele: aperfeiçoar-se por intermédio de seu contato. Quanto
ao socialismo, afirma que, para não se basear sobre uma ciência no sentido
próprio da palavra (uma filosofia da história), ele não tem para tanto um status
de utopia. E a única solução para os conflitos da sociedade moderna, diz ele,
e sua posssibilidade real repousa sobre uma análise muito concreta das
condições econômicas e das forças sociais existentes. Porém, é claro, não existe
nenhum automatismo no processo da história e é preciso, portanto, que os
homens desejosos e ativos, movidos por seus interesses e sentimentos éticos,
efetuem as potencialidades. Uma posição político-intelectual complexa, portan­
to, em que sua simpatia pelo socialismo e pelo marxismo tem de alguma forma,
como condição intelectual, uma interpretação antidogmática e não teórica
(filosófica) do materialismo histórico. Gentile, sem dúvida, está muito cons­
ciente disso: para afastar Croce do marxismo e do socialismo, foi preciso
demonstrar-lhe que o materialismo histórico não era aquilo que ele julgava ser,
mas sim uma filosofia da história, com um conceito da necessidade histórica
que Croce não poderia aceitar e uma filosofia simples cuja forma idealista (o
conceito de práxis ou de atividade) fora destruída pelo conteúdo materialista
que Marx julgou ser bom para lhe dar. Labriola, por seu lado, pensou ter
demonstrado em seus dois primeiros ensaios que o materialismo histórico é a
consciência do automovimento necessário inerente à sociedade moderna, de
fato, de suas contradições e de suas lutas, movimento que a leva ao socialismo
assim como a seu termo e a sua solução imanente. Pensou ter em mãos um
conceito da necessidade elaborada de maneira crítica a partir da experiência
histórica contemporânea, que sem dúvida não tem nada a ver com os desígnios
da Providência nem com a astúcia da Razão já que é imanente ao curso das
coisas, empiricamente constatável e racionalmente concebida, mas que não

406
deixa de ser o fundamento teórico do socialismo. A crise do marxismo que
surgirá será justamente uma crise do conceito da necessidade. Daí seu
interesse pelo primeiro ensaio de Gentile, daí sua censura a Croce por não se
ter dado conta do trabalho de Gentile, daí também o espanto de Croce que
desejava simpatizar com o socialismo, mas com a condição de que se desem­
baraçasse da necessidade metafísica. Em resumo, uma situação infinitamente
paradoxal, em que a história, para não ser o lugar em que a Razão usa de
astúcia, não parece menos urdida de uma ironia objetiva. Ela não poupará o
próprio Gentile, cujas intenções eram desalojar Croce de sua posição de
compromisso- O Capital, de Marx, não é ciência econômica, que é preciso ser
procurada em outro lugar, e a teoria marxista do valor não é teoria científica
e geral do valor, mas isso não quer dizer nada, e é preciso, conseqüentemente,
não se desembaraçar dela, porém determinar a natureza daquilo que Marx
realmente fez. Ora, o que ele fez não é incompatível, contrariamente ao que
diz Labriola, com os verdadeiros princípios da economia pura. Isso conduzirá
Gentile a posições de franca crítica a respeito do marxismo, capaz de convencer
os extraviados de que se enganaram; não deixará, entretanto, de escrever dois
belíssimos ensaios sobre a filosofia de Marx, que Lênin assinalará como o que
se fez de melhor sobre a questão fora do campo marxista, que muitos, ao que
parece, lêem, esquecendo que trazem uma crítica que se diz destruidora e
retendo em si principalmente que os conceitos filosóficos de Marx têm uma
singular profundidade — que pena ele ter escrito apenas fragmentos ou
aforismos! como dizia Croce: um texto para refutar Marx e ensinar, seus
partidários o que é a verdadeira filosofia, isto é, o idealismo, mas sente-se a
grande admiração de seu autor por seu adversário e a incitação a pensar que
recebeu dele o futuro teórico do ato puro, transformado, sem querer é claro,
em um dos pais fundadores da filosofia da práxis e do “marxismo italiano”.
Se procurarmos agora, para chegar ao essencial, qual é a raiz profunda
do desacordo entre Gentile e Croce sobre o materialismo histórico, poderemos
responder que ela se encontra em sua visão oposta das relações entre Marx e
Hegel. Nós vimos que, segundo Croce, o materialismo histórico, além de todas
as semelhanças exteriores e das filiações aistóricas superficiais, não tem nada
a ver com o hegelianismo. Gentile não o compreende dessa maneira; para ele
Marx é um hegeliano; em ruptura com seu mestre, sem dúvida, sobre o que é
a própria essência da realidade em processo, mas que acredita, apesar dessa
oposição, poder pedir emprestada a Hegej sua concepção da forma deste
processo, ou seja, a dialética. A oposição Marx/Hegel se situa no nível do
conteúdo, mas a forma é a mesma, e é essa forma que se deve estudar, se se
quiser responder corretamente à questão: o materialismo histórico é ou não
uma filosofia da história? É preciso estudá-la fazendo por uns tempos a
abstração do conteúdo; foi o que Croce não fez e foi o que o extraviou. O que
reteve sua atenção foi o que ele chamou de “o realismo” da nova concepção,
na qual ele vê também seu caráter antiutópico. Marx e Engels não se endere­
çam à deusa Justiça, não invocam princípios morais aos quais a história se
deveria conformar; deram férias à Providência divina e a seu substituto

407
especulativo, a Razão; estudaram prosaicamente as estruturas econômicas
sucessivas da sociedade e as articulações sociais que delas resultam; a cada
etapa, identificaram forças realmente existentes ou em vias de formação; daí o
realismo e o caráter antiutópico da doutrina que os opõe aos socialismos
anteriores. E quando Croce se recusa a considerar o materialismo histórico
como uma filosofia da história, é de modo manisfesto porque encontra aí a
recusa de fazer intervir, a título de princípio explicativo, potências teológicas
ou metafísicas transcendentes. Antimetafísica significa, para Croce, antitrans-
cendente. Foi, portanto, referindo-se ao conteúdo do materialismo histórico
que acreditou poder concluir que ele não é uma filosofia da história. E, como
para Croce a “matéria” dos materialistas é, assim como Deus ou a Razão, um
princípio transcendente, foi de maneira totalmente natural que foi conduzido
a afirmar que o materialismo histórico, apesar de seu nome, não é uma
metafísica materialista.
Mas, diz Gentile, se se quer determinar a natureza, o caráter da doutrina,
é preciso considerar sua forma, independentemente de seu conteúdo. Ora, a
esse respeito, ela pretende ser, em Marx e Engels assim como Labriola, uma
determinação científica (ou filosófica) do curso da história em sua totalidade,
da história a vir e não somente da história passada. E é, portanto, na medida
em que ela se apresenta como tal, que ela pode afirmar que com esse
fundamento teórico (científico ou filosófico), o socialismo não é mais uma
utopia mas ciência. Essa determinação “científica” do curso inteiro da história
supõe um conhecimento do substrato ou da própria essência de toda a história
que Marx descobre nas relações econômicas da sociedade ou nas relações
sociais da produção material, a qual ele pode atribuir todo o resto que dela
emana, as ideologias em particular; ela supõe um desenvolvimento necessário
da história, cujo ritmo e final são imanentes a esse substrato ou a essa essência
da história, que é a produção material sócio-economicamente estruturada; esse
ritmo é o de um desenvolvimento por antíteses em que as contradições devem
finalmente ser resolvidas; esse final é o comunismo como a solução necessária
das contradições: há necessariamente uma solução e apenas uma, sendo dado
esse substrato econômico da história: a socialização dos meios de produção.
Essa é a forma científica (teórica ou filosófica: Gentile fala de "ciência” no
sentido em que os alemães, de Fichte a Hegel, falam de Wissenschaft) do
materialismo histórico que obriga a falar, em seu caso, de filosofia da história,
mesmo se essa determinação científica do curso necessário da história tiver,
em outro lugar, um conteúdo material (econômico), pelo qual essa doutrina se
opõe às filosofias da história anteriores. Ora, é evidente, para quem conhece a
história da filosofia, que essa forma científica é a dialética, e que Marx a pede
emprestada a Hegel.
Essa forma enquanto tal, Gentile, que, diferentemente de Croce, é um
filósofo hegeliano, julga-a inatacável. Dentro dessa perspectiva, ele recusa
um certo número de críticas endereçadas a Marx e por meio das quais se
pensa colocá-lo em contradição consigo mesmo. Dessa maneira, dir-se-á que
a realização do socialismo supõe a ação voluntária dos homens e de suas

408
motivações éticas; portanto, o materialismo histórico se contradiz formal­
mente, já que a vitória do socialismo implica esses fatores éticos dos quais
Marx nega o valor autônomo. Mas, na verdade, diz Gentile —que por sua vez
afirma também essa autonomia dos fatores éticos Marx não se contradiz
de forma alguma, pois para ele o substrato econômico engendra necessaria­
mente as ideologias éticas e políticas que lhe convêm. Marx e Labriola, dirá
ele - para tirar Croce de sua interpretação ilusória - , não identificam apenas
dentro da sociedade atual forças existentes, que podem, se quiserem, realizar
uma solução possível, mas revelam também uma necessidade imanente que
conduz fatalmente ao comunismo, porque essas formas não existem apenas,
elas agem necessariamente. 0 querer dos homens e as ideologias que os
animam fazem necessariamente parte do processo dialético imanente. Não é
por outra razão que Gentile confunde o materialismo histórico com uma
doutrina fatalista ou determinista da história. Quando retorna em seu
segundo ensaio sobre essa questão, armado dessa vez do conceito de praxis
- que Marx pediu emprestado a Hegel e que se faz um com a forma dialética
—, será para explicar que a necessidade imanente que é tratada no materia­
lismo histórico - e que provém igualmente do hegelianismo - não tem nada
a ver nem com o fatalismo, nem mesmo com o determinismo: “Ora, a
necessidade própria das próprias coisas, a necessidade imanente na história,
não é mais fatalismo, assim como ela não é mais verdadeiramente determi­
nismo. O fatalismo supõe o destino superior dos homens; enquanto são os
próprios homens (não os homens abstratos, mas os homens concretos,
sociais) que fazem a história; e não existe outra energia fora da práxis que é
ato deles. A sociedade, certamente, faz pressão sobre a ação deles e lhe dá
uma direção; mas a própria sociedade é produto da ação deles” (A filosofia
de Marx, pág.116). Essa necessidade imanente, em compensação, implica um
conceito bem determinado da finalidade. O comunismo como fim, como final
do desenvolvimento, é imanente - potencialmente inerente - às contradições
da sociedade atual. O autodesenvolvimento da sociedade ou da práxis social
tende para o comunismo como seu fim. Trata-se, nesse caso, não de uma
"regulação exterior”, mas de uma “finalidade interna constitutiva”, que
resulta da própria natureza da práxis (pag.92). O fim de uma coisa é aquilo
para o qual ela tende a se tornar, devido à sua própria natureza. Nem
desígnio de uma potência metafísica transcendental, nem mais também a
idéia insípida —eliminada pela teoria das ideologias —de que a história se
molda às vontades e aos programas humanos, ainda que as forças humanas
sejam as únicas ativas. Os homens são vividos pela história, dizia Labriola, e
o materialismo histórico “naturaliza e objetiva” o processo histórico, em
oposição a todo “ideologismo”.
Pode-se perguntar de onde vem essa capacidade de Gentile de dar ao
marxismo essa apresentação filosoficamente aceitável, que consiste em todo o
interesse de seu livro. De onde vem essa acuidade filosófica, que lhe permite
resgatar os conceitos teóricos imanentes ao materialismo histórico? A resposta
não tem nenhuma dúvida. Se Marx é para Gentile um hegeliano dissidente,

409
Gentile é por sua vez um filósofo neo-hegeliano que tem um conhecimento
profundo da obra do mestre. Vai, portanto, muitas vezes ao essencial, mesmo
quando dá ao pensamento de Marx um aspecto especulativo que este não tem
- sobre esse ponto Croce é o antídoto - cada vez que se trata de apreender
dentro do marxismo um conceito ou um princípio de inteligibilidade de
derivação hegeliana. É, à luz dessa dupla observação que se deve ler seu
comentário das teses de Marx sobre Feuerbach, por intermédio de quem
pretende reconstruir “a metafísica” marxista - metafísica significando aqui
fundamentalmente apenas filosofia, isto é, teoria do conhecer e do ser (pág,
142) —para identificar seus méritos e limites.
O conceito central dessa nova metafísica é o da práxis, a partir do qual
Marx pretende corrigir profundamente o materialismo sensualista e intuitivo
de seu mestre Feuerbach. Ele tem sua origem na filosofia idealista de Hegel,
que concebe a realidade como espírito e o espírito como produção, ou na de
Vico, para quem o verdadeiro é o que é fato. Resulta de uma nova concepção
do sujeito e do objeto em que esses não são colocados abstratamente um em
face do outro, mas apreendidos concretamente em sua relação mútua necessá­
ria, como formando um organismo, e a realidade, conseqüentemente, é com­
preendida subjetivamente, como produto da práxis. A tese I pretende portanto,
pôr fim à concepção “objetivista” do objeto e à concepção “intuitiva” do sujeito
(pág. 72 e segs.).
Mas o conceito da práxis conduz igualmente a modificar o antigo
materialismo sobre um ponto decisivo, o da relação do homem com o meio
social (as “circunstâncias”). As circunstâncias formam o homem, mas é o
homem que forma as circunstâncias, diz a tese 111. A práxis dos indivíduos cria
o objeto (a sociedade), mas essa práxis se reverte (rovesciamento delia prassi)
e transforma os indivíduos e a atividade deles. O sujeito (princípio) coloca o
objeto (sociedade); mas esse objeto torna-se causa (princípio) que transforma
o sujeito (efeito). A inversão da práxis é a ação de retorno da práxis transfor­
mada objeto sobre o sujeito dessa práxis. 0 que quer dizer que dentro do
organismo concreto que formam o sujeito e o objeto cuja relação é percebida
como práxis, o sujeito se forma e se desenvolve à medida que ele cria o objeto.
Tem-se, portanto, um "desenvolvimento progressivo paralelo dos dois termos.
Todavia a, raiz, a causa permanente desse desenvolvimento se encontra na
atividade, no fazer do sujeito, que forma a si mesmo, formando o objeto:
crescido e concrescido" (pág.77). A idéia existe realmente em Marx, mas a
expressão de "práxis invertida”, de "práxis que se inverte” ou de “inversão da
práxis”, por meio da qual Gentile a exprime, resulta de uma tradução incorreta
da versão de Engels da tese 1III (umwalzende práxis). Só será descoberto o
erro de tradução setenta anos mais tarde e existirá, portanto, constantemente,
essa questão de “inversão da práxis” no “ marxismo italiano” (de Mondolfo a
Gramsci).
O conceito de práxis, enfim, conduziria Marx a corrigir o antigo materia­
lismo sobre um outro ponto: sua concepção da sociedade e seu anti-his-
toricismo. A concepção naturalista de Feuerbach, que concebe o homem como

410
indivíduo isolado e a essência humana como uma abstração inerente ao
indivíduo isolado, é substituída por Marx pela idéia de um indivíduo humano,
social por natureza, dentro da tradição aristotélica do animal político, a de uma
esência humana concebida como o conjunto das relações sociais e enfim a de
uma historicidade do homem, de sua atividade, de seus produtos e de suas
relações sociais (págs. 87 e segs.).
Como se vê por este resumo esquemático, à interpretação de Gentile das
teses sobre Feuerbach não falta força. O que pode ser censurado, entre outras
coisas, é o fato de apresentar uma interpretação idealista do conceito de práxis
em que fazer significa no final das constas pensar (págs. 79-80). O conceito de
práxis é, portanto, para ele, um conceito idealista por natureza. Quanto ao
materialismo, ele é por natureza igualmente sensualista. Não poderia ultrapassar
o horizonte do naturalismo e do mecanismo. Logo, ele é incapaz de pensar sobre
as relações sociais, “a vida ética”, que têm sua origem no pensamento humano.
O materialismo nominalista de Hobbes é o modelo intransponível de todo
materialismo. O indivíduo sensível é a única realidade. Daí resulta que o
materialismo está condenado a pensar sobre a vida social como resultante
“mecanicamente" de um contrato. Marx por sua vez acreditou poder combinar
em sua nova metafísica uma forma idealista (a práxis) e um conteúdo materialista
(o homem reduzido aos sentidos e às necessidades físicas do indivíduo). Isso era
cair em uma contradição interna, profunda e sem remédio (pág. 161).

• La fílosofia di Marx, 1! edição. Pisa, 1899; 5S edição, revista e aumentada, obtida por Vito
A. Belazza, Biblioteca Sansoni, Firenze, 1974; L 'esprit, la verité et Vhistoire, Textos escolhidos,
Paris, 1962; L ’esprit, acte pur, Paris, Alcan, 1925.

► B.Croce, M a té ria lism e h isto r iq u e e t é c o n o m te m arx iste, tradução de A. Bonnet, Giard &
Brière, 1901; reeditado pelas Editions Slatkine, Cenebra, 1981; A. Labriola, Essa is sur la
conception matérialiste de Vhistoire, tradução de A. Bonnet, Giard & Brière, 1892; reeditado
em 1970 por Gordon & Breach; Idem, Socialisme et philosophie (Lettres à G. Streí), tradução
de A.Bonnet, Giard & Brière, 1899.

J a c q u e s TEXIER

GOBINEAU, Joseph-Arthur, Conde de, 1816-1882


Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, 1853-1855

Curioso destino o do Essai sur Vinégalité des races humaines (Ensaio


sobre a desigualdade das raças humanas)! Esse livro que Gobineau considerava

411
a “base" de toda sua obra (e com o qual contava para assegurar sua reputação
de “sábio") deixou a comunidade científica indiferente ou silenciosa e, para os
primeiros “gobinistas” (R. Wagner e sua comitiva, por exemplo), ele tinha menos
valor do que La Renaissance ou o Nouvelles asiatiques. O sucesso posterior
(tardio, além disso) das teses do Essai dentro dos círculos pangermanistas ou
para certos ideólogos do III Reich só lhe foi possível ao preço de uma deformação
radical do projeto de Gobineau. Ele era “o menos anti-semita dos homens” (Léon
Poliakov): “As idéias de Gobineau (...) têm muito pouca coisa em comum com
sua lenda; sua hierarquia racial, principalmente, deveria ter sido, em boa lógica,
entregue às fogueiras do III Reich” (Poliakov, 1971, pág. 240). Longe de propor
um programa de restauração da pureza da raça "ariana”, Gobineau pretendia
estabelecer “cientificamente” a fatal necessidade da “mistura" das raças e da
unificação da espécie humana: “a espécie branca”, escreveu ele na conclusão de
seu livro, “considerada abstratamente, desapareceu daqui em diante da face da
terra... A parte de sangue ariano, já subdividida tantas vezes, que existe ainda em
nossos países, e que sozinha sustenta o edifício de nossa sociedade, caminha a
cada dia mais em direção às formas extremas de sua absorção. Esse resultado
obtido abrirá a era da unidade” (OC, tomo I, pág. 1163). Aliás, Gobineau era
profundamente hostil às paixões modernas (nacionalismo, culto do Estado) que
alimentaram o nazismo, porque via nelas o correlato do espírito democrático e
revolucionário.
Resta, contudo, dizer, como bem o observou Cassirer (1946), que,
retrospectivamente, Gobineau pode também aparecer como aquele que, em
primeiro lugar, quis estabelecer firmemente a “nova religião”, o “culto da
raça”, arruinando todos os valores que lhe poderiam opor obstáculo: “A
religião cristã é ineficaz e impotente, o budismo é moralmente pervertido, o
patriotismo é uma monstruosidade estúpida, o direito e a justiça são abstrações
puras, a arte, uma sedutora e prostituta, a compaixão pelos oprimidos e a
piedade pelos pobres, ilusões sentimentais: a lista está completa. É o triunfo
do novo princípio" (Cassirer, 1946, pág. 244).
O leitor de Gobineau deve, portanto, se resguardar de dois erros simétri­
cos. O primeiro seria desconhecer a significação que o Essai teve para seu
autor —e a posição singular desse livro estranho na obra rica e variada que
não se reduz de maneira nenhuma à fundação do “racismo”; o erro inverso
consistiria em se interditar toda interrogação sobre o lugar de Gobineau dentro
da gênese da ideologia e do totalitarismo modernos.

Da critica da Revolução à etnologia “cientifica"

A tese do Essai pode ser resumida em algumas palavras: mesmo que


tivesse existido em sua origem uma única espécie humana, essa se dividiu,
irremediavelmente, em seguida em raças distintas e desiguais (negra, amarela
e branca) dotadas de caracteres permanentes, hereditariamente transmitidos;
desse fato, as influências respectivas desses traços “inatos” e principalmente
de sua combinação devido à “mistura” das raças constitui a base permanente

412
da história humana, surge a explicação última do fenômeno “mais surpreen­
dente e ao mesmo tempo mais obscuro” da história: "a queda das civilizações”
(OC, tomo I, pág. 141). No fim da investigação, a lei universal da história
humana (a mistura das raças) adquire um sentido: a “marcha para a unidade”
se confunde com o desaparecimento progressivo da elite humana.
Como Léon Poliakov mostra bem (1971, tomo II, capítulo IV, pág,
219-262), a maior parte das idéias de Gobineau são, no momento em que
aparece o Essai (1853-1855), muito pouco originais; algumas delas serão
encontradas em outros autores, os mais diversos, até o fim do século XIX.
Encontram-se no Essai as teses de Boulainvilliers sobre a origem germâ­
nica da nobreza francesa, cuja supremacia sobre o terceiro estado (de origem
galo-romana) teria sido baseada sobre o direito de conquista. As especulações
sobre a diversidade das raças (a espécie humana foi originariamente uma ou
diversas?) e sobre o peso dos determinismos "biológicos” ou hereditários no
comportamento humano fazem parte dos lugares-comuns da ideologia para-
científica, das Luzes no fim do século XIX, até e inclusive no caso de autores
que não são "reacionários”, como Michelet e Zola (cf. Jean Borie, Mythologies
de 1’hérédité au XIX*siècle, 1981); a principal “fonte” do Essai teria sido assim,
segundo Jean Boissel, o autor saint-simoniano Victor Courtet de l’Isle, que em
La science politique fondée sur la Science de 1’h omme (1837) havia querido
demonstrar a importância causai da mistura dos sangues dentro da história da
humanidade.
Entretanto, se o Essai se apresenta como a síntese da “etnologia”
contemporânea e mistura as referências mais variadas, ele lhes confere uma
significação nova, submetendo-os a uma lei de evolução única que mostra
como a marcha da espécie humana em direção à unidade (tema de origem
“progressista”) se reverte em decadência. Assim são possíveis duas leituras do
Essai sur Vinégalité des races humaines: pode-se ver nele, por um lado, uma
crítica radical dos valores políticos do século XIX burguês ou democrático, feita
do ponto de vista de um inimigo “aristocrático” da Revolução Francesa, ou, ao
contrário, insistir sobre a pretensão “científica” e não-polêmica do autor, cuja
obra devia segundo ele “fazer a história entrar para a família das ciências
naturais” (OC, tomo I, pág. 1152). As duas leituras aliás foram autorizadas pelo
próprio Gobineau que, mesmo insistindo a maioria das vezes sobre o caráter
científico de seus trabalhos, reconhecia também, aqui ou acolá que eles
exprimiam primeiro suas escolhas mais profundas e antigas e, em primeiríssi­
mo lugar, seu ódio pela democracia e pela Revolução.
Entre as críticas do pensamento revolucionário, Gobineau apresenta uma
certa originalidade. Ele se distingue dos teóricos da Restauração por seu culto
bastante moderno da liberdade individual, ele se opõe a Burke por sua recusa
em basear sobre a história ou a tradição o valor das instituições humanas (pois
essas são apenas a manifestação das relações de equilíbrio ou de desequilíbrio
entre as raças); ele se afasta, enfim, da corrente liberal por sua recusa em
reconher na liberdade dos modernos a promoção da individualidade e, princi­
palmente, por sua hostilidade com relação ao conjunto dos “dogmas” em 1789.

413
Da tradição cristã, Gobineau conserva a idéia de que há alguma coisa
comum a todos os homens, qualquer que seja seu nascimento (a consciência
e a vida moral); o que ele recusa é a tradução política secularizada que o
pensamento político moderno dá, indissoluvelmente individualista e igualitá­
ria: “Essa vida moral, colocada no fundo da consciência de cada indivíduo de
nossa espécie, será capaz de se dilatar infinitamente? Todos os homens terão,
em igual grau, o poder ilimitado de progredir em seu desenvolvimento
intelectual? Dito de outra maneira, as diferentes raças humanas serão dotadas
do poder de se igualar uma às outras? Essa questão é, no fundo, a da
perfectibilidade indefinida da espécie e da igualdade das raças. Sobre esses
dois pontos, eu respondo não” (OC, 1 1, págs. 288-289).
O Essai repousa deste modo primeiro sobre a crítica da idéia de progres­
so e da concepção do homem defendida pela filosofia das Luzes. Não se trata
somente de dizer que o progresso das ciências, simples acumulação de
conhecimentos, não tem nada de comum com um aperfeiçoamento moral da
humanidade (tema, no final das contas, herdada de Rousseau...) mas, também,
afirmando a permanência dos caracteres “raciais” hereditários, de negar toda
possiblidade de uma melhora substancial da humanidade, quer ele seja o fruto
da liberdade humana ou da necessidade histórica. O primeiro resultado da
transformação do postulado do determinismo racial em único princípio de
explicação da história universal foi, com efeito, a negação radical da idéia de
liberdade e de responsabilidade humanas: “A existência de uma sociedade
sendo, em primeira instância, um efeito, que não depende do homem produzir
nem impedir, não traz para ele nenhum resultado pelo qual seja responsável.
Ela não comporta, portanto, nenhuma moralidade” (OC, tomo I, pág. 1150). A
filosofia militante das Luzes ou da Revolução se encontra dessa maneira levada
outra vez a uma ilusão subjetiva, já que, no caso dos próprios grandes homens,
“a potência histórica do homem não constitui uma causa”; “não é mais um fim,
é algumas vezes um meio transitório; na maioria das vezes só se poderia
considerá-la um embelezamento” (Ibidem, pág. 1146). Gobineau tinha perfei-
tamente consciência de retomar assim o fundo comum das filosofias racionalis-
tas da história e se confessava ele próprio “hegeliano”. O que é, sem dúvida,
nesse caso, o mais notável é a maneira pela qual ele pretende retornar a esse
racionalismo (e, em seu caso, um cientificismo “materialista”) contra o otimis­
mo histórico do século XIX.
A idéia de uma comunidade humana originária, destruída e depois
reconstruída ao longo da história universal (segundo o esquema da queda e
da salvação), é substituída por Gobineau pela de uma diversidade hierárqui­
ca (as três raças fundamentais) lentamente minada pela marcha fatal para a
unidade da espécie humana. Esse processo lhe parece mais trágico pelo fato
de ser não somente fatal (as “raças” são mudadas por duas tendências
contraditórias para a repulsão e para a atração), mas também, de uma certa
forma, subjetivamente necessária, pois, sem ele, certas virtualidades huma­
nas entre as mais belas não teriam podido desenvolver-se. Se, com efeito, a
raça branca traz em si a busca dos fins mais altos e o culto do espírito, é a

414
raça negra que partilha da sensualidade necessária ao nascimento das artes:
“O gênio artístico, igualmente estranho aos três grandes tipos, só surgiu em
seguida ao himeneu dos brancos com os negros” (OC, tomo 1, pág. 343).
Portanto, em vez de a história começar pela ruptura da unidade, ela se
realiza pela reunião de raças originariamente distintas; em vez de ela
preparar um progresso real, acima da destruição aparente, prepara o fim
daquilo que mais vale, apesar de um progresso passageiro: “Os grandes, com
um só golpe, foram rebaixados e isso é um mal que nada compensa nem
repara” (OC, tomo I, pág. 343).
A mesma relação, aberrante mas complexa, com o pensamento do século
XIX é encontrada em toda a obra. Para um liberal como Constant, o despotismo
do Terror provém da tentativa de restaurar a liberdade dos Antigos (baseada
sobre a participação de todos na soberania) em um mundo próprio ao inteiro
desenvolvimento da liberdade individual. Para o autor do Essai a liberdade
individual, a mais alta criação dos “arianos” helenos ou germanos, está
ameaçada pelo mundo moderno inteiro, do qual a cidade grega “patriótica” foi
uma antecipação adequada, nascida de um compromisso entre as tendências
asiáticas e o “espírito liberal dos arianos” (OC, tomo I, págs. 678-679). Sócrates
é exatamente o herói da consciência moral subjetiva contra a ordem an-
tiindividualista da cidade, mas foi essa ordem que representou antecipada­
mente o futuro. Da mesma maneira, a reaparição da liberdade entre os
Germânicos foi fatalmente minada pelas “misturas” posteriores: no mundo
germânico, “o homem é tudo, e a nação, pouca coisa. Nesse caso percebe-se o
indivíduo antes de se ver a massa associada” (OC, 11, pág. 982).
Portanto, é fácil compreender como, atrás do amontoado das referências
“científicas”, o Essai se tornou um longo panfleto, às vezes não despojado de
eloqüência e mesmo de beleza, contra o mundo moderno. A crítica do budismo
(religião dos escravos em revolta contra a ordem ariana das castas) (livro III,
capítulo III) visa assim às tradições humanitárias, cristãs ou socialistas. A
pintura do Império Chinês, despótico, igualitário e devotado à busca do
bem-estar material (os "amarelos” se caracterizam por uma inteligência es­
tritamente prática e utilitária) permite a denúncia das escolas socialistas de
Proudhon e Fourier (livro III, capítulo V). Da mesma maneira, se Gobineau
pede emprestadas a Tocquevilie algumas de suas instituições (indo, às vezes,
até à imitação da Démocratie en Amérique), é para submetê-las a um sistema
que nega a totalidade dos princípios democráticos.
O último sentido do Essai repousa sem dúvida sobre a negação de toda
relação entre a aspiração à liberdade e as idéias modernas de igualdade e de
soberania popular. Ele se traduz por uma oscilação característica entre duas
concepções contraditórias. De um lado, efetivamente, a “liberdade” é apenas o
resultado necessário, mas transitório e já desaparecido de um certo equilíbrio
entre as raças humanas; mas ela aparece também, de outro lado, como o sinal
do milagre que representa a sobrevivência, até mesmo no mundo moderno,
dos “filhos do rei” (evocados no belo romance As plêiades) que, entregue a si
mesma, deveria ser aniquilada pela história universal: “Hoje em dia ama-se as

415
grandes unidades, as vastas aglomerações em que as entidades isoladas
desaparecem. É o que se supõe ser o produto da ciência. A cada época, ela
quereria devorar uma verdade que a incomoda. Não é preciso se assustar com
isso. Júpiter escapa sempre à voracidade de Saturno, e o esposo e o filho de
Réa (Cibele), deuses tanto um como o outro, reinam sem se poder entredes-
truir, sobre a majestade do universo” (OC, tomo I, pág. 1174).
Para o leitor de hoje em dia, é o “racismo” de Gobineau que parece mais
escandaloso. A Tocqueville, amigo de Gobineau, que foi um dos primeiros e
dos mais perspicazes leitores do Essai, o que pareceu mais chocante foi a
transposição do determinismo científico ou pseudocientífico para uma metafí­
sica negadora da liberdade humana (cfe. carta de 17 de novembro de 1853, em
Tocqueville, 1959, págs. 202-204). O fatalismo do Essai lhe parecia portador
de uma doutrina de renúncia própria para arruinar o sentido da liberdade, da
qual Gobineau deplorava, aliás, o declínio. Pode-se, dentro da mesma pers­
pectiva, acrescentar a seguinte obsevação: a completa recusa, da parte de
Gobineau, da idéia de liberdade ativa, a redução da atividade humana à posição
de instrumento da necessidade histórica talvez signifiquem que, antes de ser
um adversário do mundo moderno “democrático”, o autor dessa obra seja ele
próprio um produto da ideologia das sociedades contemporâneas. Tocqueville
já havia notado, em Démocratie en Amérique, como a tendência mais profun­
da dos “historiadores que vivem nas sociedades democráticas” era retirar “dos
próprios povos a faculdade de modificar sua própria sorte” e submetê-lo "seja
a uma providência inflexível, seja a uma espécie de fatalidade cega” (Tocque­
ville, 1961, II, pág. 91): o Essai inteiro participa dessa tendência, sem que a
alusão aos “filhos de rei” possa realmente contradizê-la.

Do Ensaio sobre a desigualdade deis raças humanas


às ideologias totalitárias

Por muitos aspectos verifica-se que a obra de Gobineau está muito


afastada das preocupações nacionalistas, imperialistas ou “eugenistas” de
seus pretensos discípulos, que lhe teriam sem dúvida nenhuma causado
horror. O modelo “pré-darwiniano”que era o seu não se conciliava, porém,
com uma interpretação militante: no Essai, não existe nem evolução (as
“raças” são fixas), nem seleção dos melhores (daí ser fatal o rebaixamento
pela mistura). O nazismo, ao contrário, pressupõe a idéia, de origem indi­
vidualista, da luta de todos contra todos, assim como a crença na possibili­
dade de um progresso (Dumont, 1983).
Se o Essai pôde desempenhar um papel na genealogia do totalitarismo
foi somente porque algumas de suas teses foram retomadas dentro de uma
ideologia científica e ativista bastante afastada da sua. Uma vez ocorrido esse
encontro, os temas gobinistas adquiriram um novo alcance, de que seu autor
nem ao menos suspeitava, sem dúvida. A simples referência à ciência positiva
para estabelecer a desigualdade, se se destaca o tema “determinismo" da
idéia de um movimento universal e fatal de decadência, legitima o projeto de

416
uma reconstrução “artificial" da ordem hierárquica {Gobineau, por exem­
plo, considera o sistema indiano de castas uma defesa espontânea da elite
ariana contra a mestiçagem: que seria um método "científico” de re-criação
dessa elite). Do mesmo modo, como bem o mostra Cassirer, o Essai parece
arruinar todos os valores que se pudessem opor ao culto da "Raça”; era, sem
dúvida, para melhor afirmar o único valor do individualismo aristocrático,
que Gobineau não podia descartar a idéia de uma superioridade substancial
e hereditária dos melhores: talvez seja nessa busca de um fundamento
“natural” da liberdade oposto aos princípios de igualdade ou de perfectibili-
dade que se situe seu primeiro erro.

• Essai sur Vinegaliti des races humaines (1853-1855), em Obras completas (Oeuvres
complètes), to m o I, P aris, G allim ard, 1983.

► Je a n B oissel, Gobineau, VOrient et l ’Iran, to m o I, P re fác io e e n sa io d e an álise, P aris,


K lin ck sieck , 1 9 7 3 ; Je a n B orie, Mythologies de Vhérédlté au XIX ‘ siècle, P a ris, G alilée, 1981;
Ja n in e B u e n z o d , La formation de la pensée de Gobineau et / ’ “Essai sur inégalité des races
humaines”, P aris, N izet, 1967; E rn s t C a ssirer, The myth o f the State, Y ale U niversity P re ss,
1946; L o u is D u m o n t, Essai sur Vindividualisme, P aris, Le S eu il, 1983; L éon P oliakov, Le mythe
aryen. P aris, C alm ann-L évy, 1971; Alexis d e T ocqueville, Oeuvres completes. P aris, G allim ard,
to m o 1: De la Démocratie en Amérique (1835-1840), 1961; to m o IX: Correspondance d ’A lexis
de Tocqueville et d ’A rthur de Gobineau (1843-1859), 1859.

Philippe RAYNAUD.

GRAMSCI, Antonio, 1891-1937


Cadernos da prisão

Lançando-se, no dia 8 de fevereiro de 1929, dia seguinte à sua condena­


ção a uma pena de prisão à qual ele não sobreviverá, à redação de Cahiers de
prison (Cadernos da prisão), Antonio Gramsci começa um empreendimento
que ficará inacabado. Minado por suas condições de detenção nos cárceres
fascistas, o diretor do Partido Comunista da Itália deixará uma obra fragmen­
tária, série de notas, de algumas linhas ou de várias páginas, material bruto ou
reflexões aprofundadas no correr dos anos, reagrupadas em torno de dezesseis
temas previamente definidos.

417
Esses temas, de importância desigual, têm um ponto comum: constituem
uma reflexão crítica sobre a conduta, após outubro de 1917, do movimento
comunista na Europa Ocidental; essa conduta levou, em toda parte, ao fracasso
e até mesmo, na Itália, à vitória do fascismo. Na reflexão retrospectiva de
Gramsci retornam os empreendimentos dos quais ele foi o protagonista: a
juventude sardenha, sensível ao drama do Mezzogiorno e das massas campo­
nesas, o movimento dos conselhos de Turim, o “desligamento” da Executiva
do Partido Internacional na época de Lênin e da NEP, a conquista de um PC
Italiano que ele tenta bolchevizar, a luta desigual contra o fascismo. Essa
reflexão pessoal, particularmente rica, alimenta uma interrogação mais geral
sobre o futuro da revolução na Europa Ocidental: já que o movimento se
despadaçou nos anos 20, sobre que bases poderá retomar seu vigor? Não seria
preciso para isso estudar mais atentamente a realidade social e cultural na qual
se enraíza a ação revolucionária e dar ênfase ao que faz a especificidade do
Ocidente europeu face ao Oriente russo?
Os Quaderni (Cadernos) lançam-se também a uma análise original (no
que se refere à III Internacional) das características próprias das sociedades da
Europa Ocidental e da América do Norte, enfatizando o tipo de organização
social e cultural, o tipo de formas de poder que aí se desenvolveram desde as
revoluções "burguesas” (da Reforma à Revolução Francesa). Mas essa análise
- que toma muitas vezes como referência a sociedade francesa, modelo de
hegemonia burguesa - se faz acompanhar de um estudo histórico, cultural e
político do “caso italiano” marcado por “traços próprios”: peso social do
campesinato e da pequena burguesia, papel central da Igreja (Gramsci escreve
logo após o Tratado de Latrão entre o Vaticano e o Estado fascista), ausência
de revolução burguesa e fraqueza do liberalismo.
A revolução fracassada da classe operária ocidental e a ausência de
revolução burguesa na Itália são, portanto, os dois temas que se entrecruzam
permanentemente nos Quardeni (Cadernos). Eles explicam a complexidade -
e às vezes o ecletismo —das referências teóricas e as dificuldades de inter­
pretação que elas levantam. Salientemos as principais.
1) Interrogando-se sobre as razões do fracasso das revoluções operárias
no Ocidente, Gramsci opera uma dupla conduta. Por um lado, permanece fiel
ao esquema geral do modelo leninista da III Internacional, mas, por outro, é
conduzido a desenvolver e enriquecer esse modelo levando em conta carac­
terísticas específicas das sociedades ocidentais.
O caráter profundamente leninista da conduta dos Quaderni é enfatiza­
do desde o princípio. Interrogando-se sobre o papel de Lênin no seio do
marxismo, Gramsci propõe uma comparação com a religião cristã: Lênin foi
para Marx o que São Paulo foi para Cristo. De um lado, a ciência, do outro, a
ação, de um lado, a elaboração da Weltanschauung, do outro, a organização,
a ação, a expansão dessa Weltanschauung.
Portanto, o marxismo só pode ser marxismo-leninismo. Mas, na medida
em que o leninismo foi antes de tudo a fase de realização, de tradução nos
feitos do marxismo, a tarefa dos Quaderni é de propor um enriquecimento do

418
leninismo que lhe permita sobrejupar os obstáculos contra os quais ele tendeu
nos anos 20. Daí o duplo processo de ocidentalizaçõo e de nacionalização do
marxismo (leninismo) conduzido nos Quaderni.
A adaptação do marxismo apresenta-se sob a forma de uma oposição
entre o Oriente (a Rússia) e o Ocidente. Oposição clássica nos debates da Ila.
Internacional (cf. notadamente a discussão sobre a revolução russa de 1905)
que Gramsci desenvolve a partir dos conceitos-chave de hegemonia e de
sociedade civil.
De saída, uma constatação: a da complexidade histórica dos instrumentos
culturais e políticos por meio dos quais as classes dirigentes sucessivas exerce­
ram sua supremacia na Europa Ocidental e que se traduzem pela combinação de
duas esferas, a da sociedade civil, conjunto de órgãos culturais e políticos que
assegura a homogeneidade ideológica de uma formação social com relação ao
sistema de valores da classe fundamental, e a da sociedade política, que com­
preende os órgãos repressores do Estado. Dessa definição decorre uma definição
do Estado ampliada (sociedade civil + sociedade política) compreendendo função
hegemônica e função dominadora, que coloca a questão da conquista do poder
em novos termos. Conquistar o Estado e invertê-lo passa pela hegemonia, a
“direção intelectual e moral", ideológica, sem a qual uma supremacia durável é
impossível. Essa hegemonia sobre um bloco social majoritário (que alcança a
constituição de um novo “bloco histórico”) implica não uma “guerra de movi­
mento” análoga à conduzida em 1917 —em que a questão se limitava, essencial­
mente, à tomada da sociedade política, Estado —, mas uma difícil “guerra de
posições” destinada a apoderar-se das múltiplas “casamatas" da sociedade civil
antes da conquista da sociedade política.
Essa estratégia complexa conservará uma matriz leninista ou estará na
origem de uma conduta gradualista análoga àquela pedida emprestada pela
socialdemocracia da IIa- Internacional? Um debate incisivo se desenrolou na
Itália sobre esse ponto nos anos 60 e 70 (principalmente no momento da
formulação da estratégia de “compromisso histórico” do PCI). Sem entrar
nesse debate, se realçará simplesmente o fato de Gramsci ressaltar que “Lênin
deve ser considerado aquele que lançou as bases da própria teoria da hegemo­
nia, cuja fórmula, porém, ele não teve tempo de aprofundar” (Q, pág. 866).
Além disso, Gramsci lembra que a hegemonia repousa sobre um compromisso
social e econômico entre a classe dirigente e as classes aliadas em termos
análogos aos de Lênin em Duas táticas. Enfim, a hegemonia é concebida como
se devendo combinar com a dominação (“um grupo social é dominante dos
grupos adversos que ele tende a ‘liquidar’ ou a submeter até mesmo pela força
armada, e ele é dirigente dos grupos vizinhos e aliados”); a ditadura do
proletariado sobre seus adversários se faz acompanhar de uma estratégia de
alianças que não questiona nem a supremacia ideológica, nem o princípio
leninista do partido único. Nesse último caso, a polêmica anti-stalinista dos
Quaderni (que prolonga a ruptura de 1926 posterior à condenação por
Gramsci da exclusão de Trotsky) não visa ao principio do monopólio de
direção exercido pelo partido, mas ao risco de desaparecimento do centralismo

419
democrático (mudado em "centralismo burocrático”) por meio do qual se
exerce a interação entre dirigentes e massas e se elaboram os compromissos.
Em outras palavras, é perfeitamente possível isolar da reflexão de
Gramsci uma teoria política do Estado e da ideologia repousando sobre o par
hegemonia/dominação e sociedade civil/sociedade política, assim como tirar
as análises dos Quademi sobre a distinção entre guerra de posições e guerra
de movimento dentro do sentido do gradualismo. Mas essa operação —
conduzida sistematicamente no após-guerra na Itália - , implica a ocultação da
conduta geral, que se situa inteiramente dentro do horizonte da IHa. Inter­
nacional e que, no momento em que ela elabora um marxismo-leninismo
“ocidental”, aproveita para reafirmar a validade total da herança leninista
contra seus desvios stalinistas.
Além da ocidentalização do leninismo, os Quademi propõem uma tradução
nacional. É o objeto das notas sobre Maquiavel, em que essa “nacionalização” é,
por sua vez, teorizada e colocada em prática. Gramsci enfatiza que, na época das
revoluções burguesas passadas, a burguesia só pôde trazê-la fazendo-se classe
nacional, sendo capaz de exercer uma hegemonia sobre as classe populares. Do
mesmo modo, o proletariado só poderá trazê-la se reunir em torno de si as
“classes subalternas”, renunciar a seus interesses corporativos, se fazendo nação
e suscitando um movimento “nacional-popular” que desembocará sobre um
novo bloco histórico. O exemplo político de um movimento nacional-popular
burguês foi dado pelos jacobinos. O leninismo traduziu-o para o proletariado
russo. Na Itália, em que nenhuma revolução burguesa jamais foi conduzida, o
apelo de Maquiavel em O Príncipe permanece sempre atual. Face à fraqueza da
burguesia italiana, realizadora então do Ressurgimento de uma “revolução
passiva”, resta ao proletariado se fazer promotor de uma revolução cujo intelecto
coletivo será o Príncipe moderno: o Partido Leninista.
Esta historicização do partido revolucionário foi para Gramsci a oportu­
nidade de reler Maquiavel, “jacobino precoce", mas também do Ressurgimen­
to, revolução fracassada da qual o Partido Comunista deverá ser o herdeiro.
Ainda aí, os Quademi alimentaram um debate múltiplo: sobre o jacobi-
nismo primeiro, tendo sido o próprio Gramsci nos anos pré-leninistas (1914-
1929) profundamente antijacobino (esse antijacobinismo culminou no momen­
to do conselhismo turinense do Ordine Nuovo), mas também sobre as leituras
do autor de Maquiavel e do Ressurgimento.
2) No seio da concepção gramsciana da hegemonia, o conceito de
ideologia tem um lugar central. Gramsci define-a —diferentemente de Marx e
da teoria do "reflexo” - como "uma concepção do mundo que se manisfesta
implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as
manifestações da vida individual e coletiva” (Q, pág. 1380). A ideologia só tem
importância, só é orgânica, se representa o sistema de valores de uma classe,
se se traduz em norma de conduta prática.
A esse título, a ideologia desempenha um papel motor na evolução das
sociedades. Ela é certamente a emanação da estrutura social, mas principalmente
dispõe de uma autonomia relativa importante (devido notadamente ao papel

420
específico dos intelectuais), que dá muito mais peso ao processo de reação da
ideologia sobre as estruturas sócias. A ideologia é o “cimento” do bloco social
dominante, mas marca também as classes dominadas (impregnando o “folclore”),
ela imprime sua marca ao conjunto das superestruturas políticas, jurídicas,
religiosas, culturais e científicas, irriga o conjunto da sociedade civil.
Uma classe social, portanto, só pode pretender a hegemonia se dispuser
de ideologia própria, orgânica e, principalmente, de uma ideologia cujo nível
mais elaborado (a "filosofia”) possa rivalizar vitoriosamente com as outras
concepções de mundo.
A força do marxismo é justamente ser uma Weltanschauung total, “que
se basta a si própria”. A “filosofia da práxis (definição do marxismo que
Gramsci pede emprestada a Antonio Labriola) contém em si todos os elementos
fundamentais para construir uma concepção do mundo total e integral, uma
filosofia e uma teoria totais das ciências naturais, e para suscitar uma organi­
zação prática integral da sociedade, isto é, para tornar-se uma civilização total,
integral” (Q, pág. 1434). Os termos total e integral não retornam permanente­
mente de maneira fortuita: o marxismo, dentro da concepção gramsciana, é um
integralismo (no sentido religioso) e até mesmo um totalitarismo, já que deve
permitir a “homogeneidade” entre intelectuais e massa, entre dirigentes e
dirigidos. No momento em que se liga essa concepção do marxismo àquela do
Partido-Príncipe (cujo funcionamento é descrito em comparação com o exercí­
cio), alcança-se o elogio do totalitarismo, tendo o autor distinguido, em uma
passagem muito célebre dos Quaderni, totalitarismo progressivo (o marxismo)
do totalitarismo regressivo (o fascismo) (cf. Q, pág. 800).
O caráter necessariamente totalitário da ideologia é explicado pela cisão
que se opera —em período de crise revolucionária - entre a antiga e a nova
sociedade: o novo bloco histórico e sua concepção do mundo devem concen­
trar suas forças (partido e ideologia monolíticos e totalitários) e romper com o
antigo sistema social. É o momento da cisão ao qual se segue aquele da
recomposição.
A ideologia deve, efetivamente, uma vez derrubada a antiga sociedade, se
apresentar como a ultrapassagem e também como a herdeira do que havia de
melhor nas ideologias vencidas, tanto no nível do conteúdo quanto no do método
delas. Esse caráter de ultrapassagem e de integração do marxismo gramsciano
lhe dá a dimensão historicista que lhe havia sido frequentemente reprovada (de
Delia Volpe a Aithusser). Em todo caso, é perfeitamente coerente com a missão
histórica que Gramsci designa à “filosofia da práxis” na Itália: logo após os
Acordos de Latrão, que esse pensador interpreta como o aniquilamento dos
intelectuais leigos e o retorno da força - teocrática - da Igreja sobre o terreno
político-cultural, a ausência de revolução burguesa se faz sentir mais do que
nunca no domínio ideológico: nem Reforma Protestante, nem liberalismo leigo,
mas a manutenção de uma religião marcada, na Itália, pela Contra-Reforma. Face
à incapacidade dos grandes intelectuais liberais (Croce) de "ir até o povo” coube
ao marxismo se apresentar, na Itália, como a “Reforma intelectual e moral’
(expressão pedida emprestada a Renan) que substituirá e ultrapassará o protes-

421
tantismo e o liberalismo enfraquecidos e será, para retormar uma fórmula dos
escritos da juventude, “a religião que matará o cristianismo”.
A reforma marxista dos Quaderni se propõe, portanto, um duplo objetivo
destinado a unificar o bloco revolucionário e, portanto, intelectuais e massa:
de um lado combater os “os grandes intelectuais” das classes dirigentes e
principalmente Benedetto Croce, mas também, de outro lado, o sentido comum
das classes subalternas, o que eqüivale a dizer, na Itália, a religião católica. Isso
implica a rejeição enérgica de todas as representações vulgares do marxismo,
de rseu rebaixamento ao nível único do senso comum. Esse é o sentido da
polêmica dos Quardeni contra o Manual popular de sociologia marxista, de
Bukharin, que Gramsci considera o exemplo típico da perpetuação do marxis­
mo vulgar na IIIa- Internacional.
3) Hegemonia ideológica, reforma intelectual e moral, movimento nacio-
nal-popular, guerra de posição, Partido-Príncipe moderno, cisão entre o velho
e o novo, caráter totalitário e integral da política revolucionária, essas são as
dimensões desse “leninismo ocidental” que os Quaderni propõem.
Curiosamente, nenhum dos comentadores de Gramsci jamais abordou
essas anotações da prisão situando-as verdadeiramente dentro do duplo con­
texto, cultural do entreguerras (marcado pela confrontação de projetos que
são todos integralistas: catolicismo social, marxismo e fascismo) e político-es-
tratégico da IIIa Internacional.
Os comentaristas de Gramsci insistiram sobre diversos traços parciais dos
Quaderni. Uns deram ênfase ao “corte epistemológico” de sua obra que marca
uma censura (pausa separadora) entre o período da juventude depois dos
conselhos (período de um socialismo voluntarista e antijacobino) e o que segue
à estada na Rússia (em que o projeto gramsciano se torna a nacionalização do
leninismo), sublinhando as profundas diferenças que oporiam esses dois perío­
dos. Outros insistiram sobre a doação gramsciana ao marxismo, por meio de sua
teoria das superestruturas (ideologia, Estado ampliado, hegemonia) e o estudo
do papel dos “funcionários das superestruturas”, os intelectuais. Outros ainda se
interrogaram sobre o “marxismo” dos Quaderni, suspeitando de que eles tenham
teorizado um jacobinismo populista, esquecendo, sob pretexto da luta contra o
economismo, o enraizamento do marxismo dentro do anticapitalismo.
A esses três enfoques, que são encontrados permanentemente, se mis­
turam as leituras dos Quaderni que puderam ser feitas em função do contexto
político italiano ou dos debates internos do comunismo ocidental.
Os Quaderni foram publicados a partir de 1948 sob os auspícios de
Palmiro Togliatti. Essa publicação, ainda que discutível (os Quaderni foram
publicados por temas e sofreram uma leve censura sobre os assuntos delica­
dos), faz o marxismo italiano escapar parcialmente à vulgata stalinista. Sobre­
tudo as censuras da historiografia comunista que visam a dar uma imagem de
Gramsci de perfeito precursor de.„ Togliatti não resistirão aos trabalhos dos
historiadores comunistas e não-comunistas.
A partir do XX Congresso e da desestalinízaçáo, Gramsci torna-se o
teórico da “via italiana para o socialismo”. A integração do PCI ao sistema

422
parlamentar e sua estratégia gradualista conduzem a colocar em sonhos a
dimensão cisionista e totalitária dos Quaderni, para enfatizar sua dimensão
ocidental e nacional, conservando tudo que, nas notas sobre o Príncipe
moderno, contribui para a exaltação do espírito de partido.
Depois de uma primeira fase em que a afirmação do leninismo de Gramsci
visa a preservar a identidade comunista (Colóquio de Gramsci de 1958), uma
segunda a sucede nos anos 60 em que ele acede ao panteão da cultura italiana:
leituras marxistas, católicas e socialistas se misturam aos trabalhos universitá­
rios. 1968 vê a estrela dos Quaderni declinar em proveito das escolas marxistas
ou pós-marxistas que contestam o historicismo comunista. Paradoxo é o Gramsci
dos conselhos que é exaltado por uma esquerda comunista e sindical que faz dos
conselhos de 1919-1920 os precursores dos conselhos de fábricas dos anos 70.
Com os anos 70, os Quaderni sofrerão um destino contraditório, à imagem
da conduta do comunismo italiano. De um lado, a estratégia de compromisso
histórico coloca em primeiro plano o tema da hegemonia que se torna central.
De outro lado, o eurocomunismo e a ligação sem reserva à democracia liberal
conduzem a um revisionismo desenfreado (oficializado no debate de 1976-1978
entre intelectuais marxistas e não-marxistas sobre a atualidade de Gramsci) que
chega até a ruptura definitiva entre o método revolucionário e leninista dos
Quaderni e a socialdemocratização do PCI. É no momento em que o comunismo
italiano renuncia ao gramscismo que ele se difunde fora da Itália, por meio da
tradução dos escritos gramscianos e graças ao prestígio internacional da escola
comunista italiana. Na Alemanha, na França, na Espanha, os Quaderni são lidos
e debatidos. Gramsci será estudado na União Soviética e, principalmente, encon­
trará um terreno de eleição na América Latina, onde uma corrente marxista
importante o reclama para si, criando uma verdadeira escola.
Internacionalização dos Quaderni e dos estudos gramscianos no momen­
to em que o gramcismo não escapa à crise do leninismo.

• O e u v re s d e G ra m sci a n té rie u re s a s u x C a h iers d e p riso n , tradução francesa parcial em A.


G., É c riís p o litiq u e s, introdução e notas de Robert Paris, 3 volumes, Gallimard, 1974, 1975;
Einaudi publicou em cinco volumes os escritos anteriores a 1926: S c r iti g io v a n ili {1 9 1 4 -1 9 1 8 ),
Turim, Einaudi, 1958; S o tto la m ole, Turim, Einaudi, 1960; V O r d in e N u o v o (1 9 1 9 -1 9 2 0 ),
Turim, Einaudi, 1954; S o c ia lism o e fascism o. L ’Ó rd in e N u o vo (1 9 2 1 -1 9 2 2 ), Turim, Einaudi,
1966; L a c o n s tr u z io n e d e i p a r tito c o m u n ista (1 9 2 3 - 1 9 2 6 ), Turim, Einaudi, 1971.
Os C a h ie rs d e p riso n , tradução francesa parcialmente publicada, apresentação e notas de
Robert Paris, Callimard, 1978, a edição italiana em quatro volumes foi preparada por V.
Gerratana, Turim, Einaudi, 1975. As L e ttr e s d e p riso n (Cartas da prisão) foram editadas em
francês por Gallimard, 1971.

► As interpretações gerais: T. Perlini, G ra m sci e i l g ra m sc ism o , M ilão, CELUC, 1 9 7 4 ; G. C.


Milão, Feltrinelli,, 1975; J. C. Portantoero, L o s u s o s d e G ram sci,
Jo clea u , L e g e r e G ram sci,
México, Folios, 19811; Ch. Buci-Clucksmann, D ic tio n n a ir e c ritiq u e du m a rx ism e, artigo
“Gramsciano", PUF, 1981, págs. 398-403.

423
Os d e b a te s d o s a n o s 5 0: N. Matteuci, A n to n io G ra m sci e la filosofia d elia p ra s si, Milão, Giuffrè,
1951; P. Togliatti, S u r G ra m sci (tradução francesa), Éditions Sociales, 1977; S tu d i g ra m sc ia n i,
Roma, Editori Riunití, 1958; L a c ittà fu tu ra, sa g g i su lla figu ra e il p e n s le r o d l A. G., Milão,
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N. Badaloni, M a rx ism o c o m e sto ric ism o , Milão, Feltrinelli, 1962; L. Althusser, L ir e le c a p ita l
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d e lle n u o ve g e n e r a z io n l, Roma, Editori Riuniti, 1972.

Os d e b a te s d o s a n o s 70: P o litic a e sto ria in G ra m sci (2 volumes), Roma, Editori Riuniti, 1977;
P. Anderson, S u r G ram sci, Paris, Maspero, 1978; M. Salvadori, E u ro c o m u n ism o e m a rx ism o
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Ch. Buci-Gluscksmann, G ra m sci e t 1’Ê tat, Fayard, 1975; M.Salvadori, G ra m sci e il p ro b le m a
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1972. S o b r e o c o n te x to h istó r ic o d o s Quaderni: P. Spriano, S to ria d e i p a r tito co m u n ista
ita lia n o , Turim, Einaudi, notadamente volumes 1,2 e 3,1970; A. Lisa, M e m o rie In c á rc e re con
G ra m sci, Milão, Feltrinelli, 1973; G. Fiori, L a vi'e d e A n to n io G ra m sci (tradução italiana),
Fayard, 1970; A. Tasca, I d ie c i p r im i a n n i d e i p a r tito c o m u n ista , Bari, Laterza, 1971; S to ria
d e i m a rx ism o (dirigida por E.Hobsbawn), tomo II (2 volumes), Turim, Einaudi, 1980.

Hugues PO R T EL LI.

GROTIUS, 1583-1645
D ireito de guerra e de paz, 1 6 2 5

O impulso que Grotius deu à doutrina do direito natural no século XVII,


o relativo ressurgimento dela nos nossos dias e a renovação dos estudos de
Grotius na Europa, depois de uns trinta anos1 colocam o autor do Droit de la
guerre et de la paix entre os pensadores mais influentes da ciência jurídica e
política jusnaturalista.
Personagem um pouco mítico, advogado protestante holandês, erudito e
aventureiro, Grotius levou uma existência ao mesmo tempo mundana e
agitada, intelectual e comprometida no seio de uma burguesia holandesa muito
preocupada com seus interesses comerciais. Aconselhando a Companhia das
índias Orientais, deu consultas cuja publicação oferece muitasobras de doutri­
na e coletâneas de direito positivo internancional: De jure praedae (1605) e
Mare liberum (1608). Ele preconizou nesses textos a liberdade da navegação
sobre os oceanos em favor da expansão comercial de seu país. Mais tarde,
tendo tomado a defesa de um dos lados nas querelas políticas que dividiam a

424
Holanda da época, foi perseguido e aprisionado. Fugiu e achou refúgio na
França, onde redigiu seu Droit de la guerre et de la paix2 (Direito de guerra
e de paz), estudo aprofundado dos conceitos e da metodologia jurídicos.
Forjou aí principalmente uma teoria do Estado e da potência civil das quais
apresentou as articulações internas e internacionais de maneira muito mais
teórica do que em suas memórias de 1605 e 1608. Não abandonou, por isso,
as preocupações mercantilistas que animavam seus primeiros trabalhos.
Grotius procurou os fundamentos do Estado dentro de uma perspectiva
moralista (definiu os critérios do Estado justo) e as modalidades das relações
interestatais, elas próprias submetidas a diversas exigências morais (elaborou
sua distinção entre direito natural e direito voluntário), esforçando-se em
limitar o uso da força nas relações internacionais (expôs aí suas concepções da
guerra justa).

O Estado justo

A contribuição do Droit de la guerre et de la paix p a r a a teoria da


potência civil consistiu em uma dupla limitação da monasrquia de direito
divino. Uma fundada sobre uma visão pré-contratualista do Estado, a outra,
sobre uma maneira de antecipação das teses individualistas não sem aparente
paradoxo no fato de afirmar ao mesmo tempo o direito de propriedade e a
conformidade com a escravidão.
1) Contratualismo e soberania limitada. “Um corpo perfeito de pessoas
livres que se reuniram para gozar pacificamente de seus direitos e para sua
utilidade comum". Essa é, segundo Grotius, a definição do Estado3. Ela está
bastante próxima da dos teólogos dos quais ela se distingue, contudo, por seus
fundamentos.
Anunciadora das teses contratualistas, a de Grotius se baseia sobre a
existência de um contrato inicial pelo qual os homens renunciaram ao estado
natural. Para ele, as leis são para o Estado o que a alma é para o corpo humano.
O Estado reúne uma multidão de criaturas racionais unidas para as coisas que
amam; ele tem como função assegurar o respeito às leis e organizar os
tribunais encarregados de “devolver o que for devido aos estrangeiros”, assim
como os "particulares do país, uns em relação aos outros”. O Estado justo é,
portanto, aquele que está apto a garantir esses direitos e que se funda sobre a
vontade da população.
Resta, então, definir as características da potência civil, Grotius emprega
também a expressão “poder soberano”. “E aquele cujos atos são independentes
de qualquer outro poder superior, de tal maneira que não podem ser anulados
por nenhuma vontade humana”4. Essa soberania reside em dois sujeitos, um
comum, outro próprio. O sujeito comum é o Estado. Grotius exclui dessa
categoria os territórios e os povos que não são autônomos (as províncias do
Império Romano). O sujeito próprio é o soberano que pode ser múltiplo ou único.
O autor do tratado de 1625 não considera que o poder soberano deva sempre e
necessariamente pertencer ao povo. Esse poder, conforme o caso (perigo,

425
penúria, guerra), deve ser recolocado nas mãos de algum Príncipe (Grotius se
inspirou nas teses romanas sobre a ditadura provisória). Convém, portanto,
distinguir cuidadosamente a soberania e a maneira mais ou menos completa de
possuí-la5. A primeira é inatingível. A segunda, sozinha, pode ser objeto de
limitação, por exemplo, quando o soberano, no momento de sua instalação, se
empenha solenemente em relação ao seus súditos, sobre certas regras concer­
nentes ao governo do Estado. Ela não estaria desqualificada já que foi propor­
cionada por um direito de resistência à opressão que Grotius admite como
“exceção tácita de extrema necessidade”6. Esse direito, é preciso convir, é
admitido por múltiplos autores, incluindo os mais ardentes defensores da
autoridade real, como Barclay, para quem o povo tem o “direito de se defender
contra seu rei quando este chegar a um execesso horrível de crueldade”7.
2) Direito de propriedade sobre os bens e as pessoas, Grotius observou
primeiro as origens do direito de propriedade, desconhecido das sociedades
primitivas. Na época da criação, disse, Deus deu ao gênero humano em geral
direito sobre todas as coisas da terra e renovou essa concessão depois do Dilúvio.
Tudo era comum então, cada um usufruía indivisivelmente de tudo como se
houvesse um único patrimônio8. Ora, essa hipótese não existe mais no momento
em que ele escreveu o tratado de 1625, a não ser no caso dos povos das Américas
e nas sociedades religiosas que, segundo Grotius, estão ligadas a uma maneira
de “viver dentro de uma grande simplicidade” ou “todos juntos dentro de uma
grande amizade”9. Para o autor, assim como para muitos de seus sucessores, a
propriedade nasceu da prática das “Artes” (agricultura, pastagens, etc.) que
levaram os homens a não mais se contentarem com os produtos espontâneos da
terra e a delimitá-la a fim de exercerem seus empreendimentos. A tomada de
posse só foi possível, segundo Grotius, em matéria de coisas limitáveis. Com­
preende-se, desde então, o fundamento de suas teses sobre a liberdade dos mares.
Não sendo suscetível de ser limitado, o mar permanece para ele o último espaço
de comunidade primitiva. Suas teses sobre esse assunto prevaleceram durante
vários séculos até que, no decorrer dos anos de 1970, fosse consagrada a idéia
contrária de patrimonialização dos espaços marinhos daí em diante divididos
entre os Estados marítimos e a humanidade, em proveito da qual devem ser
explorados os fundos dos mares e dos oceanos10.
O direito de propriedade figura entre os direitos comuns a todos os
homens e não deve sofrer nenhuma limitação, salvo de maneira precária e em
favor dos indivíduos que se encontram em situação de “extrema necessidade”
(com exceção da retomada sobre o plano individual)11. Grotius se baseia sobre
as regras do direito romano e afirma: “Tudo o que cabe a uma pessoa para seu
uso lhe pertence como propriedade particular; tudo o que se possui legitima­
mente não nos pode ser tirado sem injustiça.”12. Ninguém pode “se apropriar
insolentemente do bem de outrem” salvo para prestar auxílio provisoriamente
em caso de necessidade (uso de um poço que não lhe pertence para acudir
alguém que se encontra privado de água)13.
Esse direito do indivíduo sobre seus bens móveis e imóveis é da mesma
natureza daquele que o soberano exerce sobre seu território. A comparação

426
não se esgota nessa consideração; Grotius generaliza sua assimilação confron­
tando os poderes do soberano sobre seus súditos e os poderes do dono sobre
seus escravos.
A servidão, com efeito, não é incompatível com as regras do direito
natural. Ao contrário, para o autor, “os que caíram na escravidão... por efeito
de uma causa legítima devem ficar contentes com sua sorte...”,14 Certamente
Grotius admite que, de todas as sujeições que ele estuda em seu capítulo
relativo à aquisição originária de um direito sobre uma pessoa, a escravidão é
a mais vil.15.Acha, no entanto, dentro do direito natural, regras que fazem dessa
instituição uma dependência não desprovida de interesse: "A obrigação perpé­
tua de servir seu dono em que se encontra o escravo, é compensada pela
vantagem que ele tem de estar seguro de ter sempre do que viver; enquanto
as pessoas empregadas (de jornada) não sabem na maioria do tempo como
subsistir...”16 Elogio da segurança no emprego, por assim dizer, que funda a
legitimidade da escravidão, da qual Grotius não questiona nem a moralidade
nem a perenidade. Realça simplesmente, como para moderar seus efeitos, os
limites fixados pelo direito natural das prerrogativas do dono: obrigação de
tratar o escravo com moderação, de não exercer sobre sua pessoa o direito de
vida e de morte e interdição de submetê-lo a qualquer tratamento cruel.
Comedimentos dos quais se sabe que não conveceram J.- J. Rousseau, que
critica firmemente Grotius e o qualifica de “sofista pago”.17

Direito natural e direito voluntário

Grotius procura antes de tudo os fundamentos da validade do direito


natural. A esse respeito, sua doutrina do Direito da guerra e da paz inova
consideravelmente com relação àquela desenvolvida vinte anos atrás em sua
memória de 1605. Quanto ao direito voluntário (dir-se-ia hoje em dia o direito
positivo), ele procede das duas mesmas fontes do direito natural e desenvolve
suas normas sobre o plano interno e sobre o internacional.18
1) Autonomia do jurídico.Em seus primeiros trabalhos, Grotius, direta­
mente inspirado pelos teólogos e pelas concepções metafísicas dominantes,
afirma que o direito natural procede da vontade divina. Apenas ela funda sua
validade e seu caráter obrigatório para todos os indivíduos por direito. “Não é
tanto porque uma coisa é justa que Deus a quer, mas ela é justa porque Deus
quer”.19Ora, se o direito natural é sempre e em toda a parte direito, afirma ele,
é porque a vontade divina é imutável e eterna.20 Mesmo se essa vontade se
exprime por intermédio da razão humana, ela permanece essencial, primária e
fundamental. Ela só passa ao segundo nível vinte anos mais tarde, quando
Grotius, abandonando as concepções dos teólogos, adere às teses mais ra-
cionalistas. Ainda é preciso não dar a essa mudança uma importância grande
demais, o que faria do autor do tratado de 1625 um novo agnóstico.
Ele coloca simplesmente o princípio da autonomia do direito natural com
relação ao Criador. Grotius retoma de Aristóteles, e desenvolve, a observação
bem conhecida segundo a qual “uma das coisas próprias do homem é o desejo

427
de sociedade, isto é, uma certa inclinação a viver com seus semelhantes, não
de qualquer maneira, mas pacificamente e dentro de uma comunidade de vida
tão bem regulada quanto suas luzes lho sugerem”.21 Essa sociabilidade
constitui a fonte material do direito fundado sobre a aptidão geral do homem
para distinguir o que é útil ou nocivo à sociedade. As “luzes" das quais se trata
aqui são as do “entendimento humano”. Em outras palavras, o direito natural
é formado de “princípios da razão certa, que nos fazem tomar conhecimento
de que uma ação é moralmente honesta ou desonesta segundo a conveniência
ou a inconveniência necessária que ela tem com a natureza razoável e sociável
do homem”.22 Essas regras se baseiam essencialmente sobre princípios morais
ainda muitos próximos daqueles descritos pelos teólogos. Eles se distinguem
pelo fato de Grotius fazer da vontade de Deus apenas uma fonte indireta da
produção normativa. As interpretações dessa reviravolta são múltiplas. Alguns
vêem aí a influência da escolástica espanhola que o teria conduzido à tese da
primazia dos valores morais.23 Outros, ao contrário, encontram aí uma maneira
de rejeição de toda a escolástica e uma adesão implícita ao pensamento
moderno.24 Os estudos mais recentes levam, todavia, a uma certa reserva visto
que Grotius, ele mesmo profundamente crente, havia protestado contra toda
interpretação de seu pensamento que visava, negar a primazia e a competência
de Deus nesse domínio.25
2) Direito civil e direito das pessoas. Tendo pedido emprestado a
Aristóteles a distinção entre direito natural e direito voluntário, ele precisa
primeiro seus alcances. O direito voluntário sendo aquele que procede da lei,
igualmente designado pela expressão: “direito de instituição”, é o direito que
tira sua origem de qualquer ser inteligente. Ele se divide em direito divino e
direito humano. O direito humano se divide em três ramos. 0 direito civil que
emana do poder público (o Estado), o direito humano menos extenso que o
direito civil, subordinado ao primeiro, mas regendo simplesmente as relações
entre pai e seu filho ou o dono e seu escravo ou seu empregado doméstico,
enfim o direito humano mais amplo que o direito civil, isto é, o direito das
pessoas. O direito divino voluntário deve sua origem unicamente à vontade de
Deus (direito estabelecido para um único povo: leis dadas à Moisés, ou a todo
gênero humano: evangelhos). O direito natural rege as condutas humanas e
engendra obrigações que procedem de uma relação inerente às coisas e não
de um ato de vontade, mesmo divino. Para tanto, o direito natural pode reger
matérias que não são completamente estranhas a uma manifestação de vontade
humana. Esse é o caso do direito de propriedade, introduzido pela vontade dos
homens, mas desde o momento em que foi introduzido apareceu a regra de
direito natural segundo a qual “não se pode sem crime tomar de alguém,
contra sua vontade, o que lhe pertence como propriedade particular”.26 Ao
contrário, o direito voluntário procede de um comando, de uma ordem, de uma
permissão ou de uma interdição pronunciada por uma autoridade competente.
É a natureza dessa autoridade legislativa que condiciona a qualificação do
direito (seguindo as duas categorias: humano ou divino).
O direito das pessoas, ao qual Grotius consagra uma atenção particular,

428
adquiriu uma força obrigatória em conseqüência da vontade comum dos povos
ou, pelo menos, de alguns entre eles. Esse direito não provém de uma vontade
que seria superior a dos Estados (superestatal), mas do seu acordo, de suas
vontades convergentes, provenientes do costume e das convenções interna­
cionais formais. Para tanto, essa vontade comum não poderia engendrar um
direito hierarquicamente superior às outras normas. Grotius afirma o princípio
de superioridade absoluta do direito natural sobre o direito voluntário. Este
último deve ceder diante da regra de direito natural imperativa ou proibitiva.

A guerra justa

A influência dos teólogos sobre as concepções de Grotius no domínio da


guerra é igualmente muito sensível. As referências freqüentes a Santo Agosti­
nho e a São Tomás de Aquino são testemunhos desse fato. Ela marca antes de
tudo sua análise das diferentes justificações da guerra e de sua legitimidade
respectiva. E igualmente notável a maneira pela qual ele apreende a res­
ponsabilidade daqueles que provocaram o conflito e as condições do res­
tabelecimento da paz.
1) Legitimidade e ilegitimidade dos conflitos. Embora indique as dis­
tinções que devem separar os conflitos entre particulares e as guerras entre
Estados, essas duas formas de hostilidade lhe parecem ter uma natureza
suficientemente próxima para serem estudadas no mesmo capítulo de seu tratado
de 1625. Sem dificuldade, Grotius evacua toda tentação de considerar a guerra
incompatível com a observação de toda forma de direito.27 Constata a existência
da guerra; “maneira de esvaziar as disputas por meio da força”.28 Sua intenção
é buscar as regras que o direito natural ou direito positivo puderam colocar
quanto ao desencadeamento, à conduta ou à conclusão das hostilidades.
O direito das pessoas não condena toda as espécies de guerra, não mais
do que a lei divina.29 A guerra pode ser algumas vezes justa, diz Grotius.
Convém, portanto, buscar as razões justificativas que podem legitimar seu
desencadeamento. É objeto do segundo livro de seu Direito da guerra e da
paz (Droit de la guerre et de la paix) levantar o inventário dos direitos, tanto
públicos quanto particulares, cuja violação autoriza a se tomar as armas. No
primeiro lugar das causas justas figura, como em São Tomás, a legítima defesa.
Diretamente transportada das regras do direito privado, distingue-se em alguns
pontos no caso das guerras “públicas”. Entre particulares a legítima defesas
dura apenas um momento e cessa logo que as partes encontram um meio de
se apresentar diante do juiz. Nas guerras públicas, que se desenrolam dentro
de uma sociedade desprovida de juiz, o direito de legítima defesa se perpetua
mais e se sustenta continuamente pelas novas perdas e pelas novas “injúrias"
que sofrem os Estados.30 Como Santo Agostinho, Grotius considera que só
pode existir causa legítima de guerra quando houver alguma injúria ou
injustiça da parte daquele contra quem se tomam as armas.31 Em compensação,
são ilegítimas as guerras de conquista. Entre as causas de guerra justa Grotius
examina, como a maioria de seus predecessores, a recuperação “daquilo que

429
nos pertence” e a punição de um culpado, mas essas duas categorias, se
permanecem autônomas no que diz respeito aos autores do crime ou do delito,
são de natureza vizinha do ponto de vista da legitimidade das ações coercitivas
executadas.
2) Responsabilidade e restabelecimento da paz. Grotius introduz uma
distinção que será retomada, muito mais tarde no direito internacional penal,
entre a responsabilidade dos “autores” da guerra e a dos simples executantes
que seguiram os primeiros em uma guerra injusta.32 A sanção infligida aos
“autores” da guerra pode ser o suplício; a infligida a seus subordinados pode
ser simples repreensões.33 Para tanto, convém distinguir do mesmo modo no
caso dos “autores” da guerra as razões que os levaram a isso. Elas podem não
ser todas justas, mas, entre as causas injustas algumas podem ter abusado da
boa-fé daquele que entrou em conflito (por exemplo na execução de uma
aliança).
Quando Grotius fala do direito da paz, não entende aquilo que hoje em
dia, sob essa expressão, designa o direito das relações internacionais da
coexistência pacífica, mas exatamente a parte do direito da guerra relativa à
conclusão dela, isto é, os tratados de paz. Os numerosos desenvolvimentos que
ele consagra a isso (todo o livro 3 a partir do capítulo XX) são, além disso,
bastante pragmáticos. Não são desprovidos de consideração humanitária
sobretudo para o fim dos conflitos. Preconiza, nesse caso, a caridade e a
moderação no tratamento dos prisoneiros e dos reféns. Mas suas concepções
não são de forma alguma, anunciadoras de qualquer pacifismo. Sua conclusão,
emprestada de Santo Agostinho, não deixa nenhuma dúvida. Nela, ele quer
“que não se procure mais a paz para fazer a guerra, mas, ao contrário, que se
faça a guerra a fim de se ter a paz”.34

• Os numerosos trabalhos consagrados a Grotius há cerca de trinta anos não distinguem o


dos trabalhos anteriores, ainda que o tratado de 1625 o traga nas
D r o it d e g u e r r e e t d e la p a ix
referências dos comentadores. Uma bibliografia muito completa e multilíngüe foi publicada por
Peter Haggenmacher em G rotiu s e t la d o c tr in e d e la g u e r r e ju s te , publicação do Institut
Universitaire de Hautes Études lnternationales de Genève, PUF, 1983, págs. 645 a 672.

► Os estudos da obra de Grotius são empreendidos ao mesmo tempo por juristas, historiadores
e filósofos. Entre os mais importantes convém assinalar: Matija Berljak, 11 d iritto n a tu ra le e il
su o ra p p o r to con la d iv in ita in Ugo G rozio, Roma, Università Gregoriana Editricre, 1978
(Analecta Gregoriana, 213. Series Facultatis luris Canonici: Sectio E, 42);. Richard H. Cox.,
Hugo Grotius, em H is to r y o f P o litic a l P h ilo so p h y , editado por Léo Strauss e Joseph Cropsey
(2! edição), Chicago, Rand McNally, 1972, págs. 360-369; Edward Dumbauld, The life a n d leg a l
w rin tin g s o fH u g o G rotiu s, Norman, University of Oklahoma Press, 1969; Charles Edwards, The
law of Nature in the though of Hugo Grotius, The J o u r n a l o f P o litics, n. 32,1970, págs. 784-807;
Robert Feenstra, L’influece de la scolastique espagnole sur Grotius en droit privé, em L a
se c o n d a sc o la stic a n ella fo rm a zio n e d e i d iritto p r iv a to m o d ern o , Milão, Ciuffrè, 1973, págs.
377-402; Paul Fouriers, L’organisation de la paix chez Grotius, R e c u e il d e la S o c ié té Jean
B o d in , XV (1961), págs. 275-376; Peter Haggenmacher, G rotiu s e t la d o c tr in e de la g u e rr e ju ste ,
publicação do Institut Universitaire de Hautes Études internantionales de Genève (Genebra),

430
PUF, 1983; Fiorella de Michelis, Le origine storiche e culturali de pensiero di Ugo Grozio,
Florença, La Nuova Italia editrice, 1967 (Publicação da Faculdade de Letras e Filosofia da
Universidade de Milão, 45); Massimo Panebianco, Ugo Grozio e Ia tradizione storica dei diritto
internazionale, Nápoles, Editoriale Scientifica, 1974; Frans de Pauw, Grotius and the law o f
the sea, traduzido por P. J. Arthern, Bruxelas, Ed. de 1’lnstitut de Sociologie, 1965; René
Voeltzel, La méthode théologique de Hugo Grotius, Reuue d ’histoire et de philosopbie
religieuse (32), 1952, págs. 126-133. Entre os estudos antigos devidos a juristas, o mais célebre
é o de Jules Basdevant: Hugo Grotius, em Les fondateurs du droit international, editado por
A., Pillet, Paris, Giard & Brière, 1904, págs. 125-267. Dentro do mesmo espírito cf. W. van der
Vlugt, L’oeuvre de Grotius et son Influence sur le développement du droit international,Recueil
des Cours de 1’A cadémie de Droit International de La H aye,7 1925, vol. 1), págs. 395-509.
Enfim, uma breve nota em inglês por Durward Sandifer, Rereading Grotius in the year 1940,
American Journal o f International Law, 34 (1940 págs. 459-472).

Mario BETTATI.

NOTAS
1. Ver bibliografia no final do artigo.
2. As referências deste estudo foram extraídas da edição traduzida em francês por Jean
Barbeyrac (o original está em latim sob o título D e j u r e b e lli a c p a c is), 2 volumes, Amsterdã,
Ed. Pierre de Coup, 1729, 587 e 587pp. com notas do autor e do tradutor.
3. Livro 1, capítulo 1, § XIV. A noção de “potencial civil” não é absolutamente sinônima
da de Estado em Grotius, aproximar-se-ia mais da de poderes públicos.
4. Livro 1, capítulo III, § VIL
5. Ib id e m , § XIV e XV.
6. Livro 1, capítulo IV, § VII.
7. Citado ib id em , § VII, al. 4.
8. Livro 2, capítulo II, § II.
9. Ib id e m , al.2.
10. Cf. René-Jean Dupuy, L ’O céan p a rta g é , Paris, pedone, 1979.
11. Livro 2, capítulo II, § VI.
12. Livro 2, capítulo II, § II.
13. Ib id em , § VII.
14. Livro 2, capítulo XXII, § XI.
15. Livro 2, cap. V, § XXVII.
16. Ibidem .
17. Cf. R. Derathé, Jean -Jacqu es R o u ssea u e t la S cien ce p o litiq u e d e s o n tem p s. Paris,
Vrin. 1970, na pág. 71 sq. Grotius trata da escravidão no livro 3, capítulo VII, § 1.
18. Cf. Peter Haggenmacher, G ro tiu s e t la d o c tr in e d e la g u e r r e ju s te . Paris, PUF, 1983.
19. D e j u r e p ra e d a e , citado por Haggenmacher, op. cit., pág. 467.
20. Ib id e m , pág. 468.
21. Discurso preliminar, § VI.
22. Livro 1, capítulo I, § X.
23. G. Ambrosetti, I P r e s u p p o s ti te o lo g ic i e s p e c u la tiv i d e lle c o n c e z io n i d i G razia,
Bolonha, N. Zanichelli, 1955 (Publicazioni delia Facoltá di Ciurisprudenza delFUniversitá di
Modena), pág. 61 sq., J. Basdevant em L e s fo n d a te u rs du d r o it in te r n a tio n a l, Paris, Giard &
Brière, 1904, pág. 230 sq.
24. A. Doretto, Ugone Grozio e o adversário de Cartesio na questão da verdade eterna,
R iv tsta in te r n a z io n a le d i filo so fia d e i d iritto , vol. XXIV, 1947, pág. 58 e segs.
25. P. Haggenmacher, op. c i t , pág. 507 sq.

431
26. Livro 1, capítulo I, § XV.
27. Discurso preliminar, § 111.
28. Livro 1, capítulo I, § II.
29. Livro 1, capítulo 11, § IV e V.
30. Livro 2, capítulo I, § XVI.
31. Livro 2, capítulo I, § I.
32. Livro 3, capítulo XI, § V.
33. Ibidem, § IV.
34. Conclusão e fim da obra.

GUILLAUME D’OCKHAM, cerca de 1300 a 1349


A monarquia do Santo Império Romano

Guilherme d’Ockham marcou sua presença nos debates político-teológi-


cos do início do século XIV. A crise começa pelo conflito entre Filipe, O Belo
e a realeza e prosseguirá, depois da transferência do Papado para Avignon,
com o conflito entre o Imperador Luís da Baviera e o Papa João XXII (quando
este recusou a reconhecê-lo como tal). Tradicionalmente devendo ser coroado
como Rei de Roma, o titular do Santo Império, Luís da Baviera se fez coroar
em Roma, mas na ausência do Papa. Os filósofos e os teólogos se dividiram
entre os dois partidos. Ockham, como Marcílio de Pádua, se liga ao Imperador
e entra em oposição acirrada, como toda a facção dos franciscanos (ordem à
qual Ockham pertencia), que defende, contra o Papa, a pobreza integral e a
espiritualidade da Igreja. Considera-se muitas vezes Guilherme d’Ockham
somente,no pensamento filosófico e teológico, representando-o com razão
como o primeiro da fila da Via Moderna, e o fundador de um novo desenvol­
vimento do Nominalismo, chamado o Terminismo. Mas na verdade seus
escritos políticos são de extrema importância, pois ele quis apresentar uma
nova articulação do poder político e do poder espiritual, com uma redução
deste à espiritualidade, e uma liberação do político em face do poder espiritual
(daí terem-no atado também ao galicanismo*, o que parece duvidoso). O lugar
marcante que ele ocupa vem do fato de sua doutrina, bem como a da Igreja e
do poder político, ser concebida no interior da Igreja, enquanto Marcílio de
Pádua (do qual ele se aproxima muito sobre o plano político, mas não
filosófico) a concebe no exterior. Algumas pessoas consideraram que G.
d’Ockham teve uma influência direta sobre Marcílio (sic M. Mourre), mas isso
parece inverossímel: G. d’Ockham é 15 anos mais novo do que Marcílio, e o
Defensor Pacis (Defensor da paz) foi publicado em 1324, quando nenhum
livro político de Ockham havia ainda sido publicado, mas apenas seus escritos

* Galicanismo - Princípios e doutrinas da Igreja galicana, isto é, da Igreja católica da França.


(Nota da Tradutora)

432
teológicos, ainda não difundidos. Ora, foi em 1324 que Ockham foi chamado
de Oxford, onde ele ensinava, para Avignon a fim de submeter a exame
proposições que ele teria sustentado. E foi depois dessa data e desse confronto
que ele se ligou ao lado imperial. Portanto, pareceria mais que ele é quem
conhecera a influência de Marcílio. Todavia, apresenta-se uma questão mais
importante: foi por causa de seu pensamento metafísico e teológico que
Ockham adotou as posições políticas que tomou, e como uma espécie de
conseqüência de suas premissas, ou estaremos diante de duas orientações
separadas, a busca teológica e as opções políticas concretas, ditadas pelo
acontecimento (existiria, por exemplo, de sua parte uma reação quase senti­
mental contra o luxo da corte de Avignon, onde residiu durante quatro anos,
e contra o meio dos curialistas em número de 430 a 530 no pontificado de João
XXII)? Com efeito, seus textos políticos ultrapassam todas as vezes o aconteci­
mento episódico ao qual eles se relacionam. No entanto, a construção teológica
não será apenas conseqüência dessas tomadas de posição política que seriam
anteriores? Nesse caso a doutrina seria somente uma espécie de justificação da
orientação política.
Parece que se deve, em todo caso, sublinhar a notável coerência do
conjunto. Sem querer violentar os textos, é-se levado a constatar que as
proposições metafísicas e teológicas conduzem a um certo número de conse­
qüências políticas e eclesiológicas. Não há duas partes na obra desse autor,
uma teológica, outra circunstancial e política, ainda que ele não tenha deixado
nenhuma súmula sobre esse assunto. Porém ele se inscreve exatamente dentro
da perspectiva da crise geral da cristandade, tanto como corpo político (com o
aparecimento de tendências "nacionais”) quanto como corpo religioso. Não é
somente o problema clássico das relações “Igreja-Estado”. É uma revisão
global de um e de outro a partir, ao mesmo tempo, de uma opção filosófica e
de uma releitura bíblica. Mas essa constatação de coerência pode ser jogada
nos dois sentidos (política deduzida da teologia ou doutrina justificativa de
uma opção de fato). O que pode orientar no primeiro sentido é que Ockham
aparece antes de tudo como um lógico, como um “ultra-intelectualista” (Chau-
nu). Por outro lado, seus libelos polêmicos contra o Papado (depois de 1330)
são bastante diferentes dos escritos fundamentais sobre a organização da
Igreja, sobre as reformas políticas a efetuar e sobre sua teoria geral do poder*.
De qualquer jeito, em uma época em que o espiritual pretende ser um poder
e dominar o (poder) temporal, em que, da mesma maneira, nada é concebível
sem uma explicação teológica, era indispensável começar por colocar as bases

* Adoto a periodização das obras de G. de Ockham estabelecida por C. de Lagarde, a saber, todas
as obras filosóficas e teológicas S u m m a toíiu s logicae, C o m m en la ire s u r les S en ten ces,
Q uodlibet, em seu período inglês, antes de 1324.0 segundo ciclo vai de sua chegada a Avignon
(1324) até 1337: obras capitais, sobretudo em 1333 e 1336: O pu s n on agin ta d ieru m e primeira
parte do D lalogus. Depois, o ciclo de Rhens (1337-1347): C ontra B en ed ictu m (o novo Papa).
A n P rin c e p s — B revilo q u iu m —Octo qu aestion es. Tudo isso gravitando em tomo da querela
imperial, para a defesa do Império contra o Papado a que é preciso se juntar muitos pequenos
tratados polêmicos.

433
teológicas de uma crítica política. Ockham parte de uma idéia muito comum,
ou seja, que não é possível conhecer Deus pela razão. E, na verdade, toda sua
teologia, assim como sua política, deriva de uma só fórmula “Credo in unum
Deum onnipotentem" (Creio em um Deus onipotente). Mas o todo-poderio
não quer forçosamente dizer uma ação permanente. Ele significa apenas uma
inteira e absoluta liberdade de Deus que decide de maneira totalmente
incondicional. Deus não tem necessidade de nada. Não existem, portanto
valores ou idéias (Justiça, Bem) com que Deus seja obrigado a se conformar.
Deus poderia ordenar tanto a morte quanto o amor. Mas, de maneira corolária,
não é necessário conhecer Deus para apreender o real e explicitá-lo eventual­
mente. 0 homem pode ter um conhecimento direto da realidade, do mundo e
não tem nenhuma necessidade de uma referência a Deus para chegar lá. Pode
haver uma pesquisa empírica e, no limite, experimental dos "hábitos da
Natureza” (certamente dependendo da potência ordenada pelo Criador) não
dedutíveis de uma estrutura eterna, que, aliás, se imporira ao próprio Deus.
Isso implica a contingência do criado, sob todos os aspectos, o concreto, mas
também o intelectual e a rejeição das abstrações realizadas, as "formas
substanciais”.
Para G. de Ockham, tudo é contingente e, conseqüentemente, sempre
possível. O universo, tal como ele o vê, é composto de “coisas” (res) singulares,
contingentes, justapostas, que o espírito apreende intelectualmente por intui­
ção. Não pode, portanto, haver nem conceitos gerais e abastratos, nem
pluralidade de razões para uma situação, daí a redução dos intermediários; a
lei de economia é essencial: nulla pluralitas sine necessitate. Entretanto, ele
não se limita a conceber o real como uma coleção de unidades sem comunica­
ção. O que quer dizer que ele concebe muito bem que, por exemplo, seres
viventes que estão reunidos não estão somente justapostos: a experiência
quotidiana mostra bem que o “estar junto” pode ter uma duração e uma
constância que conduzem a regularidades, a constantes, mas que não são nada
mais do que isso. Quer dizer que esse "estar junto” não é um em-si. É um fato
empírico, que existe, em resumo, tanto quanto ele existe. Não é um dever ser.
E como, por exemplo, não se pode perceber empiricamente nem a Humani­
dade, nem a Sociedade, não se pode tomá-las como realidades existentes. O
reconhecimento da existência de um grupo humano procede da experiência e
remete a coisas “significadas juntas” (M. de Gandillac), “sem referência nem a
uma forma extramental nem mesmo a um conceito fixo”, pois só conta o
particular. O universal não pode ser uma realidade superposta às outras.
Conseqüentemente, para Ockham, tudo implica um referente natural (ele é
hostil às glosas indefinidas nas quais se perdia a escolástica). E, do mesmo
modo que não pode haver conceitualização abstrata de fatos reconhecidos,
assim também não existe para ele um logos imanente à natureza, dando a esta
uma existência total. Em termos modernos, se dirá que “qualquer que seja o
modo de existência do significante, este último não existe jamais sem o
significado (mesmo quando a res é substituída miraculosamente por esse
existente absoluto que é Deus) e que ele o signifique sempre contingenciado,

434
isto é, em sua existência dada — não como essência virtual ou atual...” (de
Gandillac) e, quando, elaboramos um conceito, este só tem valor “intencional”
e se torna “materialmente significante” pela mediação de um “termo” (daí o
nome de Terminismo), isto é, de um “sinal” convencional, variável segundo
os lugares e as épocas, e capaz de ser substituído, ocasionalmente e segundo
o costume recebido, pela própria coisa (supponere pro rem). Um termo
significa, portanto, o objeto do qual ele toma o lugar, e essa função do termo
chama-se: suposição. E evidente que essa interpretação do mundo ia ter
conseqüências políticas consideráveis.
Quanto a Deus, ele só pode de qualquer maneira ser conhecido por
intermédio de sua revelaçao. É vã a tentativa de procurar apoiar a teologia sobre
uma filosofia. Ainda nesse caso, não há nada entre o conhecido e o conhecedor,
não há mediador entre Deus e a criação. Basta "colocar a fé” como tal. Mas essa
revelaçao contida nas Escrituras é forçosamente, ela mesma, objeto de uma
hermenêutica, cujas conclusões podem ser variáveis. A filosofia não tem de se
ocupar com a existência de Deus; Ockham rejeita as “provas” ontológicas e
outras. E a prova pelo primeiro motor só chega a uma probabilidade. Desse
modo, a chave do pensamento desse autor é a coincidência entre a liberdade de
Deus (irracional e soberana) e a liberdade do homem (contingente e empírica).
Esse homem tem acesso a dois modos de conhecimento: pela Revelação de Deus
sobre Deus e pela da experiência para o mundo.
A maioria das obras políticas de G. Ockham é de atualidade, de polêmica,
e é preciso separar o que é o fundo do pensamento sem se ater às circuns­
tâncias e debates (o que é da ordem da história das idéias). Do mesmo modo,
é preciso desprezar os argumentos ad hoc e as repetições de argumentos
tradicionais (por exemplo, sobre os dois gládios ou sobre o fato de o imperador
receber o poder diretamente de Deus sem passar pelo Papa, o que não quer
dizer uma origem divina imediata do poder). Mas é importante sublinhar
naquilo que acabamos de ver que jamais Ockham emprega em política os
termos abstratos (politia, civitas, civilitas, principatus) correntes em sua
época: estima diretamente as realidades de seu tempo e eleva casos concretos
a “termos”. A ordem do mundo político, como a ordem do mundo em geral, é
um fato empírico e contingente, não somente em sua existência, mas também
em sua inteligibilidade; não existe nenhuma necessidade inteligível englobante
permitindo perceber o todo (daí as variações de opinião que se acreditou poder
sublinhar em seus escritos políticos). Não existe nenhum universal se super­
pondo ao real para lhe dar forma e permitindo classificar os fatos. Assim, não
se pode partir da idéia de uma Igreja universal nem de um Império universal.
A Igreja é essencialmente dos fiéis dos quais se constata a reunião. Pode-se
perfeitamente admitir a organização dessa Igreja enquanto dado de fato, mas
essa hierarquia não deve ultrapassar a realidade. E, por exemplo, ela não deve
pretender deter as verdadeiras interpretações, formular os “termos" de manei­
ra autoritária e, mais ainda, ela não deve sair do domínio que existe no fato da
reunião dos fiéis, a saber o religioso. Fora do religioso, ela não existe; por
conseguinte, não pode julgar, por exemplo, o poder político. Quanto ao Papa,

435
os inúmeros escritos do autor contra João XXII, e, depois, contra seu sucessor,
Benoít, são certamente escritos circunstanciais, mas a partir de uma tomada
de posição fundamental: a saber o ponto teológico de que Jesus, enquanto
homem, não teve nenhuma realeza secular e não pretendeu exercer nenhum
poder secular. Ele não pôde transmitir tal poder a Pedro e, desse fato, deduz-se
que o Papa não pode se fundar sobre o Regnum Cristi para exercer uma última
autoridade. E, do mesmo modo, em seu conflito com o Papa, ele recusa a
plenitude potestatis à qual pretendia o Papa. Essa plenitude potestatis signi­
ficava que o Papa “pode fazer com poder absluto tudo o que não for
expressamente contra a lei de Deus e contra o direito de Natureza”. Ora, isso
não está fundado em nada e está visto que o Papa não tem, para Ockham,
nenhuma possibilidade de intervir na ordem civil. Mas, na realidade, a recusa
da plenitude potestatis, é de tal modo que visa ao próprio poder pontificial,
sob todas suas formas, menos a do "pastor dos pastores”, logo puramente
espiritual. Pois seu poder, ele o recebe de uma delegação divina, mas Deus não
é o ordenador dos acontecimentos do mundo. 0 poder pontificial deve estar
estritamente reduzido à aplicação do direito divino e natural expressamente e
não pode intervir naquilo que é moralmente ou espitirualmente indiferente.
Do mesmo modo que a Igreja, o grupo humano, a sociedade, só existem
porque, concretamente, constata-se a reunião dos homens que não podem
viver solitários. Há não ainda um contrato social, mas uma primeira idéia de
que os homens se unem por convenções, o que implica, por um lado, a
existência fundamental de liberdades (chamadas freqüentemente de liberdades
naturais ou, ainda, de liberdade cristã e, por outro lado, a importância do
acordo dos participantes e dos costumes. O livre arbítrio do homem é o
fundamento da sociedade. Ockham insiste muito sobre a liberdade cristã, mas
sobretudo sob seu aspecto negativo: ela é obstáculo a ataques e a servidões.
Ela não permite que se imponha tal opressão, tal dever, tal sujeição. Mas essa
liberdade cristã não tira as obrigações resultantes das convenções ou de
costumes anteriores ou exteriores à lei evangélica. Essa liberdade cristã
assegura a independência dos indivíduos (única realidade!), mas também a
independência das autoridades seculares com relação ao Papado.
O grupo humano deve inevitavelmente ser organizado e dirigido, porém,
segundo sua vontade. Não existe poder verdadeiro além do delegado pela
maior e pela mais sã das partes do povo. Cada comunidade tem o direito de se
dar leis e de confiar sua direção a um chefe. Todos os homens sendo iguais e
livres, a autoridade só é legitimada pela submissão voluntária dos indivíduos.
Por conseguinte, a autoridade só pode ser exercida para a defesa do bem
comum e das liberdades individuais. Ela não deve usurpar as liberdades que
são a origem do poder (daí um novo argumento contra o Papa que usur-
pa...).Desse modo, salvo exceções, é o indivíduo junto com os outros quem
decide. E Ockham mantém isso mesmo para a designação do Imperador
(Dialogus). Já que o Império é universal, é o conjunto dos mortais que deve
decidir a transferência do poder. O Papa não tem que intervir (salvo se, por
tradição, o Papa havia sido delegado pelo povo de Roma para fazer isso... o

436
que não se funda, entretanto em um poder espiritual!). Mas então, uma
sociedade poderia não designar autoridade política? Aqui ainda o autor recusa
os a priori dogmáticos: se não pode em sua época recusar (já que ele é teólogo)
a fórmula Imperium a Deo, não pode aceitar também nem uma designação
direta por Deus, nem a mediação do Papa: desde essa época, foi o Imperium
a deo per homines. Não há uma ordem de Deus, mas uma concessão: Deus
permite aos homens se darem chefes, e isto unicamente porque é necessário.
Deus dá aos homens a faculdade de discernir a necessidade, e é sobre o
fundamento da necessidade que o homem estabelece um poder, mas este
permanece forçosamente marcado pela ocasionalidade e pela gratuidade.
Poderia ser diferente, mas existe também a tradição e o costume existentes.
Por isso, por exemplo, é preciso levar o Império a sério, porque ele se baseia
na longa transição do Império Romano, cujas Escrituras atestam que ele era
um poder autêntico e legítimo. Esse poder assim instituído é autônomo (os
argumentos contra o princípio de plenitude de poder do Papa têm por meta
defender a autonomia dos poderes seculares) já que repousa sobre a liberdade
(natural). Mas, no que concerne ao Império, ele é universal; não enquanto
conceito, mas enquanto utilidade. “Os governos, as dominações variam segun­
do a diversidade, a natureza, as exigências das diversas épocas”. Mas a
experiência mostra que o melhor é ainda o Império universal e, diz ele, "a
Monarquia universal não pode estar contra o direito natural senão teria sempre
sido iníqua, e não teria, portanto, jamais existido um verdadeiro império’’. E
sem dúvida a sagração (pelo Papa) é uma cerimônia tradicional, mas não é nem
a causa, nem o sinal de uma concessão de poder.
Em face do poder e não dependendo dele, há o direito (Opus nonaginta
dierum). Existe um direito natural, mas muito limitado, seja um preceito
natural, absoluto, sem modificação nem determinação, seja um princípio
submetido à interpretação, condição, modificação, especificação, declaração...e
que é então qualificado pelo "lícito, o justo e o oportuno”. O mais importante
sendo o oportuno. E, para o direito positivo, ele não é nada mais do que a
pronunciação dessa oportunidade, ele é obrigatoriamente variável, é, diríamos,
uma regra do jogo sobre a qual os homens concordam em dado momento. 0
autor manifesta uma espécie de positivismo jurídico quando considera que
toda regra é contingente e depende das oportunidades. Tudo é, desde então,
possível, na ocasião. É evidente que nós temos aí uma das chaves de sua
oposição virulenta a João XXII (e não somente por causa do conflito político
do Papa com o Imperador), pois não se deve esquecer de que esse Papa levou
ao cúmulo a importância do direito canônico, pretendeu com suas coleções
canônicas estabelecer um direito canônico definitivo e, além disso, resolver
pela via jurídica todas as crises da Igreja. E o exemplo favorito a respeito do
direito tomado por Ockham é o da propriedade: esta é a expressão do concurso
das vontades, do costume e da convenção. A propriedade não vem de Deus: ela
é produzida, como um termo, pelo homem que a pode modificar a seu gosto.
Entretanto, se o homem a estabeleceu, foi também em conseqüência de uma
concessão de liberdade que Deus lhe concedeu, a partir do momento em que

437
o homem a institui, ela se torna um direito. Mas, como todo direito, ela deve
ceder diante de um imperativo superior, por exemplo, o que chamamos hoje
em dia de interesse público, pois o direito de propriedade é sempre um jus
litigiosum. Sobre o modelo da propriedade, ele explicita a jurisdição ou os
contratos... E é claro que o homem pode sempre renunciar a seus direitos
(dessa forma os franciscanos renunciam ao direito de propriedade). Há,
portanto, em Ockham uma aliança do positivismo com o teologismo: toda
instituição é livre criação humana em função da utilidade, mas todo ocasiona-
lismo só é possível na medida em que Deus o legitima, e em que não se choca
contra a vontade expressa de Deus na Escritura. Pôde-se, portanto, dizer que
"G. de Ockham fundou, assim, uma nova teologia da política e da ordem
política” (R. Scholz, G. cTOckham ais politischer Denker, pág. 22).

• M o n a rc h ia S a n c ti r o m a n i- Im p e ri, ed. Francfort, 1621; ed. Goldast, Turim, 1950; O p era


p o lítica , ed. Sikes, 3 volumes, Manchester, 1940-1963.

► L. Baudry,G. d ’O ckh am , L ’h o m m e e ts e s oeu u res, 1950; P. Chaunu, L e te m p s d e s R éform es,


Paris, Fayard, 1975; M. de Candíllac, Cuillaume d’Ockham, em H isto ire d e 1’É glise, Paris, Fliche
& Martin, XIII, 1956; G. de Lagarde, G u illau m e d'O ckham , N a issa n c e d e V esp rit la iq u e au
M o y e n  g e , IV-V, Paris-Louvain, Ed. Nauwelaerts, 1962-1964; R. Scholz, W ih elm von O ckh am ,
a is p o litis c h e r D e n k e r, Berlim, 1912 (Scholz foi o editor dos principais textos de Ockham).

J a c q u e s ELLUL.

GUIZOT, François, 1787-1874


M eios de governo e de oposição, 1 8 2 1 .

Embaraçoso Guizot De um lado, o brilhante historiador da civilização na


Europa e na França, celebrado em todo o século XIX de Goethe a Marx e de
Tocqueville a Renan. Do outro, o mau gênio da Monarquia de Julho, crispado
até o fracasso final em sua recusa de reformas, quase identificado com sua
caricatura.
Esquecimento, de uma só vez, de sua obra de publicista, que se supõe a
priori estar resumida na fórmula “enriqueça”.
Guizot foi, no entanto, um dos panfletários liberais mais influentes sob a
Restauração. De 1820 a 1822, no momento em que o regime se aprofunda na
reação ultra após o assassinato do duque de Berry, ele publica sucessivamente
quatro obras que têm uma grande repercussão: Du gouvernement de la-
France et du ministère actuel (outubro de 1820), Des conspirations et de la

438
justice politique (fevereiro de 1821), Des moyens de gouvernement et d ’oppo-
sition dans Vétat actuel de la France (outubro de 1821), De la peine de mort
en matière politique (junho de 1822). A multidão se comprime na mesma
época para escutar seu curso sobre história das origens do governo repre­
sentativo (ele será brutalmente suspenso em outubro de 1822 ao mesmo tempo
que os Cousin e Villemain que atraíam, como ele, um público entusiasta).
Des moyens de gouvernement et d'opposition (Meios de governo e de
oposição foi inegavelmente o mais forte dos panfletos liberais do período, cujo
papel é comparável ao desempenhado alguns anos antes por La Monarchie selon
la charte, de Chateaubriand, no campo legitimista. Força que provém em grande
parte do fato de a obra ser ao mesmo tempo um texto polêmico de cricunstância
e um tratado de teoria política. Verdadeiro manifesto do partido da nova França
e das “classes médias”, esse livro esboça igualmente, no próprio movimento de
seu defensor, as linhas gerais de um novo entendimento do político.
Um manifesto da burguesia? É difícil, realmente, evitar pensar em Marx
ao ler este texto de Guizot, apesar de toda a desconfiança que deve legitima­
mente inspirar esse gênero de aproximações um pouco turbulentas. Guizot não
se contenta em se fazer o porta-voz das novas classes humilhadas pelo retorno
à força do “espírito de 1815”. Denunciando a arrogância das “vãs pretensões”
ultra, ele pressiona a burguesia a não consentir nesse retorno da história e a
ousar afirmar sua força. A “nova França, constata ele, ainda não estendeu suas
asas, não subiu ainda ao nível visível que lhe destina sua força verdadeira”
(pág. 214). Daí a tarefa de educação moral e política que ele estabelece para si
e da qual explica ao mesmo tempo o programa e o sentido dentro de sua obra.
Trata-se, em primeiro lugar, para ele, de ajudar a burguesia a tomar
consciência daquilo que ela representa. “Saibam o que são”, esse é o tema
central de sua exortação. O que ela é? A classe ascendente, a que venceu o
antigo regime, realizou a revolução, e à qual o futuro pertence completamente:
“É agora a vantagem de nossa situação quando a força fez sua obra e não
aspira a mais nada a não ser usufruir dela”, ele já havia escrito em 1820 em
Du gouvernement de la France et du ministère actuel.
O movimento da história legitima a seus olhos essa confiança ativa que
as classes médias devem colocar em seu futuro. Daí a brutalidade com a qual
Guizot exprime sua percepção da história da França em termos de luta de
classes e mesmo de guerra de classes. Visão frente à qual Marx saberá exprimir
sua dívida vinte anos mais tarde.
Tomada de consciência e conquista de confiança difíceis de operar, tanto
as novas classes parecem a Guizot imaturas e tímidas, voltadas para si mesmas,
preocupadas demais unicamente com seus negócios, impolíticos em resumo. Des
moyens de gouvernement et d ’opposition não pára, dentro dessa perspectiva,
de convidá-las a se constituírem em classe política. “Esperam que caiam do céu
ministros que sejam de seu gosto? lhes pergunta ele. Isso não acontecerá nunca;
o poder jamais caiu nas mãos de um sistema que fazia profissão de não o querer.
É preciso se dar ao trabalho de tomá-lo” (pág. 320). E prossegue mais adiante:
"Que a oposição tome, portanto, posse de toda a sua carreira. Que, em seu

439
interesse presente e futuro, no das massas que ela defende como indivíduos que
ela reúne, ela marche altivamente em direção ao poder e faça de sua luta com o
ministério uma luta verdadeiramente política (...) O futuro está a nosso favor;
mostremo-nos bons para o futuro. Que esteja claro que as coisas estão fora de
suas posições naturais, que o poder não está hoje em dia com quem ele pertence,
que seu deslocamento restabeleceria a ordem em vez de comprometê-la, e que o
sistema que tem a força na França saberia também exercer aí seu império" (págs.
328-339). Resumindo o 3 de maio de 1837, em um célebre discurso para a
Câmara, a filosofia de sua ação desde que entrou para a vida pública, Guizot
reivindicará com orgulho esse papel de organizador de hegemonia. “Hoje em dia,
como em 1817, em 1820, em 1830, dirá ele, quero, procuro, sirvo com todos
meus esforços a preponderância política das classes médias na França, a
organização definitiva e regular dessa grande vitória que as classes médias
obtiveram sobre o privilégio e o poder absoluto de 1789 a 1830. Eis a meta para
a qual constantemente caminhei.” Constituir as classes médias em classe verda­
deiramente política implica, para Guizot, em pensar em termos de cultura de
governo. É nisso que o “liberalismo”,do qual ele se faz o teórico, se distingue do
que exprime, por exemplo, Benjamin Constant Seu problema não é somente
examinar as condições de limitação dos poderes e da garantia dos direitos do
homem dentro de uma perspectiva crítica, É também fundar uma nova ordem
constitucional na dupla recusa do Antigo Regime e do que ele chama “as ilusões
do credo popular em matéria de governo”. Por isso, explica ele, “é preciso outra
coisa além de máquinas de guerra e das teorias de oposição”* (pág. 163).
Seu panfleto se duplica portanto logicamente como também um tratado de
política. Em seu ponto de partida, a constatação de um paradoxo: o ministério
de 1821 parece sem força verdadeira mesmo quando seu poder se exerce sem
obstáculos. Para explicá-lo, Guizot distingue de maneira muito inovadora as
noções de governo interior e de governo exterior (que, se notará, correspondem
exatamente à diferença hegemonia/ coerção em Gramsci). “O poder, assim
escreve ele, é muitas vezes invadido por um estranho grande erro. Acredita que
se basta a si mesmo, que tem sua própria força, sua própria vida, não somente
distintas, mas independentes das da sociedade sobre a qual ele se exerce, como
trabalhador sobre o solo que o alimenta. De que precisa o trabalhador? Criados,
cavalos, arados: é preciso mover tudo isso sobre a terra, e a terra se submete. O
poder acredita estar na mesma condição. Ministros, prefeitos, cobradores de
impostos, soldados, é a isso que ele chama meios de governo; e, quando ele os
possui, quando os dispôs em rede sobre a face do país, diz que governa, e se
espanta ao encontrar obstáculos, por não possuir seu povo como seus agentes.
Apresso-me a dizê-lo; não está mais aí o que entendo por meios de governo. Se
esses fossem suficientes, de que se queixaria hoje em dia o poder? Ele está
amplamente provido de tais máquinas. Entretanto, morre de fraqueza no meio

* Credo fundado para ele sobre três idéias: a afirmação da soberania do povo; a confusão entre a
recusa dos princípios aristocráticos e a rejeição das “capacidades” ou das “superioridades
naturais”; e a idéia de “governo a bom preço”.

440
de suas forças, como Midas de fome em meio a seu ouro. É que realmente os
verdadeiros meios de governo não estão nesses instrumentos diretos e visíveis
da ação do poder. Eles residem no seio da própria sociedade e não podem ser
separados dela(...) É uma coisa vã pretender regê-la pelas forças exteriores a suas
forças, por máquinas instaladas em sua superfície, mas que não têm mais raízes
em suas entranhas e não tiram daí o princípio de seu movimento. Os meios de
governo que encerra e o próprio país pode fornecer eis aqueles dos quais me
ocupo” (págs. 128-130). Essa longa citação situa bem a originalidade da aproxi­
mação de Guizot Se ele não foi o primeiro a criticar as máquinas políticas
complexas, a resposta que trouxe para esse problema difere profundamente de
todas as teorias de auto-regulação social que se haviam desenvolvido no século
XVIII (que a tônica era colocada sobre o mercado, como em Smith, ou sobre a
lei, como em Helvécio ou Bentham). Sua perspectiva não é absolutamente, com
efeito, a do governo a bom preço ou da harmonia artificial de interesses. Guizot
estima, ao contrário, que o governo não tem que ser humilde e que ele deve ser
“o chefe da sociedade”. Mas ele só pode sê-lo efetivamente e eficazmente se
tender a penetrar as profundezas do social. O poder deve saber “achar a
sociedade” e tecer sua tela organizadora nos entrelaces complexos de paixões,
opiniões e interesses que a fazem mover-se. O social é assim, ao mesmo tempo,
objeto e meio do político. O governo representativo é para Guizot a forma de
governo que tem como meta realizar essa interpenetração, permitindo es­
tabelecer entre a sociedade e o poder “sua relação natural e legítima”. Pela
publicidade dos debates, a liberdade da imprensa, o sistema de eleições, ele tem
“como resultado pesquisar sem parar dentro da sociedade, trazer ‘à luz as
superioridades de todo gênero que ela contém, trazê-las para o poder e, depois
de havê-las colocado, obrigá-las a merecê-lo sob pena de tomá-lo, obrigando-as a
só manejá-lo publicamente e por meios acessíveis a todos. Sistema admirável, pois
resolve o problema da aliança do poder com a liberdade; por um lado, só
concedendo o poder à superioridade; por outro, impondo à superioridade a lei
de se provar ela mesma, de se fazer constantemente aceitar” (págs. 165-166).
A teoria política dá, assim, igualmente às classes médias - as capacidades
- o papel central que a história lhe havia destinado: os imperativos da razão
confirmam os direitos da força. Fazendo de uma sociologia o nó de sua filosofia
política e de sua percepção da história, Guizot aparece bem como o antiMarx
por excelência.

► Ch. Pouthas, G u iz o t p e n d a n t la R e sta u ra tio n , Paris, 2923; D. Johnson, G u izot, a s p e c ts o f


F rench h isto r y , Londres, 1963; A ctes d u co llo q u e d e F ra n ço is G u izo t, Société de l’Histoire du
Protestantisme français. Paris, 1976; Pierre Rosanvallon, L e m o m e n t G u izo t, Paris, Callimard,
1985.

Pierre ROSANVALLON.

441
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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831
Princípios da filosofia do direito, 1821

Datado de 1821, aparece em Berlim, na Livraria Nicolai, uma obra com


duplo título —sobre a página esquerda, Naturrecht und Saatswissenschaft im
Grundisse (Direito natural ciência do Estado em resumo) e, em frente, sobre a
página direita, Grundlinien der Philosophie des Rechts (Princípios da filosofia
do direito), asssinada por Georg Wilhelm Friedrich Hegel, então com cinqüenta
e um anos, que há cinco era titular da cátedra de filosofia da Universidade de
Berlim e já muito conhecido e apreciado do público culto na Alemanha, na
Inglaterra e na França. Esse livro tem como material os cursos que Hegel
consagrou, desde sua chegada à Prússia, à questão política e aos problemas do
direito e do Estado. É significativo que tenha desejado e fiscalizado essa
publicação, e não tenha decidido fazê-lo quanto a outros cursos que dera,
consagrados à religião, à arte, à filosofia, à história, que só serão editados depois
de sua morte, graças aos cuidados dos amigos e discípulos. É precisamente um
destes últimos, Edward Gans, que, em 1833, publica uma versão mais extensa do
texto acrescentando-lhe "notas” tiradas dos cinco cursos pronunciadoss entre
1818 e 1824, versão que figura nas melhores edições atuais da obra hegeliana.
O cuidado tomado pelo Mestre de Belim com essa publicação, o fato de
a obra ser concluída, sem grande legitimação aparente, por um resumo breve
e surpreendente de sua concepção da história, a maneira pela qual Hegel não
parou de apresentar as duas grandes obras que a precederam, a Fenomenolo-
gia do espírito (1806-1807) e a Ciência da lógica (1812-1816), permitem
levantar uma hipótese, após as considerações de: Eric Weil (cf. bibliografia),
sobre o lugar que ocupa a teoria do Direito, da Moralidade e do Estado no
pensamento de Hegel. Desde que circunscrito seu projeto de retomada e de
conclusão da Metafísica, ele se quis sistema: o fim - no duplo sentido do termo
- da filosofia especulativa é sua constituição em Saber absoluto, definindo e
legitimando cada etapa de seu desenvolvimento e sintetizando em um discurso

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ao mesmo tempo genético (dialético) e panótico (estrutural) a multiplicidade
“totalizada” das manifestações do Ser. A fenomenologia do espirito deve ser
compreendida, esclarece Hegel, como a introdução e a primeira parte do
sistema. Ela possui a primeira característica, pois, se dirigindo à consciência
não-filosófica, descreve dentro de uma ordem, justificada por seu próprio
conteúdo, experiências individualizadas ou coletivas conduzindo para uma
apreensão cada vez mais conceituai dos afetos, das necessidades, das vontades,
das representações dos homens e dos grupos, e isso até às expressões
filosóficas mais aprofundadas; mas ela é também a primeira parte do Saber,
pois esse texto, tomado em seu conjunto, apresenta um caminho ou um
movimento fundamental - a dialética —, por um lado, e, por outro, desenha as
figuras do discurso articuladas em torno de conceitos-chave, compreendendo
as atitudes, as escolhas, as concepções de si e do mundo que foram as dos
indivíduos e das sociedades ao correr de sua transformação...
A própria existência da Fenomenologia como livro atesta o fato de que esse
resumo do passado se organiza segundo o princípio de uma unidade profunda,
contanto que se saiba conhecê-la tal como ela é em sua universalidade. Ela
estabelece também que chegaram os tempos em que se dá a possibilidade de
realizar o sonho dos metafísicos desde Platão: construir a Ciência do Ser, que se
efetua, desde então, como Ciência do Vir-a-ser (da transformação futura). Entre­
tanto, a empresa é de uma amplitude considerável. Hegel se liga a ela em seus
cursos, e a Enciclopédia das ciências filosóficas resume suas perspectivas.
Porém é importante fixar primeiro os conceitos fundamentais que estão no
princípio destes conhecimentos, conceitos que são também as categorias do Ser.
A essa tarefa corresponde a Ciência da Lógica. Esse texto constitui o centro ou
o núcleo do sistema: ele expõe, segundo a ordem da discursividade mais rigorosa,
o sistema das Idéias em torno das quais deve estabelecer-se todo discurso do Ser,
passado, presente e futuro. Ele é a condição de possibilidade, aos mesmo tempo
que o “esquema” dos saberes possíveis. Ele é o Saber absoluto...
As “ciências filosóficas”, entre as quais a "ciência” do Direito tal como
Hegel a concebe, são como as aplicações desse Saber às instâncias que o
pensamento reconhece em seu trabalho de apropriação cognitiva do real. Mas
precisamente o Saber do Direito e o conhecimento filosófico da Sociedade e
do Estado, que o prolonga e o funda, falam sobre “objetos” tendo uma
significação eminente. A concepção filosófica da história estabeleceu o que a
Fenomenologia do espírito já apresentava como o campo da doutrina hegelia-
na. O que os discursos filosóficos racionalizam a cada época e em cada lugar,
o que as religiões imitam e sonham, o que as forças políticas institucionalizam,
o que as artes exprimem, são o mundo, os deuses, o destino, o passado, o
futuro que cada povo representa e quer. Só os povos, em seus atos históricos,
inventam. Segundo Hegel, discípulo do progressismo das Luzes e partilhando
com o romantismo o culto da alma nacional, a cada etapa do Vir-a-ser das
Sociedades, um Povo encarna, em sua ação, o extremo avançado do Espírito,
o momento em que a cultura humana desenvolve ao máximo o que uma
sociedade de homens pode realizar.

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Assim foi com o povo do Egito dos Faraós, da Cidade grega, do Império
Romano, das Comunidades cristãs, dos Reinos medievais, das Nações reforma­
das, da Revolução Francesa... Assim é, hoje em dia, ainda segundo Hegel, o
caso do Estado moderno, que França e Inglaterra atualizam parcialmente, cada
uma a sua maneira, e cuja idéia freqüenta a Alemanha. Por conseguinte, se a
ciência do Estado é uma aplicação à realidade política do Saber filosófico, o
fato da existência do Estado moderno em gestação - que essa ciência tem por
pressuposto — constitui a condição histórica, contingente, produzida pela
história, sem a qual a realização do Saber absoluto não seria pensável, sem a
qual o hegelianismo não existiria...
Entre a efetuação do Saber como absoluto e como sistema e a realização
do Estado, se tece, portanto, uma relação fundamental. Se se junta a essas
considerações que, segundo a concepção hegeliana da história, estes tempos
em que acontecem silmultaneamente o Estado e a conclusão triunfante da
filosofia, marcam também as origens do fim da história, pode-se admitir que o
texto que disserta sobre esse triplo acontecimento é ele mesmo a realização
do sistema: os Princípios da filosofia do direito são não somente uma
aplicação do saber, são também, enquaznto discurso do Estado, sua utilização.
A leitura dos Princípios... supõe que se aceite, ao menos provisoria­
mente, receber verdades que Hegel estabeleceu (ou acreditou ter estabelecido)
em outro lugar e que intervém aqui como princípios. Entre esses o mais
importante diz respeito à concepção da história. Quando o jovem Hegel planta
uma árvore da Liberdade em Tubingen, 1790, com seus condiscípulos Novalis
e Schelling, para celebrar a Revolução Francesa, quando escreve alguns anos
depois esta frase-programa, ingênua e subversiva, “pensar na vida, eis a tarefa",
prefigura a resolução que tomará daí a pouco tempo e que marcará seu destino
nacional de pensador do Estado-nação: fazer entrar a história das sociedades,
com seus fracassos, seus ônus e suas idealizações, nas discussão filosófica, a
partir desta zona crítica que é a experiência revolucionária francesa, para
estendê-la amplamente à parte ante até às primeiras formas da ordem política
e à parte post do lado das expressões mais racionais do exercício dos poderes
judiciário, legislativo e governamental na época contemporânea.
Trata-se nada menos do que pôr fim à recusa à qual geralmente procedeu
a tradição metafísica de ignorar, eliminar ou reduzir "as coisas em transforma­
ção”, e isso, precisamente, pela integração da história (res gestae) não somente
como narrativa ou saber parcial (historia rerum gestarum), mas como tema
filosófico de primeira categoria. Redistribuindo completamente os fatores cons­
titutivos da concepção cristã do tempo em que Agostinho foi o teórico (século
V), o autor de Fenomenologia do espírito integra e unifica, com sua maneira
racional, as temporalidades para definir um campo que é o da formação e da
realização do Geist, termo que quer dizer Espírito, mas que se pode também
traduzir por cultura, no triplo sentido de educação, concepção de si e do mundo
e saber. Isso a partir de que a metafísica pensou ser esse o campo do próprio
movimento de tudo o que se transformou e que chega ao que é atual; ela se torna
ciência (ou saber) —e se abole como metafísica —quando consegue organizar

445
isso tudo segundo um discurso obedecendo à ordem das razões. Ela só pode
chegar lá se o atual lhe der a possibilidade de adotar um ponto de vista sintético
sobre o que foi (transformado). Ora, esta possibilidade não é trazida nem por
alguma disposição superior da Razão até então ignorada, nem por uma revelação
que, do exterior, interviria como fonte dé luz. Ela é produzida pelo próprio curso
da história: tudo junto, por exemplo, o passado filosófico que tornou possíveis a
Fenomenologia do espírito e a Ciência da lógica e as lutas grandiosas e trágicas
dos povos que conduziram às ações que estão na origem do Estado moderno.
Os Princípios da filosofia do direito pressupõem esse resumo e a
capacidade de empregar os conceitos permitindo conhecer a racionalidade da
ordem política. Rápido fez-se dizer a este propósito, com a finalidade de
simplificação pedagógica, que a doutrina hegeliana é histórica e que, como tal,
adota o método dialético, sendo este definido pela tríade famosa: posição ou
imediação (tese), oposição ou mediação (antítese) e ultrapassagem ou sublima-
ção (síntese). É fato que o plano em três partes de Princípios... corresponde
formalmente a esse esquema. Mas é importante não esquecer as recomen­
dações que reiteram a Fenomenologia... e a Ciência da lógica: se a exposição
adota esse procedimento não é porque uma classificação tripartida viria do
exterior se impor a um material sem forma, mas muito mais porque ela exprime
o “movimento da própria coisa". A forte crítica que Hegel desenvolve contra a
filosofia da reflexão o obriga a recusar todo formalismo: o ser e o Pensamento
são as duas faces da totalidade real; não existe pensamento que não pense
sobre o Ser de alguma maneira, não existe ser que não esteja de alguma
maneira relacionado com o Pensamento...
Por conseguinte, quando se trata da obra hegeliana, os debates concer­
nentes a seu idealismo ou a seu realismo estão antecipadamente situados fora
de prumo (desviados de seu alvo). A ela, assim como a todas as grandes obras
filosóficas, semelhantes generalidades não podem ser aplicadas, e é sensato
evitá-las mesmo quando se visa a fins polêmicos. A esse respeito, os discípulos
de Marx e, em primeiríssimo lugar, Engels e Lênin se ridicularizaram es­
carnecendo de um idealismo de Hegel que se inscrevia nas perspectivas abertas
por Platão, Berkeley e... Kant! Assim como são fora de propósito os ques­
tionamentos recentes do hegelianismo acusando-o de subscrever um realismo
político que o faria aceitar espontaneamente qualquer episódio da história por
mais trágico que fosse! Faz parte do trabalho da racionalidade, para Hegel,
assim como da vontade de explicação das ciências na admirável leitura que
Gaston Bachelard faz dele: idealismo e realismo são dois momentos comple-
mentares, ao mesmo tempo que antagonistas, de sua dinâmica. A imperícia da
metafísica de escola é acreditar que se traz o mínimo de esclarecimento,
imobilizando-a em um dos estágios de seu processo.
É verdade que a questão do idealismo (ou do realismo) hegeliano parece
repousar em termos mais sérios quando se choca com a fórmula que constitui
o eixo do Prefácio de Princípios da filosofia do direito: "O que é racional é
real, e o que é real é racional” (tradução francesa de R. Derathé e J. P. Frick,
pág. 55). Não seria o cúmulo da confusão? Sob pretexto de igualar Ser e

446
pensamento, Hegel não estaria subscrevendo na primeira parte dessa frase um
idealismo bastante ingênuo e, na segunda, um realismo politicamente desmo-
bilizador? Ele não estaria confessando sobretudo seu culto ao fato consumado,
sua devoção à história, tal qual ela é, e sua vontade de impedir na pesquisa
filosófica, por motivos pretensamente teóricos, o recurso a qualquer dever-ser
que fosse?
Dessa meneira procedem numerosos marxistas, notadamente Georg Lu-
kács, que se indignam ao ver a legitimação do presente em nome da Razão;
assim procedem também, entre outros, sociólogos de inspiração neokantiana
que classificam uma vez por todas o hegelianismo como expressão maligna de
uma filosofia da história necessitarista cuja finalidade é justificar a Razão de
Estado por meio do esquema de artifícios que a razão deve empregar para ser
concluída. Uns e outros estão de acordo em condenar um sistema que, no
fundo, dentro da idéia de aplicar com todo o rigor o princípio da Razão, acaba
por fazer aceitar como “mal necessário” os crimes, os genocídios e as tiranias
que aparecem de tempo em tempo na história. Nos dois casos, há, parece, uma
interpretação sumária.
Existe certamente muitas maneiras de recusar o hegelianismo como
doutrina. Mas quão desatenta é a leitura que acaba por lhe opor objeções que
ele antecipadamente compreendeu e ultrapassou, e principalmente acaba por
entender a exigência do Saber absoluto como uma apologia da irrecusável
necessidade do Vir-a-ser. Hegel não pára de afirmar que o que foi, o que é e o
que virá a ser são o resultado da vontade dos homens, de sua liberdade. Mas
a contingência do Vir-a-ser não significa de maneira nenhuma que não se
possza querer aplicar a inteligibilidade máxima. Hegel pensa que essa inteligi­
bilidade se concretiza em um Saber sistemático: ele não declara de maneira
nenhuma que devia ou deve ser assim. O "tribunal do mundo” que constitui o
conhecimento filosófico não diz que o que foi e o que é são “bons” ou
necessários: ele descobre como o que foi e o que é devem ser conhecidos, E —
se bem que permaneça muito cético quanto à eficacácia das "lições da história”
—ele espera que esse conhecimento possa esclarecer a vontade dos homens
que se interessam pelo destino da humanidade...
No que lhe diz respeito como subjetividade empírica - a julgar por suas
tomadas de posição política circunstanciais pouco numerosas e, elas próprias,
cuidadosamente ponderadas e por aquilo que transparece em sua correpon-
dência - Hegel pertence ao campo que se poderia chamar liberal, quanto a seu
compromisso político pessoal. Ele deseja, para a Europa, o desenvolvimento e
o sucesso das empresas que visam à instalação de Estados parlamentares sob
a forma de monarquia constitucional, no seio da qual seja garantido o respeito
de um direito público e privado estritamente estipulado, que seja assegurada,
em cada Nação, uma administração centralizada, que seja estabelecida, sem
contestação no exterior assim como no interior de cada país, a soberania do
Estado, que seja permitido e encorajado o livre desenvolvimento das pro­
duções do comércio, do artesanato e da indústria... Ele espera, no que concerne
à Alemanha, que a Prússia se torne capaz de dominar um destino que lhe

447
deveria lhe permitir ter acesso a essa "modernidade” política e econômica e de
conduzir, nesse movimento, o conjunto dos principados germânicos.
Herdeiro do progressismo das Luzes e convencido de que é legítimo e justo
querer a instauração de um Estado mundial, lugar de conquista da humanidade
que adquiriu em seu ser universal o estatuto da cidadania, ele é também
partidário dos valores “tradicionais” da família e da propriedade e se mostra
preocupado em manter uma ordem política rígida... Em resumo, ele não é nem
de opinião revolucionária, nem de opinião reacionária (ou “real-prussiana”, como
afirmam certos discípulos de Marx, pouco sensíveis às nuanças introduzidas por
seu mestre). Não se pode dizer menos do que: sua obra política é tudo menos
medíocre. O texto, amplo, perfeitamente articulado, cuidadosamente legitimado,
faz conter em uma única meta sistemática os níveis múltiplos da realidade das
sociedades européias mais avançadas —o critério do "avanço” sendo próprio
desse tipo de sociedades - nesse primeiro terço do século XIX: realidade do
direito privado e da ordem penal, realidade dos costumes e da pessoa moral,
realidade do mundo sócio-profissional e de seus conflitos, realidade da organiza­
ção administrativa, realidade dos poderes legislativo, judiciário e governamental,
realidade da soberania do Estado. E para apresentar esquematicamente esta
meta que procede este artigo. Seria apenas para saber se os Princípios da
filosofia do direito possuem a atualidade que Kojève e Eric Weil, em óticas bem
diferentes, não hesitam em lhes atribuir.
A aplicação — conclusão do saber que os Princípios constituem... se
apresenta, portanto, como um texto articulado dialeticamente em três partes,
ao qual precedem um Prefácio e uma breve introdução e que é concluído,
porém, de maneira integrada ao corpo da terceira parte, por um resumo da
filosofia hegeliana da história.
O Prefácio, importante tanto pelo estilo filosófico que utiliza quanto pela
força polêmica da qual dá provas, é o que deve estar dentro da perspectiva do
sistema, que é a do filósofo de Berlim: indica, “de maneira exterior e subjetiva,
o ponto de vista do texto que ele precede” (tradução de Derathé, pág. 59). Em
outros termos, ele define, sem outras provas além das fornecidas pelo senso
comum e pelas "lições da história”, a finalidade da obra; afirma que esta
finalidade é acessível baseando-se somente sobre os resultados adquiridos em
outros textos - a Fenomenologia do espírito e a Ciência da lógica, principal­
mente. Quanto à demonstração concernente às matérias jurídicas, morais,
sociais e políticas, elas são remetidas evidentemente aos próprios desenvolvi­
mentos do livro. Em resumo, esse Prefácio abrange a tomada de posição
jurídico-política do filósofo.
O que se pode esperar de um estudo nesse domínio? Um saber que fala,
esclarece a Introdução (add. ao § 33, pág. 92 da tradução citada), "não
somente sobre o direito civil... mas [sobrej a moralidade, a vida ética e a história
universal”. Essa extensão a campos não habituais da análise jurídica se explica
não por uma fantasia do autor, mas pela própria natureza do objeto do qual
trata o direito. O direito positivo expõe e estuda as regras - as leis —que regem
o comportamento dos indivíduos e dos grupos no âmbito de tal ou tal nação.

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De uma certa maneira, essas leis são dadas, assim como o são as leis da
natureza, observa uma nota acrescentada ao Prefácio (trad. cit, pág. 48), e, de
uma certa maneira, é exigido conhecê-las como dadas. Mas, sob um outro
aspecto, "no caso das leis do direito, intervém o espírito de reflexão, e a
diversidade dessas leis basta para nos tornar atentos ao fato de que essas leis
não são absolutas. As leis do direito são alguma coisa colocada, alguma coisa
que provém do homem. A convicção interior pode entrar em conflito com essas
leis ou a elas aderir. O homem não se atém àquilo que é dado na existência,
mas afirma, ao contrário, ter nele a medida do que é justo. Ele pode sem dúvida
estar submetido à necessidade e à dominação de uma autoridade exterior, mas
não é como no caso da necessidade natural, pois seu interior lhe diz sempre
como as coisas devem ser e é dentro dele mesmo que encontra a confirmação
ou a desaprovação do que está em virgor" (ibidem).
Em resumo, o direito, que tem por finalidade regular as vontades dentro
do quadro da existência coletiva, é um produto histórico e, como tal, é objeto
de explicação. Nao deixa de ser também objeto de aprovação, e isso enquanto
oferece, à vontade, em geral, "bons” ou "maus” fins. É precisamente neste
estatuto equívoco que a pesquisa contemporânea sobre o direito e a política
deve se dividir em duas “Escolas”, abstratamente opostas uma à outra e uma
e outra não-essenciais: uma, sob pretexto de que os costumes são dados, se
interessa somente pelo direito como formalização e pela política como ins­
tituição, de um lado, e, de outro lado,só se aplica à realização delas como
jurisprudência e técnica de governo; outra, constatando que a reflexão não
consegue dar conta do conjunto da realidade ética, aproveita para renunciar a
toda investigação racional e abandona o campo do direito, da moralidade e da
política aos impulsos do coração, ao fervor da lembrança ou às afirmações
arbitrárias sobre o futuro da humanidade. Chamaríamos hoje em dia a primeira
de positivista e administrativa e a segunda de idealista e moralizante...
O ponto de vista da filosofia é o do conceito. A exigência de rigor e de
legitimação que o caracteriza permite-lhe guardar-se dos transbordamentos
românticos e, mais geralmente, dessa tentação “idealista" que tão freqüente­
mente levou à abstração e ao sonho os filósofos infamados com a política. Diante
desses excessos, que rapidamente descambaram na divagação e nos processos
dedutivos a um só tempo loucos e meticulosos, dos quais a Kallipolis de Platão
fornece o mais belo exemplo, e com a mesma ligeireza abandonam o pensamento
aos delírios da imaginação que antecipadamente condenam as legislações e
ordenamentos, quaisquer que eles sejam, a prática do conceitos ergue a retidão
de suas perspectivas: o conhecimento só admite e só pode admitir o qúe é, e o
que é só pode ser, em sua expressão legítima, o que é discursivamente legitimável
ou, ainda, só o que é racional. Ora, “a filosofia, precisamente porque é a
descoberta do racional, é também do mesmo modo a compreensão do presente
e do real, e não a construção de um além que só Deus saberia onde —ou, então,
pode-se dizer onde se encontra, isto é, no erro de raciocinar de uma maneira
parcial e vazia” (ibidem, pág. 54). Além disso, “ o que nos ensina o conceito a
história nos mostra com a mesma necessidade” (pág. 58): os povos e os heróis

449
cujas obras e os atos pontuam o vir-a-ser inventivo da humanidade não es­
peraram, em geral, os teóricos para se governar e se dotar de constituições...
Não é razoável pretender saltar por cima do seu tempo. Um escrito
filosófico “deve se manter afastado da tentação de construir um Estado tal como
ele deve ser. Se esse tratado contém um ensinamento, ele não se propõe, todavia,
a ensinar ao Estado como ele deve ser, mas sim mostrar como o Estado, esse
universo ético, deve ser conhecido” (pág. 57). É, portanto, um “ realismo”
abalizado que governa a pesquisa de Hegel: trata-se, aplicando às sociedades, à
sua regulamentação sócio-econômica, à sua administração, à sua legislação e ao
seu governo, o tipo de pensamento que definiu a Ciência da lógica, de colocar
em plena luz a maneira de ser coletiva que se deu à humanidade, na época em
que enfim se acharam reunidas as condições que permitiram ao projeto filosófico
do Saber absoluto encontrar sua efetuação em um discurso científico: o Estado
moderno, tal como a ação da Revolução Francesa e de Napoleão Bonaparte,
lançou seus fundamentos e, tal como ele, se realizou, desajeitada e parcialmente,
em diversos graus, na Grã-Bretanha, na França e na Prússia nos anos de 1820.
Os Princípios da filosofia do direito vão descrever o direito privado, a
moralidade subjetiva, o estatuto da pessoa e da família, a ordem econômica, o
acordo internacional do qual esse Estado é o princípio soberano. Quer dizer
que esse “realismo” significa a assunção pura e simples do que é empirica-
mente e que ele sacrifica à Realpolitik? Não é nada disso.
Se Hegel faz questão de conhecer o Estado como deve ser conhecido, é
porque precisamente ele constata que nem os governantes, nem os governados,
notadamente na Prússia, o apreendem como convém. Desse desconhecimento
resultam desordens e bloqueios que anunciam uma eventual estagnação e
possíveis violências. Por conseguinte, o objetivo do livro está fixado claramente:
é importante fazer conhecer o mundo ético contemporâneo em sua extrema
modernidade —situada, segundo o filósofo, a oeste da península européia —
segundo a ordem em que deve ser conhecido: direito abstrato, moralidade
subjetiva, moralidade objetiva —família, sociedade civil (burguesia), Estado - a
fim de ensinar às pessoas a se quererem real e continuadamente como cidadãos,
já que está na cidadania, que é oferecida ao homem como indivíduo e como
coletividade, a possibilidade de realizar plenamente, sob os auspícios da Razão,
sua liberdade. Na época do fortalecimento do estado-nação, Hegel acreditou que
a tarefa da filosofia fosse ensinar a querer o Estado.
Esse ensinamento procede de maneira demonstrativa. A primeira etapa
da demonstração estuda o mundo ético —a Sittlichkeit —moderno enquanto
se dá à experiência aparentemente imediata de cada um, quer dizer, enquanto
direito abstrato. Esse direito é o que se liga ao estatuto da pessoa, da vontade
livre. Daqui para frente - e está aí, aos olhos de Hegel, um dos aspectos
decisivos dessa modernidade que começa a se realizar a oeste da Europa —,
cada membro da coletividade será mantido por uma vontade livre. De uma vez,
o pertencimento real de cada um à coletividade começa com o conhecimento
que cada um deve ter de sua liberdade como pessoa e da liberade de todos os
outros: “Seja uma pessoa e respeite os outros como pessoas” (Princípios... &

450
36, trad. cit pág. 97). Esse é o primeiro princípio que permite entrar no
universo jurídico-político.
Entretanto, a pessoa se experimentando em sua consciência como liber­
dade é ainda abstrata. Ela o é no sentido em que ela está confinada em sua
subjetividade. Para que ela adquira um estatuto objetico, é preciso que ela se
exteriorize. Essa exteriorização é o meiotermo graças ao qual a pessoa, encon­
trando uma garantia dentro da objetividade de membro potencial da coletividade
começa a se tornar membro real. 0 ato próprio da pessoa é a apropriação, e o
“objeto” que corresponde a ele, a propriedade. Seria um contra-senso, todavia,
estender esta extensão da liberdade da vontade pessoal à liberdade da proprie­
dade dentro de um ótica puramente empírica. O que adquire o homem moderno
recebendo, ao mesmo tempo que seu estatuto de pessoa, a capacidade objetiva
de apropriação não é somente um meio efetivo de socorrer a suas necessidades
e mesmo de satisfazer uma tendência natural para a denominação. Esse aspecto
só vale, do mesmo modo que no ato de apropriação, se define um direito: o direito
da pessoa de incorporar a seu ser livre o haver de sua propriedade. O indivíduo
livre age e possui o que ele produz: é essa a maneira “natural” de entrar em
relação de sociedade com os outros indivíduos que, como ele, a constituem.
Assim, “o caráter racional da propriedade não reside na satisfação das necessi­
dades, mas naquilo que a pura subjetividade da personalidade suprime. É
somente na propriedade que a pessoa existe como razão” (add ao § 41, pág. 100).
Mede-se aqui a diferença profunda existente entre o ponto de vista
exposto em 1650 por John Locke no Dewdème traité du gouvemement civil
(Segundo tratado do governo civil) e a perspectiva hegeliana. Nos dois casos,
trata-se exatamente de sublinhar a importância do ato de apropriação e da
propriedade dentro do ser do homem moderno. Mas John Locke não se
preocupa em estabelecer o “governo” de maneira diferente de expressão da
associação empírica dos proprietários... De maneira oposta, desde o primeiro
momento de sua demonstração, Hegel se dedica a seu projeto: fazer conhecer
a racionalidade por meio da obra dentro do universo ético para que sejam
conhecidas as coisas como elas devem ser conhecidas e para que a vontade se
ordene à razão. Mostra, assim, como, a partir da propriedade, a pessoa não
somente se "objetiva”, mas ainda organiza sua existência em função de suas
relações com outros membros da coletividade: a troca, o negócio, a alienação
parcial da atividade no trabalho assalariado, etc., numa meta que é aparente­
mente utilitária, mas que, na verdade, tece, em um nível elementar, a rede da
racionalidade social.
A peça principal dessa primeira parte consagrada ao direito abstrato é a
idéia do contrato. Pois é sob seus auspícios que se estabelece uma relação de
vontade a vontade, isto é, uma relação concreta que, empregando dois sujeitos,
pode se estender ao conjunto dos membros da coletividade: “Essa relação de
vontades é o terreno próprio e verdadeiro em que a liberdade tem uma
existência concreta. Essa mediação que estabelece a propriedade, não mais
apenas por intermédio de uma coisa e de minha vontade subjetiva, mas
também por intermédio de uma outra vontade e em que, em seguida, a

451
propriedade resulta de uma vontade comum, constitui a esfera do contrato”
(§ 71, págs. 123-124). Com a extensão da representação contratual, tornam-se
inteligíveis os esquemas que organizam o mundo privado da troca e do
negócio; uma sociedade começa a se desenhar...
Entretanto, contrariamente aos modos de raciocínio aos quais nos acos­
tumaram os teóricos do direito natural, a passagem para a ordem política - ou
de qualquer outro nome que se chame essa instância — não se opera neste
estágio. Está longe disso. A demonstração hegeliana permanece no aspecto penal
do direito privado e se abstém de se interrogar sobre a natureza dos tribunais
que julgam os delitos, os crimes e as penas dos quais vai tratar. A razão é que
não está em seu projeto engendrar o poder ou o Estado, por referência factual,
artifício ou dedução. O Estado, o governo, o poder judiciário já estão aí. O que
convém a seu modo de exposição é fazer conhecer os momentos constitutivos da
cidadania e da sociedade modernas na ordem das razões, do imediato à última
mediação, do parcial ao total, do abstrato ao concreto.
Na extensão do contrato de pessoa a pessoa se encontra implicado que
ele pode ser - o que ele é, de fato — “contradito”. Mais precisamente, o
compromisso que ele estipula - o respeito pela palavra dada, que arrasta o
respeito do proprietário, da livre apropriação e da propriedade - pode ser
objeto de uma violência ou de uma violação. O princípio da liberdade da pessoa
exige que seja dado remédio a estas últimas: é a punição. Não se pode seguir
aqui, por falta de lugar, as distinções que Hegel introduz entre os diversos
níveis de violência feita à construção do direito privado e as considerações que
ele desenvolve a propósito da proporcionalidade necessária entre a gravidade
do delito e a da pena. O que é importante, todavia, é que o remédio não visa
essencialmente a vingar a pessoa lesada, melhorar o ser-empírico do criminoso:
a contraviolência que é exercida faz da pena um castigo. Ela só deixa de ser
uma violação do direito em retorno porque a administração da punição está
“livre do interesse subjetivo" e “da forma subjetiva e da contingência engen­
drada pela força”. A terceira parte dos Princípios (§ 209-229) estudará a
administração da justiça, justiça em que e pela qual a vontade subjetiva
particular realiza sua aspiração à universalidade (§ 103, pág. 146).
Entretanto, a subjetividade deve provar por si mesma essa aspiração. É
o objeto da segunda parte do tríptico consagrado à Moralidade. Trata-se aí da
moral, no sentido banal do termo e, principalmente, na acepção em que ele foi
aceito desde que Kant, na Crítica da razão prática (1787), lhe definiu o campo.
Por necessidade editorial, se encurtará, de maneira totalmente ilegítima, se se
levar em conta o alto interesse teórico destas páginas, essa parte mediana dos
Princípios da filosofia do direito, apenas retendo dela o que toca diretamente
o problema da política e do Estado.
Dois pontoss essenciais devem ser evocados. O primeiro concerne ao
grande ensinamento que Hegel recebeu da concepção kantiana do sujeito moral.
Como enfatizaram, cada um à sua maneira, Eric Weil, Eugène Fleischmann e
Denis Rosenfield, Hegel não somente faz sua a colocação em questão dirimente
operada por Kant de todas as morais passadas, fundadas sobre um princípio

452
ontológico transcendente —Deus, a Natureza, a Consciência ou a Sociedade -,
mas ainda adota o princípio fundamental de Kant de que o sujeito da ação se
caracteriza por sua autonomia e de que a única lei que ele pode reconhecer é a
exigência imprescritível de universalidade. Na verdade, a "moral" de Hegel é
kantiana do começo ao fim. É capital lembrar, contra muitos analistas da obra
hegeliana, que a moral - de estilo kantiano —é uma peça essencial do sistema
político. A cidadania tal como a considera a filosofia de Berlim só é compreendida
dentro dessa perspectiva. A instância moral não é de nenhuma maneira iludida.
Sem ela, nada se mantém: nem a passagem do direito privado para “o indivíduo-
livre-de-seus-atos”, etapa decisiva levando à moralidade objetiva, nem o estatuto
da individualidade dentro da sociedade civil (burguesia), nem a instância do
cidadão, que é o objetivo da demonstração hegeliana.
A adesão é inteira; apenas nesse “detalhe” é que, na descrição kantiana,
falta uma realidade (ou um campo) em que esse desejo de universalidade se possa
realizar e tornar-se efetivo. Mais precisamente, essa alteridade existe, mas como
transição contingente que, conseqüentemente, pode ser, no melhor dos casos,
objeto de esperança. O imanentismo hegeliano é mais exigente. Que o indivíduo
se experimente como consciência livre e como vontade de expressão na proprie­
dade, que ele se constitua como sujeito na reclamação de um ponto de vista
universal unificando a ótica de todos seus semelhantes, isso só vale a pena ser
conhecido se se encontrarem definidas as categorias, permitindo conhecer
também, conforme quadros de inteligibilidade específicos, o homem agindo na
sua família, nas sua profissão, no sistema de trabalho, na coletividade cívica em
que, segundo a invenção moderna, o Estado-nação é soberano...
O “detalhe" é decisivo. Uma inversão completa de ótica se operou. Na
perspectiva hegeliana, a dicotomia que Kant aceita entre uma ordem do
determinismo e uma ordem da liberdade, entre a intenção e o ato, entre a
virtude e a felicidade só é admissível do ponto de vista do sujeito moral; e esse
ponto de vista é apenas um momento na formação do homem moderno. Por
que ele se repugnaria em querer, ao mesmo tempo que a universalidade da lei,
sua própria satisfação? “Nós podemos colocar aqui a questão de saber se o
homem tem o direito a tais metas não livremente escolhidas, que repousam
sobre o único fato de ser o sujeito um ser vivente. Que o homem seja um ser
vivente, não há nada de contingente aí; é um fato em conformidade com a
razão, e o homem tem direito de fazer considerar meta de sua ação a satisfação
de suas necessidades. Não existe nada de desonrante no fato de ser um ser
vivente e, para o ser vivente, não havia nenhuma forma superior de es­
piritualidade na qual ele pudesse existir. É só elevando o que está dado ao nível
de alguma coisa que se cria para si mesmo que se atinge a esfera mais alta do
Bem que, por mais diferenciada que seja, não comporta, todavia, nenhuma
incompatibilidade entre os dois lados (o lado natural e o lado espiritual)” (add
ao § 123, pág. 162).
0 formalismo e o heroísmo kantianos conduzem a impasses que não podem
levar em conta a consideração da humanidade em seu ser histórico. Ela deve ir
além. Essa ultrapassagem sintética forma a terceira parte do tríptico. É a vida

453
ética (Sittlichkeit), isto é, a sociedade no conjunto de suas determinações
empíricas —os dois sistemas encaixados da família e da sociedade civil (burgue­
sia) - e no princípio imanente que a unifica - o Estado. Esse conceito de vida
ética (Sittlichkeit) está no centro do pensamento hegeliano. Nessa realidade
substancial se unem vários pares de contrários e se definem os núcleos a partir
dos quais a história universal hegeliana vai tomar consistência. Dentro e pela
Sittlichkeit-o sistema aberto, articulado, irradiante de representações coletivas,
de “valores”, de costumes ordenando a vida cotidiana, de instâncias subjetivas e
objetivas determinando as condutas, de instituições regulando os fluxos simbó­
licos e espirituais da coletividade, as obras e os atos resultantes desse contexto
- , se combinam primeiro o concetio de história universal, precisamente, como
movimento unificado tendo uma direção e um sentido, e o de povo, como
encarnação, em uma época, essencialmente passageira, desse sentido; fundando-
se o conceito de coletividade política (ou de comunidade) —que é o Um (do qual
o Povo é a imagem do Múltiplo) —e a diversidade dos quereres subjetivos que
se deveriam anular e, entretanto, fazem efeito; unificando-se a aspiração es­
piritual dessa coletividade a um projeto de grandeza ou de glória - religioso,
estético, político, etc. — e as lutas quotidianas em torno da satisfação das
necessidades para a sobrevivência ou melhor-estar; se interpenetram, nesse misto
que é o da discursividade histórica e filosófica, os atos empíricos dos heróis,
grandes e pequenos, que agem no dia-a-dia, e o pensamento que (aí) se conclui
e que, entretanto, “só se levanta quando a noite cai”.
É na vida ética, isto é, com a história e na assunção da historicidade, que
a liberdade se torna real. O primeiro momento dessa realização é a Família.
Ela é o elemento constitutivo —o elemento de base —da coletividade. Como
ela é motivada pelo sentimento natural do amor e é o lugar da procriação, ela
se avizinha da animalidade. Porém, precisamente, ela se inscreve como "ins­
tância” espiritual e como ascensão à vida ética, porque está fundada sobre a
instituição do casamento, pela qual duas pessoas livres se comprometem a agir
como uma só. As considerações hegelianas sobre a família parecem hoje em
dia algumas totalmente obsoletas (notadamente a propósito da diferença entre
a mulher e o homem),outras inovadoras com moderação (sobre o divórcio, por
exemplo). Eles são, em todo caso, muito marcantes. O interesse que elas
apresentam se deve essencialmente ao lugar que ocupam na construção dos
Princípios. Elas retomam, consolidando-as e ampliando-as, as maneiras de ver
que estavam expostas na primeira parte do tríptico. A família - do mesmo
modo que a vontade só se efetuava na apropriação - , que existe pelo
casamento e pela educação das crianças, só encontra sua plenitude no patri­
mônio. Dentro da ótica de Hegel, a família, na sociedade moderna —que ele
vai qualificar de burguesa - , é a base, no sentido quase material, do ser-coletivo
e se efetua dentro da propriedade...
Sobre essa base, as nações mais “avançadas” edificaram uma formação
cuja importância é característica precisamente da modernidade: a sociedade
civil (bilrgerliche Gesellschaft, expressão que se pode traduzir também por
“sociedade burguesa”) foi concebida segundo as categorias que elabora no

454
decorrer do século precedente aqueles que se chamará de os fundadores da
economia política clássica. Os fisiocratas, de um lado, os teóricos britânicos
do outro, James Stewart, Adam Smith, David Ricardo... Essa tomada de conta
do domínio econômico como constitutivo da realidade histórica atual significa
que esta realiza uma potencialidade inerente a toda coletividade humana e que
o conhecimento desse domínio e de seus mecanismos é indispensável ao
conhecimento do Estado tal como ele é, portanto, à educação do cidadão.
O que é se conhecer como agente econômico? É primeiro se conhecer
como ser de necessidade que reage a essa dependência pelo trabalho. Nesse
domínio, o que é propriamente humano é o fato de ir além da particularidade
das necessidades, de as universalizar e de ser capaz de responder a essa
universalização da demanda assim criada pelo desenvolvimento indefinido das
atividades laboriosas... Em uma dada época, em uma dada sociedade, ao
sistema das necessidades historicamente produzido responde um sistema de
trabalho em que cada gesto, em uma profissão, corresponde a outros gestos,
em que cada profissão corresponde a outras profissões, em que se construiu
portanto, uma ordem econômica no âmbito da qual se especifica e se raciona­
liza a divisão do trabalho e se desenvolvem a técnica e o maquinismo. Hegel
indica nesta sociedade do trabalho duas divisões maiores: a primeira é funcio­
nal, a segunda concerne à “justiça distributiva”. Quanto às atividades, pode-se
efetivamente distinguir três classes: a substancial ("ela tira sua riqueza dos
produtos naturais do solo que ela cultiva” (§ 203, trad. cit, pág. 226), a
industrial (ela “tem como atividade a transformação dos produtos naturais” e
se subdivide ela mesma em artesãos, fabricantes e comerciantes, (§ 204, págs.
227-228) e a universal (“encarregada dos interesses gerais da sociedade, ela
deve ser dispensada do trabalho direto para a satisfação das necessidades, seja
por fortuna privada, seja pelo Estado...” (§ 205, pág. 228). Quanto às riquezas,
é inevitável, quaisquer que sejam os protestos do entendimento abstrato, que
elas sejam repartidas desigualmente. A participação de cada um no trabalho
da coletividade é função do capital e da habilidade que ele traz, e ela tem, por
princípio subjetivo, o lucro.
Tal sistema é de grande fragilidade: sua racionalidade lacunar é atravessada
por contradições que são, ao mesmo tempo, os sinais do dinamismo interno que
o leva a se desenvolver sem parar e a aumentar assim a força e o bem-estar da
coletividade. Portanto, é importante que essas contradições se mantenham como
convém, mas que elas não degenerem em conflitos dirimentes. Esse será o papel
da Razão em processo, dentro do Estado. Porém, desde logtf, na continuidade
daquilo que ele estabeleceu na primeira parte dos Princípios, Hegel mostra como
a sociedade civil (ou burguesia) secreta segundo sua ordem natural os meios de
remediar os efeitos dessas “desordens” sem as abolir. Para isso existe o direito
positivo ou as leis em vigor em dado país, a administração judiciária e os
tribunais encarregados de vigiar a aplicação delas e de punir os crimes e os
delitos. Da mesma forma existe a polícia que tem o encargo da proteção das
pessoas e dos bens, e que providencia também o bom andamento da sociedade
(vigiando, por exemplo, para evitar que o fosso entre os ricos —sempre mais ricos

455
— e os pobres - sempre mais numerosos — não introduza um desequilíbrio
perigoso). É a esse propósito que o filosofo assinala o bom uso da colonização,
que “permite (a uma sociedade) procurar fora de si mesma consumidores e os
meios necessários à sua subsistência” (§ 246, pág. 252). Dentro do mesmo
espírito, intervém a corporação que permite aos indivíduos pertencentes à classe
industrial, confinados no particularismo de sua atividade, reencontrar “subs­
tância ética” na solidariedade profissional: “Ao lado da família, a corporação
constitui a segunda raiz ética do Estado, a que está implantada na sociedade
civil” (§ 255, pág. 256).
Entretanto, esse remédio não vale mais do que o outro paliativo que o
filósofo observa: as guerras internacionais, com objetivo econômico, não
bastam para compreender como a sociedade civil existe também e sobretudo
como Sociedade política. A modernidade, desde o século XVI, radicalizando as
experiências realizadas pela cidade grega, o “Senado e o povo romano" e os
reinos medievais, inventou o Estado como essa realidade em e pela qual podem
se operar a síntese entre a liberdade e a satisfação de cada um e a utilização
de um projeto racional comum, próprio à coletividade histórica, realidade a
partir da qual, além disso, pode ser enunciado, na ordem das categorias que
convêm, o Saber daquilo que é... Os oitenta e quatro parágrafos que formam
a penúltima parte dos Princípios descrevem o estado moderno tal como ele
deve ser conhecido. Propondo esse conhecimento, Hegel visa a colocar em
evidência o que seus contemporâneos não vêem, já que obedecem aos poderes
por submissão de princípio ou já que eles os criticam e lhes opõem amáveis
utopias. Convém saber o que, seja como quiser, o Estado é, mas que a
soberania e a racionalidade, das quais ele é o depositário e o agente, estão
confusas pelo fato de aqueles que agem nele e para ele ignorarem o que ele é
e se contentarem com representações vagas e flutuantes. Napoleão Bonaparte,
que lançou os fundamentos do Estado moderno, não sabia o que fazia; a
Prússia contemporânea de Hegel se queixa do absolutismo monárquico quan­
do foi ele quem colocou no lugar os meios que lhe permitiriam organizar
segundo normas racionais os territórios alemães...
Hegel compreende o Estado Moderno em sua fase atual - transitória
antes do Estado mundial que será transparente e assepsiado - como monar­
quia constitucional. Ele não imagina que o pincípio que decide soberanamente
se possa encarnar melhor do que em um monarca empírico e estima que é
também legítimo admitir esse modo de recrutamento pelo nascimento de
qualquer outro. A seus olhos, o assunto é de pouca importância, nas medida
em que o monarca só faz encarnar uma soberania que já está, por assim dizer,
aí! De fato, a soberania-racionalidade está sempre presente. O que faz a
especificidade do Estado Moderno é que ele cabe inteiramente dentro do poder
governamental, isto é, na administração do Estado hierarquizada que (exceto
o monarca), do primeiro ministro ao último escriturário de subsecretária,
recrutados um e outro segundo suas competências e atitudes para tecer as
indicações do interesse geral e as normas da racionalidade, ordena e regula­
menta a coletividade. O poder legislativo, que define o direito positivo e que,

456
com o poder do monarca e o poder governamental, forma o tripé sobre o qual
repousa o estado, nada mais é do que o poder de deliberação do governo se
esforçando para conciliar —no interior das câmaras especializadas —o inte­
resse geral racionalmente calculdo e os interesses próprios de tal ou tal
profissão.
O enigma resolvido da história (e a base histórico-política do saber) está aí,
segundo Hegel: no conhecimento do fato de que a liberdade de cada um só pode
ser efetiva dentro do quadro do Estado soberano agindo ao mesmo tempo como
princípio dessa liberdade e como administração racional do ser coletivo. Pensan­
do-se como cidadão de tal Estado-nação hoje em dia, do Estado mundial amanhã,
o homem moderno abre o último ato da história, no qual, como subjetividade,
ele usufrui de todas a possibilidades que se lhe oferecem (incluindo a de ser feliz)
e como membro da coletividade, ele participa da invenção racional do homem.
Nenhuma transcendência é exigida. O resumo da filosofia da história que encerra
o texto mostra a maneira pela qual o filósofo concebe o fim de sua empresa. Fazer
conhecer o Estado como ordem constitucional, como lugar de deliberção legis­
lativa e como administração calculadora, isto é, como Razão em ação, e o estatuto
do cidadão como base da liberdade individual é aumentar amplamente as chances
de ver se realizar, além das fantasias e das violências, o desejo filosófico de
reconciliar os homens entre si e o Homem com a Natureza.
Pensador intransponível da modernidade por ser teórico exato e verídico
do Estado-nação ou remendador habilidoso que conseguiu fazer conter, em
um discurso homogêneo e por meio do “milagre dialético”, as lições da
tradição filosófica e as contribuições das novas ciências, e isso para assegurar
à Europa da Santa Aliança o luxo de um progressismo muito moderado? Em
1941, Karl Lowith julgou-se autorizado, pelo recuo do tempo, a considerar a
obra de Hegel o fim da filosofia clássica na Alemanha, fim que suscitou três
das grandes rebeliões características de nosso tempo, a renovação da filosofia
da existência e da subjetividade a partir de Soren Kierkegaard, a crítica do
Estado hegeliano por Karl Marx que quis estar na origem de uma maneira nova
de praticar a relação teoria/prática e a recusa veemente de Friedrich Nietzs-
che de uma Razão que esteriliza à força de requerer a transparência. Hoje em
dia, dentro da própria perspectiva aberta por essas explosões, não seria mais
conveniente renunciar a esses julgamentos globais que conduzem a aceitações
ou a recusas maciças? O resumo forçosamente simplificador e linear que se
apresentou aqui não deve enganar a esse respeito. Qualquer que seja a
sistemática e a "conclusão” que ele queira ser, o texto de Hegel é de uma
considerável complexidade. Isso redobra o interesse do texto. Permite reati­
vações múltiplas em que o pensamento se insinua e trabalha. Que se imagine
simplesmente o jovem Marx, lido em seu contexto e relido no nosso que,
rompendo com o que se chamou de hegelianismo de esquerda, reagindo no
decorrer dos anos 1843 aos Princípios da füosoüa do direito por meio de dois
textos vivamente críticos, um em que é sublinhado o pouco caso que Hegel faz
da dimensão democrática - portanto, um aspecto político - , outro em que é
colocado em evidência o cuidado que a filosofia toma em dissimular a

457
apropriação de certa fração da sociedade civil, Estado - um aspecto que se
qualificará posteriormente de sócio-econômico.
É talvez por meio desse exemplo que se vê que a política de Hegel
permanece uma referência indispensável. Não como o havia sonhado seu
autor, no tanto que ela sabe e conclui, mas porque nela se impõem com força
questões que nossas sociedades só resolvem com sangue e ruínas e se esboçam
soluções essenciais e discutíveis.

• O texto G ru n d lin ie n d e r P h ilo s o p h ie d e s R ech ts, o d e r N a tu r r e c h t u n d S ta a tsw in s se n sc h a â


im G ru n d rtess, editado por E. Cans em Berlim em 1833, a partir da edição publicada sob este
duplo título por Hegel em Berlim em 1821, se apresenta enriquecido de 194 adições tiradas dos
cursos de Hegel. É o texto que Robert Derathé escolheu para sua notável tradução francesa:
P rín c ip e s d e la p h ilo s o p h ie d u d ro it ou D r o it n a tu re l e t S cien ce d e 1’É tat e n a b ré g é , Paris,
Vrin, 1975. Consultar-se-á, com o maior resultado, a tradução de J. - P. Lefebvre (G. W. F. Hegel,
L a s o c ié té c iv ile b o u rg eo ise , F. Maspero, 1975) dos §§ 181 a 256 e suas adições aos
P rin c ip io s... confrontada com os comentários orais de Hegel sobre a passagem correspondente
da Enciclopédia. Assinalar-se-á, de memória, a despeito de suas imperfeições, a tradução de A.
Kaan, Gallimard, 1940 (col. “Idées", 1963) que foi durante muito tempo o único documento do
que dispunha o não-germanista.
Traduções francesas dos escritos de Hegel significativas do desenvolvimento de seu pensamento
político: Fragmento dos escritos “teológicos” de Tubingen (1793?) em R. Legros, L e je u n e H egel
e t la n a iss a n c e d e la p e n s é e ro m a n tiq u e . Bruxelas, Ousia, 1980 (págs. 260-297); Vie d e J ésu s
(1795), Paris, Gambier, 1928; reeditado em Paris, Ed. Aujourd’hui, 1976; L a p o s itiv ité d e la
re lig io n c h r é tie n n e (1796), Paris, PUF, 1983; L Ê sp rit d u c h rístia n ism e e t s o n s d e stin (1798-
1799), Paris, Vrin, 1948; L a C o n stltu itio n d e 1’A lle m a g n e (1800-1802), Ed. Champ Libre, em
Ê crits p o litiq u e s, 1971, reed sob esse título pelo mesmo editor em 1974; DifTérence d e s
s y s tè m e s d e F ich te e t d e S c h e llin g (1801), em P r e m iè r e s p u b lica tio n s. Paris, Vrin, 1952, reed.
Gap, Ophrys, 1964; D e s m a n iè r e s d e tr a ite r sc ie n tifíq u e m e n t du d r o it n a tu re l (1801-1803),
Paris, Vrin, 1972 e Paris, Gallimard, mesma data, respectivamente trad. por B. Bourgeois e por
A. Kaan; S g s tè m e d e la v ie é th iq u e (1802), Paris, Payot, 1976; L a p re m iè r e p h ilo so p h ie d e
V esp rit (1803-1804), trad. e apresentado por G. Planty-Bonjour, Paris, PUF, 1982; L a “R ealph i-
lo so p h ie " d ’lé n a (1805), e m J. Taminiaux, N a issa n c e d e la p h ilo so p h ie h é g e lie n n e d e VÊtat,
Paris, Payot, 1984; L a p h é n o m é n o lo g ie d e V esp rit (1806-1807), Paris, Aubier, trad. J. Hyppolite,
2 vol., 1944; L a S cien ce d e la lo g iq u e (1812-1816), Paris, Aubier, trad. J. Labarrière e C. Jarcyk,
2 vol., 1976; L e ç o n s s u r la p h ilo so p h ie d e V H istoire (póstuma, 1837), Paris, Vrin, 1945; A rticle s
s u r le R efo rm b itl (1831), em E sc rito s p o lític o s . Paris, Champ Libre, 1971.

► Ch. Andler, L e s o r ig in e s d u so c ia lis m e d 'É ta t e n A llem a g n e, Paris, Alcan, 1897; K. Lowith,


D e H eg e l à N ie tz c h e (1941), Paris, Gallimard, 1969; H. Marcuse, R a iso n e t R é vo lu tio n , H egel
e t la n a iss a n c e d e la th é o r ie so c ia le (1954), Paris, Ed. de Minuit, 1968; A. Kojève, In tro d u c tio n
à la le c tu re d e H egel, Paris, Gallimard, 1948; E. Weíl, H eg el e t VÉtat, Paris, Vrin, 1950; E.
Fleischmann, L a p h ilo so p h ie p o litiq u e d e H egel, Paris, Plon, 1964; F. Châtelet, H egel, Paris,
Seui, 1968; B. Bourgeois, L a p e n s é e p o litiq u e d e H egel, Paris, PUF, 1969; D. Rosenfield,
L ib e rté e t p o litiq u e . Paris, Aubier-Montaigne, 1984.

François CHÂTELET.

458
HEIDEGGER, Martin, 1883-1976
Ensaios e conferências, 1954

Apesar do que se conveio chamar o “episódio do Reitorado”* e da sua


análise tardia por Heidegger na entrevista concedida em 1966 ao Spiegel
(“Perguntas e respostas sobre história e política”), pode parecer paradoxal
pretender designar uma obra como política, onde se pode ler que as questões
políticas, econômicas e sociais não conduzem “ao âmago da coisa” (O que
chamamos pensar?, pág. 95) e que as "perspectivas políticas” não permitem
“pensar sobre o que acontece neste século do mundo” (Caminhos, pág. 218).
E, de fato, se a “tarefa do pensamento” consiste em levar em conta que a
onipotência do homem no âmbito real não lhe dá nenhuma influência sobre
essa dimensão do nada (nâo-sendo) inscrito no âmago de tudo, sendo como seu
próprio surgimento (o que Heidegger chama: o Ser), a política "pertence”, em
compensação, à diversidade dos esforços pelos quais o homem só faz “tornar
acessíveis os caminhos para o âmbito do existente”: também os pensadores
capazes de se tornarem "verdadeiramente pensadores” não se saberiam limitar
apenas a se orientar ao âmbito do que pertence à noXiç, mas é preciso
ensiná-los a ver dentro da própria TtoXiç, portanto, dentro da esfera “política”,
uma das faces do surgimento do Ser; por conseguinte, eles se elevam “acima
da cidade e longe da cidade”, “sem cidade nem situação, solitários,... sem
instituições nem fronteiras” (Introdução à metafísica, pág. 158 e segs.). O
apolitismo seria, portanto, a própria marca de uma filosofia, lembrando-se de
sua “questão fundamental”. Nessas condições, to'da leitura política de uma
obra de Heidegger pareceria dever se alistar na contracorrente do próprio
espírito dessa obra - em resumo: se condenar a ser uma leitura externa,
suspeitando, por exemplo, no retiro heidegeriano fora do político, da desobri-
gação bem cômoda de um pensador que se havia comprometido demais em
1933 com a coisa política para não tentar em seguida desvalorizar todo
investimento político como extravio para longe do essencial.
Entretanto, se seguramente todo o empreendimento de Heidegger, depois
do episódio do Reitorado, foi marcado pelo esforço para separar o ofício de
pensador (Carta sobre o humanismo, pág. 35: "O pensamento é o pensamento
do Ser") e a prática política, esta última só dependendo da dominação do homem
sobre o existente, não permanece menos possível, sem ceder para tanto às
facilidades da leitura sintomal, envolver uma dimensão política na obra assim
produzida: pois, certamente, a “perspectiva política” é dita insuficiente para
pensar a verdade do que acontece, mas inversamente a esfera política pode ser
esclarecida se se sabe ver nela uma “maneira cuja verdade manifesta a presença”
e “faz uso dela” —em outros termos: a questão do político não é o fio condutor
que leva à verdade (ao “coração da coisa”), mas um pensamento que se consagra

* Heidegger foi eleito reitor da Universidade de Friburgo pouco depois da chegada de Hitler ao
poder e permaneceu até sua demissão, no começo de 1934.

459
à questão da verdade do ser (a questão do Ser como verdade, isto é, como
manifestação da presença, como a-Xr|6eia), traz um olhar renovado sobre a
esfera política. A respeito da prática política assim como a respeito de todo modo
de agir humano, Heidegger sustenta efetivamente a tese de que cada modalidade
da orientação humana no âmbito do real recebe sua impressão fundamental, à
cada época da história, da maneira pela qual o homem vive e pensa sua relação
com o existente —essa relação recebe, por sua vez, sua característica própria da
atenção mais ou menos fiel que o pensamento dá a essa dimensão aniquilante da
distribuição de presença (o Ser) que se dissimula ou se furta em toda presença
acontecida (existente). Nesse sentido, a história política é inseparável desta
“História do ser” que Heidegger, como se sabe, descreve em termos de um
esquecimento crescente do Ser em proveito da interrogação (cada vez mais
exclusiva à medida que a modernidade desenvolve suas fases), sobre o existente
e seu domínio possível pelo homem. Também se poderá encontrar nas obras de
Heidegger um discurso sobre as faces políticas de nossa época, tentando
esclarecê-las a partir de sua colocação em relação com a configuração essencial
dessa época, isto é, com a maneira pela qual o esquecimento do Ser se manifesta
nesse caso por meio de um certo tipo de relação ao homem com o existente. É
assim que os textos reunidos nos Ensaios e conferências se esforçam para
elaborar o que se poderia chamar de uma “fenomenologia da dominação” e que
se conclui em três etapas: 1) uma colocação em relação do totalitarismo, como
figura política da modernidade, com o reinado da técnica como configuração
essencial de nosso tempo; 2) uma interpretação da essência da técnica como
aquilo em que a metafísica, “fatalidade necessária do Ocidente e condição de sua
dominação estendida a toda a Terra” (pág. 88), atinge sua conclusão; 3) um
convite, reduzido ao estado de um esboço, a repensar o político em uma outra
direção diferente daquela, moderna e metafísica, da luta pelo poder e pela
dominação da Terra. Seguir Heidegger ao longo dessas três etapas aparece,
portanto, como a condição prévia e indispensável de toda avaliação do alcance
político de seu pensamento.

Do Estado totalitário ao reinado da técnica

“A ciência moderna e o Estado totalitário constituem, enquanto conse­


qüências necessárias do desenvolvimento essencial da técnica, ao mesmo
tempo, sua seqüência” (Caminhos, pág. 236). A fórmula pode espantar: por
que aproximar ciência moderna e Estado totalitário?, por que fazer deles
“efeitos” do reino da técnica (quando, para quem é da ciência, se está mais
acostumado, ao contrário, a fazer da manipulação técnica do real uma conse­
qüência da ciência moderna)? A explicação da fórmula passa à evidência pelo
esclarecimento do que Heidegger entende pela técnica.
Nos três textos que abrem a primeira seção dos Ensaios e conferências ("A
questão da técnica”, “Ciência e meditação” e “Ultrapassagem da metafísica”), a
técnica aparece como aquilo cuja “repercussão unitária produz o que chamamos
de modernidade”. Que se definisse realmente nossa época - segundo as duas

460
determinações mais usuais —como “era atômica" (Questions III, págs. 170-171)
ou como “civilização de consumo” (Questions 1, pág. 80), o que se dissimula sob
essas denominações é, a cada vez, o reconhecimento que no âmago da época
moderna se encontra no homem a vontade de colocar a seu alcance tudo o que
existe e de adquirir sobre a totalidade do existente a maior força possível, pelo
domínio de todas as energias naturais,incluindo as da destruição: essa vontade
de “tornar integralmente fornecível tudo o que é e poder ser” (Princípio da
razão, pág. 100), essa redução de todo o real a um "estoque” disponível para o
“uso” (Ensaios e conferências, pág. 106) definem a relação técnica do homem
com o mundo, “esta apropriação irresistível e total pela técnica do mundo e do
homem” (Princípio da razão, pág. 183), “apropriação” que faz do homem
moderno "o funcionário da técnica” (Caminhos, pág. 240). Cada manifestação
característica da modernidade deve, portanto, poder ser analisada, a partir de
uma "interpretação tecnológica de nossa época” (Questions I, pág. 287), como
se se tratasse da “ciência de hoje em dia” ou do aparecimento de “chefes”
pretendendo a “dominação total” (Ensaios e conferências, pág. 108).
Ciência e meditação se desculpa dessa “interpretação tecnológica” pelo
que é da ciência moderna: de maneira diferente da “teoria” grega como pura
relação contemplativa dos aspectos que a coisa apresenta dela mesma, a
moderna “teoria científica do real” intervém imperiosamente no real para
forçá-lo a se objetivar em uma diversidade de objetos “oferecidos à atividade
que se assegurará deles”; nesse sentido, a ciência, como “interpelação e
elaboração do real”, participa dessa relação com o existente, que define a
técnica, em que o homem moderno “se assegura cada vez mais de um distrito
do real como de seu domínio de objetos" —visando, assim a concluir plena­
mente seu destino de “dono e possuidor da natureza": “todo fenômeno
aparecendo no interior de um domínio da ciência” deve efetivamente ser
"trabalhado até que ele se enquadre dentro do conjunto objetivo, determi­
nante, da teoria” (Ensaios e conferências, pág. 64). Manifestação do “que
existe de novo na técnica moderna” (pág. 20), a ciência contemporânea o é,
portanto, duplamente: de um lado, como submissão inquisitorial do real aos
projetos humanos, ela é regida pelo que Heidegger chama de Gestell, “esse
apelo provocante que reúne o homem (em torno da tarefa) de praticar como
base o que se descobre” (pág. 26), apelo “imperioso e conquistador” que
constitui a essência da técnica como “vistoria” (sobre essa tradução do Gestell,
cf. Ensaios e conferências, pág. 68: a técnica “vistoria” a natureza como se
vistoria um navio, para, parando seu curso, submetê-lo à inspeção e, nessa
vistoria, a natureza é arrazoada, posta e submissa à razão); de outro lado, a
ciência é hoje em dia tão mais regida pela essência da técnica (e conseqüente­
mente, além da “aparência enganadora que a técnica moderna tem da ciência
natural aplicada”, a técnica é também visivelmente “a origem essencial da
ciência moderna") que a relação científica com o real se tornou a de uma
elaboração desse real que o trabalha até que possa ser “dominado pelo olhar”:
o homem não é, assim, mais do que um exemplar dessa “forma do trabalhador”
que caracteriza o homem moderno como “funcionário da técnica”. A esse

461
respeito, Heidegger não parou de render homenagem à obra de Junger, Der
arbeiter (1932), por ter mostrado que “a técnica é a maneira pela qual a forma
do trabalhador mobiliza o mundo” (Questions I, pág. 216): o homem moderno
é essa “besta de carga” (Ensaios e conferências, pág. 82) que a configuração
técnica de toda época intima a desenvolver o máximo de força de trabalho com
a finalidade de assegurar à técnica o máximo de poder para a dominação
universal do real. Em conseqüência - e aí se esboça a passagem da inter­
pretação “tecnológica” da ciência moderna para a interpretação "tecnológica”
do fenômeno totalitário —, se a essência da modernidade reside nessa “subju-
gação” da natureza que a intimida a fornecer tudo que pode ser extraído dela,
a visão do técnico é a cada instante a de uma “utilização máxima pelos menores
custos” (pág. 21): no âmbito desse vasto cálculo, o trabalhador será ele próprio
o objeto de uma requisição subjugante; no interior dessa “mobilização total”
a serviço da vistoria racional, ele será intimado a não ser mais do que uma
força de trabalho docilmente explorada: “O homem torna-se ele mesmo mate­
rial humano que se atrela às metas propostas”, a inspeção do raciocínio
tomando desde logo a forma do “comando humano”. Esse é, portanto, o
“processo que penetra a partir da essência ainda encoberta da técnica” e que
permite compreender em que “a ciência moderna e o Estado totalitário” são
inseparavelmente “conseqüências necessárias do desenvolvimento essencial da
técnica” (Caminhos, pág. 236).
O aparecimento do Führer se apossando dos poderes de dominação
(Ensaios e conferências, pág. 108) vai efetivamente ser interpretado como a
seqüência inevitável da inspeção racional: para assegurar o reinado sem
restrição do homem sobre o existente, “é preciso colocar no lugar e equipar
homens afeitos ao trabalho de direção”, homens “que têm poder de decisão e
que supervisionam todos os setores em que o consumo extenuante do real
deve ser garantido”; essa garantia requer que esses “chefes” disponham de
uma visão sobre “a totalidade dos existentes, dos setores do uso”, na ausência
do que a exploração indefinida do existente se acabará na penúria. “Dirigismo”
e “totalitarismo” fazem, portanto, parte, como condições de possibilidade de
um cálculo eficaz do uso, da configuração essencial mente tecnológica da
modernidade: é a dominação da técnica que gera o reinado político da
dominação total. Heidegger também acredita dever ironizar sobre “a indigna­
ção moral daqueles que não sabem ainda o que é”: indignar-se em nome dos
valores contra a colocação no lugar de sistemas totalitários é não ver do que
tal "fenômeno” é a verdadeira “base”; uma autêntica meditação do fenômeno
a partir da essência da técnica deveria, ao contrário, descobrindo o que o
fenômeno tem de “fatal”, liberar tanto indignação quanto entusiasmo (cf., no
mesmo sentido, Respostas e perguntas, pág. 40).
Será preciso voltar posteriormente, tentando limitar o alcance de tal
interpretação do totalitarismo, sobre a significação (e as dificuldades) dessa
“liberação”. No momento, convém esclarecer ainda que Heidegger se esforça
para interpretar, segundo o mesmo esquema, essa outra face “política” de
nossa época, que é a instalação de um estado de guerra permanente e total, ou

462
seja, "As guerras mundiais e o aspecto totalitário delas" (pág. 106). "As guerras
mundiais constituem a forma preliminar que toma a supressão da diferença
entre a guerra e a paz”: analisadas por Junger como "guerras de materiais”, as
guerras mundiais foram apenas, com efeito, a primeira aparição de uma nova
figura da guerra, aquela em que “a guerra se tornou uma variedade do uso do
existente”, a qual “continua em tempos de paz”. Garantia de uma produção e
de um consumo indefinidos, a guerra moderna elimina todo risco de saturação
do mercado, relança o mecanismo do trabalho e, enfim, participa da visão,
inerente à era tecnológica, de um imperialismo planetário: o homem organiza­
do tecnicamente procura um domínio sobre o existente em totalidade e,
procurando tomar a seu cargo o “reinado da terra”, entra inevitavelmente em
uma luta incessante por essa realeza (Caminhos, págs. 99,206 e segs.). É nesse
sentido que a paz não se distingue mais da guerra entendida de maneira
tradicional, isto é, como guerra declarada, e que em um tempo em que não é
mais possível se falar de paz já que o imperialismo planetário é a própria visão
da técnica), a “declaração de guerra” tornou-se um gesto obseluto.
É, portanto, a partir do reinado da técnica que seria preciso, segundo
Heidegger, pensar sobre o Estado totalitário, o aspecto totalitário das guerras
modernas, para lançar um olhar verdadeiramente penetrante “naquilo que é”.
Mas a dominação da técnica não poderia ela mesma constituir o termo utlimo
dessa retomada em direção à "base": é preciso ainda perguntar realmente "o
que se esconde na era (idade) técnica” (Ensaios e conferências, pág. 47), a
saber, “a conclusão da metafísica".

Do reinado da técnica à metafísica concluída

“O desenvolvimento da dominação incondicionada da metafísica começa


apenas” (pág. 88), e se cumpre, no reinado da técnica: o termo “técnica”, se a
técnica for pensada em sua essência, “eqüivale ao de metafísica acabada” (pág.
93). Se a dominação totalitária dos Filhrer remete, portanto, à dominação da
técnica, esta remete, por sua vez, à dominação da metafísica acabada - se bem
que, para pensar, até em sua base, no totalitarismo, seria preciso determinar
em “que acepção do existente e em qual conceito da verdade” (= em qual
metafísica) a dominação total tem suas raízes.
Evidentemente, aqui, não se poderia tratar de reconstituir o percurso da
metafísica tal como, de Descartes a Nietzche, ela aparece para Heidegger como
tendo sido regida pela “antropologia”,, isto é, pela instalação, cada vez mais
soberana, do homem como subjectum, como fundamento e “centro de referência
do existente enquanto tal" (pág. 99). Limitar-se-á, portanto, a explicar em que a
técnica pode ser designada, nessa reconstrução, como a última face da "metafísi­
ca da subjetividade”. Para isso, é importante sublinhar que a instalação do
homem como fundamento é, para dizer a verdade, duplas segundo os dois eixos,
téorico e prático, da interrogação filosófica a antropologia teórica consiste em
conceber a priori o real como obedecendo aos princípios constitutivos do espírito
humano, por exemplo, para transferir (em Leibniz) o princípio da razão (princípio

463
lógico ou subjetivo) ao próprio existente e a. “ontologizá-lo” (nihil et sine
ratione); essa antropologia teórica, que culmina com a afirmação hegeliana da
identidade do racional e do real, não faria, todavia, sozinha, da dominação da
técnica o modo de realização da metafísica: para desvendar a inspeção técnica
racional do real como "metafísica acabada”, é preciso efetivamente acrescentar
que, o domínio do existente em totalidade, o homem conquista-o não somente
concebendo o real como de acordo com os princípios subjetivos de sua raciona­
lidade (antropologia teórica), mas também representando o existente como
“objeto para a vontade” (antropologia prática). No fio do aprofundamento da
subjetividade como vontade, o existente só tem realidade como objeto manipulá­
vel pelo sujeito em vista da realização de seus fins, ou seja, como instrumento
ou como existente uniformemente disponível para a vontade (pág. 112). “Ultra-
passagem da metafísica”, o terceiro dos textos reunidos nos Ensaios e conferên­
cias pretende mostrar que, a esse respeito, a reinterpretação kantiana do eu
penso como um eu quero (pág. 97) e, principal mente, a doutrina kantiana da
“autonomia da vontade” preparam o passo decisivo em direção a uma inter­
pretação técnica do mundo: como, até então, a vontade é realmente pensada
como subordinada a outra coisa além dela mesma, a saber os fins que ela
persegue, a razão prática não quer mais, no caso de Kant, outra coisa senão ela
mesma, ela quer a si própria como liberdade: no "conceito kantiano da razão
prática como pura vontade” se anunciaria, portanto, a própria realização da idéia
de vontade, “a chegada à perfeição do ser de vontade”, que se torna vontade não
condicionada por nenhuma outra coisa além de si mesma ou “vontade absoluta”
- j á que ela não quer mais nada além dela mesma; conduzindo à absolutização
da vontade como “vontade de vontade" (pág. 102), a doutrina kantiana da
vontade ética, vontade que “é para ela mesma, enquanto forma, seu próprio
conteúdo”, aparece assim para Heidegger - em uma interpretação da qual se
convirá que ela é mais do que paradoxal - como um elo de corrente essencial no
processo de tecnização do real que contém nele a necessidade dos Führer. Entre
a "autonomia da vontade” e a “inspeção racional”, o intéprete pensa descobrir
assim mesmo uma mediação indispensável dentro da teoria nietzchiana da
vontade de poder como “penúltima etapa do processo” (pág. 93-96): a vontade
nietzchiana parece realmente querer ainda outra coisa além dela mesma (o
poder), mas —segundo uma interpretação que resume o último texto da seção I
dos Ensaios e conferências (“Quem é o Zaratustra de Nietzche?”, págs. 116-147)
- ela não quer efetivamente mais poder (mais dominação) do que para se
experimentar indefinidamente como vontade por meio do domínio e da transfor­
mação inecessante do real: em resumo, “o ser da vontade de poder só pode ser
compreendido a partir da vontade de vontade” (pág. 95), a partir dessa “vontade
incondicionada” em que se conclui o projeto cartesiano de domínio e possessão
da natureza mesmo os “valores” só são colocados a partir da própria vontade,
como as condições de possibilidade (os meios) de seu livre desenvolvimento
(Caminhos, pág. 195) —de modo que, se os valores (éticos, estéticos ou jurídicos)
são somente o que a vontade de vontade coloca a fim de garantir seu ser, se “toda
valorização é uma subjetivação" Carta sobre o humanismo, pág. 129), não

464
bastará apelar para os valores (ou para o “humanismo”, inseparável, ele também,
da instalação do homem como "centro de referência”) para abalar, por pouco que
seja, a dominação da técnica e de seus efeitos totalitários: “as proclamações dos
valores” são apenas os "sinais da última renúncia para longe do Ser” (Ensaios e
conferências, pág. 105), isto é, da conclusão última do esquecimento do Ser, do
apagamento metafísico dessa dimensão aniquiladora da presença sobre o qual o
sujeito fica sem influência - dimensão que, por definição, o discurso dos valores
nega, já que ele “não deixa o existente existir {ser), mas o faz, unicamente, como
objeto de agir, valer”. O que seria preciso aprender a ver, muito pelo contrário,
é que a racionalização da produção, a concentração das operações de direção (o
totalitarismo), a planificação são, de alguma maneirai, os valores que a vontade
de vontade coloca para “se assegurar de si própria de uma maneira que possa
ser absolutamente continuada” (pág. 92) e para “colocar em segurança” o “uso
do existente” (pág. 109). Em conseqüência, é todo o Ocidente, como era de
desenvolvimento da metafísica acabada (técnica), que se apresenta potencial­
mente totalitário, e, por conseguinte, lutar contra aqueles que estão no poder
permanece, na medida em que se trata de uma luta pelo poder, prisioneiro da
perspectiva da “dominação absoluta” (pág. 104): é porque “os pastores, invisíveis,
habitam acima dos desertos da terra devastada que deve servir apenas para
assegurar a dominação do homem” (pág. 113), —“os pastores”, isto é, os “pastores
do Ser” {Carta sobre o humanismo) que sabem que "a ação sozinha não mudará
o estado do mundo”, inscrita como ela está, por definição, “dentro da região da
vontade de vontade”. Se não for a ação política quem irá mudar o estado do
mundo, resta, então, indicar o que seria o caminho de uma mudança de direção
do mundo, da qual uma das manifestações poderia ser um novo pensamento do
político.

Da rememoraçâo do Ser a um novo pensamento do político

“Nenhuma mudança chega sem uma escolta que primeiro lhe mostre o
caminho” (pág. 115). Aquele que mostra o caminho é evidentemente, para
Heidegger, o pensador que tenta, pela rememorização da História do Ser como
“esquecimento do Ser”, dar o “passo atrás” que sozinho, pela “ação de evitar”
(evitação) o declínio metafísico do pensamento, prepara uma liberação a
respeito da luta planetária pela dominação do existente. Os quatro textos
reunidos na seção II dos Ensaios e conferências ("Que quer dizer pensar",
“Construir, habitar, pensar” “A coisa”, “O homem habita o poeta”) esboçam,
portanto, o gesto de ultrapassagem graças ao qual o pensamento e o homem,
como ser capaz de pensamento, deveriam poder sç reapropriar de outras
possibilidades além daquelas que a metafísica e a técnica exploram. A seção III,
enfim, sugere como é que se remetendo à escuta dos primeiros pensadores
gregos o pensador pode dar alguns passos sobre o longo caminho que
reconduz o pensamento à sua essência (Logos, Moira, Aletheia). Dentro da
exata medida em que a seção I relacionou esquecimento do Ser e (pela
mediação da técnica como metafísica acabada, portanto, como extrema figura

465
do esquecimento) fenômeno totalitário, gostar-se-ia, todavia, de ver esboçar-se,
nessas seções II e III, uma reflexão sobre as possibilidades que libera, quanto
ao pensamento do político, a rememorização do Ser: se, segundo a definição
dada na Introdução à metafísica, a esfera política é a da rcoXiç como lugar
privilegiado de nossa relação com o mundo, a que outro pensamento da rcoXiç
se abre a “ultrapassagem da metafísica”? A questão parecerá ingênua a muitos
herdeiros de Heidegger, que verão aí um sinal de impaciência e de ativismo
resolutamente "metafísico”. Resta apenas dizer que, nos Ensaios e conferên­
cias, a reflexão, presente no cerne dos textos da seção II, sobre a noção de
“habitação” e as modalidades de “habitá-la”, se inscreve completamente dentro
do quadro dessa busca, incontornável, de um outro pensamento da xoXiç
como lugar de nossa “estada”. As indicações de Heidegger, a esse respeito, aqui
e alhures, permanecem certamente muito reticentes a Introdução à metafísica
(pág. 139) enfatiza que o vopoç, a constituição, o que constitui a rcoXiç como
tal, longe de ser concebida pelos gregos como “alguma coisa geral que plana
acima de tudo e não toca ninguém” (de certo modo, adivinha-se, como direito
normativo dos Modernos), podia reunir todas as coisas como “a unidade
originariamente unificante do divergente” (cf. também pág. 159); do mesmo
modo, no fim dos Caminhos (pág. 290 e segs.), a palavra da Anaximandro
abre-se para uma outra idéia do direito que não á da modernidade: o direito
não apareceria ainda como um conjunto de valores colocados pela vontade,
mas era pensado muito mais a partir da ôixn» isto é, daquilo que faz “o acordo
contíguo e concordante” de todas as coisas em um x o o / j o ç , se bem que fazer
justiça (ôiÕovai ôi^qv) deveria ser entendido assim: “deixar ter lugar o
acordo de junção” e permitir ao existente permanecer no estado que é o seu
(que lhe revém) no âmago desse acordo. Não existe dúvida de que por meio
dessas meditações sobre a 7toXiç, sobre vo^xoç e se esboça uma outra
idéia do direito e da política, diferente da da moderna derivação dos valores
jurídicos e políticos a partir da subjetividade. Não existe dúvida também de que
Heidegger não soube trazer para esse lado o essencial de seus esforços e que
não se lhe poderia censurar a escolha: alguns de seus discípulos, como H.
Arendt ou L. Strauss, para não mencionar a esse respeito os mais prestigiados,
tentarão, em relação de continuidade mais ou menos fiel e principalmente mais
ou menos assumida com Heidegger, ir além dessa indicações virtualmente
políticas da obra do mestre - manifestando, assim, que esse outro pensamento
do político não era impossível de ser imaginado.
Aqui não é lugar de entrar em debate com esse outro pensamento do
político. Limitar-se-á, para concluir, a sublinhar (como a única esperança de
tornar possível a discussão) quais as teses mínimas que o enraizamento
heideggeriano (mais geralmente: fenomenológico) impõe quanto a um pensa­
mento do político —e como a recusa ou impossibilidade de assumir essas teses
deveria, parece, impor o abandono, exceto para cultivar as tristes virtudes da
“bricolagem” tergiversação ideológica ou do barroco intelectual, da referência
a tal fenomenologia da dominação.:
1) Se o totalitarismo é o horizonte inevitável, pela mediação do reinado

466 ,
da técnica, do declínio metafísico do pensamento na vinda da razão como
"inimiga mais encarniçada do pensamento”, é preciso admitir que a razão
como tal é pré-totaiitária, logo, que a vinda de “chefes" afeitos à dominação
total do existente está no horizonte da ontologização leibniziana do princípio
da razão ou da doutrina kantiana da autonomia da vontade: aceitar-se-á essa
genealogia do fenômeno totalitário?
2) Para aceitá-la, seria preciso concordar que, da tecnocracia ou, como
diz Heidegger, do “dirigismo” ao totalitarismo, não existe realmente um salto,
que o totalitarismo só é, por exemplo, a verdade da tecnocracia: aceitar-se-á tal
colocação em perspectiva e a minimização correlativa da parte de novidade (e
também monstruosidade) do fenômeno totalitário?
3) Se o totalitarismo é apenas o termo último e fatal da luta pelo poder,
é preciso considerar que a luta contra o poder totalitário e para a instauração
de um poder democrático é só uma astúcia da modernidade e que ela própria
está sob a influência da dominação da técnica (“dos dois lados luta-se pelo
poder”): partilhar-se-á dessa neutralização das lutas políticas?
4) Se “toda valorização é uma subjetivação”, as proclamações dos valores
pertencem todas tanto ao reinado da técnica quanto os fenômenos de domina­
ção total, que, no entanto, negam esses valores: tentar-se-á, nessas condições,
afrontar o totalitarismo sem tentar fazer valerem contra ele os valores que ele
nega, por exemplo, os direitos do homem? A própria idéia de uma crítica do
"Inaceitável”, para retomar uma categoria de Strauss, tem sentido em um
contexto em que “o pensamento sobre o modo dos valores é a maior blasfêmia
que se possa pensar sobre o Ser” (Carta sobre o humanismo, pág. 129) - para
não dizer nada do caráter perigoso de uma empresa crítica que desejaria
denunciar uma “fatalidade”?
5) Se atrás dos Führer se escondem as “bestas de carga” e, atrás dos
“técnicos”, se dissimulam os “metafísicos” que, à margem dos Tempos
modernos, fizeram do homem um “centro de referência” —em resumo: se
atrás do totalitarismo é preciso perceber o humanismo, é preciso, para
combater o totalitarismo, se colocar sobre o terreno da “oposição ao
humanismo” {Carta, pág. 127). Certamente, Heidegger esclarece que tal
oposição não implica, de modo algum, a defesa do inumano, mas abre, ao
contrário, outras saídas: do qual ato (ainda seria desejável que essa abertura
fosse efetivamente descrita e não mais somente prometida), mas em todo
caso é dificilmente contestável que essa “oposição ao humanismo” torna,
pelo menos, dificilmente assumível o discurso dos direitos do homem - fora
a referência a qual a oposição ao totalitarismo parece, no mínimo, difícil de
exprimir (quem ousaria, sem temer o ridículo, denunciar o totalitarismo com
referência ao esquecimento do Ser, do qual ele seria a última manifestação?).
H. Arendt certamente aceitou muto honestamente tais implicações, notada-
mente contestando o discurso dos direitos do homem. Toda a questão está,
entretanto, em saber se, por esse próprio fato, uma fenomenologia da
dominação conserva ainda a possibilidade de ter uma importância verdadei­
ramente crítica (ou um alcance verdadeiramente crítico).

467
• E ssa is e t c o n féren ces, Paris, Gallimard, coleção “Les Essais", prefácio de Jean Beaufret,
tradução do alemão (V ortràge u n d A u fsú tze, Píüllinge, 1954) por André Préau, 1958; Q u ’ap-
p elle-t-on p e n s e r t, Paris, PUF, 1959; C h e m ln s q u i m è n e n t n u lle p a rt, Paris, Gallimard, 1962;
P r ín c ip e d e ra ison , Paris, Gallimard, 1962; L e ttre s u r V h u m an ism e, Paris, Aubier, 1964;
In tro d u c tio n à la m é ta p h isiq u e . Paris, Gallimard, 1967; Q u e s tio n s I, Paris, Callimard, 1968;
R é p o n s e s e t q u e stio n s s u r V h istoire e t le p o litiq u e , Paris, Mercure de France, 1977 (tradução
da entrevista dada ao S p ie g e l em 1966 e publicada em 31 de maio de 1976, alguns dias após a
morte de Heidegger).

Alain RENAUT.

HERDER, Johann Gottfried von, 1744-1803


Uma outra filosofia da história, 1774

Publicada em 1744, Auch eine Philosophie der Geischichte zur Bildung


de Mertscheií inscreve-se dentro de uma série de trabalhos em que as preocu­
pações teológicas estão estreitamente misturadas com a reflexão sobre a
história, retomando, sob uma forma renovada, reflexões mais antigas sobre a
literatura e a origem da linguagem; ela constitui a primeira expressão sis­
temática da filosofia de Herder, na qual todos os principais temas estão desde
já presentes (mesmo que, em suas obras posteriores, Herder tenha revisado
algumas das teses de sua obra da juventude). Mas essa nova “filosofia da
história” ocupa também um lugar privilegiado na história do pensamento
político moderno, que resulta da diversidade dos caminhos que ela abriu. O
livro de Herder pode primeiro ser lido como um manifesto polêmico contra as
Luzes, que já desenvolve os grandes temas do romantismo (da reabilitação da
Idade Média na concepção alemã da Nação) e que se antecipa genialmente
sobre as críticas que, após a Revolução Francesa, o pensamento contra-revolu-
cionário endereçará à filosofia do século XVIII. Mais profundamente, esse
esboço de uma filosofia da história representa também um momento privile­
giado do desenvolvimento da filosofia alemã: para pensar sobre a história,
Herder retoma a herança leibniziana, mas, da mesma forma, ele abre o caminho
a correntes que, mesmo ligando-se todas duas ao pensamento de Leibniz, não
estão menos profundamente opostas entre si (o romantismo e o racionalismo
hegelíano). Mais próximo de nós, enfim, Herder foi o primeiro a exprimir os
dilemas tornados familiares da consciência histórica, que oscila entre a vontade
de “explicar” o desenvolvimento das culturas passadas e o esforço para
"compreendê-las”em seu interior ou que hesita entre o racionalismo ético e a
crítica radical do “etnocentrismo.

468
A critica das Luzes

Para apreciar plenamente a novidade da reflexão de Herder, é preciso


primeiro abster-se de lhe fazer um elogio ingênuo demais, agindo como se o
racionalismo anterior tivesse vivido na completa ignorância dos requisitos da
consciência história. Como observou Cassirer, nem Herder, nem o remantismo
“inventaram” a história, e é preciso fazer esta justiça à filosofia das Luzes, a de
que vários de seus principais representantes já haviam percebido alguns dos
problemas essenciais do conhecimento histórico (Cassirer, 1970, cap. 5; 1950,
K.XII). Dirigido contra o século XVIII, o livro de Herder não é, no entanto, uma
pura e simples negação das Luzes: se critica o racionalismo moderno, é voltando
contra de certas idéias que resultaram dele mesmo, e essa própria crítica pode
ser até compreendida como uma ampliação do programa das Luzes; essa
ambigüidade, aliás, está presente no próprio título da obra, que o apresenta como
mais uma das “filosofias da história” modernas anunciando um retorno irônico
dos princípios que até então delimitaram a reflexão sobre a história.
Uma outra filosofia da história é primeiro dirigida contra o racionalismo
francês e, notadamente, contra o Essai sur les moeurs (Ensaio sobre os
costumes), de Voltaire. O espírito francês, tal como o via Herder, é uma
combinação do classicismo e das Luzes: ele se define pelo gosto da abstração,
o desconhecimento da individualidade em proveito das generalidades e a
crítica dogmática dos preconceitos ou da Religião em nome de uma Razão
abstrata e mecânica; inversamente, a filosofia da história de Herder coloca,
portanto, em primeiro plano o estudo das individualidades concretas e procura
reabilitar os preconceitos e a Religião. A crítica da abstração generalizadora
traduz-se notadamente por uma longa (e bastante injusta) diatribe* contra
Montesquieu, cujo livro, segundo ele reúne “fatos arrancados de seu lugar e
país de origem e espalha seus escombros em três ou quatro mercados sob o
rótulo de três miseráveis conceitos gerais” (Herder, V. s. 566, trad., pág. 319).
A reabilitação dos preconceitos (que anuncia as teses de Burke) é dirigida
contra o espírito geral dos filósofos franceses; o que Voltaire ou d’Holbach
tomavam por estreiteza de espírito era de fato o meio do qual se servia a
Natureza para ajudar os povos a selecionar as informações e as influências
úteis à sua preservação: "O preconceito é bom, a seu tempo, pois ele traz
felicidade. Ele reconduz os povos a seu centro, reúne-os mais solidamente à
sua raiz, torna-os mais florescentes segundo seu caráter próprio, mais ardentes
e, conseqüentemente, mais felizes em suas tendências e metas” (Herder, V. s.,
pág. 510, trad., pág. 185). Quanto à Religião, ela é de imediato o objeto de uma
reabilitação contra a não-crença dos franceses, já que Uma outra filosofia da
história se abre como uma apologia do valor da narrativa bíblica sobre a época
dos Patriarcas (que se pode conceber como a origem de todos os desenvolvi­
mentos posteriores e a “Época de Ouro” da infância da humanidade) (Herder,
V, ss. 477-481, trad., págs. 115-123).

(*) Diatribe - critica violenta, discurso injurioso. (N. da T.)

469
É claro, entretanto, que, sobre todos esses pontos, Herder, quando critica
o espírito das Luzes, o faz apoiando-se em idéias ou conclusões que emanam
precisamente da filosofia do século XVIII (Rouché, 1840, Primeira parte;
Berlim, págs. 145-152).
Por isso, tornam-se evidentes, antes de tudo, as ambições “científicas” de
Herder; a crítica a Montesquieu repousa de fato sobre uma radicalização de
tendências “relativas” que já preceituavam, em O Espírito das Leis, a diversidade
de legislações em função dos costumes dos diferentes povos (ver, notadamente,
o livro XXIX dessa obra): a crítica do racionalismo jurídico de Voltaire e de seus
sucessores é impensável sem a contribuição de Montesquieu. Por outro lado,
Herder deve ao próprio Voltaire duas idéias maiores de seu livro, mesmo
voltando-as contra o racionalismo da Aufklàrung. A crítica do orgulho dos
Europeus, que visava essencialmente, em Voltaire, a humilhar os cristãos
mostrando a sabedoria de certos povos (os Chineses, por exemplo) que a
Revelação não havia iluminado, permite-lhe relativizar a Razão moderna. Da
mesma maneira, Uma outra filosofia da história seria impossível sem a amplia­
ção da consciência histórica realizada por Voltaire; este último, no Ensaio sobre
os costumes ou em o Século de Luís XIV, tinha procurado compreender, além
da história dinástica, "as mudanças dentro dos costumes e das leis” para mostrar
melhor o trabalho da razão dentro do mundo humano. Herder, que anexa “à
história da civilização, fundada por Voltaire, a da poesia, das lendas e da
mitologia” (Rouché, 1940, pág. 32) é exatamente um herdeiro do filósofo francês,
mesmo que seu projeto essencial tenha sido o de criticar o racionalismo.
De um outro lado, se Herder modifica ironicamente a importância das
idéias das Luzes, estas não deixam, em retorno, de dar um sentido original a suas
proposições mais aparentemente conservadoras. O elogio da religião, por exem­
plo, é realmente muito pouco ortodoxo: Herder se apóia sobre uma tese de Hume
(a religião é mais filha da admiração do que do temor) e faz do sentimento
religioso tradicional uma etapa da formação da Razão, o que, por trás da
apologia, pode muito bem preparar a dissolução “historicista”, da ortodoxia e da
tradição. Da mesma maneira, a defesa dos "preconceitos” não implica de maneira
nenhuma a afirmação de sua verdade: preconceito não é uma norma trans­
cendente, mas sim um meio que os povos têm de presevar e aumentar sua
capacidade de agir. É dentro desse contexto, em particular, que é preciso
compreender o “nacionalismo” ou o “populismo” (I.Berlin) de Herder; ele alonga
sob certos aspectos a crítica de Rousseau ao cosmopolitismo e, sobretudo, como
o observa Louis Dumont, ele próprio pressupõe as idéias modernas de individua­
lidade e de igualdade: “Para Herder (...), todas as culturas são colocadas como
de igual direito. É claro que isso só é possível porque as culturas são vistas como
muitos indivíduos iguais apesar de suas diferenças: as culturas são indivíduos
coletivos... No nível global, a reação de Herder situa-se no interior do moderno
sistema de valores” (Dumont, 1979, pág. 237).
Compreende-se, assim por que a atitude de Herder a respeito da filosofia
moderna pôde ser objeto de interpretações diversas, até mesmo contraditórias,
segundo se insistisse sobre sua hostilidade ao espírito das Luzes ou, ao

470
contrário, sobre sua fidelidade última aos ideais modernos. Resta dizer que,
apesar das tensões que o atravessam, o pensamento de Herder não é incoe­
rente: ele está fundado numa posição filosófica original, que consiste em
transpor para um contexto novo as principais teses da filosofia de Leibniz.

O modelo leibniziano

Como observa E.Cassirer em seu livro sobre a Filosofia das Luzes, o


interesse de Herder pela metafísica leibniziana deve-se primeiro à forma
particular que toma o problema do conhecimento. A história, como Hume já
mostrava, não se pode basear sobre generalidades abstratas nem visar ao
permanente, ela deve, ao contrário, fazer da infinita diversidade e da riqueza
do concreto histórico (reaprendido pela imaginação) seu próprio objeto. Em
Hume, entretanto, essa valorização do “fato” histórico não ultrapassa jamais
os limites de uma oposição abstrata entre a razão e a experiência, enquanto a
meta da filosofia da história deveria ser precisamente a de restabelecer uma
continuidade entre “razão” e os “fatos”. E nesse ponto, em compensação, que
a filosofia leibniziana adquire uma importância decisiva; sua meta, na verdade,
é precisamente a de tornar as “verdades contingentes” inteligíveis sem as
reduzir à forma abstrata da necessidade e, introduzindo uma nova idéia da
substância e da individualidade, ela coloca em primeiro plano o problema do
desenvolvimento da substância: "A natureza da substância não é a de ficar
fechada em si mesma, ela é produtividade, desenvolvimento de uma diversi­
dade sem fim a partir de um conteúdo sempre novo” (Cassirer, 1932, trad., pág.
233). E essa idéia que Herder retoma em sua concepção do desenvolvimento
das individualidades históricas; é ela que lhe permite criticar abstrações de
Montesquieu sem para isso renunciar a selecionar os dados pertinentes para
sua própria reconstrução: o problema, para compreender um povo, não é o de
reunir todos os “fatos” conhecidos sobre ele, mas sim o de descobrir a lei de
sua série, que permite ordená-los.
As analogias entre a filosofia de Herder e o sistema de Leibniz não se
limitam além disso a essa retomada da noção de individualidade.
Antes de tudo, se as culturas nacionais são concebidas como indivíduos,
isso significa que suas relações são análogas àquelas que religam as mônadas
na monadologia; é também porque o problema central da doutrina de Herder
será a da comunicação entre essas “mônadas” que são os povos e as culturas.
Certamente não se trata de afirmar que as culturas se desenvolvem sem
influência recíproca; a idéia da mônada “sem portas nem janelas” tem aqui
mais uma importância prática ou normativa: ela significa simplesmente que as
únicas influências desejáveis são as que favorecem o dinamismo interior dos
povos e, sobretudo, que não se deve fixar limites para a comparação entre as
culturas: muito logicamente, Herder recusa julgar uma civilização em nome de
jdéias que lhe são estranhas.
Mais genericamente, o sistema de Leibniz encontra também ecos na
tentativa de Herder para pensar ao mesmo tempo na unidade da história e na

471
diversidade das individualidades que a compõem. Max Rouché fala aqui de
“três filosofias da história diferentes e contraditórias": a primeira, dirigida
contra o orgulho dos filósofos, traz à luz o declínio do Ocidente sob a
influência da razão; a segunda conduz, contra ceticismo das Luzes, a uma
teoria providencialista do Progresso e da Educação do gênero humano; enfim,
a terceira nega tanto o progresso quanto o declínio, afirmando a igual
necessidade e originalidade de todas as civilizações, cada uma realizando,
portanto, o máximo de perfeição que lhe é possível atingir. Ora, cada uma
dessas filosofias desenvolve uma possibilidade interna ao sistema de Leibniz
(o princípio do melhor dos mundos pode conduzir a uma teoria do progresso
indefinido, mas também à idéia de que o universo usufrui sempre a cada
instante seu máximo de perfeição (cf., sobre todos esses pontos, Serres, 1968,
págs. 213-287).
Mais notável, enfim, é o interesse de Herder pelos elementos "irracionalis-
tas” do pensamento de Leibniz (descobertos graças à publicação póstuma dos
Novos ensaios sobre o entendimento humano em 1765), que se expandirão mais
tarde no romantismo, depois em Nietzsche. Como Leibniz, Herder deve levar em
conta a desproporção entre o entendimento divino e o entendimento humano
(ver V. s. 505, trad., pág.175); ora, esse traz uma certa desvalorização do
pensamento simbólico ou formal (que é “surdo” ou “cego”) em proveito do
sentimento ou da empatia: esse tema, que ia adquirir para Herder uma importân­
cia decisiva a partir de 1778 (Conhecer e sentir dentro da alma humana) já está
de fato implicado pela doutrina de Uma outra filosofia da história, na medida
em que esta pressupõe que o pensamento analítico ou mecânico é incapaz de
atingir uma plena inteligência (no sentido de entendimento) da história.
Seja pela influência direta, seja pelo efeito da lógica interna do sistema
de Leibniz, a retomada por Herder da idéia leibniziana de substância foi
acompanhada, portanto, por uma transposição, dentro da filosofia da história,
das descobertas de Leibniz e das tensões que atravessam seu pensamento. É
daí, aliás, que vem sem dúvida a posição privilegiada de Herder dentro da
história do pensamento político; da mesma maneira que Leibniz está na origem
de todas as correntes do idealismo alemão (dos românticos a Fichte e a Hegel),
Herder tem herdeiros em todas as grandes filosofias da história. Os românticos
lhe devem a crítica da abstração mecânica das Luzes, e a Escola histórica do
direito, a do culto racionalista da Lei, mas a obra do próprio Hegel não se
concebe mais sem ele. De um lado, com efeito, reabilitando o “preconceito"
contra as Luzes, Herder preparou o terreno para a reação romântica, que devia
se expandir na Alemanha após a experiência da Revolução Francesa, ao mesmo
tempo que abria caminho para a teoria dita alemã da nação, que a define pela
história, língua e tradição (e não pela vontade ou associação); do outro lado,
mesmo tendo Hegel criticado severamente o romantismo, ele lhe deu, contudo,
muito de sua própria crítica das ilusões individualistas ou artificialistas. No
século XX, acha-se um eco longínquo do pensamento de Herder em Spengler
(com a idéia de uma heterogeneidade completa das culturas ou das épocas
históricas), ou mais recentemente dentro da problemática contemporânea da

472
defesa da “identidade cultural” dos povos oprimidos (Finkielkraut, 1987);
desse ponto de vista, sua obra aparece como um momento importante dentro
da formação das ideologias antimodernas (quer elas sejam “conservadoras” ou
“revolucionárias”), mas ela deve ser compreendida como um esforço para
ampliar o racionalismo moderno, ajudando o Ocidente a melhor compreender
a si mesmo. O interesse de Herder não está em sua posteridade ideológica
(muitas vezes duvidosa), mas nas questões que ele soube colocar no interior
da discussão do século XVIII sobre os limites da Razão.

• Herder, A u ch e in e P h ilo s o p h ie d e r G esch ich te z u r B ild u n g d e r M en sch eit, no tomo V da


edição Suphan das S a m m tlic h e W erke, Berlim, Weidmann, 1877-1913; trad.. Paris, U ne a u tre
p h ilo so p h ie d e 1’h isto ire , Paris, Aubier-Montaigne, sem data.

► Roger Ayrault, L a g e n è s e d u ro m a n lism e a lle m a n d , t I, Paris, Aubier-Montaigne, 1961;


Isaiah Berlin, Vico a n d H erd er. Two S tu d ie s in th e H islo ry o f Id ea s, Londres, Chatto & Windus,
1976; Ernst Cassirer, 1970, L a p h ilo so p h ie d e s L u m iô r e s (1932), trad.. Paris, A. Fayard, 1970;
D a s E rk e n tn issp ro b le m in d e r P h ilo so p h ie d e r n e u r e n Z eit, Bd, IV, 1950; Louis Dumont,
L’Allemagne répond à la France: le peuple et Ia nation chez Herder et Fichte, em L ib re, n. 6,
1979, Petite Bibliothèque Payot, n. 365; Alain Finkielkraut, L a d e fa ite d e la p e n sé e , Paris,
Gallimard, 1987; Max Rouché, L a p h ilo so p h ie d e 1’h isto ire d e H erd er, tese, Publications de la
Faculte des Lettres de Strasbourg, fase. 93, Les Belies-Lettres, 1940; Idem, Introduction de la
traduetion de U ne a u tr e p h ilo so p h ie d e 1’h isto ire , op. ciL; Michel Serres, L e s y s tè m e d e L e ib n iz
e t s e s m o d è le s m a th ém a tiq u es. Paris, PUF, col. “Epiméthée”, 1968.

Philippe RAYNAUD.

HERZL, Theodor, 1860-1904


O Estado judeu, 1896

Obra formulando os princípios fundamentais do sionismo político, e cujo


autor é considerado o primeiro pensador de um Estado judeu moderno, esse
livro é o fruto de uma mutação pessoal. HerzI, nascido em 1860 em Budapeste,
dentro da burguesia assimilada, sofreu em sua juventude a influência de
Salomão Hai Alkalai e de Natonek. Advogado em Viena, seu desacordo com o
livro de Dühring, Die Judenfrage, estimula seu interesse pela questão judia.
Correspondente parisiense da Neue Freie Presse, ele segue a escalada do
anti-semitismo por ocasião do caso Dreyfus e completa sua educação judia
graças a David Wolffsohn. Em 1894, rejeitando a assimilação, procura uma
solução territorial para o problema judeu. Seu apelo à ajuda financeira da alta
burguesia judia sob a forma de uma “Mensagem aos Rothschild” tendo sido

473
em vão (1895), ele decide com o apoio de Max Nordau, expor seu projeto ao
público e publica O Estado judeu em fevereiro de 1896.

A problemática do sionismo político

Herzl não forjou o termo “sionismo”, que apareceu em abril de 1890 no


Jornal de Nathan Birnbaum, Selbstemanzipation, cujo título deriva da obra
fundamental de Léon Pinsker, Auto-emancipação (1882), desconhecido do autor
de O Estado judeu. Ele fundou seu pensamento não sobre o messianismo de
Alkalai, mas sobre a dupla constatação da eternidade do anti-semitismo e de uma
vontade judia, não menos eterna, de sobreviver enquanto povo. Minimizando o
alcance do antijudaísmo cristão, ele privilegiou o anti-semitismo econômico e fez
dele uma conseqüência obrigatória da emancipação, pois o povo judeu, educado
dentro do gueto, era dominado por uma classe média que, liberada das proibições
profissionais, concorria com a pequena burguesia autóctone e provocava o ódio
ao judeu. Foi por isso que ele viu no sentimento da perseguição o único meio de
conquistar os judeus para o sionismo e dotá-los de uma identidade positiva, já
que ele minimiza a importância da comunidade de crença.
Acreditando que a imigração judia vinda da Europa oriental agravara o
anti-semitismo e o criara onde antes não existia, atacou violentamente a grande
burguesia judia que procurava livrar-se dos recém-chegados por meio da
filantropia, subvencionando, como Maurice de Hirsch, colônias de povoamen­
to, principalmente na Argentina. Herzl passa então do “territorialismo” para o
sionismo: passa a considerar a Palestina a pátria histórica do povo judeu.
Desejando um Estado moderno herdeiro da revolução industrial, apóia o
princípio do reconhecimento do fato sionista pelo direito internacional público
e busca a garantia de grandes potências. Chega mesmo a querer associar os
governos e a população de não-judeus à organização, distribuída em cerca de
dez anos, de 1’alyah: é a idéia ambígua de “movimento ascensional das classes”
e “de migração interna” dos cristãos. Para esse liberal, trata-se, sobretudo, de
desestimular a questão social e de frear o progresso do socialismo: a partida
dos judeus, liberando seus concorrentes, eliminará a própria utilidade do
anti-semitismo, do qual ele reconhece implicitamente a utilização pelos revolu­
cionários. Por outro lado, dando em Eretz Israel um trabalho estável aos
intelectuais judeus deslocados, ele os desviará do socialismo e realizará a
integração dos trabalhadores não-qualificados. Incapaz de pensar no anti-semi­
tismo como uma constante do imaginário social, observa, em compensação,
seu impacto popular, enquanto a aristocracia procura fortificar seu poder
financeiro mediante a aliança com a fortuna judia.

As instituições e a sociedade do Estado judeu

A segunda parte do livro descreve as instituições transitórias indis­


pensáveis à organização de uma emigração maciça. São elas a "Society of Jews”
e a “Jewish Company”, todas duas inglesas, de direito, e modeladas sobre as

474
companhias de títulos (de propriedade). Dotada de estatuto jurídico com poder
constituinte, a Sociedade delibera sobre a implantação geográfica do Estado
judeu, levando em conta o desejo dos imigrantes. Negocia com os países
estrangeiros, procede a um recenseamento mundial dos judeus e a todos os
estudos políticos ou econômicos sobre o futuro Estado. A Companhia é uma
sociedade de ações que procede à liquidação dos bens dos judeus em diás-
pora*, assim como à sua cessão aos cristãos. Na terra de acolhida, ela controla
a distribuição das terras e a construção dos alojamentos dos operários,
assegurando o progresso social por meio da jornada de sete horas. O paterna­
lismo de Herzl transparece, entretanto, no enquadramento do lazer, a vigilân­
cia da moralidade, a subordinação do acesso à propriedade à "boa-conduta” no
trabalho. Concebido como meio de correção moral, esse é organizado por
equipes enquadradas militarmente sobre o modelo francês das sociedades de
assistência, com o mesmo objetivo de redenção pelo esforço.
A sociedade do futuro Estado será do tipo ocidental e capitalista. O foco
judeu na Palestina é para Herzl uma “proteção contra a barbaria oriental”. Ele
admite a existência de um setor cooperativo e de uma regulação estatal do
mercado de trabalho, fixa como objetivo a auto-suficiência econômica. A
questão da língua não foi resolvida: Herzl, estranho à renovação do hebreu
começada por Eliezer Ben Yehouda, é hostil ao Yidish, que considera um
dialeto alemão corrompido. Propõe, portanto, que os emigrantes continuem a
utilizar a língua de seu país de origem e prevê a emergência natural de uma
delas como idioma veicular. Quer um Estado modelado pelo direito inter­
nacional, porém também um país exemplar: neutro, dotado de um exército de
profissionais e principalmente leigo. Relegando a religião ao domínio privado,
mas contando com a profunda religiosidade das massas a fim de conquistá-las
para o sionismo, deseja uma separação rigorosa entre o rabinato e o Estado.
Garante aos não-judeus a liberdade de culto e a igualdade de direitos, propõe
um estatuto de extraterritorialidade para os lugares santos cristãos, mas
conserva a ilusão da "terra sem povo” e parece ignorar a existência de uma
comunidade árabe.
Desprezando a democracia dos "políticos profissionais”, Herzl hesita
entre a Monarquia Constitucional e a República Aristocrática e inspira-se no
modelo veneziano. Duvida da aptidão natural dos povos para o exercício da
democracia e prevê a crise que esta sofrerá numa sociedade mais complexa
exposta às mutações tecnológicas. Na origem da noção de Estado, ele coloca a
teoria da "necessidade de razão” e a luta do povo por sua existência. Desse
modo, coloca, antecipadamente à reconstrução e um Estado judeu, a reapro-
priação, por cada indivíduo de sua identidade nacional, estipulando por aí
mesmo a unidade do povo judeu (“Nós somos um povo único”) colocada em
perigo pela Haskalan e pela reação ultra-ortodoxa. Repudia a idéia de Rous-
seau do contrato como fundamento da sociedade.

(*) Diáspora —dispersão de povos por motivos políticos ou religiosos, por perseguição de grupos
dominantes intolerantes. (Nota da Tradutora)

475
Conseqüência política: a organização do movimento sionista

Em março de 1897, as seções da Alemanha, Áustria e Galícia dos


"Amantes de Sion” (Hovevei Zion) propõem a realização de um congresso
sionista internacional que ocorre de 29 a 31 de agosto do mesmo ano, em
Basiléia (Suíça). Em dois parágrafos, o “Programa de Basiléia” evoca a
construção de um núcleo (foco) nacional judeu na Palestina e a unidade do
povo judeu. A Organização Sionista Mundial, presidida por Herzl de 1897 até
sua morte, em 1904, deixará de ser divulgada entre territorialistas e “sionistas
de Sion”, em seguida aos projetos britânicos de colonização do Sinai (ElArish)
em 1902, e de Uganda depois do pogrom* de Kichinev (1903). Temporaria­
mente dedicado a esta última medida Herzl reunirá a maioria agrupada atrás
de Yehiel Tschelenow e de Menahem Ussishkin. O projeto de Herzl encontrará
seu final em 1917 na Declaração Balfour, pela qual a Grã-Bretanha aceita um
“foco nacional judeu na Palestina", do qual ela estará encarregada em 1922 de
pôr em prática sob seu mandato, controlada pela Sociedade das Nações. Tendo
morrido em 1904, em Viena, Herzl repousa desde 1949 em Jerusalém.

Ambigüidades do “sionismo de Herzl ”

Obra de espírito positivista e modernista, O Estado judeu dá dimensão


política ao nacionalismo que faltava a um romântico, como Moses Hess ou a
um religioso, como Alkalai. Seu mérito foi de não inverter a ordem de
prioridade entre unidade nacional e construção estatal. Mas ele não realizou a
articulação capital do religioso com o político, e sua análise sociológica do fato
judeu, oposta à de Ber Borochov, é pouca profunda. Último fato capital,
formulando a idéia segundo a qual “os judeus que o quiserem terão seu
Estado”, Theodor Herzl convida à exigência sempre atual, para os judeus, de
passar da posição de objetos à de sujeitos de sua história.

• Edição original: Der judenstaat, Versuch einer modemen loesung der juedischen frage,
Viena-Leipzig, M. Breitenstein, 1896; UÊtat juif, Paris, Éditions de l’Herne, 1969; Terre
ancienne, Terre nouvelle (Altneuland) (escrito em 1902), apresentado por Raymond Trousson,
Paris/Genebra, Éditions Slatkine, 1980; The Diaries o f Theodor Herzl, traduzidos e introduzi­
dos por Marvin Lowenthal, Nova York, Grosset & Dunlap, 1962.

► Lista completa das diferentes edições: H. Abrahami/A. Nein, The éditions of'The Jewish State
by Theodor Herzl, 1970.
Biografias: André Chouraqui, Theodor Herzl, Paris, Seuil, 1960; A. Bein, Theodor Herzl, 1970.
História do sionismo: Shlomo Avineri, Histoire de la pensée sioniste: les origines intellectuelles
de l ’Ê tat juif. Paris, Lattès, 1982; Ben Halpem, The idea o f the Jewish State, Cambridge,

(*) Pogrom ou pogrome - nome que se dava na Rússia aos movimentos populares, dirigidos contra
os judeus, quase sempre acompanhados de pilhagem e assassinatos. (Nota da tradutora.)

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Harvard, University Press, 1969; Yohanan Manor (textos apresentados por), Naissance du
sionisme politique, Paris, Galliraard/Julliard, 1981.

Jean-Yves CAMUS.

HITLER, Adolf, 1889-1945


Mein Kampf (Minha Luta), 1925

Questões de história, questões de moral

Se a política é a arte do possível, Mein Kampf não é um livro como os


outros, pois mal se o pode tomar como uma obra. “Se eu tivesse podido
adivinhar em 1934 —disse Hitler —que me tornaria chanceler do Reich, nunca
teria escrito esse livro.” Observação enigmática: quer isso dizer que o texto
discrepa grosseiramente do caminho legal que, em suma, conduziu Hitler ao
poder absoluto? E é oportuno constatar que tal escrito de modo algum
entravou, antes preparou, "a resistível ascensão”. O aparecimento e a divulga­
ção de Mein Kampf não desencorajaram de forma alguma os noventa e nove
por cento dos eleitores alemães que votaram no plebiscito a favor de Hitler em
1934. Reconheçamos, portanto, previamente, que, se o autor de Mein Kampf
não tivesse sido o mesmo Filhrer exterminador que fez sua ordem reinar sobre
a Europa durante cinco anos, ninguém em sã consciência incluiria uma obra
de tal mediocridade num dicionário de obras políticas. A celebridade desse
livro e sua importância ideológica se explicam tão somente pelos quarenta
milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial, pelo imundo terror que o
regime nazista engendrou minuciosamente, durante doze anos. Por aquilo que
se convencionou chamar, junto com a maioria dos sobreviventes e de seus
descendentes, O Holocausto: palavra usada, ao fim das contas, para designar
a exterminação programada de seis milhões de crianças, mulheres e homens.
Hitler queria intitular sua obra Quatro anos e meio de combate à
mentira, à estupidez e à covardia. Esse título, julgado comercial demais por
seu editor, foi transformado. Minha Luta (Mein Kampf)-, assim passou a se
apresentar daí para frente o escrito que foi considerado, sob o nacional-socia-
lismo, um texto sagrado: o livro idolatrado, que muitos alemães possuíam sem
ler e ao qual a maioria de nós se refere sem jamais ter lido de ponta a ponta.
Hoje em dia, na maioria dos países -m as não em toda parte, pois vários Estados
árabes o reeditam, desde a guerra, e o divulgam amplamente —, ele é proibido
por causa da incitação ao ódio racial. Em 1945, contava-se o número, conside­
rável para a época, de dez milhões de exemplares vendidos, o que fazia de
Hitler o autor mais bem pago da Alemanha. A obra havia sido traduzida para

477
dezesseis línguas. Entretanto, essas traduções eram freqüentemente modifica­
das ou expurgadas, como a que se editou em francês com o consentimento de
Hitler, em 1937, e que se intitulava Ma doctrine (Minha doutrina). Logo que
ela apareceu em 1934, foi numa tradução integral, mas não autorizada por
Hitler, e que foi destruída em seguida por causa de queixa do editor de
Munique. É a essa edição francesa que nos referimos, já que ela testemunha
corajosas resoluções filológico-políticas e ainda se encontra disponível.
Foi em 1924 e 1925, quando estava encarcerado na fortaleza de Lands-
berg, depois de sua tentativa de putsch em Munique, que Hitler escreveu seu
livro: portanto, oito anos antes de sua ascensão ao poder. Mas pode-se falar na
ocorrência de literatura? O texto foi ditado em grande parte a Rudolph Hess,
durante a estada na prisão e, depois, em 1926, nas cercanias de Berchtesgaden.
A obra foi remanejada primeiro por Hess e sua mulher, depois por um antigo
religioso da Bavária transformado em jornalista anti-semita, Bernhard Stemp-
fle, e, enfim, por um nazista de origem tcheca, Stolzing-Cerny. Existe um
segundo volume de Mein Kampí Não a Zweite Band lançada em 1927, já que
a primeira parte havia sido editada em 1925, mas o Zweites Buch, manuscrito
que data de 1928, e que recebeu logo que apareceu, 1961, o título de Segundo
livro de Hitler.
Mas seria mesmo o Mein Kampf um livro? Essa é a questão que de novo
se impõe. Quanto a estilo, trata-se de alemão muito mal escrito, apesar das
inúmeras correções ocorridas no curso das reedições. O tom? Oratória, a de
um tribuno incontido que vaticina sobre todos os assuntos que lhe passam pela
cabeça, de um monomaníaco agitado, e não a de um escritor ou de um teórico
preocupado em construir frases e articular idéias. O gênero mistura a crítica
violenta, a narração, a exposição doutrinária, a justificação de leitura, a
profecia: conversa de botequim, dir-se-ia, se não se temesse comprometer uma
prática como essa, bastante inocente, com tal protocolo do crime. No decorrer
das suas 782 páginas, agüenta-se apenas repetições e digressões, encadeamen-
tos caóticos, mixórdia de leituras heteróclitas e mal assimiladas, afetação
enfática de uma autobiografia que pretende conferir sua legitimidade a uma
“concepção do mundo”: Weltanschauung é uma palavra pela qual Hitler se
entusiasma porque condecora com uma aura filosófica suas confusas e explo­
sivas sínteses.

Questões de método

Como se comportar em face de tal obra? Além da dor diante do irrepará­


vel e da cólera diante daquilo que homens teriam devido e podido impedir, será
preciso tratar Mein Kampf “a frio”? “Esfriar” o objeto, isto é, praticar a
neutralidade, a fim de alcançar maior cientificidade? Seria esse texto analisável
filológica, histórica, filosófica, sociológica e psicologicamente? Foram tantas
disciplinas que tentaram enfrentar a espinhosa dificuldade ético-metodológica,
mas que permaneceram impotentes, até quando interligadas. Pois o enigma -
e a que ordem pertence esse enigma? - é precisamente o de que nos tenha

478
acontecido - a nós, à humanidade, cuja noção repugnava tanto a Hitler! — o
de que suas palavras se tenham tornado coisas e suas frases, atos, e o de que
seu autor ou, melhor, seu adivinhador, Adolf Hitler, tenha sido o responsável
por uma causalidade histórica que quase terminou no naufrágio da civilização
ocidental. Essa relação entre um texto e a trama da vivência histórica aparece
sem dúvida como um fenômeno único. Dir-se-ia que foi colocada em ridículo,
e até mesmo virada ao contrário a figura platônica do filósofo-rei. Aquele que
primeiro disse em seguida fez. Começou por tatear o crime por escrito, depois
perpetrou-o, passando sistematicamente à efetuação histórica. Diante do incrí­
vel "o que foi dito foi feito”, se encontra dissipada a questão tradicional da
filosofia: quais são as relações do pensamento com a ação, e mesmo da teoria
com a prática? Hitler simples e inteiramente deduziu sua prática de suas
teorias. E se ele tivesse podido um dia se lamentar de não ter chegado ao fim
de seus planos, ele não teria podido imputar esse relativo fracasso a qualquer
resitência alemã. Não houve efetivamente —ou foram tão poucos —os alemães
que se interpusessem e perturbassem a transparência do implacável mecanis­
mo. O fato, acontecimento histórico, longe de ter sido uma manifestação
contingente ou uma finalização de um feixe de processos, foi construído a
priori: não produzido por todas suas peças, certamente, mas recortado pelo
cérebro de um exaltado e colado sobre o papel. Programa que foi aplicado ao
pé da letra e que ninguém jamais discutiu (previamente).
Compreender-se-á que o exegeta deMein Kampfe o historiador do 32 Reich
dificilmente escaparão a uma espécie de regressão espistemológica, obrigados
como serão, nas circunstâncias, a confundir as palavras e os fatos. Tudo se passa
realmente como se a autonomia do simbólico tivesse desaparecido e como se
precisasse consentir, de uma vez, em reconhecer que as idéias conduzem o
mundo, que, do texto ao terror, a conseqüência é boa. Essas questões metodoló­
gicas e políticas são tão perturbadoras, que os historiadores alemães do nazismo
se dividem hoje em dia em duas escolas: os Intencionalistas que explicam a
política do 3a Reich por um encadeamento de decisões, isto é, por um processo
planejado, e os Funcionalistas que não restabelecem mais do que uma interação
de diversas decisões relativamente improvisadas, o dinamismo de um acúmulo
de iniciativas, na maioria dais vezes, contraditórias que teriam chegado, quase por
acaso, à exterminação. Será que tal debate compromete verdadeiramente apenas
questões de método? Michael Pollak, no na 41 das Atas de pesquisa em ciências
sociais, acaba de arriscar esta hipótese: pode-se apenas fazer da Solução Final o
produto de um plano a priori, esse plano que se formulou e se decidiu em janeiro
de 1942, na Conferência de Wannsee. Os Intencionalistas que querem es­
tabelecer uma articulação causai entre as palavras e os fatos cairiam, então, no
contra-senso que consiste em atribuir aos agentes individuais e aos coletivos
personalizados intenções e premeditações: obstáculo epistemológico de ordem
teleológica, impedindo produzir os determinantes estruturais da evolução his­
tórica, como na circunstância, e, por exemplo, da luta entre as diferentes
burocracias nazistas. Os funcionalistas denunciam, portanto, tudo o que depende
da pesquisa das origens e das responsabilidades, até mesmo dos responsáveis.

479
Eles denunciam “a lógica do processo’’, processo sendo entendido como proces-
sus, que articula Auschwitz a um programa, e como procedimento comprometi­
do com Nüremberg. Os funcionalistas pretendem desvendar o desvio que existe
entre as intenções dos atores históricos e o papel efetivo que eles desempenham,
não se deixar resvalar da categoria científica de causalidade à categoria política
de responsabilidade e à categopria ética de culpabilidade. A levar em conta esses
historiadores alemães, Mein Kampf deveria sem dúvida ser ainda tomado menos
a sério do que a conferência de Wannsee: não haveria nenhuma relação entre as
intenções do escrito e o encadeamento histórico estrutural. Essa inquietante
negação da responsabilidade de Hitler, dos dirigentes nazistas e do povo alemão
pode aparecer como a última peripécia do método estrutural e de sua rejeição
da história. Mas, desenvolvendo-se na Alemanha, no último quarto do século XX,
ela revela também que a epistemologia talvez tenha alguma relação com a política
e - por que não dizê-lo brutalmente? - com a ética.
Se é preciso, em toda boa-fé - e por preocupação de objetividade - voltar
à obra fundadora e a ela se ater, como evitar, entretanto, que se caia na
ingenuidade do pesquisador ou do professor, no humanismo do intérprete que
examina as fontes, recenseia os temas e critica os conceitos? Havíamos dito
que Mein Kampf não era um texto político como os outros, já que constituía
o manual de uma dominação e de um extermínio que foram bem-sucedidos, as
premissas de um silogismo cuja conclusão se enuncia “Noite e obscuridade".
Mas será preciso compreender esse livro único como o final de uma tradição
alemã e comprometer com ele, e por causa dele, Lutero, Fichte e Hegel,
Wagner e Nietzche? Isso eqüivaleria a dizer que, tendo lido Mein Kampf, nós
nos impediríamos de ler os grandes filósofos alemães do século XIX e de
escutar Tristão ou o Ring. Não seria mais conveniente unir esse elenco
teutônico das idéias recebidas a correntes científico-ideológicas às quais
autores franceses e ingleses misturaram suas águas? Coloquemos a verdadeira
questão e enfrentemo-la: de onde vem a idéia de que a cultura e a língua alemãs
- as de Goethe e de Schiller, como se diz - tenham podido se deixar violentar
a ponto de gerar o monstro totalitário e genocida que é Mein KampP. Tem-se
razão ao se dizer que tal perversão só poderia se manifestar justamente na
história e na tradição alemãs? Só depois de ter analisado as três motivações
principais desse livro, as que desenvolveram a história do 32 Reich, é que
tentaremos responder a essas questões.

O bem s o b e ra n o : o s a n g u e e o so lo

E no racismo que reside a especificidade do totalitarismo nazista. “A


questão da raça não é somente a chave da História, é a da cultura humana”
(pág. 338). A concepção hitleriana do mundo e da História não tem nada de
original. Mas o futuro Filhrer irá simplificar, globalizar, vulgarizar e propagar
essa nova evidência para o uso das massas que consiste em definir, em uma
síntese mítica, o povo pela raça, em ligar o sangue ao solo e um e outro ao
Estado. “O sangue comum pertence a um império comum” (pág. 17), e o Reich,

480
segundo Hitler, deverá ser composto exclusivamente de alemães, isto é, de
arianos puros. Foi o que simbolicamente lhe foi ensinado por uma feliz
predestinação, conta ele desde as primeiras páginas de Mein Kampf, o seu
lugar de nascimento: Braunau, pequena cidade da fronteira da Áustria com a
Alemanha. Em compensação, prossegue ele, a descoberta da Viena dos Hasbs-
burgos, “essa Babilônia das raças”, lhe inspirou uma profunda repulsa. “0
conglomerado de raças que a capital da monarquia mostrava, toda essa mistura
étnica de tchecos, poloneses, húngaros, ucranianos, iugoslavos e croatas (...)
me parecia repugnante, sem esquecer o bacilo dissolvente da humanidade,
judeus e mais judeus (...) Essa cidade gigantesca me parecia a encarnação do
incesto” (págs. 126-127). Assim teria germinado a idéia de um Estado ariano,
cujas leis drásticas preservariam da mestiçagem e das contaminações o sangue
germânico e estabeleceriam a dominação racista civilizadora. 0 ariano, na
verdade o “Prometeu da humanidade” (pág, 289), se revela como indivíduo
capaz de se pôr totalmente a serviço da comunidade, em virtude de uma
disposição hereditária para o sacrifício voluntário, de um sentido inato do
dever (página 299). Essa raça representa o grau superior da evolução: do
mesmo modo que os melhores elementos de uma comunidade se devem tornar
mestres, assim também o melhor povo, a raça superior, deve governar a terra
(págs, 442 e 447).
Da raça ariana, do povo alemão, devem, portanto, ser extirpados os seres
impuros por causa de sua raça e também os malsãos no plano individual. Essa
luta pela pureza do sangue constitui a única legitimidade do Reich milenar e
ela conduz obrigatoriamente a práticas radicais. Esterilização dos indivíduos
doentes e julgados inferiores. Eugenismo, isto é, interdição formal de casamen­
tos com indivíduos malsãos. “Ninguém é livre para pecar em detrimento de sua
descendência e, conseqüentemente, de sua raça” (pág. 401). Eutanásia, quer
dizer, supressão física de indivíduos cuja doença os torna particularmente
inúteis ou perigosos para o vòlkisch Reich. “O mundo pertence apenas aos
fortes que praticam as soluções totais” (pág. 254). Vê-se aparecer aqui em sua
generalidade uma fórmula que, a partir de 1942, se transformará em outra:“a
solução final”. A exterminação, à qual serão entregues os membros de duas
raças particularmente inferiores, deve também se abater sobre os arianos que
se encontrem atingidos por doenças incuráveis ou congênitas. É urgente se
desembaraçar dessa mania socialdemocrata e cristã que consiste “em salvar a
qualquer preço os mais adoentados e mais doentios” (pág. 400). O Estado
võlkisch tem uma “tarefa enorme” (pág.402). Será preciso primeiro retirar a
faculdade de procriar aos sifilíticos — Hitler é obcecado pela sífilis, a qual
consagra várias páginas, e pode-se constatar que sobre essa doença sexual­
mente transmissível se cristalizam todos os seus fantasmas de mácula - mas
também “aos tuberculosos, aos seres atingidos por taras hereditárias, aos
disformes, aos cretinos" (pág. 401). O vôIkische Reich deve, para evitar toda
degenerescência, aniquilar por uma decisão brutal “os descendentes que não
podem ser melhorados” (pág, 39), para melhorar "pela criação, a raça humana"
(pág. 404). Não seria conveniente, ao saber desse programa, traduzir võlkis-

481
ches Reich por Império racial ou Estado racista? “Impor aos avariados a
impossibilidade de reproduzir descendentes avariados é proceder com a mais
clara razão (...) Chegar-se-á a isso se for preciso, ao imperioso isolamento dos
incuráveis, medida bárbara para quem tiver a infelicidade de ser atingido por
ela, mas bênção para os contemporâneos e a posteridade. O sofrimento
passageiro de um século pode e deve libertar do mal os séculos seguintes”
(págs. 254-255).
É em termos solenes que Hitler defende o direito racista do ariano contra
os pretensos direitos dos homem. “O homem só tem um direito sagrado, e esse
direito é ao mesmo tempo um dever, o mais santo dos deveres, o de vigiar para
que seu sangue permaneça puro, para que a conservação do que há de melhor
na humanidade torne possível um desenvolvimento mais perfeito desses seres
privilegiados. Um estado racista deve, portanto, antes de tudo, fazer o casamen­
to sair do declínio em que mergulhou uma contínua adulteração da raça e
devolver-lhe a santidade de uma instituição destinada a criar seres à imagem
do Senhor e não dos monstros que estão no meio do caminho entre o homem
e o macaco" (pág. 400). Na continuação dessas páginas, assiste-se à identifica­
ção, em vista da eliminação comum dos seres ditos inferiores e dos seres
doentes, e à sua constante designação da pesença deles dentro do corpo social
como “peste”, "bacilo infeccioso”, “envenenamento do sangue”, “consuma­
ção”. Dentro desses termos que acabamos de citar, se revelará que a vigilância
naturalista-racista quanto à pureza do sangue, anteriormente qualificada de
procedimento da “razão clara”, recebe uma consagração de ordem religiosa: a
propriedade do homem - de ser a imagem de Deus - , pertencendo exclusiva­
mente aos arianos, comanda a eliminação daqueles que são a muito custo
homens, mas mais ainda híbridos de humanidade e animalidade. Várias vezes,
em Mein Kampf, considerações pseudocientíficas se aliam a uma legitimação
suprema pela Providência: assim lê-se que “as misturas contra a natureza das
quais a História estabeleceu as horrorosas provas” (pág. 285) consistem em
"pecar contra a vontade do Eterrto, nosso criador” (pág. 286). As próprias
Igrejas ao se desinteressarem da pureza da raça pecam "contra o respeito
devido ao homem, imagem do Senhor” (pág. 401).
O emprego quase obsessivo da palavra vólkisch no texto hitleriano
causou muitos problemas aos tradutores e comentadores. A tal ponto que
Jean-Pierre Faye, em sua obra capital, Langages totalitaires (Linguagens
totalitárias), recusa-se a traduzi-la. Na linguagem corrente, e também na
linguagem filosófica, vólkisch significa "nacional, popular”. Entretanto, mesmo
tendo Hitler distinguido, no título de um capítulo, Volk e Rasse não se
compreende nada de sua ideologia, se se contentar com a tradução de vólkisch
da maneira habitual. Foi por isso que os tradutores de 1934 tomaram o lúcido
e corajoso partido de um falso sentido, traduzindo vólkisch por "racista”: eles
mencionam sua decisão em uma nota na página 380 de sua edição. A palavra
“racial” sem dúvida teria violentado menos a língua, mas descobre-se que essa
tradução se acha plenamente justificada pelas páginas surpreendentes nas
quais Hitler explica por que a palavra vólkisch não figura no nome de seu

482
partido, o National-socialistiche Deutsche Arbeiter Partei [Partido Nacional-
socialista dos Trabalhadores Alemães). A passagem que citamos é retraduzida
por J. -P Faye. "Não foi sem motivo que o jovem movimento se apoiou, então,
num programa determinado e que não usou nisso a palavra vôlkisch. O
conceito vôlkisch, por causa da ausência de limitação conceituai, não pode ser
a base de um movimento” (pág. 360). O partido “tira as características
essenciais de uma concepção racista do universo, ele faz, levando em conta as
realidades práticas da época, do material humano e de suas fraquezas, um
conjunto doutrinai político que coloca ele mesmo, desde logo, em uma
organização tão rígida quanto possível das grandes massas humanas, as bases
do triunfo final dessa concepção filosófica” (pág. 383): bela amostra do estilo
e do pensamento hitlerianos! A vôlkisch Politik consistirá em desenvolver a
expansão territorial, em praticar a técnica do despovoamento, em arrancar o
Estado dos marxistas e dos judeus e em conquistar uma França cheia de judeus
e negros.

O mal radical: os judeus

“Ninguém se espantará se, em nosso povo, a personificação do diabo,


símbolo de tudo que é ruim, tomar a figura corporal do judeu” (pág. 324). A
revelação original foi (embora se saiba, quanto a esse ponto, as mentiras de
uma autobiografia onde o futuro Filhrer alega ter recebido uma educação
tolerante, esclarecida, e de ter total ignorância do anti-semitismo antes de sua
chegada à capital dos Habsburgos), portanto, um súbito encontro em Viena.
“Um dia, quando atravessava a Cidade Velha, encontrei de repente um
personagem usando um longo kaftan e tendo encaracolados cabelos negros.
Será um judeu? Esse foi meu primeiro pensamento. Em Linz, eles não tinham
aquele aspecto. Examinei o homem às escondidas e prudentemente, mas,
quanto mais observava seu rosto estranho e examinava cada um de seus traços,
mais a primeira pergunta que eu me havia feito tomava em meu cérebro uma
outra forma: será ele também um alemão?” (pág. 62). O sionismo de alguns
desses judeus vienenses lhe parece confirmar “o caráter étnico dos judeus”.
Hitler dirá ter compreendido rapidamente que se trata nesse caso “de uma
questão vital para toda a humanidade e que a sorte de todos os povos
não-judeus depende de sua solução” (pág. 124). Essa experiência pretensa-
mente fundadora sucede em um triplo contexto de dor, ódio e piedade. Dor
diante da derrota de 1918: os judeus haviam sido derrotistas. Ódio com
respeito aos Habsburgos, que favoreceram em seu Império a imunda agitação
cosmopolita. Grande piedade pelos pobres, na medida em que eles são alemães.
“Meu povo”, diz Hitler com freqüência, “...Confessa que, quanto mais aprende
a conhecer os judeus, mais é levado a desculpar os trabalhadores por seus
desvios sindicais e políticos” (pág. 70).
O autor deMein Kam pf descreve a gênese insidiosa da dominação: como
se passou dos judeus do beco aos judeus emancipados, assimilados, até mesmo
convertidos ou, então, ainda reivindicando suas particularidades. “O ódiò pela

483
raça branca” (pág. 325) que os anima os conduzirá ao aniquilamento de todos
os não-judeus. Pois é preciso que se saiba que o “judeu popular” foi substituído
daqui para frente polo “judeu sanguinário” (pág. 327). E que se saiba também
que essa raça forma “o contraste mais marcante com a raça ariana”, não
conhecendo o idealismo e não tendo nunca possuído outras disposições além
do instinto de conservação (págs. 299, 300 e 301). Como nunca estiveram de
posse de uma civilização que fosse própria deles, os judeus fizeram uso da
burguesia contra o mundo feudal e agora fazem uso do trabalhador contra o
mundo burguês, destruindo os fundamentos da economia nacional (págs. 319
e 325). Pois é um só e o mesmo o perigo horroroso que pesa sobre a existência
do povo alemão: o marxismo e o judaísmo (pág. 32). Hitler descobriu “as
relações existentes entre essa doutrina destruidora (o marxismo) e o caráter
específico de um povo que lhe fora até então, por assim dizer, desconhecido.
Só o conhecimento do que são os judeus dá a chave das metas dissimuladas
realmente buscadas pela socialdemocracia” (págs. 57-58). Mas os judeus não
são, no mesmo rastro, menos responsáveis pelo capitalismo (pág. 636). “O
Capital, obra do judeu Karl Marx, tornou-se-me perfeitamente compreensível.
Ele representa a luta da socialdemocracia contra a economia nacional, luta que
deveria preparar o terreno para a dominação do capital verdadeiramente
internacional e judeu das finanças e da bolsa” (pág. 213).
Essa raça, que se faz passar por uma coletividade religiosa, só pode ser
descrita e pensada como uma doença. Os judeus não são nem mesmo nômades
(pág. 304), mas muito mais aranhas que sugam o sangue do povo alemão, eternos
sanguessugas, vampiros, parasitas vivendo sobre o corpo de outros povos (pág.
305). O veneno deles invadiu as artes, a literatura, o teatro. Contaminaram
inteiramente a imprensa (pág. 245), praticam o tráfico de brancas e a prostituição,
e é a eles que se deve imputar - mas também culpar - as devastações operadas
pela sífilis. Carregam a responsabilidade de um envenenamento do sangue,
constituem uma doença do organismo alemão, um “abscesso” para qual se deve
recorrer ao "escalpelo” (pág. 64), “uma peste que infecta o povo” (pág. 65), “um
lixo que pulula”, “um bando de ratos” (pág. 302). O judeu “é e permanece o
parasita típico, o filador que, como um bacilo nocivo, se expande sempre cada
vez mais, logo que um solo nutridor favorável o abriga. O efeito produzido por
sua presença é o das plantas parasitas: no lugar em que ele se fixa, o povo que
o acolhe se extingue ao fim de mais ou menos tempo” (págs. 304-305). De tal
modo se revela “a causalidade diabólica” - a expressão constitui o título de uma
obra de Léon Poliakov —, a etiologia de todas as patologias sociais. Mein Kampf
enuncia, portanto, claramente os fundamentos da “solução final”, formula seu
programa e ainda assegura seus preparativos - como o atesta, entre outros
exemplos, a extraordinária página 677. “Se se tivesse, no começo e no decorrer
da guerra, mantido de uma só vez doze ou quinze mil desses hebreus corruptores
do povo sob os gases venenosos que centenas de milhares de nossos melhores
trabalhadores alemães de todas as origens e de todas as profissões tiveram de
suportar nas frentes de batalha, o sacrifício de milhões de homens não teria sido
em vão. Ao contrário, se nos houvéssemos livrado a tempo desses doze mil

484
velhacos, ter-se-ia talvez salvado a existência de milhões de bons e bravos alemães
cheios de futuro.”

Uma arma anterior: a propaganda

“Uma arma realmente terrificante nas mãos daquele que sabe fazer uso
dela” (pág. 180)... Três experiências parecem alicerçar o culto hitleriano da ação
psicológica sobre as massas. Primeiro a publicidade: ele contou realmente que
tinha querido, na sua juventude, ser “um agente de publicidade por meio da
palavra”. E sua concepção de propaganda se refere antes de tudo a esse modelo,
“o reclame político” não diferindo de maneira nenhuma daquele que se poderia
fazer para um sabão (pág. 183). Desse modo não se deve fazer a mínima
concessão de direito à parte adversa. “A meta da propaganda não é mais dosar
o direito dos diversos partidos, mas sim de sublinhar exclusivamente o do partido
que se representa. Ela também não tem mais que procurar objetivamente a
verdade, se essa for favorável aos outros, nem de a expor às massas sob as cores
de uma eqüidade doutrinária, mas tem de perseguir unicamente o que lhe é
favorável” (pág. 183). Porém Hitler se refere também, e dentro de uma ordem de
realidade totalmente diferente, à propaganda da guerra. Conta como sofreu
durante as hostilidades a superioridade dos ingleses nesse domínio: a nulidade
alemã nesse ponto explica em parte a derrota. Enfim, ele diz ter ficado fortemente
impressionado pela eficácia dos meios utilizados pelos revolucionários de 1917
e depois então por seus partidários: “propaganda incansável e verdadeiramente
prodigiosa de dezena de milhares de agitadores infatigáveis” (pág. 472). A teoria
marxista-leninista teria permanecido como carta fora do baralho se o ódio
bolchevique não se tivesse expandido por intermédio de seus seguidores e se não
se tivesse apoderado das massas trabalhadoras.
Três capítulos de Mein Kampf tratam dessa questão que Hitler julga
capital para a própria organização do movimento. Suas certezas na matéria se
apoiam sobre uma psicologia das massas que ele certamente não inventou, mas
da qual ele tira as conseqüências mais radicais. A princípio, o casal formado
pelo líder e a multidão, pelo chefe e a massa. Esta, feminina, incapaz de ter
idéias abstratas (pág. 337), pensa exclusivamente por imagens, segue apenas
seu instinto, não possui nenhum espírito crítico, se deixa sugestionar, tende a
passar imediatamente à ação. Dessa passividade elementar vem o fato de que
o líder pode, se souber manipular essas forças misteriosas por meio de uma
repetição constante (pág. 185), conseguir “enfraquecer o livre-arbítrio” de seus
ouvintes de tal maneira que estes não estejam mais “de plena posse das
energias de seu espírito e de sua vontade" (pág. 472-473). Assim, ele pode
dispor à vontade desse “material humano” (pág. 473), desse bando dócil. “Toda
propaganda deve ser popular e colocar seu nível espiritual no limite das
faculdades de assimilação do mais limitado, entre aqueles aos quais ela se deve
endereçar. Nessas condições, seu nível espiritual deve estar situado tanto mais
baixo quanto mais numerosa for a massa dos homens a atingir" (pág. 181).
Notar-se-ão o espantoso emprego da palavra “espiritual” e a maneira significa-

485
tiva pela qual são ditos crescer, em razão inversa um do outro, o número de
ouvintes e o grau de espiritualidade. “O orador que fala melhor não é o que
sente vir a ele a inteligência dos assistentes, mas aquele que conquista o
coração da massa” (pág. 342). O “coração” dás massas reclama que se diga
sempre a mesma coisa (pág. 186), que em vez de se dispersar, limite-se a um
pequeno número de objetos (pág. 343), que se designe um só adversário (pág.
465).0 parceiro macho dessa massa deve adivinhar seus menores movimentos,
“empunhá-la no domínio dos sentimentos” (pág. 337), impor-lhe sua vontade
(pág. 473), assumir uma responsabilidade total a fim de acionar essa “verda­
deira histeria” que embala loucamente os ouvintes (pág. 337). Aqui aparece “o
princípio do Führer", de sua infalibilidade e de seu todo-poderio (pág. 576).
Esta ação do líder sobre a multidão passa principalmente pela eloqüência:
muitas páginas de Mein Kampf celebram “o poder mágico da palavra”. Pois só
ela é “capaz de provocar revoluções verdadeiramente grandes e isso por causas
psicológicas gerais (...) Todos os grandes acontecimentos que impressionaram
o mundo inteiro foram provocados pela palavra, não por escritos”. Hitler
utiliza, tendo em vista a dominação total, as velhas receitas, as da retórica e da
sofistica, que tinham, no entanto, sido colocadas, na época grega, a serviço da
democracia. Ele se vangloria muito de se ter tornado um técnico e mesmo um
artista da eloqüência. “Adquiri o entusiasmo patético, aprendi os gestos que
pedem uma grande sala contendo milhares de homens” (pág. 466). Essa
valorizaçao extrema da palavra, este reconhecimento de seu poder ao mesmo
tempo misterioso e controlável não procedem sem uma diminuição sistemática
do escrito,que é a atividade característica das “raposas burguesas”. Os teóricos,
os escritores, professores, intelectuais e outras "penas de ganso” não co­
nhecem nada do contato carnal entre o orador e seu público. Eles não sabem
adaptar-se aos movimentos de uma multidão e aceitam ignorar em que mãos
vão parar seus livros. Quer dizer a nulidade de sua ação sobre as massas. Essas
pessoas sofrem de um vício redibitório: pretendem apelar para a razão de seus
leitores! O desprezo soberano de Hitler pela leitura e pela escrita aparece já
nas primeiras páginas de Mein Kampf, quando se vangloriava de sua maneira
rápida de consumir os escritos dos quais tinha necessidade. Existe sem
nenhuma sombra de dúvida uma complementaridade entre o impudente
condutor e o autodidata remendador de ideologias.

Fontes manifestas

Convém agora mostrar que Hitler não inventou nada, mas somente
remanejou, reuniu e radicalizou teses familiares em sua época. De onde vêm
então, os elementos desse amontoado mortífero? Essa questão deve ser
colocada com a maior prudência, evitando ao mesmo tempo a suspeita rápida
trazida sobre a tradição do pensamento alemão, até mesmo a acusação lançada
contra o conjunto da cultura ocidental e a justificação sem exame dos grandes
pensadores, sob pretexto de que estes não teriam jamais visado a tais conse­
qüências nem as desejado, que suas obras muito cedo contribuíram para

486
formar o humanismo europeu e para reforçar as capacidades de resistência
espiritual e política. Hitler tentou encontrar para si predecessores com pres­
tígio em Schopenhauer e Wagner. Mas esses grandes nomes —o de um filósofo
do qual ele não tinha de maneira nenhuma os meios para ler sua obra-mestra
e o de um músico do qual, no dizer de seu arquiteto, Albert Speer, as óperas
tiveram cedo o dom de aborrecê-lo —forma facilmente demais um pano de
fundo. Não se deve, portanto, levar em conta as diversas confissões às quais
Hitler fingia se deixar levar, com a finalidade de se autovalorizar culturalmente.
0 problema das influências pode se esclareder, em compensação, se nos
dermos conta da existência de dois planos. O primeiro seria o das fontes
imediatas, das causas próximas de Mein Kampf. ele compreende toda espécie
de ensaios pseudocientíficos, escritos mais freqüentemente em francês e em
alemão, que inundaram a Europa desde cerca de 1850, e que Hitler pilhou
senão plagiou sem vergonha. No nível desse primeiro grupo de textos, basta
proceder a um recenseamento e restabelecer os empréstimos mais marcantes.
Quanto ao outro plano, ele só prolifera no término de uma leitura ou de uma
releitura instruída da tradição filosófica alemã, e só se podem descobrir aí
elementos suspeitos depois de ter tomado muitas precauções. A avaliação dos
filosofemas que puderam servir de adubo para Mein Kampf aparece efetiva­
mente como uma operação delicada: isolar um tema, um conceito do contexto
que é o de um sistema ou de uma obra, que seja ela filosófica ou literária,
depende da cirurgia fina (delicada).
Os dois autores que influenciaram maciçamente Hitler foram o francês
Gustave Le Bon e o inglês, tornado alemão, Houston Stewart Chamberlain. O
motivo da massa crédula, feminina, sugestionável, inconsciente, ávida para se
submeter a um chefe carismático vem de La psychologie des foules (A
psicologia das multidões) (1895), livro de Le Bon, cujas teses se vêem
confirmadas pelo aparecimento em 1920 de uma obra The group mind, escrita
por um antropólogo inglês, Mac Dougall. Quanto às convicções arianas e
anti-semitas, incansavelmente marteladas por Hitler, se são encontradas tam­
bém em Le Bon, provêm principalmente de H. S. Chamberlain. Esse fanático
da germanidade - escreveu em alemão suas Fondations du XXsiècle (Fun­
dações do século XX), publicadas em 1899 —era um dos autores favoritos de
Guilherme II com quem manteve uma importante correspondência. Ele se dizia
discípulo do francês Gobineau, autor do Essai sur Vinégalité des races
humaines (Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas). Mas, se Gobi­
neau, muito em voga na Alemanha, pretendia constatar e predizer a decadência
da Europa, por causa da mestiçagem, se ele apregoava um pessimismo radical,
dava provas ao mesmo tempo de um curioso filosemitismo. Chamberlain, ao
contrário, via nos judeus um princípio destruidor e considerava que eles
aniquilavam as culturas dos povos aos quais se assimilavam. Não cessava de
mostrar a superioridade racial do pretenso elemento ariano na cultura euro­
péia e a particular excelência da germanidade. Assim, os alemães se revelavam,
segundo ele, os mais aptos para estabelecer uma nova ordem européia.
Chamberlain havia encontrado o jovem Hitler alguns meses antes de morrer e

487
lhe havia escrito: “Dir-se-ia que seus olhos são dotados de mãos: eles agarram
os homens e não os largam mais.”
De resto, delírios análogos freqüentavam há algum tempo a França e a
Alemanha, incansavelmente retomados por pequenos ideólogos que seriam
sem dúvida esquecidos hoje em dia se o nacional-socialismo não tivesse
entrado para a história. Não os podemos nomear todos. Assinalemos, todavia,
dois franceses - Gougenot des Mousseaux, que fez publicar, em 1869, LeJuif,
le judaisme et l’enjuiv,ement des peuples chrétiens (O Judeu, o judaísmo e a
judaizaçâo dos povos cristãos), tendo sido traduzido em alemão por Alfred
Rosenberg! e Vacher de Lapouge, L'aryen, son rôle social (O ariano, sua
função social) (1899), que se fez turiferário(*) dos dolicocéfalos louros. —;
entre os alemães, pode-se citar Paul de Lagarde, apóstolo de uma nova religião
germânica, Dietrich Eckart, amigo de Hitler, e autor de Le bolchevisme de
Moise à Lenine (0 bolchevismo, de Moisés a Lênin) e, enfim, Wilhelm
Boelsche que, em seu livro Du bacille à Vhomme-singe (Do bacilo ao homem-
macaco), faz uma descrição dramática da ameaça total que as bactérias e os
bacilos fazem pesar sobre o homem. Quanto aos Protocoles des Sages de Sion
(Protocolos dos sábios de Sião), eles merecem receber um tratamento particu­
lar. Essa bochura anônima, publicada em 1890, faz desvendar, pelos próprios
judeus, sua vontade de dominação mundial. Sabe-se há muito tempo - a
Gazette de Frankfurt o repetia sem trégua —era um falso manifesto público,
executado pela polícia política russa em Paris para servir de arma ao governo
czarista contra os liberais. Mas Hitler consulta frequentemente esse “esgoto
coletor de anti-semitismo” - a palavra é de Edmond Vermeil - e cita os
Protocolos como uma fonte digna de fé (pág. 307).

Incertezas de uma genealogia conceituai

Uma genealogia conceituai do nazismo deve constantemente levar em


consideração os conhecimentos adquiridos por uma análise estrutural que
descreve como se deslocam os enunciados dentro da sincronia ideológico-po-
lítica. Foi J. -P. Faye quem inaugurou esse método. Ele coloca uma questão:
como puderam ser tornadas aceitáveis essas proposições, essas fórmulas de
poder? E sua resposta consiste justamente em analisar a transformação dos
discursos e em explicar que palavras e palavras de ordem podem trocar seus
sinais, passando da esquerda para a direita. Estudando a circulação das
narrativas ideológicas, ele tenta "uma sociologia das linguagens que seja uma
semântica da História”, e cita Mailarmé: "Enunciar é produzir” (Faye, 1972,
págs. 3 a 10 e 713 a 716).
Não se sabe mais contornar as análises de Hanna Arendt sobre o
totalitarismo quando se medita sobre as fontes da doutrina hitleriana. Hanna
Arendt distingue a ideologia da filosofia, de uma maneira que priva por
antecipação de toda validade o processo proposto aos pretensos rrvestres

(*) Turiferário - acólito que leva o turíbulo.

488
pensadores. A ideologia, "lógica de uma idéia aplicada à história”, identifica
a história a um único processo cuja regra é: “Você não pode colocar A sem
colocar B e C e assim por diante até o fim do alfabeto do homicídio.” Desse
modo, a ideologia conhece tudo “dos mistérios do passado, dos dédalos do
presente, das incertezas do amanhã”. Ao contrário, a filosofia se move dentro
de uma “insegurança necessária” (Arendt, 1972 págs. 216 e 224), permanece
um questionamento. A ideologia se alimenta da filosofia, ela se serve nela e
dela, mas é, de certa forma, da essência da filosofia não poder produzir uma
teoria da dominação, da exclusão ou do extermínio. E também não se poder
defender das utilizações sem escrúpulos que dela fazem as ideologias.
O neodarwinismo parece desempenhar um papel tão determinante em
Mein Kampf, que é importante primeiro perguntar de onde vem a ideologia
cientista da qual o biologismo político constitui a aberração mais criminosa.
Foi pela noção nietzschiana de vontade de poder e pela do super-homem que
os nazistas legitimaram, se bem que HitJer não cite Nietzsche em Mein
Kampf, e glorificaram sua Weltanschauung (Visão global) racista. Ora,
Nietzsche vomitava a ciência e os sábios e abominava da mesma forma os
alemães, a história e a política. Se é preciso fazer aparecer uma origem
filosófica para o biologismo nazista, por que não ir procurar mais do lado de
certas racaídas do positivismo? Não existe o menor biologismo em Nietzsche,
como Heidegger muito bem o disse e redisse em seus cursos professados sob
o regime hitleriano, sobre seu breve alistamento nas fileiras do nacional-so-
cialismo.
Compreender-se-á que só, possa tratar-se, em tal circunstância, de revelar
dentro da tradição filosófica um certo número de invariantes, cuja significação
e alcance se transformam evidentemente segundo o contexto de cada obra, mas
cuja repetição, de autor para autor, senão de época para época, facilita a
trapaça ideológica, a passagem daquilo que concerne à ordem da crise e da
crítica àquilo que ressalta do crime contra a humanidade. A mais insistente
dessas invariantes é a metaforização, até mesmo a conceitualização da socie­
dade, da nação ou do Estado como organismo, isto é, como totalidade viva.
Esse organicismo encontrou seu desenvolvimento pleno no romantismo ale­
mão. Torna possível e legitima uma oposição entre a comunidade, orgânica,
viva, e a sociedade, composta de indivíduos atomizados, abstratos, justapostos,
reunidos por vínculos somente exteriores. O Volkstum, a Volhheit, o parentes­
co étnico realiza a comunhão da qual os românticos cultivam ao mesmo tempo
a nostalgia e o ideal revolucionário. Essa busca de uma identidade mística e
de uma totalidade imanente foi exercida contra a filosofia das Luzes, a
Revolução Francesa e o imperialismo napoleônico. O tema vôlkisch em Hitler
não tem nada a ver com essa concepção romântica de nação e Estado. Tudo se
passa, no entanto, como se esta palavra Volk e todas as que dela derivam
tenham trazido infelicidade... Isso não impede ter havido a ignomínia de se
tomar Friedrich Schlegel ou o jovem Hegel, ou Kleist, ou outros, menos
conhecidos, como Gõrres e Adam Müller, por pais fundadores da doutrina
nazista do sangue, do solo e da arianidade.

489
Da mesma maneira, quando Hitler, em suas páginas mais atrozes,
identifica a Natureza com o Eterno a fim de melhor legitimar seu evolucionis-
mo racista, seu selecionismo homicida, poder-se-ia dizer "que sua política se
inspira, sem ele saber, em um filosofema kantohegeliano: essa teleologia que
implica que a natureza ou o Espírito desenvolva seus planos dentro da História
e imponha sacrifícios aos indivíduos e às épocas. Mas não foi com razão que
se colocou o discurso kantiano e principalmente o discurso hegeliano sobre o
progresso em ligação com o apogeu do liberalismo? Nada que seja mais
estranho ao totalitarismo, portanto.
Pode-se, da mesma maneira, atribuir a Fichte e a Hegel a paternidade
dessa idéia homicida a qual reside ou culmina em uma só raça a verdadeira
humanidade? Sabe-se que, para Hegel, cada época se encontra representada
e, portanto, conduzida por um povo que, naquele momento, encarna o
espírito do mundo. Quer dizer que, dentro dessa perspectiva, cada povo
recebe a cada vez seu privilégio e que nenhum povo poderia assegurar sua
soberania durante um Reich de mil anos. Quanto a Fichte, não se pode negar
que em seus Discursos à nação alemã, de 1807, ele leva muito longe a
desvalorização dos latinos, franceses e judeus, considerados pertencentes a
raças decadentes. Afirma que só os alemães possuem a faculdade de regene­
ração e a capacidade de inaugurar uma era histórica nova. Mas essas
excelência do povo alemão não reside de forma alguma na raça. Ela provém
somente da língua, que é a mais pura, isto é, a mais próxima da língua
originária. A superioridade alemã é, portanto, de ordem metafísica. E um dos
grandes comentadores de Fichte, Xavier Léon, pôde mostrar que os Dis­
cursos, dirigidos contra Napoleão, mas também contra o nacionalismo
romântico, expunham a idéia nacional de uma Alemanha democrática. Não
é, portanto, porque ele adota um tom messiânico, porque ele se refere a
Maquiavel e porque ele abusa do conceito de germanidade que ele deixa de
ser ao mesmo tempo um filósofo da liberdade.
O racismo, se racismo existe na história da filosofia — mas a palavra
parece bastante anacrônica e imprópria - vê-se aparecer incontestavelmente
com a antropologia das Luzes. Nos casos de Buffon e de Voltaire, de Kant a
Hegel, emerge alguma coisa que a visão cristã do mundo não podia produzir
por causa do universalismo pauliniano e da política apostólica que dele
decorria: a hierarquia das raças e, sob as cobertas das ciências da natureza,
confisco do próprio homem pelo europeu.
Quanto ao motivo anti-semita, se admitirá que ele pediria uma genealogia
particular. Inegavelmente, o antijudaísmo constituiu uma invariante de Lutero
a Nietzsche, passando por Kant, Fichte, Hegel, Feuerbach e Marx.. E haveria
muito para dizer sobre a persistência, secreta ou provocadora, de tal filosofe­
ma. Opostos aos cristãos, aos gregos antigos, aos alemães, os judeus aparecem
na tradição do pensamento alemão como igualmente estranhos ao amor, à
História, ao pensamento e ao universal. E à lei! Eles representam o egoísmo,
o espírito prático, a separação dos outros homens. Os filósofos, eles também,
esperam ainda dos judeus que eles abandonem sua tradição, a fim de se

490
tornarem colaboradores da Razão e dos cidadãos do Estado moderno. Mas o
que é colocado em causa é o judaísmo e não os próprios judeus: nada que se
possa assimilar do anti-semitismo. Muitas tolices fundamentais e inconse­
qüentes foram escritas pelos filósofos a propósito da questão judia, questão
que, de resto, diz mais sobre os que a colocam do que sobre aqueles a propósito
dos quais ela é colocada. Porém, por mais experimentada que seja, depois de
1945, a leitura de Mein Kampf, o dever da verdade manda que não se
interprete retrospectivamente textos ou fragmentos cujos autores não podiam
ser apresentados como podendo produzir, retardadamente ou no fim de
múltiplas mediações, tais efeitos perversos. O espírito de justiça, em compen­
sação, reclama que, diante de tais temas, se vigie, instruído pela história, severo
e atento.
Uma citação para concluir e dar o alarme. “A razão principal pela qual
encontrei tão pouca resistência positiva foi talvez o caráter inofensivo, irreali-
zável e conseqüentemente anódino que meus adversários emprestavam a
minha ação” (Hitler, 1961).

• M ein K a m p f (1925 e 1928), Paris, Nouvelles Éditions Latines, tradução de J- Gaudefroy-De-


mombynes e A. Calmettes, 1934; reedição ordenada pela Corte de Apelação de Paris de 11 de
julho de 1979; L e s e c o n d liv re d e H itler, L ib res p r o p o s s u r la g u e rr e e t la p a ix , recolhidos por
M. Bormann, Paris, 1952-1954,

► Hanna Arendt, L e s y s tè m e to ta lita ire (1951), Paris, Seuil, 1972; Pierre Ayçoberry, L a
q u e stio n n a z ie (1979), Paris, Seuil; Jean-Pierre Faye, L a n g a g e s to ta lita ir e s (1973), Paris,
Hermann; Werner Maser, M ein K a m p f d ’A d o lf H itler, Paris, Plon, 1968; Philippe Lacoue-Labar-
the e Jean-Luc Nancy, M y th e s e t cro y a n c es, em L es m é c a n ism e s d u fascism e, Estrasburgo,
Bibliothèque centrale de prét du Haut-Rhin, 1981; Léon Poliakov, L e m y th e a r y e n . Paris,
Calmann-Lévy, 1972; J.-P. Stern, H itler, le F ü h rer et le p e u p le. Paris, Flammarion, 1985;
Edmond Vermeil, D o c trin a ire s d e la révo lu tio n a lle m a n d e , Paris, F. Sorlot, 1939.

Elisabeth de FONTENAY.

HOBBES, Thomas, 1588-1679


Leviatã, 1651

0 Leviathan contém todo o pensamento de Hobbes. Seus outros escritos


são ou preparações para a grande obra (Elements o f Law, De Cive), ou
complementos e anexos (Behemoth, A dialogue between a Philosopher and a
Student o f the Common Laws o f England). O Leviatã expõe as articulações

491
essenciais do problema humano. O homem é triplo: ele é homem, é cidadão e
é cristão. Ou ainda: ele é um corpo natural, é memhro de um corpo político e
é membro de um corpo místico. Essa triplicidade é fonte de tensões e de
conflitos: conflito entre o homem e o cidadão, conflito entre o cidadão e o
cristão, conflito entre o homem e o cristão. O Leviatã expõe, portanto, também
o procedimento destinado a resolver esses conflitos; resolver esses conflitos
não significa aboli-los, mas agir de tal modo que eles não sejam ruinosos para
a vida humana. Um só livro contém todo o pensamento de Hobbes porque a
divisão ou, melhor, a tripartição humana deve e pode ser reconduzida para a
unidade, uma unidade artificial. O Leviatã é uma obra-de-arte que descreve
uma outra obra-de-arte, a obra-de-arte por excelência: o Estado soberano
graças ao qual os homens estão em condições de colocar um termo em seus
conflitos ou, ao menos, de pacificá-los.
Essa obra, nascida de circunstâncias políticas, é, ao mesmo tempo, uma
obra fundamental para as enfrentar. Ela fixa os termos da reflexão política até
a Revolução Francesa: o problema político é o problema da obediência legítima
do indivíduo e, inseparavelmente, o da representação política. A urgência era
a guerra civil inglesa que culminou na execução do rei Carlos I (1649). A
guerra civil inglesa, inseparavelmente política e religiosa, foi uma das ex­
pressões mais dramáticas do problema teológico-político sob a forma pós-me-
dieval, isto é, dentro do quadro nacional. O rei foi morto por não ter podido
ou sabido ser o representante da nação inglesa, nem em sua expressão política,
nem em sua expressão religiosa. A ruptura anterior com Roma, que já havia
permitido ao Rei ou à Rainha intitular-se Chefe Supremo (Head) da Igreja da
Inglaterra, havia também deixado o caminho livre para uma definição da Igreja
como corpo dos eleitos ou república dos santos que o privava de toda
autoridade religiosa: os Presbiterianos vão fornecer a energia religiosa da
subversão. Simultaneamente, o aumento do poder da Câmara dos Comuns,
cuja definição original era de representar os ingleses perto do Rei, vai lhe
permitir colocar-se finalmente como o único representante legítimo dos in­
gleses. Essa dupla subtração de legitimidade tornou a posição do Rei insus­
tentável. Não havia nenhuma linguagem disponível que pudesse defender
adequadamente sua legitimidade contra as reivindicações das seitas religiosas
ou contra as do Parlamento, que de resto se misturavam a se reforçavam no
começo e durante uma boa parte das perturbações. Um novo idioma da
legitimidade monárquica dentro do quadro da nação devia ser encontrado;
Hobbes o elaborou.
0 problema da filosofia política clássica (a que devemos aos gregos e aos
romanos) é o do bom ou do melhor regime político; o problema da filosofia
política moderna —consecutiva ao estabelecimento do cristianismo - é o da
obediência legítima. A Igreja coloca um problema político inédito: ela se
apresenta como essencialmente diferente das comunidades políticas nas quais
os homens vivem sua existência natural, mas ao mesmo tempo ela se apresenta
como uma cidade, uma cidade na qual todo homem é um cidadão em potencial,
na qual todo batizado é um cidadão efetivo. Sua origem e seu fim residem fora

492
deste mundo, mas os viventes que são seus membros estão neste mundo.
Encarregada de trazer aos homens a salvação que eles não saberiam encontrar
nem talvez procurar por eles mesmos, ela é conduzida por sua própria missão
de lhes ordenar os passos ou as ações exteriores e interiores necessários a essa
salvação. Como a graça, segundo Santo Agostinho, elá ordena o que ela dá. Os
cristãos devem, portanto, obedecer-lhe. Ao mesmo tempo, ela reconhece e
prega que o Reino de Deus não é deste mundo, que é preciso dar a Deus o que
é de Deus e a César o que é de César, que é preciso obedecer a Nero e rezar
por ele; em resumo, ela reconhece a autonomia e legitimidade da ordem
política terrestre. O cristão se encontra, portanto, confrontado por um conflito
de lealdades, dividido como está entre duas obediências igualmente legítimas,
apesar de diferentes.
Das duas afirmações que definem a posição da Igreja no mundo - o Reino
de Deus não é deste mundo e a Igreja tem o direito e o dever de mandar neste
mundo —, a segunda é necessariamente a mais forte: ela só faz ir de encontro
à consciência que a Igreja tem de si mesma, de sua razão de ser e de sua
finalidade neste mundo. Já que o Bem —Deus —que ela tem como missão
trazer aos homens a leva infinitamente acima de todos os bens terrestres que
os podem solicitar, ela tem necessariamente a plenitude de poder, direto ou
indireto, sobre todos os assuntos humanos. Entretanto, a cidade terrestre é o
quadro natural da vida humana; mesmo constituída de cristãos, pertence
sempre de alguma maneira a ela mesma sua própria finalidade; e isso tanto
mais acontece quando ela se acha confrontada com outras cidades, outros
Estados, igualmente constituídos de cristãos. O cristão, por mais penetrado
que esteja da verdade de sua religião e da santidade de sua Igreja, ressente
naturalmente enquanto cidadão as reivindicações da Igreja como uma invasão
sobre seus direitos e responsabilidades e, se for Príncipe ou Magistrado, como
uma insuportável e tirânica pretensão. O conflito entre as duas cidades é
inevitável e insolúvel. Ele será insolúvel por tanto tempo quanto se permaneça
nos termos originais do problema. Foi o que experimentou a Europa na Idade
Média.
Na Idade Média, a formulação do problema teológico-político assim como
a de outros problemas foi amplamente determinada pela filosofia herdada da
Antiguidade, a de Aristóteles em particular. O problema humano é o do ou dos
fíns do homem. O sentido da vida para o homem é atingir seu fim. Se seus fins
são múltiplos, eles devem ser ordenados hierarquicamente em função do fim
supremo ou do soberano Bem. A cidade sendo o quadro dentro do qual os
homens podem atingir seus fins, o melhor regime é o que permite melhor aos
homens atingir seus fins, e em particular seu fim supremo. Cada regime
político ou cada constituição dos poderes é uma certa administração dos
diversos fins humanos, administração orientada e governada pelo fim particu­
lar ao qual os cidadãos unem o maior prêmio. O poder político é o meio de
realizar ou de encarnar os fins humanos. Vê-se imediatamente por que tal
ponto de vista torna particularmente insolúvel o problema teológico-político.
Definindo a vida cívica segundo a virtude como fim do homem em sociedade.

493
Aristóteles funda a consistência, a legitimidade da cidade terrestre na própria
natureza do homem e na melhor parte dessa natureza. Simultaneamente,
quando o idioma dos fins é retomado dentro do quadro cristão, fornece um
argumento irrefutável para a plenitude de poder da Igreja: se os poderes que
reinam sobre os homens são o instrumento e a expressão de seus fins, o que
é a expressão e o instrumento de seu fim supremo, de um fim incomparavel­
mente superior a todo fim terrestre, deve necessariamente dispor de uma
plenitude de soberania que faz empalidecer todo poder terrestre. Marcílio de
Pádua e Dante tentaram formular uma solução para o problema teológico-po-
lítico que refutasse as pretensões do poder espiritual permanecendo total­
mente dentro dos quadros de um aristotelismo modificado. A despeito da
engenhosidade, eles não ofereceram nada que pudesse eficazmente dirigir a
reflexão e a ação políticas dentro de uma reorganização dos Estados cristãos
suscetível de livrá-los dos conflitos religiosos e político-religiosos. Conserva­
vam com efeito a interpretação das condutas humanas em termos de fim. Só
destruindo completamente essa interpretação é que uma solução viável pode­
ria ser encontrada. Mas essa destruição supunha ao mesmo tempo uma
reinterpretação do cristianismo e uma refutação da herança filosófica pagã
sobre a qual vivia o mundo cristão. As duas autoridades, cujo conflito assim
como o acordo faziam a vida da consciência européia, deviam ser radicalmente
subvertidas. É essa tarefa considerável que Thomas Hobbes leva a bom termo
no Leviatã.
Toda a infelicidade dos homens vem de não saberem a quem eles devem
obedecer em sã consciência. Essa é a verdade primeira de que as desordens de
seu país convenceram Hobbes. A condição e o motor da vida social são a
obediência. A consistência da cidade depende do claro conhecimento de quem
tem o direito de comandar. Ela depende, portanto, das opiniões humanas,
como provam as intermináveis e desastrosas desordens suscitadas na Europa
pelas opiniões religiosas, pela opinião, em particular, segundo a qual existem
dois poderes entre os homens, o temporal e o espiritual. Cidadãos que “vêem
em dobro” não saberiam ser bons cidadãos. Esse poder das opiniões é a prova
que a vida cívica ou a vida em sociedade não é assim tão natural ao homem
como a tradição aristotélica assegura: se a divergência das opiniões é capaz de
dividir o corpo político em facções inimigas, irreconciliáveis, é porque o corpo
político não é natural. O homem não é um animal político ou social, o homem
não é naturalmente cidadão. A natureza separa os homens mais do que os une.
Não é preciso pensar que a guerra civil, da qual ele contemplou os
pródromos, e depois deplorou as devastações, seja para Hobbes a única prova
da condição desastrosa dos homens quando eles vivem sem mestres reco­
nhecidos. Mesmo em tempos de paz, ele acredita observar a presença perma­
nente do temor, da desconfiança, da agressividade: os homens não fecham suas
portas à chave de noite e, mesmo no interior de suas casas, seus cofres,
mostrando por esse ato que temem permanentemente não só seus concida­
dãos, mas também seus familiares e parentes? Mais profundamente, a observa­
ção ura pouco mais atenta da vida social revela que a vida do homem em

494
sociedade é dominada pelo amor-próprio, pela vaidade, pela vangloria, pelo
desejo de levar vantagem sobre o vizinho e de fazer reconhecer sua supe­
rioridade. Em período de paz civil, quando o soberano legítimo é reconhecido
e obedecido, os amores-próprios exacerbados não infligem nem recebem
ferimentos de amor-próprio. Se o soberano for contestado ou incerto, se a
guerra civil se instalar e esses amores-próprios, até então contidos pelo temor
da força pública, se tornarem destruidores e mortíferos, atacando os bens e até
mesmo a vida de seus rivais, a rivalidade de cada um com cada um tornar-se-á
então a guerra de todos contra todos.
Essa pintura da condição humana alia Hobbes aos moralistas cristãos
mais sombrios. Pascal, nessa mesma época, escrevia; “Todos os homens se
detestam naturalmente um ao outro” e ainda “Cada eu é o inimigo e gostaria
de ser o tirano de todos os outros." Mais precísamente, é no momento em que
ele parece mais próximo de um aspecto essencial da visão cristã - as devas­
tações do pecado original —que Hobbes corta toda comunicação com ela.
Nessa guerra de todos contra todos na qual a humanidade está sempre a ponto
de cair e que é, portanto, the natural condition o f mankind (a condição
natural da espécie humana), os piores atos não podem ser considerados erros
ou pecados: em uma situação em que a vida de cada um está perpetuamente
em perigo, todos os atos são cobertos pela legítima defesa e mesmo o ataque
à menor provocação, já que pode sempre ser considerado preventivo. Cada um
é o único juiz da conduta necessária a sua conservação. Se esse é o estado
natural da humanidade, está demasiadamente claro que os desejos e as paixões
dos homens não poderiam ser eles mesmos, por natureza, pecados. Se os
assassinatos mais atrozes (a crueldade não é às vezes necessária para dissuadir
o adversário?) podem ser justificados, é claro que a moralidade, o bem e o mal,
o pecado, não têm sentido no estado natural. O bem e o mal só terão sentido
uma vez que o estado natural tenha sido ultrapassado, que tenham sido
promulgadas, pelo poder público, as leis que definem essas noções.
Maquiavel havia absolvido o Príncipe que recorre a ações atrozes quando
a necessidade do bem público ou da conservação de seu poder o obriga a isso.
Hobbes descobre para nós que, no estado natural, cada homem é um príncipe
que a necessidade pressiona de toda parte. Hobbes generaliza, dessa maneira,
o ensinamento de Maquiavel. Ele o radicaliza também. Maquiavel não coloca
diretamente em causa a distinção ordinária entre o bem e o mal, a consciência
comum do que é permitido ao homem e do que é “desumano”. Ele ensina
somente que o Príncipe que conhece seu ofício deve “saber entrar no mal se
houver necessidade”. Hobbes afirma explicitamente e pretende demonstrar o
que a moralidade humana não tem nenhum suporte na natureza do homem.
No entanto, Hobbes, depois de se ter afastado sensivelmente mais do que
Maquiavel da consciência comum, volta a eia, o que Maquiavel não faz. Maquiavel
não deixa o escândalo que ele suscita, Hobbes o neutraliza a partir do próprio
movimento que o suscita. Afirma, contra Maquiavel, que existe uma justiça, que
a injustiça que conquista o império não se pode apossar do nome de virtude ou
de virtú (virtude, em italiano). Como essa transposição seria possível?

495
É que a necessidade que obriga os homens no estado natural ao que a
consciência comum chama de o mal os obriga também, embora menos
diretamente, ao que essa mesma consciência comum chama de o bem. O estado
natural é insuportável para o homem; na guerra de todos contra todos, a vida
dos homens é “solitária, miserável, repugnante (nasty), animal e curta".
Principalmente curta. A ameaça da morte violenta está presente em toda parte,
ao mesmo tempo que o homem quer mais do que tudo se conservar; precisa­
mente a fonte mais abundante dessa guerra está no desejo de cada um de se
conservar. O medo da morte leva os homens a essa conduta assassina que os
coloca em perigo mortal. A situação deles é absurda. O mesmo medo da morte
violenta deve naturalmente fazê-los tomarem consciência desse absurdo. Uma
vez que eles tenham tomado consciência desse absurdo —e que mestre de
filosofia, de justiça ou de religião é mais persuasivo do que o medo da morte?
- , procurarão os meios para resolver de outra maneira, que não a do absurdo,
o problema humano. A razão é filha da necessidade: esforçar-se para conseguir
a paz é a única conduta racional e justa.
A essa razão instruída pela morte, a essa razão nascida do medo da morte,
os próprios termos do problema indicam a solução.
Dizer que, no estado natural, cada um pode fazer tudo o que julga útil a
sua conservação, é dizer que cada um tem, nesse caso, um direito sobre todas
as coisas e mesmo sobre o corpo dos outros. Esse direito ilimitado de cada um
decorre necessariamente da guerra de todos contra todos; e ele é a própria
fonte dessa guerra. E apenas renunciando a esse direito que cada um pode,
naquilo que depender dele, esgotar a fonte da guerra. Mas essa renúncia seria
absurda se não houvesse uma certeza razoável de que cada um de seus
vizinhos fará o mesmo. Cada um se deverá comprometer, por meio de contrato
com cada outro, a renunciar a esse direito ilimitado. Mas os contratos que a
espada não garante não são mais do que fumaça. A única garantia do contrato
está no castigo que deve sancionar toda violação. Quem infligirá esse castigo?
Aquele ou aqueles que os contratantes tenham escolhido: cada um renuncia a
seu direito sobre todas as coisas e o transfere àquele ou àqueles a quem ele
confia a soberania; a cargo dele ou deles está promulgar as leis necessárias à
paz civil e garantir por meio da força sua observação.
O direito do soberano (individual ou coletivo) é necessariamente ilimitado,
sua soberania é absoluta, já que o direito que lhe foi transmitido por cada um
era ilimitado. O soberano herda o jus in omnia que era próprio de cada um no
estado natural ou, ainda, conserva sozinho esse direito que detinha no estado
natural e que os outros abandonaram. Assim é constituído o Soberano, o Leviatã,
esse “homem artificial” ou esse “Deus mortal” que assegurará a paz civil.
Que significa transmitir seu direito natural ilimitado para o soberano? Isso
significa reconhecer como minhas todas as ações, quaisquer que sejam, realiza­
das por esse soberano. Eu sou o Autor de todos os atos realizados por meu
soberano; ele é meu Representante. A unidade do corpo político consiste nisto:
todos têm um Representante, o Soberano, que é a alma desse corpo artificial.
Tal concepção se opõe frontalmente à concepção aristotélica: para Aris-

496
tóteles, o caráter natural da cidade e a desigualdade natural entre os homens
se pertencem reciprocamente; para Hobbes, o caráter artificial do corpo
político e a igualdade natural entre os homens se condicionam reciprocamente.
Com efeito, se os homens são desiguais por natureza, ela própria desigualdade
é o vínculo deles: alguns comandam, outros obedecem, o motor da cidade é
dado todo montado pela natureza. Se os homens são iguais, como eles o são
evidentemente no estado natural, já que o mais fraco pode sempre matar o
mais forte, não há razão para que uns mais do que outros comandem; se a
obediência não pode estar fundada sobre a natureza e se, de outro lado, ela é
necessária à paz civil, ela só pode ter sua origem na convenção. A obediência
só pode ser legítima quando fundada sobre o consentimento daquele que
obedece. Mais geralmente, toda obrigação tem necessariamente sua origem em
um ato daquele que está submisso à obrigação. De tal modo que, se no estado
natural cada um faz o que quer, isto é, o que julga necessário à sua
conservação, no estado civil faz também o que quer obedecendo ao soberano,
já que consentiu por princípio naquilo que o soberano lhe ordenará, já que é
o Autor das ações de seu Representante. Não seria preciso dizer, entretanto,
que, fazendo o que quer, ele obedece a si próprio ou que pertence a si mesmo
sua própria lei, ou que a obediência à lei que foi dada a si próprio é liberdade.
A obediência e a liberdade são contrários rígidos; a lei é sempre uma coação
exterior. Aqui reside a oposição entre Hobbes e Rousseau, sobre essa questão
central da liberdade e da lei.
Assim, a multiplicidade se torna uma Pessoa desde quando ela passa a
ser representada por um Representante. É a unidade ou a unicidade do
Representante, e não a unidade anterior ou subjacente daqueles que são
representados, que torna uma a Pessoa da República.
Aqui acaba de ser pintada para nós a oposição radical entre a cidade
aristotélica e o corpo político hobbiano. Aquela é bem menos uma do que esta:
sua propriedade é uma certa pluralidade. Querer torná-la mais uma do que sua
natureza pode comportar é destruí-la. Esse é o tema dominante da crítica
aristotélica de Platão (Política, II). Ao contrário, o que faz existir o corpo
político hobbiano é sua unidade, é uma unidade absoluta. Hobbes insiste sobre
esse ponto: no corpo político, existe mais do que o consenso ou a concordância,
existe uma unidade real de todos no e pelo Representante único. Eis o
paradoxo: há uma unidade mais rígida do que a unidade produzida pela
concordância ou amizade cívica, mas, simultaneamente, não há nem concor­
dância, nem amizade. Os indivíduos não estão ligados entre si; só constituem
uma unidade mediante sua relação com seu Representante, enquanto eles o
reconhecem como seu representante legítimo e lhe obedecem. Sua unidade
lhes é rigorosamente exterior. Os sujeitos ou os cidadãos são átomos que
encontram sua unidade política for deles mesmos, em seu/Representante que
eles criam, por assim dizer, continuamente por meio de seu consentimento, na
ponta da vontade deles. E, se a vontade deles enfraquece, a força pública detida
e dirigida pelo Representante proverá.
Mas esses átomos humanos só podem constituir uma unidade, mesmo

497
exterior, porque são semelhantes e homogêneos. O problema da cidade
aristotélica era harmonizar hierarquicamente bens e qualidades heterogêneas:
liberdade dos pobres, riqueza dos ricos, virtude dos sábios. O problema do
corpo político hobbiano é fazer manter juntos átomos estranhos uns ao outros
e semelhantes. O que os torna inimigos uns dos outros é o que eles têm em
comum. E o que os torna capazes de viverem juntos é também o que eles têm
em comum. A paixão fundamental de todos os homens é o desejo de poder, de
ter sempre mais poder, desejo que só cessa com a morte; eles só diferem pela
intensidade maior ou menor desse desejo. É porque eles são movidos por essa
paixão que estão perpetuamente em estado de guerra, latente ou declarada.
Simultaneamente, o que torna a unidade deles tão difícil é o que a torna
possível, e possível graças a uma solução simples, incomparavelmente mais
simples do que as delicadas arbitragens entre liberdade, riqueza e virtude às
quais se entrega Aristóteles em sua Política (livro III). Se os indivíduos são
quanta (quantidade) de poder, é preciso e basta, para que eles se reúnam, que
construam acima deles um quantum de poder incomparavelmente superior ao
poder de cada um deles; mais precisamente, é peciso e basta que eles
construam acima deles o maior poder que eles possam imaginar. A única
maneira de construir tal poder, de dotar o Soberano de tal poder é conceder-lhe
um direito absoluto ou ilimitado de fazer o que quer. A humanidade homicida
do homem coloca um problema de mecânica das forças. Caim é um átomo.
Acusá-lo seria em vão.
O problema político é tão difícil (por natureza os homens discutem ou se
batem, mais do que se amam ou se ajudam), e sua solução tão simples, tão
dedutível necessariamente dos termos do problema, que a discussão política
conhece apenas uma alternativa nítida: ou o corpo político existe (os cidadãos
vivem dentro da paz civil), ou ele não existe (os cidadãos se estraçalham). Ou
o Soberano, qualquer que seja —um, vários ou todos - , tem o poder necessário
à realização de seu mandato, e então os homens em geral gozam de toda a
felicidade compatível com sua condição, ou ele não o tem, e então os homens
conhecem as desordens e as infelicidades de uma guerra civil, latente ou
declarada. O que quer dizer que a comparação entre os méritos respectivos
dos diferentes regimes políticos parace a Hobbes amplamente desnecessária.
Certamente pode-se distinguir bem entre democracia, aristocracia e monar­
quia, mas quer o Soberano seja um, vários ou todos, o que importa é que ele
é o Soberano e que ele tem o direito de exigir toda obediência. Quer ele seja
um, vários ou todos, ele concebe, promulga e faz respeitar as leis que lhe
parecem boas ou convenientes, e que só são leis porque são a declaração de
sua vontade. Não se é mais livre para desobedecer as leis em Veneza ou em
Lucca do que na Turquia. Certamente a monarquia tem um certo número de
vantagens técnicas - fundadas sobre o artificial que é o corpo político - , mas
a regra de ouro é esta: que cada um considere o melhor regime aquele sob o
qual vive; ou, melhor, que ele não chegue mesmo a se colocar essa questão
desnecessária e que obedeça com toda candura de consciência a tudo o que
lhe ordena o Soberano. Esses termos injuriosos por meio dos quais se lança o

498
opróbio sobre certos regimes, quando se chama a democracia de anarquia, a
aristocracia de oligarquia, a monarquia de tirania, são vituperações de libelis-
tas obstinados, descontentes com o fato de se fazer tão pouco caso de seus
méritos.
Resta dizer que, quer se trate de monarquia, aristocracia ou democracia,
a legitimidade desses regimes, que se confunde com o gosto de sua geração,
de sua instituição, é radicalmente democrática. Seu fundamento está no
consentimento de cada um. O poder do Soberano lhe é sempre dado ou
deixado por seus súditos. Desvalorizando a discussão sobre o melhor regime,
particularmente crítica acerca das democracias antigas, menos por aquilo que
elas foram do que pela reverência com a qual os europeus as consideram e que
os faz desprezar os regimes monárquicos nos quais elesvivem, Hobbes contri­
bui poderosamente para se chegar ao ponto de vista democrático moderno. A
democracia moderna não é, para seus partidários, um regime político entre
outros; se fosse seria o melhor; é a única organização legítima da vida comum
dos homens. Precisamente porque ela está fundada sobre o consentimento, sua
legitimidade e bondade escapam a toda discussão: a quem objeta ou resiste,
pode-se sempre responder: de que você reclama, foi você quem quis e, mesmo
se você votou contra, é como se tivesse votado a favor, já que você se
comprometeu a se curvar diante da lei da maioria.
Precisamente porque a obediência é exterior e porque os homens são
quanta de poder, o poder absoluto do Soberano não é contraditório à liberdade
dos súditos ou dos cidadãos. O que está fora da obediência é livre; nos silêncios
da lei, os súditos podem fazer o que bem lhes parece. Um quantum de poder
faz tudo que ele pode; ele não pode cessar de ser esse poder de fazer que ele
é. Ali onde o Soberano interpõe sua lei, ele obedeí mas, ali onde não há lei,
ele faz livremente - já que nada o impede - tudo o que quer. A lei promulgada
pelo soberano é apenas esse artifício que impede os homens-átomos de se
chocarem, não de se moverem; ela é semelhante a essas cercas que impedem
de se perder dentro do campo do vizinho, não de caminhar sobre o caminho.
Hobbes é o fundador do liberalismo porque ele elaborou a interpretação liberal
da lei. A lei é um artifício humano; rigorosamente exterior a cada um, ela não
se transforma, não informa os átomos individuais dos quais ela se limita a
garantir a coexistência pacífica.
O pensamento de Hobbes é, desse modo, a matriz comum da democracia
moderna e do liberalismo. Ela funda a idéia democrática porque elabora a
noção da soberania estabelecida sobre o consentimento de cada um; funda a
idéia liberal porque elabora a noção da lei como artifício exterior aos indiví­
duos. Ele não estava seguro de que a idéia democrática da soberania e a idéia
liberal da lei fossem facilmente compatíveis. De fato, por um paradoxo muito
pouco notado, foi o "absolutismo” da doutrina do Leuiatã que permitiu a estas
duas noções se articularem sem se contradizer. É porque a soberania ilimitada
é exterior aos indivíduos que ela lhes deixa um espaço livre, o dos silêncios da
lei. Se se abolir o “absolutismo”, isto é, a exterioridade da soberania, então a
lei se tornará “o registro de nossas vontades”; ela não será mais a condição

499
exterior de minha ação livre, ela se tornará o princípio dessa ação: a noção
liberal da lei vencerá. É o que se observará nas obras de Rousseau. Se se quer
abolir o "absolutismo” mantendo a interpretação liberal da lei, é preciso
renunciar à própria idéia de soberania ilimitada, no princípio mesmo da
democracia moderna. É o que fará Montesquieu.
Mas permanece verdadeira a idéia de que a idéia democrática da sobera­
nia e a idéia liberal da lei têm uma matriz comum ou, pelo menos, uma
condição comum de possibilidade: que o homem não tem meta, ou metas
hierarquizadas, inscritas na sua natureza. Então a razão de sua obediência só
pode estar na sua vontade ou no seu consentimento; então, a razão de ser da
lei não pode mais ser a de guiar para essa meta, mas somente de impedir que
os indivíduos, cada um entregue ao modo de vida que lhe agrada, não se
choquem e não se firam.
Só uma dificuldade - maior - corre o risco de desregular esse belo
mecanismo que é o Leviatã: a religião cristã que ordena obedecer a Deus mais
do que aos homens. Ora, nós havíamos visto que resolver essa dificuldade é a
origem mesma do encaminhamento de Hobbes; para tratá-la diretamente, ele
consagra mais da metade do Leviatã.
O procedimento de Hobbes é o seguinte: de um lado, sem jamais
contestar o princípio segundo o qual vale mais obedecer a Deus do que aos
homens, ele vai de tal modo limitar sua aplicação que esse princípio se tornará
inofensivo politicamente, inepto a agitar as massas de homens; por outro lado
e mais radicalmente, vai reinterpretar o sentido da Revelação cristã, de modo
que a obediência a Deus tenderá de qualquer maneira a se confundir com a
obediência ao Soberano.
Sobre o primeiro ponto, o argumento de Hobbes é simples, mas
devastador: crer que Deus falou com tais homens é crer que esses homens
dizem a verdade; é crer nesses homens. O intermediário humano necessário
a toda revelação faz com que toda fé em um Deus revelado seja necessaria­
mente fé em homens. Ora, a experiência nos ensina que os homens são de
bom grado mentirosos ou, ao menos, que a alta idéia que eles têm de sua
sabedoria os conduz muitas vezes a se acreditar inspirados. De resto, aqueles
que se acreditam inspirados reúnem muitas vezes partidários que se intitu­
lam discípulos; portanto, têm um grande poder. Ora, nós sabemos que o
desejo de poder é a paixão dominante dos homens. Não é preciso, portanto,
se espantar se certo número de indivíduos, por puro desejo de poder, se
proclamam inspirados por Deus. A Escritura Sagrada — tanto no antigo
quanto no Novo Testamento - não insiste sobre esse ponto da existência de
falsos profetas? Ou melhor, que, para cada profeta verdadeiramente ins­
pirado por Deus, existem cem ou quatrocentos falsos profetas? A lição de
tudo isso é muito clara: cada vez que um indivíduo ou um grupo de
indivíduos se diz inspirados por Deus, aqueles que os ouvem devem ser
extremamente prudentes, cautelosos, céticos: é grande a probabilidade de
que se trate de impostores. O mais seguro é só reconhecer como profetas
aqueles que são julgados como tais pelo Soberano. Se os homens forem

500
penetrados pelo argumentos de Hobbes, é pouco provável que os profetas —
verdadeiros ou falsos —venham a ter muitos discípulos.
Resta o caso daqueles que, em vez de simplesmente seguir os profetas,
se acreditam eles próprios profetas, eles próprios inspirados. Sinceros ou
mentirosos, eles são inacessíveis à razão. Será preciso abandoná-los ao julga­
mento do Soberano que decidirá se eles constituem ou não um perigo para a
paz civil. Se seu julgamento for positivo, o Soberano empregará a força pública
para colocá-los fora de estado de prejudicar, e a operação será fácil, pois eles
não terão mais discípulos. As reivindicações dos “profetas” ou dos “santos” —
que desempenharam esse papel na guerra civil inglesa - terão cessado de ser
uma ameaça política maior, e não constituíram mais do que um simples
problema de ordem pública, de polícia.
Pode-se perguntar se o triunfo de Hobbes não é, nesse caso, completo
demais: se toda pretensão à inspiração divina é tão radicalmente suspeita, a
própria raiz do cristianismo não estaria em perigo? Não seria o caso de
suspeitar dos Apóstolos e do próprio Cristo? Hobbes afirma que não é nada
disso e que ele só faz lembrar a vigilância que recomenda a Escritura. O que
quer dizer que há ou, ao menos, houve verdadeiros profetas, sobre o testemu­
nho dos quais a Igreja Católica e as igrejas dissidentes se baseiam. Concedendo
isso - e ele tinha de concedê-lo se não quisesse sofrer a mesma sorte que ele
reservava aos falsos profetas - uma nova e maior tarefa o chamava. Realmente,
é sobre o testemunho dos Apóstolos - Tu és Pedro... - que a Igreja Católica
funda suas tirânicas e sediciosas reivindicações. Os papas não pretendem deter
sua plenitude de poder em virtude de uma designação e de uma inspiração
pessoais; eles invocam testemunhos, uma Revelação que Hobbes também
admite em princípio. Ele precisa, portanto, reinterpretar o sentido das propo­
sições das escrituras ou evangelhos que fundamentam as reivindicações
eclesiásticas em geral, papais particularmente. É toda a teologia de Hobbes que
precisamos agora apresentar em algumas palavras.
Deus exerce dois tipos de governo, e apenas dois, sobre os homens: um,
em virtude de seu todo-poderio geral, que é a causa de tudo que ocorre no
universo e, portanto, de tudo o que são e fazem os homens; outro, em virtude
de um contrato que o liga com homens particulares. 0 contrato originário é
evidentemente a aliança do povo judeu com Deus, por intermédio de Moisés.
Por esse contrato, os judeus se tornaram o povo particular de Deus, e enquanto
ele permaneceu em vigor, Deus foi seu Rei, estando subentendido que Moisés
era seu Representante ou sua Pessoa. A ruptura desse contrato interveio
quando o povo judeu, no tempo de Samuel, rejeitou essa realeza de Deus e
pediu um Rei “à maneira das nações”. Desde então, não existe outro poder
confessado por Deus sobre a terra além daquele dos soberanos terrestres,
legítimos. Quanto a Cristo, ele veio anunciar e preparar o Reino futuro de
Deus, sem reivindicar nenhum poder para si próprio, esclarecendo mesmo que
seu "Reino não é deste mundo”. Se o próprio Cristo não reivindicou poder
sobre os homens, que absurdo cometem os padres que o invocam, reclamando
tal poder! A missão que ele confiou aos apóstolos e a seus sucessores é a de

501
ensinar aos homens - sem poder para constrangê-los, pois o conselho é
radicalmente diferente do comando - o que eles devem fazer para ser
recebidos no Reino que virá. Se os homens não prestam atenção às ordens do
Senhor, é problema deles; os apóstolos, os padres cumpriram com seu dever,
já que pregaram a Palavra de Deus.
Ora, o que eles têm para ensinar aos homens? O que é necessário, e
somente o que é necessário, à sua salvação. O que é necessário para a salvação
deles? Duas coisas e somente duas coisas. De um lado, praticar os Mandamen­
tos, que, efetivamente, dependem da razão natural e se resumem na regra de
ouro: “Não faça aos outros o que não queres que te façam.” Por outro lado,
acreditar que “Jesus é o Cristo, isto é, que ele será Rei no mundo a vir.
A partir de tais princípios, é claro que não existe Igreja, concebida como
um organismo ao mesmo tempo separado e universal, veículo e instrumento
da salvação de todos os homens. Ou melhor, há tantas Igrejas quantas são as
“Repúblicas cristãs”. Dizer “Igreja” e dizer “Corpo político composto de
Cristãos” é dizer a mesma coisa. Realmente, só existe poder legítimo sobre os
homens de seus Representantes; o Representante de todo corpo político é, por
definição, um, já que é ele quem dá sua unidade e seu ser a esse corpo político;
o Soberano Civil é esse Representante. Não há lugar no mundo humano para
um outro Representante, portanto para um outro poder. Não é que os cidadãos
não possam legitimamente receber ordens religiosas em uma República cristã;
mas isso seria possível apenas com o aval e sob a autoridade do Soberano Civil,
único juiz da doutrina que lhes deve ser inculcada, único juiz e único chefe
dos ministros que os podem instruir, as ordens concernentes às coisas da
religião são apenas um departamento das ordem civis.
Não seria questão aqui de seguir o detalhe da exegese bíblica de Hobbes.
Digamos somente que ele interpreta os termos-chave da Escritura de maneira
a retirar toda consistência do universo religioso que ela coloca em cena. É
assim, por exemplo, que, segundo Hobbes, quando lemos na Escritura “Es­
pírito”, devemos compreender “Corpo”; quando ela nos fala de "inspiração”
divina ou em geral da intervenção do Espírito de Deus, devemos compreender
que os efeitos assim designados (ações, virtudes) dependem do “estudo” e da
“indústria” humanos. Quanto à “segunda morte” que a Tradição interpretava
como significando a condenação, as penas eternas, Hobbes explica que é
preciso entendê-la literalmente, pois se trata exatamente da segunda morte,
definitiva, que colocará fim à segunda vida dos malvados ressuscitados por
Deus por um tempo limitado. Mais importante é notar que o mundo da
Escritura interpretado por Hobbes só é constituído - como seu mundo civil,
pois é o mesmo —por dois elementos: o poder puro, a coação bruta de um lado,
o consentimento ou o contrato, do outro. Encontra-se seu emblema na
condição dos “danados” temporários que acabo de mencionar. Hobbes os
descreve não como criminosos expostos à justiça de Deus, mas como inimigos
submissos a seu poder. A partir do momento efetivo em que eles recusaram
consentir em crer que "Jesus é o Cristo”, eles não dependem de mais nada além
da força bruta, da coação exterior, como na ordem civil os estranhos com quem

502
se encontra em estado de guerra. Não se pode ser, falando propriamente,
punido por não ter consentido, mas pode-se ser maltratado à vontade, já que
se está fora do direito e da justiça.
A mesma polaridade entre a pura necessidade e a pura liberdade organiza
não somente o mundo civil dos homens, não somente seu mundo religioso,
mas ainda o mundo do conhecimento. Hobbes, sabe-se, é materialista. O
universo é constituído de corpos. Tudo que existe é corpo, mais precisamente
corpos em movimento. Em particular, nossas percepções são o efeito do
movimento dos corpos exteriores sobre nossos órgãos dos sentidos. Mas o
universo da percepção, como o da memória (que é percepção enfraquecida),
como o da prudência (que nada mais é do que o resultado, por assim dizer,
mecânico das diversas percepções ou experiências feitas durante um tempo
dado), não pode nunca ser matéria de certeza, ou seja, ter acesso à ciência. A
ciência propriamente dita consiste no encadeamento exato (na adição e na
subtração) das definições das coisas, definições com as quais nós mesmos
concordamoss. A ciência é certa porque ela está fundada sobre as convenções
humanas. A ciência é conhecimento não das próprias coisas, mas das conse­
qüências das definições: se X é colocado, Y vem em seguida necessariamente.
O que, traduzido no mundo humano, significa: sabendo isso, posso fazer
aquilo. A ciência é conhecimento das conseqüências porque o homem é esse
ser que sabe produzir deliberadamente efeitos. Ser homem é poder fazer; ser
homem é ter poder.
Assim, esse mundo hobbiano, tenso e talvez esquartejado entre a pura
necessidade do power e a pura liberdade do consentimento, libera o lugar da
ciência moderna. Que mais ela pode ser se não esse jogo enigmático entre a
pura necessidade e a pura liberdade, as convenções do sábio indo ao encontro
- por quê? como?- da necessidade escondida nas coisas? Mas a ciência não
nos pode dizer o que ela faz; não pode juntar-se com a linguagem comum. No
Leviatâ é o idioma do poder que assegura a comunicação e a homogeneidade
entre o mundo dos corpos exteriores e o da soberania do homem (que é
também um corpo).
A originalidade radical e a fecundidade do Leviatâ se atêm, portanto, ao
fato de a organização política ser pensada até o fim como um artifício, uma
coisa construída deliberadamente pelos homens. E, no entanto, o que impres­
siona ao longo de toda a leitura é saber a que ponto a analogia entre o corpo
político e o indivíduo humano é acentuada, com insistência e, dir-se-ia, com
júbilo dentro da metáfora que dão para pensar, vindo de um autor para quem
a metáfora é sinal de pensamento errado (falso). É assim que o Soberano é
considerado a alma do corpo político, o dinheiro, seu sangue, as colônias, seus
filhos... Quanto ao ponto decisivo: se o Soberano ou o Representante deve ser
único, é para que o corpo político possa agir como um indivíduo, com
discernimento e vontade. E ele deve agir como um indivíduo, se se quiser
conservar. De modo que, depois de ter negado ao homem a sociabilidade
natural, parece que Hobbes não pode escapar à natureza, que ele seja
constrangido a pensar o artifício político sobre o modelo do que é mais natural

503
na natureza: o indivíduo. Enfim, como não notar que “Leviatã", sobrenome da
obra-de-arte suprema é o nome de um animal, e de um animal bíblico? Assim,
a natureza e a graça (divina) presidem, apesar de tudo, o batismo do Estado
artificial e, portanto, soberano, que Hobbes construiu.

► A literatura que diz respeito ao pensamento de Hobbes é considerável; é impossível dar aqui
uma idéia dela, pois seria pouco adequada. Entretanto, é indispensável mencionar as duas
interpretações que tiveram maior repercussão, as de C.B. Macpherson e de Leo Strauss. De uma
certa maneira, esses dois autores tão diferentes partem de uma mesma constatação: uma grande
parte do pensamento político posterior se construiu e se desenvolveu sobre os fundamentos
colocados por Hobbes. Para C. B. Macpherson (cf. The p o litic a l th e o r y o f p o s s e s s iv e in d ivid u a -
lism — H o b b es to L o ck e, Oxfor düniversity Press, 1962), Hobbes foi o primeiro a expor
sistematicamente a idéia da “sociedade em marcha",dominada pelo “individualismo possessivo”.
Para compreender a descrição hobbiana da natureza humana, é preciso sempre ter presente ao
espírito que o homem do qual se trata é o homem da sociedade de mercado; e para compreender
a sociedade de mercado, é preciso ler Hobbes. Para Leo Strauss (cf. The p o litic a l p h ilo s o p h y o f
H o b b es - Its b a sis a n d its g e n e sis, 1936, University of Chicago Press, 1952; e o capítulo
consagrado a Hobbes em D ro it n a tu re l e t h isto ire , Plon, R ech erch es en S c ien ce s h u m a in es,
1954), indica que ele foi o primeiro a formular com clareza o ponto de partida da filosofia política
moderna: a ordem política não deve ser concebida em função dos fins inscritos no homem pela
natureza e descobertos pela razão, mas ela deve ser fundada sobre a paixão mais poderosa e
mais universal: o medo da morte. Hobbes torna operatório o projeto maquiavélico que consiste
em fundar a política sobre a “verdade efetiva das coisas" e não mais sobre a idéia do “melhor
regime”, como faziam os Antigos. Fundada sobre uma paixão que é a mesma para todos os
homens, a política hobbiana será essencialmente artificialista e igualitária. Para apreender a
siginificação verdadeira da interpretação de Strauss sobre Hobbes, é preciso se remeter ao
conjunto de seus trabalhos, em particular àqueles que concernem a Maquiavel.
Enfim, é indispensável mencionar o nome de Michael Oakeshott. Ao longo de sua vida de
pensamento, ele não parou de manter um comércio fecundo com a obra de Hobbes. Sua
in tro d u ç ã o à edição do L e v ia tã publicada por Blackwell em 1946 é uma síntese particularmente
elegante do pensmento de Hobbes. (Esse texto, ligeiramente modificado, está hoje em dia
acessível em uma coletânea dos escritos de Michael Oakeshott concernente a Hobbes: H obbes
on c iv il a ss o c ia tio n , Oxford, Basil Blackwell, 1975). Para M. Oakeshott, Hobbes é o autor que
formulou de maneira mais completa o idioma moral que faz o melhor da cultura européia
subentendendo o que M. Oakeshott chama de "associação civil”. Esse tipo de sociedade faz
viverem juntos os indivíduos não pela força dos costumes nem pela adesão a uma meta social
comum, mas pela livre acomodação de uns com outros em função de regras que dependem de
seu reconhecimento e aceitação. Michael Oakeshott, pela atração sem igual de seu estilo hoje
em dia, dá à obra tão sombria e tão impaciente de Hobbes o que parecia impossível a um mortal
lhe dar: o repouso na luz.

Pierre MANENT.
HORKHEIMER, Max -1895-1973
O Estado autoritário, 1942

0 Estado autoritário não foi o texto que serviu de base à Teoria


crítica.*Mas foi nele que Max Horkheimer afirmou mais nitidamente a
originalidade política de uma primeira época inspirada pelo pensamento da
revolução2. O Estado burguês não existe mais. E a crítica da economia
capitalista teve, então, de ceder lugar a uma verdadeira crítica da política.
Essa tem por objeto a forma que tomam a autoridade e a dominação nas
sociedades modernas pós-liberais. Essas precauções são naturalmente inse­
paráveis de uma reflexão sobre o surgimento do fascismo e do nacional-so-
cialismo, sobre o socialismo estatal e o capitalismo estatal3. E é aí que se
inaugura ao mesmo tempo uma certa tomada de distância com relação ao
marxismo, uma tomada de distância que, no caso de Horkheimer, vai sem
dúvida mais longe do que nos casos de Luckács ou Korsch4: em O Estado
autoritário, Horkheimer colocava claramente a ênfase sobre o fato de que
uma verdadeira prática revolucionária não se pode conciliar com a visão
marxista da história, racionalista e desenvoivimentista, se bem que essa
ruptura com a ortodoxia marxista não tenha significado mais ainda a
renúncia a um socialismo ideal - nem mesmo a certos postulados fundamen­
tais do materialismo. Foi, em todo caso, do lado da heresia que a Teoria
crítica encontrou a inspiração que lhe permitiu reformular a atualidade do
projeto revolucionário, e mais radicalmente, a questão da resistência do
pensamento, da subjetividade e do indivíduo face à opressão do “sistema”.
Essa é a temática central de O Estado autoritário.

A possibilidade revolucionária só existe, ainda, no indivíduo isolado

O que impressiona antes de tudo é a significação nova que toma com


relação ao marxismo o projeto revolucionário. O projeto de revolução cessa
realmente de ser encarnado socialmente por uma classe particular de indiví­
duos determinada em função da situação na produção. De fato, o desejo de
revolução não se encarna nem reside em qualquer lugar da sociedade. Pois
esse desejo é desejo de razão; e o desejo de razão pertence ao indivíduo.
Pareceria assim que, em última instância, o "sujeito” da vontade e da cons­
ciência revolucionária não serviria mais para designar na organização as forças
mais dinâmicas da sociedade, mas mais no caso do indivíduo enquanto tal,
separado de tudo. Estranha postulação que parece contradizer a referência
sempre mantida pelo materialismo: pode-se manter essa referência afirmando-
se quase que como primeiro princípio a primazia do indivíduo e sua salvaguar­
da em face de tudo? Não seria mais o idealismo que situaria a vontade de razão
na instância de um indivíduo-sujeito? E a ética revolucionária que anima a
Teoria crítica de Hokheimer não deveria, em conseqüência, se contentar com
uma tradição insuportável?

505
Essas questões foram bastante enfaticamente colocadas à Teoria críti­
ca.5 Mas, admitindo que essa contradição seja real, seria preciso, todavia,
considerar as condições históricas novas nas quais devia, em 1942, intervir
uma crítica da dominação. Essas condições são essencialmente marcadas
pela aparição dos totalitarismos, pela organização cada vez mais burocrática
da sociedade e da produção, assim como pela separação e isolamento do
indivíduo dentro da sociedade de massa. Certamente, colocado de lado o
fenômeno totalitário, estas condições haviam se tornado perceptíveis quase
um século antes, como testemunham as análises singularmente lúcidas de A.
de Tocqueville - e mesmo os alarmes de Marx, no fim de sua vida. Além
disso, a sociologia de Max Weber pode também ser compreendida como uma
teoria verdadeiramente sistemática da subversão burocrática do "mundo
social vivido”. Porém, é preciso dizer que essas inquietantes contrapartidas
do “progresso” só podiam tomar a forma de revelações catastróficas no
interior de tradições que admitiam a idéia de uma "razão na história”. A isso
veio se juntar o novo horror de um “desatino” do qual as vítimas do
totalitarismo são como testemunhas mudas: o “sentido da história” de
alguma forma se inverteu. E, da mesma maneira, a crítica deve operar uma
transmutação. Em seu ensaio sobre o Estado autoritário, Horkheimer indica
que a consciência crítica não poderia mais daí em diante se conceber como
conhecimento das leis da história, mas sim como experiência do sofrimento.
Ora, nas sociedades de massa, este sofrimento é o do “indivíduo isolado, que
não é mandado nem coberto por nenhum poder”. E no sistema totalitário,
não é mais uma classe particular que se encontra oprimida em proveito das
outras. Pois “só no começo a maioria das vítimas do aparelho policial vinha
de parte da massa dominada. Mais tarde, o sangue derramado aflui do
conjunto do povo unificado...” O povo indistinto torna-se portanto, a vítima
do totalitarismo, independente das especificações de classe. É por isso que
o lugar de resistência se torna o indivíduo isolado, o indivíduo sem partido,
e, ele mesmo, privado de todo recurso.
Nessas condições, poder-se-ia perguntar como Horkheimer não con­
cluiu simplesmente pela impossibilidade da revolução. Hokheimer sugere,
então, alguma coisa com uma “inversão dialética”: é justamente no momento
em que o indivíduo despojado não está mais coberto por nenhum poder, que
ele se manifesta, no entanto, como um poder. "Porque todos estão isolados.
Eles não têm outra arma além da palavra (...) A expressão não violenta é uma
ameaça maior, no Estado autoritário, que as impressionantes manifestações
de partido sob Guilherme 11.” Horkheimer é, no fundo, conseqüente com seu
próprio “revisionismo”: porque a crítica não pode mais pretender um co­
nhecimento das leis da história - porque, contra a “doutrina da obstetrícia”,
que rebaixa a revolução ao esquema do progresso, a crítica materialista
afirma mais do que “o racional não é nunca inteiramente dedutível” —, é
totalmente falso e ideológico dizer que a dominação é intransponível: “O
sistema eterno do Estado autoritário, por mais ameaçador que seja, não é
mais real do que a harmonia eterna da economia de mercado”; e precisamos,

506
portanto, pensar que “a possibilidade, hoje em dia, nao é menor do que o
desespero”.

Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade!

É porque o pensamento de Horkheimer —pensamento já revolucionário,


em 1942 —permanece à espera de uma possibilidade que pode ser atualizado
em sua existência. Tudo depende ultimamente da vontade dos indivíduos:
“Qualquer que seja a necessidade de uma transição, de uma ditadura, de um
terrorismo, do trabalho, do sacrifício, o novo depende unicamente ainda da
vontade dos homens.” Horkheimer manifesta a mais profunda desconfiança
com respeito aos revolucionários profissionais que se tornam duvidosos, e
chega mesmo a denunciar o conluio da revolução organizada e da dominação.
Seu “individualism” se encontra desse modo justificado pela situação política
com a dominação; os revolucionários honoris causa se oferecem uma carreira
dentro das hierarquias enquanto as massas recrutadas “festejam o alegre
retorno deles ao seio das associações de juventude autoritária”. Por outro lado,
o projeto integrado do Estado autoritário só encontrará seu verdadeiro limite
na resistência do indivíduo isolado a quem não sobra nada mais além da
palavra. Horkheimer supõe talvez que o capitalismo estatal não pode levar até
o fim sua própria lógica do controle burocrático da produção e da reificação
do homem, sem engendrar ao mesmo tempo graves disfunções: "O fato de os
indivíduos serem rebaixados ao nível de puros centros de reação, que tudo
reivindicam, prepara ao mesmo tempo a emancipação deles com relação ao
comando central.”
Fosse como fosse, Horkheimer só raciocinava em termos de possibili­
dades revolucionárias e não em termos de certeza. Ele admite o princípio -
poder-se-ia julgar “idealista” —segundo o qual a liberação não é uma resultante
mecânica, mas o efeito da vontade. Todavia, nada é mais precário do que essa
própria vontade de emancipação: as massas oprimidas só puderam em raríssi-
mas ocasiões ter verdadeiramente a experiência da liberdade, e, nessas curtas
experiências sendo cada vez mais iludidas, pode-se temer a apatia política
“daqueles que foram escaldados”. Além disso, Horkheimer não se inquietava
com o fato de “os espíritos serem fechados ao sonho de um mundo diferente”?6
De modo que, a idéia do fim da dominação parece se afastar progressivamente
da história que se faz.
E nessas condições que inclinam ao “pessimismo da inteligência que deve
ser reformulada a ética revolucionária sustentada pelo otimismo da vontade”.
Horkheimer se explica então com as filosofias da história de Hegel e de Marx:
“o erro metafísico” de Hegel e de Marx foi de ter acreditado que “a história
obedece a uma lei inabalável”, enquanto seu “erro histórico” consistiu em
imaginar que “tudo se acaba com seu tempo”. Ora, uma vez que essas ilusões
foram denunciadas, é inútil se perguntar se o mundo está “maduro” ou não
para a mudança: “Para o revolucionário, o mundo sempre já ficou maduro”, e
“falar hoje em dia de uma falta de maturidade é apenas mascarar sob uma bela

507
aparência a conivência com o Mal”. Aí, o argumento teórico cede lugar ao
argumento ético: o revolucionário “está com os desesperados que um julga­
mento envia para o lugar do suplício e não com aqueles que têm tempo".
Atrás dessa convicção ética, existe, entretanto, a intuição primeira que
se encontrará em seguida desenvolvida por Horkheimer e Adorno em A
Dialética da Razão (1947). É a idéia de que a cada progressso da civilização
“(...) as novas perspectivas de dominação abriam as perspectivas de supres­
são desta”,7 mas que a história real é a do sofrimento, enquanto as pers­
pectivas permaneceram no estado de um conceito que é o sinal ideal
servindo para “medir a distância que perpetua a injustiça”. Essa idéia
pertence igualmente a H. Mrcuse, dando um certo eco ao pensamento da
utopia em Ernst Bloch. A cada vez, a Teoria crítica deve confrontar a história
com “a possibilidade que é sempre visível nela”. Mas ela não se deve entregar
a apostas sobre o progresso cuja significação é fundamentalmente marcada
pela ambigüidade: “Pode ser que, efetivamente, a melhora dos métodos de
produção não tenha somente acentuado os riscos de repressão, mas tenha
também melhorado as chances de sua supressão. Porém, acrescenta Hor­
kheimer, a conseqüência que resulta hoje em dia do materialismo histórico
e que antigamente decorria de Rousseau ou da Bíblia, para saber o julga­
mento segundo o qual ‘É agora ou nunca’ que o horror tem um fim, era a
cada instante atualidade.”
Sobre a questão revolucionária, Horkheimer não está mais de acordo
com os marxistas do que com os saint-simonianos: para os primeiros, o
conhecimento das leis históricas que regulam o curso da evolução das formas
sociais deveria intensificar a revolução, enquanto, para os segundos, ele
deveria mais atenuá-la. Para Horkheimer, não é da certeza teórica procurada
pelo conhecimento das leis objetivas da história que a crítica tem necessidade
para ser revolucionária, mas da certeza prática que ela retira da experiência
do sofrimento dos indivíduos. E, de qualquer maneira, não há nenhuma razão
para confiar na História.
Em 1970, Horkheimer havia renunciado a todo projeto revolucionário: a
visão marxista do socialismo é de fato a "sociedade administrada” —justiça e
liberdade são inconciliáveis, e as grandes certezas revolucionárias devem ceder
lugar às pequenas certezas reformadoras até mesmo conservadoras - a
começar pela preservação de certos valores do liberalismo, como a autonomia
do indivíduo.8 Aqueles que, entre os estudantes, puderam ser enganados por
esse novo discurso e aí ver uma negação pura e simples das posições
anteriores, talvez não tivessem lido de bastante perto o texto de 1942. Texto
em situação que só justificava a revolução com relação ao contexto do Estado
autoritário. “O sistema eterno do Estado autoritário (...) não é mais real do que
a harmonia eterna da economia de mercado”: o velho Horkheimer podia apelar
para essa palavra escrita em 1942 para fazer valer que a revolução pode
também ser pura e simples ideologia apenas, quando notadamente o contexto
parou de justificar a violência e quando se tornou outro: é na “sociedade
administrada” que em 1970 Horkheimer vê a verdadeira ameaça política. Uma

508
outra forma de “totalitarismo”, talvez, mas que requer certamente outras
explicações teóricas e outras respostas práticas diferentes daquelas que queria
lhe trazer uma certa juventude em resumo totalmente atrasada em trinta anos.

• L 'État a u ío rlta ir e , em T h éorie c ritiq u e , E ssais, trad. franc., Paris, Payot, 1978, apresentação
de L. Ferry e A. Renaut.; E c lip se d e la ra iso n , seguido de R a iso n e t tc o n s e r v a tio n d e so i, Paris,
1974; L e s d é b u ts de la p h ilo so p h ie b o u r g e o ise d e V h istolre, seguido de H eg el e t le p ro b lè m e
d e la m é ta p h y siq u e , Paris, 1974; T h éorie tra d itio n n e lle e t th éo rie c ritiq u e . Paris, 1974; T h éorie
c ritiq u e , E ssa is, op. cit, E s p r i t j u i f e t e s p r it a lle m a n d , E sp rit, 5, maio de 1979; M. Horkheimer,
Th. W. Adorno, L a d ia le c tiq u e d e la ra iso n . Paris, 1974.

► R. Bubner, Q u ’e s t< e q u e la T h éo rie c r itiq u e i A rc h iv e s d e p h ilo so p h ie , t. 35, n. 5; J.-M. Ferry,


T h éo rie c ritiq u e e t c ritiq u e d u to ta lita rism e , R e v u e fra n ça ise d e S c ien ce p o litiq u e , n. 1,
fevereiro de 1984; L. Ferry, A. Renaut, P ré se n ta tio n à M. H o rk h eim er, T h éo rie c ritiq u e , E ssa is
o p . cit.

Jean-Marc FERRY.

NOTAS
1. Do lado de M. Horkheimer, o verdadeiro texto fundador da T eo ria c ritic a data de 1937
e se intitula T h éo rie tr a d itio n n e lle e t T h éo rie c r itiq u e (trad. para o fr., Paris, Gallimard, 1974).
Para uma apresentação esclarecedora desse movimento intelectual, cf. M. Abensour, L a th é o rie
c ritiq u e : u n e p e n s é e d e VExil?, A rc h iv e s d e p h ilo p h ie , t. 45, abril-junho de 1982.
2. A respeito da evolução da T eoria c rític a de Horkheimer (1937 a 1970), cf. L. Ferry e
A. Renaut, Apresentação a Horkheimer, T h éo rie critiq u e, E ss a is (op. cit).
3. Essas reflexões foram o objeto de numerosas obras e publicações durante o período
americano da Escola de Frankfurt da qual a T eoria c rític a saiu (cf. a esse respeito, M. Abensour,
a rt cit.). A Escola de Frankfurt foi um movimento intelectual fixado em Nova Iorque durante os
anos de emigração, entre 1933 e 1941. Em torno de Horkheimer se reagrupavam principalmente
Marcuse, Pollock, Lõwenthal, Adorno, Fromm, Krichheimer e Neumann.
4. O instituto de pesquisa social que foi a origem institucional da T eoria c rític a foi
fundado no mesmo ano em que foram publicadas as obras de dois marxistas heréticos da época:
H is tó r ia e c o n sc iê n c ia d e c la s se , de Lukács (1923); M a rx ism o e filosofia, de Korsch (1923).
Korsch e Lukács sem dúvida influenciaram muito a concepção da T eoria c rític a em Horkheimer.
5. Cf. Luc Ferry e Alain Renaut, apresentação de Horkheimer, T h éo rie c ritiq u e , E ssais,
op. cit., igualmente, R. Bubner, Q u ‘est-ce la T h éo rie critiqu e?, A rc h iv e s d e p h ilo so p h ie , l 35,
ns 5; e ainda, P. Thibaud, I n s c r ir e d e s p r o je ls d a n s T h isto ire, E sp rit, maio de 1978 (n ú m ero
consagrado à Escola de Frankfurt.
6. M. Horkheimer, E c lip s e d e la R a iso n , trad. fr., Payot, Paris,pág. 157.
7. M. Horkheimer, Th. W. Adorno, L a d ia le c tiq u e d e la ra iso n , trad. fr.,Paris, Ed.
Gallimard, 1974, pág.55.
8. M. Horkheirmer, L a T h éo rie c r itiq u e h ie r e t a u jo u rd 'h u i, M. Horkheimer, T h éorie
c ritiq u e , E ssa is, op. cit.

509
HUMBOLDT, Wilhelm von, 1767-1835
Ensaio para definir os limites da ação do Estado, 1792

Esse ensaio devia exercer uma influência durável sobre as idéias liberais
depois de sua reedição (1850) não somente na Alemanha (exceto na época do
nazismo, em que seu autor foi desacreditado como antigermânico), mas
principalmente na Inglaterra (Stuart Mill) e mesmo na França (Laboulaye). Sua
primeira edição havia sido retardada e só foi, aliás, parcial, para evitar as rixas
com a censura prussiana, que havia sido reforçada desde do édito de Wõllner
(1788) e que desde o fim de 1791 redobrara a severidade política, Frederico-
Guilherme II pretendendo reagir vigorosamente contra a popularidade adqui­
rida pela Revolução Francesa entre os intelectuais “esclarecidos” de Berlim;
segundo a narrativa de F. von Gentz (Über den Ursprung und Charakter des
Krieges gegen die Franzòsische Revolution (Sobre a origem e o caráter das
guerras contra a Revolução Francesa, Berlim, 1901, pág. 253), esses intelec­
tuais julgavam a guerra contra a França, na primavera de 1792, “um atentado
desprezível contra os interesses mais elevados da humanidade”, além de que
"... nunca uma potência beligerante havia obtido do coração de seus inimigos
tanta simpatia, tantos favores e ajuda secreta...”.
A situação histórica assim como a insitência de amigos como F. von
Gentz, K. von Dalberg, F. Schiller conduziram finalmente Humboldt a terminar
e a tentar publicar em parte esse texto que era a continuação de seus escritos
anteriores concernentes à religião natural (1785-1787), à religião em geral e
ao cristianismo (1789), às constituições em geral e à nova Constituição
Francesa (1791), à idéia de desenvolvimento das forças humanas no decorrer
de uma história evolutiva (1791). Encontra-se no Ensaio, idéias forçosamente
já esboçadas anteriormente pelo jovem escritor (nasceu em 1767), que se
aperfeiçoara na reflexão filosófica por intermédio da obra de Kant, da qual ele
se esforçou para tirar uma lição política. Nem por isso esqueceu outras lições:
a de seu pai, proprietário de bens de raiz, alto funcionário e franco-maçom; a
dos vários cenáculos do Aufklàrung (Iluminismo) berlinense sensível às
afinidades intelectuais e não às divisões confessionais; o ensinamento recebido
nos círculos de estudos privados (1785-1786 em Berlim) sobre o Direito
natural (E. F. Klein, futuro professor da Universidade.de Halle), sobre a
filosofia (J. }. Engel), sobre história e economia política (C. W. von Dohm, o
célebre autor do memorial sobre a emancipação dos judeus, memorial no qual
Mirabeau alimentava seu próprio discurso —Humboldt por sua vez se referirá
a Mirabeau, citando-o em exergo a seu Ensaio-. “O difícil é só promulgar leis
necessárias, é continuar fiel para sempre a esse princípio verdadeiramente
constitucional da sociedade, é se colocar em guarda contra o furor de governar,
a mais funesta doença dos governos modernos”). Os estudos universitários
(Frankfurt-sobre-Oder e Gottingen) iniciam-no nos problemas da função públi­
ca, mas, antes de entrar nesse terreno (1790), suas viagens, acompanhado po
J. H. Campe, o familiarizam com as realidades políticas modernas na Alemanha

510
e na França (ver seu diário, em Oeuvres, L XIV, suas discussões sobre o édito
de Wóllner, sobre os privilégios nobiliários e a condição camponesa, sobre os
preconceitos contra os judeus, sobre a natureza do direito e a função do Estado
como instrumento de segurança pública somente, segundo a opinião de Dohm,
seus primeiros contatos com a França revolucionária (agosto de 1789) com
essa reflexão sobre a continuidade histórica, quando de sua visita ao guarda-
móveis da Coroa, sobre a emoção ressentida à idéia que "... essa mesma espada
que, brandida por Henrique IV, serviu para combater a intolerância, o espírito
de perseguição, tenha combatido agora o despotismo”.
É preciso se ter em conta esse conjunto de influências e experiências para
compreender como o Ensaio se esforça para ultrapassar os termos de um
debate estabelecido na Alemanha há uns vinte anos sobre a natureza do
absolutismo a reivindicação de uma liberdade justa.
O debate havia sido definitivamente dominado pela contestação moderada
do absolutismo, corrente que reivindicava somente o direito a uma livre atividade
sobre os planos religioso, econômico, profissional, elogiando um liberalismo
econômico contra regulamentos arcaicos, e não dos direitos políticos, prejudican­
do as bases do regime. Essa corrente fundava a legitimidade de sua conduta
sobre uma distinção operada entre o civil e o político, tal como se encontra
colocada numa bürgerliche Gesellschafí, uma sociedade civil, lugar de atividade
e de desenvolvimento das pessoas, separada do Estado, lugar de decisão de um
poder estabelecido pela tradição, autônomo em sua função. De modo que se
encontravam aparentemente justificados e conciliados o liberalismo econômico
e religioso com sua negação política, o sustentáculo dos privilégios políticos das
Stánde (Corporações), pilares do poder monárquico. Essa conciliação só podia
ser viável com a condição de receber a aprovação do monarca: Frederico II
dispôs-se a esse tipo de coisa e, graças a isso, seu reinado teve firmes defensores
entre os Aufklàrer intelectuais, ainda que alguns, como Lessing, não se deixas­
sem mais enganar: ridicularizando essa amável liberdade de discutir até a
exaustão sobre religião, com a condição de se calar sobre as servidões propria­
mente políticas, ele fazia sarcasticamente notar a Nicolau, orgulhoso das Luzes
berlinenses (carta de 25 de agosto de 1769): "... se alguém se lembrava de elevar
a voz para defender os direitos de súditos protestantes contra a exploração e o
despotismo como se podia fazer mesmo na França e na Dinamarca, veriam, então,
qual é o país na Europa mais submetido à escravidão”. Ora, com Frederico-Gui-
lherme II, o dispositivo de conciliação foi colocado em crise e manifestou, assim,
sua vulnerabilidade, sua dependência “irracional” do contingente. Era preciso
repensar o problema. Esse foi o objetivo do Ensaio.
A solução adiantada por Humboldt, a seus olhos mais viável e mais
confiável do que o despotismo esclarecido, do qual ele viu os limites, e do que a
Constituição francesa, da qual ele apreende a fragilidade, consiste em retomar,
em aprofundar a distinção entre sociedade civil e Estado e em redobrá-la pela
distinção Nationalverbindung (articulação nacional) e Síaatsverbindung (articu­
lação estatal), para colocar toda a positividade das relações humanas, da cultura,
do individualismo nacional e do dinamismo histórico do lado do social, e toda a

511
negatividade das coações, artifício mecânico do despotismo, do lado do Estado
cuja função, por definição inicial, deverá, assim, ser reduzida ao mínimo, a do
mínimo de coerção indispensável à vida em sociedade de homens destinados a
serem livres, mas cujas capacidades de viver em convivência são desiguais.
A partir dessas premissas, toda a demonstração do autor visará a ilustrar,
por meio de exemplos apanhados na história ou na experiência psicológica, os
aspectos negativos de toda intervenção estatal para modificar os costumes ou
a cultura, produzir bens ou intervir nas organizações da vida econômica ou
mesmo nos assuntos religiosos. O único objeto real do Estado será a segurança
interna; uma parte importante da obra é consagrada ao exame das instituições
repressivas indispensáveis, à natureza das sanções, à caracterização dos
códigos civil e penal. Para a própria segurança exterior, as capacidades do
Estado se verificam limitadas, pois a atitude para combater em uma guerra
depende muito mais fundamentalmente do espírito de uma nação, de sua força
moral, de sua personalidade.
Todo legislador, deverá, portanto, estudar os fins, os meios, o financia­
mento de leis que terão efeitos salutares que contribuam para reforçar a longo
prazo, por efeitos indiretos, a força interior dos cidadãos enquanto homens.
Esse efeito a longo prazo é colocado por hipótese como um postulado
teleológico, mas, sobre o terreno da realidade política imediata, o filósofo
recusa ao mesmo tempo o peso do passado, o absolutismo monárquico e a
ruptura brutal como ele, ilustrada pela Revolução Francesa. Ele se recusa a
em nome da continuidade histórica, garantia de individualidade nacional, a
enterrar toda a herança legada por um passado de privilégios e prerrogativas
particulares reconhecidas aos “estados”: o Standeswesen, produto da história,
não pode ser destruído inteiramente, de uma só vez, por uma revolução, sem
devastação ruinosa para o interesse geral, pois ele tem consciência natural­
mente de um princípio de hierarquização social e se esse princípio vier a faltar,
o corpo social não poderá mais funcionar como um corpo vivo. Substituir um
princípio historicamente comprovado por um princípio colocado apenas por
motivo especulativo não será nunca mais do que a operação artificial de uma
vontade utópica.
O liberalismo econômico e cultural pode, assim, se apoiar sobre uma
realidade viva, “a sociedade civil”, mas que será do liberalismo político? Ele
estará à espera do futuro.
O desenvolvimento da oposição “sociedade civil-estado”, que terá pos­
teriormente a sorte que se sabe, se alimentará dessa dissemetria.•

• Id e e n z u e in e m Versuch d ie G reu ze n d e r W irk sa m k eit d es S ta a ís z u b e slim m e r s. Gesam-


melte Schriften, Kõnigliche Preussische Akademie der Wissenschaften, Berlim, 1903-1936, reed.
1967-1968, 17 volumes; W erke in f iin í B d n d en , Darmstadt-Stuttgart, 1960; trad. íranc., H.
Chrétien, E ssa i s u r les lim ite s d e 1'action d e 1’É tat, Paris, 1867; nova tradução de M. Schaub
aparece pelas Presses Universitaires de Lille; trad. ing.; J. W. Burrow, The L im its o f S ta te a ctio n ,
Cambridge University Press, 1969; trad. ital., G. Perticone, S a g g io s u i lim iti delT a ttità dello
S ta to , Milão, 1965.

512
► R. Leroux, Guillaume de Humboldt, L a fo rm a tio n d e s a p e n s é e j u s q u ’e n 1 7 9 4 , Paris, 1932;
Idem, L ’a n th ro p o lo g ie c o m p a r é e d e G u illa u m e d e H u m b o ld t, Paris, 1958; J. Quillien, G u il­
la u m e d e H u m b o ld t e t la G rèce, M o d è le e t H isto ire, Presses Universitaires de Lillles, 1983; P.
R. Sweet, W ilh elm vo n H u m b o ld t. A b io g ra p h y , Ohio State University Press, 1978-1980, 2
volumes.

Marianne SCHAUB.

HUME, David, 1711-1776


Do contrato original, 1748 - Da origem do governo, 1774

Hume — que terminou sua carreira com o título de Subsecretário de


Estado (“eis, dizia ele, que decaí de filósofo a pequena autoridade pública’’) —
não usufruiu, enquanto pensador político, do prestígio que lhe conferiu sua
obra filosófica. Censuram-no, principalmente, por não ter compensado seu
poder de destruição em filosofia por um poder de criação no domínio político
(Stephen, 1962, t 2, pág. 152). Essa reputação mesquinha é, aliás, de bom
grado colocada com relação ao período de estagnação do pensamento político
inglês que os historiadores das idéias concordam em reconhecer como a
metade do século XVIII, no momento em que a questão jurídica do fundamento
do Estado dá lugar a um realismo político que centra o debate sobre o estatuto
dos partidos e das facções no âmago dos mecanismos constitucionais. Desse
modo, aconteceu que Hume, enquanto ainda vivia e apesar de seus veementes
protestos, se viu acusado de "jacobinismo” na mesma época em que os
Enciclopedistas reconheciam nele o apóstolo da tolerância e da liberdade de
pensar. Mais tarde, os comentadores, com um belo conjunto, perceberão em
sua obra política o temor insistente das revoluções, até mesmo um certo rigor
reacionário (Halévy, 1900, p. XX; Stephen, 1962, t. 2, pág. 157; Laski, 1927,
pág. 117; Giarrizzo, 1962, pág. 91). Ou, melhor, coloca-se a ênfase sobre seu
“conservadorismo” do qual testemunharia a preocupação de se entregar a uma
apologia moderada da Constituição saída da Gloriosa Revolução de 1688.
Poder-se-ia também, da mesma maneira, dentro de uma perspectiva simé­
trica, procurar “salvar” nosso autor marcando seu impacto sobre o liberalismo
de Adam Smith, sobre o utilitarismo de Bentham, sobre o democratismo de
Stuart Mill ou, ainda, pondo em dia o papel preponderante desempenhado por
suas idéias políticas na formação da Escola histórica escocesa, que representa
bastante paradoxalmente um dos elos que religam a construção de uma sociolo­
gia histórica (da qual Saint-Simon e Marx saberão, cada um à sua maneira, tirar
proveito) à tradição recente do individualismo liberal.
Vale mais a pena aqui —guardando na memória o sucesso literário e

513
mundano encontrado por Hume no decorrer de sua segunda estada em terras
francesas (de 1763 a 1766) e visto que o público francês prestava principal­
mente atenção à sua obra política, econômica e histórica - se ater a limitar a
significação e o motivo desse "conservadorismo” do qual a maioria dos
comentadores apreciam a importância à medida da reivindicação, no caso do
próprio Hume, de uma incansável moderação.
A obra política de Hume é ao mesmo tempo abundante e esparsa: o livro
III do Tratado da natureza humana (1740), a maioria dos Ensaios, de
1741-1742 revistos e completos até a morte do autor, a Indagação sobre os
princípios da moral (1751), os Discursos políticos (1752), aos quais se pode
juntar a monumental História da Inglaterra (1754-1762). Dois ensaios, Do
contrato original (publicado em Three essays, moral and political em 1748)
e Da origem do governo (redigido em 1774 e publicado na última edição dos
Essays em 1777) nos servirão de fio diretor. Se o primeiro ensaio (CO) o
denuncia, essencialmente contra Locke, os termos de uma origem fictícia do
estado civil, o segundo (OG) o pretende determinar, em parte no rastro de
Maquiavel, os componentes da origem real das sociedades. O problema político
clássico do equilíbrio da autoridade e da liberdade se encontra, nesse jogo de
gangorra, afetado por um novo coeficiente de inteligibilidade que deveria
desencorajar toda interpretação político-moral do “conservadorismo” humano.
O “conservadorismo” de Hume não é efetivamente nem nostalgia do bom
velho tempo, nem veleidade restauradora de uma dinastia condenada pelo
curso da história. Esse “conservadorismo" se apóia sobre um princípio funda­
mental:

O tempo e o hábito dão autoridade a todas as formas de governo e a todas as dinastias


de príncipes; o poder que, antes de tudo, se fundou unicamente sobre a injustiça e a
violência torna-se, com o tempo, legal e obrigatório. (Tratado vol 2 pág. 328; cf. CO, vol.
3, pág. 451).

A chegada da noção de governo, do Estado, foi revelada por Hume na


competição guerreira que decorre da raridade dos bens disponíveis entre os
grupos humanos já constituídos. A necessidade econômica segrega o conflito
aberto que dá nascimento, ele próprio, a uma hierarquia militar logo convertida
- desde o retorno à paz - em hierarquia civil e em sistema de gestão política,
sob a pressão dos serviços prestados e das comodidades surgidas reforçadas pelo
hábito adquirido (cf. CO, vol. 3, págs. 445446; OG, vol. 3, pág. 115). Hume, no
fio reto do pensamento político moderno, destina, assim, ao Estado uma origem
econômica e uma missão de preservação das vantagens adquiridas pelo processo
já comprometido de domínio da concorrência selvagem. Mas a originalidade da
aproximação reside no fato de que à diferença de um Hobbes, por exemplo,
nenhuma necessidade intríseca está ligada à instituição estatal. Para Hobbes, o
estado social é totalmente assumido - e fínalmente produzido - pelo Estado;
para Hume, o Estado é apenas uma instituição contingente, historicamente, mas
não essencialmente exigida, mais bem apreciada pela prestação de serviços do

514
que pelo poder repressivo que ela encarna. O Estado depende mais, em um
primeiro tempo, da comodidade administrativa e da delegação gestionária do que
da coerção obrigada e da omnipresença intervencionista na preservação do
vínculo social.
Também a origem dos regimes políticos existentes deve ser procurada do
lado da conquista, da usurpação, da hereditariedade ou da eleição segundo as
circunstâncias e as exigências do momento mais do que na ficção de um
contrato original que Hume apreende como um travestimento ideológico (do
mesmo modo, aliás, que a doutrina concorrente do direito divino) destinado a
justificar um sistema político baseado na realidade sobre uma relação de forças
que só se mantém graças à submissão voluntária do povo. Resulta daí que,
assim como a moral, a religião ou a economia, a política também não foi
originariamente fundada sobre a normatividade da razão. É por isso que o mito
da soberania popular não resiste, segundo Hume, à análise dos fatos: no lugar
onde a força cede o passo ao sistema eletivo, como foi o caso depois da Gloriosa
Revolução, a ilusão do contrato assinado entre o rei e o Parlamento desaparece
diante da realidade do procedimento; Guilherme e Maria foram colocados no
trono, não pelo sufrágio popular, mas pela maioria dos membros do Parlamen­
to, setecentas pessoas decidiram a sorte <je aproxidamente dez milhões (cf. CO,
vol.3, págs. 447449). Não se trata, bem entendido, de negar que o consenti­
mento do povo seja o mais justo fundamento do governo, mas simplesmente
de constatar que as condições de seu exercício não estão, por assim dizer,
nunca reunidas, o próprio povo, aliás, talvez não peça tanto. O consentimento
popular está tão pouco presente, que a obediência ao governo colocada em seu
lugar se efetua primeiro por temor e não por obrigação moral, e só o tempo,
em virtude do princípio de longa possessão, acostuma os súditos a reco­
nhecerem como legítimo o que foi primeiro o fruto de uma usurpação ou de
uma conquista.
O “conservadorismo” de Hume começa, assim, a se precisar: o regime
colocado no poder em 1688 se fez acompanhar de uma Constituição que, em
dois momentos ao menos, pela Declaração dos Direitos de 1689 e pelo Ato de
Estabelecimento de 1701, definiu uma orientação nova das relações entre o
soberano e o povo. Em uma época em que a doutrina do contrato original
permaneceu muito vivaz não somente na tradição do whiguismo teórico, mas
ainda dentro das fileiras do Country Party - do qual o melhor publicista,
Bolingbroke, não hesita, apesar de sua filiação tory, em vestir o hábito de um
old whig e em levar a luta contra o ministério Walpole em nome da doutrina
lockiana do direito natural e do contrato social Hume afirma em voz alta a
novidade radical do sistema constitucional de 1688. Fazendo isso ele se opõe
firmemente aos partidários da teoria da “Antiga Constituição” que sustentam
a existência pré-normanda de uma Câmara dos Comuns e se apoiam sobre
Tácito para mostrar que o Witan saxônico está na origem do Parlamento (rei
eleito, poder limitado, assembléias tribais); daí a idéia de que as leis e os
costumes antigos definiam um regime de liberdade ao qual a invasão da
feudalidade pela conquista normanda veio a pôr fim: a história constitucional

515
inglesa seria desde então batizada pela restauração pontual das liberdades
perdidas sob o jugo normando (Magna Carta, a reconstituição da Câmara sob
o reinado dos Tudor, a Petição dos Direitos de 1628, a Declaração dos Direitos
de 1689 constituíram suas principais etapas). A idéia de uma constituição
primordial, pura e autêntica, apoiada sobre um contrato original cujos elemen­
tos antigamente perdidos devem ser periodicamente recuperados, conduzirá
ainda Bolingbroke a instruir a defesa das antigas liberdades reconquistadas
em 1689 por meio de um contrato assinado entre o soberano e o povo, contra
o regateio que os Hanoverianos e o Parlamento britânico começaram a
instituir com a vinda de George I.
Pedra de toque do pensamento político de Hume, a denúncia do mito da
“Antiga Constituição” vai, portanto, naturalmente acompanhar a rejeição da
imagem do contrato original. No sentido estreito, a “Antiga Constituição” remete,
para os historiadores whigs, à administração dos Tudors que teria vindo per­
verter o advento dos Stuarts e, com eles, da monarquia absoluta. Hume se
obstina a mostrar que James I e Charles I, longe de inovarem em matéria de
despotismo, fizeram apenas recolher e assumir a herança de uma autoridade
quase absoluta que Elizabeth havia sabido levar ao mais alto grau. No sentido
amplo, a “Antiga Constituição” remete a um contrato original assinado entre o
povo e seus dirigentes, contrato esse que implica em uma estrutura "popular”
que a atual Câmara dos Comuns teria apenas perpetuado: a questão diz respeito,
portanto, à antiguidade de tal estrutura que encarnaria a liberdade face à
autoridade e os privilégios face à prerrogativa. Diferentemente dos historiadores
whigs, Hume não acredita em uma prática democrática dos ancestrais e nega a
existência de um ramo popular da legislação saxônica: o governo anglo-saxão era
do tipo aristocrático, e os wites não eram certamente a forma primitiva dos
Comuns. Com a introdução do sistema feudal —que Hume indica ser muito
pouco favorável à liberdade - os Comuns, que apareceram tardiamente, nunca
teriam tido a importância que se lhes quis dar; a própria Magna Carta, destinada
principalmente a garantir os privilégios dos barões, ignora soberbamente os
Comuns, não muda em nada a distribuição do poder político e não poderia,
conseqüentemente, ser considerada uma “inovação” real. A época feudal foi
primeiro o teatro de uma luta perpétua entre o rei e os barões; liberdade, nesse
contexto, quer dizer direitos feudais da nobreza e não direitos naturais do povo,
de tal maneira que o confronto dos privilégios dos barões e da prerrogativa real
não prefigura de maneira nenhuma a oposição court/country (corte/campo),
que encontra sua especificidade dentro do contexto constitucional saído da
Gloriosa Revolução. O esforço de centralização no exercício da prerrogativa, o
reforço da autoridade do monarca não poderiam, aos olhos de Hume, ser
medidos pela bitola moderna do perigo anticonstitucional representado pela
invasão do poder real sobre o do Parlamento, pela razão muito simples de que
a Constituição era então muito pouco estável; ela não colocava em jogo os
mesmos elementos nem os mesmos ingredientes, e seria muito ousado julgar um
passado miticamente reconstruído em função de um presente, teleologicamente
apreendido: o mito só funciona para fundar o atual, mas a reajidade presente,

516
assim como a realidade passada, desmancha a ficção e denuncia o anacronismo
como pura construção ideológica destinada a justificar o presente pelo passado.
O “conservadorismo” de Hume se opõe, assim, ao espírito restaurador do
whiguismo teórico: a “Gloriosa Revolução" não restaura, contra as deploráveis
inovações da dinastia Stuart, os direitos imprescritíveis do povo, ancestral-
mente reconhecidos por uma constituição primordial, ela mesma apoiada sobre
uma das variantes de um pretenso contrato original. Longe de perceber (como
Bolingbroke ainda o faz), a partir de uma unidade essencial, uma continuidade
real da forma inglesa de governo atrás dos erros aparentes da história
constitucional, Hume raciocina em termos de “alterações” sucessivas, de
instabilidade, de escorregadelas do poder, segundo as circunstâncias, para tal
ou qual ordem do Estado: a Constituição não foi primitivamente estabelecida;
ela foi construída progressivamente com eventualidades diversas, sem que
nenhum plano anterior fixado tenha, uma vez por todas, regularizado seu
percurso. Desse ponto de vista — e o que quer que se pense, aliás —, a
Revolução de 1688 representa uma inovação real, manifesta a potência de
invenção do espírito humano introduzindo “uma nova face da constituição”.
Se se é tentado a definir o empirismo como a instalação da imaginação
nos comandos da máquina mental (a natureza sendo, para Hume, potência de
invenção e de artifício), será preciso reconhecer ao mesmo tempo que essa
faculdade inventiva, aparentemente inesgotável, encontra sérios limites no
campo da política, prisioneira como é de modelos restritos que pretendem
estender seu império previsivo sobre a coorte das “circunstâncias” com as
quais é tecida a história dos grupos sociais.
Assim se explica, em Hume, a oposição simultânea à interpretação
psicologista e à interpretação economista da “corrupção" dos regimes políti­
cos, elaborada a partir do modelo simples herdado de Políbio, revisto por
Maquíavel e depois por Harrington, do ciclo dos regimes políticos e de sua
degenerescência (degenerescência das formas puras de governo em sua forma
aberrante, à qual remediaria em direito uma constituição mista; mas “corrup­
ção” desse tipo de constituição quando um dos componentes invade o campo
dos outros). Bolingbroke religa voluntariamente a idéia de “Antiga Cons­
tituição” à máxima harringtoniana (Ocena, 1656) que estipula que a repartição
da propriedade (terrena) determina a estrutura do poder político (máxima
popularmente exprimida na fórmula “o poder segue a propriedade”, que
consegue uma grande nomeada no século XVIII). Segundo Bolingbroke, a
antiga constituição teria recebido uma base verdadeiramente sólida a partir do
momento em que, no século XVI, o equilíbrio da propriedade teria pendido
para o lado dos Comuns; o reconhecimento desse estado de fato por Elizabeth
e seu respeito à Constituição teriam sido as principais razões da popularidade
da soberania, até o momento em que a vinda dos Stuarts, trazendo com eles o
entusiasmo religioso e máximas autoritárias importadas do continente, teria
arruinado a Constituição finalmente restaurada em 1688 (Bolingbroke, 1754,
1 2, págs. 220 e segs. e 368 e segs). Dentro dessa perspectiva, o bom equilíbrio
constitucional dependeria de fato da distribuição das riquezas que, em com-

517
pensação, exigiria uma economia antiga e a simplicidade dos costumes que
foram enfraquecidos pelo crescimento do luxo. Nesse entrecruzamento de
temas, Walpole é acusado por sua vez de minar a Constituição por haver
corrompido o Parlamento (abusando do sistema da "influência”) e por ter
encorajado o luxo que conduz à depravação moral dos cidadãos. Recusando
essa interpretação psicológica restritiva da noção maquiavélico-harringtoniana
da “corrupção”, Hume nos dá os meios de apreender uma das conseqüências
do reatamento da ficção do contrato original ao mito da “Antiga Constituição”:
a degradação de um modelo puro cuja realização seria projetada in illo
tempore, só seria inteligível sobre o mòdo da perversão do comportamento
individual sempre pronto a perturbar a boa ordem de um sistema que, por si
mesmo, não se poderia estragar; essa interpretação psicológica, na medida em
que ela admite que o que é puro não se corrompe jamais por si só, não está
definitivamente tão afastada da doutrina religiosa da queda, já que ela supõe
o retorno ofensivo da tratantice individual como fator de desequilíbrio do
corpo político e que ela percebe o curso da história como uma sucessão de
tentativas recuperadoras ou restauradoras de um objeto perdido em outro
tempo.
A corrupção, no sentido vulgar do termo, que é apenas um efeito possível
da prática do sistema da “influência”, peça-mestra da Constituição a título de
equilíbrio das forças, seria retomada por Bolingbroke para a própria causa da
degenerescência constitucional; visão que supõe efetivamente a construção
anterior de uma espécie de puro estado natural da Constituição, firmemente
estabelecido sobre um adequado e necessário equilíbrio da propriedade e do
poder (desde o séc. XVI) e colocando em jogo uma economia sã (antiga), assim
como a simplicidade dos costumues exigida por uma ordem moral reputada
virtuosa. A recusa desse ponto de vista implica, por seu lado, a recusa da
própria idéia de modelo constituicional. Nem o luxo nem mesmo o humor ou
o caráter de uma personagem política é diretamente responsável pela decadên­
cia de um Estado; essa responsabilidade - pelo tanto que se sente constrangido
a resgatá-la - deve ser referida à própria instabilidade constitucional: a
Constituição britânica não somente não depende de qualquer contrato origi­
nal, mas também nunca conheceu um sólido estabelecimento.
Diferentemente de Bolingbroke, Harrington apoiava a noção de “corrup­
ção” sobre princípios puramente econômicos. A corrupção aparece quando há,
de uma maneira ou de outra, divórcio entre a forma do poder e a distribuição
da propriedade. 0 equilíbrio do poder está, na realidade, ligado ao desequilí­
brio da propriedade; basta, realmente, que seja engendrada ou restabelecida
uma repartição igual dos bens entre dois grupos distintos para que esses se
entreguem a uma luta sem perdão e o governo “se torne um verdadeiro caos
(a very shambles)" (Harrington, 1771, pág. 37). Reciprocamente, se a evolução
da repartição da propriedade segue no sentido de um desequilíbrio crescente,
assiste-se à “corrupção” do regime nesse lugar tornado inadequado à nova
distribuição dos bens. Reequilíbrio perfeito da propriedade, desequilíbrio
crescente do poder são, portanto, as duas fontes principais da “corrupção” dos

518
regimes políticos. Em todos os casos, o fundamento, a base (foundation)
econômica determina a superestrutura (superstructure) política (Harrington,
1771, pág. 51).
Tendo recusado a interpretação psicologista de Bolingbroke, Hume não
subscreve, no entanto, o economismo de Harrington. Sem negar a correlação
propriedade-poder, estabelecida por Harrington, Hume traz para ela um
corretivo decisivo, considerando a evidência da correlação o efeito de uma
mutação ideológica: o econômico só determina o político na medida em que a
ideologia ambiente autoriza essa determinação ou, pelo menos, não entra em
contradição com ela. Longe de ser determinante em última instância, o
econômico - the foundation, como diz Harrington - só instala sua eficiência
causai pela interpretação explicativa dos usos, dos costumes, da opinião
dominante. A crítica torna a afirmar que o equilíbrio da propriedade não
determina automaticamente o equilíbrio do poder e que o poder só pode
■seguir a propriedade se a estrutura constitucional o permite. Em outros
termos, a forma da Constituição, de um lado, e a opinião dominante, de outro,
desempenham um papel mais fundamental do que o equilíbrio da propriedade
na determinação da natureza do poder. A máxima de Harrington só é aceitável
na medida em que ela não é universalizável. "É apenas sobre a opinião que o
governo está fundado,” A propriedade, no mesmo nível que o poder ou o
interesse, vê assim sua eficácia mediatizada pela opinião pública, única garan­
tia da aceitação e do reforço do dado.
O “conservadorismo” de Hume se apóia, portanto, sobre uma percep­
ção do corpo político que se inscreve ela mesma numa visão quase biológica
do corpo em geral no qual as mudanças de estados são regidas pela
"corrupção” ou pela "dissolução”, mas em que cada etapa deve ser pensada
especificamente como um processo natural que pode ser acelerado ou
retardado sob a pressão das "circunstâncias” exteriores. O equilíbrio manti­
do dos elementos do corpo político deve assim retardar ao máximo a
degenerescência do sistema constitucional, perspectiva inevitável, todavia, e
suscetível de ser acelerada pelos abalos que atravessam o corpo social
(inchação da dívida pública, desenvolvimento do espírito de facção, isolacio-
nismo da política estrangeira). A colocação no lugar de uma coalizão dos
partidos apareceria assim como um remédio suscetível de diminuir o proces­
so de degenerescência tanto sobre o plano econômico e social quanto sobre
o plano mais estritamente político, fazendo recuar o único inimigo real:
aquele que, de onde quer que venha (nostálgico do passado, construtor de
repúblicas imaginárias, criador de normas transcendentes), renunciaria a
respeitar os princípios essenciais da Constituição, recolocando, assim, em
causa a estabilidade política e suscitando ao mesmo tempo obstáculos ao
surto econômico do país. A vitória da moderação sobre o espírito de facção
exige, portanto, o reconhecimento, sem fetichismo, do estabelecimento de
um plano de liberdade cujos “felizes efeitos foram demonstrados pela
experiência” e ao qual “um longo lapso de tempo conferiu a estabilidade”.
Pode-se esperar, desde então, conservar intacta a forma da Constituição na

519
medida em que o sistema dos contrapesos (checks and Controls) for chama­
do a se desenvolver livremente fora do espírito de facção que deteriora seu
mecanismo e acelera o desgaste —aliás natural - dos maquinismos.
A coalizão dos partidos, que, em 1688, pôs fim à era da monarquia
absoluta inaugurando uma nova face da Constituição, representa certamente
aos olhos de Hume o último esforço de ajustamento do corpo político ao
crescimento econômico conduzido pelo deslocamento do equilíbrio da proprie­
dade: a liberdade se equilibra aí com a autoridade; o que significa, entre outras
coisas, que a liberdade de empreender e de circular poderá ser contrabalança­
da por uma autoridade suficientemente forte para imaginar e fazer aplicar,
conforme o caso, as reformas que exige a readaptação contínua do regime
misto face aos impedimentos (impedimento) que entravam seu funcionamento
normal. Os remédios propostos para diminuir a velocidade da dissolução do
corpo político participam desse esforço: eles supõem que o retardamento da
corrupção do corpo político seja a primeira condição da facilitação do cres­
cimento econômico; supõem igualmente que —por não ser o melhor regime -
a Constituição mista, dadas as circunstâncias, permanece ainda o regime mais
bem adaptado a essa vocação, não mais por causa de sua pretensa pureza
original assegurada por um contrato, porém mais pelo espírito que permitiu
seu aparecimento.
A polêmica, assumida por Hume, contra a idéia de contrato original e da
antiga constituição visa, desse modo, a relembrar que a norma, longe de ser
instruída e constrangedora pela essencialidade que a habita, exterior ao
agente, é, em sua variedade e em sua contingência, construída em função das
“circunstâncias”; seu eventual constrangimento - precisamente estabelecido e
não mais dado - vem do fato de ela ser elaborada, não esperada e não-
conforme. Entre o liberalismo de Locke (por exemplo) e o de Hume, há toda a
distância que separa a conformidade da invenção. Se Hume é conservador,
não é conformista. E seu “conservadorismo” se atém prioritariamente ao
reconhecimento da estabilidade política (historicamente construída) como
condição da peseguição do crescimento econômico.

• The P h ilo s o p h ic a l W orks, ed. T. H. Green & T. H. Crose, 4 vol., republicação de nova edição
em Londres em 1882, Darmstadt, Scientia Verlag Aalen, 1964 (citado: G. C.).

► Bolingbroke, T he W orks o f H en ry St. Joh n , V iscou n t B o lin g b ro k e, Londres, Ed. David


Malletm 1754, 5 vol.; Harrington, The O c ea n a a n d o th e r w orks, ed. John Toland, republicação
da edição de Londres em 1771, Darmstadt, Scientia Verlag Aalen, 1963; E. Havely, Lxt fo rm a lio n
du ra d ic a lism e p h ilo so p h iq u e , Paris, Alcan, 1900-1901, 3 vol.; C. Ciarizzo, H u m e p o lític o e
sto ric o , Turim, Einaudi, 1962; H. J. Laski, P o litic a l T hough t in E n g la n d from L o ck e to
D en th a m , Londres, Williams & Norgate, nova edição, 1927; L. Stephen, H isto ry o f E n glish
T h ou gh t in th e E ig h teen C en tu ry, Londres, 1876, nova ed. Ilarbinger Books, 1962, 2 vol.
Poder-se-á igualmente consultar L. L. Bongie, D a v id H u m e, P ro p h e l o f th e C o u n te r R e vo lu tio n {
Oxford University Press, 1965; De Deleule, H u m e e t ta n a lssa n c e du lib é ra llsm e éco n o m iq u e ,
Paris, Aubieí, 1979; G. Deleuze, E m p ir is m e e t su b je c liv ité. E ss a i s u r la n a tu re h u m a in e selo n

520
H u m e,Paris, PUF, 1953; D. Forbes, H u m e ’s p h llo so p h lc a t P o litics, Cambridge University Press,
1975; G. Granel, La force de Hume, Préface à Hume, 4 E ssa is p o litiq u e s, Toulouse, TER, 1981;
F. A. Hayek, The legal and political Philosophy of David Hume em H u m e, Modem Studies in
Philosophy, ed. V. C. Chappell, Londres, Melbourne, Macmillan, 1968, págs. 335-360; G.
Marshall, David Hume and political scepticism, P h ilo s o p h ic a l Q u a te rly , IV, 1954, págs. 247-257;
J. B. Stewart, The m o ra l a n d p o litic a l P h ilo s o p h y o f D a v id H u m e, Columbia University Press,
1963; G. Vlachos, E ss a i s u r la p o litiq u e de H u m e, Paris, Domat-Montchrestien, 1955; S. S.
Wolin, Hume and conservatism, A m eric a n P o litic a l S c ie n c e R e view , XLVIII, 1954, págs.
999-1016.

Didier DELEULE.

HUS, Jan,por volta de 1370 - 1415


De Ecdesia publicado por Lutero em 1520

Jean Hus não foi um pensador político, não foi também um grande
teólogo. Também não foi original. O essencial de sua teologia vem de Wycliff*.
E, além disso, era bastante tradicional. Quando tentou precisar seu pensamen­
to, permaneceu confuso, como também ficou sua idéia da verdade ou seu
conceito de Igreja. Entretanto, ele desempenhou um grande papel na evolução
política de seu tempo pela prática que teve e pela função social que preencheu.
Encontrou-se em contato direto com o nascimento do sentimento nacional na
Boêmia, em oposição à dominação alemã. Reuniu em torno de si burgueses,
intelectuais, camponeses e uma parte da nobreza. O conflito eclesiástico que
provocou induziu indiretamente uma mutação política, precisamente na medi­
da em que a Igreja era parte integrante da ordem da sociedade. Modificar a
Igreja, nesse momento, era, inevitavelmente, modificar a sociedade, mesmo se
não houvesse programa anterior com essa finalidade, e, opondo-se a um poder
de Igreja, Hus foi levado a contestar todos os poderes humanos: assim como,
reciprocamente, contestou o poder do papa, em parte porque este tinha sua
origem em César. “A instituição papal e sua preeminência vêm do poder de
César.” A interpretação do dois poderes e o fato de a Igreja ser uma das ordens
da sociedade, de ela dar à sociedade sua ideologia e sua justificação, de ela
assegurar o vínculo entre os grupos sociais, assim como a mobilidade social,
fazem com que toda reforma (ou transformação) da Igreja seja por si uma
subversão política por ser social. Isso é muito mais importante do que as
habituais interpretações concernentes às riquezas da Igreja ou à vontade de
poder político de se libertar de uma tutela: era essa "tutela” que a legitimava

* Hus assegurou o sucesso do livro de Wycliff: D e d o m ín io d ivin o , 1376, e inspirou-se nele


muitíssimo ao escrever o D e E c d e s ia , 1378, tendo recopiado textualmente páginas inteiras de
Wycliff.

521
aos olhos dos súditos. A idéia de que Hus lutou contra um poder “feudal" é
totalmente superficial. Ele quis apenas ser um cristão fiel, criticando esse fato
da Igreja, mas isso trouxe inevitavelmente uma mutação política, mesmo não
havendo doutrina preconcebida.
No entanto, Hus encontrou um movimento de reforma social e de
independência nacional quando estava na Universidade de Praga. Era o
movimento reformador tcheco que havia sido lançado por Milic (1374) e que
se estendia para além da Universidade. A primeira reivindicação era “nacional”.
Existia uma nítida “consciência nacional” nesses primeiros discursos (“no
reino da Boêmia, os tchecos, segundo a lei divina e a lei natural, devem cobrar
os impostos mais importantes, como fazem os franceses na França e os alemães
no país deles”). Portanto, recusa da administração e da preponderância alemãs.
Ora, existia uma instituição fundada pelos sucessores de Milic em 1391, a
capela de Bethlehem, financiada pela burguesia nacionalista e onde havia
cultos e cerimônias em língua tcheca, oposta à Igreja oficial, e onde se
desenvolvia a devotio moderna com pregadores populares, que não eram
padres. Hus tornou-se um pregador (1402). Era então professor na Universi­
dade. Sua pregação atraía um número considerável de ouvintes, às vezes até
três mil, e essa pregação quotidiana exprimia, ao mesmo tempo, a piedade um
pouca mística que se expandia, a doutrina bíblica e a vontade reformadora da
sociedade. Em 1409, o Grande Cisma provocou uma ruptura dentro da
Universidade de Praga, os alemães se retiraram, e Hus se encontrou carregado
ao primeiro plano. Mas o que se deve sublinhar é que ele era antes de tudo um
pregador (bíblico) popular. Não era um teórico e exprimia diretamente uma
exigência evangélica encarnada na política e no social. Isso o conduziu muito
rápido a contestar a Instituição. Era levado a isso pela crise da ordem
eclesiástica, pelo caráter não-institucional do Evangelho e pelo nacionalismo
tcheco que lutava contra o Poder Imperial alemão. Recorrendo à Bíblia antes
de tudo, revelou que em face da crise da Instituição, existia um outro caminho
além da reforma das instituições e da via jurídica. Não seriam os Concílios nem
os Decretais que poderiam resolver essa crise: era um retorno à origem da
Revelação, porque Deus conservou um dominium reservado que ele não
delegou. Portanto, no meio da crise da Igreja, ele abriu um outro caminho,
diferente do dos Concílios, e, em face da crise do Império, pretendeu recusar
também a via institucional.
Pode-se reproduzir seu pensamento político em quatro pontos. O primei­
ro concerne à Igreja, cuja reforma deve atingir uma reforma da sociedade
inteira. Se os cristãos, segundo a devotio moderna, devem seguir o exemplo
de Cristo em uma relação direta, pessoal, com Deus, a organização da Igreja
deve passar para segundo plano, mas deve também ser determinada por essa
presença de Deus nos fiéis. A Igreja não tem autoridade divina. Então, é preciso
simplificar essa organização, lutar contra a imoralidade e a ignorância do clero,
recolocar a massa dos fiéis em contato direto com o poder (ele recusa a
oposição entre Igreja ensinadora e Igreja ensinada). É preciso fazer desapare­
cer o aparelho político-burocrático, rejeitar o sistema das prebendas e benefí-

522
cios, permitir aos leigos participarem diretamente de toda a vida da Igreja, até
mesmo de seu governo, mas, a partir desse fato, é preciso também permitir aos
leigos compreenderem o que se diz e se decide (rejeição do latim). E o clero
deve voltar à probreza evangélica. Hus não nega o fundamento da propriedade,
mas afirma que os servidores de Deus não devem participar dela nem ter
qualquer outra riqueza que seja. Fica bem entendido que ele luta contra a
corrupção, a simonia, etc. E, como os padres devem estar em contato direto
com o povo, pede que se volte à prática primitiva de eleição dos padres pelo
povo, pelos fiéis. Livremente e sem intervenção de uma autoridade eclesiástica
superior. Sem o que, “zomba-se dos direitos do povo”.
Porém, o ponto central, definitivo, é que para ele a Igreja não deve deter
nenhum poderio (nem riqueza, nem poder político); ela não deve concorrer
com os poderes políticos. (E isso já dentro da devotio moderna pelo imperativo
da imitação de Jesus Cristo). Além disso, a Igreja não deve ser um corpo
político, nem entrar em colisão com os poderes políticos. A partir desse fato, é
levado a seguir o movimento desencadeado por sua pregação popular e a
proceder a reformas dentro da Igreja da Boêmia, sem esperar decisão nem do
papa nem do Concilio (modificação do ritual da missa, comunhão sob as duas
espécies, nomeação dos padres...). Mas ele compreende, além disso, que, para
transformar o todo da Igreja, são necessárias decisões gerais. E tende a pensar
que essa reforma independente da Igreja da Boêmia poderia ser efetuada pelo
Rei da Boêmia, Venceslau, que apoiava Hus (1410). Ele procurava limitar os
poderes temporais da Igreja. Em 1411, o arcebispo de Praga lançou uma
interdição contra Hus. Venceslau ameaçou confiscar os bens eclesiásticos. A
Igreja lançou a interdição sobre toda a cidade. O rei decidiu confiar a um
colégio de árbitros o conflito entre Hus e o arcebispo. Dessa maneira, o Estado,
de acordo com Hus, tornou-se árbitro em matéria de fé e de constituição da
Igreja, fora dos poderes do papa e do Concilio. E Hus confiava no rei porque
ele estava de acordo com sua pregação.
Um segundo grande ponto do pensamento político de Hus é a importân­
cia que ele dá à Universidade: ele estima que, se a Universidade for bem
orientada, os estudantes que saem dela, chamados a tornarem-se o que nós
chamaríamos de os quadros da nação, orientarão as reformas social e política.
Daí sua luta para mudar a direção da Universidade (para dar um maior número
de vozes à nação boêmia e ao partido reformador [1409]). Em seguida a essa
reforma, confirmada pelo rei, os professores da “nação alemã” deixariam a
Universidade que vai, de verdade, tornar-se um centro de formação nacional.
Assim, Hus tende a modificar a política por meio da mudança da Igreja e da
Universidade.
Mas o aspecto talvez mais significativo de seu pensamento político é sua
tendência constante a relacionar tudo com o povo. É preciso constantemente
apresentar ao povo as questões (e isso correspondia bem a seu modo principal
de expressão: a pregação. Savonarola foi comparável a ele). Quando chegava
uma mensagem do Concilio, Hus a lia em assembléia popular. Orientava o povo
por meio de uma pregação contínua sobre a liberdade, lembrando que a

523
liberdade tem poucas chances de sucesso, mas que ela conduz a perseguições.
Pois, se o povo for fiel, resistirá às autoridades injustas. O que compõe a Igreja
justa são os pobres e a multidão dos crentes, que são a autoridade última. “E
ninguém deve obedecer a outro homem em o que quer que seja, quando esse
que comanda se opuser à verdade evangélica" (De Ecclesia, capítulos XVIII e
X). O exemplo mais típico dessa referência ao povo como autoridade última
(sobre a Terra) é, evidentemente, o texto que Hus chamou “o apelo ao Senhor
Jesus Cristo, juiz justo que conhece, protege, julga, revela e coroa ajusta causa
de cada um”. Hus acabava de ser condenado à excomunhão maior pela Cúria,
devia ser preso e julgado (julho de 1412); Hus respondeu por meio do “Apelo
último”, endereçado a Jesus Cristo (18 de outubro de 1412). Esse Apelo último,
onde ele prova que o único juiz legítimo é Jesus Cristo e não o papa ou o
Concilio, ele o fez ser afixado nas portas da Ponte de Praga, depois, em todos
os lugares públicos: era um manifesto que o povo devia conhecer para poder
tomar partido, enquanto “Igreja fora da Hierarquia”. Teoricamente, Hus tinha
razão em apresentar isso como apelo (processual) último. Mas era também um
apelo à ação popular. E ele o diz dentro do próprio texto: “Eis o que eu desejo
ver chegar ao conhecimento de todos os fiéis de Cristo...” Dizendo de outra
maneira, para Hus, a autoridade terrestre última é o povo.
Enfim o quarto ponto do pensamento de Hus é o duplo movimento de
ruptura e de continuidade entre o cristianismo e o poder. Ruptura, naquilo que
ele recusa radicalmente que é a religião ser um apoio para a instituição dentro
da sociedade. A religião não deve justificar nem legitimar nenhum poder,
nenhuma dominação, nenhuma desigualdade. Ela não deve inspirar um direi­
to, mesmo se for um direito canônico. E, de fato, ele recusa todo valor a esse
direito canônico (artigos do autor tirados do De Ecclesia, em resposta às
acusações de junho de 1415) (por exemplo, se bem que o papa seja designado
por uma eleição segundo o direito canônico, se ele viver de maneira contrária
a Cristo, isso provará que ele não foi educado por Cristo, mas por um outro
caminho). Mas, além disso, ele atesta uma outra relação entre cristianismo e
poder é a partir do Evangelho que deve ser avançada toda contestação das
estruturas sociais (se não, essa contestação não passa de uma revolta não-fun-
dada). E é a partir da Revelação que o homem deve julgar as autoridades. Por
exemplo, se um rei está em estado de pecado mortal, ele cessa a partir desse
fato mesmo de ser rei, e o povo não é mais obrigado a obedecê-lo. Mas a
principal relação é que, para Hus, a liberdade cristã deve produzir a liberdade
política, e esta, no que concerne ao povo tcheco, se deve inscrever dentro da
liberdade nacional.
Esses são os quatro eixos principais do pensamento político de Hus. Ele
não era milenarista, mas deu nascimento a um movimento que não podia
deixar de acontecer: realmente ele tinha um pensamento muito escatológico,
apresentava a situação como sendo “os últimos tempos”. Fez da comunhão
com o vinho um sinal escatológico (a taça tem uma função metafísica e ela se
tornará o símbolo concreto da revolução de Hus). A nova fé e a nacionalidade
tcheca vão se confundir no símbolo da taça. A resistência às autoridades é

524
justificada pelo acesso aos últimos tempos históricos, e cada um deve agir
segundo a revelação pessoal que recebeu. Muito rapidamente isso vai desem­
bocar sobre o sacerdócio universal, sobre a afirmação da soberania do povo,
da igualdade absoluta de todos e da comunidade dos bens. Porém, pode-se
então se perguntar por que um pensamento político, relativamente pouco
ordenado, teve sucesso (ali onde Wycliff fracassou). Isso se deve às circuns­
tâncias: Wycliff agiu dentro de uma nação já unificada e dirigida por um Estado
territorial. Hus agiu em face do Império, conjunto de Estados mal coordena­
dos, e coincidiu com uma sublevação de toda uma sociedade que começava a
se querer “nacional”. E ele encontrou a aprovação da pequena nobreza, da
burguesia e do povo (inclusive dos camponeses, o que será revelado quando,
cassado de Praga, foi enviado, como cura, para o campo), dentro de seu duplo
protesto eclesiástico e sócio-político.

• O p e ra o m tiia , ed. Moinar, Praga, 1959-1983, 5 volumes publicados; Morceaux choisis, em


J ea n H us, Paris, 1978, por A. Moinar.

► }. Boulíer, J ea n H us, Paris, Le Club français du Livre, 1958; E. Denis, H us e t la g u e rr e


Paris, 1930; Delaruelle, Lalande, Ourliac, H is to ire d e I ’É gIise, t. XIV, de Fliche et Martin;
h u ssite ,
J. Macek, J ea n H u s e t le s tra d itio n s h u ssites, Paris, 1973.

J a c q u e s ELLUL.
•:;i-f - Oííi-SiA ■■ 3V ■k- v •'.* .
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>'v<íl ssYwáíí- exúVi&fc'*;' *' v*

M.' í«W..-.-r.«
I
IBNTAYMIYYA, 1263-1326

Tratado de política jurídica, 1 3 1 1 -1 3 1 5

IBN KHALDÜN, 1332-1406


P rolegôm en os à H istória U niversal, 1 3 7 5 -1 3 7 9

Não há dúvidas para os orientalistas mais competentes de que a missão dos


sábios ÇUlama) muçulmanos é instruir e guiar o povo. A idéia de que a missão
essencial dos doutores do Islam é taíim wa-irshad (ensinamento e direção
político-religiosa da Comunidade) permite reter a especificidade dessa missão que
consiste em ensinar aos homens a Lei Divina e em levá-los por diversos meios
(pregação (da’wa), consulta (fatwa), conselhos aos Príncipes, vida exemplar e
militante...) a conformarem suas vidas pública e privada a essa Lei. Às vezes os
intelectuais conduzem até o fim (ao martírio) esta missão, outras vezes eles
“traem” alegremente seus Príncipes. Nesse sentido Ibn Tamiyya e Ibn Khaldün
representam dois tipos quase perfeitos de intelectuais árabes.
Numerosas causas políticas e econômicas precipitaram o “declínio" do
mundo muçulmano: o caminho da seda e das especiarias foi sobrepujado pela
dominação das frotas de Veneza e de Gênova e depois, principalmente, pelo
comércio espanhol e português entre os séculos XIII e XIV. As lutas intestinas
consumaram a decadência. E, no entanto, no Islã árabe em todo caso, foi no
século XIV que apareceram as grandes obras quase antinômicas de Ibn
Taymiyya e de Ibn Khaldün. Foi do primeiro que valeram os Reformistas dos
séculos XIX1 e XX e foi dele ainda que se se valeram os Islamistas que fazem
tremer o mundo árabe contemporâneo e outro tanto... a França. O segundo
será célebre por uma obra de historiador e de sociólogo na qual alguns vêem
as primícias do materialismo histórico.

527
Pareceu-nos interessante apresentá-los não mais juntos e comparativa­
mente, mas homoteticamente como os dois lados desse conjunto árabe-muçul-
mano, já que, enfim, o primeiro é sírio e viveu sobretudo no Egito sob a dinastia
mameluca, enquanto o segundo é um magrebiano que viveu a divisão dos três
reinos (Marrocos, Tunísia e Argélia) dessa “ilha do poente" que iria fascinar os
franceses alguns séculos mais tarde.

IBN TAYM1YYA

O interesse em estudar esse filósofo e jurista árabe, hoje em dia, no


Ocidente, atém-se ao fato de ele ser inspirador dos islamistas militantes, dos
programas dos combatentes radicais ditos "integristas” e da maioria das obras
teóricas islamistas.
Os escritos de Ibn Taymiyya e mais particularmente os Fatawa são
amplamente difundidos desde os anos de 1970, editados in extenso pela Arábia
Saudita, via Beirute.
Que ligação pode existir entre esse autor do século XIV de nossa era, isto
é, do século VII da Hégira, e esses agitadores temidos ao mesmo tempo pelos
regimes árabes locais e pelo Ocidente, que os mass media fustigam e amalga-
mam sob o vocábulo “integristas” e a denominação geral de Irmãos Muçulma­
nos (denominações errôneas...). A vida e a obra desse autor fornecem preciosas
informações para se compreender isso.
Taqi al-Din Ahmad Ibn Taymiyya morreu em Damasco no dia 26 de
setembro de 1326 (ano 729 da Hégira); nasceu em Harran em 661 (1263),
numa família de teólogos pertencentes à escola hanbalita. Seu pai dirigia em
Damasco um madrasa (colégio) a frente do qual ele o sucederá. Desde o ano
684 (1285), ensinou a exegese corânica na mesquita dos Ommeyades, em
Damasco. O que significa que com menos de vinte e cinco anos ele já era um
teólogo e um jurisconsulto notório. E está aí o primeiro traço que atrai sem
dúvida os islamitas: sua intransigência em matéria de Direito muçulmano, do
qual vamos dar os exemplos mais célebres, se faz acompanhar de uma
resistência constante às autoridades que se põem à margem da lei muçulmana.
Ele é, portanto, duplamente exemplar. Mas é preciso antes disso explicar em
uma palavra a originalidade do hanbalismo; isso nos permitirá expor os
grandes traços do pensamento de Ibn Taymiyya a fim de justificar, enfim, como
sua vida foi apenas a aplicação prática de sua filosofia.
A ortodoxia muçulmana (que os europeus chamam de sunismo) apresen-
ta-se sob a forma de quatro escolas maiores de interpretação jurisprudencial,
nascidas da necessidade de responder às questões que sublevavam a organiza­
ção de uma Comunidade muçulmana, que, partindo do Hejaz, atingem em
menos de cem anos o Oceano Atlântico, de um lado, e a China, do outro. Essas
quatro escolas (madhab) (que se traduziu impropriamente por ritos) foram
criadas, dentro da ordem cronológica, pelo ímãs que vão lhes dar seus nomes
respectivos: Abu Hanifa, morto em 767; Malik, morto em 795; ChaPi, morto em
820, e o último, Ibn Hanbal, que dará nascimento ao rito que nos interessa

528
aqui: o hanbalismo. Morto em 855, o ímã Ibn Hanbal marcou sua escola pela
preocupação com o respeiyo pela tradição corânica e profética. Mas não foi um
tratado de direito que Ibn Hanbal legou a seus discípulos: muitas vezes os
ocidentais não vêem que, se a ciência do direito e a “da palavra sobre (ou de)
Deus” são duas disciplinas diferentes, elas se reúnem dentro do concreto
existencial da fé vivida. Para Ibn Hanbal trata-se exatamente de uma visão do
mundo que ultrapassa o domínio jurídico e que se afirma tanto como doutrina
da fé quanto como práxis. Contrariamente às outras escolas ou doutrinas
muçulmanas que admitem a utilização da Razão para defender os dados da fé,
a escola hanbalita centra toda sua análise sobre a manutenção monolítica dos
dados da fé e dentro do respeito incondicional do texto escriturai. Porém,
contrariamente às aparências, essa escola - a mais rígida das escolas de direito,
já que o texto é a única prova indiscutível a seus olhos - será ao mesmo tempo
a mais aberta a certas aspirações do espírito e do coração, por estar ligada às
noções de justiça, sinceridade e retidão na ação, ela privilegiará, freqüente­
mente, mais o espírito do que as palavras do texto, ali onde outras escolas não
hesitarão em utilizar estratagemas para responder a uma questão.
É essa atenção atribuída pelo hanbalismo à crença popular, como vere­
mos, que está sem dúvida na origem do favorecimento do qual goza Ibn
Taymiyya dentro dos meios islâmicos, que, já se percebe, não são —a priori —
compostos de reacionários integralistas...
Ibn Taymiyya ensina assim que a fé pressupõe a submissão exata às
prescrições objetivas do Islã. Ela implica que o crente se enraíze dentro dos
sentimentos de temor a Deus, do abandono a Deus, da humildade e de suportar
pacientemente provações (Laoust, 1939). Por isso a luta contra os obstáculos que
constituem os defeitos pessoais será privilegiada: é o sentido nobre da palavra
Jihaá. o grande esforço sobre o caminho de Deus ao lado do qual a luta armada
contra os inimigos do Islã, ou pequena Jihâd, é por oposição e por analogia,
segundo a palavra do mártir místico Hallaj, “como um leve sopro de vento sobre
o mar agitado". A maior fonte de perigo para a Comunidade muçulmana não vem
dos inimigos exteriores, mas do interior, essa //ínafsedição, querela) que faz do
muçulmano o inimigo do muçulmano. É por isso que o combate mais importante
de todo muçulmano, o dever daquele que sabe, é combater os hipócritas, os
muçulmanos-traidores, os que querem separar o espiritual do temporal. Essa
noção de takfir2, (ação de declarar kâfír, incrédulo) servirá de tema principal a
certos grupos de "integralistas”, sobretudo no Egito com S. Qotb; eles acres­
centarão a ela, dentro da linha reta de uma clara interpretação de Ibn Taymiyya,
a obrigação ausente (“ausente” porque ela não faz parte dos cinco pilares do
Islã; não está inscrita no Corão) em referência ao título de uma obra de Abd
al-Salam Faraj: al-Farida al-ghà’iba. Faraj foi enforcado em abril de 1982 como
inspirador dos assassinos de Sadat
Ibn Taymiyya conheceu os rigores da repressão e o aprisionamento várias
vezes em sua vida e sempre pela mesma razão: sua intransigência doutrinai
mesmo em face dos poderosos: ele se bateu contra os Mongóis, contra os
Chiitas, contra os Ascaritas, mas também contra os místicos (os Sufis) e as

529
confrarias. Ele também foi objeto de numerosos ataques, perseguições e
intimação por parte das autoridades religiosas ou políticas, que tanto se
tornaram a seu favor - é uma das grandezas do Islã permitir a versão e a
controvérsia teológica e se remeter ao julgamento da pertinência das respostas
- tanto (cinco vezes pelo menos) lhe valeram a prisão: em 693 (1293), na Síria,
na cidadela do Cairo em 706 (1307), de novo em 1308 no Cairo, depois em
Damasco em 721 (1321), enfim na cidadela de Damasco em 726 (1326); em
728 (1328), retirar-lhe-ão os livros e penas, pois ele continuava seus ataques
(aliás, ele escreveu suas maiores obras na prisão) e em setembro de 1328 (no
dia 20 de dhü 1-ga’da 728) morreu, na prisão.
Compreende-se por que existe nesta vida um modelo para os islâmicos e
principalmente para os Irmãos muçulmanos: assim como ele, Sayyed Qotb,
'Auda e mesmo Hassan al-Banna foram aprisionados e martirizados, e, como
ele, escreveram uma parte de suas obras na prisão. Enfim, é a ele que todos se
referiram e mais parti cularmente Faraj, o autor de A obrigação ausente, quer
dizer, a obrigação do tiranocídio que inspirou o grupo Jihad que viria a
assassinar Sadat. O chefe do comando (al-Islambuli) gritou: “Matei o Faraó.”
Ora, Ibn Taymiyya falava, nesses termos, da política bem antes de Deleuze e
Gattari (em Mille plateaux, pág. 153). Ibn Taymiyya denunciava a “norma
Faraônica”: o que querem todos os poderes do mundo é que subsista apenas
o homem “normal”, isto é, o que é conforme à norma do mundo profano, o
que sobretudo não quer saber que existe o exílio...
A influência das idéias de Ibn Taymiyya foi constante durante vários
séculos, se bem que seu pensamento tenha dividido os teólogos. A conquista
otomana - que trazia a preponderância oficial de uma outra escola, o hanfismo
—provocou reações de diversos tipos, entre os quais espirituais: Muhammed
ben’Abd al -Wahhab (1705-1787) retomou as idéias de Ibn Taymiyya para dar
nascimento ao wahhabismo, doutrina puritana que serviu de base ideológica para
o estabelecimento da dinastia dos Ibn Sa’ud, mas esse movimento fundamentalis-
ta se chamava de fato os Unitários (os Almohadesf e tomou em seguida o nome
de seu instigador hanbalita fervoroso, nutrido por Ibn Taymiyya.
Não há o menor paradoxo em se constatar hoje em dia que é em nome
do mesmo Ibn Taymiyya que os islâmicos denunciam a perversidade da Arábia
Saudita - pelo menos a de sua classe política. Realmente, não há dúvida para
eles, assim como para Ibn Taymiyya, de que o grande combate (Jihad)
indissociavelmente espiritual, moral e policial, até mesmo de rebelião e de
subversão, é um combate permanente, uma guerra interna de depuração e ao
mesmo tempo uma experiência mística, política e militar.•

• A quase-totalidade das obras de Ibn Taymiyya está reeditada atualmente, em particular pela
Arábia Saudita: encontra-se, portanto, bastante facilidade para consultá-la em árabe. O grande
especialista e tradutor francês de Ibn Taymiyya é H. Laoust a quem se deve várias obras: Essai
s u r le s d o c tr in e s s o c ia le s e t p o lltlq u e s d ’Ib n T a ym iyy a , IFAO, Cairo, 1939; C o n tr ib u itio n â u n e
é tu d e d e la m eth o d o lo g ie c a n o n iq u e d ’lb n T a ym iyy a . Henri Laoust é, além disso, o autor de
uma série de artigos eruditos sobre Ibn Taymiyya em revistas orientalistas especializadas e

530
também de uma tradução de uma das obras mais importantes dele: K ita b a l-S iya sa a l S h a r ’iy y a
(T ra ta d o d e p o lític a ju r íd ic a ), P1FD, 1948, e L e T ra ilé d e d r o it p u b lic d 'lb n T a ym iyya .
T ra d u c tio n a n n o té e d e la S iy a s a s a r ’iy y a , Beirute, Institut français, 1950; enfim ele é o autor
da rubrica “Ibn Taymiyya" na E n c y c lo p ê d ie d e U s la m , pág. 976 sg., que serviu de base na
elaboração desta nota. Pode-se consultar igualmente Louis Gardet, L e s h o m m e s d e 1’Islam ,
Paris, Hachette, 1977.

IBN KHALDÚN

A atualidade de Ibn Khaldún é de uma outra natureza: ela é objeto de


uma disputa dramática entre os cléricos árabes, cléricos “modernistas e
tradicionais”. A existência de Ibn Khaldún - e sobretudo a parte mais viva de
sua obra, a Moqaddima- permite a alguns sustentar que os Árabes podem
passar sem o marxismo, o positivismo e todas essas ciências “ocidentais”, já
que precisamente Ibn Khaldún seria não somente precursor deles, mas até
mesmo seu inventor, e isso, dentro da cultura árabe, e isso, no século XIV.
Wali al-Din 'Abd al-Rahman ben Muhammad ben Muhammad Abu Bakr
Muhammad ben al-Hasan Ibn Khaldún é um intelectual muito diferente de seu
predecessor Ibn Taymiyya; chega mesmo a ser seu oposto: traiu regularmente
seus protetores e foi um materialista temeroso que não se bateu por suas idéias
e correu constantemente atrás de honras. Nasceu em Túnis no dia 27 de maio
de 1332 (lfi Ramadan 732), em uma família vinda de Sevilha depois de etapas em
Ceuta e Bejaia; recebeu uma educação muito sofisticada da parte dos maiores
mestres muçulmanos da época. Desde a idade de vinte anos começou uma série
de périplos que o conduziram —enriquecendo-o intelectualmente - da corte de
Fez à de Granada, por desvios complexos (Biskra, Bejaia, etc.). Essa peregrinação,
que durou mais de trinta anos, foi suspensa em duas ocasiões: na primeira, em
um retiro em Oran, escreveu sua História universal da qual se tratará neste
artigo, e a segunda que o levou —como era natural para todo magrebiano —em
direção ao Oriente; instalando-se no Cairo, mas indo também para Damasco,
morreu no Cairo em 26 do mês de Ramadan de 808, isto é, em março de 1406,
quanto tinha mais de setenta anos. Como Ibn Taymiyya, conheceu a desgraça e
o aprisionamento várias vezes em sua vida, mas, se evoquei suas “traições”
anteriormente foi para situar a diferença existente entre os dois personagens:
nessa época, a única traição impensável era a apostasia, e o Dar el-Islam não
estava ainda dividido em Estados-naçÕes sectários e fechados: todo muçulmano,
principalmente letrado, viajava e se punha aos serviços de Príncipes dentro de
uma relação de homem a homem. Ora, foram precisamente as lutas que
dilaceraram seu tempo que suscitaram toda a lucidez de análise - a maior de
suas virtudes - de Ibn Khaldún. Ainda que a tradição muçulmana seja mais
apologética, ele vai inventar literalmente a história moderna. É a introdução
(al-Muqaddima) à sua História universal (Kitab al-’lbar) que contém o essencial
de seu pensamento. Foi entre 1375 e 1379, na calma do castelo de Ibn Salama
(nome predestinado!), que o banal clérico que ele poderia ter sido durante toda
sua vida começou a decifrar o sentido da história: e ele compreende e explica!
Tornou-se historiador universal. O eixo principal de suas observações foi o

531
estudo da "Etiologia dos declínios” (M. Talbi, artigo na Encyclopédie de VIslam,
pág. 853, isto é, o estudo comparativo dos sintomas e da natureza dos males por
meio dos quais morrem as civilizações. Ibn Khaldün, testemunha ativa de uma
gigantesca mudança do curso da história, fez o balanço do passado e dele tirou
lições (é o sentido do título 'Ibar)... bem antes de Hegel. Com efeito, rompidos
os mecanismos do pensamento árabe ao mesmo tempo analógico e racional,
(re-)descobriu a dialética e refutou a filosofia; alcançou uma concepção dinâmica
de desenvolvimento (dialética) do destino do homem e uma história retros­
pectivamente inteligível, racional e necessária.
Para chegar, nessa época, a tal resultado, Ibn Khaldün, que teve a
consciência de criar uma ciência nova, a ciência da sociedade inteira (’llm
al-Vmran), utilizou as diferentes ciências conhecidas em sua época, a mate­
mática e a psicologia, incluindo a economia e utilizou métodos quase científi­
cos: sua idéia foi ilustrada por sua teoria dos ciclos, em resumo banal tanto na
filosofia árabe helenizada quanto na mística muçulmana saída de Plotino.
Existe, com efeito, na tradição árabe, uma ordem do mundo calcada sobre
a teoria das esferas (ao mesmo tempo platônica, neoplatônica e plotiniana),
banalizada por al-Parabi, filósofo que introduziu o Organon,de Aristóteles,no
pensamento árabe do século IX. Essa teoria será em seguida desenvolvida pelos
místicos muçulmanos e, mais particularmente, por Cheikh al-Akbar Ibn Arabi.
Mas a originalidade de Ibn Khaldün se deve ao fato de ele secularizar, de ele
tornar leigos os ciclos: para ele a cidade e a urbanidade acabam por perverter os
homens, enquanto os lobos que acampam na periferia dentro do sistema tribal
continuam a praticar a solidariedade Çaçabiytja) e, quando a cidade está podre,
não somente eles a tomam de assalto como também vão regenerá-la... depois eles
se pervertem por sua vez, e o ciclo recomeça, pois há sempre nômades que
rondam na periferia da Civilização (existe em árabe uma denominação que
corresponde exatamente ao primeiro sentido do vocábulo grego clássico: ‘‘oi
Barbarox" e que designa aqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer
a língua árabe). Porém, além disso, Ibn Khaldün forjou conceitos: o mais célebre
é a \açabiyya cuja tradução foi objeto de controvérsias que serão assinaladas
mais adiante, digamos para simplificar Vesprit de corps, solidariedade.
Nesse sentido pode-se sustentar que Ibn Khaldün descreveu a solidarie­
dade antes de Durkheim, a civitas/societas antes de Morgan e a Gemeins-
chafí/Gesellschhaft antes de Tõnnies. Mas nem Gramsci, nem Marx - que eu
saiba - conheceram a obra de Ibn Khaldün.
Existem boas traduções da Muqaddima e da História universal (cf. bibl.).
A obra cuja introdução (geralmente intitulada Les Prolégomènes de Ibn Khal­
dün) constitui a parte mais interessante e se apresenta assim: Une préface à
Vintroduction (Um prefácio à introdução) no qual Ibn Khaldün definiu a História
e lançou as bases da crítica histórica: esta deve repousar sobre a adequação ao
real. Le corps de Vintroduction (O corpo da introdução) desenvolveu essa
ciência nova e independente que preconiza Ibn Khaldün. A própria exposição
está dividida em seis grandes capítulos: o capítulo 1 trata da sociedade humana
de uma maneira geral. O autor delineia aí um estudo do meio e de sua influência

532
sobre a natureza humana; uma etnologia; e uma antropologia. O capítulo 2 trata
das sociedades de civilização rural. 0 capítulo 3 trata das diferentes formas de
governo; dos Estados; e das instituições. O capítulo 4 trata das sociedades de
civilização urbana, isto é, das formas mais evoluídas da civilização. O capítulo 5
trata das indústrias e do conjunto dos fatos econômicos. O capítulo 6 trata das
ciências, das letras e do conjunto das manifestações culturais.
Os dois conceitos que parecem mais importantes dentro desse conjunto,
colocando à parte a ’açabiyya já assinalada, são Vmran badawi e Vmran
hadari, dizendo de outra maneira, a “civilização” com relação à ruralidade
(beduinidade). Mas o que parece marcante é constituído pela articulação dialética
entre os seguintes conceitos: Badiya —Açabiya —Dawa —Mulk —Hadara —
Ma'ach —Ulum*: para encurtar, Ibn Khaldün compreendeu - antes de Weber —
as categorias Vereine/AnstaW definindo a civilização como urbana: só existem
os campos porque existe uma cidade, pensada. Eis a definição mais evidente (sob
reserva de minha má tradução): a civilização (Hadara) é a coabitação equilibrada
(Tasakun wa Tawasuk) dentro das metrópoles (misr) ou nos lugares retirados
(fíilla) a fim de se humanizarem ('Uns) se agregando ÇAsir) e de satisfazerem
suas necessidades que por natureza exigem a cooperação (Ta‘awun) para a
substância (Ma’ach). (Não se trata de uma citação exata, mas de uma montagem).
A articulação se faz em torno e por meio da D a‘w a (o apelo) e para Ibn Khaldün
—porque os outros filósofos árabe-muçulmanos pararam no sentido teológico de
Da'wa —até nas ciências: 'Ulum...
Ora, curiosamente, essa obra de Ibn Khaldün - pois sua outra obra, a do
jurisconsulto ou suas memórias, é imensa - permanece desconhecida dos Árabes
até o século XIX. Porque justamente a originalidade do seu pensamento o fez
assumir posições contra os filósofos árabes em dois pontos pelo menos:
1) Contra Ibn Rosch (Averroés), que sustentava que o prestígio pertencia
aos mais antigos citadinos, Ibn Khaldün afirmou que o nervo secreto da vida
humana em sociedade é a 'açabiyya, isto é, o “reagrupamento solidário”,
"beduíno”, “tribal”, em todo caso não-primitivamente citadino. Em conseqüên­
cia, O (fato) político, para Ibn Khaldün, não começa na Polis (cidade), e se
estende às formas mais variadas e mais freqüentemente anteriores.
2) Contrariamente à tese árabe-muçulmana da necessidade de um poder
político-escatológico (por causa da Profecia maometana), Ibn Khaldün sustentou
que o poder político é inseparável da sociabilidade porque ele é apenas um dado
humano contingente sem referência essencial à religião - mesmo quando o Islã
marca a Cidade com suas normas e valores. A forma de poder político não tem,
portanto, nenhuma importância. Só o espírito de grupo ('açabiyya) e sua ligação
raciona] com a sociabilidade constituem o fermento do político organizado. Todo
o resto é só uma questão de controle e de repressão.
Esse resumo por demais abreviado trai um pensamento complexo, de tal
modo revolucionário, que espantou seu próprio autor: ele dá lugar ainda hoje
a numerosas interpretações, e colóquios lhe são regularmente consagrados, em
que se confrontam tradicionalistas, modernistas e... recuperadores! Pois, se o
pensamento de Ibn Khaldün serviu para justificar a colonização, serve hoje em

533
dia para legitimar o “progressismo” de certos nacionalistas árabes. Realmente,
por um lado a tradução (parcial) de de Slane (cf. bibl.) que fez furor perto dos
intelectuais ocidentais, sustentando a obra civilizadora da França, serviu para
justificar a política berbere na Argélia e mais tarde no Marrocos, a partir do
tema da originalidade democrática dos berberes e da catástrofe árabe no
Magrebe (Carette, de Slane, F. Gauthier e mesmo G. Bouthoul desenvolveram
essa tese) e, por outro lado, a incontestável concepção materialista da História
de Ibn Khaldün permitiu a alguns ver nele o Marx árabe e a outros sustentar
que, já que Ibn Khaldün existia, podia-se - graças a Deus - deixar de ensinar
a obra de Marx à juventude magrebiana.
Ora, é verdade que se encontra em Ibn Khaldün ao mesmo tempo a
descrição do terror hilaliano6 que fez tremer gerações de burgueses magrebianos
e que pareceu, assim, justificar seu antiarabismo. Assim como é incontestável que
se encontre facilmente em Ibn Khaldün um racionalismo muito avançado para
seu tempo - ainda que os ocidentais pareçam muitas vezes esquecer que o
mundo árabe produziu um pensamento desse tipo ao menos com os Mu’tazilitas,
no século IX, e seus predecessores, os Zindiks (Razi, Ibn Rawandi, etc.). E, se é
verdade que o dogmatismo teológico cobriu às vezes o mundo árabe-muçulmano
com uma capa que impede o esforço de interpretação (Ijtihad) e fecha as portas
da inovação, Ibn Khaldün foi o primeiro a escrever que a História começa quando
os povos compreendem que não são regidos unicamente pela Providência.
Acrescentando ao longo de sua obra —o que teria tornado Marx radiante, mas
que se sabe que os Pais- fundadores e, sobretudo, Engels escreveram muitas
bobagens sobre o Islã - que as diferenças percebidas entre as gerações em suas
maneiras de ser são apenas a tradução das diferenças que as separam em seu
modo de vida econômico...

► Os artigos mais recentes e mais precursores sobre o debate que agita a própria existência de
Ibn Khaldün no mundo árabe me parecem ser os de M. Talbi na E n c y c lo p é d ie de 1’Isla m , nova
edição, pág. 849 e segs, e os de 0. Carré, entre vários: É th iq u e e t p o litiq u e c h e z Ib n K h aldü n ,
j u r is le m u su lm a n : a c tu a lité d e s a ty p o lo g ie d e s s y s tè m e s p o litiq u e s, L 'A n n é e so c io lo y iq u e ,
1974-1980, pág. 109 e segs.
A bibliografia em torno de Ibn Khaldün foi objeto de publicações inteiramente consagradas só
ao repertório dos títulos... até em japonês. Existem várias obras disponíveis em francês que são
consagradas ao pensamento econômico e político de Ibn Khaldün, mas que não são de fato
arabizantes; em compensação, esses não dão sempre prova em suas traduções de conhecimentos
suficientes dos desenvolvimentos atuais da ciência política...
Poder-se-á ler, com algumas precauções (os autores que valorizaram o “materíalismo pré-mar-
xiano/ista” de 1. K.): G. Labica, P o litiq u e e t re lig io n c h e z Ibn K h a ld o u n , e s s a i s u r 1’id e o lo g ie
m u su lm a n e, Argélia, SNED, 1968; Y. Lacoste, Ib n K h a ld o u n : n a is s a n c e d e V H istoire, p a s s é du
T iers M o n d e, Paris, Maspero, 1966, reimpresso sem revisão, em 1979.
Esses dois autores trabalharam sobre a tradução de de Slane, que foi contestado pelos
orientalistas atuais, pois existem vários manuscristos da H isto ire u n iverselle, entre os quais um
corrigido à mão pelo próprio Ibn Khaldün. Trata-se do manuscrito n°. 1936 da biblioteca Atif
Effendi (Bursa, Turquia) jamais editado em árabe, mas que serviu para as duas melhores
traduções conhecidas: a em inglês, de Franz Rosenthal, Ib n K h a ld o u n , th e M o u g a d d im a h : A n
in tro d u c tio n to H is to r y , 3 vol., Nova York, Bollingen Foundation, 1958; e a de Vicent Monteil,

534
Ibn K h a ld ü n , D isc o u rs s u r V H istoire u n ive rse lle : A l-M u qaddim a, 3 tomos, Beirute, Commis-
sion internationale pour la traduction des chefs-d’oeuvre, 1967-1969. A tradução de de Slane
apareceu pela primeira vez em Paris, em 1868, sob o título L e s p ro lé g o m è n e s d ’Ibn K h a ld u n ,
3 vol., Impremerie nationale, reeditada várias vezes por Maisonneuve. De Slane publicou
também em 1852-1856, em Argel, uma H is to r ie d e s B e rb è re s d e s d y n a s tie s m u su lm a n e s d e
1’A friq u e s e p te n tr io n a le , tradução dos dois últimos volumes do K ita b a l-’b ar, reeditada pela
livraria orientalista Geuthner, em Paris, de 1925 a 1956. Enfim, parece útil assinalar, para
compreender os avatares dessa obra, uma recente tradução notada a que não falta espírito:
Abdesselam Cheddadi, L e v o y a g e d V c c id e n t e td V r ie n t: a u to b io g r a p h ie , Paris, Sindbad, 1980.
Enfim, poder-se-á referir-se, com precaução, igualmente a G. H. Bousquet, Ib n K h a ld o u n , L e s
te x te s so c io lo g iq u e s e t é c o n o m iq u e s d e la M o u q a d d im a , 1375-1379, classificados, traduzidos
e comentados por G. H. Bousquet, Paris, Mareei Rivière et Cie., 1965.

B r u n o ETTIENNE.

NOTAS
1. Ibn Taymiyya é a fonte direta do pensamento dos iniciadores do movimento salafista
reformista: J. Eddine al-Afhghani, Mohammed Abdu; Racliid Rida depois Ben Badis, al-Fassi.
Contrariamente a seus sucessores intelectuais da segunda metade do século XX, eles admitiam
o despotismo "justo".
2. Por zombaria a polícia egípcia designará um dos grupos mais radicais de militantes
islâmicos, opostos a Sadat, pela denominação ta k fir w a h ijra (Excomunhão/emigração ou
anátema e fuga para o deserto...) Esse título servirá em seguida de facho e de símbolo para
numerosos militantes...
3. Os Almohades, al-M u w ah h idu n , os Unitários. Esse termo já havia sido utilizado por
um movimento comparável no século Xll no Marrocos, movimento que iria em seguida
conquistar uma parte do Magrebe e da Espanha.
4. Beduinidade/ruralidade... Espírito de grupo/solidariedade. Apelo. Poder político.
Civilização. Necessidades econômicas. Ciências.
5. Associação comunitária/estabelecimento: a sua experiência privilegiada do grupo
comunitário (de l'U m m a se transforma logo que se fixa em Cidade ou em Estado-dinastia.
6. Os Beni Hillal, tribo árabe que “explode” sobre o Magrebe no século XI, “parecidos
com lobos esfaimados, com uma nuvem de gafanhotos”... Os historiadores contemporâneos
levaram essa catástrofe às mais modestas proporções, mas o fantasma ficou.

535
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JAURÈS, Jean, 1859-1914
História socialista da Revolução Francesa, 1901-1904

“Fui sempre um republicano e sempre fui um socialista", escreveu Jaurès


em 1904. A escolha da Histoire socialiste de la Révolution française (História
socialista da Revolução Francesa) repousou sobre duas hipóteses ligadas a
esta afirmação: essa fórmula caracteriza perfeitamente o pensamento e o
projeto de Jaurès, ela sintetiza a importância de sua obra na história das idéias;
além disso, esse livro, por seu próprio objeto, é o lugar privilegiado onde se
exprime em toda sua amplitude essa dupla ancoragem.
Em projeto desde 1892, começada a pedido do editor Ruff em 1897, a obra
começou a aparecer em fevereiro de 1900, anunciada por grandes cartazes
vermelhos nos muros e paredes de Paris. A obra é, sob todos os aspectos,
monumental. Antes de tudo por ser um monumento erguido à Revolução
Francesa. Nesse aspecto, trata-se do texto em que Jaurès foi mais profundamente
republicano, pois o foi em numerosos outros, como em seu Prefáce aux discours
parlementaires em que ele disputa a República com os radicais, mas aqui, com
essa força suplementar que dá o gèsto da celebração de uma memória que foi o
fundamento da comunidade republicana apenas saída do combate do caso
Dreyfus. A obra é também monumental por seu tamanho, visto que ela explode,
ultrapassa seus próprios quadros, a começar por aquele da cronologia. É nisso,
de uma maneira que lhe é própria, que, aqui, Jaurès é socialista, pelo fato de o
acontecimento tomar sentido sobre esse horizonte de pensamento. O autor é,
então, socialista, como em todos os seus textos, nos debates no âmbito do
movimento operário francês, em sua vida política, mas com a amplitude que dá
ao ideal sua inscrição em uma história que transcende as lutas contemporâneas
entre igrejinhas. Acrescento que é significativo que, além de L ’armée nouvelle
(O novo exército), livro de grande riqueza, mas encerrado dentro dos limites de
seu objeto, esse seja o único que Jaurès tenha concebido e construído como um
todo, como uma obra, aliás, inscrita em seu projeto coletivo.

537
0 trabalho é, antes de tudo, o de um historiador, atento a seu método e
aos quadros de sua análise; ele se desenvolve em três dimensões estreitamente
ligadas. A do acontecimento primeiro de tudo, que dá, pela cronologia, o
princípio maior de organização do livro e deixa aparecer no correr do tempo
os momentos essenciais, mas também o peso dos homens. A de outra parte que
é como o horizonte sobre o qual se desenvolve, a fresco, o socialismo que
Jaurès inscreve ou deixa se representar nas idéias e na lógica dos fatos. Enfim,
a democracia dá ao projeto sua última coerência, intelectual, política ou,
simplesmente, humana.
A Histoire socialiste de la Révolution française é antes de tudo uma obra
de historiador; e, mesmo se Jaurès não desenvolve uma teoria da história, ele
domina perfeitamente seu andamento, e sua análise repousa sobre um modelo
que é possível reconstruir. Esse modelo, eu o procurarei nas indicações que
dá o autor sobre seu método, para controlá-lo em seguida pela administração
global do trabalho. O método de Jaurès me parece proceder de uma dupla
recusa. Em primeiro lugar a de uma concepção puramente idealista da história,
da qual Taine teria fornecido o arquétipo. Este, fazendo pouco caso dos fatos
e de seu conhecimento preciso, produz apenas uma “escolástica fútil” (1,106).
Ao contrário, Jaurès acumula uma documentação importante e assegura com
rigor a multiplicação das fontes e sua crítica. Mas, ao mesmo tempo, recusa
praticar uma história estritamente “marxista” e explica isso em três vezes. Em
primeiro lugar ele observa os “limites do que se chamou o método ‘marxista’
em história” (1,1104). Prossegue dizendo que, se a explicação dos acontecimen­
tos pelas relações de classe é um bom guia, “ela não esgota a realidade da
história” (ibid.). O resíduo inexplicado aqui resulta das “diversidades indivi­
duais” e é preciso deixar um papel para os homens com suas consciências, suas
paixões que são ora grandeza, ora fraqueza, em uma história que os confronta
com o fato de que pertence mais a problemas “acima das forças humanas" (VI,
516). Jaurès vai mesmo mais longe e retorna ao argumento utilizado por Marx
contra o idealismo, dizendo: “Isolado, o movimento econômico é só uma
abstração” por mais que ele ignore os fatores de ordem política ou intelectual;
a conclusão é severa: “Seria perigoso considerar o materiaiismo econômico
como uma explicação adequada da história” (IV,41). Está aqui o movimento
das idéias que Jaurès chama em apoio a sua história. Enfim, no momento em
que ele se interroga sobre o sentido da luta entre Girondinos e Montagnards,
Jaurès recusa-se a ver um “conflito de classe”, para avançar a tese de um
“conflito de partido”. E ele se defende com vigor contra a concepção do político
como “reflexo” do econômico, contra a aplicação “genial e infantil” que faz
Marx de seu método, para afirmar: “ Fora das afinidades ou dos antagonismos
econômicos, formam-se grupamentos de paixões, interesses de orgulho, de
dominação que se disputam à superfície da história e que determinam vas­
tíssimas perturbações” (V, 823).
Em todo caso, é claro, que Jaurès não nega o peso dos fatores econômi­
cos, mas ele liga a ação deles à dos homens e das idéias. Em outros termos,
existe em Jaurès autonomia do político, assim como existe autonomia das

538
idéias, o que deixa uma série de esferas de atividades para as lógicas diferentes
que o historiador põe em relação. É nesse sentido que Jaurès coloca sua
história sob “ a tripla invocação de Marx, de Michelet e de Plutarco” (I, 68). E
ele confessa querer fazer uma interpretação da história ao mesmo tempo
“materialista com Marx e mística com Michelet” (1,66). Essa concepção da
história desemboca sobre um modelo de causalidade muito afastado daquele
da obra de Marx, por exemplo. A análise feita por Jaurès das “causas” da
revolução prova isso. Pode-se aqui distinguir sistematicamente vários regis­
tros. De um lado causas pesadas, na primeira fileira, entre as quais as
estruturas econômicas e sociais. Jaurès analisa com precisão a nobreza e a
“rede múltipla e pesada” (I, 76) mediante a qual ela encerra a vida camponesa
(cita a esse respeito Tocqueville), a burguesia e as diferentes frações dessa
classe dos “filhos do mundo moderno" (1,112), mas também o peso da Igreja
e enfim da monarquia “historicamente incapaz” (I, 83). Assim se explica a
exasperação camponesa que encontra a maturidade “social” e “intelectual” da
burguesia filha da “filosofia generosa do século XVIII” (I, 110). Esta é a
segunda causa de peso: “O espírito filosófico” (I, 103-111) do qual a burguesia
é portadora. Em resumo, o estudo das forças sociais (em particular da
exasperação da rusticidade) e do movimento econômico e industrial permite a
Jaurès mostrar, no começo de 1789, a existência de “recursos profundos de
revolução” (1,98). Mas a esses recursos devem ser acrescentados “para que uma
revolução arrebente (...) um começo de força e, conseqüentemente, esperança”
(1,97); a força é a da burguesia, a esperança, a suscitada pela reunião dos
Estados gerais nas campanhas. Sempre, para Jaurès, o esquema não pode ser
mecânico e é necessário que a essas causas estruturais se acrescente uma
"oportunidade”, a oferecida pelo déficit das finanças da realeza. Desde logo
aparece bem a complexidade do modelo de causalidade no qual raciocina
Jaurès: o déficit que provoca a reunião dos Estados gerais não poderia ser
suficiente para desencadear a revolução, o acidente não explica tudo, e,
sozinhos, o espírito filosófico e a maturidade social da burguesia deram a essa
Assembléia a “força de durar e de querer” (1,102).
Porém aparecem, contudo, causas pesadas e fatores acidentais em que
o peso dos homens e das idéias se juntam aos determinantes sociais e
econômicos. O modelo de explicação histórica está mais próximo do de
Tocqueville do que do de Marx. “Detesto, de minha parte, dizia Tocqueville
analisando a revolução de 1848, esses sistemas absolutos que fazem depen­
der todos os acontecimentos de grandes causas primeiras se ligando umas
as outras por uma corrente fatal, e que suprimem, por assim dizer, os
homens da história de gênero humano” (Tocqueville, 1964, pág. 84). A
concepção tocqueviliana da causalidade em história está muito próxima da
de Jaurès: “causas gerais” mais ou menos pesadas (instituições, mentali-
dades, estruturas sociais), mas também “acidentes” que provocam uma
espécie de cristalização e que são essencialmente feitos dos homens. Esse
modelo de explicação se encontra na própria estrutura da composição do
livro, organizado pela cronologia dos acontecimentos (essencialmente políti-

539
cos) com, entretanto, vastos cortes transversais consagrados ao estado da
economia, do movimento das idéias ou do contexto europeu (todo o tomo 4).
Enfim, a prática que Jaurès tem da profissão de historiador é es­
pantosamente próxima da que podem ter Marc Bloch ou Fernand Braudel, por
exemplo. Com o primeiro ele admitiria sem dúvida que "o monismo da causa
seria para a explicação histórica só um embaraço”; procura “séries de ondas
causais e não se assusta, já que a vida as mostra assim, por encontrá-las
múltiplas” (Bloch, 1959, pág. 101). Jaurès, além disso, quando observa que “a
vida da antiga França era infinitamente mais lenta do que a nossa” (I, 115),
está atento aos ritmos da história, às temporalidades diferentes que animam
os diferentes registros da vida dos homens. Concede, enfim, um olhar atento
e um papel importante ao que Braudel chamaria de “estruturas do quotidiano”
(Braudel, 1979, t I), quando ele pára, por exemplo, sobre a história inscrita
nas paisagens urbanas (1,215), sobre a importância do pão na vida dos
parisienses (I, 210), ou quando encontra nos cadernos de lamentações o
"espelho da comunidade” (I, 348) que lhe permite descrever com sutileza e
precisão a existência dos homens.
É esse modelo preciso e complexo de explicação histórica que permite a
Jaurès, escrevendo a história da Revolução Francesa, ser realmente historiador
por um lado e por outro lado ser, se assim se pode dizer, Jaurès.
É precisamente distinguindo níveis e tempos históricos diferentes, reco­
nhecendo uma autonomia do político (homens e partidos), mas também do
movimento das idéias, que ele pode trazer sobre a Revolução um olhar em que
o encontram inteiramente. Realmente, Jaurès pensa e trabalha numa espécie
de espaço de três dimensões em que se desloca sua interpretação da história.
A primeira é a do acontecimento; a lógica é a dos fatos e dos homens, de suas
paixões, de seu confronto com as instituições e com outros homens; o ritmo
aqui é rápido em um período de crise. A segunda dimensão é a do socialismo
que, de uma parte, dá o paradigma de análise (a tensão “revolução burguesa”
/ “revolução socialista”), da outra, o horizonte sobre o qual se projetam o
acontecimento e sua interpretação; a lógica é a dos limites inerentes a essa
revolução, mas também dos germes que ela traz: a temporalidade é uma longa
duração, orientada em direção ao futuro. Finalmente, Jaurès liga essas duas
dimensões à da democracia como valor anterior e superior que dá sentido a
essa história; a lógica é, então, a das idéias em um tempo que é quase suspenso
acima dos atores que agem em nome da própria humanidade.
Na dimensão do acontecimento, dois níveis podem ser isolados, o dos
momentos sobre os quais Jaurès se detém e o dos homens que ele esclarece.
Concernente ao primeiro ponto, sua originalidade se limita à acentuação
diferencial dos tempos fortes e às lições que tira deles. Pode-se parar sobre
alguns acontecimentos privilegiados.
Os Estados gerais são para o autor momento de intensa emoção e lugar
de algumas lições importantes. A emoção é primeiro a que provoca a leitura
dos cadernos de lamentações que Jaurès cita com abundância. Alguns entre
eles são "a expressão suprema da literatura francesa do século XVIII (...) a

540
maior literatura nacional que um povo possui” (1, 281). Jaurès encontra aí a
invenção dos direitos do homem, mas sobretudo os traços do estado real do
país: o nascimento de um proletariado urbano, o espírito de um povo que não
se revolta contra a miséria (era a tese de Michelet), mas antes de tudo por
direitos.Certos fatos (a questão do voto por ordem ou por cabeça) Jaurès tira
dos ensinamentos táticos: aceitar um privilégio eleitoral para a nobreza
permitiu ligar à Revolução uma fração sua, “boa lição para os proletariados
não negligenciarem nenhum detalhe, nenhum elemento de ação, mesmo
indireto e longínquo” (I, 277). Esse período e o que segue permitem tirar
algumas lições de história. Antes de tudo a Assembléia é para Jaurès a
exposição vibrante da força da burguesia e, mais ainda, de sua legitimidade
histórica imediatamente. Em sua imensa confiança em si mesma, a burguesia
é, então, grande, levada como é pelo espírito do século XVIII. Essa grandeza
se resume inteiramente na Declaração dos direitos do homem e do cidadão
sobre a qual voltarei no momento de considerar a dimensão da obra de Jaurès
ligada à democracia. No entanto, a burguesia pôde ser tão cruel no momento
da tomada da Bastilha, e foi essa a primeira denúncia feita por Jaurès da
violência, da qual lhe agrada que tenha sido Babeuf quem como espectador
tivesse assistido ao acontecimento que mostra espontaneamente seu perigo:
“E vocês proletários, lembre-se de que a crueldade é um resto de servidão. ” A
lição foi retida por Jaurès e ele a endereçou aos “dirigentes de hoje em dia”:
“Coloquem desde agora, lhes diz ele, nos costumes e nas leis o máximo de
humanidade que se possa para reencontrá-la no dia inevitável das revoluções”
(I, 428). Enfim, esse período oferece a Jaurès os meios de uma reflexão lúcida
e serena sobre a contingência histórica, o peso dos fatos e das mentalidades o
qual é preciso levar em consideração para agir. O fato de, em 23 de junho de
1789, a Assembléia não ter querido destruir a monarquia era talvez "necessá­
rio”, diz Jaurès (I, 397) e ele liga essa necessidade à tradição “tão forte” da
monarquia face a uma idéia de República “estranha aos espíritos”. Encontra-se
aqui o realismo do qual Jaurès quererá sempre a garantia em sua ação política,
mas também, como historiador, a consciência da importância das idéias.
Encontra-se de novo essa dupla dimensão na análise freqüentemente feita da
religião com a qual o pensamento do século XVIII não rompeu, que impregna
ainda os pensamentos de certos revolucionários, que banha inteiramente a vida
do povo de 1789. É nesse realismo inspirado por uma observação precisa das
mentalidades que se reabastece a noção jauresiana de uma fusão necessária
entre elementos sociais diferentes: o socialismo apoiado sobre o proletariado
só poderá triunfar encontrando uma aliança com os camponeses; o que mostra
a recepção das idéias revolucionárias nos campos, o que torna “preciso que o
socialismo saiba religar os dois pólos, o comunismo operário e o individualis­
mo camponês” (I, 771). Assim aparece para Jaurès a riqueza do período da
Constituinte: o sistema feudal está “mortalmente ferido”, a arbitrariedade real
foi abolida, esboça-se um conflito social que conseguirá se exprimir por meio
de uma Constituição não-rígida. Essa riqueza contrasta com a mediocridade
dos debates de uma Legislativa que Jaurès vê principalmente como “superficial

541
e artificial” (II, 61). 0 elemento mais pesado de sentido que se oferece aqui à
reflexão é a guerra. A análise cerrada que Jaurès dela faz mais de dez anos
antes da Primeira Guerra Mundial é fascinante, visto que ele atribui a essa
guerra um duplo sentido. Antes de tudo, ele é pacifista e considera que era
preciso em 1792, como revolucionário lúcido, ser pacifista. Ele se compraz em
observar que, no pensamento de Condorcet, em julho de 1791, “a paz esteja
ligada por uma corrente de ouro à liberdade” (1,1061). A guerra que se esboça
e depois explode é, por um lado, o fato de um “imenso mal-estar”, de um
“começo de dúvida” no espírito dos revolucionários (II, 86); por outro lado, o
resultado de um terrível erro do qual os girondinos levam a responsabilidade.
Esse erro consiste em ter utilizado a guerra como “manobra de política
interna” (II, III) para demonstrar uma traição real que, aliás, era evidente.
Jaurès se lembrará sem dúvida até 1914 dessa terrível “leviandade” dos
Girondinos e do fato que então Robespierre “e o partido mais nitidamente
democrático” tenham sido pacifistas. No entanto acrescenta logo, e é o
segundo sentido dessa guerra que “quando a França da Revolução tiver de
defender sua liberdade contra o universo conjurado, os revolucionários demo­
cratas a sustentarão (a guerra) com uma energia implacável” (II, 183-184). É
portanto de maneira perfeitamente trágica que esta guerra que é declarada,
sinistra ironia da história, no dia em que Condorcet deve apresentar seu
projeto de educação, aparece também como o lugar em que se exprimirão as
mais ardentes ações e a maior coragem dos revolucionários. Porque eles
saberão que um “povo que confia sua força a corporações armadas é escravo”
(II, 557) e preferirão organizar o povo para a defesa de sua própria liberdade,
darão um novo impulso à Revolução. A guerra, uma vez sendo assunto de toda
nação, compromete uma dinâmica que é um dos fatores de ultrapassagem da
Revolução de 1789; como, em substância, um povo que viveu no combate à
abolição da distinção entre cidadãos ativos e passivos poderia por muito tempo
ainda admiti-la em política? Uma vez mais, Jaurès, no fim de sua vida, refletindo
sobre o novo exército se lembrará desse duplo jogo da história.
Outro momento, outra terrível lição, os massacres de setembro, dos quais
ele diz sem rodeios que são “um obscurecimento da razão e da humanidade”
(III, 88). E a história anda depressa. Tanto quanto, em 10 de agosto, o povo
tomando de assalto as Tulherias havia sido grande nessa “paixão comum pela
liberdade” que apagava as desconfianças (II, 711), quanto nesse período em
que o poder da Comuna prefigura “a chegada da democracia” (II, 719), os
homens são grandes à imagem de Danton, “admirável jurista da audácia
revolucionária” (II, 668), quanto, algumas semanas mais tarde, o primeiro está
frouxo e enlouquecido, e os segundos, responsáveis por seus próprios silêncio
e inação. Durante os massacres, escreve Jaurès, “Robespierre manobrava com
a Gironda e contra ela” (III, 95).
A convenção é também lugar de duplo jogo da história: ela será a
Assembléia que criará a República, sem dúvida o maior momento desse
período, e, ao mesmo tempo, o teatro de um terrível confronto fratricida.
A Convenção é portadora dessa contradição ém todo o seu ser: “Era uma

542
Assembléia vasta e profunda, ao mesmo tempo muita velha e muito jovem”, diz
Jaurès (III, 253). E ele precisa; “Era muito velha, pois carregava nela três anos
de Revolução, isto é, várias gerações de homens e de pensamentos. “E ele
descreve uma assembléia como povoada de fantasmas, os dos “homens caídos no
abismo” que assombram os presentes, parecendo eles mesmos “náufragos
recolhidos por um outro navio” (III, 257). Os homens estão “cansados”, “esgota­
dos” pela guerra, “melancólicos”, salvo Robespierre, que só está envelhecido pelo
“ódio” (III, 258), esse ódio que atiça os dilaceramentos a vir. E, no entanto, essa
Assembléia é jovem também com essa força que lhe dão “ a intensidade do drama
e sua clareza” (III, 258). Essa juventude explode na abolição da realeza e na
proclamação da República. Em 21 e 22 de setembro de 1792, a República está
inscrita na Revolução, e Jaurès acrescenta: “Era uma sublime novidade na
história do mundo” (III, 264). No entanto, o claro aberto por esse ato fundador
de uma Assembléia, um instante unânime, tem curta duração, e os dilaceramen­
tos dos partidos retornam sobre o fundo de guerra e de dificuldades financeiras.
Mesmo o processo do rei não recriará essa unidade dos revolucionários, daí para
frente sempre despedaçados. E esse acontecimento ainda deixa Jaurès exposto a
uma reflexão moderada, sinal de resignação e de melancolia. Da sentença de
morte, ele diz, no final das contas, que ela era "justa”. Entretanto, sublinha logo
com inquietude que “existe na morte uma virtude poderosa, mas equívoca, uma
espécie de misticidade ambígua que exalta as forças contrárias” (V, 168). Jaurès
não duvida mais, odeia a violência e vê nascer essa embriaguez de sangue que
enviará cedo todos os revolucionários ao cadafalso. Mais ainda, em algumas
páginas estranhas, imagina e escreve o que poderia ter sido a defesa de Luís XVI.
Aí, ele é Mirabeau e se põe a sonhar a história. "A nação acusadora, de um lado,
e um indivíduo acusado, do outro; é a monarquia mudada, mas é ainda a
monarquia”, faz dizer a Luís (V, 55), e tal atitude deixa despontar o cesarismo a
vir. E Jaurès empresta ao rei corajoso diante de seus juizes uma lucidez que
encontrava em Mirabeau: “Já espreitastes vossos menores gestos, comentastes
vossas menores palavras”, lucidez que é também crítica endereçada a todos os
revolucionários pelo historiador, aliás socialista lutando pela unidade. Desde essa
época está estabelecida essa espécie de lógica implacável que guia toda a leitura
por Jaurès dos acontecimentos que transcorrem até a morte de Robespierre e o
fim de sua obra. Essa lógica, Jaurès a observa com uma espécie de realisno
revolucionário, lúcido e frio: por ter acumulado erros, atiçado as paixões, faltado
firmeza, a Gironda se perdeu e, desde a primavera de 1793, sua destruição era
"sob todos os pontos de vista, uma necessidade prévia” (V, 616). É a mesma lógica
interna da Revolução que guia a acusação terrível de Saint-Just contra Danton
alguns meses mais tarde: “Sim, diz Jaurès, foi preciso fazer de Danton um
realista; foi preciso fazer dele um vendido; foi preciso fazer dele um traidor” (VI,
424). Mas essa lógica, Jaurès se recusa a se lhe resignar. Fortemente, quando ele
a vê tornar-se totalmente absurda e cega com a Lei de Prairial *, "instrumento

* Prairial - nono mês do ano republicano francês, que começava em 20 de maio e terminava em
18 de junho. (N. da T.)

543
de morte” (VI, 498) a serviço de um “sonho insensato” (V I502). De maneira mais
discreta, mas insistente na interpretação global que ele aá desse período como
expressão não de uma “luta de classe”, mas de uma “luta de partidos” [entenda­
mos um conflito cujo motor é: “a potência das paixões humanas mais comuns,a
ambição, o orgulho, a vaidade, o egoísmo do poder” (V, 825)].
De tudo isso Jaurès tira uma lição mais uma vez de duplo sentido: “ Por
mais nobre, mais fecunda, mais necessária que seja uma revolução, ela
pertence sempre à época inferior e semibestial da humanidade.” Isto porque
Jaurès denunciando as violências, o terror e os ódios fratricidas não é, no
entanto, um humanista ingênuo. Porém ele logo acrescenta, e aí residem toda
sua ação e seu sonho: “Será permitido entrever o dia em que a forma do
progresso humano será verdadeiramente humano? ” (VI, 282).
Além disso Jaurès não se esquiva diante da história que conta e,
retomando esse jogo o qual todos os republicanos franceses um dia jogaram,
coloca a questão do lugar que teria tomado e responde a ela. “Vão-se
acordando os mortos, escreve, e, apenas acordados, eles vos impõem a lei da
vida, a lei estreita da escolha, da preferência, do combate, do partido tomado,
da rude e necessária exclusão. Com quem você está? Com quem você vem
combater e contra quem?" (VI, 202). E o autor recusa toda resposta ambiva­
lente, como a de meias palavras, de Michelet “Não quero dar a todos esses
combatentes que me interpelam uma resposta evasiva, hipócrita e poltrona. Eu
lhes digo: Aqui> sob este sol de junho de 1793 que aquece a rude batalha de
vocês, estou com Robespierre e é ao lado dele que acabo de me sentar com os
jacobinos” (ibidem). Todavia, a simpatia de Jaurès por Robespierre é mais do
que moderada, seu julgamento sobre o homem e sua ação, frequentemente
severos. Se em 1793 quando se religou à Constituição, porém voltando atrás
sobre suas próprias posições, “ele sabia o presente” (VI, 167), se, com Babeuf,
admite que então “ o robespierrismo é a democracia” (VI, 205), se em outros
momentos mesmo o homem foi a mais alta expressão da força revolucionária,
seu comportamento e algumas de suas idéias se expõem a vivas censureis.
Robespierre é antes de tudo por demais pessimista e limita sua ambição social
a uma economia que é quase de subsistência; ele “desdenha a opulência” (Vi,
140), o que é coerente com sua “timidez” em matéria de propriedade (VI, 131)
e tal concepção pode ser carregada de conseqüências, quando a dupla exclusão
do comunismo e da riqueza “pára o impulso” das classes possuidoras, assim
como do povo (II, 469). Mas são principalmente as hesitações e os comporta­
mentos do homem de ação que Jaurès critica: em 1792 quando ele se esquiva
da presidência do tribunal extraordinário, “por egoísmo de ambição, ele recusa
o perigo” (III, 53); da mesma maneira, no debate sobre a guerra e as “fronteiras
naturais” ele "deixou, por deferência à sua popularidade, faltas irreparáveis
serem efetuadas” (V, 177). Desde essa época Jaurès sente despontar o terror
em suas proposições no “sentido amargo e ditatorial” (V, 97) e, mais tarde, com
Saint-Just em 1793, Robespierre “ distribui a morte” (VI, 396). Robespierre não
tem como Saint-Just (do qual Jaurès fala de fato muito pouco) a vantagem de
moderar sua dureza por posições sociais avançadas, ele não pratica, como este

544
último, ‘‘um terrorismo moderado de socialismo”(Vl,401). No Pantheon de
Jaurès, Danton é mais poupado. A força do homem e seu entusiasmo seduzem
o autor; “como a alma de Danton é grande e como seu espírito é elevado”, diz
Jaurès a propósito de seu discurso no começo da guerra (III, 76). É, aliás, o
desgosto que nasce em Danton pelas violências da política montanhesa (que é
também sua obra) que o perderá; e Jaurès o censura por não ter sabido, diante
de seus juizes, desenvolver seu plano “para moderar a Revolução sem perdê-la”
(VI, 427). Fica com ele, no entanto, a figura perfeita desses revolucionários de
que Jaurès gosta, porque também ele se reconhece neles: “Esses homens amam
a vida, eles a amam por ela mesma, porque ela era amor, porque era a
liberdade” (VI, 428). Dos homens de ação Jaurès faz, portanto, um retrato
moderado, consciente de que suas tarefas sem dúvida eram desmedidas. E é
por dois homens nos confins da ação e do pensamento que Jaurès tem a mais
viva admiração: Mirabeau e Condorcet, Poder-se-ia espantar de encontrar o
primeiro tão alto na estima do pensador socialista e, no entanto, ele “ era
grande porque sabia achar, na própria conciência da Assembléia, o ponto de
equilíbrio das justas audácias e das necessárias habilidades” (I, 378), e Jaurès
refuta as críticas de Michelet sobre sua ação em 1789. Mirabeau “tribuno do
povo fulminando os nobres” (1,557), Mirabeau realista e, no entanto, “um dos
mais democratas” (ibidem) tinha um sonho que Jaurès olha com alguma
nostalgia: "Se Luís XVI tivesse tido confiança na Revolução e lhe houvesse
inspirado confiança, se ele tivesse se tornado o rei da Revolução, não teria
havido ruptura entre a França moderna e sua secular tradição. A Revolução
não teria sido encurralada pela traição do rei e a agressão do estrangeiro por
meios extremos e violentos” (I, 561). Que Mirabeau é um democrata, como
Condorcet, em quem Jaurès se encontra completamente, veremos, na dimensão
da democracia, assim como ele se encontra como socialista em Babeuf.
Pode-se aqui abordar essa segunda dimensão na qual Jaurès inscreve sua
história, a do socialismo. Entendamos claramente que ela não sobredetermina
nem a análise das causas e dos mecanismos, nem a interpretação dos fatos e
do papel dos homens, mas oferece duas perspectivas que se entrecruzam nas
outras dimensões nas quais trabalha Jaurès.
Negativamente, são os limites de uma Revolução “burguesa" que apare­
cem, e nisso Jaurès pensa, como Marx, que ela “foi, no fundo, a aparição
política da classe burguesa” (I, 61). Viu-se que a tomada da Bastilha era a
expressão da legitimidade da burguesia que impõe, então, às decisões políticas
sua marca. Esta aparece por exemplo na tensão entre a Declaração dos direitos
de 1789 e o modo de escrutínio colocado no lugar no mesmo momento. O fato
de limitar o sufrágio, a retomada da distinção entre cidadãos “ativos” e
cidadãos “passivos” entram em contradição com os princípios do direito
natural que exprime a Declaração. Mas esse “artifício intelectual” (I, 591)
exprime ao mesmo tempo a dominação da burguesia e a inexistência ainda de
uma consciência proletária real. “Por que vínculo, pergunta Jaurès à burguesia
de 1789, o proletário está ligado ao estado social? Vocês mesmos reconhecem
sua dependência, já que vocês se preparam em razão mesmo dessa dependên-

545
cia, para lhe recusar o direito do voto: mas poderão vocês dizer, então, que a
ordem social aumentou para ele as liberdades primitivas e naturais?” Jaurès
acrescenta logo: “Os constituintes não teriam podido sem dúvida opor a menor
resposta. Mas não havia mais consciência proletária para colocar a questão, e
os metafísicos da burguesia puderam, assim, fazer passar a propriedade
burguesa entre os direitos naturais e imprescritíveis” (I, 476). Aqui se es­
tabelece a questão dos limites da Revolução. Jaurès, por um lado, não nega o
valor dos direitos inscritos na Declaração; eles não são para ele, como para
Marx, “direitos formais” sem valor, mas sim "direitos burgueses”, com uma
dimensão universal, mas também um limite que indica a inscrição da proprie­
dade privada na fileira desses direitos. Direitos incompletos, mas não direitos
inúteis, eles abrem o espaço no qual devem agir os socialistas.
De tudo isso Jaurès acha o vestígio em um pequeno fato, “curioso
detalhe” a seus olhos: a igualdade dos direitos havia sido concedida aos
proprietários de cor das colônias francesas, o que diz ao autor que “o abismo
que, a essa hora, separava ainda a Revolução burguesa do proletariado
miserável era maior do que o abismo dos mares. Estavam mais longe da
Assembléia os mais pobres operários da França do que os proprietários das
colônias” (I, 599). A tensão está, portanto, localizada entre uma revolução
burguesa e o que deveria ser uma revolução socialista: ela está quase inteira­
mente na questão da propriedade privada. Este é o critério principal que guia
o autor em sua leitura das intervenções ou das obras de revolucionários: a
propriedade privada é o fator discriminante.
No entanto, a leitura de Jaurès não é linear, e existe ambigüidade do sentido
da Revolução mesmo sobre essa questão, visto que a idéia de propriedade está
ligada à de democracia. Realmente, se a Revolução afirma uma propriedade
puramente individual, sua obra positiva é “isentar" e “fortificar” essa noção de
propriedade: "Do que era flutuante, ambíguo, ameaçado, a Revolução faz uma
propriedade precisa, garantida e certa” (II, 474), em uma ruptura definitiva com
o sistema feudal. Uma vez ainda é Condorcet, visando desde 1792 à idéia de
segurança social que marca essa síntese: “Trata-se, diz Jaurès, de dar a todos os
homens, em uma sociedade determinada, garantias estáveis contra a miséria sob
todas as formas” (II, 483). 0 que dizer senão que, não obstante o ponto difícil
(de tropeço) da Revolução sobre a questão social e particularmente a da
propriedade, a obra da burguesia ultrapassa a defesa de seus interesses de classe.
“Nem a burguesia, nem a sociedade burguesa, ela própria, são um bloco
impenetrável. A palavra burguesia designa uma classe não somente complexa e
misturada, mas cambiante e movente.”E, ao contrário dos burgueses capitalistas
de Luís-Felipe, os “legistas da Revolução vieram organizar a grandeza da
burguesia, mas eles não vieram organizar o egoísmo burguês” (III, 174). Mais
ainda, por sua luta contra o feudalismo e pela democracia, eles abriram a
possibilidade de um pensamento socialista do qual Jaurès encontra os germes.
É aqui que aparece o aspecto positivo da Revolução na dimensão
socialista. Quer ele meça as propostas de Robespierre, Danton ou Condorcet
à luz da questão social, quer ele exuma os textos de revolucionários mais ou

546
menos ignorados ou esquecidos, Jaurès expõe sua própria concepção do
socialismo e a inscreve na continuidade da obra revolucionária.
Esses pensamentos antecipadores, Jaurès os vê quase sempre sob dois
momentos complementares: prefiguração do “messianismo socialista”, como o
programa de L’Ange para a Comuna de Lyon de 1792 (III, 488), mas muitas vezes
concepções prematuras em consideração ao estado das forças sociais e das
mentalidades. Além disso, no “vasto jorro de pensamentos de 1792 - 1793" (VI,
12), alguns textos fortes surgiram, como a carta de Babeuf a Coupé (de 1’Oise).
Dois elementos fazem a grandeza de Babeuf: o vigor de seu pensamento e o
realismo de sua ação. Grandeza de um pensamento que afirma que “é da
evolução mesma da democracia levada a suas conseqüências lógicas que a
igualdade social resultará” (VI, 103), que sabe também se ligar aos mecanismos
da representação, e Jaurès acrescenta: “Grande lição para os doutrinários de um
socialismo teórico que afetam indiferença e desdém pelo jogo parlamentar” (VI,
105). E Babeuf é, ao mesmo tempo, realista: “para ele, o comunismo deixa de ser
uma doutrina livresca; ele entra na vida da história e se curva a suas leis. Para
ele, o comunismo, fraco demais para se apossar da Revolução, para provocar e
para desafiar as armas burguesas, tenta deslizar para dentro da democracia em
movimento” (VI, 97). Essa segunda qualidade não se encontra muitas vezes nas
obras desses revolucionários, dos quais Jaurès, à força de pesquisa e de paciência,
redescobre o pensamento. Brochuras anônimas ou libelos de homens esquecidos
(Anacharsis Cloots, Boissel, Dolivier ou o infeliz padre Jacques Roux) fazem a
riqueza de uma época em que no fogo da história explodem em todos os sentidos
intuições geniais ou sonhos ingênuos. De todos esses pensamentos Jaurès faz a
triagem, com indulgência muitas vezes, mas também com uma severidade que se
aplica igualmente a seus contemporâneos e camaradas socialistas. Crítica do
anti parlamentarismo, crítica do maximalismo e de toda forma de ação que ficaria
à vontade com o respeito dos direitos fundamentais, Jaurès está inteiramente
dentro dessa revisão crítica dos atos e dos pensamentos revolucionários. Ao
mesmo tempo em que ele descobre a aparição dos direitos acreditados nos
discursos de Bernard na Legislativa (II, 477) ou a idéia de um socialismo de
opulência nas proposições de Anacharsis Cloots em 1792 (III, 217), Jaurès pensa
o socialismo dentro da continuidade da obra da Revolução. Mesmo se fosse
provável haver uma ruptura, o socialismo de Jaurès é de fato a realização
completa da idéia nascida antes da revolução e por ela ativada, a de democracia.
Com a democracia, tal é, para Jaurès, a dimensão das idéias que animam
essa obra, idéias que trabalham a história como e com as relações econômicas,
o confronto dos homens e da lógica inerente a um período de crise. “A lógica
inquieta da idéia” (I, 1104) é por si mesma um motor da história e, Jaurès
precisa, contra o “método ‘marxista' em história”, que: “A ardente educação
dada aos espíritos por Rousseau e, logo, o próprio drama da Revolução,
elevaram tão alto a temperatura dos espíritos, que combinações de democracia
e de humanidade se realizaram; a evolução das relações econômicas, sozi-
nha,só as teria suscitado talvez um século mais tarde” (1,1105). Nessa medida
as idéias adiantam-se ao tempo e ao espaço, que são o objeto de Jaurès. Antes

547
de tudo porque os revolucionários têm a cabeça cheia das idéias dos filósofos
do século XVIII, todos desaparecidos no momento em que começa a Revolu­
ção. Jaurès descreve os constituintes inexperientes da realidade das coisas, mas
ricos de suas meditações: "Todos, diz ele, na semi-solidão de suas províncias,
haviam lentamente acumulado as idéias, as emoções, os sonhos” (1,1101). Elas
serão sua força nos debates dos clubes e seus recursos nos momentos de
desencorajamento: “Robespierre, nas horas de luta triste e de lassidão, relia
Jean-Jacques para se reconfortar” (1,1100). Mas as idéias ultrapassam também
as fronteiras e dão à Revolução uma dimensão suplementar dentro de um vasto
espaço que vai da América, de onde vem uma imagem de democracia, à
Europa, à qual Jaurès consagra todo um volume. Ele encontra, por exemplo,
em Kant ao mesmo tempo o eco da Revolução e os meios de fundamentar
racionalmente sua obra. Jaurès segue Kant naquilo que ele chama de “o mais
alto idealismo moral” (IV, 102) e em sua afirmação do “direito do pensamento
livre” (IV, 108). Acrescentemos que o filósofo Jaurès encontra na "liberdade de
fazer, em toda questão, uso público da razão” o fundamento de seu próprio
pensamento e o sentido da ruptura instaurada pelo espírito das Luzes encar­
nado na Revolução Francesa. Mas o segue ainda quando ele constata: “Basta
para Kant que a liberdade de espírito, sob sua forma científica, esteja intacta.
É dela que ele espera, sem impaciência, as necessárias transformações” (IV,
111)? Sem dúvida, não; e Jaurès, contrariamente a Kant, não pára no limiar
das violências revolucionárias. Com Fichte principalmente ele liga o futuro da
dignidade do homem e da liberdade de pensamento ao da própria Revolução.
Em Fichte principalmente ele encontra o complemento ao direito natural que
os revolucionários franceses não souberam ultrapassar: “O papel essencial da
força de trabalho” (IV, 256). É dentro da mesma perspectiva (fecundação da
Revolução pela filosofia / enriquecimento do pensamento pelo acontecimento)
que Jaurès ausculta o pensamento dos revolucionários e dos poetas ingleses
ou de Thomas Paine, por exemplo. Nesse vasto turbilhonamento das idéias
Jaurès vê ao mesmo tempo a amplitude do movimento revolucionário que,
ultrapassando as fronteiras e os seculares antagonismos entre os povos,
encontra sua universalidade e a força das idéias e de sua própria lógica. Nesse
duplo jogo da Revolução, é para Jaurès uma imensa ação educadora que
resume a idéia de democracia. Ele faz em 1904, em seu Préface, o resumo do
que daí para frente o proletariado sabe, educado pelo pensamento e pelos fatos:
“Ele sabe que, para substituir a propriedade social pela propriedade oligárqui-
ca, ele precisa de liberdade política, de democracia, de luz, e ele está pronto a
se aliar por necessidade à burguesia para defender, contra a volta do antigo
regime, contra as trevas clericais, a liberdade, a luz e a democracia. Ele sabe
que, para passar da ordem capitalista para a ordem socialista, deve fazer uso
sobretudo do sufrágio universal e da evolução legal que lhe permite a cada dia
medir as resistências e de proporcionar seu esforço. Sabe que, se usar a
violência, agravará as dificuldades desencadeando o pânico...” (Jaurès, 1980,
pág. 161). Tantas lições tiradas da Revolução Francesa que encontram sua
dimensão universal na democracia! Isso aparece com a maior clareza na

548
interpretação que o autor faz da Declaração de 1789. Mesmo se os revolucio­
nários hesitam, mesmo se a Declaração em sua dificuldade para articular
direito natural e direito histórico cria direitos que permanecem incompletos, a
obra é para Jaurès imensa, uma vez ainda de duas maneiras: nela mesma e por
aquilo que ela abre e permite. Jaurès já havia notado a invenção, em Les
Cahiers du tiers état (Cadernos do terceiro Estado), dos “direitos do homem
de onde procede toda constituição livre” (1,295) e vê, nessa noção, direitos do
homem enquanto homem, anteriores e superiores a toda legislação positiva, o
fim definitivo do Antigo Regime e a universalidade da obra da burguesia. “A
burguesia revolucionária, para combater do alto, devia se elevar até a humani­
dade, com o risco de ultrapassar ela mesma seu próprio direito e de advertir
ao longe um direito novo. E essa intrepidez de classe, é essa audácia para forjar
armas soberanas, devido à história um dia voltá-los contra os vencedores, que
fazem a grandeza da burguesia revolucionária” (I, 477).
Esse direito novo, Jaurès, longe de ver como “formal”, interpreta-o como
fermento, fermento de uma democracia na ordem política que se deve estender
à ordem econômica. Nessa medida, o pensamento de Jaurès quando pensa
junto socialismo e democracia é menos uma síntese ou um compromisso do
que uma concepção unificada sob princípios dos quais a história por seu
movimento traz ou trará a realização. É dentro dessa noção dinâmica de um
movimento dos homens, das idéias e das estruturas econômicas que Jaurès
funda essa idéia essencial do socialismo como finalização da democracia e
partindo da República. “A Revolução, escreve o autor, não é a organização
autoritária e ditatorial de uma sociedade,é a recoiocação em liberdade do
movimento humano” (Jaurès, 1980, pág. 50). E esse movimento, uma vez
ainda, tem sua lógica, cujo princípio é a idéia de democracia, “tudo junto, um
meio de ação decisivo e uma forma típica segundo a qual as relações econômi­
cas devem se ordenar como as relações políticas” (VI, 517). Assim, Jaurès
encontra na Revolução Francesa as fontes de um otimismo do qual nunca se
despediu, otimismo que partilha com os republicanos racionalistas de seu
tempo, se bem que o ligue a um ideal mais exigente. Desse otimismo Pierre
Mendes France dizia que ele é “aquele que fatiga a adversidade, com seu eterno
recurso à justiça e à razão, mas que não se fatiga jamais” (Mendes France,
1976, pág. 97). E ele acrescentava: “Ê porque Jaurès traz para a democracia
uma imagem em que ela se reencontrará sempre. ” Justiça e razão são
exatamente, no final das contas, os vetores do pensamento de Jaurès, tal como
sua história trabalha e as reencontraremos inteiramente no pensamento de
Condorcet que Jaurès, sem parar, coloca à frente, como se ele fosse seu.
Notemos de passagem que é significativo que Jaurès por pouco não termine
sua obra por longas páginas consagradas a Condorcet, que, além disso, estão
em um capítulo intitulado “A obra do governo revolucionário”. Quando o sábio
já estava morto há vários meses, quando Jaurès descreve com severidade a
ditadura de sucesso público e vê com tristeza os revolucionários se eliminarem
uns aos outros, ele pára sobre o Esquisse d ’un tableau historique des progrès
de Vesprit humain (Esboço de um quadro histórico dos progressos do espirito

549
humano) que se torna uma espécie de síntese da obra revolucionária, um
ponto de orgulho suspenso no fim da obra.
"Quantos sofrimentos inúteis teria poupado ao proletariado a vitória por
inteiro da democracia republicana. Silenciosamente, o grande pensamento de
Condorcet abriria o futuro” (VI, 458). Por meio dessa fórmula e dessa referência
Jaurès assinala sem dúvida o enraizamento último de seu pensamento. Ele havia
visto no Projeto de organização da instrução pública redigido em 1792 por
Condorcet um “grande sonho de democracia pacífica, esclarecida, igualitária”,
sonho que colocava com clareza e força "o supremo ideal da Revolução, o ideal
de ciência e de paz” (II, 272). Com Condorcet ele vê fundar-se a equação de base
do ideal republicano: ciência = democracia sob o princípio único da razão, e
admira o idealismo de Condorcet “que aplica a crítica da razão à própria razão”
(II, 506). Ele se reconhece por inteiro, além disso, no que chama um “espírito de
liberdade viva e de perpétua investigação” (II, 509). E perfeitamente claro que
aqui Jaurès, retomando por sua conta a concepção que tem Condorcet de uma
total autonomia do ensinamento com relação ao poder político (“não um só
dogma filosófico, político, científico e social” (II, 509), está longe de todo
dogmatismo, coloca à frente a idéia de um espaço público que abole toda
concepção totalizante da sociedade. Da mesma maneira, quando ele visa, sempre
com Condorcet, ao futuro como “uma penetração sempre mais profunda da
democracia e da ciência, (...) a aplicação sempre mais ousada dessas duas forças
ao aperfeiçoamento social e individual de todos os homens” (VI, 471473), ele
partilha um racionalismo humanista discretamente determinista. No entanto, só
se pode encontrar uma tensão entre esses princípios e o Terror, tensão frente à
qual Jaurès experimenta um certo mal-estar, do qual o retorno in extremis a
Condorcet é, talvez, o sinal. Existe aqui uma relativa ambigüidade de Jaurès e
sem dúvida o ponto cego de sua análise, talvez até de seu pensamento: de um
lado a condenação do Terror, do outro, no entanto, essa lancinante cantilena da
"lógica” dos fatos. Como interpretá-lo? Como entender esses duplos jogos da
história que Jaurès aponta freqüentemente? Ele é consciente demais da diversi­
dade e da complexidade dos fatores que intervém na história, concede além disso
importância demais a conjeturas sobre o que teriam podido ser os acontecimen­
tos para realmente acreditar em uma lei da história. No entanto, permanece em
seu procedimento um elemento de crença, para começar por aquela ligada ao
socialismo como fim da democracia inscrita na própria República. Permanece,
assim, um leve véu sobre a questão da violência. Condenada a princípio e evitável
para o futuro em nome de uma “revolução humana”, ela parece às vezes ser
necessária, ainda que só para salvar o movimento da Revolução. Essa tensão
seria solúvel no ideal de educação que erradicaria o próprio princípio da violência
(um estágio “primitivo" da humanidade)? Jaurès, homem político, tem um real
respeito pelo adversário que se encontra em seus propósitos quando, por
empatia, toma o lugar dos revolucionários. Será essa a última ancoragem de um
pensamento dos direitos do homem no âmago do encaminhamento político? Mas
tal pensamento é realmente compatível com um humanismo às vezes quase
ingenuamente metafísico e claramente historicista? A violência utilizada no

550
terror bem que poderia ser apenas, para Jaurès, um “artifício da razão”, apesar
de ele deixar transparecer que teria podido não se produzir. Mas então o
humanismo de Jaurès, sua referência implícita em um conceito do homem
enquanto tal, não se encontraria alterado pela idéia de uma racionalidade
utilizada inclusive naquilo que parece irracional? Jaurès, admirador de Kant,
talvez não o tenha podido ler até o fim ou ousado segui-lo até ao extremo da
crítica da razão onde permanece um espaço de intersubjetividade que funda a
possibilidade de referência a valores. Jaurès, democrata e defensor, iaté mesmo
contra Mane, dos direitos do homem, talvez não tenha levado até o fim sua
exigência, As questões que parecem obcecá-lo em seu diálogo com as sombras
dos revolucionários ele talvez não tenha trazido todas as respostas, mas seria isso
possível? A política é possível sem violência, a felicidade sem crença, e a liberdade
sem solidão?

• H isto ire s o c ia lis te d e la R é v o lu tio n fra n ça lse, 1901-1904, Paris, Editions Sociales, edição
revista e anotada por Albert Soboul, prefácio de Ernest Labrousse, introdução de Madeleine
Rebérioux, 1969-1971; uma reedição da obra está em curso nas Editions Sociales/Messidor,
segundo a estrutura da edição Soboul. Pode-se lamentar a supressão da iconografia muito rica
da edição original, perfeitamente respeitada na de 1969-1972. Jaurès tinha concedido muita
importância a essa iconografia e a tinha realizado com uma paciência infinita. Ele dizia no fim
do primeiro volume da sua alegria de ter recolhido “imagens ainda vivas”, das “folhas sempre
quentes da revolução”, sua alegria “de jogá-las de novo ao vento da vida” (1,1117).
P re fd ce a u x d is c o u r s p a rle m e n ta ire s, 1904, Paris, Genebra, Slalkine reprints, introdução de
Madeleine Rebérrioux, 1980; L ’a r m é e n o u ve lle , 1910, Paris, Editions Sociales, introdução de
Louis Baillot, 1978.

► Alexis de Tocqueville, S o u ve n irs; O e u v re s c o m p lè te s d e T ocqu eville, L XII, Paris, Callimard,


edição e introdução de Luc Monnier, 1964; Marc Bloch, A p o lo g ie p o u r V h islo ire o u m é tie r
d ’h isto rie n , Paris, Armand Colin, 1959; Fernand Braudel, C iv ilis a tio n m a té rie lle, é c o n o m ie et
c a p ita lis m e , X V —X V I I I e s iè c le . Paris, Armand Colin, 1979,3 tomos; Pierre Mendès France,
L a v é r ité g u id a it le u r s p a s, Paris. Callimard, 1976.

Pierre BOURETZ.

JEFFERSON, Thomas, 1743-1826


A Declaração da Independência, 1776

Procurar o sentido filosófico da Declaração da Independência estava


longe do pensamento de Thomas Jefferson. Cinqüenta anos após sua redação,
Jefferson explicava a Henry Lee que ele só tinha querido exprimir “a opinião

551
comum” sobre a questão. Assim, a primeira frase da Declaração visa a banalizar
a ação para a qual ela iria fornecer a legitimação: “Quando, no curso dos
acontecimentos humanos, um povo se vê na necessidade de romper os vínculos
políticos que o unem a um outro...” Com efeito, treze anos de polêmicas, de
protestos, de acomodação seguidos de novas agressões tinham formado uma
opinião pronta para aceitar a ruptura. No entanto, as coisas não são tão
simples, a história não declara sua própria teoria. A Declaração não se explica
unicamente por seu passado; ela abre também um futuro.
A Declaração da Independência tinha uma meta totalmente prática: ela
visava a solidificar para o eventual aliado francês a seriedade dessas colônias
que combateram primeiro pelo que eles chamavam de “os direitos de um
Inglês”. Assim, sua primeira frase continua com a afirmação de que “um justo
respeito da opinião dos homens" impõe uma explicação das causas da ruptura;
e seu último parágrafo afirma que a dissolução dos vínculos dá ao novo país o
“pleno poder de fazer a guerra, de concluir a paz, de contratar alianças, de
estabelecer relações comerciais, de agir e de fazer todas as outras coisas que
os Estados independentes são fundados para fazer”. A diplomacia francesa
compreendeu bem; a ajuda francesa contribuiu para a vitória militar, e a
independência foi selada em 1783 pelo tratado de Paris.
Contudo a Declaração testemunha uma ação da qual ela devia ser ao
mesmo tempo o fundamento e a finalização. Ela dá testemunho dessa "opinião
dos homens” pelo qual ela exprime o “justo respeito"; ela submete “os fatos ao
julgamento de um mundo imparcial (candid world)” que deveria concluir que
o vínculo das colônias com a Grã-Bretanha "está e deve estar inteiramente
dissolvido”. Notemos que, segundo Hannah Arendt, este apelo ao tribunal do
mundo e esse respeito pela opinião pública fazem a “grandeza” da Declaração,
que não é de maneira nenhuma uma simples afirmação do direito natural. A
opinião comum sobre a questão exprimiria justamente o fundamento propria­
mente político da Revolução Americana. A Declaração seria não um argumento
adiantado para sustentar uma ação, mas bem mais “ a maneira perfeita de
traduzir em palavras uma ação”. Arendt sublinha também que a cláusula que
afirma que “nós temos” essas verdades como evidentes implica um julgamento
político e não uma afirmação metafísica.
Essa maneira de unir o fato e a norma, o que é e o que deve ser, não é
certamente mais evidente do que “essas verdades” tidas “como evidentes por
si sós (self-evident)” no segundo parágrafo da Declaração que tratou da relação
entre governo e governados. Os comentadores tendem a interpretar esse
esboço de uma teoria política pela teoria do direito natural lockeiano. Esse
argumento foi assim elaborado por Carl L. Becker na obra que foi por muito
tempo autoridade sobre a questão. 0 estudo recente mais completo sobre a
influência de Locke concluiu que os americanos conhecem bem a epis-
temologia lockeiana, que eles admiram sua defesa da tolerância religiosa e que
eles praticam uma pedagogia fundada sobre suas teorias. Mas a influência do
Segundo Tratado parece quase inexistente! (Ver John Dunn, The Politics o f
Locke in England and America in the eighteenth century, John W. Yolton,

552
ed., John Locke: Problems and Perspectives, Cambridge, 1969.). É preciso,
entretanto, observar de mais perto essa estrutura particular que faz de uma
declaração ao mesmo tempo a reflexão de uma experiência e de seu fundamen­
to, até de sua legitimação. Como compreender a passagem de uma experiência
para uma ruptura política que se quer legítima?
A Declaração comporta três partes: uma teoria política lapidar exprimida
no segundo parágrafo, uma denúncia detalhada dos malfeitos ingleses e uma
conclusão afirmando a necessidade da independência. A teoria política é
aparentemente muito simples. Todo governo está fundado sobre o consenti­
mento dos governados, que se reservam o direito de modificá-lo ou de aboli-lo
se ele ignorar seus fins. Porém a prudência convida a não derrubar um governo
por causas passageiras. Então, a segunda e mais longa parte da Declaração
enumera 27 malfeitos pelos quais o rei se tornou culpado para com suas leais
e pacientes colônias. Enfim, a conclusão afirma que esse príncipe é ainda mais
culpado pelo fato de que às petições repetidas das colônias ele respondia com
novos abusos. Pior, continua um parágrafo relativamente longo e um pouco
surpreendente dentro desse contexto, nossos irmãos britânicos aos quais
apelamos não mostraram seu “senso inato de justiça e... a grandeza de alma
que são considerados como seus habitantes”. Portanto, resta-nos apenas
“inclinarmo-nos diante da necessidade e proclamar a separação”. Quanto ao
futuro, nada é dito.
Pode-se ler a denúncia dos malfeitos ingleses como a expressão do
pensamento político que guiara a resistência americana. Essa foi fundada sobre
uma leitura radical da tradição whig acoplada com uma teoria republicana
clássica; a historiografia a nomeia "velhos whigs". Lida através do prisma
puritano, essa teoria descreve uma luta permanente entre a Liberdade e um
Poder cuja essência é a de procurar estender-se. A longa denúncia “de abusos
e de usurpações”, “invariavelmente inclinados para a mesma meta... de sub­
metê-los a um despotismo absoluto” visa, portanto, a demonstrar a existência
de uma ameaça mortal para a liberdade. Os americanos só podiam concluir que
“é do direito deles, é dever deles derrubar o governo que se torna culpado
dela”. Não se trata, portanto, de denunciar uma espécie de contrato lockiano
rompido de fato pela ação inglesa; trata-se do destino da liberdade que deverá
encontrar uma nova forma institucional. Mas a teoria dos velhos whigs não diz
nada de positivo. A Declaração, que abre sobre o futuro, ia ultrapassar esse
primeiro pensamento defensivo.
O esboço de uma teoria política encontra-se no início da Declaração
“Temos estas verdades como evidentes por elas mesmas — que todos os
homens nascem iguais, que seu Criador dotou-os de certos direitos inaliená­
veis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade; que, para garantir
esses direitos, os homens intituem governos cujo justo poder emana do
consentimento dos governados. ” A essa frase, acrescenta-se que os homens se
dão um governo para assegurar sua segurança e felicidade. Compreende-se que
essa breve teoria tenha sido interpretada, com respeito ao desenvolvimento dos
Estados Unidos, como o fundamento de um liberalismo econômico segundo o

553
qual a Liberdade é dedicada à procura contínua de uma felicidade de caráter
privado no interior de instituições mínimas onde a igualdade do nascimento
não diz nada sobre sua realidade. Essa leitura, que se poderia caricaturar à
vontade, poderia, apesar de tudo, apoiar-se sobre o Discurso inaugural do
Presidente Jefferson em 1801. Tendo chegado ao poder em seguida a uma luta
difícil, Jefferson pregava a conciliação. Prometia sobretudo um governo sensa­
to e austero cuja política fiscal deixaria livre o indivíduo para procurar seu bem
como bem entendesse.
Mas, como compreender a substituição da propriedade, tão importante
na tradicional trindade dos direitos naturais, pela "busca da felicidade”? A
questão é tão pertinente que o famoso na 10 do Fédéraliste justifica a nova
Constituição de 1787 pela afirmação de que a proteção da propriedade é “o
primeiro objetivo do governo”. Uma primeira resposta é fornecida pelo panfle­
to publicado por Jefferson em 1774, A Summary View o f the Rights o f British
America (Uma visão sumária dos direitos da América Britânica), que já
comporta a maioria dos argumentos que se reencontra na Declaração. Jeffer­
son afirma nesse panfleto um direito natural segundo o qual o governo é
estabelecido para promover "a felicidade pública”. Pode-se então propor que a
felicidade da qual fala a Declaração não é um prazer privado, mas bem mais
essa “felicidade pública” da qual seu amigo Chastellux se fazia o advogado.
Essa hipótese desenvolvida por Hannah Arendt pode ser apoiada sobre outros
aspectos do pensamento de Jefferson. Sua definição de uma república pelo fato
da participação dos cidadãos torna-se mais freqüente após sua presidência, mas
ela já figura em seu esboço de uma constituição para a Virgínia, em 1776, onde
ele quer garantir o sufrágio universal pela distribuição a cada habitante de 50
acres de terra do Estado. Arendt não cita esse texto que só fala do sufrágio;
ela se baseia sobre os esforços para institucionalizar a participação ativa do
cidadão sobre a qual Jefferson insiste sobretudo em suas cartas a J. Cabell e a
J. Taylor, em 1816. Ela chega até a encontrar aí uma semelhança com o sistema
dos “soviets” revolucionários! Mas essa insistência sobre a importância da
participação política dentro do espaço público é contradita por numerosas
cartas em que Jefferson faz o elogio da felicidade privada como a realização da
vida humana. Entretanto, Arendt pode sempre responder citando uma carta
surpreendente de 1823 que, após as discussões eruditas dos Gregos e Latinos
a propósito da divindade, conclui: "Pudéssemos nós rever-nos ainda no Con­
gresso com nossos antigos colegas e receber com eles este sinal de aprovação:
‘Bem feito, bons e fiéis servidores”'. Não se incorre em erro, portanto, ao dizer
que Jefferson pertence à tradição republicana clássica, segundo a qual a
felicidade pública prima sobre a felicidade privada. A dificuldade é que a
Declaração não fala isso!
A felicidade que os americanos independentes deviam procurar foi e é o
objeto de difícieis debates políticos, principalmente sobre a contradição evi­
dente entre a igualdade afirmada pela Declaração e a persistência da es­
cravidão no país livre. Poder-se-ia interpretar a Declaração, como já vimos,
segundo o direito natural liberal. É a opção da interpretação dominante

554
resumida lucidamente por Carl L. Becker. A independência seria o resultado
inevitável do fato de que a Inglaterra havia rompido um contrato selado entre
dois seres independentes e iguais. Mas, continua Becker, esse direito natural
fundado no indivíduo seria transformado, no decorrer do século XIX, em uma
simples teoria do governo, pela maioria que se justifica pelas benfeitorias que
fornece ao indivíduo. Resultaria dele uma democracia da qual mesmo a visão
que havia fundado a Declaração estaria ausente. Uma outra leitura da teoria
da Declaração chega à mesma conclusão pessimista. Daniel Boorstin recons­
truiu pacientemente as premissas filosóficas de Jefferson a partir de sua
representação teológica, de sua visão da natureza, de seu conceito da igual­
dade e de sua teoria da tolerância e da educação antes de chegar à sua idéia
do governo. Ele encontrou uma espécie de antifilosofia feita para um mundo
virgem onde a ação prima sobre a teoria, a constatação do fato sobre seu
sentido e a perfeição dos meios sobre o fim procurado. Se estiverem em
questão os fins, esses são definidos segundo a imagem da santidade e não sobre
o modelo da virtude; trata-se, em resumo, de um mundo onde os direitos
existem sem deveres. Como a teoria dos velhos whigs, esse pensamento poderá
em seu limite evitar a dependência, mas ele não diz nada sobre a boa utilização
da independência.
O problema fundamental que subentende a leitura da Declaração é o da
relação entre o indivíduo e a comunidade. A leitura lockiana do direito natural
apresentada por Becker privilegia o indivíduo; a intrepetação de Boorstin vai
mais longe já que ela define a felicidade buscada como a da espécie. Essa
segunda ótica pende em direção à visão de uma felicidade pública, mas essa é
apenas a soma das felicidades privadas calculada segundo um modo empres­
tado de Beccaria e antecipando-se ao utilítarismo.
Duas interpretações recentes sublinham, ao contrário, a prioridade
comunitária. Garry Wills procura demonstrar a inflluência da tradição es­
cocesa de Reid, Hutcheson e Shaftesbury. Assim, por exemplo, a busca da
felicidade seria uma propriedade definindo a espécie humana; as verdades
evidentes por elas mesmas seriam reveladas em um sentido moral comum a
esses seres; enfim, o suposto contrato não ligaria indivíduos isolados uns aos
outros, mas explicitaria relações comunitárias constitutivas destas individua­
lidades. G. Wills tira implicações políticas conservadoras dessa leitura. A de
um “radical”, como Richard Mattews, é menos sugestiva: Jefferson, para ele,
teria sido uma espécie de anarquista comunitário, inspirado, por exemplo,
em sociedades aborígenes capazes de viver uma democracia participativa
sem Leviatã; ele seria o cantor de uma sociedade “pastoral” que se oporia à
dominação do mercado não sendo antimoderno. Infelizmente, a Declaração
não se presta mais a essa visão de Matthews.
Ao retomarmos o texto a partir de sua função prática, reencontramos a
questão da relação entre a teoria, a constatação dos malfeitos ingleses e a
necessidade de ruptura. Enfatizamos o parágrafo que explica essa necessidade
por causa da surdez de “nossos irmãos britânicos” que não escutaram “a voz
da justiça e da consangüinidade”. A leitura escocesa permite uma explicação

555
desse parágrafo que parecia estranha à lógica política da Declaração. A ruptura
não seria o resultado de um contrato jurídico rompido, como também não seria
o fruto de uma corrupção do poder em vias de tornar-se tirânico. A ruptura
seria mais social, e a Declaração, seu reflexo político. Realmente, não se deve
confundir a Declaração da Independência com uma Declaração dos Direitos do
Homem, como também não se deve supor que essa Declaração funde uma
teoria constitucional. Porém essa leitura do fundamento comunitário do
pensamento de Jefferson não implica uma política conservadora. A comuni­
dade não é constituída de uma vez por todas nem fixada em seus deveres, assim
como em seus direitos. É o que demonstra, contra sua vontade, G. Wills,
quando insiste, a propósito do esboço de Jefferson, sobre uma passagem que
o Congresso havia suprimido. No mesmo parágrafo em que ele explicava a
necessidade da ruptura por causa da surdez de nossos irmãos britânicos,
Jefferson havia colocado à frente o fato de que a colonização se tinha operado
sem a ajuda da Grã-Bretanha e de que os colonos se tinham ligado livremente,
por intermédio da Coroa, à comunidade inglesa sem, para tanto, aceitar uma
submissão ao Parlamento, onde eles não estavam representados. Decorria
desse fato que eles podiam livremente retratar seu juramento de obediência
para ficar tão livres quanto no momento da colonização. O Congresso vira sem
dúvida nessa cláusula uma contradição, sendo dado que os malfeitos ingleses
eram atribuídos ao rei na Declaração. Mas essa teoria da expatriação livre traz
outras implicações que Wills ignora, já que a vida política de Jefferson foi o
testemunho dela. E são essas implicações que explicam a reputação de
“radical” que sempre se associa à pessoa de Jefferson.
Sabe-se que Jefferson apoiava a Revolução Francesa. Mesmo nas piores
horas, em 1793, ele escreveu a W. Short que, deplorando a morte sem processo
das vítimas do Terror, o tempo e a verdade “salvarão e embalsamarão sua
lembrança, enquanto sua posteridade gozará dessa liberdade pela qual eles
não hesitaram em oferecer suas vidas". No fim de sua vida, escrevendo em
1823 a um antigo inimigo político, John Adams, que deplorava a Restauração
Francesa tanto quanto Robespierre e Bonaparte, Jefferson reafirmava sua fé
republicana: “ Para chegar lá, rios de sangue terão ainda de correr e anos de
desolação terão de ser superados. Mas o objetivo vale esses rios de sangue e
esses anos de desolação, pois que herança mais rica se pode deixar para a
posteridade?" Quanto à América independente, sabe-se que uma rebelião em
Massachusetts em 1787 catalisava as energias em torno de uma reforma
constitucional. Mas Jefferson apoiava o direito dos rebeldes. Em uma carta a
W. Smith, ele afirmava que era preciso uma rebelião como aquela a cada vinte
anos, pois “que país poderia preservar suas liberdades se o povo não mostrasse
dessa maneira a seus governantes que ele preservou o espírito de resistência?”
“Que significa a perda de algumas vidas dentro de um século ou dois? A árvore
da liberdade deve ser refrescada de tempos em tempos pelo sangue de patriotas
e de tiranos: é seu adubo natural.”
Poder-se-ia multiplicar tais citações; seu fundamento é exprimido em uma
carta a Madison em 1789 que afirma uma outra verdade evidente por si mesma:

556
“que a terra pertence aos vivos". Jefferson prossegue essa afirmação com um
sábio cálculo demográfico que demonstra que uma geração substitui uma
outra de dezenove em dezenove anos. Então, continua ele, da mesma maneira
que um indivíduo não tem o direito de endividar sua posteridade, assim
também a sociedade não pode impor a suas leis ou constituições válidas para
além desse limite! Jefferson propõe então inscrever em toda lei essa limitação,
a fim de assegurar a participação dos cidadãos em sua vida comum. Reencon­
tramos nesse ponto a tese de H. Arendt segundo a qual a Revolução Americana
era radical por ser política.
Constatação otimista, se não idealista. Em um “memorando” escrito
por Jefferson em 1800, às vésperas de assumir a presidência, são detalhados
o que ele acredita serem os serviços prestados ao país. A lista começa pela
canalização de um pequeno rio da vizinhança; passa por reformas legislativas
que ele soube introduzir e termina com o envio de oliveiras de Marselha para
Charleston e a introdução de um gênero de arroz africano suscetível de
transformar as más condições de trabalho no Sul, pois, diz ele, “o maior
serviço que se poderia prestar a um país é o de acrescentar uma planta útil,
a mais importante sendo um cereal ou então um óleo comestível”. Se se
acredita encontrar o espírito pragmático americano nessa auto-avaliação,
concluamos, enfim, com o epitáfio escolhido por Jefferson no ano de sua
morte,em 4 de julho de 1826, exatamente cinqüenta anos após a Declaração:
“Aqui está enterrado Thomas Jefferson, autor da Declaração da Indepen­
dência americana, da lei da Virgínia estabelecendo a liberdade religiosa e
Patrono da Universidade da Virgínia.”

• As obras de Jefferson foram publicadas na edição de Julian P.Boyd, The p a p e rs o f T h om as


20 volumes, Princepton, Princepton University Press, 1950-1982.
Jefferson ,

► Os comentários mais importantes são: Carl L.Becker, The D e cla ra tio n o f tn d e p e n d e n c e , 1!


edição em 1922, reeditado em Nova Iorque, Vintage Books, 1958 e 1970; Daniel Boorstin, The
L o s t W o rld o f T h o m as Jefferson , 1! edição em 1948, reeditado em Chicago, University of
Chicago Press, 1981; Hannah Arendt, O n R e vo lu tio n , Nova Iorque, Viking Press, 1963; Garry
Wills, I n v e n tin g A m eric a , Nova Iorque, Vintage Books, 1979; Richard K. Matthews, The R a d ic a l
P o litic s o f T h o m a s Jefferson , Kansas, University Press o f Kansas, 1984. Ler-se-á com interesse
o estudo de Merrill D. Peterson, The J efferso n ia n Im a g e in lh e A m e r ic a M ind, Oxford, Oxford
University Press, 1960. Sobre a Revolução Americana, poder-se-á referir-se a Dick I loward, La
n a iss a n c e d e la p e n s é e p o liliq u e a m é r ic a in e , Paris, Ramsay, 1987.

Dick HOWARD.
JOÂO XXIII, 1881-1963

Pacem in Terris, 11 de abril de 1963

Será que esta encíclica, tradicional em seu estilo, por intermédio da qual
um papa octogenário parece, cerca de dois séculos depois das declarações
americana e francesa e cerca de vinte anos depois da Declaração Universal de
1948, apoiar, enfim, a causa dos Direitos do Homem, merece um lugar entre
as grandes obras políticas?
Duas razões ordenam uma resposta afirmativa.
A primeira pertence ao passado: a encíclica de 1963 não constitui uma
reunião tardia a um pensamento que as autoridades da Igreja teriam até então
ignorado; durante todo o século XIX, elas não o ignoraram, elas o condenaram.
Tal viravolta marca uma data na história das idéias, e o documento que a opera
merece prender a atenção.
Mas - e é a segunda razão que justifica seu estudo - a encíclica não se
limita a uma adesão. Há, no movimento dos direitos do homem, dois elementos
distintos: uma ideologia e uma formulação. A partir da ideologia das Luzes, os
políticos, tomando o lugar dos filósofos, têm nos Estados Unidos e na França,
preparado a lista dos direitos do homem, e lhes conferiram uma certa força
jurídica. A Igreja, em 1963, faz sua a formulação, mas integra os direitos do
homem em um outro sistema de pensamento diferente daquele do qual eles
saíram.
É à rejeição inicial dos direitos do homem pelos ensinamentos dos papas
que é preciso remontar para medir o alcance de Pacem in Terris. Rejeição
aparentemente paradoxal: os direitos do homem foram formulados em socie­
dade moldadas por séculos de cristianismo. Nenhum outro dos grandes
sistemas de pensamento religioso havia desembocado nessa formulação. É
difícil ver aí o efeito de um simples acaso. De fato, a maioria dos conceitos que
estão na base dos direitos do homem saíram da tradição judaico-cristã. A
dignidade igual das pessoas é inerente ao ensinamento bíblico da criação do
homem “à imagem de Deus”. Ela foi reforçada pelo dogma cristão de uma
redenção oferecida a todos, “gregos ou judeus, escravos ou homens livres”
(São Paulo, Galates, III, 28). Sim, o conceito de direito natural vem dos juristas
de Roma; sabe-se o lugar que ele tomou no pensamento de São Tomás de
Aquino e dos teólogos espanhóis do século XVI. Foi se baseando sobre os
direitos naturais do homem que os papas, a partir de 1436, condenaram a
escravização dos índios, depois dos negros, e que Las Casas lutou duramente
contra aqueles que os subjugaram.
Como se explicam, então, essas condenações pelos papas, de Pio VI a Pio
IX (encíclica Quanta Cura e o famoso Syllabus, em 8 de dezembro de 1864),
que ferem uma doutrina na qual os católicos liberais, na mesma época, viam
um prolongamento da mensagem cristã?
É preciso fazer sua parte no contexto histórico. Os direitos do homem
são apenas um dos elementos da filosofia das Luzes, cujos defensores não

558
param de denunciar o obscurantismo da Igreja e de seus dogmas. Como não
haveria ela de sentir como uma ameaça o triunfo de uma corrente de idéias
que lhe era globalmente hostil? Dissociar uma parte do todo era difícil. A
dificuldade se agravou no decorrer do século XIX: a contestação liberal fez de
seu alvo favorito uma Igreja que, mal recuperada da sacudidela revolucionária,
só via segurança nos campos dos defensores da ordem.
Mais profundamente, a liberdade de consciência, a livre difusão dos
pensamentos e das opiniões colocavam para os responsáveis pela Igreja o
problema que se coloca a todos aqueles que se julgam possuidores de uma
verdades absoluta. Conceder ao erro os mesmos direitos que concedem à
verdade, não seria, quando essa verdade diz respeito ao mundo, comprometer
a vinda dos amanhãs que cantam, já que ela abre as portas para uma salvação
eterna, trair aqueles que têm vocação para dar o seu consentimento a isso?
Esse problema de consciência, que os totalitarismos temporais resolvem
por meio do recurso à força, conduziu a Igreja a deixar na sombra uma verdade
inscrita, no entanto, no âmago de seu próprio ensinamento: o ato de fé só tem
sentido e valor se é um ato livre.
O mal-entendido inicial não parou de se agravar: os católicos denuncia­
ram, na afirmação dos direitos do homem, uma ignorância voluntária de seus
“deveres” e uma negação dos “direitos de Deus”, fornecendo, assim, ao
anticlericalismo a oportunidade de endurecer sua hostilidade. O Syllabus de
1864 é o ponto culminante desse conflito.
O rigor com o qual se encontra condenada a idéia de uma possível
reconciliação do Pontífice romano "com o progresso, o liberalismo e a civiliza­
ção moderna” (Syllabus, LXXX) seria mal explicado, pois, no entanto, no
próprio âmbito da Igreja, vozes haviam desejado essa reconciliação.
Na França, os nomes de La Mennais desde 1830, de Montalembert, de
Lacordaire, de monsenhor Dupanloup, durante todo o século, ilustram essa
corrente, à qual não param de se opor os defensores de um integralismo forte
da caução de Roma, da qual Luís Veuillot é o porta-voz.
Leão XIII, que sucedeu Pio IX em 1878, não volta a falar formalmente
sobre os anátemas fulminados por seu antecessor. No entanto, ele os modera.
Sobretudo, dando ênfase, na ecíclica Rerum Novarum, de 1891, aos direitos
dos trabalhadores, encorajando na França o reatamento com um regime que
fazia da Declaração de 1789 sua ideologia oficial, abria o caminho para a
reconciliação rejeitada por Pio IX.
Ela será retardada pelo conflito que, na França, dirige os católicos contra
a política anticlerical do bloco radical até a guerra de 1914.
Mas, após o apaziguamento que lhe segue, a subida dos totalitarismos
vai inverter o sentido das condenações pronunciadas por Pio XI e Pio XII.
Denunciando os prejuízos causados à dignidade da pessoa humana pelo
nacional-socialismo e o comunismo (encídicàs MitBrennender Sorge e Divini
Redemptoris, 1937), Pio XI prepara o ensinamento de João XXIII.
Mais diretamente ainda, Pio XII, em sua mensagem de Natal de 1942,
colocando no âmago da vida social “a conservação, o desenvolvimento, o

559
aperfeiçoamento da natureza Humana” e o respeito a seus “direitos fundamen­
tais”, anuncia os temas essenciais de Pacem in Terris (Paz na Terra).
0 objeto da encíclica de João XXIII ultrapassa o tema único dos direitos
do homem. 0 que ela propõe, “ao clero e aos fiéis do Universo” e também -
traço significativo —“a todos os homens de boa vontade”, é uma visão global
das condições às quais está subordinada “a paz no mundo”. Essas condições
se resumem no respeito às normas de conduta inscritas por Deus na “natureza
humana”. Essas normas regem as relações entre os homens, suas relações com
as autoridades estatais, as relações entre Estados e, enfim, as relações dos
Estados com a comunidade mundial. Porém, em cada um dos capítulos
consagrados a esses quatro temas, os direitos do homem mantêm um lugar
essencial.
No ponto de partida de toda a construção, há a afirmação do princípio
de que “todo ser humano é uma pessoa, isto é, uma natureza dotada de
inteligência e de vontade livre”. Daí seus direitos, daí também seus deveres,
inerentes a essa natureza e, portanto, "universais, invioláveis e inalienáveis”.
A lista dos direitos que segue essa afirmação inclui, sem os distinguir nem
hierarquizar, as liberdades fundamentais da tradição liberal e as crenças sobre
a sociedade consagradas pelas constituições do após guerra e a Declaração
universal: direito à vida, à integridade física, aos meios necessários a uma
existência decente, direito ao respeito da pessoa, à liberdade na busca da
verdade, na expressão do pensamento, na criação artística, direito a uma
informação objetiva, à instrução, à cultura, à liberdade da prática religiosa,
direito à livre escolha de um estado de vida, direito, para os pais, de assegura­
rem a educação de seus filhos, direito ao trabalho e à iniciativa econômica,
direito a um justo salário, direito à propriedade privada, liberdade de reunião
e de associação, liberdade de circulação dentro do quadro nacional e inter­
nacional, direito de participar ativamente da vida pública e, enfim, direito a
uma proteção jurídica do conjunto dos direitos precedentes.
A lista, manifestamente se quer exaustiva e, também, concreta. A partir
de uma visão abstrata e geral da natureza humana, o texto visa a situações
particulares - velhice, viuvez, desemprego - e às necessidades precisas -
alimentação, habitação, cuidados médicos - , mais próximo nisso da Declaração
Universal de 1948 do que da de 1789. Na mesma linha de pensamento se situa
a consideração dos “sinais dos tempos”, isto é, da evolução das sociedades
contemporâneas: promoção dos trabalhadores que pretendem ser tratados
“não como seres sem razão nem liberdade, dos quais se faz uso à vontade, mas
sim como pessoas”; entrada na vida pública da mulher, “cada vez mais
consciente de sua dignidade humana”; fim das dominações coloniais e dos
complexos de inferioridade, em alguns casos, e de superioridade, em outros, a
que elas conduziam, ao encontro da “igualdade natural de todos os homens”.
Restabelece-se, na lista -dos direitos, algumas prudências e algumas
audácias. As prudências: não surpreende mais que, falando da família, a
encíclica reafirme o caráter indissolúvel do casamento nem que ela assinale
como limite à liberdade de expressão “as exigências de ordem moral e do bem

560
comum”. As audácias são mais marcantes: se a afirmação do livre consentimen­
to ao casamento se situa no fio direto da tradição canônica, a igualdade dos
direitos e dos deveres entre o esposo e a esposa reúne a evolução dos costumes
e das leis, e se antecipa a à de muitas mentalidades. Principalmente, a
formulação da liberdade religiosa parece realmente marcar uma ruptura com
o passado: reconhecer a cada um o direito de "professar sua religião” é
estender esse direito a todas as religiões e não reservá-lo a uma única,
considerada como da verdade. Estamos nos antípodas das condenações do
século XIX que negavam todo direito ao "erro”.
Nesse capítulo consagrado às relações entre os homens e as autoridades
estatais, os direitos formulados anteriormente ocupam um lugar central. Se a
função governamental, efetivamente, tem por finalidade a busca do “bem
comum”, esse reside, antes de tudo, na “salvaguarda dos direitos e dos
deveres”; “garantir o reconhecimento e o respeito dos direitos, sua conciliação
mútua, sua defesa e sua expansão”, essa é a missão do poder, missão tão
essencial que sua transgressão e a violação dos direitos tiram dos atos da
autoridade “todo valor jurídico”. Esse tema é constantemente retomado. Ele
fundamenta a condenação dos poderes que se apoiam principalmente “sobre
a ameaça ou o temor da sanção penal”, valoriza ao contrário os regimes
democráticos, conduz - e reencontra-se aqui a atenção dada aos "sinais do
tempo” —à aprovação do movimento que tende a inserir nas constituições
contemporâneas uma carta dos direitos fundamentais do homem.
Com o capítulo relativo às relações entre os Estados, é aos direitos dos
povos, mais do que aos direitos do homem, que a encíclica consagra seus
desenvolvimentos. Mas estes são o fundamento daqueles. É porque “não pode
existir seres humanos superiores aos outros por natureza” e porque cada
comunidade política “é um corpo cujos membros são homens” que “cada uma
tem direito à existência, ao desenvolvimento, à possessão dos meios necessá­
rios para realizá-lo”. É o respeito à pessoa que comanda, ao mesmo tempo, a
proteção das minorias étnicas e a necessidade para essas de não se fecharem
em seus particularismos “a ponto de fazê-los passar adiante dos valores
humanos universais”. É o respeito à pessoa, ainda, que impõe o acolhimento
dos refugiados políticos e o dos imigrantes em busca de emprego.
Os desenvolvimentos consagrados à comunidade mundial transportam
ao nível universal o conceito de bem comum. Mas eles não modificam sua
natureza: o “bem comum universal”, não mais do que o “próprio a cada nação”,
não pode ser definido sem referência à pessoa humana, e seu objeto fundamen­
tal permanece “o reconhecimento, o respeito, a defesa e o desenvolvimento dos
direitos da pessoa”. Para isso, existem duas razões: a primeira, permanente, é
“a unidade da família humana”, baseada sobre “a igualdade e a dignidade
natural de todos os seres que ela reúne”. A segunda está ligada à evolução
contemporânea: a intensificação das trocas, a imbricação das economias fazem
com que "cada país, tomado isoladamente, não esteja mais absolutamente
habilitado para prover convenientemente suas necessidades nem para atingir
seu desenvolvimento normal”. E, portanto, no plano mundial que devem ser

561
assumidas a defesa e a promoção dos direitos do homem. Dentro dessa
perspectiva, o "sinal do tempo” retido nesse caso é a adoção pela ONU da
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sem dúvida, a encíclica não
ignora as “objeções” e as “reservas” suscitadas por “alguns pontos” da
Declaração. Mas a aprovação a arrebata. Ela é calorosa. Ela se faz acompanhar
do desejo de ver logo o momento em que a ONU “garantirá eficazmente os
direitos da pessoa humana”.
A aprovação assim dada à Declaração Universal implica por isso uma
adesão à ideologia dos direitos do homem? Mas qual foi a ideologia fundadora
do texto de 1948? Não poderia ter sido, evidentemente, a de 1789. A teoria do
estado natural e do contrato social está necessariamente excluída pela afirma­
ção dos direitos de crença que se exercem contra a sociedade. Tais direitos não
podem preexistir a esse. Eles não podem emanar de um estado natural ao qual
o contrato de onde nasce a sociedade teria posto fim: não há credor onde não
há devedor. Os dois mitos fundadores das Declarações do século XVIII, estado
natural e contrato social, podiam fornecer uma explicação ao reconhecimento
das liberdades, heranças do estado natural preservadas no contrato. Explica­
ção carregada de ambigüidade, além disso, pois a teoria do contrato, segundo
o sentido de Hobbes, Locke ou Rousseau, reserva às liberdades uma sorte bem
diferente! Ela não resistiu às críticas que, vindas de todos os horizontes
intelectuais,só deixaram subsistir sua importância histórica.
A ideologia da Declaração Universal se reduz a uma pura e simples
afirmação: a da “dignidade inerente a todos os membros da família humana”,
que traz para eles “direitos iguais e inalienáveis” (Declaração,Preâmbulo). Mas,
sobre o fundamento dessa dignidade, a Declaração permanece muda. Ela faz
dele um postulado,não propõe nenhuma justificação. E não poderia ser
diferente, levando-se em conta a diversidade das culturas e das ideologias dos
Estados reunidos na ONU. Por mais débil que seja a afirmação, por outro lado,
seu caráter abstrato e quase metafísico foi uma das razões invocadas pelos
Estados marxistas para se absterem, então, do voto final. A unanimidade
procurada e que não foi possível, apesar de tudo, ser obtida podia ser esperada
sobre a lista dos direitos, mas não se pôde realizar sobre uma ideologia própria
para fundá-los.
É esse fundamento que propõe a encíclica, recolocando os direitos do
homem no conjunto da doutrina da Igreja. Aí está sua principal contribuição:
ela insere os direitos do homem em uma visão global da ordem do mundo, que
ela propõe não somente aos católicos, mas a todos os cristãos e, mesmo, a
todos os crentes das religiões monoteístas. A dignidade da pessoa é esclarecida
“à luz das verdades reveladas por Deus". Inteligência e liberdade do homem
são inerentes a sua origem: criado por Deus, “a sua imagem e semelhança”, o
homem guarda o reflexo da transcedência divina. Essa dignidade original se
encontra ainda exaltada, para o cristão, pelos dogmas da Encarnação e da
Redenção. A Natureza humana se insere em uma ordem total, reflexo da
sabedoria divina. Daí o caráter “universal, inviolável, inalienável” dos direitos
que a ela estão ligados: desconhecê-los não é somente trair a condição humana,

562
é opor-se tanto quanto possível ao desígnio de Deus sobre o mundo-. Assim,
apaga-se a oposição, que havia sido um dos motivos das condenações injciais
dos direitos do homem, entre estes e os “direitos de Deus”: respeitar o homem
e seus direitos é obedecer à vontade divina.
Por aí —e é uma outra contribuição da encíclica os direitos do homem
adquirem uma dimensão maior. Seu respeito não se impõe’ somente nas
relações dos particulares com os poderes públicos, segundo a ótica de 1789;
deve ser a regra em todas as relações humanas. Sobretudo, os direitos do
homem estão, para João XXIII, no âmago das relações entre'as comunidades
políticas, e ele faz deles a base da comunidade mundial, da qual ele afirma a
necessária institucionalização.
Direitos do homem, mas também deveres do homem. A reconciliação das
duas noções é um dos pontos fortes do documento. O silêncio do texto de 1789
sobre os “deveres”, a insipidez dos desenvolvimentos consagrados a esses por
algumas das declarações posteriores havia sido um dos motivos da rejeição da
teoria pelos papas do século XIX. A encíclica não se limita a enunciar,
paralelamente aos direitos, deveres; eia liga estreitamente u n s e o u t r o s .
Os deveres não se opõem nem se justapõem aos direitos: eles decorrem
destes. A utilização dos direitos é, para cada um, geradora de deveres. Assim,
o direito de procurar livremente o verdadeiro provoca o dever de se compro­
meter nessa procura. Sobretudo, o direito reconhecido a todos impõe a cada
um a obrigação de respeitá-lo no caso dos outros. A idéia estava implícita na
fórmula de 1789 que assinala como limite aos direitos de cada um os direitos
iguais do outro. Mas ela não havia ainda sido desenvolvida: a ênfase foi
colocada sobre os limites que as liberdades impunham ao poder, não sobre seu
respeito nas relações entre particulares, A encíclica, ao contrário, afirmando a
estreita relação que liga os deveres aos direitos e a responsabilidade que daí
decorre, funda uma verdadeira ética dos direitos do homem. Ela conclui, assim,
a reconciliação do que as condenações do século XIX haviam oposto: depois
da dos direitos do homem e dos “direitos de Deus”, a dos direitos do homem
e de seus deveres.
Tomou-se suficientemente consciência, no momento, da importância da
última mensagem de João XXIII? Dois outros acontecimentos reduziram sem
dúvida sua repercussão: quando a encíclica foi publicada, em 11 de abril de
1963, o Concilio, anunciado desde 1959, havia se reunido desde de 11 de
outubro de 1962; e, menos de dois meses depois de Pacem in Terris, a morte
de seu autor suscitava no mundo uma emoção imprevista. Além do que, os
ambientes tradicionais experimentaram, em comparação com um texto que
rompia com as condenações que haviam moldado suas mentalidades, des­
confiança que a reunião do Concilio que já havia suscitado neles. Esse papa,
cuja idade avançada determinara ser ele escolhido para assegurar uma trans­
ição, arriscava enganar suas expectativas e comprometer a Igreja em novos
caminhos que podiam ser perigosos a seus olhos.
Era exatamente nesses caminhos, no entanto, que, apesar dessas reticên­
cias, o Concilio, primeiro, e, depois, os sucessores de João XXIII iam avançar.

563
As declarações conciliares (Gaudium et Spes, de 28 de outubro de 1965;
Dignitatis Humanae, de 27 de dezembro de 1965) se situam na linha de
Pacem in Terris, e foi nessa linha, a defesa dos direitos do homem, que
assegurou a Paulo VI e a João Paulo II uma autoridade moral que o papado já
não conhecia há séculos. Os especialistas manifestam, às vezes, alguma
condescendência com respeito a um texto cuja profundidade teológica lhes
parece inferior à de João Paulo II sobre os mesmos temas. Mas foi João XXIII
quem abriu o caminho. Da ruptura com o passado recente das condenações
reiteradas, ele parece ter medido bem a importância, mas foi, para além dessa
tradição ligada a um momento histórico, um retorno ao essencial da mensagem
evangélica que ele quis. Contam-se (Neuvecelle,./o<3o XXIII, Grasset, 1968, pág.
476) as propostas quase testamentais que, às vésperas de sua morte, ele pintou
para alguns íntimos: “Hoje em dia mais do que nunca, devemos servir o homem
enquanto tal e não somente os católicos. Devemos defender antes de tudo e
em toda parte os direitos da pessoa humana e não somente daqueles da Igreja
católica. As circunstâncias presentes, as necessidades dos últimos cinqüenta
anos nos conduziram diante de realidades novas. Nâo foi o Evangelho que
mudou, fomos nós que começamos a compreendê-lo melhor.” A encíclica que
traduziu essa aspiração e marcou uma nova atitude da Igreja com respeito aos
problemas do homem e da sociedade merece, realmente, seu lugar entre as
grandes obras políticas.

• Os documentos pontificais foram publicados na coletânea oficial das Acta apostolicae sedis,
e, na França, os principais entre eles, na La Documentation catholique.

► Sobre o período anterior a Pacem in Terris, a bibliografia é considerável. Para uma síntese
da evolução: Jean lmbert, Droit canonique et droits de 1’homme, L 'Année canonique, l XI, 1971,
pág 383, e as obras citadas.
Na corrente liberal: Mareei Prélot et F. Gallouédec Genuys, Le liberalisme catholique, Paris,
Armand Colin, 1969.
A encíclica Pacem in Terris foi objeto de um número especial da Revue de 1’A ction populaire,
janeiro de 1964; cf. também P. de La Chapelle, La Déclaration universelle des droits de
1’homme et le catholicisme, Paris, 1967. Sobre a evolução depois da encíclica: Philippe André
Vicent, Les droits de 1’homme dans Venseignement deJean-Paul II, Paris, LGDJ, 1983.

Je a n RIVERO

564
KANT, Immanuel, 1724 - 1804
Crítica da faculdade de julgar, 1790

A filosofia política de Kant é muito difícil de ser situada: terá sido ele um
ardente defensor da Revolução Francesa, como já acreditavam aqueles que,
desde 1796, traduziam seu Projet de paix perpétuelle, (Projeto de paz
perpétua), a primeira obra de Kant publicada em francês? Sua critica acerba
do direito de resistência incita a duvidar disso! Será que sua filosofia do direito
se inspira no muito democrático Contrato social, de Rousseau, ou será mais,
como enfaticamente sugere A. Philonenko, “uma fundação do sistema jurídico
elaborado por Pufendorf” (Études kantiennes, pág. 89)? Sua filosofia da
história enfim, sobre a qual repousa todo o edifício de seu pensamento político,
será ela verdadeiramente esse “idealismo moral" cujas potencialidades terroris­
tas Hegel se comprazeu em criticar em um capítulo célebre da Phénoménolo-
giel Ainda aqui o estribilho do “desígnio da natureza”, dessa “providência
escondida" que guiaria o curso da história na ignorância das ações conscientes
efetuadas livremente pelos homens, pede pelo menos a prudência.
A filosofia política de Kant, é verdade, se encontra por assim dizer
dispersa em escritos relativamente menores, comparados aos monumentos
que são as três Críticas. Seria, no entanto, totalmente errôneo ver aí só uma
coleção de opiniões: primeiro, porque Kant, como todos os grandes filósofos,
tem pouca ou não tem opinião; em seguida, porque, além da multiplicidade de
manifestações, seu pensamento político se inscreve numa perspectiva sis­
temática, que procura a lógica dessa própria sistematicidade, no âmbito da qual
só os opúsculos políticos encontram sua verdadeira significação, como se
verificará em Critique de la faculté de juger (Critica da faculdade de julgar).
Evocar-se-á, aqui, portanto, num primeiro momento, o que se poderia chamar
de posições políticas de Kant. Para fazer isso, prestar-se-á atenção à maneira
pela qual ele teoriza, contra o pensamento reacionário, sobre o acontecimento
maior de seu tempo: a Revolução Francesa. Depois, em segundo lugar,

565
tentar-se-á mostrar como essas posições, aparentemente ambíguas, recebem
sua coerência e seu sentido da problemática elaborada na terceira Crítica.

A POSIÇÃO DE KANT DIANTE DAS CRÍTICAS DA REVOLUÇÃO


FRANCESA: DO DIREITO NATURAL À FILOSOFIA DA HISTÓRIA

O julgamento de Kant sobre a Revolução Francesa, apesar do que


tenham pensado certos comentadores, foi bastante mitigado: “A Revolução —
escreve ele no Conflito das faculdades (1789) — é de tal modo repleta de
misérias e de horrores que, à sua custa, um homem de boa índole não se
decidiria jamais a repetir essa experiência, mesmo se, empreendendo-a pela
segunda vez, pudesse esperar ter sucesso.” No entanto, com o ensaio de 1793,
Sobre o lugar comum: é bom em teoria, mas não vale nada na prática (citado
resumidamente como Théorie et praxis), e, depois, com o artigo sobre a paz
perpétua, de 1795, Kant, como verdadeiro chefe de fila do Aufklàrung (Ilumi-
nismo), devia se opor da maneira mais vigorosa às críticas reacionárias da
Revolução. Como compreender essa atitude?
Convém lembrar primeiro que, na Alemanha, a Revolução Francesa foi
interpretada pelo público letrado como uma pura e simples realização das idéias
fundamentais da Filosofia das Luzes, como o momento em que, rejeitando toda
autoridade dogmática, “o homem cessava de ser governado por vontades
externas e não obedecia a nada mais além da sua consciência”, à “luz interna que
cada um carrega dentro si” (cf. M. Boucher, La Révolution de 1789 vue par les
écrivains allemands, ses contemporains. Paris 1954, pág. 8). E foi sob esse
aspecto que a Revolução despertou um entusiasmo dificilmente descritível, de
que comungaram quase unanimente filósofos, jornalistas e homens de letras (cf.
X. Léon, Fichte et son temps, L I, Paris, 1954, pág. 167 sgs.).
Essa unanimidade iria ser quebrada a partir de 1793 pela publicação de
um panfleto contra-revolucionário do conselheiro privado da chancelaria de
Hanover, A. W. Rehberg. Retomando no essencial as célebres Reflexões sobre
a Revolução Francesa (1790), de Burke, as Pesquisas sobre a Revolução
Francesa, de Rehberg, iriam introduzir na Alemanha a idéia de que a Revolu­
ção, realização aberrante do Contrato social de Rousseau, teve por conseqüên­
cia inevitável o Terror, cujos efeitos haviam apenas começado a ser percebidos
além-Reno.
A argumentação de Rehberg, de grande sutileza retórica e filosófica (cf.
A. Philonenko, Théorie et praxis dans la pensée morale et politique de Kant
et de Fichte en 1793, Paris, 1966, capítulo I), termina, no entanto, com uma
conclusão de tal simplicidade que confunde: a "vontade geral” de Rousseau,
idéia muito bonita em teoria, não passa de um doce sonho, pois, na prática, os
homens permanecem prisioneiros de suas paixões egoístas, jamais se elevando
além dessa “vontade de todos” que, segundo o próprio Rousseau, permanece,
no fundo, uma vontade particular (cf. Contrato social, livro II, capítulo III).
Diante do egoísmo dos homens, a Revolução, que reconhecia não somente a
liberdade e a igualdade, mas também o direito de resistência, só pôde engen-

566
drar a anarquia e o terror; é, portanto, em direção a um governo autoritário,
guiado pela experiência e não pela metafísica, que se deve voltar, se for verdade
que as idéias revolucionárias, semelhantes nisso aos conceitos matemáticos,
jamais podem ser verdadeiramente realizadas no campo concreto (cf. Pesqui­
sas, págs. 16 a 19 e 23).
Kant não compartilhava, sem dúvida, de todas essas conclusões. Entretan­
to, estava longe de aderir plenamente às idéias revolucionárias jacobinas: adver­
sário ferrenho do direito de resistência, concebia o estado natural como um
estado de guerra, portanto, à maneira de Hobbes e não de Rousseau. Sempre viu
na execução de Luis XVI o crime político por excelência, ao mesmo tempo que a
fonte verdadeira dos excessos posteriores do Terror. As razões que o conduziram
a pegar da pena, senão para defender a Revolução, mas ao menos para refutar
seus críticos, foram de outra ordem que não um simples desacordo “político”
com o pensamento reacionário. Para compreendê-las, é preciso perceber que as
críticas da Revolução, dentro do contexto alemão, eram muito mais dirigidas
contra o próprio Aufklàrung (Iluminismo) do que contra os acontecimentos da
França. Para dizer a verdade, não se pode penetrar seu sentido e sua importância
se só se vê que elas reproduzem, no nível político, uma polêmica que ocorrera
no nível filosófico, quando da famosa “querela do panteísmo” que opôs, a partir
de 1785, Jacobi aos Aufklàrer (Iluministas). Sem entrar, aqui, nos detalhes desse
conflito (cf. sobre esse ponto a introdução de A Philonenko em sua tradução
Qu’est-ceques’orienterdanslapensée?, Paris, 1959), limitar-nos-emos a lembrar
que Jacobi lançava um verdadeiro desafio à filosofia racionalista da Luzes,
acusando-a, em formulações que já evocavam o existencialismo contemporâneo,
de ser incapaz de pensar sobre a existência concreta. Para apoiar sua demons­
tração, Jacobi se firmava muito habilmente na célebre fórmula de Kant “Fui
forçado a desistir do saber para deixar lugar para crença”, a fim de mostrar em
uma argumentação a fortiori que o próprio filósofo mais racionalista devia
reconhecer a incapacidade da razão em apreender o ser e a necessidade de voltar
à noção de Hume a respeito de crença. A razão, criticada no plano metafísico,
iria sê-lo brevemente no plano político, em que a riqueza das realidades concretas
parece exigir mais ainda o recurso à experiência. Foi o que aconteceu em 1793,
com essa polêmica sobre a Revolução, por meio da qual o racionalismo político
do Aufklàrung foi posto em questão em nome do empirismo (as referências aqui
são a Hume e a Burke), como havia acontecido, em 1785, com o racionalismo
metafísico. Foi nesse contexto que Rehberg reatou com as Reflexões, de Burke,
segundo as quais vale mais a pena conferir o poder político “a um fazendeiro ou
a um médico do que a um professor de metafísica”, se for verdade que “a ciência
política é experimental” e, “como qualquer ciência experimental, não se aprende
a priori (cf. Réflexions sur la Révolution française, Paris, 1912, pág. 99). Antes
mesmo do aparecimento do livro de Burke, Jacobi já havia endereçado, no
mesmo sentido, ao acadêmico La Harpe, religado à Revolução, e apresentando-a
como obra dos “filósofos”, uma carta na qual atacava sem rodeios a pretensão
revolucionária de ter achado “uma maneira filosófica de ser governado pela
razão” (cf. Werke, II, pág. 516 e segs.). Era, portanto, o "Aufklàrung político”que

567
era questionado, e foi na qualidade de Aufklàrer, para defender a razão mais do
que a paixão revolucionária, que Kant resolveu tomar da pena (e escrever).
Sua resposta foi elaborada em dois níveis:
- no nível do direito, em Théorie et praxis (1793);
- depois, no nível da história, em Projet de paix perpétuelle (1795).
Examinar-seão brevemente essas duas respostas antes de se interrogar sobre a
significação que lhes é preciso atribuir a partir da Critica da faculdade de julgar.
No nível do direito, trata-se, para Kant, de mostrar, contra o pensamento
reacionário, que a idéia de república não é contraditória ou, em outro termos,
que a liberdade e a ordem não são incompatíveis. Daí a estrutura temária da
construção política elaborada em Teoria e prática-, é preciso, com efeito,
operar a síntese da liberdade (na recusa da autoridade dogmática de um
governo que visaria, em Hobbes, à felicidade de seus súditos) e da igualdade
(na submissão a leis gerais que, como tais, excluem a existência jurídica e a
política de privilégios). É preciso, portanto, procurar um terceiro termo
sintético que una os dois primeiros princípios, na falta do que teríamos apenas
a liberdade sem ordem (anarquia) ou a ordem sem liberdade (despotismo). Esse
terceiro princípio será o da cidadania pensada como autonomia, como submis­
são (ordem) à autoridade que nos damos a nós mesmos (liberdade); Kant
retoma aqui, com limitações sobre as quais não se insistirá (cf. A. Philonenko,
op. cit., capítulo 7), a estrutura da teoria rousseauniana da lei.
Quaisquer que sejam os méritos ou as fraquezas da resposta kantiana, a
unidade da teoria e da prática assim produzida (ou somente visada, pouco
importa nas circunstâncias) permanece uma unidade somente em direito-.
mesmo admitindo que a idéia de república seja não-contraditória, portanto,
possível, no sentido leibniziano, a questão permanece evidente, diante das
objeções de Rehberg, perguntando sob que condições essa Idéia pode ser
realizada. Na ausência de resposta a essa pergunta, a acusação de utopismo
lançada conta os filósofos subsiste, a unidade da teoria e da prática permane­
cendo, ela mesma, uma unidade puramente teórica.
Daí a necessidade de se situar no nível da história-, a fim de que o ponto
de vista reacionário seja verdadeiramente refutado, é preciso fazer uma critica
interna, partir de suas próprias premissas (a afirmação da maldade humana)
para mostrar que elas não implicam de maneira nenhuma a condenação da
idéia republicana em proveito do autoritarismo. Defender o Aufklárung (a
possibilidade de conciliar a liberdade e a ordem), dando-se por hipótese uma
natureza humana altruísta e a priori preocupada em realizar o interesse geral,
voltaria a se situar sem dificuldades no nível do sonho; seria na verdade
facilitar a tarefa dos críticos reacionários de Rousseau. É nessa ótica que Kant
começa a desenvolver uma filosofia no âmbito da qual a crença na idéia de
progresso não se apóia mais sobre a suposição da boa vontade dois homens:
não é do altruísmo que se deve esperar a realização do direito (da constituição
republicana descrita em Teoria e prática), porém, paradoxalmente, da própria
maldade dos homens, isto é, mais concretamente, do conflito de seus pendores
egoístas. O texto essencial, a esse respeito, se situa no “primeiro suplemento”

568
do Projet de paix perpétuelle (Projeto de paz perpétua) (que retoma e
amplifica os temas esboçados por Kant no § 83 da terceira Crítica): "... A
constituição republicana é a única que pode estar plenamente de acordo com
os direitos do homem; mas ela é também a mais difícil para estabelecer e mais
ainda para conservar, de sorte que muitos afirmam que seria preciso, para isso,
um povo de anjos, porque os homens, com seus pendores egoístas, não são
capazes de adotar uma constituição de forma tão sublime. Porém, justamente
a natureza vem em auxílio da vontade geral que se baseia sobre a razão e que,
se bem que seja objeto de respeito, se encontra impotente na prática; e ela o
faz precisamente se servindo desses pendores egoístas de tal maneira que
depende somente de uma boa organização do Estado (a qual está certamente
em poder do homem) em que cada uma das forças desses pendores seja
dirigida contra os outros de tal maneira que umas neutralizem os efeitos
desastrosos das outras ou os aniquilem. Resulta, assim, do ponto de vista da
Razão, que tudo se passa como se essas forças antagonistas não existissem, e
o homem se visse coagido a ser, se não moralmente bom, pelo menos bom
cidadão. Por mais paradoxal que isso possa parecer, o problema da construção
do estado pode ser resolvido, mesmo por um povo de demônios (contando
somente que eles sejam dotados de inteligência)... A questão efetivamente não
é saber como se pode melhorar moralmente os homens, mas como se pode
utilizar para seu progresso o mecanismo da natureza..."
A primeira frase do texto lembra a objeção principal dos reacionários
contra os revolucionários: se estes últimos seguiam a distinção entre vontade
geral e vontade de todos, deveriam, então, admitir também, com Rousseau, que
a democracia supõe um povo de deuses. A segunda contém a resposta de Kant
a realização do direito na história não depende da vontade consciente dos
homens; ela é apenas o produto do mecanismo da Natureza de maneira que
eu posso agir como bom cidadão (respeitar a legalidade) sem ser, no entanto,
movido por motivos morais (posso fazê-lo por temor ou por esperança, em
resumo, por interesse). O uso de um modelo mecanicista (newtoniano) para
pensar sobre a história autoriza, então, esta conclusão um pouco surpreen­
dente: o problema político e o problema ético sendo rigorosamente distintos,
a maldade não será obstáculo para a realização do direito; muito pelo contrá­
rio, ela é o próprio motor do progresso!

DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA À CRÍTICA DA FACULDADE DE


JULGAR

Percebe-se claramente como, nessa argumentação, o pensamento político


de Kant se desloca do direito para a história. Tal deslocamento provoca para
o intérprete duas dificuldades maiores:
1) A primeira toca a questão da coerência interna do pensamento prático
(ético, político e histórico) de Kant: a concepção da história desenvolvida em
1795 não implica mudança de perspectiva radical com relação à Crítica da
razão prática, vislumbrada em Idéia de uma história universal do ponto de

569
vista cosmopolita (1784)? A segunda Crítica nâo sugeria, com efeito, que a
liberdade humana pode e deve agir nessa história, enquanto o texto de 1795
se devota inteiramente ao mecanismo naturaP E o ensaio de 1784, ao inverso
exatamente do de 1795, afirmando “acima de tudo” o requisito de “boa
vontade” para realizar a constituição republicana, não declararia (cf. sexta
proposição) rigorosamente "impossível” a “solução perfeita" do problema
político, por repousar sobre essa boa vontade?
2) Renunciando à idéia de uma história efetuada pela práxis consciente dos
homens, Kant não participa desse movimento realista e historicista (cf. Léo
Strauss, Droit naturel et histoire, capítulo VI) que culmina na filosofia hegeliana
da história? A hipótese de um desígnio escondido da natureza não é, finalmente,
idêntica no fundo à tese hegeliana de uma “astúcia da Razão"? Não assistimos
aqui a essa grande reviravolta nas relações da moral e da política que, segundo
Léo Strauss, caracteriza essa Modernidade no âmbito da qual, para a realização
da ordem política, o melhor não depende mais na virtude, mas do mecanismo
cego e natural que rege as paixões animais do homem?
Poder-se-ia ser tentado a resolver a primeira dificuldade admitindo a
hipótese de uma evolução do pensamento kantiano: essa é a interpretação
desenvolvida por A. Philonenko (cf. op. cit., primeira parte) que tende a
mostrar que, em 1784, Kant confundiria ainda moral e política, “reino dos fins”
e constituição republicana, e que é essa confusão o que o impediria de
encontrar uma solução para o problema político. Em 1795, ao contrário,
separando “nitidamente o problema ético do problema político” (pág. 29), Kant
poderia, enfim considerar a questão da realização de uma constituição repu­
blicana suscetível de uma solução, mesmo que fosse por um “povo de
demônios", já que essa solução não requer mais “o melhoramento moral dos
homens”. A evolução do pensamento kantiano poderia, então, ser descrita nos
termos seguintes: em 1784, a realização do direito está baseada na boa vontade
dos homens, portanto, em sua moralidade; ora, na falta dessa, o ideal político
fica sendo irrealizável para sempre, a teoria não pode nunca ser aplicada na
prática. O pensamento político de Kant, tal como se destaca do texto de 1784,
cai, portanto, sem resistir, sob os golpes da crítica reacionária, e foi para deter
essa crítica que, em 1795, Kant seria de alguma forma forçado, a fim de salvar
a filosofia política da acusação de utopia, a separar direito e moral, a realização
do direito podendo, desde então, proceder, num verdadeiro artifício da natu­
reza, do simples confronto mecânico das paixões egoístas.
Essa interpretação muito esclarecedora choca-se infelizmente com duas
objeções, a posição de Kant, tal como ela é apresentada efetivamente em seus
escritos, não tendo o tipo de coerência que lhe quer emprestar A. Philonenko.
É preciso constatar, com efeito:
1) por um lado, que a idéia de fazer repousar a realização do direito sobre
um mecanismo natural já foi amplamente desenvolvida nas cinco primeiras
proposições enunciadas em Idéia de uma história universal e que ela não era,
conseqüentemente, de maneira nenhuma, nova em 1795, de modo que a
contradição assinalada com razão por A. Philonenko (quanto mais o problema

570
político é dito insolúvel, mais parece poder receber uma solução) não é tanto
para ser procurada entre os dois textos de Kant (1784-1795), mas já no próprio
interior do texto de 1784;
2) por outro lado, se o pensamento de Kant tivesse verdadeiramente
evoluído sobre esse ponto, seria difícil compreender como, nos textos pos­
teriores a 1795, ainda se pudesse encontrar o tema do caráter insolúvel do
problema político. Ora, o Conflito das faculdades (1798) afirma expressa­
mente: “Esperar um dia, por mais tarde que seja, a conclusão de uma criação
política, como à que se visa aqui, é um doce sonho.”
É preciso, portanto, com todo rigor, concluir que a contradição em
questão, se ela difere bem, como o sugere a interpretação de A. Philonenko,
em duas representações da história (uma história moral, uma história mecâ­
nica), não é, no entanto, diacrônica, mas sincrônica. A solução não pode,
portanto, se encontrar na hipótese de uma evolução do pensamento kantiano,
e é preciso procurar como os pontos de vista ético e teórico se podem conciliar:
esse é exatamente o objeto central da Crítica da faculdade de julgar, explici­
tamente apresentada por Kant "como um meio de unir num todo as duas partes
da filosofia” (cf. Introdução, título III). Se a contradição inerente à admissão
de uma dualidade de pontos de vista sobre o problema político pode ser
resolvida assim (primeira dificuldade), deveria igualmente ser possível perce­
ber em que sentido a redução de Strauss do kantismo a um historicismo
pré-hegeliano é falaciosa pelo fato de ela desconhecer essa própria dualidade
(segunda dificuldade).
Uma precisão se impõe logo à primeira vista ao uso dos termos teoria e
prática no caso de Kant eles podem ser entendidos primeiro em sentido não
especificamente filosófico, como é o caso do título do ensaio de 1793, em que,
seguindo o senso comum, se pode definir a teoria como um sistema de repre­
sentação cuja prática é a realização. Mas esses dois conceitos têm também uma
significação propriamente filosófica: é teoria o que resulta no campo da aplicação
dos conceitos da natureza e, particularmente, na categoria de causalidade
natural, que sustenta o mecanismo. É prática, em compensação, o que depende
do arbítrio e pertence, como tal, ao domínio da ação moral. É neste último sentido
que se devem entender, na Crítica da faculdade de julgar, os conceitos de teoria
e de prática. Dir-se-á, então, que o ponto de vista mecanicista (ou de causalidade)
sobre a história é também teórico. É como tal que ele autoriza um certo otimismo
(Strauss diria um “realismo”) já que a realização do ideal político torna-se
provável ou, mesmo, necessária pelo fato de ela não depender mais de uma bem
hipotética virtude, porém, mais agressivamente, de paixões egoístas (com as quais
não é difícil de se contar). Ao contrário, o ponto de vista moral sobre a história
será qualificado de prático, já que ele associa a liberdade humana à realização
do ideal e assim faz esta última depender da boa vontade (inútil insistir sobre as
conseqüências “pessimistas” do ponto de vista prático).
As duas dificuldades remetem, portanto, no fundo, a uma mesma questão:
como conciliar os pontos de vista teórico e prático sobre a história e a política
de tal maneira que: 1) eles não se apresentem como uma contradição (primeira

571
dificuldade) e 2) a concordância não consista em pura e simples redução da
prática à teoria, redução essa que teria inevitavelmente "o historicismo" como
conseqüência (segunda dificuldade).
A Crítica da faculdade de julgar obstina-se a produzir tal concordância
da teoria com a prática no nível da filosofia transcendental, sem analisar as
modalidades de aplicação concretas à história e à política (salvo, parcialmente,
no § 83). Portanto, seria preciso seguir as etapas desse encaminhamento geral
antes de indicar sua importância para a solução de nossa questão particular.
Distinguir-se-ão três grandes momentos, correspondendo à introdução, à
primeira e à segunda partes da Critica: o julgamento refietidor em geral, o
julgamento de gosto e o julgamento teleológico.

O julgamento refietidor em geral

“A faculdade de julgar em geral é a faculdade de pensar sobre o particular


como compreendido no universal. Se o universal (a regra, o princípio, a lei) é
dado, então a faculdade de julgar que subentende sob aquele o particular (...)
é determinante. Mas, se o particular, para o qual a faculdade de julgar deve
achar o universal, é o único dado disponível, então a faculdade de julgar é
somente refletidora” (Introdução, título IV).
O julgamento determinante é relativamente simples de compreender: se
eu estou de posse de uma lei geral (j u r íd ic a ou científica, pouco importa nesse
caso); se conheço, além disso, os critérios de sua aplicação, não devo encontrar
dificuldade intransponível em sua aplicação. Em compensação, a estrutura do
julgamento refietidor, que se pôde comparar à jurisprudência, é sem dúvida
mâis complexa, já que ela estabelece uma relação entre dois termos, o
particular e o universal, enquanto a segunda não o faz. A fim de esclarecer esse
exercício da reflexão, tomar-se-á um breve exemplo, sugerido pela lógica de
Kant o da formação dos conceitos empíricos.
O problema a ser resolvido é o seguinte: trata-se de saber como a reflexão
procede para forjar o conceito de um conjunto de objetos ainda desconhecidos
(por exemplo, uma variedade de árvores ainda não catalogadas). O problema
corresponde exatamente à estrutura do julgamento refietidor, já que ele trata de
subentender objetos particulares que nos são dados (as árvores) sob um conceito
geral que ainda não se possui. Portanto, será preciso proceder a uma operação
de classificação para conseguir, comparando. as semelhanças, abstraindo diferen­
ças não essenciais, etc., reagrupar sob uma classe comum os objetos considera­
dos. Nesse procedimento simples já estão presentes todos os elementos cons­
titutivos do julgamento refietidor. Conservaremos os quatro principais:
a) antes de tudo, a reflexão procede do particular para o geral (na
circunstância, do individual para a classe) mesmo quando o geral não está
presente antes da atividade refletidora, mas somente apôs e por meio dela;
b) se bem que o geral não seja dado como conceito na partida, fica
subentendido, entretanto, que um fio condutor deve servir de guia para essa
atividade da reflexão: realmente é preciso supor nele um horizonte de espera

572
que empreenda a busca do conceito geral, horizonte de espera que Kant
designa com a expressão “princípio de reflexão”. Em nosso exemplo, esse
princípio reside na exigência ou na esperança de que o real empírico vai se
deixar classificar e se conformar, assim, à lógica das classes. Esta última
desempenha, portanto, o papel "regulador” de princípio para a reflexão;
c) em seguida, é totalmente contingente que o real corresponda ou não a
essa exigência de racionalidade lógica que nós não lhe impomos, mas lhe
submetemos somente: nada proíbe em direito que o real empírico não satisfaça
mais nossa exigência subjetiva de sistematicidade lógica, de modo que a forma­
ção de gêneros e de espécies empíricas permaneça sempre problemática. A
própria expressão de julgamento refletidor está, dessa forma, ligada, em Kant, à
crítica de metafísica racionalista, segundo a qual é evidente que o real é do
começo ao fim, racional (conforme os princípios da identidade, de razão, de
continuidade, etc). Por serem o real e o racional separados por Kant é que a
reflexão se torna possível. Do ponto de vista de um ser onisciente para o qual a
totalidade do real seria transparente e inteligível, só poderia existir julgamentos
determinantes, e a idéia de ciência acabada, se ela possuísse alguma verdade,
excluiria necessariamente a de julgamento refletidor. Reciprocamente, a noção
de reflexão só tem sentido se se consideram as idéias de racionalidade e de
sistematicidade perfeitas do mundo exigências e não verdades ontológicas;
d) é por essa mesma razão que a atividade da reflexão pode ser a fonte
de uma satisfação que Kant chama de estética na terceira Crítica-, é porque o
real permanece contingente com relação aos princípios de nossa reflexão, com
relação a nossas exigências de racionalidade, que podemos experimentar a
satisfação de ver se realizar às vezes uma exigência que nada garantiria a
priori que poderia ser de alguma forma cumprida.
Assim brevemente descrita a estrutura da faculdade refletidora de julgar,
é bastante fácil compreender como ela toma, no âmbito da arquitetura kantia-
na, duas formas diferentes que correspondem aos dois grandes momentos
(julgamento de gosto e julgamento teleológico) da terceira Crítica. Se a
filosofia (cf. Introdução, capítulo I) se divide em duas - filosofia teórica, que
fala sobre a natureza, e filosofia prática, que fala sobre a liberdade —, restam
apenas no nível transcendental, duas idéias suscetíveis de servir a priori de
princípios para a reflexão: a idéia teórica de sistema ou de ciência acabada,
que corresponde à idéia teológica (do ponto de vista de que haveria um Deus
onisciente sobre o mundo) e a idéia prática de liberdade ou de criação
intencional. A primeira vai fundar a reflexão sobre o belo, a segunda, a reflexão
sobre o ser organizado. Limitar-nos-emos aqui a lembrar a significação geral,
antes de voltar às implicações que essa análise das estruturas da reflexão
possui para a filosofia da história, e por isso mesmo, para a filosofia política.

Ojulgamento de gosto

Segundo a operação da reflexão, definir-se-á o objeto belo como um


fenômeno (particular) que, por si próprio e de maneira contingente, vem

573
evocar esse princípio da reflexão comum à humanidade (geral), que á a idéia
de sistema (de ciência acabada ou de racionalidade perfeita do real). Para
compreender a natureza dessa “evocação”, é preciso lembrar que, para nós,
seres finitos, a ciência acabada não poderia ser mais do que uma simples “idéia
reguladora” e, de modo algum, uma verdade real, como poderia sê-lo para um
entendimento infinito (o de Deus). Se tal idéia se tornasse realidade para um
entendimento, isso suporia que, para esse entendimento, o real fosse integral­
mente inteligível ou, em outros termos, que a natureza e o espírito, a
sensibilidade e o conceito, a matéria e a forma de conhecimento fossem
integralmente reconciliados. Para os seres racionais finitos que são os homens,
essa idéia não pode ser, portanto, totalmente ilustrada (integralmente “apre­
sentada”, diz Kant): resta dizer, entretanto, que ela nos incita a trabalhar sem
parar em sua realização, como numa tarefa infinita, o que é testemunhado, aos
olhos de Kant, pela atividade científica. Todo traço (símbolo) de realização
dessa idéia suscita, portanto, para o sujeito que ela anima, um prazer propria­
mente estético. O objeto belo (ao lado do progresso científico) constitui esse
traço. Ele é objeto que, por sua simples forma, produz em nós uma conciliação
da sensibilidade e do entendimento: nele, tudo é material, puramente sensível
e, no entanto, parece estruturado como se fosse espiritual, dotado de signifi­
cação. Engendra, assim, uma atividade de nossa imaginação cujas associações,
para serem totalmente livres, não tomam menos de uma estrutura tal como se
poderia crer (o que não é o caso), do que são reguladas por um conceito. Essa
“legalidade do contingente” —essa concordância contingente da imaginação
sensível com a exigência conceituai de uma regularidade das associações -
funciona, então, como uma “apresentação simbólica”, entendamos, um início
de ilustração da idéia de sistematicidade perfeita. Sendo dado que o objeto é
natural, exterior a nós (mesmo no caso da arte, o gênio permanece um ser
natural e inconsciente), ele é percebido como final com relação a essa
exigência de sistematicidade que ele vem satisfazer parcial mente de maneira
tão mais agradável do que realmente contingente. A idéia de sistema sendo,
segundo Kant, e enquanto dedutível das categorias do entendimento, comum
à humanidade inteira, o objeto belo que a evoca cria em torno dele um “senso
comum” (é bem aí que Hannanh Arendt verá na Critica da faculdade de julgar
o verdadeiro núcleo da política kantiana, cf. Lectures on Kanfs political
philosophy, palestras inteiramente consagradas à terceira Critica). Daí, as
quatro características do julgamento de gosto: julgamento desinteressado
antes de tudo, no sentido em que o prazer obtido na contemplação do belo não
é inerente ao próprio objeto, mas unicamente um efeito que ele produz sobre
nossas faculdades: é porque o objeto belo evoca a idéia de sistema que ele nos
agrada e não porque ele nos agrada em si mesmo é que é dito belo; julgamento
sem conceito em seguida (já que o objeto belo não é objetivamente belo, mas
apenas subjetivamente, com relação a nossa exigência racional), apontando
uma “finalidade sem fim” (uma finalidade que não é a do objeto, mas a da
relação do objeto com nossas faculdades); julgamento, enfim, universal, neces­
sário, como é a própria idéia da razão que lhe serve de princípio.

574
Utilizada de maneira simplesmente reguladora, a idéia teórica de uma
racionalidade perfeita do real se encontra em Kant por assim dizer “desonto-
logizada”: ela não é mais verdade em si, mas um ponto de vista subjetivo sobre
o mundo.
A idéia prática de uma livre criação intencional vai sofrer a mesma sorte
da segunda parte da Crítica da faculdade de julgar.

Ojulgamento teleológico

Será preciso, para explicar os motivos dos seres organizados, dos “fins
naturais”, recorrer ao uso da finalidade? No caso afirmativo, sobre que
modelo? Essas são no fundo as questões que a análise do julgamento
teleológico tenta resolver. Depois de haver abordado o difícil problema da
definição dos "fins naturais”, Kant pretende fazer uma tipologia das diversas
posições filosóficas adotadas sobre a finalidade: ele enumera principalmente
duas:
—o idealismo dos fíns consiste em declarar ilusória a noção de finalidade
e, em seguida, em denunciar como errôneo todo recurso à finalidade na
explicação científica. O idealismo dos fins toma duas formas: o atomismo
(Epicuro e Demócrito), que “explica” os seres organizados pelo acaso, e o
spinozismo, que faz deles, ao contrário, produtos de estrita necessidade;
—o realismo dos fins afirma em compensão, como seu nome indica, a
presença da finalidade e toma, também, duas formas distintas: o hilozoísmo
que faz da natureza um ser vivente e lhe atribui, assim, a capacidade de criar
intencíonalmente certos seres; o teísmo, enfim, que também supõe uma criação
consciente intencional, mas a atribui a Deus e não à natureza.
Segundo Kant, ésses quatro sistemas de explicação são insustentáveis
(cf. § 73):
— O atomismo deve ser rejeitado porque não consegue explicar os
motivos não somente dos seres organizados, mas também da própria exis­
tência, mesmo que ilusória, de nossa impressão de finalidade diante dos seres
organizados.
— O spinozismo, por sua vez, também não consegue, segundo Kant,
explicar a natureza muito particular da unidade que reúne as partes dos seres
organizados e que é uma unidade fundada em relação de causalidade recíproca
(conceito rejeitado por Spinoza).
—O hilozoísmo é, segundo ele, puramente tautológico; repousa sobre
uma posição de princípio que consiste em introduzir, sem nenhuma prova, a
vida no seio da matéria para explicar a vida e pressupõe constantemente o que
deve ser explicado.
—O teísmo, enfim, se bem que coerente de modo conceituai, apresenta
o inconveniente do dogmatismo que consiste em colocar como verdadeira no
plano objetivo uma suposição que só é subjetivamente necessária.
Segundo Kant, é preciso, portanto, considerar a idéia de uma criação
intencional um simples princípio para a reflexão e, de maneira nenhuma, uma

575
realidade em si. É somente nessa condição que a máxima finalista poderá não
se chocar com o princípio mecanicista, mecanismo e finalidade diante um do
outro sendo olhados não como categorias ontológicas, mas como métodos para
serem utilizados juntamente a fim de guiar e produzir a explicação dos
fenômenos (cf. a antimonia do julganiento teleológico. Sobre as dificuldades
que essa solução levanta, cf. A. Philonenko, Études kantiennes, Vrin, e L.
Ferry, Le sistème des philosophies de Vhistoire, PUF).
Daí, suspeita-se, algumas conseqüências capitais para o pensamento da
história. Limitar-nos-emos aqui a mencioná-las à guisa de conclusão:
1) É claro, antes de tudo, que a história é no fundo radicalmente
contingente, assim como é contigente o real que evoca, quando melhor lhe
pareça, os princípios de nossa reflexão. Portanto, não poderia existir para
Kant nem filosofia da história no sentido hegeliano, nem ciência da história
no sentido marxista, como o sugere de maneira muito nítida esta passagem
de Conflito das faculdades: “Pode ser também que o fato de o curso das
coisas humanas nos parecer tão insensato se deva à má escolha do ponto de
vista sob o qual nós o consideramos. Vistos da terra, os planetas ora vão para
trás, ora param e ora vão para frente. Mas, se nosso ponto de vista é tomado
do Sol, o que só a razão pode fazer, eles efetuam muito bem seus cursos
regulares segundo a hipótese de Copérnico... A tristeza é que, precisamente
quando se trata da previsão de ações livres, não está em nosso poder nos
situarmos em tal ponto de vista. Pois seria o ponto de vista da providência
que está além de toda sabedoria humana...” A reflexão sobre a história
humana não poderia jamais, portanto, já que ela excede a simples cons­
tatação empírica, ultrapassar a forma da conjectura, segundo o próprio
título de um dos opúsculos de Kant.
2) Em seguida, a teoria do desígnio da natureza, que evoca, no entanto,
a teoria hegeliana de um artifício da razão, não tem de maneira nenhuma,
diferentemente do que aconteceu no caso de Hegel, o estatuto de uma verdade
filosófica. Ela é apenas, para retomar ainda uma expressão de Kant, um “fio
condutor” para a reflexão do historiador. Portanto, é totalmente errado
servir-se dela, como o faz Léo Strauss, para sustentar uma interpretação que
faria de Kant um pensador antecipadamente hegeliano e historicista.
3) Assim, tendo apenas o estatuto de um horizonte de sentido possível,
a astúcia da natureza kantiana não exclui que se adote sobre a história um
outro ponto de vista: o ético. A diferença do hegelianismo é, ainda aqui,
totalmente nítida, já que no âmbito deste último, o artifício da razão implica e
justifica, por sua própria pretensão à verdade, uma crítica radical da “visão
moral do mundo”. Fazendo um uso "estético”, refletindo, dos pontos de vista
teórico e ético, Kant anuncia ao contrário uma distinção que será central nas
filosofias críticas da história, de Dilthey a Weber: a distinção entre a explicação
e a compreensão.•

• Critique de la íaculté dejuger, trad. A. Philonenko, Paris, Vrin.

576
► H. A ren d t, Lectures on Kant’s political philosophy, T he H a rv e ste r P ress, C h icag o , 1982; E.
C a ssirer, KantsLeben undLehre (1918), reediL D a rm sta d t, 1977; O. C h éd in , Sur Vesthetique
de Kant, P a ris, V rin, 1982; S im o n e G oyard-F abre, Kant et le problôme du droit. P aris, V rin,
1 9 7 5 ; L. F erry , Sublime et système chez Kant, n o s Études philosophiques, 1975; Idem
Philosophie politíque, II: Le système des philosophies de 1’hisloire, P a ris, P U F , 1984; P.
H assn er, Les concepts de guerre et de patx chez Kant, RFSP, v o lu m e XI; A. P h ilo n e n k o ,
Théorie et praxis dans la pensée morale et politíque de Kant et de Fichte en 1793, P aris, V rin,
1 9 6 8 ; Id em , L ’oeuvre de Kant, P a ris V rin, 1971; Idem , Essa is sur la philosophie de la guerre,
P a ris, V rin, 1 9 7 6 ; Idem , Études kantiennes, P a ris V rin, 1982.

Luc FERRY

KAUTSKY, Karl, 1854-1938


O caminho do poder, 1909

Quando escreveu O caminho do poder, Kari Kautsky não era ainda o


“renegado Kautsky” que gerações de comunistas stalinistas vilipendiaram sem
jamais o terem lido; nem mesmo a figura de proa do “Centro ortodoxo”, cujo
“radicalismo passivo” a esquerda socialista ridicularizava. Ele era ainda - por
pouco tempo —o “Papa do marxismo”, a maior autoridade intelectual da Segun­
da Internacional, o executor testamentário e continuador de Marx e Engels...
Com exceção notável - mas muda - de Rosa Luxemburgo, toda a cúpula
do marxismo revolucionário - Lênin e Trotski à frente - aclama, de resto, a
nova obra do mestre...
Dirigido contra a ala reformista da Segunda Internacional e, por questão
de simetria, contra os anarquistas, O caminho do poder se esforça em precisar
o conceito marxista de revolução proletária, absorvendo os ensinamentos do
ciclo de mobilização política aberto pela greve belga de 1893 em favor do
sufrágio universal, que culminaria na primeira revolução russa, de 1905-1907.
A conceituação de Kautsky se resume em seis teses.

1) Atualidade da revolução proletária

A tese revisionista da atenuação tendencial dos antagonismos de classe


na Europa Ocidental e da integração gradual do proletariado na sociedade
burguesa constitui uma extrapolação abusiva da situação dos anos 1871-1896.
Durante esse período, a ascensão da pequena burguesia e das camadas
superiores do proletariado à cidadania política, a emergência de uma legislação
social, o surto do colonialismo e, na esfera da ideologia, do nacionalismo
conduziram efetivamente a um enfraquecimento dos antagonismos sociais.
Mas se tratava, no caso, a despeito de Eduard Bernstein e de seus amigos,

577
de uma tendência passageira, cuja reversão ocorrerá em meados dos anos
noventa: na virada do século, poderosos sindicatos patronais se organizam e
desarticulam eficazmente a classe operária, mas isso levará à decadência moral
e intelectual da classe dirigente, que adota os valores e os comportamentos
reacionários das aristocracias.
A expansão imperialista e seu corolário, o desenvolvimento do militaris­
mo, aumentam os perigos da conflagração européia ao mesmo tempo que as
despesas do Estado, suportadas basicamente pela classe operária. Sofrendo a
alta dos preços dos víveres e a concorrência da mão-de-obra imigrante, ela vê
suas condições de existência se degradarem, ao mesmo tempo que cresce
espetacularmente em número, em concentração, em consciência socialista, em
organização. Socialmente diferenciado por sua própria expansão, o proletaria­
do se unifica politicamente pela prática da luta de classes. Ele não tolerará a
conflagração mundial: "A guerra universal se aproxima de maneira ameaça­
dora; - conclui Kautsky —ora, a guerra é a revolução”1.
A época das revoluções burguesas, iniciada no continente europeu em
1789, acabou em 1871.0 século XX se abre para a das revoluções proletárias
na Europa e de guerras de liberação nacional na África e na Ásia.

2) A Revolução: processo espontâneo

Contrariamente ao que pensam anarquistas e anarco-sindicalistas, a


revolução proletária não depende do voluntarismo de partido. Ela não é
“fomentada”. Ela explode espontaneamente quando as contradições da socie­
dade burguesa, ativadas e exploradas pela socialdemocracia, levam a luta de
classes a seu paroxismo. Ela é uma iniciativa da base, que os socialistas não
podem mais decretar e que seus adversários não podem impedir... Ela sobre­
vêm quando se encontram reunidas quatro condições fundamentais:
1) Ê preciso que o regime existente seja diretamente hostil à grande
massa do povo.
2) É preciso que exista um grande partido de oposição irreconciliá-
vel que agrupe em suas organizações as massas populares.
3) É preciso que esse partido represente os interesses da grande
maioria da população e que mereça a sua confiança.
4) É preciso, enfim, que a confiança no regime existente, em sua
força e em sua estabilidade, esteja abalada em seus próprios órgãos, isto
é, dentro da burocracia e das forças armadas2.
Na Alemanha, só a quarta dessas condições faltava ainda. Mas ela se veria
rapidamente realizada se uma guerra européia se desencadeasse.

3) O caminho democrático para o socialismo

Anarquistas e revisionistas concebem erradamente a revolução proletária


sobre o modelo das revoluções burguesas do século XIX. Ora, as condições da

578
luta política são radicalmente diferentes sob o absolutismo e dentro do quadro
do parlamentarismo liberal, mesmo inacabado. Contrariamente à burguesia
revolucionária, o proletariado socialista se beneficia de direitos e liberdades -
de coligação, de sufrágio, de imprensa, de manifestação e de greve —que lhe
permitem organizar-se e experimentar a todo momento seu poderio. Se a
democracia não abole os antagonismos de classe, ela permite medir exata­
mente as relações de força; se ela não pode impedir a revolução, pode ao menos
evitar que a classe revolucionária se empenhe em revoltas prematuras e que a
classe dirigente adote uma intransigência suicida.
O caminho do poder para a classe operária da Europa ocidental se
confunde com a luta histórica pelo advento, a defesa e a extensão da democra­
cia, quer dizer, da República Parlamentar. A Revolução não é a destruição do
Estado, mas sim “um deslocamento de forças sensíveis dentro do Estado'*,
"uma transformação das instituições que permita colocar constantemente o
aparelho político a serviço dos interesses da classe operária4.

4) Preservar a independência e a autonomia da classe operária

Nesse combate, a socialdemocracia deve saber frustar as provocações dos


setores mais reacionários da burguesia, que visam a conduzir o proletariado a
um confronto prematuro, o que o dexaria exangue por uma geração, como
aconteceu com os operários parisienses de 1871, no episódio da Comuna.
Porém, é preciso também que se recuse o comprometimento de participar de
governos de coalizão que a façam endossar, aos olhos dos trabalhadores, uma
parte de responsabilidade pelos delitos do capitalismo. “Grande partido de
oposição irreconciliável”, ela deve constituir uma força de reserva à espera de
que a grande onda revolucionária a leve ao governo.

5) “Um método pacifico de luta de classes"

A questão de saber se a revolução proletária será um processo violento


ou pacífico não depende do proletariado, mas da classe dirigente. O interesse
do proletariado é o de recorrer "a esse método dito pacifico da luta de classes,
que se limita ao emprego dos meios não-militares... ’6. " Mas ninguém pode
garantir que a burguesia não sucumba a um acesso de raiva... e provoque a
guerra civil por temor da revolução"®. Nesse caso, a revolta burguesa será
mais facilmente esmagada, porque aparecerá como pura agressão contra uma
classe operária pacífica, em plena violação de leis e direitos.

6) A inevitável vitória do socialismo

Quaisquer que sejam os reveses e mesmo as derrotas momentâneas que


o proletariado socialista venha a experimentar no decorrer deste século de
revolução, sua vitória é historicamente tão inevitável quanto, nos séculos
passados, o foi a da burguesia sobre a aristocracia feudal.

579
Ela está inscrita nas tendências básicas da evolução capitalista: a tendên­
cia à proletarização que faz dos trabalhadores assalariados a imensa maioria
do povo; as tendências à concentração e à urbanização, que decuplificam o
impacto de suas lutas; a tendência ao agravamento dos antagonismos de classe,
a despeito de flutuações episódicas, que mobiliza incessantemente os traba­
lhadores contra a ordem burguesa, como ondas contra o penhasco...

APRECIAÇÕES E INTERPRETAÇÕES

O Caminho do poder foi denunciado pela ala revisionista do SPD (Partido


Socialista Alemão) como um novo e lamentável avatar do catastrofismo revolu­
cionário: “O desenvolvimento econômico das nações iria exacerbar sua inimi­
zade: que contra-senso!”, exclama Eduard Bernstein. O pai do revisionismo
percebe nessa tese um ressurgimento do velho mercantilismo. As nações ca­
pitalistas são ao mesmo tempo concorrentes e clientes umas das outras, retor-
quiu ele num artigo retumbante dos Cahiers socialistes. O mercado nacional não
é uma realidade acabada, mas sim em perpétua expansão. “A era em que os povos
procuram se sujeitar uns aos outros está terminada na Europa, e o mesmo
acontecerá brevemente na Ásia, concluiu ele pomposamente... “Entramos
numa nova época, em que direito internacional se impõe. ” A atenuação da
tendência de conflito nas sociedades modernas promete um século XX de paz
e de progresso sociaV
A brochura de Kautsky é considerada igualmente inoportuna pela dire­
ção do partido, que teme ver sua retórica revolucionária, habilmente explorada
pelos partidos adversários, acarretar-lhe nova perda de votos...

Um "radicalismopassivo”

A esquerda revolucionária entende-a, antes de tudo, como uma defesa útil


da ortodoxia marxista, e o Leipziger Volkzeitung, nas mãos dos “radicais”,
apressar-se a publicar "boas notas” sobre ela. Mas essa unidade se parte, em
1910, por ocasião da polêmica sobre “a greve das massas”, que opõe Karl
Kautsky a Rosa Luxemburgo e a Anton Pannekoek.. Esses dois vetores passam
então a definir o kautskismo como um “radicalismo p a s s i v o um quietismo
político que conta essencialmente com a evolução das condições objetiveis para
concluir as tarefas da revolução, ficando limitado o papel do partido revolucio­
nário a apressar a maturação dessas condições e a explorá-las adequadamente...
Eles lhe opõem, assim, seu “radicalismo ativo": “O Partido Socialista —
escreve Rosa Luxemburgo em 1907 - não pode nem deve esperar, como
fatalista, de braços cruzados, a vinda da ‘situação revolucionária’, esperar que
esse movimento popular espontâneo caia do céu. Ao contrário, seu dever é,
como sempre, o de promover a evolução das coisas, de procurar precipitá-la ”...
Sob sua fraseologia revolucionária, concluem os “novos radicais”, esse
"radicalismo passivo” não é nada mais do que o religamento da via parlamentar
ao socialismo, tão caro à direção do SPD.

580
Continuidade ou descontinuidade?

A posição dos leninistas é diferente: não somente eles não encontram nada
a dizer quanto a 0 Caminho do poder, como ainda, na polêmica de 1910-1912
entre kautskistas e neo-radicais alemães sobre a estratégia revolucionária, tomam
firmemente o partido dos primeiros. Para a socialdemocracia revolucionária
russa, Kautsky permanece até 1914 um mestre incontestado... Daí uma leitura
do kautskismo marcada por uma descontinuidade fundamental: existe o Kautsky
de antes do voto dos créditos de guerra, em agosto de 1914, e o de depois: “o
papa do marxismo” e o "renegado Kautsky”. O Caminho do poder seria uma das
últimas grandes obras do primeiro Kautsky e faria parte, nessa qualidade, do
patrimônio universal do marxismo revolucionário...
Ponto de vista contestado pela esquerda teórica alemã dos anos vinte
(Karl Korsch)... e, de maneira mais sistemática, por críticos contemporâneos,
como Erich Matthias e Massimo Salvadori, que insistem, ao contrário, sobre a
continuidade profunda do kautskismo entre 1890 e 1938, com o inconveniente
de não reconhecer suas oscilações.

A "função integradora”da ideologia kautskista

Para E. Matthias, essa continuidade está fundada sobre a "função integra­


dora” do discurso kautskista: numa Alemanha em plena revolução industrial, a
socialdemocracia devia responder tanto às aspirações revolucionárias milenaris-
tas das primeiras gerações de trabalhadores, transplantadas dos campos, super-
exploradas e tratadas como cidadãos de segunda categoria, quanto às aspirações
reformistas de setores populares mais amplos e ao “possibilismo” da nova
burocracia operária: sindicalistas e parlamentares socialistas.
A função do discurso kautskista consiste, nessas condições, em legiti­
mar a prática reformista do aparelho, respondendo às aspirações revolucio­
nárias dos setores mais combativos do proletariado. Síntese difícil, peri­
odicamente atacada pela esquerda e pela direita, mas logo reconstruída pela
engenhosidade dialética do “papa do marxismo”, para satisfação dos chefes
do partido. No dia em que essa conciliação se tornou impossível, por causa
da chegada aos extremos provocada pela guerra e pela revolução, Kautsky
deixou de ser necessário, e o kautskismo se desagregou como doutrina
autônoma.

O marxismo de Kautsky

Para Massimo Salvadori, o conceito kautskista de revolução remete à


especificidade do “marxismo de Kautsky”, combinação de influências cruzadas
"da doutrina de Marx, do darwinismo, do liberalismo político e da reflexão
sobre as obras da grande cultura acadêmica alemã (em particular Max Weber)
e austro-húngara...”8.
Essa síntese dá nascimento a uma coerente filosofia da história que

581
informa as análises estratégicas de Kautsky aproximadamente por meio
século: de Parlamentarismo e socialismo (1893) a A revolução alemã e seu
programa (1918) e além, está na obra “uma concepção coerente do Estado
moderno, do papel do Parlamento, da função das liberdades políticas e
civis herdadas do liberalismo burguês, da necessidade de um aparelho
administrativo-burocrático centralizado (em polêmica aberta com os cam­
peões da ‘democracia direta’), da significação da democracia política
como método de conhecimento da realidade e de verificação da vontade
do corpo social’*.

• Die Agrarfrage (A questão agrária), Berlim, 1899, trad. franc., Paris, V. Giard & E. Brière,
1900; Die Soziale Revolution (A revolução social), Berlim 1902, trad. franc., Paris, Rivière,
1921; Der Weg zu r Macht (O caminho do poder) Berlim, 1909, trad. franc., Paris, Éditions
Anthrops, 1969; Was Num? (E agora?), Neue Zeit, 2* vol., 1910; Eine neue Strategie (Uma
nova estratégia), Neue Zeit, 2* volume, 1910; Zwischen Bade und Luxemburg (Entre Bade e
Luxemburg), Neue Zeit, 2‘ vol., 1910; Die neue Tactick (A nova tática, Neue Zeit, 28 vol.,1912;
tradução francesa em Kautsky, Luxemburg, Pannekoek, Socialisme: la voie occidentale, Paris,
PUF, 1983; Die Diktatur das Proletariat (A ditadura do proletariado), Viena, 1918, trad. frac.,
Paris, Bourgois, 1972; Terrorismus und Kommunlsmus (Terrorismo e comunismo), Berlim,
1919. trad. franc., Paris, Ed. Jacques Povolozky, 1921; Von der Demokratie zu r Staats-Sklave-
rei. Eine Ausseinandesetzung m it Trotski (Da democracia à escravidão do Estado: uma
controvérsia com Trotski); Der Bolchevismus under Sackgasse (O bolchevismo no impasse),
Berlim, 1930; trad. franc., Paris, PUF, 1982.

► V. I. Lenin, La révolution proletarienne et le renégat Kautsky,' Paris, Bourgois, 1972; Karl


Korsch, Die materialistische GeschichtaufTasssung (1929) (La conception matéraliste de l ’his-
toire) trad. franc., LAnti-Kautsky, Paris, Champ Libre, 1973, Erich Matthias, Kautsky und der
Kautskyanismus. Die Funktion der Ideologle under deutschen Sozial-demokratie vor den ersten
Weltkriege (Kautsky et le kautskysme. La fonction de Videologie dans la social-démocratie
allemande avant la première guerre mondiale), Tübingen, Ed. J. C. B. Mohr, 1957; Massimo L.
Saivadori, Kautsky e la rivoluzione socialista 1880-1938, Milão, Feltrinelli, 1978; Marek Walden-
berg, Wzlot i upadek Karola Kautsky’ego, Cracòvia, 1972, trad. ital., Roma Editore Riuniti, 1980;
Henri Weber, Socialisme: la voie occidentale. Paris, PUF, 1983: introdução ao debate sobre a
estratégia da "greve das massas”, artigos de Karl Kautsky, Rosa Luxemburg e Anton Pannekoek,
publicados pela Neue Zeit entre 1910 e 1912; Idem, La Russie soviétique et le “pape du
marxisme”, Karl Kautsky, em L V R SS vue de gaúche, sob a direção de Lilly Marcou, Paris, PUF,
1982; Idem, La théorie du stalinisme dans Toeuvre de Kautsky, em Les interprétations du
stalinisme, sob a direção de Evelyne Pisier-Kouchner, Paris, PUF, 1983.

Henri WEBER.

NOTAS
1. Karl Kautsky, Le chemin du pouvoir, Ed. Anthropos, pág. 162.
2. lbidem, pág. 87.
3. Op. cit., n8 1, págs. 8 e 58.

582
4. Ibldem, pág 132.
5. Op. cit n. 1, pág 71.
6. Ibldem, pág 73.
7. E. Bemstein, Dle Internationale Politik der Sozialdemokratie, em Soziaiistische
MonaUhefte, n* 10, maio de 1909.
8. Massimo Salvadori, Kautsky e la rlvoluzione socialista 1880-1938, Milão, Feltrinelli,
1978, pág 13.
9. lbidem, pág 9.

KOJÈVE, Alexandre, 1902-1968


Esboço de uma fenomenologia do direito, 1981

Alexandre Kojève não é, propriamente falando, um teórico da realidade


política. Sua reflexão, que foi rigorosa e muito vasta - tanto na elaboração
quanto na irradiação - , vai procurar mais fundo, nas próprias raízes, uma
visão das coisas que se situa melhor no campo do que se poderia chamar de
antropologia fundamental. Com agudo senso de observação, fundamentado,
sem ele se dar conta, no pensamento hegeliano, na universalidade da idéia
e, ao mesmo tempo, em sua necessária particularização histórica, foi, jus­
tamente por isso, que, ao fim de suas elucubrações intrépidas, ele plantou os
pés naqueles sítios onde se estabelecem as comunidades e os destinos dos
homens; até mesmo, conseqüentemente, sob a forma política, por meio duma
clarificação dos conceitos de justiça, de sociedade, de Constituição ou de
Estado.
O mesmo se poderá dizer dessa obra-prima que é seu Esquisse d'une
phenomenologie du droit (Esboço de uma fenomenologia do direito), escrito
a partir de 1943, pouco após ele ter renunciado ao magistério para se
consagrar sem demora à ação — foi funcionário internacional no campo da
economia —, e publicado logo após sua morte, em 1981; um livro de poderosa
estrutura e com a fineza analítica quase obsessiva que aplica à realidade do
direito os esquematismos especulativos que seu autor forjara a partir de leitura
fortemente original e, talvez por isso mesmo, infiel da Fenomenologia do
Espírito, de Hegel.
Para principiar, Kojève, seguindo, como nos diz, o exemplo de Platão, de
Aristóteles, de Max Weber e até de Husserl, se dedica a dar uma definição da
“idéia do direito” ou, ainda, de sua “idéia-essência”, Poder-se-ia dizer também
que ele segue nesse ponto, mais uma vez, o exemplo de Hegel, que escreveu,
em Linhas fundamentais da filosofia do direito: “A ciência filosófica do
direito tem como objeto a idéia do direito, a conceituação do direito e sua
efetuação” (§1). E ainda: “O sistema do direito é o reino da liberdade efetuada,
o mundo do espírito produzido a partir dele mesmo como uma segunda
natureza” (§4). Idéia e sistema serão também as palavras-chave de Kojève. E,

583
se não fala diretamente, pelo menos de maneira ostensiva, de liberdade ou de
espírito, ele reúne seu conteúdo sob o termo pesado - e determinante, do
ponto de vista político - de justiça.
O método que usa conseguir chegar a esse fim está exatamente circuns­
crito pelo título desse quase tratado: Esboço de uma fenomenologia do
direito. Esboço... esse grosso volume de quase 600 páginas? A reserva que essa
denominação implica não é mera atitude do autor; pois proceder fenomenolo-
gicamente nessa matéria - ou, dizendo de outro modo, buscar a idéia-essência
do direito por meio da análise de conteúdo de casos dados e proceder daí
simplesmente a um controle, indefinido em seu princípio, que permitiria
verificar se as diferentes situações comumente qualificadas de jurídicas, e
apenas elas, respondem a semelhante análise —é realizar a primeira parte de
uma empresa mais ampla que deveria terminar numa consideração metafísica
primeiro, ontológica enfim, compreendendo sob esses termos o processo de
espírito que resgata a subestrutura cosmológica de uma realidade, antes de
situá-la “dentro do conjunto do Ser”. Kojève contenta-se conscientemente em
“descrever o aspecto superficial do direito", em “analisá-lo enquanto fenômeno
posto diante da consciência imediata do homem”.
Para fazer isso, ele parte de situações a propósito das quais se diz
comumente que um homem se encontra envolvido numa relação jurídica.
Após diversas tentativas que lhe permitem cruzar as dimensões do direito e
do dever, da permissão, da obrigação e da interdição, ele chega a esta
fórmula: uma consideração jurídica, no sentido estrito do termo, está em
jogo desde que um sujeito, físico ou moral, tenha o direito (ou, negativa­
mente, não tenha o direito) de assumir tal comportamento não somente de
maneira teórica, mas dentro da ordem da efetividade. O sinal relevante da
objetividade dessa situação está na intervenção, possível e real, de um
terceiro desinteressado, que possa dirimir o caso regulando os conflitos
eventuais.
Percebe-se sem dificuldade que essa nota distintiva introduz no universo
do direito uma consideração que tende à regulamentação das relações entre
os indivíduos e os grupos e que é, portanto, de maneira indireta pelo menos,
de ordem política. É forçoso, então, precisar a articulação desses dois domí­
nios, formalmente diferentes e historicamente solidários, que são o jurídico e
o político. Eis que depende de uma verdadeira necessidade, por pouco que se
queira comprometer a realização da essência do direito. Sobre esse caminho,
o primeiro termo que se encontra é o de sociedade. Há sociedade, realmente,
desde que se encontre superada a relação conflitual que exprime a bipolari-
dade originante da inter-subjetividade; o que, com a intervenção de um terceiro
desinteressado, assinala precisamente a entrada no domínio do direito. Essa
sociedade elementar é uma realidade orgânica aberta a todos os desenvolvi­
mentos em função dos interesses de cada um e das finalidades que eles se dão
em comum. Há, sobre essa via de complexificação, acesso ao político propria­
mente dito se, e somente se, um conjunto de sociedade se unir por meio de
um ato constitucional cujos componentes essenciais são em número de dois:

584
instituição de um corte externo que opõe os amigos (os nacionais) aos
não-amigos e instituição de um corte interno que articula o grupo dos
governantes e a massa dos governados.
Assim procede-se descritivamente à elaboração desse tipo de estrutura
relacionai. Resta falar de sua especificidade e medir sua autonomia. Reto­
mando, então, a qualificação da essência própria do direito, Kojève situa sua
efetividade na realização da idéia de justiça. Um avanço decisivo na ordem
das razoes da qual se pode pensar que ela ultrapassa um enfoque somente
fenomenológico e já coloca em jogo uma consideração de tipo metafísico.
Eis o que permite corrigir aquilo que poderia ter parecido identificação
rápida demais dos domínios do direito e da política; depois de ter marcado
sua articulação histórica, convém realmente precisar sua diferenciação for­
mal - o que se pode fazer como segue: enquanto o político se justifica
primeiro pelas noções de eficácia e de sucesso, o jurídico, de essência mais
ampla e sem dúvida mais profunda, dedica-se, como foi dito, à realização da
justiça. Com toda a certeza praticamente, no mundo civilizado contemporâ­
neo, o Direito real em ação confunde-se com a Lei estatal: o Direito real em
ação é o conjunto das leis jurídicas aplicadas pelo Estado; é o Código de leis
em vigor. “Mas —Kojève esclarece então —erra-se, creio, ao derrubar essa
proposição e dizer que toda Lei estatal é uma Lei jurídica, um Direito. Pois,
parece-me, há muitas Leis estatais, quer sejam políticas ou outras, sem
significação jurídica. Se todo Direito em ação é uma Lei, nem toda Lei é um
Direito."
Ao Direito, conseqüentemente, cabe a preocupação com a justiça, tal
como sancionada pela intervenção de um terceiro princípio de surgimento das
sociedades; ao Estado, a carga das leis requisitadas para o viver junto dos
indivíduos e das sociedades - leis que podem ir de simples regulamentações,
sem referência direta, às elevadas finalidades do universo jurídico. Dois
domínios conexos, delicadamente imbricados, mas que não coincidem um com
o outro: "Pode-se dizer, de um lado, que todas as Leis estatais não são Leis
jurídicas. Mas é preciso acrescentar, por outro lado, que o conjunto das Leis
estatais deve necessariamente implicar também Leis jurídicas. Dizendo de
outra maneira, não pode haver Estado sem Direito estatal, da mesma forma
que o Direito não pode existir em operação dentro de um Estado a não ser sob
a condição de ser estatal.”
Por conseguinte, é legítimo - chega mesmo a ser necessário, tanto do
ponto de vista de uma fenomenologia do direito quanto do ponto de vista de
uma ciência do Estado —perguntar-se qual é a parte do jurídico, requisitada
ou desejável, no âmbito do político. Para decidir, interrogar-se-á sobre a origem
e a evolução da idéia do direito e sobre as formas que sua passagem para uma
efetividade da história pôde revestir. No centro dessa consideração, sob todos
os aspectos fundamental para o pensamento kojeviano, o estudo do conteúdo
do ato antropogênico que constitui —assim nos é esclarecido, na aplicação dos
princípios da filosofia hegeliana - a famosa figura que Kojève, exagerando na
verdade o texto de Hegel, continua a chamar de dialética do senhor e do

585
escravo. Uma figura que, para ele, vem comprovar o movimento pelo qual, na
origem da história, se assinaioue o nascimento da consciência: daí a força de
expressão de ato antropogênico.
É assim que o desejo de "reconhecimento” pode e deve ser tido como
fonte da idéia de justiça. E, portanto, de maneira indireta, como fonte das
relações sociais e/ou políticas - pelo menos daquilo que, nessas relações,
depende diretamente do jurídico. Ora, o ato antropogênico que dá um
conteúdo à idéia de justiça e que lhe permite, por conseguinte, tornar-se efetiva
dentro da história, regulando as relações entre os indivíduos e os grupos,
encarna-se sem dificuldade dentro das relações que uma análise fenomenoló-
gica, de tipo diacrônica, marca alternadamente de simetria e de dissimetria. Daí
o nascimento de vários tipos de justiça, suscetíveis por sua vez de engendrarem
modelos de relações sociais e políticas.
Na origem do duelo antropogênico que teria dado nascimento à história,
os dois indivíduos em luta consentem nessa situação se e somente se houver
a evidência de que o adversário goza exatamente das mesmas potencialidades:
"Somente quando há igualdade é que a Luta é justa para os participantes e é
por ela ser igual também para terceiros —quer dizer, na verdade, para nós -
que ela é justa objetivamente. Ela é justa porque - em princípio - cada um
dos dois adversários ter-se-ia comprometido com ela, mesmo se estivesse no
lugar do outro.” Justiça igualitária, que engendrará dentro da história um
direito aristocrático, ele próprio expressão potencial de uma certa qualificação
das relações sociais.
Mas, se se acompanhar essa luta até o ponto de sua resolução,
dever-se-á constatar uma modificação radical da idéia da justiça e do direito
dentro do qual ela se realiza. Certamente, aqui e lá, é sempre um consenti­
mento mútuo que define a relação jurídica; mas não se tratará mais de um
consentimento baseado sobre o reconhecimento da igualdade. Esta, com
efeito, foi abolida quando um dos combatentes pediu a cessação da luta,
oferecendo, em contrapartida sua submissão àquele que ele reconhecia, dali
em diante, como seu senhor. Em resumo, “se a luta antropogênica começa
dentro da igualdade, é dentro da injustiça que ela termina”. Mas essa
injustiça com relação à primeira justiça da igualdade dá nascimento a um
novo consentimento mútuo, que pode ser constatado e garantido por um
terceiro desinteressado e que engendra, portanto, uma nova" idéia de
justiça”. “A situação (...) pode ser justa, sendo dali em diante desigualitária.”
“O vencido oferece livremente seu reconhecimento em troca de sua vida, o
vencedor dá livremente a vida em troca do reconhecimento.” Entre os dois
conteúdos, não há mais igualdade, mas equivalência, e é assim que nasce
uma justiça de equivalência, que engendrará na história um direito bur­
guês, suscetível por sua vez de qualificar as relações políticas que ligarão os
indivíduos e as sociedades.
Conseqüentemente, “a análise jurídica da luta antropogênica mostra que
a Justiça surgiu sob a forma dupla de uma Justiça de igualdade e de uma
Justiça de equivalência”; tratando-se do homem, por conseguinte, “é sob uma

586
forma que contém antítese (antitética) que ele toma consciência em sua dupla
idéia de Justiça do aspecto jurídico de sua própria origem”. Cisão sem remédio
de um universo fragmentado em seu princípio? Alexandre Kojève não pensa
assim. Depois de ter reconhecido que “essas duas Justiças se opõem efetiva­
mente como uma Justiça de Senhor a uma Justiça de Escravo”, ele aposta sobre
o fato de que, “nascido de um ato único (duplo, mas recíproco), o homem só
se pode atualizar completamente, dentro de sua unidade, pela síntese do
domínio e da servidão”. Novo processo, último horizonte da luta antropogêni-
ca: anuncia-se nesse ponto a idéia de uma Justiça da eqüidade, suscetível de
dar nascimento na história à figura do cidadão.
Kojève não leva essa análise mais adiante em direção ao que poderia ser
uma tipologia dos diferentes regimes políticos. Ele se contenta, num último e
longo desenvolvimento consagrado ao estudo do sistema do direito, em
proceder a uma minuciosa classificação dos fenômenos jurídicos: Direito
Internacional e uma pluralidade dos sistemas jurídicos nacionais, Direito
Público, Direito Penal, Direito Privado, sob as formas em que este último rege
a sociedade familiar e a sociedade econômica. O que, se se relacionam esses
desenvolvimentos àqueles que formam o conteúdo da Filosofia do Direito de
Hegel, nos conduz justamente ao limiar do político propriamente dito: o
Estado, terceira e última forma da Eticidade, após as figuras da Família e da
Sociedade civil-burguesa (dita ainda Sociedade das necessidades). É verdade
que Kojève, dividindo de outra maneira sua matéria, aborda os conteúdos do
direito constitucional e do direito administrativo quando analisa as formas do
Direito Público; mas ele o faz, então, segundo um rigor fenomenológico que
situa essas realidades dentro de seu contexto explicita e estritamente jurídico,
isto é, assim como se viu, como realização, socialmente exprimível e verificável,
da idéia de justiça. O que nos coloca de posse de princípios —mas somente de
princípios - , permitindo desenvolver as figuras dessa instituição jurídica
particular que é o Estado, no ponto de encontro do direito subjetivo (o right
dos dois indivíduos paradigmáticos protagonistas da luta antropogênica) com
o direito objetivo (a lei da qual se traz garantia, na origem da sociedade, o
"terceiro desinteressado”).

• Introduction à la lecture de Hegel. Lições sobre a Phénoménologie de 1’Espirit reunidas


e publicadas por Raymond Queneau, Gallimard, 1947; Essai d ’une Historie raisonnée de la
philosophie paierme, t l : Les pré-socratiques; í.2: Platon-Aristote; t.3: La philosophie
hellénistique, les néo-platonlclens, Gallimard, 1968, 1972 e 1973; Kant, Gallimard, 1973;
Jean-Luc Pinard-Legris, Kojève, lecleur de Hegel, Raison présent, 1983, vol. 4 (ns 68), págs.
54 a 67; Idem, Alexandre Kojève, zu r franzõsischen Hegel-Rezeption, Deutsch-franzõsisches
Jahrbuch, 1981, ns 1

Pierre-Jean LABARR1ÈRE.

587
KOLLONTAI, Alexandra, 1872-1952
As bases sociais da questão feminina, 1909

A oposição operária, 1921

De Alexandra Kollontai a tradição política retém A oposição operária,


cujas teses foram derrotadas no X Congresso do Partido Comunista, em
março de 1921, à época da revolta de Kronstadt. Esse texto condena a
colonização das organizações operárias pelo Partido, os sindicatos principal­
mente; ele estigmatiza, igualmente, a burocratização das instituições, a
ascensão dos especialistas, o abandono dos ideais do socialismo científico.
Esse texto sempre foi destacado por aqueles que viram despontar o totalita­
rismo antes do stalinismo e que julgaram, como os anarquistas, que a ruína
dos ideais de Outubro foi realmente denunciada, de maneira premonitória
mesmo, pelos bolcheviques Alexandria Kollontai e A. Chliapnikov, desde
1921. De fato, essa vigilância chegava atrasada: o golpe de misericórdia nos
sindicatos independentes havia sido dado em 1919; e, anteriormente, esses
mesmos sindicatos, aliados ao partido bolchevique, haviam arruinado os
comitês das fábricas e a seção operária dos sovietes locais que eram a
expressão direta, não-burocrática, dos operários. Pela publicidade feita sobre
esse texto, a tradição militante perpetua assim um mal-entendido. A oposição
dita operária era, de fato, uma simples tendência no interior do partido
bolchevique, mas sua existência e seu programa permitiram revalorizar com
base em experiência vivida o partido antes de Stalin, mostrando que nessa
época havia debates políticos abertos.
O eco gerado por esse texto foi devido também à forte personalidade de
Alexandra Kollantai, teórica da emancipação feminista, primeira mulher comis­
sária do povo a partir e 1917 e que deveu essa posição ao eco encontrado por
seus escritos sobre a mulher, sendo o principal As bases sociais da questão
feminina (1909). Os efeitos foram consideráveis, mas a tradição política
reteve-o menos, pois ele não lhe foi de nenhuma utilidade, em compensação,
as organizações feministas perceberam perfeitamente sua importância. De
resto, foram mulheres que estudaram esses trabalhos pioneiros, sucessiva­
mente Fannina Halie, Judith Stora-Sandor e Bárbara E. Clements.
As idéias básicas de A Kollontai, antes de 1917, lhe foram em parte
sopradas por Klara Zetkin, porém ela vai mais longe do que a militante socialista
alemã, principalmente porque, tendo passado ao poder, ela pôde aplicar uma
parte de suas idéias. A primeira é puramente feminista: as mulheres devem
organizar-se, enquanto tais, com suas próprias reivindicações específicas. A
segunda é puramente social democrata, de tendência leninista: é preciso comba­
ter os movimentos feministas que existem atualmente e que são “burgueses”,
reclamam a igualdade política, quando as reivindicações verdadeiras da mulher
são mais amplas e só a classe operária as pode exprimir. A partir daí, há quatro
temas em As bases sociais da questão feminina: o combate pela independência

588
econômica da mulher, casamento e problema da família, proteção da mulher
grávida e das mães solteiras e, enfim, defesa dos direitos políticos da mulher.
Os revolucionários russos se interessaram pouco por essas questões.
Quando Lênin fala do problema da família, ele o associa ao das nacionalidades:
discípulo de Engels e de Bebei, ele estima, assim, implicitamente, que, na hora
do socialismo, as diferenças entre nações e costumes desaparecerão, e a
família, com eles.
Até outubro de 1917, essa visão explica uma das vertentes da política
bolchevique frente à família, estando a outra na perseguição do objetivo
prioritário: a conquista das massas, sua colocação sob a responsabilidade do
partido e só dele.
Esse objetivo necessita a defesa de toda reivindicação suscetível de
enfraquecer a ordem existente, em particular as aspirações das mulheres.
Lênin declara explicitamente que ele só considera com atenção o problema da
mulher porque isso ajudará o fortalecimento do Partido. A ação das ligas de
mulheres sendo eficaz, ele dá liberdade de agir a A. Kollontai e 1. Armand; de
maneira que, durante a revolução, as mulheres operárias formam sua organi­
zação própria sob a égide do Partido - e contra as ligas definidas como
burguesas.
Com a vitória, em outubro, A. Kollontai colocou em aplicação as idéias
exprimidas em 1908, de sorte que, circunspectos diante do feminismo, os
bolcheviques fizeram mais para garantir ao conjunto das mulheres a realidade
de seus direitos do que o haviam feito os meios mais dispostos a compreender
os problemas do feminismo, notadamente Kerenski.
Mas, se todas as medidas que participavam da defesa dos direitos sociais
da mulher foram bem aceitas, as que falavam sobre sua emancipação sexual e
sobre a abolição da família não tiveram a mesma acolhida. Vários escritos e
medidas posteriores a outubro de 1917 haviam feito de Alexandra Kollontai a
promotora da união livre, embora, na verdade, ela defendesse somente o
direito à união livre; por outro lado, ela estivera originariamente a favor da
abertura de clínicas de aborto. Essas medidas provocaram a repulsa vigorosa
de toda a opinião internacional ultrajada; a URSS se havia tornado o país do
estupro e do deboche.
Em 1920, Lênin falou sobre seu desacordo a Kollontai, transformada em
teórica do ‘‘amor livre”; ele não aprovava a alegoria do “copo d’água” e não
dissociava o ato sexual do amor verdadeiro, isto é, um amor durável. Ele
aceitava sem dúvida que o aborto fosse legalizado, mas não era a favor de que
o regime se pronunciasse oficialmente a respeito.
Essas medidas, todavia, tiveram início porque, na Rússia, as mulheres
burguesas, desde antes de 1917, já haviam adquirido uma posição que não
tinham no Ocidente: 26% dos quadros de saúde pública eram compostos de
mulheres, e 12% dos médicos eram mulheres. Confiando mais nelas do que nos
médicos homens, as moças afluíram às clínicas de aborto.
A resistência, entretanto, logo emergiu; ela não veio da burguesia, mas
das camadas mais baixas. Em 1924 ainda, 71% das uniões celebradas em

589
Moscou eram de casamentos religiosos. E, transplantados para a cidade, os
camponeses operários guardaram sua mentalidade tradicional: “Mestre dentro
de sua casa como um Khart na Criméia”, diz o provérbio russo. As mulheres
dos meios populares, que, nas assembléias de base, são, aliás, pouco repre­
sentadas e que o são menos ainda nas instâncias superiores do Partido, onde
dominam as mulheres burguesas (4% contra 12%, em 1918), pensam da mesma
maneira.
A plebeização do poder, por uma ascensão dos elementos populares,
principalmente de camponeses, se traduz por uma hostilidade crescente contra
as idéias concernentes à emancipação da mulher, à liberdade da família. Se o
número das mulheres cresce nos Sovietes, os elementos liberais (homens e
mulheres de origem burguesa) decrescem. Em 1925, no grande debate sobre
o casamento, que a opõe a Riazanov, Kollontai é derrotada; e fica restabelecido
o registro obrigatório do casamento, reclamado pelas mulheres abandonadas...
O grande retorno começou, as leis de 1936 anulam as de 1918-1919.
Passado certo tempo, não se falava mais, de Alexandra Kollontai... nem de suas
idéias. Durante os anos setenta, na URSS, restabeleceu-se a cerimônia do
casamento com vestido branco...

• As bases da questão feminina, editado em russo, São Petersburgo, 1909; A oposição


operária, tradução de Pierre Pascal, Paris, Le Seuil, 1974; La famille et VÊtat communiste.
Paris, Petite Bibliothèque communiste, 1920; Marxisme et révolution sexuelle, apresentado e
traduzido por Judith Stora, Paris, reed. Maspero, 1973.

► Faninna Halle, Women in Souiet Rússia, 1933; Judith Stora-Sandor, A. Kollantai, marxisme
et révolution sexuelle, Paris, 1973; Bárbara Evans Clements, Bolchevik Feminist, the life o f A.
K., Indiana, Univ. Press, 1979; Maurice Briton, The Bolsheviks a n d w o rkefs control 1917 to
1921, Londres, 1970.

Marc FERRO.

KORSCH, Karl, 1886-1961


Marxismo e filosofia, 1 9 2 3

Karl Korsch nasceu em 1886, em Tostedt, na Baixa-Saxônia, perto de


Hamburgo. Seu pai, de origem rural e fazendeiro ele próprio, antes de se instalar
na cidade e tornar-se empregado de banco, havia continuado seus estudos até o
vestibular (Abitur). Devorado pela ambição intelectual, havia tentado, de maneira
emblemática para a Alemanha do Kaiser Guilherme, construir um “sistema do

590
Cosmos”, obra de uma vida. Deixou, efetivamente, um grosso manuscrito, que
nunca foi publicado, sobre a teoria das monadas de Leibniz. Karl Korsch fez,
portanto, bons estudos no liceu de Meiningen, começando a ler, sob a influência
paterna, obras de filosofia. Seus primeiros combates ele os trava no âmbito das
associações de estudantes, nas quais toma parte naturalmente quando faz Direito
em lena: não adere ao Bund reacionário, fanático por duelos de espada e pelo
anti-semitismo, mas à Freie Studentenschaft, individualista e vagamente liberal.
Tendo obtido seu doutorado em 1911, faz um estágio de dois anos na
Inglaterra (1912-1914), que o vai colocar em contato pela primeira vez com o
Socialismo organizado e suas teorias, pelas quais ele não parecia estar nem um
pouco interessado em lena, onde fizera principalmente figura de dândi não-
conformista. Em Londres, vem a conhecer Hedda Gagliardi, que se tornará sua
mulher, e freqüenta com éla a Fabian Society. Mobilizado na Alemanha desde
o começo da guerra, ele deixa transparecer suas convicções pacifistas - é
então, no plano filosófico, um kantiano - e adere à USPD, o novo partido
socialista oposto à guerra, desde a cisão, em 1917. Une-se em seguida ao
Partido Comunista, depois da fusão do “Independentes” e do núcleo spartakis-
ta. Durante a revolução de 1918-1919, ele funciona como uma espécie de
conselheiro jurídico dos Rüte (conselhos) e ele próprio faz parte do conselho
de Meiningen. Em 1921, é deputado comunista à Camara da Turíngia; em
1923, ministro dessa mesma Land durante o efêmero “governo operário” de
Frente Única. Consegue, após toda uma batalha em torno de seu caso, ser
nomeado professor de direito civil e de “direito social" na Universidade de lena.
Em 1924-1925, é diretor da revista teórica do Partido Comunista Alemão Die
Internationale. A partir de 1925, sofre a sorte dos “zinovievistas” no Komin-
tern e se reaproxima progressivamente dos oposicionistas, que até então
combatia com vigor. Essa evolução o levará a um questionamento não somente
do stalinismo, mas do próprio leninismo também. Em 1933, deixa a Alemanha
nazista e vai para a Dinamarca, onde fica um tempo com um de seus mais
ilustres discípulos: Bertold Brecht, que o fará figurar no seu Me-Ti sob o nome
de "Mestre Ko”. Em 1936, parte para os Estados Unidos, onde morrerá, em
1961. Durante o último período de sua vida, Korsch será uma espécie de guru
da ultra-esquerda internacional, trabalhista e "radical”, mas sem partilhar do
fundamentalismo marxista de seu concorrente nesse papel, o holandês Anton
Pannekoek (1873-1980). Na verdade, desde o fim dos anos trinta, havia de novo
se reaproximado da corrente neopositivista da qual já havia seguido o início
na Alemanha. Na mesma época escreve em diferentes publicações de Boris
Souvarin, em particular em La Critique sociale. Será redescoberto na França
graças aos esforços da equipe de Arguments, em particular de Kostas Axelos,
que o publicará nas Êditions de Minuit, ao mesmo tempo que Ceorg Lukács,
de quem, ritual e talvez abusivamente, o reaproximaram desde o aparecimento
concomitante, em 1923, de Marxismo et philosophie e de Histoire et cons-
cience de classe. Lido em um primeiro nível, Marxisme et philosophie se
desenvolve como um comentário surpreendente do célebre aforismo de Frie-
drich Engeis: “O proletariado é herdeiro da filosofia clássica alemã.” Reencon-

591
tra-se aí em cada página o desprezo soberano pela “filosofia dos professores”,
já altamente proclamado em La Sainte Famille (A Santa Família) e L ’Idéolo-
gie allemande (A ideologia alemã), e reiterado pelo Lênin de Materialismo e
Empiriocriticismo..., mas também pelo Sorel "bergsoniano” e "nietzschiano”
da Décomposition du marxisme. O idealismo alemão é na verdade concebido
por Korsch como alguma coisa que não tem nada a ver com um corpo de
doutrinas filosóficas, como e entre outras; ele é a “expressão ideológica do
movimento revolucionário da classe burguesa”. Ora, a ideologia de uma classe
revolucionária não é uma “superestrutura”, mas faz parte integrante da
totalidade que constitui um movimento revolucionário. Dentro dessa Totalitât,
a filosofia não faz parte da "história das idéias”, mas do “movimento real”, da
mesma forma que a “economia política” e as práticas econômicas, políticas ou
militares. Clausewitz dizia que a teoria da guerra fazia parte da guerra. Korsch
universaliza o alcance dessa proposição: ele distingue no fundo, em uma
história que permanece mais do que nunca a da “luta de classes”, dos períodos
de “guerra de movimento”, que são de uma “bela totalidade” em que a teoria
não se distingue mais a prática, e os períodos de “guerra de posição” em que
a totalidade se estraga e se desfaz na gestão do dado e em pseudo-saberes
isolados por limites arbitrários, que são apenas os álibis da impotência (do
ponto de vista da classe “em ascensão”) ou da decadência (do ponto de vista
da classe “descendente”). Daí a tese que subentende Marxisme et philosophier.
o marxismo autêntico, como "sistema”, diz explicitamente Korsch, “não se
deixa... converter em uma soma de disciplinas particulares, às quais se acres­
centaria, do exterior, uma utilização prática de seus resultados” (pág. 93).
Portanto, não basta dizer, mesmo se isso for contra todos os Kautsky e todos
os Hilferding da terrra, que ele não é economia política positiva, porém “crítica
da economia política” e crítica das armas assim como dos conceitos: é preciso
acrescentar que ele é também "crítica da ideologia” e “crítica do Direito e do
Estado”, o que leva em consideração todos os elementos do grande todo (a
"sociedade burguesa”) que se trata de analisar e de derrubar ao mesmo tempo,
como os dois grandes discípulos de Rousseau (Robespierre e Kant) o fizeram
com o Antigo Regime Feudal. É preciso, portanto, recusar essa fórmula sutil
de “revisionismo” que é o “neo-revisionismo”, disfarçado de marxismo orto­
doxo e que une a incompreensão do momento histórico - o revisionismo de
Bernstein é necessário, já que a revolução proletária não pertence à ordem do
dia - ao cretinismo histórico, que acredita que Marx e Engels fundaram a
"economia política”, a "sociologia”, a “historiografia”, etc., “científicas”, en­
quanto o que fizeram foi só aplicar a um novo caso particular a teoria da
revolução em geral, elaborada sob o nome genérico de “dialética” por Georg
Wilhelm Hegel.
Mas, se o programa da revolução burguesa foi integralmente “realizado”,
o da dialética revolucionária (ou revolução dialética?) proletária só o foi
incompletamente (estamos em 1922...). Certamente, houve O Capital e a
“socialização” da economia (pela qual Korsch se interessou como jurista nos
tempos utópicos dos "Conselhos trabalhistas” de 1919), O Estado e a Revolu-

592
ção, de Lênin, e a instauração da ditadura do proletariado na Rússia. Mas quid
da forma teórico-prática que deverá tomar necessariamente —aqui o comunista
ortodoxo Korsch deixa aparecer uma interrogação velada sobre o bolchevismo
que não passará despercebida por Moscou - a solução da questão “ideológica”,
que se confunde com a questão da deterioração da filosofia.
Não há dúvidas, na verdade, de que Korsch (até 1925-1926) se tenha
apoiado sobre a teoria leninista do Estado para pensar sobre sua própria
relação com a espinhosa questão do “fim da filosofia” aberta na tradição
marxista pela XI®Tese de Feuerbach. Referir-se a isso lhe permite afirmar por
sua vez que, para Marx e Engels, “a ultrapassagem da filosofia significava uma
coisa completamente diferente do seu simples descarte” e fazer entrever,
todavia a um futuro em que a filosofia será “realizada”, isto ’e, dissolvida em
uma consciência de si “adequada” uma sociedade enfim liberada. É, na ordem
do conceito, o equivalente da famosa “cozinheira” de Lênin: todos os gover­
nantes, todos e todas as filosofias! Para dizer a verdade, mesmo em 1922-1923,
Korsch não era mais eloqüente sobre essas perspectivas radiosas, não mais do
que sobre o conteúdo preciso da “ditadura ideológica” que lhes deverá abrir o
caminho. Compreende-se facilmente por quê: esse homem,.que tem da ciência
uma concepção exigente*, no pólo oposto das aberações do gênero "ciência
proletária” ou Proletkv.lt, só acredita numa ultrapassagem da filosofia como a
entendem os neopositivistas da Escola de Viena, dos quais ele estará sempre
muito próximo. É de um clareamento da linguagem ordinária que ele espera a
salvação, de uma “língua dos cálculos" enfim unitária, imersa na Totalidade
social enfim transparente. Não da língua rígida dos autômatos... A ruptura com
o stalinismo, depois com o bolchevismo e, depois, com toda espécie de
nostalgia pós-marxista já estava efetivamente programada no fecundo mal-en­
tendido que aproximou durante algum tempo Karl Korsch do comunismo,
como a tantos outros intelectuais da Europa.
Desde 1930, na longa introdução Estado atual do problema com a qual
precede a reedição de Marxismo e Filosofia, ele definiu seu método como “a
aplicação da concepção materialista da história a si mesma”. Isso revela, em
plena luz, que seu livro-tratado, em falta de coisa melhor, de esquerdista
teórico por toda uma corrente que vai de Zinoviev a Althusser, isto é, por
aqueles que preferiam assentá-lo sobre a escatologia do jovem Lukács -
continha na verdade uma bomba intelectual de retardamento. Real mente,
dotando o marxismo de uma história, realçando mesmo sua periodização (Ut
marxismus, “marxismo da Ia Internacional”, “marxismo da IIa Internacional”),
Korsch, embora talvez defendendo sua essência, o dessacralizava. Mais do que
isso, deixava aberto o campo futuro para novas desventuras da dialética, como
dirá mais tarde Merleau-Ponty. Três anos apenas após a publicação de sua
grande obra, ele toma uma decisão: o marxismo de Lênin, o “marxismo da IIIa
Internacional”, como diz a marxologia de hoje —tão devedora à desdogmatiza-
ção korschiana não vale mais do que o de Kautsky. A Rússia não é o lugar

Marxismo “primitivo”.

593
de uma revolução proletária, mas o de uma nova “acumulação primitica”, ao
preço de uma ditadura sobre o proletariado (Korsch parece ter sido o primeiro
a popularizar no Ocidente essa fórmula amarga dos exilados mencheviques).
Num primeiro tempo, ele elabora a teoria dessa decepção que ele compartilha
com toda uma geração de intelectuais radiciais. O novo ciclo do capitalismo,
inaugurado em 1880, havia impedido o proletariado de se apropriar do
conteúdo revolucionário do pensamento de Marx, antes do “período de crise
e de depressão dos anos 70”. A crise do marxismo —é o título do artigo de
1931 em que Korsch desenvolve essa tese —torna-se, então, tão irredutível e
repetitiva quanto um sintoma neurótico não-analisado. Sem jamais abandonar
formalamente a referência a Marx, Korsch terá cada vez mais a tentação de
“afogar” o marxismo num contexto mais amplo de filosofia da história e de
geopolítica ou, ainda, de psicologia coletiva (colaborará nos Estados Unidos
com Kurt Lewin, o fundador da “dinâmica de grupos”...) segundo o ideal
neopositivista da “ciência unificada”. O desligamento se fará por etapas, já que
em 1930-1932, os escritos de Korsch refletem principalmente a impressão de
um “encontro não-realizado”, em que Marx e Engels teriam procedido ao
“salvamento por transferência" de uma teoria burguesa da revolução, dentro
de uma teoria da revolução de um proletariado revolucionário ainda não-en-
contrável. Vinte anos depois, tratar-se-ia mais de uma cerimônia de adeus:
“Todas as tentativas para restabelecer a doutrina marxista como um todo e em
sua função original de teoria da revolução social da classe trabalhadora são,
hoje em dia, utopias reacionárias”, dirá ele na segunda das Dez teses sobre o
marxismo corrente, conferência pronunciada na Suíça, em 1950, e que é um
pouco seu testamento filosófico. É verdade que, na época, ele confia a um M.
Rubel algo horrorizado que Bakunin é incomparavelmente mais atual do que
Marx! Korsch antecipa, assim, o destino, infinitamente menos trágico certa­
mente, de numerosos contemporâneos divididos entre a fidelidade ao pensa­
mento enigmático e fascinante de Marx e o ideal de emancipação, operária e
humana, que traem tão regularmente o(s) marxismo(s) de Estado.

• Marxismus und Philosophie foi publicado em 1923 em Berlim pela Mulik-Verlag; foi
reimpresso em 1972, numa edição crítica devida a Ernst Gerlach, pela Europãische Verlagans-
tatt (Frankfurt e Viena). A tradução francesa de Claude Orsoni apresentada por Kostas Axelos
foi publicada em 1964 pelas Éditions de Minuit, Paris.

► P. Mattick, Karl Korsch, Êtudes de Mythologie (7); Cahiers de l ’ISBA n* 140,1963; G. Vacca,
Lukacs o Korsch?, Bari, 1969; P. Goode, Korsch Study in Western Marxism, Londres, 1972;
Télos, número especial sobre Korsch, 1975.

Daniel LINDENBERC.

594
LA BOÉTIE, Etienne de, 1530-1563
Discurso da servidão voluntária, 1548

De que a amizade, a leitura e a escrita se possam unir inquirindo-se


reciprocamente dentro de uma recusa comum, e cada uma nos revelar a
dimensão política das outras, sem dúvida não poderíamos encontrar mais bela
demonstração do que a do Discours de la servitude volontaire, de Etienne de
La Boétie, nem melhor confirmação do que a dos Essais, de Montaigne. Pois,
na verdade, é difícil falar de um sem falar do outro: embora esclarecessem
“porque isso é ele, porque isso sou eu”, os dois foram “mais amigos do que
cidadãos, mais amigos do que amigos e inimigos de seu país; do que amigos
da ambição e da perturbação”? (Ess., I, 28).
Foi na leitura do manuscrito do Discours que Montaigne sentiu repenti­
namente nascer uma amizade que os viu primeiro “abraçarem-se por seus
nomes” antes de se encontrar, membros do Parlamento de Bordeaux. Amizade
que ele proclamará - depois do desaparecimento prematuro de la Boétie (Oh,
mon amy!) —sem igual no passado e no presente, ao mesmo tempo indizível
e levada a se inscrever na posteridade. Afastando-se em 1570 do serviço no
Parlamento e dos cargos públicos, é ao escrever que Montaigne se consagrará
para dar uma “segunda vida” ao amigo desaparecido cedo demais e cujos
escritos permaneceram inéditos. Depois de ter logo publicado as poesias
latinas e as traduções de La Boétie, ele se lançou, em 1572, na aventura dos
seus próprios Essais, dedicando a ele o primeiro tomo, composto como uma
pintura maneirista, e, em cujo centro, devia inscrever-se o Discours (“quadro
rico, polido e formado segundo a arte"), emoldurado por um número igual de
capítulos, como se fossem arabescos, dos quais os mais próximos tratam
significativamente da amizade e dos canibais. Porém, finalmente Montaigne
desiste dessa inserção e a substitui por vinte e nove sonetos inéditos de La
Boétie, que acabará por suprimir também antes de morrer. Desse modo, a
última edição dos Essais nos oferece estranhamente o primeiro livro como um

595
túmulo vazio, ornado unicamente com o nome do amigo. Sobre essa supressão
Montaigne explica, num “alongamento” do capitulo Da amizade, que foi
levado a isso pelas circunstâncias, a saber, a publicação "de mau êxito” do
Discours em dois panfletos huguenotes, em 1574 e 1577-1578. E, como para
se justificar de ele próprio a ter considerado assim, adianta que o Discours era
só um simples exercício de infância sobre um assunto vulgar tratado em mil
lugares pelos livros e, depois, assegura a lealdade do cidadão La Boétie. Ele
queria evitar, certamente, que a amizade dos dois fosse vista como empreitada
de sediciosos que “procuram perturbar e mudar o estado de nossa política, sem
se preocupar com a sua melhora”, o que, dito de outra maneira, poderia ser
entendido como “que só procuram consolidar sua própria dominação”. Tal
retratação surge imediatamente como um ato de cautela em tempos perturba­
dos. Atribuir o Discours a um garoto de dezesseis anos e não a um rapaz de
dezoito é, sem dúvida, tentar esconder também que seu pensamento se
acendeu em 1548 no foco das revoltas de Guyenne e da sangrenta repressão
que sofreram. Montaigne escreveu também, no entanto, que La Boétie teria,
“justificadamente”, preferido ter nascido em Veneza em vez de em Sarla e que
ele havia moldado seu espírito ao padrão de outros séculos e não daquele.
Além disso, mantém suas primeiras declarações, segundo as quais o Discours
é “uma obra séria” escrita “em honra da liberdade contra os tiranos” e
apropriadamente bem rebatizada, depois, como ContrVn, que ela tem “grande
e merecida estima das pessoas de entendimento” e que ele próprio é “particu­
larmente agradecido a esta peça” cuja presença “honrará” o resto de sua tarefa.
Esse movimento de louvor e de depreciação atravessa todo o capítulo, onde
Montaigne se rebaixa, erguendo o amigo ao nível de exemplo incomparável, de
encarnação mesma da virtude e da sabedoria, o que vai totalmente contra a
igualdade que os dois colocam como o princípio da amizade. Essas contra­
dições, esses movimentos de inclusão-exclusão, talvez seja preciso ver aí mais
profundamente o sinal do trabalho ao qual o Discours obriga o leitor-amigo
que ele reivindica. Mais do que um gesto de proteção, o lugar vazio no centro
do tomo I aparece como uma exigência do próprio Discours, e marca ainda
mais a sua presença. Ao mesmo tempo fora e dentro dos Essais, seu lugar
permanece indeterminado, do mesmo modo que a interrogação sobre si
mesmo, os outros e o mundo que ele suscita e alimenta em Montaigne.
Portanto, a presença do Discours teria sido redundante, assim como o sinal da
devoção que ele determina no âmago da servidão. Sua ausência é o sinal de
uma depreciação desse narcisismo a dois, ao qual Montaigne se presta em sua
reiteração enfática da amizade de ambos.
Dessa maneira, os Essais testemunham de maneira privilegiada o poder
provocador da questão colocada pelo Discours, que se pergunta "como pode
ocorrer que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações
suportem algumas vezes um só tirano, cujo poder decorrre do que eles lhe
atribuem; que só tem poder de prejudicá-los durante o tempo que eles o
queiram agüentar; que não lhes poderia fazer mal algum, a não ser pelo fato
de eles próprios preferirem sofrer isso tudo a ter que o contradizer”. Essa

596
paciência não é simples passividade, já que está ligada a um querer, e esse
“querer” não é uma renúncia forçada, nem essa “preferência” é uma postura
resignada diante de ou para com uma dominação antecipadamente sentida, já
que são os homens que dão ao tirano o poder de prejudicá-los. Mas a sociedade
não produz também o tirano, no sentido em que ela o precederia? O que o
Discours revela é que, colocando alguém em “um lugar” acima dela, a
sociedade produz simultaneamente a si mesma. Portanto, não se poderia
colocar uma precedência entre o dono e o escravo que desligasse vontade e
servidão que cada um deles assume de seu lado. A divisão política não é nem
anterior, nem posterior à sociedade, mas coincide com seu estabelecimento e
se perpetua ao perpetuá-la. Não é preciso realmente se deixar tomar pela
restrição adverbial “algumas vezes”. Sob o termo tirania se encontra englobada
toda espécie de monarquia: os reis ocupam o mesmo lugar que os tiranos.
Muito mais, ironizando sobre o fato de o poder de um só ser duro e não
razoável, a dominação de vários não poderia ser boa, La Boétie despede a
questão clássica do bom regime e deixa entender que é o problema da
dominação, em todos os regimes, que ele põe em questão. Por meio da tirania,
é a origem do poder e de sua representação, da divisão do social e de sua
cobertura por uma fa n á tic a unificação o que ele tenta atingir, como Claude
Lefort revelou em notável comentário ao qual ninguém pode deixar de se
referir e em cuja trilha esta resenha tenta avançar.
A idéia de servidão voluntária presente de imediato na questão não é uma
resposta a priorí, mas o próprio âmago da questão à qual o Discours confere
sua plena dimensão do enigma, liberando-a progressivamente das teorias
tradicionais do poder. A força não está no fundamento da dominação, já que
o tirano, aliás, “na maioria das vezes o mais frouxo e o mais feminino da
nação”, está só diante da sociedade; nem a covardia no fundamento da
servidão, pois não pode ser chamado assim o fato de “um milhão não se
defender de um", tanto que todos vão “corajosamente” à guerra para o único
proveito desse um. Não é, portanto, por medo da morte violenta que se explica
a servidão, mas também não pelo amor das supostas qualidades naturais do
tirano, pois ele não tem qualidades, sendo, com respeito a seus súditos,
"inumano e selvagem”. Quanto à autoridade paterna, ela não tem dimensão
política: cada um é testemunha “em si e por si” da obediência prestada
naturalmente aos pais. Impossível, conseqüentemente, basear a dominação ou
a servidão sobre a desigualdade natural dos corpos ou dos espíritos, que é bem
mais a condição de uma afeição fraternal. O silêncio observado por La Boétie
sobre a teoria da origem divina do poder, quando ele trata da gênese da
sevidão, é tanto mais eloqüente por ele o romper quando examina os ins­
trumentos da manutenção da tirania e fazer ressaltar que sua eficácia emana
da circunstância de responderem ao desejo dos súditos. Aos tiranos antigos,
que utilizavam a religião como guarda-corpo e pediam emprestado alguma
mostra de divindade para se sustentar, se acham, assim, associados os reis da
França e, notadamente, sua ampola do Santo Óleo. É clara a aproximação que
não desmente um protesto de confiança, de uma ironia cortante, na divindade

597
desses reis e que mostra que La Boétie não faz somente obra sobre a política,
mas também obra política. Difícil ser mais explícito para a época, mas inútil
também, pois é todo o Discours que denuncia a dimensão religiosa do político
desvendando a relação do desejo com o imaginário. Se o poder não é um dado
natural ou divino, em todo caso ele realmente depende unicamente da vontade
humana. Mas essa vontade não implica uma consideração racional ou um
cálculo utilitário, uma representação de meta e uma deliberação. O poder não
é resultado de um acordo refletido das vontades, de um pacto de associação e
de sujeição. E a um arrebatamento do desejo que cedem os homens, um
“infortúnio” consistindo em retorno imprevisível do desejo, como bem o realça
o exemplo colhido no livro Sagrado, “aqueles de Israel, que, sem coação nem
necessidade alguma, criaram um tirano para si próprios”.
Mas, se a dominação vem de baixo ou, dito de outra maneira, se a
servidão é desejada, ela é boa por si só? Certamente ela não parece ser um
fardo para o povo, mas, pelo contrário, o maior bem que o liberta da liberdade,
esta percebida como o maior mal: “O povo (...) serve tão francamente e tão
voluntariamente, que dir-se-ia, ao vê-lo, não ter ele perdido sua liberdade, mas
conquistado sua servidão.” Todavia, o fim do Discours nos mostra o povo
praguejando contra o mal de que sofre e prometendo punição eterna para os
ministros do Príncipe, só ele sendo absolvido como se fosse inocente de tudo
o que eles cometeram em seu nome. Como compreender que o povo seja
apresentado, de um lado, como desejando a servidão e, de outro, como
maldizendo-a? Não há qualquer contradição nisso, pois a servidão é o efeito
natural da instalação de um só no lugar do poder. A coerção e a exploração
que se abatem logo sobre o povo não são objeto próprio de seu desejo, mas a
marca de sua sujeição e a lembrança de sua condição, aquilo em que ele acha
a prova da existência da alteridade. É nesse sentido que a servidão é desejada.
Mas que “ganho” essa alteridade traz ao povo? Se o Príncipe desde quando se
vê colocado em um lugar acima dos outros é “adulado por um não-sei-quê que
se chama a grandeza” e delibera não sair dali, qual é o “não-sei-quê” que adula
o povo a ponto de ele se bater por sua servidão como se tratasse de sua
liberdade? Esse “não-sei-quê” não é algo tangível, é um quase-nada que parece
ser tudo para o povo e que La Boétie nos revela antes de tudo sucintamente
depois da formulação primeira de sua questão: os homens servos estão de
alguma forma "encantados e enfeitiçados pelo próprio nome do Um”.
Essa magia do nome do Um, que é o nome de todo Senhor e seu único
poder, o Discours se dedica a ressaltar seu caminho, fazendo para isso toda
força. Assim, censura aos povos insensatos que fazem surgir a visão fantástica
do duplo corpo do Príncipe, ao mesmo tempo corpo individual e corpo coletivo:
“Aquele que vos domina tanto tem só dois olhos, duas mãos, um corpo<e tudo
o que até o menor dos homens do grande e infinito número de vossas cidades
também tem, mais a vantagem que vós lhe destes para vos destruir. De onde
ele tirou tantos olhos com os quais vos espia, se vós não lhos entregastes?
Como tem tantas mãos para vos bater, se não as tomou de vós? Os pés com os
quais pisa vossas cidades, de onde os tem se não são os vossos? Como ousaria

598
correr sobre vós, se não tem entendimento convosco?...” Ao próprio corpo do
Príncipe se liga a imagem de um corpo fantástico, simultaneamente separado
por completo do povo que ele domina com seu poderio e inteiramente
confundido com ele, já que o absorve por inteiro. Basta que um só homem,
não importa qual, seja destacado do conjunto, colocado em posição de
exterioridade, para que imediatamente ele se orne do nome de Um e dê
substância ao Um. Ele aparece como o Outro à distância de todos, e simulta­
neamente todos se colocam diante dele como se ele se transformasse no Um.
A todos os olhares que convergem sobre o tirano, a esse plural que se anula
nessa absoluta convergência, é devolvido um só olhar, uma imagem no
singular, a imagem especular da sociedade num corpo indiviso. Grande magia,
certamente, tanto que no limite não existe nenhuma necessidade de ver o
tirano como o prova o exemplo dos reis da Assíria, que não se mostravam em
público: o nome deles bastava para que o encantamento se produzisse, para
que a sociedade se encarnasse e se tornasse visível a si própria. Assim, a
sociedade se fecha em uma unidade imaginária que ela constitui como sua
duplicata, espelhada à qual o próprio corpo do Príncipe fornece um suporte e
da qual ela ignora que a fonte se encontra nela mesma. O Príncipe é como um
espelho e o desejo do povo de coincidir consigo, de ser inteiramente visível a
si mesmo, em forma de aço de espelho onde a interrogação sobre seu ser
encontra um termo imaginário. Essa é a servidão voluntária: não tanto o desejo
de ser dominado, mas o de ser nomeado, de adquirir uma identidade imaginá­
ria, precipitando-se dentro de um corpo que não pode ser decomposto, onde
cada um se funde com cada outro. O amor do povo pelo tirano nada mais é do
que seu amor por si próprio: Narciso é o outro nome do povo. Compreende-se
então que o tirano seja considerado impedido de fazer mal algum, ao contrário
daqueles que lhe estão próximos, simples corpos individuais, sistematicamente
acusados de serem responsáveis por todos os males. Daí também vem o
"desprazer” do povo quando morre o tirano, pois com ele é a sociedade inteira
que parece desaparecer ou, literalmente, se decompor. Mas o lugar que ele
ocupava permanece pela ação enérgica do desejo de todos, da mesma maneira
que o nome do Um é imortal. Imediatamente surgirá algum outro para
restaurar a identidade do corpo político, que ficou apenas um instante vazio,
para restabelecer sua continuidade.
Colocando o Príncipe nu, fazendo-o reaparecer em seu corpo empírico,
em sua natureza de homem qualquer, La Boétie denuncia a fantasmagoria do
corpo político, esse "corpo místico”, como o chamavam os teóricos da monar­
quia, produzido pela incorporação do reino dentro do rei e do rei dentro do
reino. No desejo de servidão ele indica, na obra, um fantasma de narcisismo
absoluto, uma negação da divisão do consigo por onde a sociedade acontece
para si própria, que seria mortal se se pudesse se realizar. O povo, na verdade,
se dá fora de si um Outro que ele vê e pelo qual ele é visto, que é visível para
ele e para o qual ele é visível. Mas os olhos do Outro são os próprios olhos do
povo, seus membros, os membros do povo; é, portanto, o povo que se vê visto
por si mesmo, como se ele se tivesse voltado sob seus próprios olhos. Daqui

599
ele se vê todo fora de si mesmo, no lugar do outro, vendo-se aqui e de lá, ele
se vê aqui, todo em si, vendo-se lá. Visão alucinada de si que se volta, dupla
visão que, se encobrindo em uma simetria total e em uma reciprocidade total,
se torna uma só e entrega um si unívoco. Visão pensável como tal no
imaginário, mas que não se poderia completar no real, pois, então, a sociedade
se aboliria no infigurável do Um só, sem outro, de um Todo sem fora,
inteiramente curvado sobre si mesmo, em perfeita adesão a si. Narciso é de
imediato condenado a morrer porque ele quer se ver absolutamente, se faz
apenas um com sua imagem externa. Para se reunir a ela ele desapareceria.
Pelo fato de não poder se reunir a ela, ele se deteriora, consumindo-se no fogo
de seu desejo de si mesmo para finalmente se transformar em flor narcótica e
funérea. Ou, então, segundo uma outra versão do mito, ele se afoga, tentando
unir-se a sua imagem. Esse é o fim do narcisismo e de toda contemplação, quer
ela seja política ou metafísica, quando visada de indiferenciação absoluta: o
repouso vegetal, a dissolução dentro do Um-Todo.
Depois de ter descrito, na última parte do Discours, os "alimentos” do
desejo de servidão, as “drogas” por meio das quais os tiranos se esforçaram
sempre para “acostumar o povo com eles, não somente à obediência e à
servidão, mas também à devoção”, La Boétie segue o mais próximo possível o
mecanismo e o alcance da ilusão, fazendo sobressaírem as divisões que reinam
sob a unificação imaginária da sociedade. Cada um se opõe a cada um, e uma
parte da sociedade se opõe a outra. Dupla oposição que está suspensa na
divisão de todos com o tirano e se alimenta igualmente do fantasma do Um. Aí
residem “o segredo e o motor da dominação, o fundamento e o sustentáculo
da tirania”. De um lado, a divisão política, a oposição entre o tirano e a
sociedade, informa as relações entre os indivíduos, repercutindo em todos os
elos da hierarquia social: “Não são as armas que defendem o tirano”, mas
quatro ou cinco “que lhe mantêm o país em servidão”, cinco ou seis que são
“os cúmplices de suas crueldades”, os quais têm seiscentos que “servem sob
eles”, esses seiscentos mantendo sob ordens seis mil, e “grande é a extensão
do filete” em que seria visto, para explicá-lo, que "não os seis mil, mas os cem
mil, mas os milhões que por essa corda se prendem ao tiranof...)”. Assim, o
nome do Um se inclina em cascata no desejo de cada um de levá-lo diante do
outro, de se identificar com o tirano fazendo-se mestre de um outro. Mas, por
outro lado, a divisão política mantém uma divisão social, nutrindo o desejo
daqueles que são acusados “de uma ardente ambição e de uma notável
avareza”. Agrupando-se em torno do tirano, sustentando-o para terem parte no
espólio e "sendo, sob o grande tirano, tiranos eles próprios”, esses “abandona­
dos por Deus e pelos homens se sentem contentes em suportar o mal para fazer
o mesmo não àquele que o faz, mas àqueles que o suportam como eles e que
não agüentam mais”. Todavia, estes últimos, “o trabalhador e o artesão", por
mais dominados que sejam,"estão quites fazendo o que lhes dizem” enquanto
os satélites do tirano devem ter cuidado “com suas palavras, sua voz, seus
sinais e seus olhos” e só ter “olhos, pés, mãos, tudo à espreita para espiar suas
vontades e para descobrir seus pensamentos”. Eles querem servir, dedicam

600
corpo e alma ao tirano, para ter bens mesmo que nada possam ganhar para si
“já que eles não podem dizer de si que são deles mesmos”. Não ter nada de
seu, nem mesmo seu corpo, nem mesmo sua vida, ter tudo de um outro, “isso
é viver feliz? isso se chama viver?”, pergunta La Boétie. Tudo se passa como
se, longe de ser temida, a morte fosse procurada no presente de uma vida de
morto-vivo devotada a se acabar por meio de morte violenta à qual ninguém
poderia escapar, inclusive o tirano, como o mostram “tantos exemplos apa­
rentes” aos quais todos permanecem cegos. Parece, dessa maneira, por meio
do exemplo dos grandes e dos poderosos, que a morte assombra o desejo de
servidão, e que quanto mais se aproxima do poder mais se aproxima dela.
Do povo, o autor declara que "sua doença é mortal". Ele é, como Narciso,
“o alimento do fogo que ele acende (...) e por seus próprios olhos se faz ele
mesmo o artesão de sua perda” (Ovídio, As Metamorfoses). Isso quer dizer que
o Discours - um dos cantos mqis belos de toda a história do pensamento
político - é um canto desesperado? Que fazer, na verdade, com aquele ou com
aqueles que, vendo-se a si próprios, é como vissem a morte e a desejassem?
Teria bastado que Narciso tivesse voltado seu olhar, declara Ovídio. Bastaria
ao povo um simples desejo, escreve La Boétie no primeiro tempo de seu
Discours, pois “para ter a liberdade é preciso apenas desejá-la”. Não verter
água sobre o fogo — ação positiva — porém não mais alimentá-lo - ação
negativa. Não fazer coisa alguma contra o tirano, mas também nada fazer para
ele, isto é, contra si. Não servir, “não ser servo de ninguém”, assim enuncia-se
o desejo de liberdade. Atividade de pura negação, sem termo positivo, em que
a liberdade não é um objeto do desejo e em que o desejo se confunde com a
liberdade sob pena de desaparecer. Ao contrário, o desejo de servidão é o
desejo que se volta contra si mesmo procurando se completar, dizendo de
outra maneira, para se determinar plenamente, para tomar figura positiva e por
isso mesmo se abolir. Desejo da ausência de desejo, a servidão voluntária é o
desejo da morte.
“Estejam resolvidos a não mais servir e estarão livres" lança La Boétie
no final de sua censura aos povos insensatos. Mas como sustentar tal injunção
sem se colocar face ao povo na posição do mestre e combater este último
empregando suas armas no registro da retórica quando seria o mesmo que
afirmar que não existe nenhuma necessidade de combatê-lo. E como acreditar
que o povo possa tomar, de um só e mesmo movimento, tal resolução senão
para verter na ficção de sua unidade e se colocar, assim, face a ele na posição
de escravo. É por isso que La Boétie abandona então o “vós” e o discurso
encantatório. “Advertir” o povo, “aconselhá-lo seria responder ao desejo de
servidão, alimentá-lo sob a aparência de uma denúncia da tirania”. Renuncian­
do à palavra que encanta e envolve, renegando o poeta e o Príncipe, Homero
e Ulisses, mas também o discurso magistral dos filósofos, La Boétie faz
aparecer a dimensão política da escrita e da leitura. "Procuremos...” diz ele
então: primeira pessoa do plural que não é de majestade, que não é a
representação gloriosa do Um, mas que, significando um e outro, um com o
outro, implica o leitor no âmbito do Discurso, convida-o a partilhar, junto, o

601
pão da interrogação. E logo, confirmando que se trata de prender uma relação
que escapa à transcendência do Outro, ó tema da linguagem aparece para
mostrar que "nós somos todos naturalmente livres já que somos todos
companheiros”. Pois, se a Natureza nos deu a todos a morada comum da
linguagem, é “para que cada um possa se mirar e quase se reconhecer um no
outro”. E esse grande presente da linguagem, que diferencia ao mesmo tempo
que relaciona os homens uns com os outros, testemunha que a Natureza não
queria tanto nos fazer "todos unidos quanto todos uns”. “Quase reconhe­
cimento”: assunção do um e do outro, o um pelo outro na reciprocidade do
falar e do entender, do ver e do ser visto sem que possa existir plena
coincidência, inteira cobertura, salvo para perder-se no imaginário de um
nome, de um corpo em que "todos” estariam “unidos”, no que seriam mais,
que Um. A identidade de todos como de cada um não se dá fora da relação, do
conhecimento mútuo, e por isso ela é consagrada a permanecer aberta,
perpetuamente em questão na troca sem fim das palavras e dos olhares.
Não se podendo realizar senão na imaginação, o narcisismo é sempre
apenas iminência de narcisismo e, por isso, por sua perseguição de uma
identidade sempre adiada, ele é criação de um mundo comum. É sua
realização sempre incompleta que permite a reunião, o viver-junto dos
homens. Nesse narcisismo relativo do reconhecimento mútuo, que funda­
menta a relação social e que a linguagem e a visão ilustram melhor, reside
a liberdade. Certamente a servidão se encontra inscrita aí também, já que
esse reconhecimento é de imediato ameaçado pela tentação de sua realização
do imaginário, pelo fantasma de um narcisismo absoluto que aparece como
originário. Nesse sentido, o desejo de servidão procede do desejo de liber­
dade, mas, enquanto este é necessário, aquele é apenas contingente: se a
doença do povo é mortal, ela não é, entretanto, congênita. Enigmática é,
portanto, a liberdade que remete a dois enigmas, eles mesmos indissociáveis,
e dos quais não pode ser dissociada: o do homem em sua unidade e seu
descarte de si para si e de si para os outros, sobre o qual Montaigne se
inclinará mais particularmente, porém não unicamente; e o da instituição do
social, da conjuntura e da separação dos homens nesse estar-junto que é a
sociedade, sobre o qual La Boétie se inclina com mais precisão. O desejo de
servidão aparece desde logo como desejo de resolução desse enigma, desejo
de libertação da divisão e da tensão que ela implica, mesmo ao preço da
loucura ou da morte. Porém, o enigma é insolúvel por princípio já que seria
precisamente realizar o narcisismo. A esse enigma responde o silêncio
observado por La Boétie sobre o bom regime, e essa ausência de resposta,
de solução, de conclusão lhe será censurada como defeito maior, quando ela
constitui a maior força do Discours.
Ao sopro singular do nome do Um, que faz reinar um silêncio mortal,
o Discours opõe o arvoramento de um pensamento que se inventa nas voltas
e desvios da linguagem, o zumbido de uma palavra que se eleva em busca
do outro, do amigo. Diferente da literalmente inominável "servidão voluntá­
ria”, essa fusão do passivo e do ativo, do vidente e do visível, renegada pela

602
língua, a articulação que se trata de reatar desligando-se da ilusão do Um
traz um nome, o “nome sagrado” de amizade. A amizade, eis o que La Boétie
opõe simplesmente à tirania. Desse modo ele não designa uma realidade
determinada que seria a primeira forma da sociedade, sua forma boa,
anterior ao “infortúnio”. Seria esquecer que a liberdade não poderia tomar
figura positiva, que um só desejo se despedaça continuamente, que o
“infortúnio” não é um acontecimento determinado em que o antes da
liberdade se desmoronaria no depois da servidão, em resumo que a origem
não é localizável no tempo, mas ela coabita com o presente, nele se refaz,
incessantemente. Mas como falar da amizade, essa “coisa santa”, em termos
positivos, já que, por estar liberta em parte, ela reenvia ao enigma da
liberdade. De fato, La Boétie em um poema endereçado a Montaigne, e
Montaigne em seu ensaio sobre a amizade, procedem negativamente, este
último reconhecendo que a amizade - a deles certamente, mas ele a dá como
exemplar - “não se pode exprimir”. 0 encaminhamento do Discours é
equivalente ao que constitui uma aproximação negativa da amizade, na
medida em que ele só fala de si brevemente e em contraponto, se consagran­
do ao que ela não é, a saber, a tirania. O pouco que é dito da amizade se liga
precisamente a deixar adivinhar seu alcance político. Essencial nesse aspecto
é a afirmação de que o único fato de estar “acima de todos” torna necessa­
riamente impossível a amizade, porque esta “tem seu manancial na igual­
dade". Dizendo de outra maneira, a amizade em seu princípio exclui o
próprio princípio da dominação, e ela só se estabelece por excluí-lo. Relação
que se recusa a ordenar ao pólo exterior do Outro, em que ninguém endossa
o nome do Um diante do outro, que não se relaciona a nada diferente dela
mesma e, em conseqüência, só tem garantia disso nela mesma, a amizade
envolve uma forma indeterminada de sociedade em que todos seriam “uns”
na recusa compartilhada de ser só Um.
Compreende-se desde logo que os tiranos que fazem questão de “não ter
companheiro nenhum, mas de ser de todos o mestre” tentam, para se sustentar,
separar os homens uns dos outros, impedir toda comunicação entre eles,
proibindo “de fazer, de falar e quase de pensar”, tentativa interminável e,
portanto, vã que atesta por si só que o desejo de liberdade, de conhecimento
mútuo é indestrutível e que o lugar do poder é inocupável, que jamais o tirano
poderia ser o Um, mas o seu representante visível exposto à contestação. Com
efeito, “sempre se encontram alguns mais bem-nascidos do que os outros que
sentem o peso do jugo e não podem conter o ímpeto de o sacudir”. Aqueles
"que não se habituam nunca à sujeição” não se contentam em observar o que
está diante de seus pés e vão ver "atrás e adiante”, polindo suas cabeças por
meio do estudo e do saber. A liberdade estaria perdida e “tudo fora do mundo”,
porém eles a imaginam, sentem-na e a saboreiam-na em seus espíritos: “A
servidão não lhes faz gosto jamais por mais que os tentem acostumar.” E La
Boétie, por meio de seu Discours, é um dos que testemunham a irredutibili-
dade do pensamento, nos fazendo descobrir o sentido político do ato de
escrever, da leitura e da amizade. Com uma escrita moldada à liberdade, o

603
Discours não libera a questão que ele coloca de uma resposta, não deixa de se
encarregar da tarefa de saber o que existe aqui e agora sobre a servidão e seus
novos enfeites ridículos. Elegendo, ao contrário, permanecer na interrogação,
dando assim prova de uma alteridade interna, de sua própria divisão, o
pensamento de La Boétie abre seu caminho no trabalho da expressão, ensinan­
do a destruir suas conclusões que permanecem como iscas em que o leitor terá
a prova do desejo de servidão e de sua inscrição na linguagem. Por isso, no
trabalho da leitura que não sofre nem de impaciência (virtude de mestre), nem
de precipitação (virtude de escravo), o leitor tem a experiência da liberdade
que tem o nome de amizade, dessa articulação de um com outro que se
estabelece, se desenvolve na recusa comum do Um, em uma depreciação
constante do desejo de se fazer o dono ou o escravo do outro e que o chama
por sua vez para tomar a palavra para que surjam novos amigos: "Os livros e
a doutrina dão mais do que tudo outra coisa aos homens, o sentido e o
entendimento de se reconhecerem e de detestar a tirania.”

• Oeuvres complètes, publicadas por Paul Bonnefon, Bordeaux-Parjs, 1892; Memorial a


respeito do édito de janeiro de 1562, editado por Paul Bonnefon na Rev. Hist Litt. Fr. (24),
1917. págs. 307-319; Oeuvres politiques, Paris, Éditions Sociales, prefácio e notas de François
Hincker, 1971; Le Discours de la servitude volontaire, edição concebida e realizada por Miguel
Abensour, texto e variantes estabelecidos por Pierre Léonard, Paris, Payot, prefácio de M.
Abensour e Mareei Gauchet, textos de Lamennais, A. Vermorel, G. Landauer, S. Weil e de Pierre
Clastres e Claude Léfort, 1976; Discours de la servitude volontaire, cronologia, introdução,
bibliografia e notas de Simone Goyard-Fabre, Paris, Flammarion, 1983; “A Michel de Mon­
taigne”, poema apresentado por Annie Tardits, traduzido por Pierre Pachet em L Amitlé, Paris,
Point Hors Ligne, 1984, págs. 213-236; Michel de Montaigne, Essais, editados por Michel Villey,
Paris, PUF, reimpressão sob a direção e com um prefácio de V. L. Saulnier, 1965.

► Michel Butor, Essalr sur les Essais, Paris, Callimard, 1968; Pierre Clastres, Liberté,
Malencontre, Innommable, em Le Discours..., Payot, páginas 229-246; Alain Garoux, Un sauvage
nommé La Boétie (a propósito da edição Payot do Discours) em Economles et Societés, série
5, n8 18, 1976, págs. 1049-1058; Claude Lefort, Le nom d’Un, em Le Discours..., Payot, págs.
247-307; Maurice Merleau-Ponty, Lecture de Montaigne, em Signes, Paris, Callimard, 1960,
págs. 250-266; François Roustang, Le mythe de l’Un, em Confrontation, “Le lien social", 1981,
págs. 12-20; JeanStarobinski, Montaigne enmouvement. Paris, Callimard, 1982; Annie Tardits,
Montaigne et La Boétie. Un pacte au-delà de l’image, em LAmitié, Paris, Point Hors Ligne,
1984, págs. 185-210; Nguyen Trong-Hieu, Lecture de La Boétie (a gropósito da ed. Payot e da
ed. Flammarion do Discours), em Cahiers philosophiques, 1985, n 23.

Alain GAROUX

604
LABOULAYE, Edouard, 1811-1883
O partido liberal, 1863

Le parti libéral, son programme et son avenir (O partido liberal, seu


programa e seu futuro) é sem dúvida uma obra menor da literatura política
do século XIX. Alimentado, às vezes até à paráfrase, da leitura de Benjamin
Constant, do qual ele foi o editor, de Tocqueville, John Stuart Mill e Humboldt,
Edouard Laboulaye fixa os contornos da concepção liberal da democracia às
vésperas da República. Nesse sentido ele visa mais à síntese do que à
originalidade. O autor, aliás, não esconde esse fato e declara expor "o direito
comum dos Estados constitucionais, o patrimônio comum da civilização”
(Laboulaye, 1863, pág. 299). E, porque depois de Guizot o problema liberal é
exatamente o de “terminar a revolução” fazendo chegar a parte universal de
sua herança, a obra "é apenas o comentário dos princípios políticos de 1789)”
(pág. 316). Mas nisso ela é uma testemunha essencial da unificação tardia de
um liberalismo político na França e de seu fracasso paradoxal.
No ponto de partida, as liberdades políticas são tudo, e Laboulaye não
deixa de lembrá-lo aos acólitos do Terror. No entanto, elas podem também não
ser nada, e o povo pode cansar-se delas, “como se fossem formas vazias e
enganadoras” (pág. 12) se não estiverem assentadas sobre os direitos indivi­
duais e sociais, o que é preciso opor aos defensores dos diferentes governos
"segundo a Carta Magna”. Na qualidade de "direito que pertence a todo
homem de dispor como quiser de sua pessoa e de seus bens, desde que não
invada nem a pessoa, nem os bens de outrem” (pág. 13), a liberdade individual
figura como a parte mais frágil do edifício. A partir desse ponto de vista,
Laboulaye retoma a defesa que Constant utilizava da autonomia da pessoa
privada, mas tenta ultrapassá-la quando avança a idéia de liberdade social.
Liberdade de culto, do ensino e da caridade, esta última parece querer
descrever a necessária vitalidade de um espaço intermediário entre o indiví­
duo e o Estado. A associação, “pequena sociedade dentro da grande” (pág.
40) é então o tubo de ensaio onde se busca a fórmula nãó encontrável na
França: fazer da sociedade uma função direta da atividade dos indivíduos,
evitando afundar na luta dos interesses particulares e fora do recurso ao
Estado. Não sem uma certa candura, Laboulaye dá seu enunciado: “Entre o
egoísmo individual e o despotismo do Estado, a associação coloca a fé, a
ciência, a caridade, o interesse comum, isto é, tudo o que aproxima os
homens e os ensina a se suportarem e a se amarem mutuamente” (idem).
Que não se assuste, então, nem com o direito de coalizão nem com a
autonomia comunal: sabe-se, com John Stuart Mill, que o primeiro transfor­
ma o conflito em dinâmica positiva e, com Tocqueville, que a segunda se
torna “a escola primária da liberdade” (pág. 98). Sobre essas questões,
Laboulaye oscila entre uma audácia comedida (defesa do direito de coalizão)
e a referência implícita no esquema liberal da resistência aos direitos sociais
pelo recurso à caridade. Autor de um ensaio sobre O Estado e seus limites,

605
ele retoma por sua conta a busca incansável da fronteira invisível, mas não
chega ainda a ultrapassar a simetria de uma denúncia da administração e de
um discurso a favor da beneficência.
Encontrar-se-ia sem dúvida a mesma mistura de uma banalização dos
temas resultantes do combate liberal e de uma relativa audácia, tratando-se do
poder e de sua organização. Não espantará ninguém que Laboulaye afirme que
“o Estado ou, se se quiser, a soberania, tem limites naturais onde acabam seu
poder e seu direito” (Laboulaye, 1864, pág. 6). Da mesma forma, a defesa do
bicameralismo e principalmente da responsabilidade política é uma figura
recorrente. O principal erro da Convenção foi o de tê-la interditado, conside­
rando os ministros “os puros agentes do poder executivo” (Laboulaye, 1863,
pág. 213). Foi o erro dos poderes sucessivos do século XIX o de tê-la
contornado, entregando assim o Parlamento à impotência e a sociedade à
arbitrariedade administrativa. Acrescente-se a sobrevivência do artigo 75 da
Constituição do Ano VIII, que submete à autorização do Conselho de Estado
o compromisso de perseguição contra os funcionários e compreende-se que o
combate pela responsabilidade em nome da proteção das liberdades e do
controle da autoridade não esgotou sua função polêmica.
Mas, se nessa direção Laboulaye reúne as posições de um Tocqueville e
de um Constant, ele avança mais sobre um outro terreno: o da defesa do
sufrágio universal. Quando declara que “o partido liberal aceita sinceramente
o sufrágio universal” (pág. 150), propõe dois argumentos. Instruído por
Tocqueville, mas desistindo de seu ceticismo, ele o vê satisfazer “essa paixão
pela igualdade que nos é cara e que em si é legítima quando respeita a
liberdade” (id.). Porém, principalmente instrumento de governo, o sufrágio
universal é também um meio “de educação política”. Apoiado em uma concep­
ção da opinião pública, ele pode, então, ser o objeto de uma espécie de círculo
virtuoso. “No século XIX, o poder é a opinião”, escreve Laboulaye e acrescenta:
“O segredo de reinar é o de escutar sem cessar essa voz pública que não se
despreza impunemente” (pág. 135). Sem dúvida nenhuma existe aí um risco
para a liberdade. Uma "publicidade de todos os instantes” é o perigo da
volatividade da opinião, de sua versatilidade mesma, e pode-se privar-se disso
aceitando a unidade espiritual e política que daria à sociedade uma base
constante. Mas a liberdade tem o seu preço. Do despotismo, mesmo o es­
clarecido, até a Restauração, passando pela Convenção, desejou-se a uniformi­
dade da opinião para assentar sobre a unidade da vontade a do governo. Mas
“essa unidade é o contrário da liberdade”, e, querendo sufocar toda voz
dissonante, impede-se ao mesmo tempo o progresso e a democracia: “O mundo
só vive e avança pela diversidade das opiniões” (pág. 156).
Compreende-se melhor, então, a posição da defesa do sufrágio universal.
Certamente ele é o objeto de uma aposta: concedê-lo é liberar uma "força
todo-poderosa” que pode indistintamente fazer o mal ou o bem, sustentar ou
derrubar os governantes, salvar ou perder a nação (pág. 151). E, sob esse ponto
de vista, o fato de limitá-lo pelo censo ou pela propriedade parecia oferecer
garantias. Mas essas eram apenas aparências frágeis: “É dentro da alma do

606
eleitor que está a garantia; é, portanto, essa alma que é preciso esclarecer ou
melhorar.” Esta é portanto, bastante ingenuamente expressa, a fórmula de
Laboulaye: dêem o sufrágio ao povo, ofereçam-lhe os meios da educação, e a
democracia mostrará sua vertente positiva. Falta, sem dúvida, uma mediação
para o raciocínio, mas perto disso ele encontra o de todos aqueles que, de
Condorcet aos republicanos, farão a aposta do sufrágio universal: dar à cada
indivíduo o direito de voto é oferecer-lhe o gosto de se abrir para a busca do
interesse comum, esclarecê-lo pela educação é permitir-lhe orientar-se dentro
dessa busca graças à razão.
Chegando a esse ponto, é-se forçado a uma constatação que desemboca
sobre a formulação de um paradoxo. De maneira exemplar, a obra de Labou­
laye, até sua aparente banalidade intelectual e a simplicidade de sua escrita, se
quer o enunciado de um senso comum liberal da segunda metade do século
XIX. Nenhum traço de profetismo, apenas ainda a evocação um pouco militante
de certos princípios e, sobretudo, a busca dos contornos do espírito público da
época. No fundo, Laboulaye poderia com razão aplicar a si mesmo a fórmula
de Thomas Paine: "Nada mais do que fatos simples, argumentos claros e
verdades resultantes do senso comum” (Thomas Paine, 1776, pág. 91). Ele
pertenceria, então, a essa categoria de escritores políticos que, por sua
sensibilidade ao espírito do tempo, antecipam as revoluções ou as revoluções
por vir: Thomas Paine diante da independência americana, Sieyès face à
Revolução Francesa, e por que não Lênin?...
Mas, então, que paradoxo histórico: pensando bem, por mais tardia que
ela seja, a síntese de Laboulaye esboça o quadro do compromisso republicano;
no entanto, nem ele, nem seus amigos foram seus portadores. Seria, então, o
fracasso desse liberalismo? Ele tornara possível a República, mas seria batido
pelo reencontro - não obstante a priori ser muito improvável - com um
positivismo antijurídico e com a tradição dos direitos do homem na versão de
1789. Quando Littré descreve a aliança que pode levar a República à pia
batismal, ele escreve que "duas categorias de homens trabalham para desviar
o perigo: de um lado, os republicanos que se esforçam em trazer de volta o
partido revolucionário para o ambiente da discussão e da legalidade; do outro,
os conservadores que aceitam o regime republicano e fazem dele a garantia da
ordem” (Émile Littré, 1879, pág. 459). Laboulaye não pertence a nenhuma
dessas forças e, a não ser que se coloquem numa dependência oportunista, os
liberais são excluídos enquanto tais da síntese política que a República oferece.
Intelectualmente, tudo se passa como se a defesa liberal de uma certa tradição
herdada da Revolução, com sua aceitação da representação e seu apego às
liberdades individuais, perdesse toda identidade, tornando-se conforme a um
certo senso comum republicano.
Mas o paradoxo liberal esclarece também, retrospectivamente, o futuro
ambivalente da República. Historicamente, ela só pode praticar uma avaliação
dolorosa e caótica da herança de 1789: se é preciso defender, contra todos seus
detratores, o conteúdo da Declaração dos direitos do homem, é preciso também
ultrapassá-la pelo reconhecimento progressivo de direitos sociais. Juridicamente,

607
se se aceita o jogo do Estado de direito, impede-se que ele invente garantias fora
da Lei, expressão suposta incorruptível do interesse geral. E a República poderá,
às vezes, se oferecer liberdades contra a dos indivíduos. Enfim, o fracasso de um
liberalismo que esgotou no século sua mensagem de reserva com respeito ao
Estado, que ocultou, às vezes, sua defesa das liberdades individuais dentro da
simpatia fria por alguns privilégios e, muitas vezes, mediu mal o motivo das
querelas de legitimidade pode fornecer sua parte de explicação ao fato de que,
por muito tempo, a República permanece ao mesmo tempo herdeira da tradição
de regalias e atravessada por conflitos.

• Le parti libéraí, son programme et son avenlr. Paris, Charpentier, 1863; UÊtat et ses
limites. Paris, Charpentier, 1864; La liberté antique et la liberté m odem e (brochura extraída
da Revue nationale), Paris, 1863.

► Thomas Paine, Le sens commun (1776), trad. B. Vincent, Paris, Aubier, 1983; Émile Littré,
Conservation, réix>lution et positivisme, Paris, Aux Bureaux de la Philosophie Positive, 1879.

Pierre BOURETZ.

LAMENNAIS, Félicité de, 1782-1854


Palavras de um crente, 1834

Uma declaração de solidão. —“O autor viu as lágrimas que corriam dos
olhos dos povos, ele crê que uma ordem nova se prepara, suas palavras são
ásperas, ele não as crê injustas”... Foi assim que, em uma carta de 27 de abril
de 1834, Félicité Lamennais apresentou o livro que vai publicar três dias mais
tarde pela Editora Renduel. Esse resumo de Palavras de um crente (Paroles
d ’un croyant), executado por correspondência e com uma evidente preocupa­
ção de apaziguamento, não se dá conta, de fato, da importância e da violência
do projétil incendiário que Lamennais lança aos pés dos tronos e das domi­
nações. Dez anos antes, tomando o lugar de Maistre e Bonald, os Castor e
Pollux da contra-revolução, ele figurava como o primeiro da fila do tradiciona-
lismo; com esse texto ele se lança longe do campo católico. Como o diz Maurice
de Guérin, ele “sai de Paris pelo lado Oriental e retoma o caminho do deserto”.
A tectônica tem sempre seus segredos, e a grande ruptura religiosa de
Lamennais não abandonará sem dúvida jamais todos os seus. Pode-se, no
entanto, seguir passo a passo o caminho que levou “Féli” a esse ponto de
ruptura. Historiador e sociólogo na alma, mais do que teólogo, Lamennais

608
sempre acreditou que o trabalho da vida dentro da criação revelava muito mais
Deus do que o rosto do Cristo encarnado. A grande fermentação das naciona­
lidades e dos povos, em obra dentro da revolução parisiense de julho de 1830,
assim como na revolta polonesa, sua contemporânea, lhe pareceu, em conse­
qüência, um sinal de primeira importância. A posição que ele se deu (e que lhe
deram) dentro da Igreja sendo a de um profeta, ele interpretou, portanto, essa
atualidade como o prenuncio de tempos novos. Grande foi sua decepção ao ver
Roma pregar aos bispos poloneses a submissão ao Czar depois, após o cerco
insistente que fez ao Vaticano, ver o mesmo papado condenar as teses de fogo
de seu jornal LAvenir (Mirari vos, em agosto de 1832) e, enfim, quando ele
se mantinha recluso em seu domínio de La Chenaie, ver a hierarquia perse­
gui-lo em suas obras mais queridas (a congregação de São Pedro, principal­
mente, onde ele queria formar a nova elite do clero).
Como resultado desse terrível período, a edição de Palavras de um
crente, preparada em segredo, tendo Sainte-Beuve como principal auxiliar,
eqüivale para Lamennais a uma declaração de solidão radical. À maneira de
Savonarola, pelo qual ele se interessa muito nesses anos, ele avança sozinho
dentro da arena. Está pronto para receber as pedras que lhe lançarão os
assistentes: a excomunhão nominativa que Roma pronunciará, tanto quanto a
defecção de seus amigos mais próximos, só o surpreenderá um pouco. Em
compensação, ele fica certo de tornar-se um símbolo para os povos a vir:
imaginava que o extraordinário sucesso público do livro (no único ano de
1834, nove edições em Paris, oito falsificações em Bruxelas, três em Genebra,
quatro em Lausanne, etc.) o ancoraria nessa certeza consoladora.
Uma declaração de guerra a todas as instituições. - A ressonância
inédita de Palavras se deve muito à sua forma: frases segmentadas que se
retêm como refrões e que se escutarão uns cento e vinte anos mais tarde nas
campanhas eleitorais do MRP, cadências bíblicas que a alternância do bravio
e do terno faz incessantemente ressaltar... Além disso, as épocas que se
encontram pintadas com cores tão fortes que atingem de imediato a dimensão
de arquétipos. É uma epopéia e, ao mesmo tempo, uma melodia que as
imaginações na revolta de 1834 mantêm em um formato de bolso.
Sob esse andamento ofegante, Palavras de um crente contém a narração
de uma decomposição, registrando a purificação dessa história pelas revo­
luções e propondo uma recomposição.
Porém vem primeiro a decomposição. Ela ganhou, segundo Lamennais,
todas as organizações sociais. O autor faz, assim, um quadro terrível dos
despotismos monárquicos que ele julga todos cúmplices em suas rapinagens
comuns e que ele encerra no mesmo sepulcro caiado, porque eles adotam a
pior forma das tiranias ou o perfil, aparentemente mais anódino, do “ambiente
justo”. Principalmente, esquecendo todas as boas intenções eclesiológicas que
ele tinha anteriormente cultivado em sua época de superortodoxia, Lamennais
condena igualmente a Igreja à sorte partilhada por todas as instituições por
natureza incorruptíveis: em seus Estados pontificais, tão irrisórios quanto a
ex-República de Veneza, o próprio papa nada mais é do que um velhote

609
perdido, que encerra em suas mãos um pouco da terra sagrada que lhe resta,
mas não vê que é, agora, apenas lama.
Outrora Lamennais se erigira monitor dos sucessores de Pedro, agora ele
se faz censor deles. A legitimidade de seu novo papel deve-se à interpretação que
ele faz das revoluções do tempo presente. Elas lhe parecem revelar as leis
inevitáveis da história em marcha e abrasar-se em uma lareira comum. O
movimento francês de julho de 1830, quase impecável dentro de suas intenções
se for comparado ao período de 1789-1794, a sublevação belga, a polonesa
testemunham paralelamente que os povos, na inteligência dos quais se desen­
volve o direito, abriram de novo o Livro da Providência. Eis que as mentiras dos
tronos e a palavra até aqui infalível do papa encontram-se submetidas à liberdade
dos filhos de Deus. Lamennais considera que a Igreja atual, prostituída aos
poderosos, está como que “desespiritualizada”, ela pode agora se “reespi-
ritualizar” suprimindo as mediações, descarregando-se dos fardos inúteis da
tradição: as revoluções reestabeleceram um fio direto entre Deus e os homens.
Uma declaração de confiança na humanidade. —Após a dissolução das
formas arcaicas desenha-se um movimento recomposto. E Lamennais, da impre-
cação, passa para um outro gênero que lhe é caro: a apologia. Recentemente, no
tempo do Ensaio sobre a indiferença (1817-1820), sua palavra de ordem teria
podido ser “Tudo pelo papa para o povo.” Doravante é: “Tudo pelo povo para o
povo.” Pela ampliação progressiva de seus direitos, os povos, cada vez mais bem
reunidos, atingirão as dimensões que se devem tornar as deles: as dimensões da
humanidade. Dentro dessa lenta ascensão, o catolicismo, se não o Cristo,
continua a desempenhar o papel de marca, de quebra-mar, em suma, de
federador. Sob uma outra forma é claro que não aquela em que ele se cristalizava
em Roma; agora ele tem a vocação de fazer erguer a imensidade do corpo social,
ele habita diretamente, sem intermediário dos altares, sob as tendas dos homens.
Leitura escatológica e leitura política. - De Palavras de um crente,
pôde-se fazer mais tarde, como o erudito Yves Le Hir, uma leitura primeiro
escatológica, reaproximando a interpretação mennaisiana da história de todas
as outras espécies que estavam em curso na época em Paris, de Ballanche a
Vigny. Mas Lamennais, replicava antecipadamente Sainte-Beuve, é tudo exceto
um homem calculista. Se escatologia existe nele, ela não nasce de uma
construção saída toda armada de suas leituras, mas de uma série de oportuni­
dades, de acontecimentos cuja combinação aleatória não pode atingir o espírito
do sistema. Uma interpretação mais política presta sem dúvida melhor conta
do efeito de Palavras de um crente. Após ter rompido as pontes, o “profeta"
encontra-se com efeito “fulminado” por Roma, que lança contra ele a encíclica
Singulari nos (agosto de 1834). A causa católica perderá muito com essa
ruptura. Após a crise mennaisiana, o catolicismo liberal encontrar-se-á real­
mente reposto sobre um caminho de garagem para várias gerações e talvez
definitivamente e dentro de uma parte do espectro; pouco tempo depois, o
modernismo desembocará em um impasse: as condições não são preenchidas
dentro da Igreja para o exercício nem da posição de cidadão nem da de
intelectual.

610
Quanto ao próprio Lamennais, suas amizades freqüentemente partidas,
suas redes de influência totalmente arruinadas, ele estará reduzido à sorte
pouco invejável dos aliados de ocasião do Partido do Movimento. Os “republi­
canos” e os “democratas” o recrutarão em seus grupos crescentes, felicitando-
se em vê-lo unir-se ao campo da razão, mas sem querer compreender as razões
que o levaram a isso. Vinte anos após Palavras de um crente, “Féli” acabou
assim, dividido; mas, mais ainda do que sua sorte comovente (no final das
contas, ele dizia ser ele mesmo feito da madeira da qual se fazem as cruzes), o
que importa é o divórcio que sua história pronunciou entre a Igreja e as idéias
de progresso e de liberdade.

• Duas edições recentes de P a ro le s d ’u n c r o y a n t sob os cuidados de Yves Le Hir, Paris,


Armand Coiin, 1949, 292 págs. e uma outra sob os cuidados de Louis Le Guillou, Flammarion,
Nouvelle Bibliothèque romantique, 1973.

► Estudos gerais sobre Lamennais: Jean-René Derré, L a m e n n a is, s e s a m is e t le m o u v e m e n t


d e s id ê e s à P ép o q u e ro m a n tiq u e , 1 8 2 4 -1 8 3 4 , Paris, Klincksieck, 1902; Jean Lebrun, L a m e n ­
n a is o u 1 'in q u iétu d e d e la liberté, Paris, Fayard-Mame, 1981; Louis Le Guillou, L ’é v o lu tio n d e
la p e n s é e re lig ie u se d e F é lic ité L a m e n n a is, Paris, Armand Colin, 1966.
Estudos mais centrados sobre o período de P a r o le s d ’un c ro y a n t: Lamennais, C o rresp o n d a n ce
g é n é ra le , editado por Louis le Guillou, L V e VI, Paris, Armand Colin, 1974, 1977; Jean-René
Derré, M a ttern ich e t L a m e n n a is , Paris, PUF, 1963; Marie-Joseph et Louis Le Guillou, L a
c o n d a m n a tio n d e L a m e n n a is , Paris, Beauchesne, 1982; Atas da conferência sobre Lamennais
de 1982, C a h ie rs m e n n a is ie n s (12, rue Van-Gogh, Brest), 1983-1984.

Jean LEBRUN.

LANGUET, Hubert, dito JUNIUS BRUTUS, 1518-1581


Reivindicações contra os Tiranos, 1579

No caldeirão dos escritos hostis à Monarquia que marcam a segunda


metade do século XVI e são recenseados sob o qualificativo de "monarcôma-
cos” (nome atribuído em 1600, por Barclay, aos combatentes do poder único),
as Vindicae contra tyrannos podem ser consideradas exemplares do gênero;
assinada “Junius Brutus” —o que indica bastante a referência ao tiranicídio -,
a obra foi atribuída ao protestante Hubert Languet. Amigo de Mélanchthon,
advogado dos protestantes franceses perante Charles IX, tornado chargé
d ’affaires do Eleitor de Saxe em Viena, depois de seu exílio da França, Languet
estava com efeito diretamente implicado no destino político do protestantismo.
Sua obra ultrapassa, porém, o estágio do libelo e tenta uma justificação jurídica

611
e racional da resistência à tirania. De resto, é possível que Languet tenha
escrito apenas uma parte da obra, a outra devendo ser atribuída a Duplesis-
Mornay; nem por isso ela apresenta uma unidade menos forte.

Uma matemática política da resistência

Unidade que chega a ser mesmo expressa sem dificuldades em termos


matemáticos. O objeto a tratar é o seguinte: "Reconduzir o poder dos príncipes
e o direito dos povos a princípios básicos e evidentes” (principium imperium
et ju s populorum ad sua legitima certaque principia refere). Ora, isso
eqüivale a "encerrar a força de um e de outro dentro de certos limites que uma
boa administração não possa transpor” (intro certas fines utrorumque pote-
statem conclusum iri, quos ultra citraque recta reipublicae administratio
plane non possit consistere). Notar-se-á que o ato de delimitação racional
coincide de alguma maneira com o ato de limitação do poder. Formulação
matemática que dita de alguma forma o método: tratar-se-á de empregar um
método rigorosamente geométrico para balizar o poder, impondo-lhe os limites
da ratio (razão). Do mesmo modo que o geômetra passa do ponto à linha, da
linha à superfície, e desta ao corpo, tratar-se-á de ir do simples ao complexo,
por graus, de maneira a desenvolver, a partir do próprio corpo político, os
efeitos que procedem de suas leis (ex effectis et consequentibus causas et
maximas illas propositiones sive regulas colligit).
Ora, o que se trata de delimitar, assim, é, como o indica o subtítulo, “o
poder legítimo do Príncipe sobre o povo e do povo sobre o Príncipe” (De
principis in populum populique in principem legitima potestate). (Foi, além
d;sso, sob esse título que a obra foi publicada em francês em 1581). Essa
questão principal se especifica em três questões fundamentais, que refletem a
estrutura da obra e a progressão da argumentação. A primeira questão é saber
se os súditos devem obediência ao Príncipe, quando ele ordena alguma coisa
que se opõe à lei de Deus. É, portanto, esse terceiro termo - a lei de Deus -
que ordena a relação entre os dois termos, o Sujeito e os súditos: é com relação
a esse motivo que o problema político —o da legitimidade do Poder e seu
reconhecimento - é formulado.
A segunda questão radicaliza, entretanto, a primeira: trata-se de saber se
é permitido resistir a um príncipe que ordena alguma coisa contra a lei de
Deus. Enquanto a primeira interrogação se contentava em formular, é verdade
que com a característica abrupta de uma alternativa moral maior, a questão do
direito de não-obediência, a segunda fala sobre o antagonismo maior: ela
introduz o direito de resistência (contra tyranos).
A terceira questão fundamental transpõe um novo grau radicalizando
ainda mais a questão precedente: trata-se de saber se é legítimo resistir a um
Príncipe que oprime o Estado. É também a transposição da questão religiosa
para o terreno da legitimidade do poder civil em si. Por isso a obra torna-se
um tratado completo da questão da legitimidade do poder civil.
A essas três questões centrais, Languet acrescenta uma questão que diz

612
respeito à tática da própria resistência: “Os príncipes vizinhos têm o direito de
levar socorro aos súditos dos outros príncipes oprimidos por causa da religião
ou por uma manifesta tirania?” Por aí, as questões de princípio precedentes
são enraizadas de alguma forma na própria estratégia histórica, embora
formuladas ainda em termos de direito.

A resistência em nome de Deus

À primeira questão, o autor do Contra tyrannos responde invocando as


Escrituras (sagradas) e os Atos dos Apóstolos em apoio a um direito à
resistência ao poder civil. Trata-se com isso de mostrar que o rei é apenas o
vassalo de Deus. Mas essa “demonstração", baseada sobre o Texto e o costume,
tem como motivação a demonstação de uma relação contratual: a Escritura
impõe a idéia de um duplo contrato: de um lado, entre Deus, o rei e o povo,
do outro, entre o rei e o povo —um sendo derivado do outro. Assim, Samuel,
Saul, Roboão e depois o Novo Testamento são evocados para estabelecer a
permanência de tal contrato, com as mesmas condições e sanções (idem
pactum est, eadem conditiones, eadem poenae ni impleantur, idem vinde
perfidiae, Deus omnipotens): esse surpreendente princípio liga diretamente a
relação política moderna à tradição da Escritura, fazendo dos reis reinantes
contratados: não é ao sufrágio nem à sorte que os reis devem seu poder, mas
ao próprio poder divino: o poder civil se deve considerar como o feudo de Deus.
A exigência de “justiça” aparece, portanto, fundada enquanto correlativa da de
“piedade”: é, portanto, ao mesmo tempo como ímpio —contrário à sua função
divina - e como injusto - “arruinador do direito e de toda boa política” - que
o tirano deve prestar contas ao povo, em nome de Deus.
É nesse sentido, em nome da “caridade”, que se devem fazer a resistência
ao tirano e à sua eventual deposição. Mas por aí se nota a originalidade da tese
do Contra tyrannos: não se trata de uma resistência que se apóia sobre uma
Igreja contra o Estado, mas de que parte do próprio povo, representante da
causa de Deus contra o rei, desde que o (duplo) contrato esteja de fato desfeito.
Porém a questão se coloca presentemente sobre aquilo que é preciso
entender aqui por “povo”, em oposição à “besta que possui um milhão de
cabeças”, que é apenas a “populaça”. É dq povo organizado que se trata, isto
é, dos magistrados, caracterizados, de maneira notável, como “vigilantes dos
reis” (regum ephoros) e, por isso mesmo, “representantes do povo” (qui
universum populi coetum repraesentant). Estão aí, que não se engane quanto
a isso, os únicos que têm autoridade e competência para exercer o direito de
resistência, assim localizado dentro do núcleo de representantes da maioria,
cujas decisões valem para o povo inteiro (Quod major pars principum seu
optimatum fecerit, omnes, quod omens, universus populus fecisse dicetur):
é de alguma forma esse corpo de magistrados que forma "o povo”, por
metonímia.
Assim como existe aí um dever de função: de modo que, se os magistrados
não cumprem a função deles - de defesa dos interesses de Deus e do povo - ,

613
eles são suscetíveis de sofrer a ação de tutela (ne faciant, actione tutelae
tenentur). Além disso - e talvez esteja aí o aspecto mais audacioso da
problemática do Contra tyrannos - , toda parte do reino, como toda parte de
Israel primitivo, sendo parte recebedora do contrato com Deus, pode tomar a
iniciativa da resistência, mesmo contra a maioria dos outros, contanto que a
possa legitimar.

Do contrato ao direito de resistência

Mas, como foi indicado anteriormente, é em si, independente do motivo


religioso, que a questão se encontra formulada finalmente. O direito à resis­
tência está nesse nível, baseado sobre a idéia da não prescrição do direito dos
povos consecutivo ao contrato primitivo. Ele o exprime em uma bela fórmula,
segundo a qual "o tempo não tira nada dos direitos dos povos, mas acrescenta
às injustiças dos reis” (nec demunt anni quidquam juri populi, sed addunt
injuriae regis). Isso provém do fato, o poder civil tendo sido instituído em vista
da utilidade dos povos (non, nisi magnae cujusdam utilitatis causa, impe-
rium alienum ultro elegit), de o próprio poder ser “não uma honra, mas uma
encargo; não uma imunidade, mas um dever; não um prazer, mas um missão”
(non honos, sedonus; non immunitas, sed munus; non vacatio, sed vocatio).
Raramente se tem explicado de maneira tão densa a concepção do poder como
dever responsável diante do povo.
Em conseqüência disso, o rei é apenas o guardião da lei, sendo ela mesma
expressão da sabedoria humana, expressão da razão divina. É nisso precisa­
mente que ele se distingue do tirano. Correlativamente, os súditos do rei, longe
de serem propriedade ou servos, são proprietários da coisa pública: encontra-se
aqui uma vibrante evocação dos próprios súditos, em resumo, coisa rara no
pensamento político: unidos, eles são soberanos, separados são irmãos (ut
universi domini, ita singuli fratum loco consendisuní). Até sobre o plano das
finanças, o rei é apenas o administrador das riquezas públicas - base econô­
mica não-negligenciável da tese política.
De fato, o contrato político evocado implica os dois contratos, sob dois
aspectos diferentes: pois se o povo estipula (stipulatur), o rei promete (spon-
det). A ruptura do contrato implica, portanto, ipso facto traição da promessa.
Não obstante, o Contra tyrannos distingue a resistência contra o tirano absque
titulo, simples usurpador do poder, e a contra o áb exercido, que abusa
gravemente de um poder que detinha —aliás, de maneira legítima distinção
formalizada no tratado De Tyranno, de Bartole. Não há mais pacto com o
primeiro, a ponto de nenhuma obediência ser exigida; o segundo deve ser
denunciado segundo a lógica descrita. Pode-se a esse respeito apreender com
clareza a conclusão do Traité inteiramente: "Os príncipes são eleitos por Deus,
porém constituídos pelo povo. O príncipe é superior a cada pessoa em
particular, mas inferior a todos e àqueles que representam o todo, quer dizer,
os magistrados ou os grandes. Intervém na instituição do rei um contrato entre
o príncipe e o povo; contrato tácito ou explícito, do qual os oficiais do rei são

614
os guardiões. Aquele que viola esse pacto é um tirano ab exercitio. Os
magistrados têm o direito de reencaminhá-lo ao dever pela força se não
puderem agir de outra maneira. Mas os homens particulares não têm o direito
de levantar a espada contra um rei legítimo, mesmo esse sendo ele tirano de
fato. Quanto ao tirano sem título (absque titulo), como não existe nenhum
contrato firmado com ele, todos, mesmos os particulares, se podem revoltar
contra ele.”

O atrativo da obra

Para julgar a contribuição da obra para a história do pensamento político,


é preciso antes de tudo notar sua estranha mistura de referências: de um lado
ela se apoia sobre uma teoria do contrato que anuncia o uso fecundo da
problemática contratual, mas, em vez de ser considerado como uma exigência
inerente à racionalidade política, trata-se de uma espécie de fato, inferido da
tradição e da Escritura (sagrada), às quais é dada força de lei. Trata-se,
portanto, de réagir a um abuso do poder real em nome de um passado
reconstruído com essa finalidade.
Além disso, o radicalismo das teses - que abre a perspectiva do ContrVn
— não deve deixar desconhecido um aspecto que impõe a reaproximação
paradoxal com a Instituição cristã (ver o artigo consagrado a essa obra),
notadamente quanto à função dos magistrados. A diferença marcante é que
Calvino visa de maneira muito frouxa e excepcional à destituição dos defen­
sores do poder civil, enquanto o Contra tyrannos coloca inteiramente a ênfase
sobre esse direito.
De fato, a idéia de sedição política é limitada por uma concepção formal
da ordem pública: a originalidade da obra está em questionar de maneira
radical a legitimação do poder: o “quem te faz rei?" vem aqui em primeiro
plano, e os autores tiram daí impiedosamente todas as conseqüências. Sob esse
aspecto, o pensamento dos monarcômacos, dos quais essa obra fornece de
alguma maneira o protótipo, constitui um clímax crítico da modernidade
política em vias de chegar.

• R e v e n d ic a tio n s c o n tre les tyra n s,, 1579 (atribuído a Hubert Languet e a Duplessis-Mornay),
publicado em Genebra sob o título D e la p u is s a n c e lé g itim e du p r in c e s u r le p e u p le e t du
p e u p le s u r le p rin c e .

► Ph. de La Mare, Vie d e L a n g u et, 1700; H. Chevreul, É tu d e s u r le X V f siècle; //. L an gu et,


Paris, 1852; Blasel, H u b e rt L a n g u et, Oppeln, 1872; Scholz, H u b e rt L a n g u e t, llalle, 1875; P.
Janet, H is to ire d e la p e n s é e m o ra le e t p o litiq u e , L II.

Paul-Laurent ASSOUN.

615
LE BON, Gustave, 1841-1931
P sicologia das m ultidões, 1 8 9 5

Em 1895, Gustave Le Bon, médico de profissão, grande viajante, pioneiro


da reportagem fotográfica, autor de várias obras científicas e de um manual de
equitação, alcança a celebridade, publicando Psicologia das multidões.
Marcado ao mesmo tempo pela realidade histórica do fato democrático e
pelo desenvolvimento de um pensamento crítico em que se misturam o
antidemocratismo e a certeza da decadência, Gustave Le Bon fixa sua reflexão
sobre os fenômenos de número, sobre a multidão em particular. Sua ambição
teórica será a de mostrar como é possível reduzir a esse aspecto do ser social
a lógica profunda das sociedades modernas. Realmente, embora reconheça que
os fenômenos de número sempre existiram, seria característico das sociedades
democráticas a multidão estar no centro de todo edifício social.
Sem se desfazer de uma definição que o sentido comum lhe proderia dar,
a multidão é, para ele, em primeiro lugar, uma aglomeração de homens e de
mulheres reunidos em um mesmo lugar. Mas, seguindo sua “lei da unidade
mental das multidões”, um movimento irresistível não poderá deixar de se
produzir: a personalidade consciente de cada indivíduo desaparece, os senti­
mentos e as idéias de cada membro misturam-se dentro de um monoideísmo
que alimenta os instintos irracionais, surdos e nefastos, escondidos no mais
íntimo de nós mesmos; uma alma coletiva com traços novos substitui, então, a
multidão das almas individuais. Mas essa alma nova não é redutível àquela de
algum de seus membros, assim como ela também não é simplesmente a soma
das almas individuais que a compõem: ela é alguma coisa nova, ou, melhor, ela
é alguém diferente.
Temos aí o elemento principal do pensamento de Le Bon. Por essa
estranha alquimia social, uma multidão metamorfoseia-se em um ser coletivo,
um ser à parte, inteiro, dotado de uma psicologia, de uma memória, de uma
consciência, de uma vontade e de um conjunto de caracteres inextrincavel-
mente ligados à sua constituição: impulsividade, versatilidade, irritabilidade,
sugestibilidade e credulidade, fatalmente levada à violência.
O pessimismo de Le Bon, suas certezas sobre a irracionalidade das
multidões e a denúncia do simplismo de suas opiniões, podia ser admitido com
respeito a uma multidão colocada em condições particulares de entusiasmo ou
de fanatismo. Existe realmente uma realidade de desatino coletivo, mais
trágico ainda nos anos que seguirão a morte do psicossociólogo (1931). Porém
é muito difícil, pelo menos, segui-lo quando a noção de multidão, sobrecarre­
gada de conotações negativas que não equilibram os poucos traços positivos
que ele lhe consente, designa fatos sociais cada vez mais heterogêneos e que
não têm muita coisa a ver com a questão da irracionalidade tal como ele a
entendia. Assim, os jurados da corte dos tribunais, as assembléias parlamen­
tares ou os eleitorados cairiam nessa categoria.
Necessariamente, forçando dessa maneira o traço, Gustave Le Bon foi

616
conduzido a rejeitar a própria idéia de uma ordem sociai de massa tornada por
definição fonte de irracionalidade e de desordem violenta. Ele se dirige,
portanto, progressivamente para um elitismo absoluto, furioso, quase raivoso,
que toma a forma de um nihilismo radical. Incapazes de raciocinar, as massas
são incapazes também de produzir alguma opinião sensata. No âmago da
multidão, manifestação ou júri, eleitorado ou assembléia de representantes,
não pode haver opinião esclarecida ou simplesmente razoável, porque não há
trocas interindividuais refletidas, na ausência precisamente de interindividua-
lidade. Inteiramente inclinada para sua própria imagem ou para a figura de seu
mestre, o que pode ser a mesma coisa, a multidão não autoriza a deliberação
e não deixa nenhum lugar para a razão, porque ela é muito menos um
lugar-comum onde se encontra a multidão dos homens do que um ser coletivo
dentro do qual o indivíduo se perde e “se torna um autômato cuja vontade
tornou-se impotente para se guiar”.
Eis exatamente a aberração fundamental dos sistemas políticos modernos
que preparam o reinado de uma potência da qual se pode demonstrar a loucura,
que fizeram da “opinião das multidões” “o regulador supremo da política"
(Psicologia das multidões, pág. 88), pois “não é mais no conselho dos príncipes,
mas na alma das multidões que se prepara o destino das nações” (idem, pág. 2).
Em 1895, a fatalidade do infortúnio político não deixou mais dúvida para
todos aqueles que queriam acreditar na verdade desta última profecia: “A ação
das multidões é a única força que nada ameaça e cujo prestígio aumenta
sempre. A época em que entramos será verdadeiramente a era das multidões”
(idem, pág. 4). Esta época das multidões, antes de tudo época da irracionali­
dade e da violência, indica a crise última da civilização ocidental e seu fim
próximo. A multidão torna-se a encarnação do que se retira da razão política
assim como da racionalidade social. As leis, as próprias instituições não podem
nada contra seu poder destruidor.
Esse é em poucas palavras o conteúdo de uma obra, na realidade
terrivelmente repetitiva e muito pouco inventiva, que se pode inverter e ler
como o manual do demagogo ou como um tratado de subversão. Leitura
possível, leitura provável que foi certamente a de Lênin, de Mussolini ou de
Hitler, diz-se, a das escolas militares em que se ensinava antigamente a
“psicologia das multidões”. Mas, se o livro de Gustave Le Bon alcançou tal
sucesso, na França, a ponto de fazer dele um best-seller e, no mundo, a ponto
de fazer dele, então, o escritor nacional mais lido no estrangeiro, foi antes de
tudo porque ele está em perfeita adequação com as inquietudes de seu tempo.
Como não ver na verdade que essa pequena obra tem lugar dentro de um
contexto histórico amplamente dominado pela formação das grandes democra­
cias eleitorais e mais profundamente pela imposição das lógicas de massa,
tanto políticas quanto econômicas, militares ou culturais? Diante desse pode­
roso movimento de emergência do número, a inquietude é forte. Ao antigo
medo do número juntou-se no decorrer do tempo o horror dos arrebatamentos
da Revolução Francesa cuja narrativa regularmente retomada agita o espírito
daqueles que querem ver na insurreição dos partidários da Comuna e no

617
desenvolvimento do movimento operário o retorno dos velhos demônios.
Gustave Le Bon exprime perfeitamente esse estado de espírito. Lá tudo é seu
gênio, dentro dessa forte encarnação da dúvida, da inquietude, até mesmo do
pessimismo mais sombrio.
Para quem conhece um pouco o movimento das idéias do século XIX,
aparece claramente que há aí, habilmente condensado sob a forma de um breve
tratado, um conjunto de trabalhos de história (Taine...), de psiquiatria (Ber-
nheim...) ou de psicologia social (Sighele, os primeiros textos de Tarde...)
publicados a partir de uma dezena de anos, principalmente na França e na
Itália, e que pareciam esperar que se revelasse sua profunda convergência.
Retomando-os, sintetizando-os, sem nada acrescentar de diferente além de uma
formalização proveitosa, mas que não deveria enganar ninguém, Gustave Le
Bon proporá à sociedade de massa triunfante sua teoria crítica, uma versão
reunida e abrangente de seu medo de si própria.
Além disso, é uma velha batalha que prossegue. Até o fim do século XIX,
a grande influência das teses desse autor marcará a dominação de um discurso
pessimista e fatalista sobre a política moderna. Parece muito difícil não religar
esse pensamento político à tradição contra-revolucionária resultante do após
1789. Mas, no fim do século XIX, esse discurso crítico tomava principalmente
a forma de uma filosofia e fundava sua recusa do acontecimento revolucionário
sobre uma referência à Tradição como critério de verdade. O novo pensamento
contra-revolucionário e antidemocrático investirá os quadros do pensamento
positivista para tomar a forma, com a “psicologia das multidões”, de uma
ciência social.
Tudo se passa como se o discurso antidemocrático modificasse o conteú­
do da refutação depois que o argumento da Tradição, noção central da
primeira crítica conservadora, tivesse fracassado nessa empresa filosófico-polí-
tica de refutação de Luzes. Desse modo, a era pós-revolucionária, marcada pela
expansão do número dos membros ativos da comunidade política, não é mais
denunciada porque ela produz uma ordem contrária à Tradição, mas na
verdade dessa vez porque ela é contrária à Razão, porque ela é irracional
mesmo quando invoca a Razão como fundamento. A modernidade democrática
já não é ruim, ela se tornou falsa.
Com a emergência de uma ciência das multidões, o pensamento antide­
mocrático concilia-se com a era positivista. Mas esse fracasso do primeiro
sistema de refutação assemelha-se muito com o símbolo de uma transformação
social já irreversível por ser capaz de constranger a crítica a suas próprias
categorias de pensamento, que se tornaram as da razão moderna.

• Gustave Le Bon, P sy c h o lo g ie d e s foules, Paris, Alcan, 1895 (PUF, 1981).

► Suzana Barr* ws, D lsto rtin g m irro rs, v ls io n s o f th e c r o w d in la te n in e te e n th c e n tu r y


New Haven e Londres, Yale University Press, 1981; Sigmund Freud, Psychologie des
F ran ce,

618
foules et analyse du Moi (1921), em E s s a is d e p sy c h a n a ly se , Paris, Payot, 1981, págs. 117-217;
Roger L. Geiger, Democracy and the crowd: the social history of an idea in France and Italy,
1890-1914, em S o c le ta s 7 (1), págs. 47-69; Hans Kelsen, Der Begriff des Staates und die Sozial
Psychologie mit besonderer berügksichtigung Vom Freuds Theorie des Mass, Im a g o , vol. VIII,
fase. 2, 1922, págs. 97-141, publicado em francês em H erm ès, ns 2, 1988; Robert A Nye, The
o r ig in s o f C r o w d P slc h o lo g y : C u s ta v e L e B o n a n d th e C risis o s M a ss D e m o c r a c y in th e T h ird
R e p u b llc , Londres. Berverly Hiils, Sage Publications, 1975; Dominique Reynié, Opinion du
nombre et irracionalité, em O p in io n p u b liq u e e t d é m o c ra c ie ,, sob a direção de Bernard Manin,
Paris, PUF, ainda não publicado; Yvon J. Thiec, Custave Le Bon, prophète de l'irrationalisme de
masse, R e v u e fra n ç a ise d e S o c io lo g ie , 1981, XXM (3), págs. 409-428; Yvon J. Thiec et Jean-René
Tréanton, La foule comme objet de “science”, R e vu e fra n ç a ise d e S o c io lo g ie , janeiro-março de
1983, XXIV-1, págs. 119-136; Scipio Sighele, L a fo u le c rim in e lle , e s s a i d e p s y c h o lo g ie collec-
tive. Paris, Alcan, 1892.

Dominique. REYNIÉ.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, sob o pseudônimo de CAESARINUS FÜRSTE-


NERIUS, 1646-1716
Do Direito de Soberania e de Embaixada dos Eleitores e Príncipes
do Im pério, 1 6 7 7

A obra de Leibniz sobre o direito de soberania e de embaixada dos


Príncipes alemães é o fruto de uma "encomenda" do Duque Johann-Friedrich de
Hanover —do qual Leibniz era o bibliotecário —, desejoso de obter para seus
representantes o nível de embaixadores na Conferência de Nijmegen, o que faria
o mestre deles assemelhar-se a um soberano. Esse projeto circunscrito, que
explica o pseudônimo em forma de jogo de palavras atrás do qual se dissimula
Leibniz, lhe permite, entretanto, desenvolver um pensamento político original.
A argumentação geral do tratado é simples: todos os soberanos têm o
direito de embaixada; os Príncipes alemães são soberanos; portanto, eles detêm
o direito de embaixada. Depois de considerações iniciais sobre isso, o esforço
essencial de Leibniz consiste em construir um modelo teórico da soberania,
depois em mostrar sua aplicabilidade aos Príncipes alemães. Essa segunda
tarefa ocupa a maior parte da obra. Pois é preciso provar, então, que os
príncipes alemães respondem de maneira imediata à definição da soberania e,
principalmente, que essa última, que lhes é atribuída, não suprime, por um
lado, a distinção que continua a subsistir no pensamento de Leibniz entre os
Eleitores e os Príncipes. Entre todos esses desenvolvimentos, alimentados por
uma documentação histórica muito rica, é preciso reter aqui aqueles que dizem
respeito à aproximação leibniziana da soberania, caracterizando-se pela idéia
de que o direito de soberania é um conceito relacionai, que só pode ser
pensado como abstração feita das relações internacionais.

619
Independentemente dos argumentos históricos, o núcleo do tratado é
constituído por definições dos diferentes “graus de senhorio” (págs. 18, 53,
309 e 336). Leibniz distingue, assim, quatro níveis essenciais: o direito de
jurisdição, a superioridade territorial, a soberania e a majestade.
O direito de jurisdição, que possui, por exemplo, o senhor que tem direito
de alta ou baixa justiça (pág. 305), consiste no poder de acabar com os litígios
entre particulares (“potestas de causis statuendi”, pág. 54) e de fazer executar
suas sentenças, utilizando, dado o caso, a opressão contra os “refratários".
“Dizer o que é direito”, exercer os poderes de polícia são componentes
essenciais do primeiro grau do senhorio, aos quais se acrescentam na maioria
das vezes alguns outros direitos senhoriais.
Mas o senhor, stricto sensu, não é verdadeiramente “mestre em sua casa”
(pág. 337). Ele não tem o poder de coagir, além de alguns suspeitos ou
condenados recalcitrantes, o conjunto de uma população ou de um território
(ditio), já que não lhe é reconhecido o direito de recrutar ou sustentar um
exército. Esse ju s manus militaris é, em compensação, a condição do direito
de superioridade territorial. O dono do território (dominus territorii) tem o
monopólio da força pública em toda sua amplitude, isto é, em sua aplicação na
comunidade inteira {“jus coercendi in summo", pág. 54). O que não significa
que o senhor do território deve sustentar permanentemente um exército
suscetível de acabar com toda rebelião generalizada, mas somente que ele tem
a possibilidade reconhecida (“confessa”, pág. 55) de fazê-lo, ainda que ele
governe habitualmente “sola hominum opinione" (ibidem), pela força do
“respeito, da veneração e da autoridade”.
A noção de soberania ou de “autocracia” (pág. 89) engloba essa relação
intra-estatal entre o dono do território e seus súditos dentro da interestatal dos
soberanos e de seus pares. Na verdade, para Leibniz, que retoma um “tópico"
de origem platônica (cf. Lois, 737d), o poder soberano não requer somente a
dominação interna sobre o povo, mas também uma capacidade real de resis­
tência às potências estrangeiras. A república de São Marino (cf. pág. 18) não é
um estado soberano, pois o destino das armas que seriam levadas contra ela
não tem nada de incerto. Ao contrário, são considerados “livres e invioláveis
aqueles que são muito difíceis de serem coagidos pela força” (pág, 123),
aqueles face aos quais seus inimigos devem aceitar a probabilidade de ganho
ou perda (cf. “anceps alea”, pág. 92), o “embaraço e acaso de uma guerra” (pág.
361), em resumo, o risco da derrota. Mas Leibniz esclarece mais (cf. Platão,
ibidem): na verdade, um país (ou cidade), gozando de uma situação quase
inexpugnável (ilha, lugar montanhoso), não é por isso soberano (pág. 61 sg.)
pois lhe falta a capacidade de influenciar, ao menos em parte, as relações
internacionais (cf. “non satis in ipsis momenti esse videtur ad summam
rerum ”, pág. 62), “de fazer figura nos assuntos gerais” (pág. 337), “de se tornar
considerável por tratados, armas ou alianças” (pág. 357). Compreende-se,
então, que só os soberanos e não “o menor Conde, Barão ou cidade do
Império” (ibidem) tenham o direito de embaixada, pois é a eles principalmente
que se tem interesse em ouvir (o que não implica que se fique surdo às vozes

620
dos “pequenos”, mas essa só se exprime por intermédio de simples “enviados”,
que não têm o nível de embaixador).
Enfim, a majestade é o direito de comandar (ou o direito de suprema
jurisdição), sem ser a própria pessoa obrigada a obedecer a qualquer outra
(exceto Deus). Concretamente, a majestade, enquanto honra, pertence ao Impe­
rador e, enquanto, potência pertence conjuntamente ao Imperador e ao Império,
como assembléia de Estados. A majestade não destrói a soberania ou “o direito
de liberdade pública” daqueles que lhe são submissos: “Pois uma coisa é o direito
de comandar e outra coisa é o direito reconhecido de coagir sem dificuldade”
(pág. 308). Inversamente, o soberano não abandona sua soberania, mesmo
quando ele reconhece ter obrigações para com aquele que detém a majestade,
tanto que ele se guarda o direito de só o obedecer em “consideração a seu dever
e a sua honra" (pág. 309) sem abandonar a capacidade de lhe resistir pelas armas.
Aquele que possui o direito de majestade tem, portanto, o direito de comandar
que o simples soberano não tem, mas, como este último, vê sua potência
executora submissa às eventualidades da guerra.
O conjunto dessas definições implica uma sensível divergência de Leibniz
com relação às “teorias monistas” da soberania, da quel Hobbes seria o principal
representante (sobre Bodin cf. págs. 65 e 130 e sobre Pufendorf, cf. págs. 16 e
290). Para Hobbes, a totalidade das regalias (jura regalia) sobre as pessoas e
sobre os bens (domínio eminente) deve pertencer ao soberano (cf. De eive,
capítulo VI; Leviathan, cap. XVIII). Leibniz faz notar (pág. 59) que o modelo
hobbiano não se aplica a nenhum lugar: mesmo um soberano “absoluto”, como
o rei da França, vê seu poder restrito por leis fundamentais do Reino, pelas
Assembléias de Estados, pelos Parlamentos, pelos tribunais eclesiásticos, etc.,
todas limitações que não podem ser interpretadas seriamente como o fruto de
delegações irrevogáveis arbitrariamente e que não implicam para o país, mesmo
quando podem engendrar certos conflitos, um perpétuo estado patológico. Da
mesma maneira, os Príncipes alemães não perdem sua soberania porque, por
exemplo, seus súditos, em matéria civil, podem apelar diante dos tribunais do
Império (pág. 90). De maneira mais geral, para Leibniz, as regalias são direitos
“agregados” (“aggregata”, pág. 89) que decorrem naturalmente da soberania
("concessão” a Bodin ou Hobbes), mas que não determinam sua essência e
podem, portanto, por uma exceção explícita (cf. “diserte excepta”, ibidem), ser
separados dela. Depois de Grotius (De jure belli ac pacis, I, 3, II, 1), Leibniz
admite a analogia com o direito privado: um proprietário não perde seu direito
de propriedade se seu bem for alugado ou onerado por uma servidão (págs.
89-90). Afora a derrota em uma guerra, civil ou estrangeira, a soberania só é,
portanto, destruída, pacificamente se assim se pode dizer, em uma única situação:
quando o soberano concede a alguma outra potência, na maioria das vezes
estrangeira (mas nem sempre), o direito de conservar sobre seu território um
exército e guarnições capazes de exercer contra ele uma opressão eficaz e
desprovida de “embaraços” (cf. págs. 164, 309, 335), a exemplo dos Espanhóis
em Nápoles ou, segundo Grotius, no qual Leibniz se inspira aqui, de Atenas ou
de Roma face a alguns de seus aliados (op. cit., I, 3, 21, II).

621
Em seu tratado, Leibniz desenvolve, sobretudo, as conseqüências desse
ponto de vista sobre o direito interno do Império que é também, já que os
Príncipes são soberanos, um direito internacional. A constituição do Império não
é “monstruosa”, como pensava Pufendorf; ela apenas impõe, com relação ao
"direito comum” da soberania, algumas obrigações suplementares aos Príncipes,
que a ela estão submetidos sem por isso negar seu jus suprematus. Os Príncipes
gozam da “libertas militandi" (pág. 97) assim como do direito de concluir
tratados e alianças (cf. pág. 313). Todavia, seu dever lhes impõe não “estorvar”
o Império e tomar conta de seus interesses. Para Leibniz, essa obrigação constitui
apenas na realidade um grau suplementar e particular com relação àquela que
pesa sobre todos os soberanos. Como Vitória (cf. De potentia civili, capítulo 13),
Leibniz considera que cada Estado, como parte do Universo ou do mundo
cristão, tem deveres com relação ao conjunto ao qual ele pertence, e que uma
guerra que causasse um prejuízo ao Universo ou à Cristandade seria injusta. Da
mesma maneira, se o Império tem o direito de banir um desses membros, de o
declarar inimigo e de procurar “despojá-lo do que se lhe puder tomar” (ibidem),
seu poder de coagir não é profundamente diferente, nesse caso, daquele de um
soberano estrangeiro (pág. 314). Em uma sentença imperial, existe "somente”
um suplemento de formalidade e de validade com relação a toda guerra justa
que, na teoria clássica (cf. Vitória, Dejure belli, 13, 36), é igualmente vingativa
e supõe previamente um prejuízo ao direito. Leibniz procura encerrar seus
adversários em uma alternativa: se eles não aceitarem que são soberanos todos
aqueles que só podem ser coagidos por uma guerra aleatória, deverão reco­
nhecer que ninguém é soberano, pois todo príncipe tem deveres com relação a
Deus, a seus súditos, a seus vizinhos, e, se for cristão, com relação ao Papa e ao
Imperador, enquanto chefe temporal da Igreja (págs. 139-140).
Em resumo, dos três monopólios necessários na teoria monista para a
existência da soberania - monopólio de coagir, de jurisdição e de organização
dos poderes públicos —, Leibniz mantém só o primeiro; mas essa instância
sobre o suporte físico da soberania lhe permite considerar com muito mais
flexibilidade e realismo variadas possibilidades de organização em matéria de
direito constitucional e de direito internacional.
Definitivamente, a obra manifesta, em seu todo, a vontade leibniziana de
não separar o direito do fato (cf. “jus facto moderandum”, pág. 18), ao
contrário daqueles que, “não tendo quase nunca saído de seus livros”, desen­
volvem seja análises válidas unicamente para estágios históricos ultrapassados
(é o caso da maioria dos teóricos do Império, cf. pág. 50), seja por modelos
abstratos que, apesar de sua coerência interna, contradizem a realidade
observada (como a concepção hobbiana da soberania). Foi por isso que nem
os jurisconsultos, nem os filósofos puderam explicar a soberania tal como ela
é verdadeiramente (pág:50). Segundo Leibniz, a teoria política deve, portanto,
por um período histórico determinado —pois o direito evolui (cf. págs. 119,
123) - , “aplicar-se ao que se pratica hoje em dia no mundo” (pág. 290). A razão
específica disso é que o direito supõe o fato, na ocorrência de um poder efetivo
e prolongado (cf. pág. 118). Todavia, a soberania não se reduz à força bruta do

622
tirano ou do invasor, ela exige o reconhecimento (cf. págs. 55, 140, 308)
proveniente de um acordo explícito (constituição, tratado) ou implícito, decor­
rente do fato de que os súditos ou os Estados vizinhos não adotem ordinaria­
mente uma atitude de resistência ou de hostilidade. Esta é a originalidade (até
mesmo a novidade, cf. pág. 290) com relação à Escola moderna do Direito
natural da teoria leibniziana. Se bem que ela possa ser apresentada sob uma
forma dedutiva (cf. págs. 271-276), não se baseia unicamente sobre princípios
a priori, mas procura fornecer um modelo verificável na realidade.

• Redigido de junho a outubro de 1677, o D e j u r e su p r e m a tu s a c le g a tio n is P rin c tp u m


C e rm a n ia e (ou a partir de 1678 T ractatu s d e ju r e ...) conheceu, enquanto Leibniz ainda vivia,
novas edições (ou tiragens), oito de 1677 a 1679, uma em 1696. A obra foi incluída nas edições
de Dutens (L e ib n itii O p e ra o m n ia n u n c p r im u m co llecta . Genebra, 1768, t. 4, 3* parte, págs.
329496) e de Klopp (D ie W erk e von L e ib n iz, I. R eih e, Hanover, 1864-1869, t 4,1865, págs.
9-305); os capítulos 9 a 13 e 18 a 22 foram reimpressos na edição dos S c r itti p o lilic i d i L e ib n iz ,
de Mathieu, Turim, 1951, págs. 445490. Algumas passagens foram traduzidas para o inglês por
P. Riley em The p o lic ita l w r ilin g s o í L e i b n i z , Cambridge, 1972, reed. 1981, págs. 111-120. A
melhor e a mais recente edição, utilizada aqui, é a da Academia de Berlim, G o tlfried W ilh elm
L e ib n iz S d m tlic h e S c h rífte n u n d B riefe, versão de Reihe, Z w e ile r D an d, Berlim, 1963, págs.
13-270. Ela compreende igualmente o sumário do tratado em francês, intitulado E n tr e tie n de
P h ila r è te e t d ’E u g è n e s u r Ia q u e stio n d u te m p s a g ité e à N im è g u e to u c h a n t le d r o il de
S o u a e r a n ité e t d A m b a s s a d e d e s E le c te u rs e t P r in c e s d e V E m pire, págs. 289-338, assim como
diferentes textos paralelos entre os quais é preciso assinalar a apreciação do tratado e de seu
sumário, feita pelo próprio Leibniz para o lo u r n a l d e s S a v a n ts, páginas 359-362.

► C. ]. Friedrich, Philosophical reflections of Leibniz on Law, Politics and the State, N a tu r a l


L a w F o ru m , XI, 1966, págs. 79-91, reed. em L e ib n iz. A c o ile c tio n o f c r itic a i e s s a y s , sob a
direção de H. G. Frankfurt, Nova York, 1972; G. Crua, L a ju s tic e h u m a in e se lo n L e ib n iz , Paris,
1956; Mermann, D a s S ta a ts d e n k e n b e i L eib n iz, Bonn, 1958.

René SÈVE.

LÊNIN (Vladimir Ilitch ULIANOV, dito), 1870-1924


O Estado e a Revolução, 1917

No dia seguinte das jornadas insurrecionais de 3 a 5 de julho de 1917,


Lênin retorna à clandestinidade e ao exílio que haviam sido, desde 1895, a
essência da sua vida. Ele retornara a Petrogrado duas semanas antes do golpe
de força que ia lhe dar, juntamente com seu partido, um poder ditaiorial total.
Escondido primeiro na capital do antigo Império Russo e depois nas margens
do lago Razvil, ele passa a fronteira finlandesa e, em agosto e setembro, fica

623
várias semanas em Helsingfors onde escreveu 0 Estado e a Revolução. Mais
precisamente, ele escreveu os seis primeiros capítulos. Em um breve posfácio,
de novembro de 1917, ele se regozijará de ter sido impedido de terminar sua
obra pela “crise política” que marcou a véspera de outubro. Um segundo
fascículo, consagrado às revoluções de 1905 a 1917, que não será nunca
redigido, foi adiado para mais tarde, pois “é mais agradável e mais útil se ter
‘a experiência de uma revolução’ do que escrever a seu respeito” {t 25, pág.
531). A obra, inacabada, produto da época da maior tensão histórica que se
possa imaginar, será publicada tal qual em 1918. Uma segunda edição, no
mesmo ano, comportará, em acréscimo, o parágrafo do capítulo II em que
Lênin afirma que “só é marxista aquele que estende o reconhecimento da luta
de classes até o reconhecimento da ditadura do proletariado” ( t 25, pág. 445).
Sob essa forma, O Estado e a Revolução conhecerá uma difusão imensa e
permanece, juntamente com Que fazer?, O Imperialismo, estágio supremo do
capitalismo e A doença infantil do comunismo (O esquerdismo), uma das
obras mais lidas do líder bolchevique. Ele próprio a propõe como fundamento
e como arma: desde 1918, organiza sua publicação no estrangeiro pelo
intermediário Berzine, seu agente em Zurique (t. 44, págs. 142-148). Depois,
seria esgotante enumerar suas traduções, edições e recensear suas glosas. O
Estado e a Revolução é uma obra instituída pelo e instituinte do movimento
comunista. Sua leitura faz parte do curso de formação dos militantes e dos
quadros, suas análises fazem programa. Mas sua recepção não se deve somente
à potência dos aparelhos ideológicos comunistas. O Estado e a Revolução é
pedagogicamente construído e expõe, com insistência e sem medo das repe­
tições, algumas teses, facilmente condensáveis em fórmulas, segundo uma
ordem linear que permite não ser parado pelas dificuldades conceituais ou
históricas. Pretendendo retificar o “desvio” oportunista, com o qual seria
impressionada a teoria marxista do Estado, ele se beneficia da sedução das
polêmicas que lutam para a justa interpretação dos dogmas. Brutal, até mesmo
injurioso, em seu tom de hostilidade aos reformistas e aos hesitantes, ele prega
a violência revolucionária que deve “despedaçar”, segundo a palavra de
Engels, o Estado burguês, instaurar um novo tipo de poder de Estado, a
ditadura do proletariado, cujo modelo mais próximo é a Comuna de Paris, que
conduzirá, além do socialismo, à deterioração do Estado e à sociedade
comunista. Se bem que ele esteja cheio de ataques veementes contra os
socialistas russos (socialistas-revolucionários e mencheviques) e que ele reme­
ta clara ou implicitamente aos problemas políticos do verão de 1917 para os
quais ele se apresenta como solução, O Estado e a Revolução avança a maioria
de suas proposições como se elas fossem deduzidas dos princípios da teoria e
se endereçassem a um assunto revolucionário universal. Daí uma impressão
de deslocamento, senão de capa de ilusão, a respeito das realidades da
Revolução Russa. Assim O Estado e a Revolução fala só quando muito do
Partido Bolchevique e repete com vigor que a ditadura do proletariado será a
dos Soviets, enquanto em um outro terçto, escrito ao mesmo tempo, porém
menos lido, Os Bolcheviques conservarão o poder?, Lênin declara que o

624
Partido Bolchevique é o futuro aparelho de Estado. Sobretudo a respeito do
todo-poderio posterior do Partido-Estado ele pode parecer uma ficção, até
mesmo uma mistificação. O Estado e a Revolução multiplica, portanto, as
questões. Como se situa essa obra com relação aos problemas políticos e
doutrinários com os quais Lênin é confrontado durante o verão de 1917? Por
que Lênin modificou sua posição anterior em que rejeitava, como anarquista,
o projeto de “despedaçar” o aparelho de Estado burguês? Sem dúvida é preciso
compreendê-lo a partir da teoria do capitalismo monopolista de Estado e da
análise por Lênin do Estado czarista. Enfatiza-se, assim, sua ligação com o
corpo leninista em seu conjunto. Mas como explicar os contrastes tão fortes
com alguns textos, o Que fazer?, por exemplo? Ou com a prática leninista da
ditadura do partido único? “Reveladora da precipitação de Lênin, ambigüidade
do debate marxista, complexidade da situação russa, O Estado e a Revolução"
é, com certeza, “dificilmente interpretável” (Carrère d’Encausse, 1980, pág. 17)
e diferentemente legível, segundo as interpretações do leninismo: para Cohen,
aqueles para quem o stalinismo existe nascente no leninismo selecionam suas
referências e as sublinham no Que fazer? e no Lênin de 1919, minimizando o
Lênin de O Estado e a Revolução e de 1922-1923 (Cohen, em Tucker, 1977,
pág. 13), enquanto para Schapiro é difícil considerar um texto de Lênin que
mencione uma vez somente o partido bolchevique de maneira diferente do que
um exercício de sonho acordado (Schapiro e Reddaway, 1967, pág. 10). Mas
antes de tudo, o livro se inscreve na conjuntura política do verão de 1917, mais
exatamente na análise que Lênin faz dele.

O verão de 1917

Quando, nas Cartas de longe, escritas em março de 1917, em Zurique (t.


23, pág. 323), depois nas Teses de abril (t 24, p. 11), que marcam sua volta à
Rússia, Lênin, abandonando suas posições dos anos anteriores, sustenta a
possibilidade de uma transformação da revolução burguesa em revolução
socialista, se choca com o ceticismo ou com a quase-hostilidade da maioria dos
bolcheviques, que continuava ligada a uma concepção “estadista” que queria
que a revolução burguesa, radicalizada pela determinação do proletariado,
esgotasse suas possibilidades democráticas antes da passagem para uma nova
etapa. Mas Lênin sabe que a capacidade de organização e de direção do Partido
bolchevique é limitada por sua fraqueza (t. 23, pág. 13) e lança a palavra de
ordem “Todo o poder aos Soviets”, apoiado na teoria da dualidade de poder
entre o governo provisório, governo oligárquico da burguesia e o governo
fraco, embrionário, “ditadura revolucionária vindo de baixo”, dos Soviets. Não
se trata, no entanto, de preconizar uma aliança com os socialistas-revolucioná-
rios e os mencheviques que detêm a maioria dentro dos Soviets: com os
Soviets, Lênin quer fazer triunfar um novo aparelho de poder do mesmo tipo
da Comuna de Paris, realizando a fusão da polícia, das forças armadas e do
corpo dos funcionários com o conjunto do povo em armas (t. 23, págs. 354,
387, t 24, págs. 16, 23, 29). Assim, a equação decisiva de O Estado e a

625
Revolução, Sovietes = Comuna de Paris, está no princípio mesmo da estratégia
do líder bolchevique, que não pode, em razão da relação de força inicial,
colocar o partido na frente. Na verdade, o essencial do trabalho de leitura e de
elaboração doutrinária que terminará em O Estado e a Revolução já estava
efetuado e relatado em um caderno de capa azul, O Marxismo e O Estado,
redigido em Zurique no começo de 1917. Constata-se sua repercursão durante
toda a primavera e todo o verão.
Os dias de julho conduzirão Lênin a radicalizar suas análises e lhe
darão ao mesmo tempo horas de lazer para escrevê-los. Segundo ele, eles
fazem uma seqüência juntamente com os dias de abril e de junho: crises
agudas ou revolução e contra-revolução se exacerbam sem deixar lugar para
os elementos intermediários, os hesitantes, mobilizando soldados e operários
à frente da massa da população (t. 25, pág. 183). Em abril, os bolcheviques
forçam primeiro a tomada do poder pelos Sovietes, depois são forçados a dar
marcha a ré ( t 24, pág. 208), e Lênin estima que tomar o poder sem o apoio
da maioria do povo seria “jogar com a sorte” (L 24, pág. 215). Em junho,
quando os bolcheviques dominam as manifestações com suas palavras de
ordem e dominam as ruas, Lênin vê “a unidade de uma ofensiva em
conjunto” (t. 25, pág. 112). Porém em julho, enquanto os anarquistas estão
prontos, os bolcheviques, com exceção de sua organização militar e de
alguns dirigentes, hesitam ou desaprovam, o que não é o estilo habitual de
seu líder que descansava no campo. O refluxo é rápido; a repressão severa.
As tropas leais controlam Petrogrado. Os jornais bolcheviques são fechados,
e militantes, encarcerados. Lênin é alvo de uma campanha da imprensa,
desencadeada anteriormente, que o acusa de ser agente alemão; Kerenski
decreta sua prisão, assim como Zinoviev, Kamenev, Lunarchavski, por ter
traído e organizado a insurreição de julho, do que ele se defende, com razão.
Mas os dirigentes bolcheviques temem um processo, que seria um episódio
da “guerra civil” em curso (t 25, pág. 188), e, enquanto Trotski e outros são
aprisionados, Lênin, que não hesita em se comparar com Dreyfus (t. 25, págs.
174 e 179), passa para a clandestinidade.
Abandona a palavra de ordem “Todo o poder aos Sovietes” (t 25, pág.
189). Para ele, os bolcheviques sofreram uma derrota enquanto os menchevi-
ques e os socialistas-revolucionários, recusando dar, enquanto era tempo, o
poder aos Sovietes, caíram na “lixeira da contra-revolução”. Agora, os Sovietes
tornaram-se órgãos de entendimento com a burguesia: ao proletariado revolu­
cionário, isto é, bolchevique, restou o encargo de tomar o poder para uma
revolução em que o Estado será construído sobre os Sovietes mas sobre os
Sovietes da luta revolucionária contra a burguesia (L 25, pág. 205). A hipótese
de um desenvolvimento pacífico da revolução havia caducado: era preciso
concentrar as forças e reorganizá-las em vista da insurreição armada (L 25, pág.
191). O partido devia reaprender, como em 1912-1914, a combinar o trabalho
legal e o ilegal. Que outra saída seria possível, já que o Estado que se instaurou
depois de julho era uma “ditadura militar”? Kerenski era o seu Cavaignac
(político francês) (L 25, pág. 201) ou o seu Bonaparte, que procurava,

626
apoiando-se sobre um corja de militares, andar em ziguezague entre forças e
classes sociais (t 25, pág. 241). Lênin lembra, portanto: “0 Estado era formado
antes de tudo por destacamentos de homens armados providos de meios
materiais, como as prisões, escrevia Frederic Engels” (t 25, pág. 189), o que
foi o ponto de partida de O Estado e a Revolução.
Nesse retorno contra-revolucionário, os bolcheviques têm uma respon­
sabilidade: eles estiveram atrasados, julgando a situação menos revolucionária
do que ela era. Tratava-se de colocá-los à frente, de fazê-los chegar mais perto da
radicalização dos grupos urbanos exasperados cuja veemência encontra eco e
legitimação em 0 Estado e a Revolução. Sobre esse eixo estratégico, pouco
efetivo tendo sido o refluxo dos bolcheviques, uma inflexão importante termina
agosto, quando Lênin estava em plena redação de sua obra: o general Kornilov
se rebela e, à frente de alguns regimentos, marcha sobre Petrogrado onde é
facilmente derrotado por Kerenski. Os bolcheviques se mobilizaram para enfren­
tar a contra-revolução, mas eles eram hostis à união sagrada com o governo. No
entanto, com os mencheviques e os socialistas-revolucionários cada vez mais
divididos pelo desenvolvimento em seu meio de correntes favoráveis aos bolche­
viques, eles estimaram que um compromisso era possível. Lênin faz a teoria desse
fato e retorna à palavra de ordem “Todo poder aos Sovietes" (L 25, página 833).
Porém ele recusa, ainda uma vez em desacordo com o essencial da direção do
Partido, a contribuir no que quer que seja para o reforço do poder da situação.
A “crise”, as “catástrofes” econômicas, políticas e sociais maltratam, e o poder
está cada vez mais acessível ao único grupo resolvido a se apossar dele, utilizando
o efeito de gangorra provocado pela Kornilovichtchina. Na Carta ao Comitê
Central, de 12 de setembro, Lênin insistiu sobre a necessidade de colocar a
insurreição na ordem do dia; os bolcheviques deviam tomar o poder (t 25, págs.
10-12); e no começo de outubro indicou claramente que 240.000 membros do
Partido e seus simpatizantes, cuja força seria reduplicada pela adesão dos
trabalhadores e das classes pobres no trabalho de gestão, eram o futuro aparelho
de Estado (t 26, pág. 107). Assim, o retorno à palavra de ordem “Todo o poder
aos Sovietes” se opera no momento em que o Partido se vê reafirmado em seu
papel de motor do processo histórico que a doutrina leninista sempre lhe havia
assinalado desde 1900. Assim mesmo, a insurreição será deliberadamente desen­
cadeada antes do Congresso dos Sovietes, relegado à segunda posição como era
desejo de Lênin, que anunciará a destituição do governo provisório em nome do
“Comitê revolucionário militar próximo ao Soviete dos deputados operários e
soldados de Petrogrado” (t 26, págs. 242-243) significando assim, com clareza,
que o poder estava na ponta do fuzil (Ferro, 1976, pág. 414).
Portanto, Lênin aprecia a situação política começada em fevereiro e a
evolução da relação de força em função da tese, que ele fez sua desde
janeiro-fevereiro de 1917, de que é preciso “despedaçar” o aparelho de Estado
burguês. Os acontecimentos da primavera e do verão o reforçaram nessa
convicção e em sua opinião de que o partido é o instrumento da conquista e
do exercício do poder, o que O Estado e a Revolução não diz de modo diferente
de uma multidão de textos contemporâneos.

627
Um texto polêmico

Pois é ao Partido que, durante o verão de 1917, Lênin concede, como


sempre, seus cuidados zelosos: ele não pára de transmitir artigos, projetos de
resoluções, palavras de ordem, conselhos e senhas. Mas, principalmente, é
preciso que ele lute para impor sua vontade. Em setembro, criticando os
“erros” do Partido, isto é, aqueles que freiam a “nova revolução”, ele almeja
que os operários “vigiem melhor os meios dirigentes parlamentares do
partido” (L 26, pág. 51). A polêmica antioportunista de O Estado e a Revolução
não visa somente a Kautsky ou aos mencheviques, mas a alguns bolcheviques;
para coagir o Partido a seguir o caminho da insurreição armada, Lênin, em
Outubro, deverá ameaçar de pedir demissão do Comitê Central, nesse momen­
to a mais alta instância do POSDR (L 26, pág. 79). Ele não se lamenta de que
os artigos que envia da Finlândia sejam expurgados de suas críticas contra os
subterfúgios do Partido (L 26, pág. 78)? E sabe-se que Zinoviev e Kamenev
chegarão mesmo a ponto de escrever no Vida nova, jornal de Gorki, para
proclamar oposição à insurreição decidida por Lênin e declarar que eles
militarão pela constituição de um governo revolucionário de coalizão socialista
enquanto Lênin imporá um governo de partido único.
Se O Estado e a Revolução foi escrito sobre o fundo das dificuldades que
Lênin teve de ultrapassar para impor sua estratégia a seus camaradas da direção
bolchevique, a polêmica a que ele conduz visa explicitamente à IP Internacional,
aos mencheviques e aos socialistas-revolucionários. Combate sempre repetido de
Lênin sobre um tom sempre virulento. O subtítulo A doutrina marxista do
Estado e as tarefas do proletariado na revolução é explícito: Lênin quer basear
sua estratégia política e legitimar sua marcha para a insurreição, mostrando sua
conformidade à doutrina (Harding, 1981, pág. 110). Qualquer que seja a
abstração de seus títulos, Materialismo e empiriocriticismo, por exemplo, os
textos de Lênin procuram no mínimo tanto destruir uma posição adversa, como
a de Bogdanov em 1908, quanto fazer progredir a reflexão conceituai. Lênin está
constantemente em luta; ele só existe e só pensa dentro do antagonismo. Isso é
flagrante em O Estado e a Revolução, que se dá como um retorno à pureza e à
autenticidade, não como uma nova elucidação.
A questão do Estado, como o indica o prefácio, tem um "caráter de
atualidade viva” que exige esclarecer as massas sobre o que elas terão de fazer
em um futuro muito próximo para abater o capital (L 25, pág. 416). É preciso
restaurar em sua pureza a “alma revolucionária” da doutrina, tanto para ir
contra o desviacionismo quanto para proteger os bolcheviques e o proletariado
das sereias da hesitação, do democratismo e do oportunismo. A guerra criou
uma corrente social-chauvinista que domina nos partidos oficiais do mundo
inteiro. Os filisteus da IIS Internacional, esses socialistas "em palavras e
chauvinistas nos fatos”, se adaptaram aos interesses de suas burguesias e de
seus Estados. É preciso, portanto, lutar para subtrair “as massas laboriosas da
influência da burguesia”, destruir os preconceitos oportunistas a respeito do
Estado... Ora, os propagandistas oficiais do oportunismo são numerosos e não

628
lhes faltam títulos. Na primeira fila, Karl Kautsky, mas também Hyndmann e
os fabianos, na Inglaterra, Renaudel e Guesde, na França, Vandervelde, na
Bélgica, Legin, Scheidemann e David, na Alemanha, Plekhanov, Potressov,
Brechkovskiaia, Roubanovitch, Tchernov, Tsérétéli, na Rússia. Contra esses
inimigos, ou, melhor, contra esse inimigo sempre renovado que Lênin combate
sem cessar sob o nome de revisionismo, de economismo, de social-chauvinis-
mo, e em um momento, a seus olhos, decisivo, é preciso administrar a prova
da natureza burguesa de todo Estado, mesmo se tiver saído da Revolução de
Fevereiro, e da necessidade da ditadura do proletariado mesmo na Rússia, e
mostrar que os bolcheviques são os verdadeiros herdeiros de Marx e Engels.
Daí a especificidade de O Estado e a Revolução com relação aos outros textos
de Lênin: umas quarenta citações de Marx e de Engels, de várias dezenas de
linhas, às vezes comentadas, explicadas e parafraseadas, que permitem sus­
tentar a adequação da estratégia do líder bolchevique à ortodoxia marxista e
que dá à obra um tom de dogmatismo pedagógico e arrogante.
O texto é disposto em capítulos e em parágrafos trazendo títulos que dão
uma estrutura imediatamente legível e ao mesmo tempo lógica e cronológica
segundo o método típico da dialética de Lukács que, pelo estudo da história dos
problemas, faz surgir o “próprio processo histórico” (Lukács, 1960, pág. 56). O
capítulo I fala sobre a sociedade de classes e o Estado e permite colocar definições
canônicas com o auxílio dos textos dos pais-fundadores. O capítulo II analisa,
sempre com as mesmas referências, os anos 1848-1851. Depois a Comuna de
Paris é estudada, segundo Marx, no capítulo III, segundo Engels, no capítulo IV,
o que conduz ao exame das bases econômicas da extinção do Estado (cap. V). A
obra termina por uma denúncia do aviltamento do marxismo pelos oportunistas,
Kautsky, Plekhanov e Bernstein. O terreno da doutrina estava, portanto, suficien­
temente aplainado para passar ao estudo das tarefas do proletariado na revolução
russa. Mas Lênin teve de parar por causa de urgência política. De passagem, por
fora da tese central —natureza de classe de todo Estado, necessidade de pôr
abaixo o aparelho de Estado burguês, o que aproxima os marxistas revolucioná­
rios dos anarquistas face aos reformistas, ditadura do proletariado como período
de transição em direção ao comunismo realizando uma centralização democráti­
ca e utilizando os meios de gestão que apareceram com o capitalismo monopo­
lista de Estado - , Lênin terá abordado uma multidão de temas. Às vezes em
algumas palavras —o desaparecimento, com o comunismo, do “homem médio”
de hoje em dia (L 25, pág. 507) —, às vezes em algumas linhas —a validade da
noção de "revolução popular” (L 25, pág. 450) —, às vezes em alguns parágrafos
— a manutenção parcial da validade do “direito burguês” e da desigualdade
dentro da fase socialista (t 25, págs. 502-505). O conjunto pode, portanto,
aparecer como rico de implicações ou como alusivo e simplificador.
O procedimento de exposição é quase constantemente o mesmo. A primeira
seção do capítulo I, A sociedade de classes e o Estado pode servir de paradigma.
Ele se intitula “O Estado produto de contradições de classes inconciliáveis”. O
“aviltamento” do marxismo, suas “deformações”, especialmente o kautskismo,
são vivamente denunciados. Para "restabelecer” a doutrina de Marx sobre o

629
Estado, é preciso citá-lo longamente. Segue uma passagem de A origem da
família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, traduzida por Lênin
que desconfia das traduções existentes. A citação é comentada criticando os
ideólogos burgueses e pequeno-burgueses que corrigiram Marx fazendo apare­
cer o Estado como "um órgão de conciliação das classes” quando ele é um
"organismo de opressão de uma classe por outra” ( t 25, pág. 419). Viu-se,
durante a revolução de 1917, socialistas-revolucionários e mencheviques adota­
rem essa concepção, o que prova que eles não são “absolutamente socialistas”.
A seção termina por um parágrafo consagrado a ir contra Kautsky. Com o mesmo
tipo de encadeamento, chega-se, no fim do primeiro capítulo, à reafirmação de
que “sem revolução violenta é impossível substituir o Estado burguês pelo
Estado do proletariado” (t 25, pág. 434). Assim, o texto avança com citações em
glosas, autoproclamando sem parar sua perfeita ortodoxia. Apreciar se essa
reivindicação é legítima só tem um sentido ambíguo no interior do marxismo.
Mas pode-se tentar esclarecer certos problemas do texto observando como Lênin
leu Marx e Engels.

Lênin, leitor e tradutor de Marx e de Engels

Em janeiro de 1917, em Zurique, Lênin, por motivos que veremos mais


adiante, começa a elaborar um texto que é a primeira versão de O Estado e a
Revolução. Ele o leva consigo para a Rússia e o confia a amigos em Estocolmo;
ele o considera importante e quase acabado, já que escreveu a Kamenev:
“Entre nós: se me liquidarem, peço que edite meu caderno: O marxismo e o
Estado (ele ficou em Estocolmo) (...) penso que se pode publicar a obra em
uma semana” ( t 26, pág. 467).
Recupera seu caderno em sua cabana às margens do lago Razvil e na
Finlândia, onde termina, utilizando a biblioteca de um marxista finlandês, a
redação de O Estado e a Revolução (Kazkievitch, 1963). Quase todos os textos
de O marxismo e o Estado serão retomados em O Estado e a Revolução que
conterá a mais uma citação do Anti-Dürhing, em que Engels retoma as
palavras de Marx sobre o papel da violência como “parteira de toda velha
sociedade que traz uma nova em suas entranhas” (t 25, pág. 432), do que
Lênin não duvida para a Rússia, e no acréscimo de 1918, a célebre carta de
Marx a Weydemeyer de 5 de março de 1852. No Caderno azul, que é bem mais
do que uma coletânea de trechos escolhidos, Lênin recopiou, anotou, subli­
nhou, resumiu e comentou os textos que cita na maioria das vezes em alemão.
Porém, ele parece pouco preocupado com o contexto histórico de cada uma
das obras. Em O Estado e a Revolução, A Guerra civil na França, de Marx, é
privilegiada como chave de inteligibilidade, e o pensamento de Marx é homo­
geneizado a partir de sua análise da Comuna, como se todo Estado fosse
semelhante ao Estado bonapartista, essa “excrecência parasitária”. Por que
Lênin, que cita longamente Crítica ao programa de Gotha, não mostra
qualquer passagem em que Marx se refira ao caráter composto do Estado
prussiano, que, no entanto, ele citou em 1912 (L 18, pág. 349)?

630
Não se fica surpreso com o fato de Lênin não notar que os textos de Marx
e de Engels sobre as ditaduras do proletariado são pouco numerosos e foram
redigidos essencialmente em 1848-1851, momentos agudos da luta do proleta­
riado francês (Balibar, em Labica, 1982). Mas pode-se sublinhar que ele não
procura tirar das obras ditas econômicas de Marx, especialmente do Capital,
elementos de análise do Estado, se bem que o papel do Estado no processo de
acumulação do capital na Inglaterra não lhe tenha podido escapar, enquanto
ele utiliza textos pouco conhecidos, por motivos de edição às vezes, como a
carta de Engels a Bebei de 18-25 de março de 1875, que só foi exumada depois
de 1911 (t 25, pág. 476).
Essa tarefa de seleção —da qual se dirá do mesmo modo que reduz Marx
ou que lhe tira a substância - está ligada a um trabalho de tradução. Lênin
participou de várias traduções de textos de Marx, particularmente a de A
guerra Civil na França (L 21, pág. 79) sem que tenha nesse momento tirado
implicações quanto à necessidade de “despedaçar” o aparelho de Estado como
testemunha seu tratado biográfico sobre Marx de 1913 (L 21, págs. 37-87). Ele
faz desaparecer a especificidade e a dificuldade do conceito de bügerliche
Gesellschaft, traduzindo-o por “sociedade burguesa” (t. 25, pág. 496) quando
toda riqueza da teoria do Estado de Marx repousa sobre a articulação do par
de noções “sociedade civil-Estado”. Para Marx, a história é a história da cisão
progressiva entre a “sociedade civil” e o estado, que não é absolutamente a
mesma “sociedade civil” moderna: quando o capitalismo industrial chegou a
seu pleno desenvolvimento, bürger e burguês se tornaram equivalente, e o
Estado tornou-se máquina de opressão e excrecência parasitária enquanto
anteriormente ele preenchia uma função progressista. Mas em O Estado e a
Revolução, com origens em 1917, o Estado é idêntico a si próprio em sua
natureza opressiva, os elementos de historicídade sendo, de alguma maneira,
secundários. A extensão-abstração conceituai, à qual procede Lênin, se choca,
porém, com dificuldades terminológicas. Com "a instauração do regime social
socialista, o Estado se dissolve em si mesmo e desaparece”, escreve Engels que
propõe colocar no lugar da palavra Estado a palavra “comunidade” (Gewein-
weserí) que responde muito bem à palavra francesa “commune” (comuna). Mas
e em russo? Obchtchina designa banalmente demais a comunidade camponesa
para que Lênin, do qual o mínimo que se pode dizer é que esse não é seu ideal,
possa utilizá-lo. Ele propõe, portanto, se servir da palavra francesa “commune”
(comuna). Assim a língua da Revolução Russa será a língua francesa de 1871
já que seu começo é um equivalente da Comuna de Paris ( t 25, pág. 476).
A maioria das questões abordadas por O Estado e a Revolução é colocada
como problemas cronológicos: origem e fim do Estado, que são especialmente
estudados; destruição do Estado burguês, depois ditadura do proletariado como
quase-Estado correspondente à primeira fase do comunismo, o socialismo que é
concluído com o desaparecimento simultâneo das classes e do Estado; “trans­
ição” (t 25, pág. 496), “desaparecimento” (t 25, pág. 506), “supressão” (pág.
468), "demolição” (L 25, pág. 466), “extinção” (pág. 456), O Estado e a Revolução
é um discurso sobre as metamorfoses de uma entidade sempre semelhante em

631
seu núcleo opressivo. Lênin o repete várias vezes: Marx é um naturalista, um
evolucionista (t 25, págs. 495, 496 e 509). E, se ele não menciona aqui Darwin,
como o fez anteriormente (L I, pág. 156), não é menos verdade para ele que Marx
é, para a história social, o que Darwin foi para a história natural. Sua visão
“estadista” do desenvolvimento social e seu historicismo são muito mais rígidos
do que os de Marx, que indicava, enfatizemos, em razão do exame da es­
pecificidade russa, que as etapas que ele havia separado para a Europa Ocidental
não podiam pretender uma validade universal (Marx, O Capital, livro I, cap.
XXVII). Pois, se Lênin dedica-se a demonstrar que o Estado é uma forma
histórica, quer dizer, submissa à evolução e, portanto, suscetível de desaparecer,
ele procede simultaneamente da maneira mais anti-história possível. Definindo o
Estado de maneira estreita, como uma “força saída da sociedade, mas se
colocando acima dela e tornando-se cada vez mais estranha a ela” (t 25, pág.
421), ele privilegia abstratamente o elemento da violência, se bem que manipule
mais uma essência do que analise uma realidade concreta. Esse essencialismo,
que é talvez o único meio para o historicismo de escapar ao relativismo
sociológico e ético, se manifesta também nos recursos que habituam Lênin à
idéia de regras sociais eternas: com o fim do capitalismo, os homens “se
habituarão gradualmente a respeitar as regras elementares da vida em sociedade
conhecidas há séculos, repetidas durante milênios em todas as prescrições
morais”, a respeitá-las sem a coação estatal (L 25, pág. 500). Porém, a causa social
dos excessos que constituem uma "violação das regras da vida em sociedade, é
a exploração das massas dedicadas à necessidade, à miséria” (t 25, pág. 501). Eis,
portanto, o segredo do comunismo, é um retorno à natureza humana! Mesmo se
se pode duvidar da conformidade desse tipo de pensamento, apesar disso
secundário no texto, às orientações centrais da antropologia de Marx, ainda é
preciso considerar que Lênin multiplica além disso os sinais de obediência.

Lênin e Bukharin

Se Lênin se ergue ostensivamente como guardião da ortodoxia em O


Estado e a Revolução no entanto é um novo convertido sobre um ponto decisivo:
em dezembro de 1916, ele ofendia Bukharin por privilegiar a fórmula “des­
pedaçar” o aparelho de Estado empregada por Engels e rejeitava essa fórmula
da parte do anarquismo, o que lhe iria servir mais tarde para discriminar
marxistas revolucionários e socialdemocratas. A mudança na posição de Lênin
se explica pela conjuntura do verão de 1917, o desenvolvimento da violência nas
massas (Ferro, 1976), a burocratização dos Soviets (Ferro, 1980), a implosão
social da Rússia, da qual se pode dizer que tudo se despedaçou aí em uma
verdadeira desintegração social (Malia, 1980)? Mas a reviravolta leninista data de
janeiro de 1917. Antecipação genial do desabamento próximo do Império russo?
De maneira nenhuma, já que Lênin, com nostalgia, declara, no começo de 1917,
que estará reservado provavelmente às gerações futuras ver a revolução (t 23,
pág. 277). Em 1925, Bukharin conta como Krupskaia lhe havia indicado no VI
Congresso do POSDR (de 26 de julho a 3 de agosto de 1917) que Lênin julgava

632
também necessário, no presente, “fazer” saltar o Estado, e ele pôde se prevalecer
de ter tido razão de alguma forma antes de Lênin que soube, diz ele, desenvolver
esse tema e a doutrina da ditadura. Em 1929, Stalin, no ataque ao “grupo de
Bukharin”, combate essa “pretensão” e consagrará uma longa passagem de seu
discurso diante do Plenário do Comitê Central do PCUS, Do desvio de direita
no Partido Comunista da URSS (Stalin, 1938, pág. 285), para tentar estabelecer
que ela é "exagerada” e que ele pode continuar a se considerar um discípulo de
Lênin e não um bukharinista, o que seria de fato desconcertante! Querela um
pouco ridícula se não estivesse ligada a tantos dramas e cujo exame rápido faz
revelar-se o bom-fundamento da reivindicação bukhariniana, mas que, principal­
mente, enfatiza a importância da mudança efetuada por Lênin. Como explicá-la?
Primeiro a cronologia dos textos. Em dezembro de 1916, Lênin ataca as
concepções de Bukharin tal como ele as havia exposto, sob o pseudônimo de
Nota Bene, no nfi 6 deJugend International (“órgão de luta e de propaganda da
União Internacional das Organizações Socialistas da Juventude" publicado em
língua alemã na Suíça desde 1915). Louvando a orientação antioportunista e
antichauvinista do jornal, Lênin recusa-se, contudo, a “adular a juventude” e
realça alguns defeitos, especialmente o “erro muito grave” de Bukharin sobre a
diferença entre concepções anarquistas e socialistas do Estado. Os socialistas
querem utilizar o Estado moderno e suas instituições em sua luta e afirmam sua
necessidade “sob uma forma de transição particular correspondente à passagem
do capitalismo para o socialismo": a ditadura do proletariado. Mas são os
anarquistas e não os socialistas que "querem" abolir o estado, fazê-lo "saltar”
(sprengen) contrariamente ao que afirma Nota Bene, que citou Engels incomple­
tamente (t 23, págs. 182-183). Ele se engana também adiantando que a socialde-
mocracia não educou bastante a juventude para uma oposição de princípio para
com o Estado. Pois não é a questão do Estado, sustenta Lênin, mas a do
oportunismo que é essencial: os socialistas-revolucionários devem utilizar o
Estado para derrubar a burguesia. E ele anuncia um artigo, do qual ele escreverá
apenas um breve plano, em que afirma que a democracia revolucionária repousa
sobre as massas e não sobre uma minoria, mas que é também um Estado (t 41,
pág. 392). Estamos ainda longe das teses de O Estado e a Revolução. Mas Lênin
empreende leituras que o levarão a isso: e ele alcança rápido a interpretação de
Engels que é a mesma de Bukharin. Em janeiro de 1917, ele escreve a Alexandra
Kollontai: “Cheguei a conclusões ainda mais categóricas contra Kautsky do que
contra Bukharin” (t 37, pág. 289) e lamenta haver recusado em julho um artigo
para Le Social-démocrate intitulado “Sobre a teoria do Estado imperialista” em
que Bukharin afirmava a hostilidade de princípio da socialdemocracia ao poder
de Estado e que o proletariado aboliria sua própria ditadura desembaraçando-se
do Estado. Lênin havia pedido a Zinoviev para apresentar essa recusa como uma
recusa de princípio (L 43, pág. 558). Daí a troca de cartas com Bukharin (L 35,
pág. 229). Em fevereiro de 1917, a conjuntura é outra totalmente diferente, já
que Lênin distingue nitidamente entre os “pequenos erros de Bukharin” e o
“aviltamento” do marxismo por Kautsky (L 35, pág. 282).
Essa aproximação Lênin-Bukharin pode ser compreendida pela conexão

633
que eles estabelecem, ambos, entre imperialismo e questão do Estado: quais­
quer que sejam as divergências entre o jovem e o velho bolchevique, suas
análises conduzem a enfatizar as transformações do Estado provocadas pelo
imperialismo moderno que tem a maior necessidade da ditadura do Estado
(Bukharin, 1976, pág. 128). E, no artigo de 1916, primeiro condenado por
Lênin, ele estigmatiza o Novo Leviatâ que mantém toda a sociedade em suas
garras em um tom vizinho ao de Marx, denunciando no Estado bonapartista
uma boa constrictor (sucuri, que aperta os animais até matá-los) que encerra
toda a sociedade dentro de seus anéis. Como os marxistas revolucionários, que
recusavam a lógica da defesa da pátria, atacavam o chauvinismo, não foram
sensíveis às transformações políticas autoritárias que a guerra levava a todos
os beligerantes e sobre o consentimento que lhes concedia a socialdemocracia
da II* Internacional? Eles não viam nisso um fenômeno contingente, mas a
verdade do Estado burguês e do reformismo, assim como a própria guerra era
a verdade do capitalismo em seu estágio supremo. Lênin é explícito nas
primeiras linhas de O Estado e a Revolução: “A monstruosa opressão das
massas trabalhadoras pelo Estado, que se confunde sempre mais estreitamente
com os grupos capitalistas todo-poderosos, se afirma cada vez mais. Os países
desenvolvidos se transformam - falamos de seu ‘atraso’—em banhos militares
para os operários” (t 25, pág. 415). Dentro dessa perspectiva, O Estado e a
Revolução é um prolongamento de O Imperialismo, estágio supremo do
capitalismo (junho de 1906) ( t 22, págs. 201-327).
Se Lênin não menciona Bukharin, podemos nos perguntar por que, em O
Estado e a Revolução, ele explica no §3 do capítulo VI a polêmica entre Kautsky
e Pannekoek: o marxista holandês beneficia realmente, com uma espécie de
prioridade cronológica na crítica do oportunismo quanto ao Estado, que ele
atacou em 1912 nas colunas do Neue Zeit, o órgão teórico da socialdemocracia
alemã. Sublinhando todos os defeitos do artigo de Pannekoek, “A ação de massa
e a revolução” (Pannekoek, 1983), Lênin se associa à sua crítica do “radicalismo
passivo” de Kautsky e, a despeito das reservas sobre a formulação, cita uma
passagem dele, afirmando notadamente que “a revolução proletária consiste em
aniquilar os instrumentos da força do Estado e em eliminá-los (...) pelos ins­
trumentos da força do proletariado...”. Ele estigmatiza Kautsky porque nunca a
vitória do proletariado sobre os “governos hostis” poderá levar à destruição do
poder do Estado, daí só pode resultar um certo deslocamento da refação das
forças no interior do poder de Estado (t 26, pág. 528). Incontestavelmente, Lênin
e Pannekoek são daqueles que almejam a destruição do aparelho de Estado. Mas
Pannekoek, "esquerdista” conseqüente consigo mesmo, se se quiser, pretende
exatamente assegurar um papel preponderante para a auto-organização das
massas, o que o conduz posteriormente a se opor a Lênin (Pannekoek, 1977),
enquanto Lênin se coloca constantemente numa perspectiva que assegura a
predominância da organização partidária. Ora, o imperialismo na análise de
Lênin tem uma qualidade organizacional que se manifesta no aparecimento de
um novo tipo de Estado: o capitalismo monopolista de Estado que dá ao
socialismo sua base organizada.

634
O capitalismo monopolista de Estado: organização e centralização

Se bem que Lênin não trate a noção de capitalismo monopolista de


Estado de maneira específica, ela é primordial em O Estado e a Revolução
assim como em «ua estratégia política da revolução ininterrupta que deve
conduzir a Rússia à construção do socialismo. Segundo suas análises ante­
riores, Lênin caracteriza o imperialismo pela fusão do capital industrial com o
financeiro, pela luta para a divisão das colônias cujos excedentes permitem o
desenvolvimento de uma aristocracia operária, base social do oportunismo,
mas também pela passagem do capitalismo monopolista para o capitalismo
monopolista de Estado, processo que “acentua e acelera a guerra” ( t 25, pág.
415). Os monopólios de Estado e os monopólios privados se interpenetram (t
22, pág. 271) para criar uma nova forma de Estado que não admite outro
sucessor senão a ditadura do proletariado. O CME é o último estágio do
Estado. Mas, por uma espécie de artifício da história, se o CME só pode ter o
futuro de passagem para uma nova forma de Estado, que não é mais um Estado
rigorosamente, o quase-Estado que é a ditadura do proletariado, ele forjou
também os instrumentos que permitirão seu bom funcionamento; ele criou
suas “premissas” (L 25, pág. 511). Se o CME é cronologicamente a última fase
da história do capitalismo, ele é também sua fase superior, aquela em que ele
levou a seu término seu processo de racionalização.
Apólogo do papel civilizador da burguesia, da técnica industrial, por suas
virtudes sociais e psicológicas, da grande empresa por sua eficácia, Lênin
enfatiza os benefícios que nascem da guerra imperialista do ponto de vista do
socialismo. Aumento da opressão que se torna intolerável e faz amadurecer a
revolução proletária, certamente, mas principalmente se se coloca, de alguma
maneira, do ponto de vista do futuro, impulso positivo da planificação, da
centralização e da simplificação da gestão econômica. Triunfo da “vontade
única” ( t 21, pág. 260). Engels já havia, lembra Lênin, profetizado em Crítica
do programa de Erfurt, em 1891, que o capitalismo dos trusts, poria fim à
produção privada e à ausência de plano. Isso é feito com o capitalismo
monopolista de Estado em que os “magnatas do Capital descontam adiantada-
mente o volume da produção a partir de um plano” (t. 25, pág. 478). Com o
imperialismo, as empresas se transformam todas segundo o modelo do capita­
lismo de Estado como já o era o correio alemão dos anos 1870 (t 25, pág. 461).
Despedaçar o aparelho estatal só é possível na medida em que suas
tarefas são cada vez mais racionalizadas e fáceis de concluir: “O capitalismo
simplifica as funções administrativas ‘estatais’, permite rejeitar os ‘métodos de
comando’ e reconduzir tudo a uma organização dos proletários (classe domi­
nante) que engaja, em nome da sociedade, ‘operários, vigilantes, contadores”’
(L 25, pág. 460). E pouco a pouco a gestão, primeiro confiada a funcionários
públicos revogáveis, modestamente retribuídos, será efetuada por “todo mun­
do de cada vez para em seguida tornar-se um hábito e desaparecer enfim
enquanto funções especiais de uma categoria especial”. Um dia, como anuncia
Os bolcheviques conservarão o poder?, as próprias cozinheiras exercerão as

635
funções do governo (t 25, p. 109). Ter-se-á, assim, passado, segundo a fórmula
de Engels, do poder sobre os homens para a administração das coisas.
Mas o proletariado armado, tomando em suas mãos as tarefas de “registro”
e de “controle” (t 25, pág. 489) e administrando a sociedade comunista em sua
primeira fase, não é uma espécie de federalismo proudhoniano? De jeito nenhum,
responde Lênin, para quem “Marx é centralista” (t 25, pág. 464) e ele insiste
nisso. Técnica e economicamente, ele tem o cartel como modelo. Em A catástrofe
imediata e os meios para conjurá-la, redigida em meados de setembro de 1917,
ele sublinha a superioridade das grandes empresas e que “quanto mais o país é
pobre em forças tecnicamente intruídas, e, de uma maneira geral, em forças
intelectuais, mais se impõe a necessidade de decretar, tão rapidamente e tão
resolutamente quanto possível, o agrupamento forçado, e de realizá-lo, começan­
do pelos grandes e pelas empresas muito grandes” (t. 25, pág. 375). Segundo O
Estado e a Revolução, com a fase superior do comunismo, o Estado, depois de
se ter deteriorado, terá desaparecido. Mas, na primeira fase, o que está na ordem
do dia é “a expropriaçáo dos capitalistas”, a transformação de todos os cidadãos
em trabalhadores e empregados de um grande "cartel” único, a saber: o Estado
inteiro, e a subordinação absoluta de todo o trabalho de todo esse cartel a um
Estado verdadeiramente democrático, a O Estado dos Soviets dos deputados
operários e soldados (L 25, pág. 508). Reino do unitário, em que se impõe à
sociedade a disciplina da fábrica, essa não é a meta final, mas a fase de espera da
vinda do comunismo apoiado num “surto gigantesco das forças produtivas" (t
25, pág. 506), permitindo o fim da oposição entre trabalho manual e intelectual,
“a sociedade inteira não será mais do que um único escritório e uma única fábrica
com igualdade de trabalho e de salário” (t 25, pág. 512).
Essa sociedade não admite uma organização política despedaçada e é
preciso lembrar, contra Bernstein, que se beneficia da indulgência de Kautsky e
de Plekhanov, que as visões de Marx sobre “a destruição do Estado parasita”,
não têm nada em comum com a descentralização. O novo Estado proletário
seguirá o exemplo da Comuna que, afirma Lênin a despeito da evidência, realiza
a organização da “unidade da Nação”. Mas essa unidade não é “burocrática”,
“burguesa” ou “militar”. Ela depende do “centralismo democrático proletário”
que nasce da organização do proletariado e dos camponeses pobres em comunas
e da união de todas as comunas para bater o capital, esnaagar a resistência e
remeter a toda sociedade a propriedade dos meios de produção (L 25, pág.
462465). Nesse sentido, o socialismo imaginado por Lênin é exatamente o
prolongamento do capitalismo monopolista: ele planeja a organização e se opera
um deslocamento de poder na direção do proletariado e de seus aliados, digamos,
para baixo, e “despedaça” o aparelho estatal, as forças armadas e a administração,
não dispersa nem dissemina o poder. O trabalho do Um, da racionalidade
uniformizante desenvolvida pelo capitalismo dos monopólios, depois acelerado
pela guerra imperialista, será concluído pelo povo inteiro.
Estudando um caso concreto, o da habitação tal como foi colocado por
Lênin em O Estado e a Revolução (L 25, págs. 468470) e nos textos contempo­
râneos (t 26, pág. 107) e tratado depois de outubro (t 42, págs. 18 e 189,1 45,

636
pág. 232), poderemos mostrar como foi instituído um sistema de controle policial:
Lênin subestimou as dificuldades de funcionamento econômico e administrativo
e superestimou as capacidades da classe “baixa” para se encarregar disso, como
testemunha o fracasso da Inspeção operária e camponesa, o comissariado do
povo especial mente encarregado da transferência do exercício do poder para os
proletários e para os camponeses pobres, que é reconhecido por Lênin em 1923
(t 33, págs. 495 a 517), ao mesmo tempo que a falência geral do aparelho estatal
socialista caracterizado pela burocracia e pelo arcaísmo. Porém, O Estado e a
Revolução sublinhava que as “premissas” do socialismo só eram plenamente
realizadas nos “países capitalistas mais desenvolvidos” (t 25, pág. 571), e pode-se
duvidar de que Lênin colocasse nesse nível (de país desenvolvido) a Rússia.
Contudo, ele afirma ao mesmo tempo que o capitalismo monopolista estatal se
afirmou universalmente. Essa oscilação é constante: nos períodos de conquista
revolucionária, insiste sobre a modernidade da Rússia (em abril-outubro de 1917,
por exemplo) e, nos períodos de consolidação, sobre seu atraso, em março de
1918 (t 27, pág. 128) ou, em 1923, época em que preconiza uma “revolução
cultural” (t 33, pág. 488) que deve difundir os conhecimentos elementares entre
o povo analfabeto. Mas se, em O Estado e a Revolução, as capacidades orga­
nizadoras do proletariado russo e o grau de desenvolvimento do capitalismo na
Rússia parecem estar superestimados com relação ao que ele avaliará pos­
teriormente quando falar da “barbárie contra a qual não se deve hesitar em usar
métodos bárbaros” (t 32, pág. 355), não se pode dizer, todavia, que esse otimismo
seja simplesmente propaganda. Na verdade, foi ainda antes da guerra de 1914
que Lênin havia estimado que o Estado czarista se transformava e se aproximava
do modelo bonapartista, cujo término, a Comuna, não era, no entanto, ainda
anunciado como o destino da Rússia.

A Comuna de Paris e os Sovietes

Se o imperialismo produz o último tipo de Estado capitalista, aquilo que


lhe toma o lugar, a ditadura do proletariado, é um poder-Estado que não está
mais acima da sociedade, mas fundido com o povo, isto é, o proletariado em
armas e seus aliados. Essa nova "forma política” histórica (pág. 467) apareceu
com a Comuna, portanto antes do progresso do CME sem que Lênin tenha
levantado esse paradoxo aparente. Uma das audácias dele foi assimilar os
Sovietes ou, pelo menos, os Sovietes, tais como eles deveriam ser, à Comuna
que retém o papel de mito fundador e legitimante. O socialismo é possível, pois
já existiu em Paris, em 1871, “uma primeira tentativa” (t 25, pág. 467). O
capítulo IV de O Estado e a Revolução resgata seus traços principais a partir
dos textos de Marx e de Engels. Heroísmo da Comuna que parte as estruturas
burocráticas e militares e aplica a extinção do Estado suprimindo as forças
armadas permanentes e o funcionalismo. Ela sai do parlamentarismo, não
destruindo seus organismos representativos e renunciando ao princípio eleti­
vo, porém abolindo a divisão do trabalho legislativo e executivo, e “transfor­
mando esses tagarelas em assembléias que agem” (L 25, pág. 459). Lição para

637
a república russa onde os Soviets se burocratizaram e esterilizaram. "Nós
veremos mais adiante, anuncia Lênin, concluindo, que as revoluções russas de
1905 e de 1917, de maneiras diferentes, em outras condições continuam a ser
obra da Comuna e confirmam a genial análise histórica de Marx” ( t 25, pág.
467). Ele não escreverá o capítulo anunciado.
Sobre o que repousa a aproximação, entre a Comuna e os Sovietes?
Sobre a afirmação de que Kerensky é um Bonaparte? Mas, então, não seria um
fenômeno bem precário para determinar uma estratégia revolucionária? Sobre
uma simples analogia? Ora, Lênin fala de continuidade, o que indica uma
identidade por natureza. É preciso, portanto, supor uma semelhança entre o
Estado bonapartista e o Estado czarista, entre Nicolau II e Napoleão III. Ela
não está exposta em O Estado e a Revolução, mas sobressai nos textos
anteriores, muito pouco recordados.
O evolucionismo, ao qual Lênin recorre, leva a julgar a coerência lógica de
seu projeto político quanto ao encadeamento das diferentes formas políticas. Ora,
se Lênin não hesita em fazer do Estado russo em 1917 um exemplo do
capitalismo monopolista estatal é porque ele anteriormente sublinhou a moder­
nização que se operou na Rússia. Longe de ser legitimado pela originalidade do
Estado czarista, o projeto leninista se ancora na suposta banalidade cujos
elementos de análise precisos são dados por volta de 1912.0 czarismo chega ao
fim de um período de transformação começada com a abolição da servidão. Ainda
que Lênin, em 1901, insistisse sobre o pouco efeito político da reforma de 1861
e lembrasse que os “melhores espíritos da época” (Tchernychevski) a houvessem
acolhido “pela maldição do silêncio” (t 4, pág. 438) ele estima presentemente
que o desenvolvimento do modo de produção capitalista na Rússia conduziu a
efeitos políticos, traduzindo a emergência de novas classes sociais que se impõem
sobre a cena da história pelo processo das lutas revolucionárias. Em 1908-1910
abriu-se um novo período da história das instituições do Estado russo que
prossegue o movimento começado em 1861 e aprofundado em 1905: reformas
administrativas, judiciárias (t 17, pág. 110). Sob os golpes da revolução, o antigo
czarismo, meio patriarcal, meio feudal, tornou-se uma monarquia burguesa, por
etapas. A política agrária de Stolypin, que favorece os ricos cultivadores em
detrimento da Comunidade rural, as Obchtchina, e a “constituição, que dá a
algumas camadas burguesas uma instituição representativa, a Duma, são os
sinais disso (L 15, págs. 374-375). Mas a monarquia feudal burguesa é incapaz
de transformar realmente a Rússia em sociedade democrática burguesa: ela não
pode obter o sustentáculo dos grandes proprietários fundiários e dos magnatas
da indústria; quanto aos pequenos camponeses, eles se interessam pouco por
eleições. Também o czarismo deve se apoiar sobre elementos heterogêneos
escolhidos artificialmente nas camadas dependentes segundo o método bo­
napartista, tal como Marx o descreveu.
No entanto, não se trata de um bonapartismo claramente distinguido da
monarquia burguesa, como na França, porém, trata-se mais de uma combina­
ção dos dois, como na Alemanha de Bismarck (t. 18, pág. 349). O Estado russo
em 1912 é composto pela monarquia feudal burguesa, com método bonapartis-

638
ta, burocrática sobre a base de um passado, próxima da autocracia patriarcal.
As tarefas dos revolucionários são claras: lutar pela instauração de uma
democracia radical da qual o proletariado seria a ala encaminhante, cons­
trangendo a burguesia a ir até o fim de sua missão histórica, instaurando uma
ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses. É
preciso recuperar a Rússia de seu atraso com relação à Europa, e trata-se
realmente, aqui, de um atraso e não de um outro caminho por meio de outras
etapas, pois, por falta de um desenvolvimento suficiente do capitalismo, a terra
russa não se desembaraçara do asiatismo e da autocracia. O projeto bolchevi-
que se opõe, portanto, ao dos populistas, para quem a Rússia não corresponde
a um modelo capitalista ( t 17, pág, 113). Para Lênin, ao contrário, o Estado
russo seguira o mesmo caminho que todos os Estados imperialistas e co­
nhecera o efeito racionalizador e centralizador da guerra de 1914 que mostra
como “se pode gerir uma economia socialista planificada no interesse das
massas” (t 23, pág. 253) e acelera a modernização. Mas, para fazer triunfar o
socialismo, é preciso uma revolução violenta.

Ditadura, violência e utopia

“Na maioria dos casos”, o estado burguês só pode ceder lugar ao Estado
proletário por meio de uma revolução violenta (L 25, pág. 433): os termos
empregados, “despedaçar”, "destruir”, "demolir”, "amputar”, são suficiente­
mente eloqüentes e repetitivos para que o texto inteiro apareça como um
elogio da violência. Mas o “panegírico” da violência por Engels, lembra Lênin,
não é nem um capricho, nem um “ímpeto polêmico”: “A necessidade de
inculcar sistematicamente nas massas essa idéia - e precisamente essa —da
revolução violenta está na base de toda a doutrina de Marx e de Engels" (L 25,
pág. 433). Deve-se encontrar aqui o essencial da doutrina leninista sobre o
estado? Pode-se achar que o “furor asiático” que a impregna, quando ela
explica seu sucesso no período stalinista, não esgota seu sentido que não se
reduz a uma espécie de veemência destruidora: o projeto leninista é o
desenvolvimento da democracia, o autogoverno dos produtores (Colletti,
1974). Para pôr fim à exterioridade das massas com relação ao poder, Lênin
só quer conservar do Estado um resíduo necessário para a resolução dos
problemas do direito, um “direito burguês” que reflete a persistência das
classes até a vinda do comunismo integral (L 25, pág. 505).
Assim, o essencial da destruição leninista não é a violência armada, mas
“a destruição do muro que separa as classes trabalhadores do poder”, sua
“emancipação”, sua "autodestruição” (Colletti, 1974, pág. 305). Esse tipo de
interpretação permite sublinhar a dimensão utópica do projeto de Lênin: ele
perceberia as “necessidades descentralizadas de uma comunidade socialista
nascente”, mas a deixaria submergir pela “tendência para perpetuar a política
revolucionária centralista” (Buber, 1977, p. 166).
Pode-se também encontrar a própria base da utopia política e social do
líder bolchevique - fazer a Rússia passar para o socialismo sem preocupação

639
de etapas — a própria origem do desencadeamento da violência que teria,
segundo Kautsky, sua raiz na violação das leis do marxismo (Kautsky, 1982).
Para se manterem no poder os bolcheviques podem apenas jogar por cima do
muro suas convicções democráticas e depois socialistas (Weber, em Kautsky,
1982, p. VIII). O despotismo engendrado pela Revolução de outubro só
conhecia um método político para se afirmar: o terrorismo; Mussolini é apenas
o macaco de Lênin (Kautsky, 1982, págs. 109-112). Seria mais fácil explicar
que o programa de O Estado e a Revolução não foi respeitado, pois a
contra-revolução e a guerra civil restringiram a base social da ditadura e
impuseram a construção “de um poderoso aparelho militar, policial e burocrá­
tico” (O. Bauer, em Bourdet, 1968). Mas seria esquecer a natureza da ideologia
(Besançon, 1980) ou a lógica da organização bolchevique e do programa
leninista, terrorista antes de 1917 (Colas, 1982).
Pois, O Estado e a Revolução, em comparação com os textos posteriores
e anteriores de Lênin, pode aparecer relativamente moderado em seu elogio
das virtudes da violência. É preciso “quebrar a resistência dos capitalistas”,
“humilhá-los”, mas nenhum elogio do terror de massa que Lênin, contraria­
mente ao terror individual, conspirador, tinham como regenerador, sobre o
modelo do Terror durante a Revolução Francesa (t. 19, p. 18). A ditadura do
proletariado é, certamente, violenta: ela exclui da democracia uma minoria de
opressoes que faziam correr “mares de sangue” enquanto “a repressão exerci­
da contra uma minoria de exploradores pela maioria dos escravos assalariados
de outrora é relativamente tão fácil, tão simples e tão natural que custará muito
menos caro à humanidade” (t 25, pág. 501). Não existe nada aqui que antecipe
nitidamente a tese da continuação e do agravamento da luta de classes sob o
socialismo, desenvolvida em seguida (t 28, pág. 67; L 31, págs. 91-95). Nada
mais de metáforas de higiene social que definem o inimigo como um inseto do
qual é preciso “limpar a terra russa” (t 13, pág. 291; t 26, pág. 431); só o
emprego do termo “parasita”, mas sem o desenvolvimento da lógica da
erradicação (Colas, 1982).
Nada deste tom de ódio com o qual Lênin incita em julho de 1918 à
exterminação dos kulaks (t 28, págs. 153 e 175). Porque O Estado e a Revolução
fala mais de despedaçar o aparelho estatal do que de eliminar as classes
exploradoras, porque apresenta a revolução como um processo relativamente
fácil e rápido, ele está afastado do tom e das palavras de ordem que se impõem
imediatamente após outubro e que serão mantidas mesmo depois da volta da
NEP que, se ela modificou, era, ainda assim, sua única ambição declarada, a
política econômica não diminuiu a intensidade da repressão (Baynac, 1975). Em
resumo, dir-se-á que o afastamento entre a realidade da revolução russa e a utopia
do Lênin do verão de 1917 é manifestado pela ausência em sua visão de toda
instituição policial especializada como o será a Tcheca, criada quando O Estado
e a Revolução não estava ainda impresso. E verdade que o Estado leninista é
geralmente sem instituições nem mediações: o quase-Estado é quase sem
aparelho. Mas como Lênin pode ignorar que, no momento em que glosa sobre o
enfraquecimento do estado, trabalha para o reforço do Partido?

640
Enfraquecimento do Estado e triunfo do Partido

Se O Estado e a Revolução anuncia o desaparecimento do Estado, o


Partido some quase totalmente nele. Ele só aparece incidentalmente para
questões secundárias (t 25, págs. 428, 445, 522): três menções e umas trinta
linhas. O Lênin que, em 1913, escrevia "Um proletariado sem organização é
zero” (t 19, pág. 528) e que escreverá, em 1920, “Classe proletária = Partido
comunista russo = o poder soviético” (L 44, pág. 456) enfraqueceu até
desaparecer durante o verão de 1917? Poder-se-ia estimar que a ausência do
Partido assina a opção fundamental de O Estado e a Revolução em favor da
democracia direta: Lênin descobrira que a ditadura do proletariado não é a
ditadura do Partido (Colletti, 1972). Mas seria preciso, então, lhe supor uma
lucidez crítica e episódica sobre os efeitos voluntários e involuntários da lógica
partidária. Sobretudo, como ele poderia, a não ser por amnésia instantânea,
escrever na mesma época Os bolcheviques conservarão o poder?, onde afirma
a capacidade organizadora do Partido para desempenhar o papel de um
aparelho estatal, o que, além disso, seduz a tese de uma dualidade entre o
Lênin do Que fazer? e o de O Estado e a Revolução.
Mas que Lênin não menciona o Partido, que, na verdade, teria bem mais
facilmente vindo no capítulo projetado sobre o balanço da revolução russa do
que em desenvolvimentos construídos em torno da revolução de 1848 ou da
Comuna, pode muito bem se compreender pela identificação, essencial nele,
entre o Partido e o proletariado: o Partido não representa o proletariado: ele
é o próprio mais o proletariado em sua verdade e sua eficácia (Besançon, 1977;
Colas, 1982; Ingerflorm, 1984). Ele fala, portanto, quase indiferentemente do
Partido e do proletariado, às vezes qualifica de "consciente” ou de “revolucio­
nário” e, já que Lênin, em setembro de 1917 escreve o "poder dos bolchevi­
ques, isto é, o poder do proletariado” (t 26, pág. 124), estabeleceu-se supor
que, em agosto, ele não tem uma idéia muito diferente e que as milícias
proletárias de O Estado e a Revolução são fundamentalmente os militantes
bolcheviques. Acrescentemos que Lênin almejava publicar seu texto, mesmo
se sua clandestinidade tivesse que se prolongar. Já havia escolhido um
pseudônimo e sabia, uma multidão de exemplos o mostram, usar de astúcia
semanticamente com a censura.
Principalmente, constata-se que, se o Partido não está presente ele
próprio, os princípios de seu funcionamento são constantemente analisados,
pois são os mesmos que Lênin admira no capitalismo monopolista estatal: a
grande empresa é o modo de organização geral da sociedade socialista, mas
ela é também o ideal proposto ao Partido, em concorrência com o exército,
desde o nascimento do bolchevismo. Ver-se-ão os conceitos centrais definindo
o capitalismo em sua última fase, “vigilância”, “controle”, “registro”, “reparti­
ção” ( t 25 a t 33, A cada passo) utilizados para definir os objetivos de
funcionamento do poder bolchevique e se impor dentro do Partido assim em
1921 é criada a Seção de contabilidade - repartição (Outchraspred) que
facilitará o progresso de Stalin (Suvarin, 1978).

641
Numa sociedade em que todas as formas sociais instituídas enfraquecem
e não somente o Estado na soberania e na legitimidade limitadas pela subor­
dinação ao Partido, este, por seu monopólio da verdade e da violência, se
assegura, por sua única existência, uma hegemonia arrasadora. Em 1900-1903,
Lênin inventava uma nova forma política: o Partido criador da classe; depois
de 1917, ele o erigirá em força produtiva do socialismo (t 33, pág. 492). O
partido microcosmo, antecipação e causa do socialismo, ocupará na sociedade
soviética um lugar que nenhum estado teve anteriormente e que nenhuma
revolução parece poder começar.

• O eu vres, Paris, Moscou, Éditions sociales, edições em língua estrangeira, 1958-1976, 47


volumes; L ’É ta t e t la R é vo lu tio n , em O eu vres, Paris, Moscou, t 25; L e C a h te r bleu. L e
m a r x is m e q u a n t à l ’E ta t, Bruxelas, Éditions Complexe, edição estabelecida por G. Labica,
tradução do russo de B. Lafite, 1977.0 texto russo de L ’Ê ta t e t la R é vo lu tio n e do C a h ie r bleu
encontra-se no tomo 33 de Lênin, P o ln o e s o b r a n le s o c ie n ij’ (O e u v re s c o m p lè te s), 1958-1965,
55 volumes.

► Jacques Baynac, L a te r r e u r so u s L én in e , Paris Sagittaire, 1975, Alain Besançon, L es


o r ig in e s in te lle c tu e lle s d u lé n in is m e , Paris, Calmann-Lévy, 1977; Nicolas Boukharine, L ’éco-
n o m ie m o n d ia le e t 1 'im p éria lism e, Paris, Anthropos, 1967; Yvon Bourdet, O tto B a u e r e t la
ré v o lu tio n , prefácio de Paul Lazarsfeld, Paris, EDI, 1968; Martin Buber, U to p ie e t so c ia lism e ,
prefácio de Emmanuel Levinas, Paris, Aubier-Montaigne, 1977; Hélène Carrère d’Encausse, L e
p o u v o ir c o n físq u é , Paris, Flammarion, 1980; Dominique Colas, L e lé n in is m e , p h ilo s o p h ie e t
s o c io lo g ie p o litiq u e d u lé n in is m e , Paris, PUF, 1982; Lucio Colletti, D e R o u s se a u à L én in e ,
apresentação de Christine Bucci-GIucksmann, traduzido do italiano por Alexandre Bilous, Paris,
Londres, Nova York, Gordon & Breach, 1972; Hal Draper, Marx and the dictatorship of the
proletariat, C a h ie rs d e VISEA, série S, ns 6, novembro de 1962; Marc Ferro, L a R é v o lu tio n de
1 9 1 7 , 1 .1: L a c h u te du ts a rism e e t le s o r ig in e s d 'o cto b re; t. 2: O ctobre, n a iss a n c e d ’u n e société,
Paris, 1967 e 1976; Marc Ferro, D e s s o v ie ts au c o m m u n is m e b u rea u cra tiq u e, Paris, Callimard,
1980; Neil Harding, L ê n in p o litic a l th o u g h t, 2 vols., Londres, Macmillan Press, 1977 e 1981;
Cláudio Ingerflorm, S u r le s ra c in e s ru sses d u lé n in is m e . L é n in e a v a n t L é n in e , 2 vols. tese do
3! ciclo, EHES (a s e r p u b lica d o ); Karl Kautsky, L e b o lc h e v ism e d a n s l im p a s s e , introdução de
llenri Weber, Paris, PUF, 1982; E. Kazakievitch, L e C a h ie r bleu , traduzido por R. Lllermite,
Paris, Callimard, 1963; Georges Labica, D ic tio n n a ir e c ritiq u e d u m a rx ism e. Paris, PUF, 1982;
Georges Lukács, H is to ire e t c o n sc le n c e d e classe, Paris, Minuit, 1960; Martin Malia, C om pren -
d re la ré v o lu tio n ru sse. Paris, Callimard, 1980; Anton Pannekoek, e m Kautsky, Luxemburg,
Pannekoek, S o c ia lism e , la v o ie O ccidental, apresentado e anotado por H. Weber, traduzido por
A. Brossat, Paris, PUF 1983; P a n n e k o e k e t le s c o n s e ils o u v rie rs, textos apresentados e reunidos
por Serge Bricianer, Paris, EDI, 1977; L. Schapiro e P. Reddaway, L ê n in , th e m an , th e th eorist,
th e lea d e r, Londres, 1967; Boris Souvarine, S ta lin e, p o u r q u o i e t c o m m e n t? , Paris, Spartacus,
março-abril de 1978; Joseph Staline, L e s q u e s tio n s d u lé n in is m e , 2 tomos, Paris, Éditions
Sociales internacionales, 1938; Robert C. Tucker, S ta lin ism . E ss a y in H isto ric a l In te rp reta tio n ,
Nova York, Norton & Company Inc., 1977.

Dominique COLAS

642
LEROUX, Pierre, 1797-1871
Da Humanidade, 1840

“A Humanidade é sociedade invisível ”


Merleau-Ponty

George Sand, Lamartine e outros ainda prediziam que Pierre Leroux


seria o “Rousseau do século XIX”. Pouco importa que esse julgamento se tenha
verificado errôneo: ele diz bastante da importância de Pierre Leroux para
numerosos de seus contemporâneos. "O genial Pierre Leroux...”, escrevia o
jovem Marx, em carta a Feuerbach de 3 de outubro de 1843, a propósito do
“caso Schelling”. Se a predição não se realizou, a falha não deve talvez ser
procurada somente do lado das “sombras” de Pierre Leroux, sua repetição, sua
prolixidade às vezes tagarela. Não poderia ela ser também imputada a nós, não
conviria incriminar nossa surdez a uma forma de questionamento para nós
insólita e que mistura, sem as confundir, a filosofia, "ciência da vida”, com a
política, a política com a arte, a arte com a religião?
Onde situar a obra política maior de Pierre Leroux, em que texto apreciar
melhor se ele merece mesmo ser comparado a Rousseau?
O procedimento de Pierre Leroux, seu modo de ser, é o de dar voltas: o
caminhar indireto é para ele próprio do filosofar. Articulado a uma vontade de
se deixar levar em direção às questões últimas, o pensamento de Leroux
conhece em sua própria escrita um deslocamento perpétuo, a questão mais
aparentemente trivial verificando-se fundamental ou conduzindo ao fundamen­
tal, e, inversamente, o fundamental esclarecendo o que, numa primeira abor­
dagem, parecia trivial. É no seio de uma obra não diretamente política, mas
com valor ontológico - De 1’Humanité, de son príncipe et de son avenir (Da
Humanidade, de seu princípio e de seu futuro) —, que se deve, portanto, situar
a contribuição maior de Pierre Leroux ao pensamento do político. “Precisa­
mos, pois, e com urgência, deixar o puro domínio da política e da história, para
procurar noutro lugar, dentro da filosofia, esse ponto sólido que nos é
necessário” (Da Humanidade, pag. 20)*. Fundamentalismo metafísico de
Pierre Leroux? Porém, em vez de proferir logo essa acusação em nome de um
"niilismo consumado”, para melhor arquivar esse pensamento, não convém
perceber nele a busca de uma articulação necessária entre ética e política - a
política moderna sendo freqüentada pelo conceito de tal articulação —e cuja
teoria do vínculo humano como reversibilidade constituiria o cerne?
A escolha dessa obra é tanto mais legítima por ela colocar tal análise sob
o signo da problematicidade: sem se esquecer de se interrogar sobre o

* A edição citada como referência é Pierre Leroux, De VHumanilé, registro das obras de filosofia
em língua francesa, texto revisto por Miguel Abensour e Patrice Vermeren, Fayard, 1985.

643
pertencimento dessa filosofia à metafísica da subjetividade, pode-se, de imedia­
to, enunciar o aspecto essencial: será correto edificar uma filosofia política a
partir do conceito de humanidade?
Comecemos por sublinhar algumas particularidades do pensamento
desse autor, apresentadas, brevitas causa, sob forma afirmativa.
Primeira estranheza: Leroux desenvolve uma filosofia política moderna,
no âmbito da tradição socialista, pouco favorável por tendência à própria idéia
de filosofia política: ele elabora uma articulação inédita entre a filosofia política
e a questão social que leva, em sua obra, o nome de A Associação.
Uma filosofia política? Preliminarmente, Leroux, ao contrário de seu
contemporâneo Marx, toma cuidado em distinguir entre dominação e explora­
ção; a seus olhos, o fim da exploração não se fará necessariamente acompa­
nhar, até mesmo automaticamente, do fim da dominação. A relação com a
questão política não pára nessa primeira distinção, embora ela seja essencial.
Se Leroux atribui à emancipação —a destruição de toda forma de autoridade
- a supressão da dominação, ele se abstém realmente de identificar o desapa­
recimento da relação senhor-escravo com o fim do político. Saudando em
Proudhon o pensador da anarquia, ele interpreta essa teoria como um momen­
to dentro da gênese da liberdade moderna - o da negatividade —somente um
momento e não o telos dessa liberdade — a fim de melhor reafirmar a
necessidade do político como relação-. “A dominação do homem pelo homem
tendo sido destruída, restam os homens, resta a não-hierarquia: ora, essa
não-hierarquia ou, em outros termos, essa igualdade a uma lei; pois, enfim, os
homens, em qualquer época que seja, tanto não podem mais viver sem relação
entre si, tanto quanto as moléculas da matéria e os astros do céu. Chamando,
portanto, de anarquia, para empregar vossa linguagem, a não-hierarquia, isto
é, a Humanidade nova, a Humanidade após a destruição de toda e qualquer
casta, digam-me qual é a lei da Anarquia?” (La République, 3 de março de
1850, pag.l). Longe, portanto, de reduzir a questão política àquela da domina­
ção, convencido de que o vínculo político constitui uma dimensão inextinguível
do estar-junto dos homens, indissoluvelmente ligada à do simbólico, Leroux
não cessa de se interrogar sobre a lei da liberdade moderna.
Filosofia política moderna, o que enfraquece, em seu caso, a alternativa
de Strauss, seja a filosofia política praticada sob a forma de um retorno aos
Antigos, seja a entrada na “vulgaridade moderna” ao aceitar a cientifizaçâo do
político e deixando livre curso aos dois agentes destruidores da própria idéia
de filosofia política: o historicismo e o positivismo. Querelle desAnciens etdes
Modernes*, muito conhecida de Leroux e interpretada justamente por ele
como o confronto de dois projetos de sociedade, ele escolhe a posição de uma
“síntese”, sabendo aliar a idéia de Koinonia, do lado dos Antigos, à de
perfectibilidade, do lado dos Modernos.

* Querelle des Anciens et des Modernes — famoso debate ocorrido em 1687 na Académie
Française, quando Perrault comparou o século de Louis XIV ao do imperador romano Augusto,
tendo sido contraditado por Boileau, Racine e outros. (N. do T.)

644
Quererá isso dizer que Leroux, pensador erudito que escreve e cita em
grego (cf. De VÉgalité), teria se contentado em justapor a filosofia política
clássica (Platão, A República) à idéia socialista ou, ainda, que ele teria colocado
a utopia socialista dentro do molde da filosofia política clássica? Operação que
não nos poderia espantar já que conhecemos dentro da tradição numerosas
referências socialistas hA República e que podemos invocar, no caso dessas
retomadas, os sarcasmos de Nietzsche em Humano humano demais, § 473. O
socialismo do ponto de vista de seus meios de ação. Em resumo, se, graças
ao método tipificante de Nietzsche, Platão pode ser qualificado de “velho
socialista típico”, pode-se ver em Leroux um "jovem platonicista” não menos
típico? De modo algum. Nenhum dos sinais da “regressão platônica” diagnos­
ticada por Nietzsche aparece em Leroux, nem o aniquilamento do indivíduo,
nem o desenvolvimento excessivo de potência estatal. A vários títulos, Leroux
participa plenamente da liberdade dos Modernos:
- definindo a sociedade moderna como saída da era das castas, critica
sem reserva a orientação hierárquica da tripartição platônica que pertence à
forma de desigualdade própria das sociedades de casta e rejeita, da mesma
forma, toda reprodução dessa tripartição;
- designa dentro do reconhecimento do homem pelo homem a essência
da experiência política moderna, tal como ela utiliza o dogma político, mas não
somente político, o dogma filosófico, da igualdade;
- animado por um senso agudo da individualidade que se enriquece de
sua relação com Leibniz — o homem compreendido como absolutamente
distinto de todos os seus semelhantes - , Leroux se esforça para desenvolver,
na esteira de Maine de Biran, uma filosofia original da subjetividade;
- a repetida crítica da idéia de soberania, a crítica do “socialismo
absoluto”, a distância de Leroux com respeito às justificações da violência
revolucionária situam-no longe da valorização da potência.
Filosofia política moderna, ainda, se levarmos em conta que esse pensa­
mento integra às suas indagações o momento crítico e sabe, por um movimento
de auto-reflexão, discernir as reticências da emancipação ou o sentido de
inversão, em conseqüência do qual a emancipação moderna (luta contra as
autoridades religiosas, espirituais e políticas) cria novas formas de autoridade.
Trata-se realmente, com essa dissidência democrática, de uma autêntica
filosofia política moderna que conquista sua identidade dentro de uma oposi­
ção frontal a Hobbes e dentro de uma relação inventivo-crítica com a tradição
que vem de La Boétie e de Rousseau. Foi nesse caminho que Leroux se deu
como tarefa pensar sobre a idéia de relação entre os homens —o caminho da
relação do homem com seus semelhantes - não somente na dimensão sincrô-
nica, mas, também, na diacrônica. Para retomar uma das expressões favoritas
de Leroux, trata-se de “converter” o indivíduo moderno, o indivíduo inde­
pendente - ao mesmo tempo distinto do outro homem e igual a ele - , à
humanidade. “O homem não é nem uma alma, nem um animal. O homem é um
animal transformado pela razão e unido à humanidade. Unido à humani­
dade... E o ambiente novo, o ambiente verdadeiro, o único ambiente onde se

645
desenvolve a existência desse novo ser saído da condição animal e que se
chama homem” {Da Humanidade, op. cit., pág. 100). Notemos a importância
dessa conjunção. Não há nascimento solitário da razão. O acesso à razão,
verdadeira metamorfose, só pode chegar graças ao pertencimento comum à
humanidade. Também opondo-se ao cartesianismo, esse autor desenvolve uma
tarefa democrática do senso comum ou do “consentimento”.
Em resumo, a singularidade da obra de Leroux, sua inovação, é a de
instituir uma filosofia política moderna, articulando a cidade com a idéia de
humanidade. “Foi a Humanidade, considerada como ser coletivo, a causa
formadora de todas as nações... O que os homens chamaram cidade, pátria, o
que constituiu tantas cidades diversas e tantas pátrias provisórias, foi a
Humanidade, que estava sob todas essas cidades, no fundo de todas estas
pátrias” (Revue sociale, 1847, pág. 133). Dessa forma, dentro da idéia de
humanidade, sob suas acepções diversas, circunscreve-se um lugar teórico
original - como um estrato originário - a partir do qual é suscetível de
constituir-se uma filosofia política moderna afastada do historicismo, do posi­
tivismo, do tecnicismo que arruinam a própria idéia de filosofia política.
Abertura que não vai tanto em direção a uma antropologia ou um humanismo,
como também não se orienta em direção a uma ontologia, um pensamento da
vida e do ser.
Daí, em um primeiro tempo, a crítica que Leroux faz do sensualismo
materialista que, segundo ele, contamina a política moderna, conferindo-lhe
um caráter objetivante e visando a uma pura instrumentalização do poder
concebido como acomodação de uma relação de forças, “...a Humanidade é
apenas uma palavra para os políticos do dia... (eles) vêem no gênero humano
apenas homens particulares e, como eles falam dos indivíduos... Os políticos,
que não vêem a intervenção da Humanidade dentro de cada um dos seres
particulares que a compõem, só vêem desses seres particulares o aspecto de
um egoísmo movido pelos corpos, por sensações e por necessidades; o que é
ainda, relativamente à natureza humana, o que se poderia chamar o aspecto
cadáver; e eles proclamam para resultado de sua ciência, o que é efetivamente
seu resultado: o egoísmo” {Revue sociale, 1847, pág. 132).
Daí, em um segundo tempo, a busca a partir da alternativa muito
distintamente enunciada, Hobbes ou contra-Hobbes, de um "axioma ontológi-
co certo". “Que são vocês, portanto, uns em relação aos outros? São irmãos
ou são inimigos?” {Da Humanidade, op. cit., pág. 26). Trata-se de encontrar
uma proposição irredutível à política, irredutível à história, que permita pensar
- para uma filosofia tornada religião - , sobre a política moderna como a
chegada do homem-humanidade, como trabalho implícito de uma comunidade
invisível ou, ainda melhor, como manifestação, no âmbito das comunidades
visíveis, de um vínculo social, de um vínculo humano, invisível. "É um axioma
sobre a vida, sobre o ser que nos falta. É um axioma religioso. Que somos nós,
que é cada um de nós em Deus? Qual é a vontade do criador ao nos dar o ser
a cada momento de nossa existência? Onde está nossa vida, qual é o objetivo
de nossa vida?... Ora, esse ponto fixo, que acredito demonstrável tanto quanto

646
a vida se pode demonstrar, tanto quanto o infinito se pode provar, e do qual
vou tentar trazer uma demonstração, é a comunhão do gênero humano ou,
em outros termos, a solidariedade mútua dos homens” {Da Humanidade, op.
cit., Prefácio, pág. 23).

Rousseau: a antinomia da cidade e do gênero humano

Compreende-se muito melhor a predição de George Sand, por Leroux


manter relações privilegiadas com Rousseau, precisamente dentro da pers­
pectiva de uma filosofia da humanidade. Ele reconhece que o autor do
Contrato social foi um iniciador da idéia de humanidade. “Ele ensinou a todo
homem a se ver como membro do único soberano legítimo. Imensa e prodigio­
sa mudança que faz da Humanidade uma raça nova” (Revue sociale, 1847, pág.
134). Mais ainda, Rousseau é um revelador: “Esse homem nos levará de novo
a Deus e à Humanidade” (ibidem).
Logo nasce a questão: em que medida uma filosofia da humanidade pode
pretender ser uma filosofia política? Sua orientação para o cosmopolítico, para
o gênero humano, não implica necessariamente uma saída do político, uma saída
da dimensão própria da cidade? Leroux, a quem se pode legitimamente conceder
ter sabido lutar contra os modelos de recusa do político no âmbito da tradição
socialista - sob forma de uma subordinação do político ao econômico ou sob
forma de ilusão do fim do político —, não se compromete, por sua vez, volens,
nolens, por esse caminho com um procedimento de supressão do político? De
onde, por qual encaminhamento ele teria conseguido escapar, professando uma
filosofia da humanidade, a essa figura inédita da recusa do político?
Estamos tanto mais autorizados a colocar a questão nesses termos por
ser Rousseau quem formula, com a maior nitidez, a antinomia entre a cidade
e o gênero humano. Em um primeiro tempo, conviria ler o Discours sur
Vorigine de Vinegálité {Discurso sobre a origem da desigualdade), como uma
contribuição para uma gênese ideal do gênero humano ou da humanidade, e
ver como a idéia de humanidade é inseparável de uma reflexão insistente sobre
piedade, que Leroux designa como o sentimento que nos liga a nosso
semelhante em humanidade. Mas, sobretudo, conviria analisar de mais perto a
antinomia que Rousseau coloca entre o apego a uma cidade e o amor pela
humanidade. “O patriotismo e a humanidade são virtudes incompatíveis em
suas energias e, sobretudo, em um povo inteiro. O legislador que quiser os dois
não obterá nem um, nem outra...” {Cartas da montanha, III). É bem mais para
o lado do religioso que tenderia o amor da humanidade do que para o lado do
vínculo político que se subordina às religiões nacionais. A idéia de humanidade
faz sinal para o cristianismo que considera o homem sem aceitação de pátria.
“A grande sociedade, a sociedade humana em geral, está fundada sobre a
humanidade, sobre a benfeitoria universal. Digo e sempre disse que o cris­
tianismo é favorável a isso. Porém, as sociedades particulares têm um princípio
totalmente diferente; são estabelecimentos puramente humanos” (carta a
Usteri, 18 de julho de 1763).

647
Pareceria, portanto, que uma filosofia da humanidade seria uma filosofia
de essência religiosa e que, inversamente, uma filosofia política desviar-se-ia,
enquanto tal, da própria idéia de humanidade, sendo mais filosofia do cidadão
e para o cidadão do que filosofia do homem ou do gênero humano.
Não se pode dizer por isso que Rousseau tivesse ignorado a humanidade.
Se ele acaba por suprimir o capítulo do Controle social relativo à sociedade
geral do gênero humano, não deixa também de manter que a pátria deve
repousar sobre um sentimento de humanidade que dá muitas virtudes, mas
fracassa em comunicar a energia, a vontade de superação de si que o apego à
cidade produz. Daí uma tensão interna irredutível dentro da obra de Rousseau.

Leroux: uma filosofia da humanidade enquanto filosofia política

Como Leroux conseguirá resolver a antinomia colocada por Rousseau e


conceber uma filosofia da humanidade que tenha valor de filosofia política, isto
é, suscetível de relacionar a exclusividade do político com a generalidade do
humano, com o cosmopolítico?
Em um primeiro nível, poder-se-ia responder que, para o homem
moderno, a experiência do político é inseparável de uma consciência nova
da humanidade. Mais exatamente, a cidade revolucionária, “organização
nova da vida coletiva”, constitui o que se poderia definir como uma expe­
riência de humanidade. Entendemos que, para Leroux, a Revolução Fran­
cesa se analisa antes de tudo, como um formidável e primeiro reconhe­
cimento do homem pelo homem. O outro não é mais encontrado, de acordo
com a sua lógica de uma sociedade de ordens, como o superior ou o inferior;
ele é, de agora em diante, reconhecido, antes de toda outra determinação,
como o semelhante. Em uma sociedade de castas ou na sociedade do Antigo
Regime, o homem apresentava-se e escondia-se ao mesmo tempo sob quali­
dades e atributos sociais; hoje em dia, na sociedade democrática pós-revolu-
cionária, a qualidade de homem manifesta-se primeiro. Isso quer dizer que,
além da igualdade jurídica, política, surge uma dimensão muito mais profun­
da, a da igualdade, uma qualidade antropológica - a vinda do homo aequalis
—até mesmo uma dimensão ontológica nova. Alguma coisa foi perturbada
dentro da economia do ser. “Se a justiça é justa e imparcial para com eles,
é unicamente porque eles são homens. Esse pai não tem o direito de matar
seu filho, porque o caráter de humanidade se estampa sobre a face desse
filho... Reconhece-se um direito ao homem, portanto, unicamente porque ele
é homem... O que alicerça o direito, quero dizer o direito atual, é precisa­
mente a Igualdade reconhecida dos homens. Essa igualdade reconhecida
precede a justiça, é ela que a causa e a constitui” {De VÊgalité, 1845). Leroux
insiste sobre a prioridade de direito do homem sobre o cidadão. Sua posição
situa-se exatamente ao inverso da de Marx: enquanto este último, em sua
crítica das declarações dos direitos do homem, rebate “o homem” sobre o
indivíduo prisioneiro das determinações da sociedade civil e concebe o
cidadão como conquistando sua liberdade mediatizada, graças a uma eleva-

648
ção acima dessas determinações, dentro de e pelo Estado, para Leroux o
homem vem primeiro; a experiência de humanidade com a vinda do homo
aequalis é simbolicamente fundadora: ela tem acesso ao plano de condição
de possibilidade, seja da experiência de cidadania, seja da de democracia.
Daí, sobre o pilar dessa experiência de humanidade, uma nova definição da
questão política: como organizar uma cidade do outro lado da divisão
senhor/subalterno, como podem os homens formar uma sociedade democrá­
tica sem serem senhores uns dos outros, sem dominar uns aos outros, sem
comando de uns sobre os outros, sem admitir superiores e inferiores.
Para relacionar o pensamento de Leroux com sua filosofia da história,
a Revolução Francesa é analisada por ele como a saída para fora da
sociedade de castas; surgimento da “casta-humanidade”; ela é dissolução do
próprio fenômeno da casta, chegada do homem-humanidade. Essa saída das
castas de pátria não é saída do político, pois não se trata de negar o
viver-junto dos homens no seio de uma cidade, mas trata-se de romper com
um viver-junto funcionando para a exclusividade e voltar-se para um viver-
junto abrindo-se para a generalidade do humano, para um horizonte cosmo­
polita. O que implica que todo grupamento particular, dentro da história
pós-revolucionária — família, pátria, cidade - conhece dentro da própria
concretude de sua experiência parcial um movimento, que, do âmbito de
seus limites, a leva para fora deles, que todo grupamento obedece a uma
orientação em direção a uma comunicação generalizada, de tal modo que
o dobrar-se em si e o encerramento sobre si sejam contrariados, senão
parados, toda relação; todo tecido relacionai parcial sendo, doravante, atra­
vessado e habitado pela presença da humanidade, por uma tensão irredutível
e irrepressível em direção à humanidade.
Parece, portanto, que o fenômeno histórico da saída das castas tenha tido
como efeito fazer a humanidade ter acesso à condição de sujeito virtualmente
político, fazer de tal modo que uma filosofia da humanidade, mais do que
evacuar a questão política, ajude a colocá-la e a pensar sobre ela de outra
maneira, dentro de uma outra dimensão, com respeito a esse novo sujeito, o
gênero humano, que viria freqüentar toda manifestação da emancipação
moderna.
Mas, e essa foi a objeção de Ravaisson, esse gênero humano na qualidade
de gênero lógico não seria uma entidade puramente nominal, vazia e, portanto,
necessariamente desprovida de identidade política? Convém também inter­
rogar-se sobre a posição do conceito de humanidade dentro da obra de Leroux.
Leroux procede numa dupla direção crítica: contra os nominalistas (Hobbes),
ele afirma a existência da humanidade; contra os dogmáticos, ele desubs-
tancializa a humanidade e coloca que o modo de existir desse ser coletivo é da
ordem da idealidade. A humanidade não é um dado de identidade empirica-
mente determinável, mas um dever-ser, com, além disso, a qualidade de vínculo
ontológico invisível. “Estamos unidos por um vínculo invisível” (Revue sociale,
nfi 1, outubro de 1845, pág. 22).
A questão de Leroux é: existe um ser coletivo Humanidade ou só existem

649
indivíduos homens? Ele censura os pensadores do século XVIII por seu
atomismo dogmático tal que, se fosse para segui-los, só existiriam indivíduos,
e todos os pretensos seres coletivos ou universais - Sociedade, Pátria,
Humanidade - seriam apenas abstrações de nosso espírito. “Eles não com­
preendiam o que não é tangível pelo sentido; não compreendiam o invisível”,
escreve Leroux. Mas, tendo afirmado a Humanidade, ele insiste sobre o modo
de existir específico desse ser coletivo, a fim de prevenir toda personalidade
distinta da humanidade que, pensada como uma totalidade orgânica, reintro-
duziria o princípio “católico” de autoridade e de abnegação. A humanidade,
ser coletivo, não existe uma existência verdadeira, dentro do espaço-tempora-
lidade, na mesma qualidade que um existente. Enquanto ser coletivo, pode-se
pensá-la, poder-se-ia dizer, mas não conhecê-la, pois, ser ideal, ela escapa a toda
tomada dos sentidos. Convém, portanto, para preservar ao pensamento de
Leroux todo seu gume e sua qualidade antiautoritária (em relação com sua
teoria da consciência de si), distinguir bem entre a parte e a manifestação.
Como, portanto, pensar sobre a humanidade? “Há, portanto, um reflexo
necessário do ser particular homem dentro do ser geral humanidade e,
reciprocamente, do ser geral ou coletivo humanidade dentro do ser particular
homem” (Da Humanidade, op. cit pág. 192) ou, ainda, “há penetração entre
o ser particular homem e o ser geral humanidade. E a vida resulta dessa
penetração” (ibidem, pág. 196).
A humanidade é pensada por Leroux sobre o modelo spinosista da
expressividade entre a substância e os atributos, ainda que com uma impor­
tante correção. A relação do homem com a humanidade pode ser concebida
sobre o modelo da relação de expressividade do atributo à substância, insis­
tindo, todavia, sobre a singularidade irredutível do modo acabado. Como se,
para Leroux, a relação que liga o homem à humanidade devesse ao mesmo
tempo guardar esse caráter de expressividade, repousando sobre a relação de
identidade parcial entre o ser particular e o ser geral, a humanidade, mas sem
que essa relação de expressividade possa, em nome dessa identidade parcial,
ter como efeito a anulação da singularidade do indivíduo. Para só reter os
efeitos da participação do modo acabado na substância infinita, perder-se-ia a
singularidade do modo acabado. Em oposição a G. Bruno, P. Leroux escreve:
“Vocês têm razão em dizer que, dentro desse homem, vocês vêem o ser, a
substância, Deus.” Porém, é preciso se precaver, acrescenta ele, para não
confundir expressividade com identidade. “Mas vocês, Spinosa, Schelling e
Hegel, estão errados em dizer por isso que esse ser seja Deus. Ele é Deus
enquanto vem de Deus, por proceder de Deus; mas ele não é Deus por isso”
(Da Humanidade, op cit., pág. 191). Resulta que é legítimo dizer: quando vejo
um homem, é a humanidade que vejo, por mais que se esclareça “e é, porém,
um homem particular” (Da Humanidade, ibidem). Rejeitando, por um lado,
uma concepção empírica da humanidade e reivindicando do outro, no âmbito
de uma concepção filosófica, a diferença entre expressão e identificação, é
dentro dessa defasagem que não pode ser preenchida entre o finito e o infinito
que Leroux aloja a singularidade e procede a uma verdadeira virada pelo

650
avesso; ele parte do que poderia aparecer como um déficit para afirmar a
especificidade do humano.
A humanidade como ser ideal pode ser entendida em um duplo sentido:
a humanidade é um ser ideal, imaterial, o que designaria o conjunto dos
vínculos invisíveis que vêm dublar o visível, assegurando, enquanto vínculos
simbólicos, a troca e a coexistência dos homens. Isso quer dizer que, por sua
insistência sobre o invisível que vem dublar o visível - a humanidade,
sociedade invisível, escreve Merleau-Ponty —, Leroux afirma a dimensão sim­
bólica do existente humano em oposição ao materialismo sensualista que
reduz o homem a um ser de necessidade e de sensação e que, confundindo a
manifestação e o ser, só vê no mundo corpos. “Animal simbólico”, o homem-
humanidade só se pode constituir dentro de uma relação em perpétuas
modificações da tradição que, se se deposita nas obras, não deixa de instituir
uma “circulação” imaterial entre os homens.
Porém, da mesma forma, essa definição da humanidade remete a um
sujeito que pertence à ordem da ideal idade, ao mesmo tempo como dever-ser
para sempre inacessível —a humanidade é um infinito que se abre sobre um
outro infinito, Deus - e como horizonte implícito para o qual faz sinal
intencionalmente toda relação humana trabalhada por uma sobre-significação.
No caso, a relação política está orientada necessariamente para a humanidade;
em nome da sobre-significação que a trespassa, a relação política fica em
excesso sobre ela mesma. Ela contém mais do que ela mesma, pois, abertura
sobre o humano, é colocada em relação com a infinita-humanidade, com o
infinito da humanidade. Pode-se definir a humanidade como a luz que, sozinha,
consegue tornar plenamente visível o que está em questão dentro da cidade,
do Estado ou da república. “A humanidade é para o homem o que a luz é para
o olho” (Revue sociale, abril de 1846, n2 7). A humanidade, ambiente de vida,
horizonte, manifestação da vida, é a luz graças à qual nós vemos, mas que nós
não podemos ver. Esse invisível inscrito no próprio âmago de nossa relação
com o visível define o como da manifestação da relação política: a humanidade,
enquanto dimensão invisível, está encravada dentro da cidade, sob a forma de
um estado latente que acompanha toda manifestação. O que está em jogo
dentro dessa vontade de articular a política a um axioma ontológico é a
elaboração de uma nova concepção da vida, a vida ou o ser, estrato originário,
como se se tratasse de reanimar, dentro dessa fonte originária, as manifes­
tações próprias do campo político. A Humanidade, tal como Leroux a concebe,
funciona exatamente como um infinito positivo ou um infinitamente infinito -
característico do grande racionalismo do século XVII, segundo Merleau-Ponty
—e que todo ser parcial direta ou indiretamente pressupõe, e no âmbito do
qual está contido. Esse infinito é a vida: “Vocês não vêem que o que dá a vocês
a vida só pode ser a vida, isto é, a Vida universal, e que, por conseguinte,
através dessa luz, o que acontece com vocês e penetra vocês é essa inteligência,
esse sentimento e essa sensação que vocês se atribuem absurdamente e apenas
a si próprios... Conseqüentemente, não é preciso dizer que essa luz é pura­
mente física e material; é preciso dizer que É O SER u n iv e r sa l (o qual é ao

651
mesmo tempo inteligência-amor-e-corpo) QUE SE MANIFESTA POR ESSE CORPO
QUE CHAMAMOS DE LUZ... É, portanto, Deus realmente que se faz sentir para nós
dentro da luz... Deus está em toda parte dentro do Universo e manifesta-se a
nós pelo universo” (Revue sociale, maio de 1847, nfi 8, pág. 131).
A originalidade de Leroux e seu interesse por nós não vêm do deslocamen­
to que ele efetua da questão da natureza humana para a enigmática do vínculo
humano? Leroux coloca a questão: em que consiste o vínculo que une o homem
indivíduo à humanidade, em que consiste o vínculo humano? Particularmente
digna de atenção, realmente, parece-nos ser essa doutrina da humanidade, essa
interrogação sobre o vínculo humano, sobre o elemento humano, tomando
elemento no sentido forte do termo, como ambiente de vida e correspondente às
leis da vida. Tal forma de questionamento conduz necessariamente a repensar o
político em sua relação indelével com a ética, levando, daí em diante, em
consideração esse elemento humano, elemento real e vivo, e não o ignorando
nem lhe fazendo violência, nem o reduzindo ao conjunto empírico dos vínculos
entre os homens. O que tem o mérito de pôr termo a toda tentativa de
instrumentalização da política ou de redução à questão do poder, ou, inversa­
mente, de absolutização. A política moderna assim articulada à humanidade e,
além, a uma “intuição da própria essência da vida”, não se pode fechar sobre si
mesma: aberta por esse caminho sobre a questão da humanidade como horizonte
constitutivo, ela é definida como o gesto da religião. Entendamos, a manifestação,
dentro de um espaço de aparência, desse vínculo humano, dessa vida que está
no âmago do axioma ontológico, desse vínculo, dessa comunidade invisível em
questão dentro da religião.
Uma nova resposta pode ser levada à questão de partida: uma filosofia da
humanidade não alcança necessariamente uma recusa do político em proveito
do religioso, já que, sob certas condições, ela pode conduzir a pensar sobre as
manifestações da vida, dentro do campo político, em relação com o invisível que
os freqüenta, que não cessa de intervir, com esse ser em estado latente, a
infinita-humanidade. Portanto, longe de reduzir o político, até mesmo de apagá-
lo, esse movimento de pensamento daria, ao contrário, ao político moderno sua
plena consistência. Emprego, colocação em forma desse vínculo invisível, o
político não seria mais um domínio fechado sobre si mesmo, mas tomado, em
nome de seu tropismo em direção à humanidade, dentro de um movimento
centrífugo, ele alcançaria, de uma outra maneira diferente daquela considerada
pelos clássicos, para conquistar sua irredutibilidade na medida mesma em que
daria, em nome de sua relação com a humanidade, a prova de sua relatividade
(M. P. Edmond, Philosophie politique, Paris, Masson, 1972, págs. 80-81). É,
portanto, reconhecer que uma filosofia da humanidade, mais do que se verificar
uma filosofia de essência religiosa, pode ser concebida como a condição de
possibilidade de uma filosofia política moderna: ela se comprometeria, com efeito,
a pensar sobre o político, dimensão incontornável do viver-junto dos homens,
dentro da perspectiva de um elemento que o transcende, dentro da luz da
humanidade. O “viver-bem” dos clássicos receberia uma nova acepção: o suple­
mento que ele designa com relação ao viver e em que mantém a irredutibilidade

652
do político, exigiria daí em diante orientar as formas do viver-junto para a
humanidade. “Viver-bem” torna-se viver segundo a humanidade, com a preocu­
pação com o vínculo humano, não manipulável, e com a preocupação da
constituição para sempre inacabada, do homem-humanidade.
Compreende-se melhor a fórmula de G. Sand: Leroux teria de fato
praticado, em relação com uma concepção da vida, a doutrina que Rousseau
havia somente profetizado.
Digamos primeiro que para Leroux, dentro da relação do homem com o
homem indissociável da relação do homem indivíduo com a humanidade,
manifestar-se-ia uma forma de unidade ou, mais exatamente, uma forma
relacionai ao universo, tal como a atração entre corpos materiais ou as relações
desencarnadas entre espíritos. Daí, a crítica autenticamente filosófica e inven­
tiva que Leroux, “espreitador de sonhos”, dirige à utopia moderna. Se ele
saúda sua grandeza e reconhece aos utopistas terem sabido perceber, dentro
da experiência revolucionária ou dentro da indústria, o surgimento de um novo
vínculo social, ele critica sua vontade de organizar ou constituir a cidade
futura, dentro da ignorância destruidora da especificidade do vínculo humano.
Segundo ele, a idéia-mãe, tal como ela é revelada dentro das Cartas de Genebra
de Saint-Simon (1802), a origo fons do movimento utópico, consiste em
afirmar que uma mesma lei, a da atração ou da gravidade universal, move o
mundo moral tanto quanto o mundo físico. Nesse sentido, Saint-Simon aparece
como um gênio político que, graças a uma nova concepção do vínculo entre os
homens, teria projetado uma outra modalidade da relação, uma outra forma
de ligação diferente daquela proposta pelo “cidadão de Genebra” dentro do
Contrato social. "O princípio dos astrônomos é que os corpos celestes agem
todos uns sobre os outros na razão direta de suas massas e na razão inversa
do quadrado das distâncias. O princípio de Saint-Simon é que os homens agem
uns sobre os outros segundo uma lei análoga; de sorte que nenhum homem é
ativo sem ser passivo, atrai sem ser atraído, pesa sobre os outros sem que os
outros pesem sobre ele. E ele vê essa lei se manifestar claramente entre as três
classes que ele distinguiu dentro da ordem social atual” {La République, 10
de fevereiro de 1850, pág. 3). Daí, e apesar das opiniões políticas deste ou
daquele iniciador, uma orientação essencialmente democrática da utopia
moderna, visando destruir toda relação de mando e de obediência. “A verdade
é que resulta da idéia bem compreendida desse livro, da lei de Atração
substituir a lei de dominação e de escravidão, uma organização toda nova, sem
superiores nem inferiores” (La République, 10 de março de 1850). Com a
chegada da utopia moderna, que não se pode classificar simplesmente do lado
de uma recusa do político, trata-se, qualquer que seja seu nome, de colocar a
associação, forma de relação anti-hierárquica, como substituto do reinado
multissecular da dominação. Pretendendo, em nome dessa lei de atração, ser
um Newton do mundo moral, o utopista moderno comete o erro de conceber
a atração entre os homens sobre um modelo material, como se se tratasse
somente de combinar corpos ou de associar forças mensuráveis. Ele pratica
também uma confusão entre ordens diferentes do real e se orienta da mesma

653
forma, qualquer que seja sua intencionalidade emancipadora, em direção a
uma fórmula tanto mais tirânica, que ela conserva a ilusão de um domínio do
social (Da Humanidade, op. cit., págs. 92-93). A grande questão é: de que
maneira convém conceber a atração entre os homens e como a atração pode e
deve ser estabelecida dentro de mundo moral? “Será que o homem é simples­
mente sensação, e a generalização da atração é a liberdade concedida à todos
os instintos? Se o homem for outra coisa que não sensação, se ele for
sentimento e conhecimento, como o reinado da atração, que compreenderá
nossas necessidades de sentimento e de conhecimento, assim como nossas
necessidades de sensação, poderá se estabelecer?” (La Revue sociale, n2 11,
agosto de 1846, Cartas sobre o fourierismo, pág. 162). Mede-se quanto, aqui,
a idéia de humanidade, ao mesmo tempo que obriga a pensar sobre a
heterogeneidade do mundo moral, enquanto pesquisa sobre o vínculo humano
e insistência sobre essa parte invisível em reserva dentro de toda manifestação
visível, convida não a opor a utopia à política, mas a reintegrar a utopia dentro
do consentimento moderno e a renovar da mesma forma a questão política
dando-lhe toda sua densidade carnal.
Desse ponto de vista, a crítica de Leroux que visa não a derrubar a utopia
moderna, mas a pensar sobre ela de outra maneira, circunscrevendo o campo
que lhe é próprio —a vida do eu e do nós ou a humanidade no sentido do
vínculo humano —a busca pré-fenomenológica da heterogeneidade da relação
humana - “nossa vida não está somente em nós, mas também fora de nós, nos
outros homens nossos semelhantes e na humanidade” (Da Humanidade, op.
cit., pág. 29) merece ser comparada às especulações de Kant em Sonhos de um
visionário... quanto às forças que movem o coração humano e cuja sede parece
estar fora dele. "... não é, portanto, somente em nós que está o ponto de
convergência das linhas diretrizes de nossos impulsos: há fora de nós, no
querer de outrem, forças que também nos movem. Daí nascem tendências
morais que muitas vezes nos conduzem apesar de nosso interesse particular...”
Interrogando-se sobre o sentido moral, Kant evoca a atração de Newton,
insistindo sobre a especificidade da unidade moral própria do mundo imaterial.
“Essa manifestação dos impulsos morais nas naturezas pensantes e em suas
relações recíprocas não seria possível representá-la igualmente como a conse­
qüência de uma força verdadeiramente ativa que faz com que as naturezas
espirituais influam uma sobre a outra, de sorte que o sentido moral fosse esse
sentimento de dependência da vontade particular com relação à vontade geral
e uma conseqüência da integração natural e universal por onde o mundo
imaterial conquista sua unidade moral, desenvolvendo-se, segundo as leis
dessa interdependência que lhe é própria, em um sistema de perfeição es­
piritual?” (Oeuvres philosophiques, t I, Bibliothèque de la Pléiade (1980),
págs. 5 4 7 -5 4 8 ).
Esse elemento humano, procurado em sua heterogeneidade, deve ser
pensado em relação com uma concepção da essência da vida que toma a cargo
a escala dos seres e a passagem de um reino a outro. Leroux esforça-se, na
verdade, em confrontar o humano com o mundo não-humano, com o conjunto

654
da vida, vegetal e animal. Essa busca da especificidade do vínculo humano
encosta-se, além disso, em um pensamento da subjetividade, mais precisamente
para Leroux, ao que ele chama de a “verdade ontológica admirável” de Maine
de Biran que, afirmando o eu, a força manifestada pela apercepção*, não
deixava de afirmar que dentro da apercepção manifesta-se também o objeto do
fenômeno (Réfutation de Vécletisme, Slatkine, 1979, pág. 129).
É a partir da relação do Eu com o que não é ele, com exterior, que Leroux
elabora sua concepção do vínculo humano. A consciência de si, força e não
substância pensante, que Leroux situa em um nível originário — “longe de
explicar, como Leibniz, a consciência de nós mesmos pela razão, seria mais
verdadeiro explicar a razão pela consciência de nós mesmos” (Réfutation de
Vécletisme, pág. 178) —, não é pensada nem como coincidência em si, nem
como inerência em si, nem como perseverança do sujeito dentro de seu ser e
ainda menos como soberania, mas sim como relação do Eu com um outro
termo. Quer dizer que, sem levar aqui em consideração as teses de Leroux
sobre a duração, sobre o mundo do tempo, “segundo mundo”, a consciência
de si para ser distinguida do conhecimento de si, momento indelével segundo
Leroux e que marca sua diferença dentro do pensamento socialista, é pensada
como diferença em si - o presente não existe - e como saída de si. O
sentimento da existência, o si constitui-se dentro de uma intencionalidade para
um alhures, para uma exterioridade, e é a relação do eu com o não-eu que
revela o eu a si mesmo. “Por essas três faces de sua natureza, o homem está
em relação com os outros homens e com o mundo. Os outros homens e o
mundo, eis o que, unindo-se a ele, o determina e o revela ou o faz se revelar;
eis sua vida objetiva, sem a qual sua vida subjetiva permanece latente e sem
manifestação... O que ele nomeia de sua vida não lhe pertence por inteiro e não
está nele somente; ela está nele e fora dele; ela reside em parte, e por assim
dizer em comum, dentro de seus semelhantes e dentro do mundo que o cerca”
{Da Humanidade, op. cit., págs. 128-129). E ainda: “A vida do indivíduo, a cada
momento de sua existência, é ao mesmo tempo subjetiva e objetiva. Ora, quem
lhe fornece a parte objetiva de sua vida, isto é, qual é seu objeto? É o homem
e a natureza exterior, sempre o homem e a natureza exterior, e nada além disto.
Portanto, o homem objeto contém em si uma parte da vida do homem sujeito.
Portanto, o aperfeiçoamento do homem importa ao homem. Portanto, o gênero
humano é solidário... Vocês não podem obliterar a porção objetiva de minha
vida sem me ferir dentro de minha vida subjetiva ” (Da Humanidade, pág. 146).
Dessa consciência de si como força de aspiração, dessa vida ao mesmo
tempo em si e fora de si, Leroux deduz a existência e a necessidade da
comunicação do homem com a natureza e com seus semelhantes. Também,
poder-se-ia dizer que, para Leroux, a alegria está contida no desenvolvimento de
nossa potência de aspiração e na multiplicação de nossa vida relacionai.
Uma outra direção a reproduzir para apreender essa descrição do vínculo

* Apercepção - percepção clara e nítida de qualquer objeto; intuição, faculdade ou ação de


apreender imediatamente, pela consciência, uma idéia.

655
humano seria a de voltar-se para a concepção de Leroux do sujeito, como
sujeito encarnado. É porque o homem se define como um complexo espírito-
corpo que sua força de aspiração desenvolve e se revela a ela mesma como
fôrça de um corpo vivo, o que redobra a intencionalidade, já que esse corpo
enquanto corpo vivo é inseparável de uma relação constante, de uma comu­
nhão perpétua com o universo exterior: "... o ser que os fisiologistas chamam
de um corpo é apenas um cadáver logo que essa comunicação cessa, e... o que
se deveria verdadeiramente chamar de um corpo seria esse corpo mais todos
os ambiente que lhe dão a vida, que respondem à sua vida, que vivem com ele
e com quem ele vive” (Réfutation de Vécletime, op, cit., pág. 290). Daí decorre
uma primeira definição do projeto da Associação: trata-se de organizar a
pluralidade desses ambientes, mais ainda, desses ambiente de vida para
constituir, segundo uma força de aspiração assim multiplicada, a Humanidade
como ambiente, ambiente simbólico irredutível a um ambiente animal, pois a
humanidade é tradição. Nós não somos membros da humanidade, somos suas
partes, vivemos nela, vivemos dentro da luz da Humanidade. Somos dela.
Também poder-se-ia dizer que a dessubstancialização da humanidade passa em
Leroux por sua redução a um ambiente no sentido mais forte do termo, rede
de significações abertas, ambiente de uma pluralidade de ambientes ou mundo
da vida, em relação com a concepção do homem como animal simbólico.
Enfim, para dar a esse pensamento sua consistência plena, seria preciso
dedicar-se pacientemente à descrição que Leroux propõe do vínculo humano
como reversibilidade e que tem incontestavelmente um alcance crítico, tanto
a respeito dos utopistas que concebem a atração como puramente material
como a respeito dos revolucionários que não suspeitam dos efeitos des­
truidores da violência, ignorantes que são da especificidade do vínculo huma­
no e de sua reversibilidade. Dessa maneira explicar-se-ia como, dentro do
movimento da revolução, a emancipação pode transformar-se em uma nova
forma de dominação. A violência revolucionária ou, mais genericamente, a
violência política é “ferimento” do vínculo humano, empobrecimento. Segue
desse princípio de reversibilidade que "vocês não podem fazer o mal sem fazer
mal a vocês mesmos. Pois se eu sou o objeto de vocês assim como vocês são
o meu, já que a vida de vocês tem necessidade objetivamente da minha, assim
como a minha tem necessidade objetivamente da de vocês, eu desafio vocês a
me tornarem infeliz sem prejudicar a vocês mesmos. Se vocês me fizerem
escravo, tornar-se-ão déspotas. É uma infelicidade ser escravo, mas é uma
infelicidade também ser déspota... Caim feriu-se ao ferir Abel” {Da Humani­
dade, págs. 147-148). A partir do próprio princípio da vida que faz o homem
objeto do homem e que por aí une o homem ao homem, o vínculo humano
sendo a manifestação da reversibilidade da vida com ela mesma - a lei da vida
implicando a objetividade unida à subjetividade —, Leroux começa uma
descrição desse vínculo como reversibilidade em vários níveis, no nível da
nutrição, da geração dentro de suas diferentes figuras e sobretudo da tradição,
a manifestação mais elevada e mais complexa do homem como reversibilidade.
A subjetividade, longe de se poder autoconstituir, só pode aparecer se deixar

656
livre curso para a reversibilidade, seja por meio da amizade, seja por meio do
amor. A ausência de amor é extinção da subjetividade. O homem objeto do
homem? Como se ele percebesse o caráter insatisfatório dessa fórmula, Leroux
insiste sobre o caráter especificamente humano da reversibilidade: segundo
ele, não se poderia confundir, para dizê-lo em termos emprestados de Buber,
a relação Eu/Você com a relação Eu/Isto. "Portanto, eu vivo pela comunhão
com meus semelhantes. Portanto, entre mim e eles, há vida indivisível. Ora, eu
não vivo deles como vivo do mundo exterior.” (Revue sociale, 1847, pág. 140).
Solidariedade, reversibilidade eterna dos homens; o livro é uma das formas de
renascimento do homem indivíduo dentro da humanidade. A Associação, à luz
desse pensamento do vínculo humano, tem acesso a uma nova definição: a
utilização sem limites dos vínculos de reversibilidade, a constituição de am­
bientes de vida diferenciados, plurais e não-hierarquizados de natureza a
constituir a Humanidade como um grande vivente, eternamente vivo.
Quer dizer que a idéia de humanidade, como vínculo invisível que vem
duplicar o visível, não remete somente aos vínculos simbólicos que permitem
a comunicação e a troca entre os homens, mas comporta uma dimensão
incontestável mente fenomenológica que tem sua origem dentro da concepção
do sujeito como sujeito encarnado, dentro de uma teoria do corpo vivo e, mais
genericamente, dentro de uma concepção da vida que vem duplicar uma
filosofia da encarnação.
Portanto, não seria abusivo considerar que essa filosofia da humanidade
dá nascimento ao que se poderia designar como um direito natural moderno,
como direito da comunicação, e define da mesma forma as tarefas de uma
filosofia política, como filosofia prática.
Do axioma ontológico que repousa sobre a reversibilidade, Leroux deduz
com efeito, critérios de julgamento: é legítima toda forma de relação que vai
no sentido da solidariedade, da troca generalizada, que favorece a constituição
da humanidade; ao inverso, é ilegítima a relação que vai no sentido de um
fechamento sobre si, de uma separação, tal que produza um desaparecimento
da humanidade e um retorno ao fenômento da casta. Segundo Leroux, toda
forma de manifestação do vínculo humano (família, propriedade, cidade) está
exposta a uma dupla postulação, seja em “impulso subversivo” para o fecha­
mento sobre si e o desligamento, seja em “impulso harmônico” para a abertura
sobre a humanidade e a multiplicação do vínculo humano.
Convém ainda precisar que para Leroux a reversibilidade não é somente
relação de um ser finito com um ser finito, mas que, no âmbito dessa
interpelação, ela é surgimento do infinito da relação humana, da relação
humana com o infinito. Dentro dessa perspectiva, trata-se para os homens,
seres finitos, de gravitar pela mediação do infinito —Humanidade em direção
ao infinito Deus. Essa filosofia da humanidade, ao mesmo tempo que se revela
filosofia política, manifesta incontestavelmente uma dimensão religiosa que
não se pode por isso reduzir, como o faz A. Philonenko (Études Kantiennes,
1982), a uma regressão ao teológico-político.
A necessidade de uma reconstrução conceituai desse pensamento não

657
deve mascarar outras exigências: dar-lhe mais densidade, considerando seus
prolongamentos dentro da esfera econômica, notadamente a questão da
subsistência e a teoria do circulus, situando-a de novo dentro das práticas
políticas, utópicas, jornalísticas e industriais de Leroux; interrogar-se sobre a
parte negativa que ela é suscetível de conter (a questão da nutrição); fazer sua
extravagância (a sobrevivência dentro da humanidade) e seu interesse pelo
"bárbaro” trabalharem em nós; enfim tomar distância com relação ao dogma-
tismo metafísico do qual ela está penetrada.

Pode-se, por isso, fazer como A. Philonenko, no artigo “Em torno de


Jaurès e de Fichte” (Études Kantiennes, págs. 177-194), opor “um espiri-
tualismo com rosto humano”, o de Jaurès, "coisa nova, maravilhosa... alguma
coisa forte, poderosa, enérgica: não somente o materialismo, mas também a
presença do homem em si... esse intento resume-se em uma palavra, a
humanidade”, ao espiritualismo tradicional, impregnado de religiosidade, que
teriam professado, segundo o desdém do autor, “os Saint-Simon, os Augusto
Comte e até mesmo os Leroux”?
Feito o cumprimento, esse desdém no caso “dos Leroux” parece muito
menos fundado, por que A. Philonenko ignora visivelmente a dimensão
econômica da doutrina da humanidade, assim como a oposição ao cristianismo,
mediante a crítica do devotamento e do sacrifício. Por outro lado, essa leitura
parece participar de uma visão pelo menos curta da presença do religioso
dentro da Revolução Francesa: será preciso ver aí somente fraqueza, incapaci­
dade da Revolução em despojar a Igreja de seu poder e de sua influência, breve
regressão ao teológico-político ou, então, será preciso, como nos convidou C.
Lefort em seu estudo sobre “A permanência do teológico-político” (Le Temps
de la réflexion, 1981), interrogar-se sobre a permanência do religioso na
política moderna visto que se está pronto para perceber aí a importância
constitutiva do simbólico na instituição política do social? Neste último caso,
o intérprete não será mais tentado a despedir as filosofias da humanidade para
o lado da pré-modernidade ou do lado das sobrevivências, mas saberá acolhê-
las interrogando-se sobre a contribuição original desses pensamentos da
humanidade para a filosofia política moderna.
A menos que se consinta em uma certa ingenuidade filosófica ou em
conservar ilusões restauradoras, é verdade que essas filosofias da humanidade
não podem ser retomadas tal qual eram.
Elas se têm como “grandes narrativas” de emancipação e estão sobrecar­
regadas de vários sinais de dogmatismo metafísico, finalismo, providencialis-
mo, afirmação de um sentido inscrito dentro da história, etc., que só podem
ser o objeto de uma suspeita e de uma crítica.
Porém, melhor do que despedir maciçamente esses pensamentos da
humanidade para o lado do humanismo, a fim de associá-los ao descrédito nó
qual ele caiu, não seria preciso propor uma outra hipótese de leitura que não
reduzisse esses filósofos da humanidade a simples objetos históricos? Não
conviria, a respeito da questão política não se fechar sobre ela mesma,

658
desintrincá-los de suas formulações metafísicas de partida para reativar certos
conceitos em jogo? Como, em nosso tempo, a questão do vínculo humano pode
ajudar a conceber de maneira diferente a busca do “viver-bem”? Nesse cami­
nho, pode-se pensar no gesto especulativo pelo qual Adorno termina Minima
Moralia. “A única filosofia da qual se pode ainda assumir a responsabilidade
face à desesperança é a da tentativa de considerar todas as coisas tal como elas
se apresentam do ponto de vista da redenção... Comparada à exigência que ela
deve enfrentar, a questão concernente à realidade ou à irrealidade da redenção
torna-se quase indiferente."
A questão tornar-se-ia: a forma viva dessas filosofias não se manifestaria
do lado daquilo que se poderia chamar de “fenomenologias do humano”
tomando a cargo a crítica da metafísica? Tratar-se-ia de fazer trabalhar o que
implica a passagem da humanidade para o humano, o que se efetua, por
exemplo, dentro de um deslocamento da idéia do gênero humano para a busca
de uma historicidade primordial a partir por exemplo de reflexão sobre o corpo
humano. Essas fenomenologias podem desenvolver-se seja sob a forma de uma
analítica da condição humana mostrando como a Ação cria vínculos imateriais
entre os homens (H. Arendt), seja a partir de uma experiência tida como
privilegiada por ser suscetível de nos dar acesso à "carne do mundo" (Merleau-
Ponty), seja sob a forma de uma descrição do “elemento humano” e da carne
do social (C. Lefort), a partir de uma reflexão sobre a instituição da sociedade
democrática.
Não haveria, por meio da diferença dos tempos e sem fazer violência a
essa diferença, uma comunicação a instaurar entre esses pensamentos da
humanidade que apareceram no século XIX, mas dos quais alguns (Leroux,
Quinet, Michelet..) permanecem inexplorados, pois eles foram seja ignorados,
seja banalizados e tornados circunspectos, e um pensamento do humano, em
nosso século que, saudando a intuição genial do anti-humanismo moderno -
“o humanismo só deve ser denunciado porque ele não é suficientemente
humano” (E. Levinas) —anuncia-se como “o humanismo do outro homem”?

• D e V H u m an ilé, d e s o n p r ín c ip e e t d e s o n a v en ir, Paris, Perrotin, 1845; 2 - ed., 1845, D e


V H u m an tté, texto revisto por Miguel Abensour e por Patrice Vermeren, Fayard, 1845 (Corpo
das obras de Filosofia em língua francesa). Outros textos atualmente disponíveis: na França, De
la p lo u to c r a tle o u d u g o u v e r m e n td e s r ic h e s , Êditions d’Aujourd’hui, “Les Introuvables”, 1976;
O e u v re s (1 8 2 5 -1 8 5 0 ), I-Il, Cenebra, Ressources, 1979; L a g r è v e d e S a m r e z , poema filosófico,
edição estabelecida com uma introdução e notas de J.-P. Lacassagne, T.I e II, Paris, Êditions
Klincksieck, 1979; D is c o u r s d e S h e llin g à B erlin , d u c o u rs d e p h ilo s o p h ie d e S ch ellin g , d u
c h ristla n ism e, Vrin, “Reprise”, 1982. A ser publicado: A u x p h ilo so p h e s , a u x a rtistes, au x
p o litiq u e s, edição estabelecida e apresentada por J.-P. Lacassagne e por Miguel Abensour, Paris,
Payot, 1989. Na Itália: R e lig io n e e L ib e rta (aos cuidados de Fernando Fiorentino), Milella,
Lecce, 1980; S a g io S u lla P o e s ia e V U m an ita d i F ra n cisc o P e tra r c a (aos cuidados de Emilia
Chirilli, 1982); L ib ertd , U g u aglian za, C o m u n io n e (aos cuidados de Ângelo Prontera e Leonardo
La Puma), Milella, Lecce, 1984.

659
► F. Thomas, P ie rr e L erou x, s a vle, s o n o e u v re , s a d o ctrin e. C o n lrib u tio n à V h istore d e s id é e s
a u X I ) f siè c le , Paris, Alcan, 1904; H. Mongin, P ie r r e L ero u x , Paris, Éditions Sociales inter-
nationales, 1938; D. O. Evans, L e s o c ia lis m e ro m a n tiq u e . P ie r r e L e r o u x e t s e s c o n te m p o ra in s ,
Librairie Mareei Rivière, 1948; J.-P. Lacassagne, H isto rie d ’u n e a m itié , P ie r r e L e r o u x e t G eorge
S a n d , Paris, Klincksieck, 1973; J.-J. Coblot, P ie r r e L e r o u x e t s e s p r e m ie r é c r its (1 8 2 4 -1 8 3 0 ),
Presses Universitaires de Lyon, 1977; J. Viard, P ie r r e L ero u x , G e o rg e S a n d , M a z z in i, P e g u y e
N oi, Milella, Lecce, 1980; J. Viard, P ie r r e L e r o u x e t le s so c ia lis te s e u ro p é e n s, Actes Sud, 1982;
A. Le Bras-Chopard, D e V ég a llté d a n s la différen ce. L e s o c ia lis m e d e P ie r r e L ero u x , Presses
de la Fondation nationale des Sciences Politiques, 1986.
Artigos: M. Abensour, Pierre Leroux et 1’utopie socialiste, E c o n o m ie s e t S o c ie té s, dezembro de
1972, págs. 2201-2247; Idem, L’utopie socialiste: une nouvelle alliance de la politique et de la
religion, L e te m p s d e la reflexion , 1981, II págs. 61-112. Igualmente, Philosophie politique et
socialisme, Pierre Leroux ou du “style barbare” en philosophie, C a h ie r d u C o llèg e In te rn a tio n a l
d e P h ilo so p h ie, ns 1, outubro de 1985, págs. 9-24; artigos de J.-P. Lacassagne, e m A. Le
Bras-Chopard, op. c it., págs. 453-454.

Miguel ABENSOUR.

LEROY-BEAULIEU, Paul, 1843-1916


O Estado moderno e suas funções, 1889

O autor de L ’État moderne etses fonctions (O Estado moderno e suas


funções) é tão esquecido hoje em dia quanto foi conhecido no seu tempo.
Nasceu em Saumur em 1843. Seu pai, monarquista, fora prefeito de Lisieux e
era, então, Secretário (ele será mais tarde deputado de Calvados e depois
membro do Corpo Legislativo). Como seu irmão mais velho, Anatole, que foi,
alguns anos antes da guerra, diretor da Escola Livre de Ciências Políticas, Paul
Leroy-Beaulieu fez seus estudos - brilhantes, nem é preciso dizer —no Liceu
Bonaparte e depois na Faculdade de Direito de Paris. Completou sua formação,
o que era tradição na época, com temporadas de estudo na Alemanha e,
imediatamente, então com vinte e um anos, redigiu um primeiro memorial e
depois outros, sobre assuntos colocados em concurso pela Academia de
Ciências Morais e Políticas. Obteve quatro prêmios em quatro anos. Em 1870,
esposou uma das filhas do célebre e rico economista saint-simoniano, Michel
Chevalier, professor no Colégio de França. Escreveu muito, na Revue des
Deux-mondes, no Journal des Débats; ao mesmo tempo, em 1872, começou
um curso de história financeira na Escola Livre de Ciências Políticas. Fundou
do ano seguinte o semanário que fará sua celebridade e lhe dará uma
influência real, L'Economiste français, que dirigirá até sua morte em 1916 e
do qual escreverá, semana após semana durante quarenta e quatro anos, o
editorial. Redigiu as grandes obras de referência que são o Traité de la Science
des finances, em doi volumes —oito edições sucessivas! —e o Traité théorique

660
et pratique d ’economie politique, em cinco volumes, reeditado quatro vezes!
Economista, portanto? Foi nessa qualidade que ingressou no Colégio de
França onde sucedeu, em 1880, a seu sogro, Michel Chevalier. Mas a época
não era para especialização. Leroy-Beaulieu foi igualmente o primeiro teórico
a fazer um estudo sistemático do movimento colonial, De la colonisation chez
les peuples modems (Da colonização dos povos modernos), que teve um
imenso sucesso (Girardet, 1972). Da mesma maneira, foi inovador seu estudo,
que data de 1969, sobre a guerra: Recherches économiques, historiques et
statistiques sur les guerres contemporaines (Pesquisas econômicas, his­
tóricas e estatísticas sobre as guerras contemporâneas). Simultaneamente,
tentou, porém sem grande convicção, uma carreira política: era conselheiro-ge-
ral do Departamento de Herault, mas fracassou constantemente, durante vinte
anos, nas eleições legislativas de Lodève, em que se apresentava como conser­
vador e liberal. Era republicano (mas, dizia ele, “com uma estranha modera­
ção”, Aumercier, 1979, pág. 76), mas daqueles que se acomodam à República
em falta de coisa melhor e que trabalham para torná-la tão “moderada” quanto
possível. Resignou-se facilmente a não fazer parte da Câmara, já que podia
intervir por meio de seus escritos. Publicou um estudo crítico do que chamou
de “novo socialismo”, coletivista (cinco edições entre 1884 e 1908, decidida­
mente o sucesso não é desmentido!) e redigiu esse “sumário do liberalismo”
(Legendre, 1966, pág. 32) que é L ’Êtat etses fonctions, quatro vezes reeditado
entre 1889 e 1911, traduzido em inglês e em italiano.
O livro é singular, aparentemente muito frio, de uma minuciosidade
lógica, de uma clareza constante, fortemente apoiado sobre dados estatísticos,
descrições e referências concretas: um livro tão pouco “filosófico" quanto
possível (o autor tinha horror ao que era “abstrato"). Mas um livro que se
anima progressivamente, chega mesmo a se exasperar, martelar suas ob­
sessões. Que se julgue por si mesmo.
Seu único assunto é o estado moderno, quer dizer, o estado representativo
ou, melhor, "eletivo", que repousa "principalmente sobre a delegação temporária
da autoridade por aqueles que a ela se devem se submeter,” (pág. 62). Portanto,
o estado moderno é caracterizado pela precariedade estrutural dos governantes
designados para um breve período no correr desses momentos de confrontos
artificiais - de excitação, de febre, de algazarra - que são as eleições. Esses
governantes só são sensíveis, por definição, de imediato: representantes de uma
maioria recentemente formada, eles cedem a todas as predileções do dia.
Querendo afirmar seu poder, com a presunção que a vitória dá, eles tomam para
si a empreitada de tudo reformar às pressas, não deixam nada de pé com relação
à obra daqueles que os precedem. Os Parlamentos tornam-se, portanto, “fábricas
de legislação contínua, trabalhando como os ofícios contínuos de fiação”! (pág.
142) Além disso, todas as decisões são tomadas com o olhar fixo sobre suas
percussões eleitorais. E preciso manter seu eleitorado, diminuir o campo adverso,
dedicar-se à “parcialidade sem descanso" (pág. 72). E preciso pensar em todos,
dedicar-se a essa “atividade inconstante que toca tudo superficialmente ao
mesmo tempo” (pág. 74) para satisfazer a cada interesse particular. Compreende-

661
se a comparação final: o Estado Moderno “parece um touro dentro da arena;
quando lhe é apresentada uma capa de cores vivas, ele se precipita sobre ela e
não vê mais nada nem ao lado, nem além dela. Além disso, ele só percebe seus
erros muito tardiamente e, como tem tanto amor-próprio quanto obstinação, ele
não sabe como os reparar (pág. 453).
Essas são apenas as premissas. O Estado, diz Leroy-Beaulieu, se caracte­
riza por dois traços que ele é o único a possuir, ele tem o poder de impor por
meio de coação e pode —sempre por meio de coação —arrecadar somas (de
dinheiro) das quais tem em seguida a liberdade de dispor. Trata-se para o
Estado de ter os meios de concluir suas tarefas imperativas, as que derivam de
sua própria natureza: representante do território em sua integralidade e dos
habitantes em sua totalidade, deve providenciar a satisfação das necessidades
“que só podem ser completamente satisfeitas por meio da ação da própria
comunidade, porque toda oposição individual, mesmo limitada, oferece obs­
táculo a elas” (pág. 113). Nesse sentido, o Estado tem e só pode ter três
funções: 1) Garantir a segurança, segurança coletiva da nação inteira e
segurança do indivíduo e de seus direitos; 2) Dizer o que é direito, pois trata-se
de “reconhecer o direito” e não de criá-lo. O autor insiste nisso: “O legislador
não cria o direito”, ele o registra, o põe em ordem, regula seu exercício, é
apenas o “escriba” que recolhe e formaliza os costumes, refletindo o sentimen­
to popular e traduzindo a natureza das coisas; 3) O Estado tem, enfim, uma
função de conservação: deve transmitir o patrimônio nacional às gerações
futuras, conservar as florestas, proteger as riquezas naturais, regularizar os
cursos de água. A essas funções se junta um dever particular, que Leroy-Beau­
lieu menciona in üne (ele lhe consagrou uma obra, diz-se), a colonização,
grande missão dos grandes Estados Ocidentais.
Fora dessas funções precisas e limitadas, existe perigo. Ora, o Estado
quer açambarcar inumeráveis tarefas: os trabalhos públicos que ele multiplica
a despeito do bom-senso, muitas vezes por motivos eleitorais e com a crença
ingênua de que todo trabalho é necessariamente produtivo; a instrução pela
qual o Estado sempre teve uma “paixão irrefletida” e que o leva a aberrações;
a exploração das estradas de ferro; assistência social; o regime de trabalho; os
seguros. Não existem festas e exposições que ele quer organizar e indústrias
que ele quer fazer funcionar por sua própria conta? E aí, sem se cansar,o autor
acusa, mostrando que dentro de todos esses domínios o Estado intervém
indevidamente, sem invenção, com uma legislação sempre exagerada em um
sentido ou em outro, sempre irresponsável, sempre “caprichoso, brutal, açam­
barcador” (pág. 58), sempre ávido de monopólio, procurando constantemente
ser o “tutor universal". Leroy-Beaulieu denuncia essas perpétuas ingerências
do Estado, denuncia esse “sistema megalômano que tende a fazer do Estado
o motor dos progressos humanos” (pág. 25), e recusa sem hesitar o fundamen­
to de uma maneira que não é privada de força: “O Estado não é obrigado a
procurar a felicidade universal” (pág. 115).
Em face dessas perpétuas agressões do Estado moderno, é preciso
colocar firmemente uma regra: “O Estado sendo um organismo de autoridade

662
que usa ou ameaça coagir, todas as vezes que se pode chegar a resultados
aproximadamente equivalentes pelo caminho da liberdade, esta última deve ter
a preferência” (pág. 93). Ele justifica rapidamente essa regra, de tal maneira
ela lhe parece ser evidente e de tal maneira é importante para ele sobretudo
demonstrar isso negativamente, produzindo o quadro dos trâmites do Estado:
basta para ele pleitear a superioridade das ações individuais livres e das
intervenções das associações de toda natureza que nascem constantemente
dentro da sociedade e têm, com relação ao Estado, todas as vantagens da
variedade, da flexibilidade, da espontaneidade, da liberdade.
Recebido como uma bíblia tardia do liberalismo, L 'État moderne etses
fonctions é lido hoje em dia do começo ao fim como um vigoroso panfleto
contra o Estado democrático e burocrático ao mesmo tempo, com belas
escapadas modernas (sobre o que se chamaria hoje em dia os efeitos perversos
dos políticos públicos, o que um autor - Ph. Bénéton —chamou de “o fluxo
do bem”), furores que vêm à superfície (os deputados são tratados aí de
“filantropos imbecis” e de “miseráveis idiotas”, pág. 451), raciocínios propria­
mente reacionários, pequenas obras-primas de análises parlamentares (como a
descrição dos obstáculos que impedem o Estado de conduzir realmente uma
política industrial inovadora, pág. 218-220), saborosas anotações à Courteline
(por exemplo, sobre o avanço sistemático dos funcionários, pág. 110). O livro,
no entanto, depois de um sucesso não desmentido quando o autor era vivo, cai
no esquecimento depois da Primeira Grande Guerra. É que existem obras com
uma dimensão totalmente particular, obras que em sua época são tão apaixo-
nadamente militantes que não sobrevivem a seu tempo, mas que a história das
ciências ou a história das idéias recolocam em dia não para fazer do autor um
precursor (o que seria “impedir-se de compreendê-lo” como o escrevia Koyré),
mas porque nosso presente revela aí uma desatualidade inesperada. LexL ’Ê tat
moderne et ses fonctions um século depois de sua publicação e reconhecer
nosso Estado não é nos coagir a procurar nossa modernidade noutro lugar em
vez de fazê-lo espontaneamente?

• P rin c ip a is o b ra s d e P. d e L eroy-B eaulieu, com a d a ta d a s p rim e ira s e ú tiim a s edições:


Recherches économiques, historiques et statistiques sur les guerres contemporaines (1853-
1866), 1869; La question ouvrière au X ü f siècle, 1873, 1882; De la colonisation chez les
peuples modernes, 1 8 7 4 ,1 9 0 8 ; Traité de science des finances, 1877, 1912; Le collectivisme.
Examen critique du nouveau socialisme, 1884, 1908; L ’Algérie et la Tunisie, 1 887, 1897;
L ’Etat moderne et ses fonctions, 1889, 1911 (n ó s u tiliz a m o s e s s a ú ltim a edição); Traité
théorique et pratique d'économle politique, 1 8 9 6 ,1 9 1 0 ; Le Sahara, le Soudan et les chemins
de fer transsahariens, 1904; L ’art de placer et gérer sa fortune, 1906; La question de la
polpulation, 1 913.

► C isele A u m ercier, Paul Leroy-Beaulieu, observateur de la réalité économique et sociale


françalse: “L ’E conomlste français", 1873-1892, te s e d e d o u to r a d o d o 3* ciclo, D ijon, 1979, 4
v o lu m es; C e o rg e s L e c a rp e n tie r, P a u l L eroy-B eaulieu éco n o m iste , Revue des Sciences politi-
ques, 1919, p ág . 179-191; C e o rg e s R e n é S to u r m , P a u l L eroy-B eaulieu , Revue des Deux-Mondes,

663
l s de abril de 1917, págs. 532-553; Idem, Notice historique sur la vie et les travaux de Paul
Leroy-Beaulieu, A c a d é m ie d e s S c ie n c e s m o ra le s e t politiques, 789 ano, t 89, nova série,
primeiro semestre, pãgs. 151-184. Algumas indicações em Pierre Legendre, Histoire de la pensée
administrative française, T rai t é d e Science a d m ln is tr a tiv e , Paris, La Haye, Mouton, 1966, e
Raoul Girardet, V i d é e coloniale e n F ra n ce d e 1 8 7 1 a 1 9 6 2 , Paris La Table ronde, 1972.

Pierre FAVRE.

LINGUET, Simon-Nicolas-Henri, 1736-1794


Teoria das leis civis ou Princípios fundamentais da sociedade, 1767

Simon Linguet, "esse bota-fogo que parece promover incêndio por toda
parte onde passe” segundo um jornal da época, nasceu em Reims no dia 14 de
julho de 1736 sob os aupícios de uma carta de confinamento de que seu pai
era objeto. Após estudos brilhantes e inícios incertos, tornou-se advogado em
1764. Seus primeiros escritos deixam transparecer um temperamento provo-
cador e sensível à questão social. A publicação da Théorie sela seu destino que
se resume num paradoxo: ele se quer o crítico do despotismo, será acusado
por toda parte (e ainda hoje) de ser seu panegirista. É que Linguet vai contra
a inclinação da opinião reinante, sustentando a tese de que a perfeição política
reside na simplicidade, na uniformidade, e o despotismo, na complicação.
Posição paradoxal, realmente, já que, com Montesquieu, tinha-se imposto
amplamente a idéia de que a simplicidade e a uniformidade caracterizam o
despotismo descrito como uma forma de governo ao mesmo tempo próprio
para o Oriente e ameaçando todos os governos moderados, a começar pela
monarquia francesa. Mas, exclama Linguet em seu longo Discurso preliminar,
tais princípios são só “preconceitos acreditados por espíritos interessados em
expandi-los”. Agitando “o espectro hediondo” de um despotismo oriental
forjado com todas as peças, é o verdadeiro despotismo, aquele que reina aqui
e agora, que se procura na realidade encobrir e legitimar.
A complicação denunciada por Linguet apresenta-se sob dois aspectos
indissociáveis: a multiplicidade contraditória de leis acumuladas no decorrer dos
tempos e a divisão do poder entre várias mãos concorrentes. Essa complicação
aumenta os conflitos e permite todos os abusos. Ela torna incerta a propriedade
da vida e dos bens. E prova disso “a guerra surda”, de vítimas inumeráveis,
desenrolando-se no campo do direito civil e cujas armas são as leis dispersas em
“vastos arsenais”, as coleções, para onde se toma muito cuidado em não trazer
luz: “A menor faísca (...) faria voar pelos ares todo o edifício. No entanto seria
bem meritório da natureza humana proporcionar-lhe esse feliz acidente.” Ne­
nhuma ajuda deve ser esperada dos publicistas. “Os Bodin, os Grotius, os

664
Pufendorf, etc.” só fazem conservar a obscuridade: o próprio “estilo” deles é à
imagem da política dos tiranos. Essa complicação do direito e do discurso sobre
o direito, sua violência, é apenas a máscara e a expressão da violência real, do
despotismo que reina nas relações sociais. Ela resulta e se alimenta do esqueci­
mento da essência da sociedade e das leis. Linguet pretende suspender esse
esquecimento colocando-se sob um duplo sinal. O de Maquiavel, único autor
louvado na Théorie: ele mostrou que, para durar, um Estado deve ser freqüen­
temente levado de novo a seus princípios originais. O de Copérnico: trata-se de
fazer para a legislação o que ele fez para a astronomia, limitando-se a renovar a
opinião dos Caldeus. Pois o Oriente Próximo e o Médio são a verdadeira escola
de nossos conhecimentos políticos. Foi lá que as instituições fundamentais da
sociedade foram conservadas em sua pureza e simplicidade primitivas. É de lá
que se devem retirar os princípios de uma reforma da qual tudo demonstra a
necessidade e que deve consistir não em apoiar, mas em retomar tudo a partir
dos alicerces. O que não for feito por uma reforma, sê-lo-á por uma revolução,
“um incêndio terrível” que anuncia “o barulho dos abusos multiplicados”.
A Teoria propriamente dita dedica-se, portanto, a resgatar os princípios
fundamentais da sociedade por meio do estudo da utilidade das leis (1), de sua
origem (II), de seu desenvolvimento quanto ao casamento (III), à ordem
interior das famílias e à transmissão dos bens (IV), depois, ao poder dos
senhores sobre os escravos (V). Se Montesquieu e os jurisconsultos são os
adverários declarados, além dos magistrados (ofício “dos mais repugnantes”
que existem), por seu intermédio encontram-se visados os enciclopedistas e em
primeiro lugar os fisiocratas. Lançando mão de todos os meios, Linguet
critica-os, voltando-os uns contra os outros ou contra eles próprios, e não
hesita em servir-se deles, radicalizando suas propostas, o que consegue com­
prometê-los ou fazer parecer seus raciocínios com meio-raciocínios. A Teoria
(Théorie) é uma máquina de guerra simples, mas sutil, dentro de sua estratégia
de todos os azimutes, que funciona sob a influência de paradoxos. Sem entrar
em seus detalhes, é possível reter seus três grupos principais relativos à origem
da sociedade, à organização política e à questão social.
A sociedade é o grande fechamento. Retomando o paradoxo de Rousseau,
Linguet opõe a Natureza, que mostra que “os homens nascem livres e perfeita-
mente iguais”, à sociedade, que “faz do mundo inteiro um vasto cárcere em que
só há de livres os guardiões dos prisioneiros”. Para compreender essa situação
é preciso consultar o registro de entrada na cadeia. Mas ele está enterrado sob
“quimeras brilhantes”, afirmando que a sociedade encontra sua origem dentro
de uma sociabilidade natural ou uma convenção universal e seu motivo no temor
e no desejo de se defender ou na necessidade de auxílio mútuo que a agricultura
exigiria. A esses “romances engenhosos ou ridículos” que postulam uma harmo­
nia espontânea ou um equilíbrio natural tranqüilizadores, é preciso opor as
“verdades tristes” da razão a fim de desvendar o “princípio secreto” da formação
das sociedades. O estado de natureza é um estado de duelo. Estado hipotético
de independência e de liberdade, ele comporta duas divisões do gênero humano.
De um lado, os caçadores que se manifestam como “a sombra da sociedade" pois

665
eles se associam no tempo de caça e partilham de seu produto. Do outro, os
agricultores-criadores laboriosos e econômicos que se escondem para gozar
sozinhos os frutos de seu trabalho. A sociedade nasceu da violência, e a
propriedade, da usurpação. Para destruir a.igualdade até então perfeita foi
preciso apenas o acaso de uma batida infrutuosa e a visão, pelos caçadores
esfomeados, do rebanho de um criador. Uma vez alimentados, distinguindo os
encantos da tirania, eles se apropriaram do resto dos animais, deixando-os sob a
guarda do criador, impotente e aterrorizado. Desde esse instante em que houve
senhores e escravos, foi formada a sociedade que se resume em dois pontos:
mandar e obedecer. A violência foi, portanto, o motivo por que a sociedade foi
instituída e não aquilo a que se quis escapar. Longe de ser consensual, a
sociedade é conflitual por essência. As leis são um efeito da sociedade, e seu
espírito é o d e consagrar a propriedade. No início a propriedade permaneceu
comum sem perigo, mas sua extensão tendo desenvolvido a cupidez e as
querelas, os donos decidiram proceder entre eles à partilha e assegurar a cada
um a posse das coisas e dos homens. Foram autorizadas as extorsões feitas em
comum (o direito das pessoas) e proscritas as extorsões particulares (o direito
civil). As leis vieram, assim, consagrar uma primeira usurpação a fim de prevenir
outras novas usurpações. Salvaguarda do rico contra os ataques do pobre, elas
são “uma conspiração contra a parte mais numerosa do gênero humano”. Elas
têm como meta “não o bem-estar público, mas o do pequeno número de homens
que, concentrando em suas mãos a propriedade pública, conseguiram fazer-se
considerar como os únicos constituintes da totalidade do gênero humano”, a
invenção deles foi, contudo, admirável, já que consolidando a desigualdade elas
têm como função regular e moderar os conflitos e, portanto, manter a sociedade
que, sem elas, teria perecido.
Já que no estado de sociedade “tudo deriva da propriedade”, o direito
civil compreende todas as espécies de direitos, o que conduz a duas conseqüên­
cias. Não há direito natural. Sua essência era uma liberdade indefinida, a do
direito social é seu oposto: os tratados do direito natural são “todos tratados
de servidão”. Esse pretenso direito é apenas o direito civil, isto é, o direito de
propriedade, o título que torna as possessões exclusivas. Dessa maneira, a
subordinação das mulheres a seus maridos, das crianças a seus pais, dos
escravos a seus donos é a instituição política, tal como a propriedade, da qual
ela é só o desenvolvimento e a garantia. O direito civil pode, entretanto, ser
dito natural na medida em que estiver necessariamente ligado ao estado atual
do homem, mas essa necessidade é uma conseqüência desse estado e não sua
causa. Não há direito político. As relações entre governantes não dependem
de um direito diferente daquele que regula as relações dos governos entre si.
O direito político faz-se apenas um com o direito civil, que se reduz a ser justo,
quer dizer, a devolver a cada um o que é seu a fim de conservar o que é seu
próprio. A propriedade é a corrente que arma toda a sociedade, do Príncipe
até ao último dos súditos, ou a sociedade é uma garantia mútua das proprie­
dades. “Os reinos pertencem a seus senhores, da mesma forma que uma
fazenda me pertence”: a possessão do Príncipe engloba todas as possessões

666
particulares. Essa propriedade universal do soberano e não a co-propriedade
preconizada pelos fisiocratas é a única apta para estabelecer uma identidade
absoluta de interesses entre ele e seus súditos. A única diferença é de extensão,
pois, para o restante, seus títulos de propriedade são idênticos: uma violência
primitiva legitimada pela prescrição. Essa paridade de títulos constitui a
garantia do poder, mas também seu freio. Se ele arruinar ou deixar arruinar
seus súditos, ele se arruinará. Diferentemente dos carneiros, os homens são
dotados de um entendimento. Quando seu pastor viola ou deixa violar suas
propriedades, eles voltam à origem de seu título: todo o rebanho se revolta.
Esses carneiros pacíficos tornam-se leões furiosos e voltam à sua inde­
pendência primitiva: "A força lhes a havia retirado, a força lhes a restituiu. (...)
Foi ela que formou os governos, é ela que os muda.” Isso se chama uma
revolução. Assim, a arte de reinar reduz-se a respeitar e fazer respeitar as leis
civis. O Príncipe não poderia, portanto, desfazer-se do direito de produzir a
justiça: a separação dos poderes produz o despotismo, sua confusão assegura
a moderação. Os governos asiáticos não são despóticos. A união dos poderes
em uma só mão faz com que o comum dos mortais sinta-se feliz e poupado. O
repouso de um Príncipe depende da felicidade de seus súditos. Seu interesse
de proprietário o leva a proteger o povo contra os apetites dos Grandes. A
justiça, nesse caso, não é, como entre nós, um instrumento de sua violência,
mas sim, ao contrário, o efeito de uma firmeza prudente contra suas exigências
excessivas. O direito público do Oriente é claro, nítido e preciso: nada de
multiplicidade dos poderes, nada de vicissitudes dos direitos e ordens, nada de
entulhos de uma potência anterior que ameaçam o trono, nada de pretensos
guardiães do povo que aumentam seus privilégios sobre suas costas. Os
costumes aí são invariáveis, e as leis, das mais constantes, formando, assim, um
obstáculo invencível aos caprichos do monarca.
A liberdade é pior do que a escravidão. Se a escravidão é contra a
própria natureza, ela não é contra a natureza da sociedade que é a de eximir
o rico do trabalho. Tendo a mesma origem que a sociedade ela aí subsiste
sempre, mesmo quando muda de aparência. Os servos foram enfeitados com
“nome mais suave” de domésticos. Não se trata dos lacaios o, mas de todos os
“diaristas, operários, etc.” que “nunca têm parte na abundância da qual seu
trabalho é a fonte”. Hoje em dia o trabalhador é livre: “Ele é livre, vocês dizem!
Eh! Eis sua infelicidade. Ele não depende de ninguém, mas, também, ninguém
depende dele (...) Ele é livre! É precisamente por isso que eu o lastimo (...) É-se
mais ousado em esbanjar sua vida. 0 escravo era precioso para seu dono por
causa do dinheiro que ele havia custado (...) Os diaristas nascem, crescem e
são educados para o serviço da opulência, sem lhe causar as menores despesas
(...); a facilidade de substituí-los alimenta a insensibilidade do rico a seu
respeito (...) que só sente que a sorte do servo era infinitamente preferível
àquela dos operários? Estes, diz-se, não têm mais dono (...) eles têm um, o mais
terrível deles, o mais imperioso dos donos: é a necessidade (...) Eles não estão
às ordens de um homem em particular, mas de todos em geral (...) A que se
reduz para eles essa liberdade aparente (...)? Eles subsistem apenas do aluguel

667
de seus braços. Portanto, é preciso encontrar a quem, os alugar, ou morrer de
fome. Será isso ser livre?” Além disso a exigüidade de seu pagamento é ainda
uma razão para diminuí-la: “Quanto mais o diarista é pressionado pela neces­
sidade, mais barato ele se vende (...) Os déspotas momentâneos (...) lhe dão bem
menos com o que prolongar sua vida do que com o que retardar sua morte.”
E talvez seja "um dos mais espantosos e dos mais felizes efeitos da Providência,
o fato de o desespero não fazer virar a cabeça dessa multidão imensa de
criaturas humanas (...)”. Os filósofos são charlatães da liberdade. Os pretensos
preceptores do gênero humano que cantam a liberdade não consideram suas
seqüências e seus motivos além da aparência nominal, pretexto para belas
frases. Longe de ser devida ao cristianismo ou a um sentimento de humani­
dade, a abolição da escravatura é o instrumento político, a máquina cujo
esforço, lento mas possante, trouxe os soberanos à sua grandeza atual, pois
ela repousa sobre “o bom preço dos serviços". É preciso examinar, da mesma
maneira, os efeitos e os motivos, o prêmio político dos contos de fadas que
fazem surgir, por magia, sociedades de nomes todos livres e iguais. Frutos de
uma “compaixão simulada”, essas declamações contra a escravidão parecem-se
com os gritos dos rapinantes estraçalhando suas presas. Elas são vazias de
sentido, inúteis, odiosas e perigosas. Seus autores, esses carcereiros “que têm
a voz”, fingem quebrar a porta da prisão “enquanto se ocupam cuidadosa­
mente em fortificar-lhes os ferrolhos”. Eles tomam muito cuidado em limitar
suas preces a uma "teoria estéril”: “Sente-se que não resultará jamais em
qualquer mudança efetiva dentro da Sociedade.” Elas são portanto perigosas
não porque incitem à revolta, mas porque a impedem, tornando-a vã a priori:
“Você faz brilhar seu espírito dissertando sobre os sintomas de minha doença:
mas você não me ensina a dissipar seu princípio.”
Uma torrente de imprecações acolheu o aparecimento de Théorie. A
conversão “orientalcêntrica”, o contra-romance das origens, a afirmação de que
não há mais direitos desde que a propriedade da vida esteja comprometida pela
fome e de que esse era o caso na França, essa revolução coperniciana, da qual
procedia Linguet, só poderia, em suma, infligir à sociedade dominante um
ferimento narcisista imperdoável. Se bem que de fato ela não defenda a es­
cravidão e que ele afirme que o sistema político oriental que ele descreve
positivamente “não se poderia naturalizar entre nós”, se bem que se reúna ao
campo dos antifilósofos junto com seu apego à monarquia (mas fazendo um vazio
em torno do rei) e à religião (mas vendo nela apenas sua função política), Linguet
constrangia todo o mundo: o poder e seus oponentes de todos os lugares.
Esforçar-se-á, portanto, em não entendê-lo, em desacreditá-lo como “partidário do
despotismo” e, já que ele persistiu, tentar-e-á reduzi-lo ao silêncio. Cancelamento
da carreira de advogado, exílio, aprisionamento, etc., nada o fará calar-se. Face a
uma sociedade que o rejeita, ele erguerá sua vida em testemunho da verdade
(função socrática de Linguet), continuando a entregar-se a propostas e compor­
tamentos provocadores para fazer caírem as máscaras (função cínica de Linguet).
Em seu incendiário periódico, os Annales, não cessará de denunciar o des­
potismo anulante e exilador e de predizer a chegada de uma “Revolução

668
singular”. Último paradoxo: em junho de 1794, dois anos depois que se retirou
da cena pública, a guilhotina do Terror abater-se-á sobre ele, pelo motivo de ter
sido “e ser ainda partidário e apóstolo do despotismo”.
A celebridade barulhenta de Linguet em seu tempo só será igual ao
silêncio da posteridade. Silêncio rompido apenas pela reabilitação parcial à
qual Marx procederá, afirmando que Linguet “viu bem a essência da produção
capitalista”. Acrescenta ainda que ele “não é certamente socialista” mas risca
sua frase seguinte, “Ele era, de fato, um reacionário”, para declarar “Sua
polêmica (...) contra a dominação burguesa ainda em início toma, meio-séria,
meio-ironicamente, uma aparência reacionária” (Cadernos sobre a mais-valia).
E em 1865 ele escreverá que embora o homem fosse contraditório, “a Teoria
das leis civis é, não obstante, um livro verdadeiramente genial”. Mas foi preciso
esperar o último terço de nosso século para que a obra de Linguet fosse
verdadeiramente redescoberta, principalmente graças a trabalhos estrangeiros,
o que talvez não seja um acaso. Do conjunto das interpretações antigas e
recentes destacam-se três tendências: a primeira, essencialmente francesa,
perpetua a tradição, a do Linguet apologista do despotismo asiático, precursor
de Napoleão, de Maurras ou mesmo do fascismo; a segunda, pouco corrente,
vê nele um ancestral do pensamento reformista contemporâneo, ultrapassando
o marxismo antes mesmo que ele fosse formulado, ou, então, um estrategista
se fazendo de advogado do diabo para colocar historicamente a questão da
derrubada da ordem estabelecida; a terceira, dominante hoje em dia, percebe
Linguet como um homem dúbio: favorável em princípio aos proprietários, mas
também legitimando os movimentos populares; profeta da revolução do tercei­
ro estado, mas também da do quarto estado.
Em 1775, o Abade Morellet, carrasco das poderosas obras fisiocráticas,
denunciava Linguet como “um escritor vivendo em paradoxo”, tendo como
única força de espírito "a coragem da vergonha”. A vergonha não se encon­
trando onde o abade pretendia, sua fórmula deve ser corrigida: Linguet teve a
coragem de tentar tornar a vergonha mais vergonhosa ainda, entregando-a à
publicidade. Mas, como cada um sabe, o falar verdadeiro não é sempre rentável.

• Th é o r ie d e s lo is c iviles, ou p r ín c ip e s fo n d a m e n ta u x d e la so c ieté, 2 vol., Londres (Paris),


3767; rééd. Fayard, col. “Corpus”, Paris, 1984. Em torno dessa obra: L e llr e s s u r la “th é o r ie d e s
lo is c iv i le s ” (...), Amsterdam, 1770; R é p o n se a u x d o c te u r s m o d e r n e s (...), s.l, 1771; D u p lu s
h e u r e u x g o u v e r n e m e n t (...), Londres, 1774; T h éo rie d u lib elle (...), Amsterdam, 1775. Sobre a
centena de publicações de Linguet sem contar os 19 volumes dos A n n a le s p o liíiq u e s, c iv ile s et
litté r a ir e s (...), 1777-1792, reportar-se à bibliografia levantada por D. Gay Levy.

► [Abade Morelle], T h éo rie d u p a ra d o x e , Amsterdam, 1775; Marx, O e u v re s c o m p lè te s, ed.


Rubel, Callimard, Pléiade; Jean Cruppi, Un a v o c a t jo u r n a lis te a u X V l l f siè cle, L in g u e t, Paris,
1895; H. R. G. Craeves, The political Ideas of Linguet, E c o n o m ica , 1930, págs. 40-55; Francis
Doré, S im o n -N ic o la s-H e n ri L in g u e t (1 7 3 6 -1 7 9 4 ), Memorial do direito rom ano e da história do
direito, Faculdade de Direito de Paris, 1960, datilografado; Hans-Ulrich Thamer, R e v o lu tio n u n d
R e a k lio n in d e r fra n zõ sis c h e n S o z ia l-K r itik d e s 18. Jah rh u n d erts. L in g u e t, M ably, D abeuf,

669
Frankfurt am Main, Humanitas-Studien, 1973; V. Volguine, L e d é v e lo p p e m e n t d e la p e n s é e
so c ia le en F ra n ce au X V I í f (siècle), Ed. de Moscou, 1973; Ginevra Conti Odorisio, S.N.H.
L ín g u e t, D alV A n cien R é g im e a lia R iv o lu z io n e , Facoltà di scienze politiche, Università di Roma
(Milão), 1976; Henri Grange, Les réactios d’un adversaire des philosophes: Linguet, R ev. H ist.
L itt. d e F ran ce, 1979, ns 2-3, págs. 208-221; Darline Gay Levy, The Id e a s a n d C a re e rs o f S. N.
H. L in g u e t, Urbana, University of Illinois Press, 1980 (fundamental); Marco Minerbi, Le idee di
Linguet, R iv. Stor. I ta l, 1981, págs. 680-734; Benjamin Paskoff, L in g u e t, E lg h tee n lh -C e n lu ry
I n te lle c tu a l H er e ttc o f F ran ce, Smithtown, Exposition Press, 1983; Francine Markovitz, L 'ordre
d e s é ch a n g e s, Paris, PUF, 1986.

A la in GAROUX.

LOCKE, John, 1632-1704

Dois tratados do governo civil, 1690

Publicados em 1690, apresentados por seu outro como uma apologia da


“Revolução Gloriosa” de 1688, os Deux Traités du gouvernement civil (Dois
tratados do governo civil) foram primeiro conhecidos como uma das mais
vigorosas críticas da monarquia absoluta, cuja repulsa se fundamentava na idéia
da necessária subordinação da atividade dos governantes ao consentimento
popular. Além de sua defesa da monarquia “moderada” inglesa, Locke foi
também um dos teóricos clássicos do liberalismo político, já que propõe uma
articulação rigorosa dos temas liberais fundamentais: a igualdade natural dos
homens, a defesa do regime representativo, a exigência de uma limitação da
soberania fundada sobre a defesa dos direitos subjetivos dos indivíduos. Os
conflitos de interpretação dos quais a obra de Locke foi objeto (sobre a coerência
de suas demonstrações, sobre sua relação com Hobbes, sobre o sentido de sua
doutrina da propriedade) falam, assim, de fato, além dos Dois Tratados, sobre a
significação histórica da filosofia política moderna.
O Primeiro Tratado é essencialmente polêmico: ele se apresenta como
uma refutação do Patriarcha, de R. Filmer (Filmer, 1949) que pretendia
demonstrar o direito dos Príncipes ao governo absoluto, assimilando a sobera­
nia à dominação primitiva de Adão sobre o mundo inteiro, que, tendo sido
recebido das mãos de Deus, ao longo da História, fora transmitido aos
monarcas; o Segundo Tratado visa, ao contrário, a estabelecer positivamente
“a origem, os limites e os fins verdadeiros do poder civil” (Locke, 1965, pág.
305; 1977, pág. 37). As duas obras formam, porém, um todo; o sistema de
Filmer baseia a defesa da monarquia absoluta na idéia de que "os homens não
nascem livres”, mas escravos (ibidem, pág. 47): as refutação dessa tese no
Primeiro Tratado permite, portanto, no segundo, basear a limitação do poder
dos governantes na idéia da liberdade e da igualdade naturais.

670
A primeira condição de uma leitura rigorosa é, aqui, não perder de vista
o caráter muito dedutivo dos dois Tratados, o que poderia fazer esquecer a
elegância e a simplicidade da exposição de Locke; sua obra aparece como um
exemplo notável do entendimento clássico: os fatos só são nela abordados para
refutar a argumentação adversa (que se pretende apoiar na autoridade his­
tórica da Sagrada Escritura), mas a doutrina proposta lhes deve muito pouco.
Está aí, parece, o primeiro paradoxo que o leitor encontra: esse “empirista”,
esse teórico da “razoabilidade” (reasonableness) mais que do que racionalismo
(E. Naert, 1973), parece basear a política muito mais numa evidência racional
do que nos dados da experiência. Esse paradoxo é o da situação das ciências
morais e políticas dentro da teoria lockeiana do conhecimento e é também o
de sua relação complexa com o fundador do direito natural moderno, Hobbes,
do qual ele é tanto herdeiro quanto crítico.

Teoria do conhecimento e Direito natural

A crítica contemporânea insistiu principalmente sobre o conteúdo da teoria


política moderna, sobre a oposição entre o individualismo igualitário das teorias
do Contrato Social e a idéia de uma ordem natural hierarquizada e finalizada,
assim como sobre as conseqüências morais da modernidade (a autonomia
progressiva da esfera dos “valores”) (Strauss, trad. 1954; Dumont, 1977). É
preciso lembrar também que a construção da nova filosofia política só pôde ser
feita graças à elaboração de uma nova concepção do conhecimento cujos
fundamentos são dados pela teoria de Hobbes da definição genética (cf. Cassirer,
1907). Saber é, segundo Hobbes, saber por meio das causas, quer dizer, pela
gênese conceituai dos objetos a conhecer; a ciência, para ele, só fala sobre coisas
que têm causas (com exceção de Deus) e das quais somos nós mesmos as causas;
Por esse ângulo se encontra apoio, com o valor eminente da geometria (“É
porque nós próprios criamos as figuras que a geometria pode ser considerada da
ordem do demonstrável” (De Homine, capítulo X, 5; trad. 1974, pág. 146), para
a possibilidade das demonstrações nas ciências morais: “A política e a ética, isto
é, as ciências do justo e do injusto, do eqüitativo e do iníquo, podem ser
demonstradas a priori; com efeito, os princípios de onde derivam o justo e o
eqüitativo e seus contrários, o injusto e o iníquo, nós sabemos quais são, quer
dizer que nós memos criamos as causas da justiça: as leis e os contratos” (ibidem,
pág. 147). A política e a moral se encontram, dessa maneira, afetadas por uma
certeza que é, ao contrário, recusada às ciências naturais: "Sendo dado que as
causas das coisas naturais não estão em nosso poder, mas na vontade divina, e
que a maior parte (e certamente o éter) é invisível, não podemos deduzir suas
propriedades de suas causas, já que não as percebemos.”
A partir daí duas linhas de evolução são possíveis.
A primeira, em Spinoza, conduz à universalização do método genético e
à abolição das restrições que Hobbes impunha à ciência: reconhecendo que
tudo tem uma causa (mesmo Deus, Causa sui) e negando que a força
demonstrativa da definição genética resulte da continuidade entre nosso ato

671
produtor e sua produção, afirmando, ao contrário, a identidade natural entre
nosso entendimento e o entendimento divino, Spinoza desliga o novo método
da fundação subjetiva que Hobbes lhe havia oferecido (cf. Guéroult, 1974,
págs. 486487).
Locke, ao contrário, se situa muito claramente na corrente que vl na
significação para nós da ciência moral e política o fundamento de sua supe­
rioridade sobre as ciências naturais: segundo ele, as mesmas idéias que nos
impedem de construir a priori uma ciência natural análoga à geometria nos
autoriza, ao contrário, a afirmar a certeza absoluta da ciência moral. Não é que
não possamos ter nenhum conhecimento dos corpos: simplesmente esse nos é
dado pela experiência, “nós somos obrigados a considerar as coisas mesmas, tais
como elas existem, em vez de considerarmos nossos próprios pensamentos”
(Locke, 1972, liv. IV, XII, 9, pág. 537). Para que uma ciência raciona], a priori,
da Natureza fosse possível, seria preciso que tivéssemos das próprias coisas
idéias absolutamente adequadas das quais poderíamos deduzir o conjunto das
propriedades dos corpos; ou as idéias das substâncias que estão “fora de nós”
{ibidem, II, XXX, 5, pág. 198) são por isso mesmo apenas cópias derivadas de
seus objetos, de seus “arquétipos” que não podemos conhecer por não as termos
produzido. Também, se uma ciência experimental da Natureza for possível será
porque a verdadeira natureza das coisas exteriores continua desconhecida para
nós. O empirismo de Locke que, ao contrário dos grandes racionalistas cartesia-
nos, postula uma heterogeneidade profunda (e não uma simples diferença entre
o finito e o infinito) entre o entendimento humano e o entendimento divino,
estabelece, portanto, solidariamente o valor da experiência e a impossibilidade
de uma física a priori-. porque nós não produzimos o Mundo, temos dele apenas
um conhecimento experimental e mediato.
Não acontece o mesmo com as ciências morais. Aqui, com efeito, as idéias
são para si mesmas seus próprios arquétipos, já que elas não remetem a nada
diferente dos produtos de nosso entendimento: as idéias morais ou políticas
(Justiça, morte, propriedade, roubo, etc.) não copiam as coisas que existiriam
fora de mim, mas exprimem convenções, aceitas por meu entendimento, de
acordo com o outro (pelo qual a moral não poderia ser fundada sobre apenas
o desejo individual, mas sobre a intersubjetividade estabelecida pelo uso de
uma linguagem comum). As noções morais, como as noções matemáticas
aparecem, portanto, como idéias complexas (modos mistos) constituídas em
última análise por idéias simples, mas que, enquanto idéias, algumas só são
produzidas por nada menos do que o espírito. Por exemplo, a idéia de roubo:
ela contém várias idéias simples (mudanças de possessão de um objeto, sem o
consentimento do proprietário, etc.) (ibid. liv. II, XII, 25, pág. 119), mas, dentro
de sua unidade e de sua complexidade, ela não significa nada diferente daquilo
que o espírito pretende fazê-la exprimir.
No essencial, Locke defende exatamente a mesma tese que Hobbes: o
conhecimento do justo e do injusto é mais certo do que o da natureza, já que
as idéias representam apenas as exigências de nosso entendimento, elas são
transparentes, na medida em que procedemos a uma análise dos termos

672
empregados, por definições claras. A análise estabelece o caráter contraditório
ou confuso das concepções imorais ou, na política, doutrinas portadoras de um
conceito errôneo dos fins do Estado. Assim, "a moral é tão capaz de demons­
tração quanto as matemáticas, já que se pode conhecer perfeitamente a
essência real das coisas que os termos de moral significam” (ibidem, III, XI, 16,
pág. 419); as idéias morais e políticas poderão, portanto, encadear-se em
demonstrações rigorosas: “Por exemplo, esta proposição: Não poderia haver
injustiça onde não mais existisse propriedade, é tão certa quanto alguma
demonstração que esteja em Euclides, pois a idéia de propriedade sendo um
direito a certa coisa, e a idéia do que se designa pelo nome de injustiça sendo
a invasão ou a violação de um direito, é evidente que, essas idéias sendo assim
determinadas e assim chamadas, posso saber de maneira tão certa que essa
proposição é verdadeira quanto sei que um triângulo tem a soma de seus três
ângulos igual à soma de dois ângulos retos. Outra proposição de igual certeza:
nenhum governo concede uma liberdade absoluta, pois, como a idéia do
governo é um estabelecimento da sociedade segundo certas regras ou leis das
quais ele exige a execução, e como a idéia de uma liberdade absoluta é para
cada um o poder de fazer tudo o que lhe agradar, posso também estar certo
da verdade dessa proposição tanto quanto da de algumas que se encontram na
matemática” (ibidem, IX, III, 18, pág. 454). (Sobre todos esses pontos, cf. J.
Tully, 1980, págs. 3-35.)
Essas análises não são tautológicas; elas visam, certamente estabelecer o
caráter contraditório das máximas contrárias à moralidade ou à política justa,
mas pressupõem também um critério positivo de estimação das regras políticas
ou morais: essas devem ser antes de tudo inteligíveis para nós.
E aqui que aparecem os três aspectos mais característicos da concepção
lockeiana da ciência política:
1) antes de tudo a ciência será normativa: não se trata ainda, como será
o caso de Vico, de dizer que a história humana real é mais inteligível do que
a natureza porque nós a fizemos, trata-se, porém, mais precisamente, de dizer
que as normas da ação futura podem ser rigorosamente definidas já que, para
tudo que não depende da Natureza, a idéia é produtora de seu objeto;
2) por esse fato mesmo, a ciência da ação não poderia estar baseada sobre
fatos ou sobre convenções não-criticadas, mas chama para si um método de
descoberta racional e uma ordem de exposição demonstrativa, dos quais o
Segundo Tratado é um bom exemplo (cf. Tully, 1980, págs. 33-34);
3) enfim, e nisso Locke está mais próximo de Hobbes do que nunca, essa
concepção tende necessariamente a colocar em primeiro plano uma concepção
subjetiva dos direitos, que dá as premissas da noção moderna dos Direitos do
homem. Dizer, efetivamente, que, se a política é uma ciência rigorosa, é porque
o sentido daquilo que fazemos não poderia ser para nós absolutamente opaco,
é dizer também que há certos fins subjetivamente necessários que não
podemos procurar por meio da formação do corpo político que não teria
nenhum sentido se essas metas não fossem atingidas. Para o próprio Hobbes,
teórico rigoroso do absolutismo, o sentido original do contrato é de ao menos

673
preservar a segurança, já que é ela que os homens procuraram ao deixar o
estado natural. Para Locke, cuja pintura do estado natural é menos negra do
que a do Leviatã, os direitos subjetivos que o governo civil deve respeitar e
preservar são muito mais extensos.
A doutrina de Locke não é, no entanto, uma simples refusão liberal da
de Hobbes. Ela opera uma reconstrução do conjunto dos fundamentos da
filosofia política; na teoria do conhecimento, na doutrina dos direitos subjeti­
vos e na teologia, Locke utiliza um mesmo modelo: o da criação consciente ou
da obra (making).
Já encontramos esse modelo na teoria do conhecimento: as idéias arqué-
tipas nos dão acesso à essência real das coisas já que elas são produtoras de
seu objeto; como o observa J. Tully (op. cit., pág. 22), isso significa “que,
designando o conhecimento que o homem tem do mundo como arquétipo,
Locke assinala que é nesse domínio que o homem está, epistemologicamente
falando, em uma posição similar à de Deus”. Isso parece confirmar a idéia de
que, longe de moderar a Revolução de Hobbes, Locke se afastou mais ainda
da tradição (Strauss, 1954): esse ponto de vista pode ser admitido com a
condição de que se leve em conta que a emancipação proclamada do co-
nhecimento prático não funciona sem a reafirmação de uma subordinação
radical do Homem a Deus.
É aqui que intervém as conseqüências propriamente jurídicas da doutri­
na de Locke: se o conhecimento arquétipo é normativo, o fato da criação é a
última fonte do direito, que é primeiro o direito subjetivo do criador. Está aí o
sentido da célebre e muitas vezes mal compreendida doutrina lockiana da
propriedade (Segundo Tratado, capítulo V, a cada passo): a fonte da proprie­
dade é o trabalho, isto é, a atividade produtiva consciente pela qual o indivíduo
cria o valor do objeto. Por um lado, certamente, o vínculo entre a teoria
“subjetivista” do conhecimento e a primazia dos direitos subjetivos está
evidente aqui mas, correiatamente, a mesma doutrina implica uma subordina­
ção rigorosa dos direitos naturais (subjetivos) à lei natural editada por Deus.
Como Criador (maker) consciente e voluntário do Homem, Deus tem sobre sua
obra um direito, que faz dele sua propriedade: os direitos do Homem têm
portanto como correlato necessário a realização dos fins desejados por Deus
e o cumprimento pelos homens de seus deveres para com ele, segundo uma
concepção da lei da natureza que Locke nunca renegou, dos Essais sur la loi
de la Nature (Ensaios sobre a lei da Natureza) (Locke, 1970) aos Deux
Traités.
No centro da doutrina de Locke, encontra-se, portanto, a idéia de que, ainda
que, na ordem teórica, nosso entendimento e o de Deus sejam radicalmente
heterogêneos, na ordem prática, nossas faculdades apresentam alguma analogia
com as de Deus. Tomemos, por exemplo, a refutação da tese de Filmer segundo
a qual, exceto Adão e os soberanos que o sucederam, os homens não têm
qualquer direito original ao Domínio (Primeiro Tratado, IV): ela se apoia sobre
a idéia de que cada homem foi feito “à imagem de Deus e à sua semelhança” e
é, a partir desse fato, capaz de ter Domínio (Locke, 1965,1, cap. IV, 30).

674
A obra de Locke é, assim, característica do papel que desempenhou um
certo cristianismo na formação do individualismo moderno (cf. Dumont, 1981).
Se o cristianismo tende a aumentar (e não a reduzir) a importância dos deveres
morais originais, ele tende, também, ao estabelecer a relação do criador ou do
operário com sua obra, fundamento da dominação e da propriedade, a estragar
a representação tradicional da hierarquia. É o que mostra, por exemplo, a
crítica da assimilação por Filmer da dominação dos monarcas ao poder
paternal. Para Filmer, a procriação dá ao pai um direito sobre seus filhos já
que estes devem àquele suas vidas e suas existências; para Locke a procriação
não tem nada de criação no sentido estrito da palavra: “Aqueles que dizem
que o Pai, diz ele, dá a Vida a seus filhos estão de tal maneira cegos pelos
pensamentos monárquicos que não se lembram mais, como deveriam, de Deus,
que é o Autor da Vida e Aquele que a dá: É somente dele que temos a vida, o
movimento e o Ser.’” Completamente ao inverso de Filmer, o Segundo Tratado
estabelece que o poder paternal ou, melhor, parental, longe de derivar de um
direito original de dominação, “procede de um dever que incumbe [os pais] de
tomar conta de sua descendência, enquanto dure a condição imperfeita da
infância” (Locke, II, cap. VI, 58; 1965, pág. 348,1970, pág. 106).
Doutrina muito moderna, que tende a promover a igualdade entre a mãe
e o pai, que reduz a importância educativa da coação (cf. os Quelques pensées
sur Téducatiori), que faz da preparação para a maioridade (como idade da
independência e da liberdade) o fim último da Educação e o fundamento da
Autoridade dos pais; doutrina que também, para seu autor, não poderia ser
separada de suas raízes cristãs: Se a procriação fosse criação, a relação
originária da dependência direta entre o homem e seu criador é que seria,
juntamente com os direitos subjetivos inalienáveis, colocada em questão.
Nos Dois Tratados, a lei natural, desejada por Deus, permanece, portan­
to, exatamente a ratio essendi dos direitos subjetivos; ela implica a conserva­
ção da Humanidade (de si mesmo e do outro) e pressupõe a partir desse fato
um mínimo de sociabilidade natural, que impede considerar o Estado Natural,
à maneira de Rousseau, um estado de solidão dos indivíduos. Inversamente, a
idéia de direito subjetivo (que pressupõe a do poder do operário e do criador)
aparece como a ratio cognoscendi da lei da Natureza: porque sabemos que
temos direitos sobre nossas obras, devemos admitir que temos deveres para-
com nosso Criador.
A coerência da doutrina dos Deux Traités du gouvemement civil depende,
portanto, da idéia de que o fundamento teológico da moral concorda com a
doutrina dos direitos subjetivos. Compreende-se, assim, a importância dos confli­
tos que impuseram os intérpretes de Locke sobre a autenticidade de seu
cristianismo, mesmo se se estimar, além disso, que, em si mesma, a noção de
direitos subjetivos pode passar sem fundamento teológico. Para Léo Strauss, por
exemplo, estabelecer que as referências de Locke ao cristianismo são, senão
hipócritas, pelo menos sem importância prática, é mostrar que a verdade dos
Dois Tratados é o utilitarismo e o desdobramento sem limites do "espírito do
capitalismo”, isto é, do espírito de aquisição ou, para falar como Aristóteles, da

675
má crematística (ciência da produção das riquezas)(Strauss, 1954, pág. 255).
Para J. Tully, ao contrário, a referência à iei natural de auxílio mútuo instituída
por Deus permite compreender que a "posse da propriedade” não consiste na
paixão da aquisição, mas, ao contrário, no “dever cristão de liberalidade e de
caridade” (Tully, 1980, pág. 176).
A obra de Locke, todavia, não é a única, desde Guillaume d’Ockham, em
que um cristianismo antiescolástico vem expor uma teoria política a “subjetivis-
ta”, e sabe-se que as noções de Contrato Social e de direitos subjetivos têm sua
própria lógica, bastante independente de suas origens histórias. É essa lógica
que aparece nas concepções propriamente políticas e jurídicas de Locke, isto
é, em sua teoria das metas do governo civil e em seu conceito da propriedade.

Do Estado Natural ao governo civil

Como em todas as grandes teorias do direito natural moderno, as funções


do governo civil são deduzidas, nas obras de Locke, das condições de sua
formação, isto é, da estrutura do Estado Natural e das razões que conduzem
os homens a se constituírem em corpo político.
O caráter polêmico do Dois Tratados, no entanto, torna difícil às vezes
determinar a posição própria de Locke. O Patriarca, de Filmer, na realidade,
chega diretamente da condição originariamente não-livre dos homens à neces­
sidade do governo monárquico absoluto; Locke, parece, vai diretamente da
refutação da primeira tese de Filmer (Primeiro Tratado) à teoria da soberania
limitada e à defesa do direito de resistência (Segundo Tratado). A partir desse
fato, a relação de sua doutrina com aquelas de seus predecessores imediatos
ou de seus contemporâneos é bastante difícil de se estabelecer exatamente, já
que estas chegam muitas vezes, de premissas idênticas, a conseqüências
opostas. Em Hobbes, por exemplo, a idéia de Igualdade natural dos homens
conduz a um panagírico do governo absoluto, de preferência monárquico; em
Pufendorf, ela se articula sobre a negação de todo direito de resistência ao
Soberano no Estado Civil. P. Laslett chegou mesmo a sustentar que, his­
toricamente, ao contrário da interpretação corrente, a obra de Locke não
poderia ser tomada como uma crítica a Hobbes, mas como essencialmente
determinada pelas necessidades da refutação de Filmer (P. Laslett, em Locke,
1965, pág. 89). Mesmo se nos parece impossível acompanhá-lo até aí, concluí­
mos de fato que é exatamente da polêmica contra Filmer que é preciso partir
se se quiser compreender a significação histórica dos Dois Tratados.
Num ensaio brilhante e profundo, L. Dumont opõe o Patriarca e os Dois
Tratados como dois exemplos típicos, um do “holismo ”tradicional e o outro
do "individualismo" moderno. Como se lê na obra de Filmer, “1) A ênfase está
sobre a sociedade ou sobre o grupo, como um todo construído sobre a
subordinação: o rei ou pai reina por delegação do mestre último, o Criador; 2)
Essa idéia de subordinação se aplica não somente aos homens, mas também a
todos os seres terrestres, que Deus confiou explicitamente ao reino do homem
(Adão ou, de maneira mais definida, nos é dito, Noé)”; em Locke, ao contrário,

676
“a subordinação é jogada por cima do muro e com ela o vínculo que ela
mantinha entre as relações entre homens e as relações entre homens e
criaturas inferiores: um corte entre as duas categorias fica estabelecido e
institucionalizado. Entre homens e não-homens é um assunto de propriedade:
Deus deu a terra à espécie humana para dela se apropriar - e, de maneira
análoga, o homem é no Segundo Tratado a obra e a propriedade de Deus.
Quanto aos homens, não há entre eles diferenças inerentes, nem hierarquia:
eles são todos livres e iguais aos olhos de Deus, e isso ocorre tanto mais que
toda diferença de posição entre eles tenderia a coincidir com a propriedade de
um sobre o outro" (L. Dumont, 1977, págs. 69-70). Existe aí, incontes-
tavelmente, uma representação surpreendente da oposição entre as con­
cepções tradicionais e a visão do mundo de Locke. Na verdade, quer se fale
dos direitos subjetivos ou da lei natural, a problemática dos Dois Tratados é
radicalmente anti-hierárquica-, no primeiro caso, notar-se-á que a liberdade
natural supõe ao mesmo tempo a independência e a igualdade e subordina a
autoridade política ao consentimento; se, em compensação, parte-se da lei
natural, vê-se, como mostramos, que a identificação da dependência de ser
propriedade do Criador ou do “Operário” divino (maker) estraga toda a idéia
de uma dependência originária e intransponível de um ser humano com
relação a outro.
Resta, contudo, outra coisa, da qual é preciso, também, prestar conta:
Locke não se apresenta tanto como um inovador, porém mais como o defensor
de uma tradição contra uma doutrina nova, a da monarquia de direito divino
“que não se teve suficiente espírito para descobrir até um período bem recente”
(I, I, 4; 1965, pág. 177; 1977, pág. 46), “da qual só se começou a ouvir falar
quando a divindade da época contemporânea a revelou para nós” (II, VIII, 112,
1965, pág. 388; 1977, pág. 140). Inversamente, a idéia de que os homens são
originalmente livres e iguais e de que a origem dos governos é uma livre
associação é defendida de acordo com as mais antigas tradições: “A grande tese
de Sir Robert Filmer é que os homens não são naturalmente livres... Se esse
fundamento falha, todo o edifício desmorona com ele, e é preciso deixar os
governos reencontrarem seus antigos modos de constituição por meio dos
procedimentos voluntários e do consentimento dos homens, que se utilizam de
sua razão para se unirem em sociedade” (I, II, t; 1965, pág. 178; 1977, págs.
4849).
É preciso, certamente, fazer aqui a parte dos artífices da polêmica, mas
deve-se também reconhecer que a consciência, que Locke tem, de se opor a
uma doutrina moderna não é desprovida de fundamento.
Q que, parece, o autor dos Dois Tratados percebe bastante bem é que as
teorias do absolutismo se distinguem profundamente da tradição pelo fato de
elas reduzirem a complexidade das relações sociais unicamente ao esquema
da dominação absoluta.
De Aristóteles a São Tomás de Aquino, as doutrinas clássicas que
repousam sobre uma concepção objetiva do direito impedem por isso mesmo
postular a existência de direitos subjetivos absolutos de dominação: o direito

677
é o que retorna a cada um no âmbito de uma ordem que ele não criou. No caso
de Filmer, ao contrário, quer se tratasse do monarca, do chefe de família ou
do proprietário, a hierarquia se apresentava como o exercício pelos dominantes
de um direito subjetivo que nada podia limitar a não ser um poder de
dominação superior: as funções sociais da autoridade eram menos importantes
do que a vontade arbitrária daqueles que a detinham.
Inversamente, as críticas de Locke se inspiram numa problemática
geral individualista e igualitária, aparecem como apologia da tradição inglesa
da common law contra a “doença francesa” do absolutismo (Laslett, em
Locke, 1965, pág. 75 e segs), e contra as concepções jurídicas que a ele estão
ligadas. Explica-se, assim, que, bastante freqüentemente, seja difícil saber se
o adversário de Locke é Filmer ou Hobbes (cf., por exemplo, II, VIII, 92, pág.
371; 1977, pág. 127).
A interpretação do Segundo Tratado deve, portanto, levar em considera­
ção duas exigências distintas da doutrina de Locke: é preciso, ao mesmo tempo,
retomar a doutrina do contrato social contra a idéia de que os homens não
seriam naturalmente livres e, contrariamente a Hobbes, opor o espírito da
common law ao absolutismo estatal.
É assim, parece-nos, que se pode dissipar o paradoxo aparente da
concepção lockiana do Estado Natural. O Segundo Tratado começa por uma
descrição bastante idílica do Estado Natural, apresentado como um período
feliz de comunismo primitivo, como um estado de liberdade, mas não de
licenciosidade (II, II, 6; 1965, pág. 311; 1977, pág. 78) para terminar com uma
teoria sobre a origem do governo civil inegavelmente próxima da de Hobbes,
mesmo se baseando sobre uma concepção mais liberal da Autoridade política.
No Estado Natural, escreve, “o homem goza da liberdade incontrolável de
dispor de si mesmo ou de seus bens, mas não de destruir sua própria pessoa
nem nenhuma criatura que esteja sob sua posse, salvo se algum fim mais nobre
do que apenas a conservação venha a exigi-lo. O Estado Natural é regido por
um direito natural que se impõe a todos e, somente recorrendo à razão, que é
esse direito, a humanidade inteira aprende que, todos sendo iguais e inde­
pendentes, ninguém deve lesar um outro em sua vida, sua liberdade nem seus
bens... Cada um se atém não somente a se conservar a si próprio e a não
abandonar voluntariamente o meio onde subsiste, mas também, na medida do
possível e todas as vezes que sua própria conservação não está em jogo, a zelar
pelo resto da humanidade, isto é, salvo para fazer justiça contra um delin­
qüente, não destruir ou enfraquecer a vida de outra pessoa, nem o que tende
a preservá-la, nem sua liberdade, nem sua saúde, nem seu corpo, nem seus
bens” (II, II, 6; 1965, pág. 311; 1977, pág. 78).
Por que, nesse caso, os homens sairiam dessa condição feliz? Porque o
exercício de cada um desses dois direitos naturais que são o castigo dos
criminosos tendo em vista a prevenção e a busca da reparação dos danos
sofridos é, na ausência de um juiz comum, fonte de conflitos, cada um se
achando ao mesmo tempo juiz e parte. Em Locke como em Hobbes, a origem
do governo e da sociedade civil é, portanto, em última análise, exatamente a

678
necessidade de sair do “incessante conflito que nasce da própria lei natural”,
quer dizer, do direito de cada um de fazer o que lhe parece conveniente para
assegurar sua conservação (Strauss, 1954, págs. 238-239). Isso quer dizer que,
por isso, a concepção lockiana do estado natural seja incoerente e que a
antropologia do Segundo Tratado seja idêntica à do Leviatât É preciso, aqui,
distinguir realmente entre a) o problema dos limites que as condições do
Contrato Social impõem à soberania e b) o problema das fontes do direito.
a) A força da doutrina de Hobbes é primeiro deduzir os limites da soberania
das condições da associação. A ciência política, como já vimos, é normativa; ela
determina as razões que podemos ter para agir e decidir. Ora, se os homens
deixam o estado natural para evitar a arbitrariedade no regulamento de suas
diferenças, eles não poderão se satisfazer com uma situação que transferiria a
um só dentre eles o poder de ser juiz e parte; “Como se, diz Locke, no dia em
que os homens deixaram o estado natural para entrar em sociedade, tivessem
convencionado que todos seriam submetidos à coação das leis, exceto um só, que
guardaria intacta a liberdade do estado natural, acrescentando a ela a força do
poder e a liberdade do estado natural, acrescentando a ela a força do poder e a
licença da impunidade. Isso eqüivaleria a crer que os homens são bastante
estúpidos para se protegerem cuidadosamente contra as malfeitorias que fui­
nhas, ou raposas, cometessem contra eles, já que encontram prazer e descanso
em se deixar devorar pelos leões" (II, VII, 93; 1965, pág. 372; 1977, pág. 127; cf.
também II, II, 13; 1965, págs. 316-317; 1977, pág. 82).
O Estado absolutista, longe de aparecer como uma garantia contra o
estado de guerra, representa de fato em si mesmo um estado de guerra entre
os príncipes e o povo; isso porque a transgressão pelos poderes públicos dos
limites da autoridade deles constitui um ato de guerra ou de rebelião contra o
qual o povo pode legitimamente exercer um direito de resistência à opressão
(cf. II, XVII, 203-207; 1965, pág. 448 e segs.; 1977, pág. 194 e segs.; II, XIX,
239; 1965, pág. 473 e segs.; 1977, pág. 215 e segs.).
O povo, portanto, permanece o juiz supremo da maneira pela qual os
governantes cumprem sua missão, já que ele é "a pessoa que lhes deu o poder
e que guarda, nessa qualidade, a faculdade de revogá-los” (II, XIX, 240; 1965,
pág. 475; 1977, pág. 217).
A teoria de Locke apresenta uma originalidade entre as concepções do
século XVII; ela não se confunde nem com a de Hobbes (que identifica o
contrato social e a formação do poder soberano) nem com as doutrinas que,
como a de Pufendorf, distinguem entre um pacto de associação e um pacto de
submissão: o vínculo entre o povo e os poderes públicos não é um contrato
mas um tmst, isto é, uma missão de confiança ou um cargo que o povo confia
àqueles que o representam. Dizer que existe entre o povo e o soberano um
vínculo contratual, seria realmente sugerir que, por um lado, o povo aliena sua
soberania e, de outro, que os titulares do poder público tiram vantagem do
contrato pelo qual eles se comprometem; essas duas teses seriam inaceitáveis
para Locke: “Se bem que as partes possam estar ligadas entre si por uma
relação contratual, os membros do povo não têm obrigação contratual para

679
com o governo, e os governantes se beneficiam do governo somente como
membros do ‘corpo político’” (I, 93). São apenas deputados do povo, encarre­
gados de missão que podem ser mandados embora se falharem em suas
missões (II, 240; P. Laslett, em Locke, 1965, pág. 127).
Os Dois Tratados do Governo Civil são, a partir desse fato, uma das
grandes teorias do regime representativo: o povo não está subordinado aos
governantes, ele é a instância suprema para estimar a ação desses governantes,
todavia, contrariamente à doutrina de Rousseau, os poderes públicos não são
simples executantes da vontade do povo, já que o poder legislativo é delegado.
Além do problema da extensão dos poderes dos governantes, a noção de
trust testemunha também que, mesmo nas teorias modernas, o direito conserva
necessariamente uma significação objetiva, que obriga à realização de certos
fins. Hobbes já designava o papel do Estado pelo termo trust: “O cargo do
soberano (quer se trate de um monarca ou de uma assembléia) consite no fim
para o qual o Poder Soberano lhe foi confiado (the end for which he was
trusted with the Sovereign Power), isto é, a obtenção da segurança do povo;
a Lei da Natureza o obriga a provê-la e a prestar contas dela a Deus, o autor
dessa lei, porém a mais nenhum outro” (Leviatã; capítulo 30, citado por B.
Gilson, em Locke, 1977, pág. 88). Para ele, entretanto, o trust não é, propria­
mente falando, obrigação jurídica, já que o poder soberano é o único criador
do direito positivo. Em Locke, ao contrário, o termo adquire uma significação
muito mais ampla: ele designa o conjunto das faculdades das quais uma pessoa
jurídica usufrui sem tirar vantagens dela; a autoridade dos pais sobre os filhos,
por exemplo, não provém de uma propriedade, mas de um trust (confiança):
"O poder que os pais exercem sobre os filhos procede do dever que lhes
incumbe de tomar conta de sua descedência, enquanto dure a condição
imperfeita da infância” (II, VI, 58, 1965, pág. 348; 1977, pág. 107). Pedindo
emprestado o termo trust à língua jurídica inglesa para designar as funções
governamentais, Locke quer, portanto, resolver um problema do mesmo tipo
daquele que, mais tarde, os constituintes franceses reencontrarão quando
forem elaborar a teoria da representação e da soberania nacional: como fazer
concordar o conceito de soberania com a limitação dos poderes dos gover­
nantes? Como pensar sobre a relação de representação que substitui a vontade
do povo pela de seus representantes, mas mantém, entretanto, essas últimas
em uma certa dependência com respeito ao povo? A solução esboçada por
Locke tem de notável o fato de colocar menos ênfase sobre a vontade soberana
do que sobre o que Duguit chamará mais tarde as missões do serviço público
dos governantes: sua teoria é nisto “subjetivista” do que a de Hobbes.
b) De Hobbes a Locke, não há somente a passagem de uma teoria do Estado
absoluto para uma concepção mais liberal da limitação da soberania; há também
uma mudança na concepção da relação entre o direito e o Estado: se o próprio
poder legislativo está subordinado ao cumprimento de um trust, é também
porque o direito preexiste à formação do Estado. Está aí sem dúvida a diferença
essencial entre Locke e Hobbes; F. Hayek chegou mesmo a considerar que, se o
artificialismo de Hobbes anuncia o construtivismo moderno (isto é, o andamento

680
que privilegia a ordem consciente e deliberadamente construída), e funda o
positivismo jurídico que reduz o direito à lei colocada pelo Estado, a doutrina
de Locke estaria mais de acordo com a idéia de uma ordem espontânea, cujos
poderes públicos só teriam que garantir a não-perturbação da ordem e repousaria
sobre uma concepção antipositivista do direito, segundo a qual o alcance da
própria lei deve ser limitado (Hayek, 1981, t II, págs. 50-56).
É certo que o Segundo Tratado contribuiu com uma grande parte para
a formação espontânea do direito, anterior à concepção do corpo político:
"Com efeito, não é toda convenção que põe fim ao estado natural entre os
homens, mas exclusivamente aquela pela qual todos se obrigam juntos e
mutuamente a formar uma sociedade única e a constituir um único corpo
político; quanto aos outros compromissos ou convenções, os homens os podem
concluir entre eles sem sair do estado natural. As promessas e os mercados de
troca, etc., que concluem, em uma ilha deserta, os dois homens dos quais fala
a História do Peru, de Garcilaso de La Vega, ou que um suíço e um índio
concluem nos bosques da América, são obrigatórios, mesmo que estejam, entre
eles, em um estado natural perfeito; pois a verdade e o respeito da palavra dada
pertencem aos homens enquanto homens e não como membros da sociedade”
(II, II, 14, 1965, pág. 317; 1977, págs. 82-83).
Existe, portanto, uma formação espontânea do direito, anterior ao
aparecimento do Estado, cuja função é mais de garantir do que de criar o
direito. Este não se reduz, além disso, às relações contratuais: inclui diversas
missões ou “cargos” naturais, como a educação das crianças.
O liberalismo de Locke está fundado sobre uma concepção antiestadista
do direito: no estado natural, os homens já gozavam de um certo número de
vantagens, às quais eles não poderiam renunciar, e estão submetidos a
obrigações das quais nada os poderia dispensar. O Estado terá portanto como
missão proteger essas aquisições, sem poder atentar contra elas, e os homens
só renunciarão a um mínimo, isto é, ao direito de punir. O ganho que traz o
nascimento da sociedade política e do governo é de permitir aos homens
“salvaguardarem mutuamente suas vidas, suas liberdades e suas fortunas”,
quer dizer, sua propriedade, cuja preservação aparece como a finalidade do
contrato social: a importância da doutrina de Locke depende, portanto, de sua
teoria tão controvertida da propriedade.

Propriedade e subjetividade

A doutrina lockeiana da propriedade, exposta no capítulo V do Segundo


Tratado foi objeto de múltiplas interpretações, muitas vezes contraditórias. Às
vezes viu-se em Locke um precursor das doutrinas socialistas porque ele fazia
do direito à conservação e aos meios de subsistência um direito natural e
porque ele via no trabalho o fundamento real da propriedade: se o Estado deve
garantir os direitos naturais, não deve, então, assegurar a todos os meios de
subsistir? Se é pelo trabalho que o homem se apropria dos bens naturais, não
é aos trabalhadores que devem pertencer os produtos do trabalho? Outros, ao

681
contrário, conservadores ou marxistas, denunciaram em Locke o represen­
tante típico do "espírito do capitalismo” (Strauss, trad. 1954, pág. 255) ou do
ideal moderno de apropriação ilimitada e de acumulação das riquezas (Mac-
pherson, trad. 1971, pág. 218 sq.): se) com efeito, Locke admite que, em um
primeiro tempo, a propriedade era limitada àquele cujo uso pessoal era
possível (o que exclui a acumulação), foi para estabelecer melhor que "a
invenção da moeda e a convenção tácita que lhe reconhece um valor es­
tabeleceram, por via de consentimento, possessões mais vastas e o direito de
guardá-las” (II, cap. V, § 36; 1965, pág. 335; 1977, pág. 96).
Existiria assim um Locke “socialista” e um Locke “capitalista”. Essas
interpretações pecam por um certo anacronismo e, principalmente, negligenciam
um aspecto essencial da doutrina, já que reduzem a propriedade à possessão dos
bens, enquanto Locke entende o termo propriedade em um sentido muito mais
amplo que inclui “a vida, a liberdade e os bens” (II, cap. IX, §123; 1965, pág. 395;
1977, pág. 146), isto é, tudo o que pertence como propriedade particular a um
indivíduo e que não se poderia tirar dele sem seu consentimento. A única
propriedade privada original é para Locke a que cada um guarda de sua própria
pessoa, sobre a qual “ninguém tem o direito, só ele mesmo” (II, cap. V, § 27;
1965, pág. 328; 1977, pág. 91). No capítulo V, certamente, trata-se, sobretudo, da
propriedade dos bens, mas a idéia de que há na propriedade um núcleo
inalienável que se confunde com a personalidade subjetiva, e que não depende
da lei natural instituída por Deus, também não se encontra em plano anterior: se
o trabalho fundamenta a apropriação pessoal é, primeiro, porque há indivíduos
que são proprietários de sua própria pessoa (cf. o § 36). Salvo se se considerar
a obra de Locke destituída de toda coerência, deve-se admitir que uma inter­
pretação exata do capítulo V não pode ignorar, e menos ainda contradizer, a
primeira identificação da propriedade com o conjunto do bens subjetivos.
Entretanto, é precisamente essa identificação que coloca os problemas mais
importantes: segundo a interpretação dela que se dá, considerar-se-á que a noção
de direitos subjetivos não tem outro sentido senão o de basear a propriedade dos
bens (como o diz a crítica marxista das doutrinas do direito natural moderno)
ou, ao contrário, que o alcance da defesa lockiana da propriedade dos bens é
determinada e limitada peleis exigências que se ligam à idéia de direito subjetivo.
O capítulo V do Segundo Tratado tem como objeto explicar como a
apropriação individual dos bens naturais é possível e legítima, enquanto Deus
deu a todos os homens a posse e a fruição comuns dos bens deste mundo.
Trata-se realmente de opor às concepções de Filmer, que só conhece a
propriedade privada e fundada sobre o direito original, a idéia de que, segundo
a lei natural e divina, as riquezas naturais foram dadas a todos os homens, e
não apenas aos descendentes machos de Adão, segundo um direito de primo-
genitura. A propriedade privada dos bens é, portanto, o que é preciso explicar,
já que ela é derivada e não original (cf. Tully, 1980 pág. 55 e segs.).
O “fato gerador do direito de propriedade” sobre os bens será, portanto,
a atividade do indivíduo, o trabalho: “Todas as vezes que [o homem] faz um
objeto sair do estado em que a Natureza o colocou e o deixou, ele mistura aí

682
seu trabalho, ele junta aí alguma coisa que lhe pertence e, a partir desse fato,
ele se apropria dele” (§ 27; 1965, pág. 329; 1977, pág. 91).
A propriedade comum primitiva dos bens implica, portanto, que a única
propriedade privada original seja a que o indivíduo tem de sua própria pessoa;
o indivíduo só se torna proprietário dos bens materiais na medida em que
transforma a natureza, segundo o desígnio de Deus. Parece, portanto, que,
logicamente, a propriedade dos bens esteja subordinada à propriedade no
sentido mais amplo, isto é, à conservação da vida e da liberdade. Mais ainda, é
com a única condição de admitir o caráter derivado da propriedade dos bens que
se pode compreender por que o conceito de propriedade inclui “a vida, a
liberdade e os bens”: a propriedade é o conjunto daquilo que se pode legitima­
mente retirar de um indivíduo sem seu consentimento.
Em duas retomadas, todavia, Locke parece ir mais longe, para aparecer
como um profeta da acumulação capitalista (Macpherson, 1971): a)quando faz
do produto do trabalho do servidor a propriedade do mestre (§ 28) e b) quando
analisa os efeitos da invenção da moeda.
a) No § 28 do Segundo Tratado, para justificar o fato de que as terras
primitivamente comuns se tornam minha propriedade quando eu as trabalho,
Locke escreve: “Assim, a relva que meu cavalo comeu, a turfa que meu servidor
fendeu e o mineral que eu extraí, em todo lugar em que tinha direito em
comum com outros se tornaram minha propriedade sem a cessão nem a
aceitação de quem quer que seja. O trabalho, que me pertencia, fixou meu
direito de propriedade, retirando esses objetos do estado comum em que eles
se encontravam" (1965, pág. 330; 1977, págs. 91-92).
Em algumas páginas brilhantes, Macpherson apoiou-se sobre esse texto
para fazer de Locke o teórico do salariado capitalista. Quando Locke escreveu
que o mestre é proprietário do trabalho de seu servidor, não queria somente
dizer que ele adquiriu, por convenção com ele, a propriedade do resultado
desse trabalho, mas que o trabalhador alienou sua própria atividade: na medida
mesmo, diz Macpherson, em que o trabalho é a propriedade do trabalhador, o
trabalho é alienável, “pois, no sentido burguês do termo, a propriedade não é
somente o direito de usar ou de usufruir de uma coisa; é também a de dispor
dela, de trocá-la por outra, em resumo, de aliená-la” (Macpherson, 1971, pág.
236). Fundando a propriedade sobre o trabalho, Locke justificaria, assim, mais
os “direitos” do empreendedor capitalista do que os do trabalhador. J. Tully
mostrou exatamente qual é o defeito dessta interpretação: “Esse talvez seja o
sentido burguês da noção de propriedade, mas não é o sentido de Locke, nem
o do século XVII inglês... A vida, a liberdade, a pessoa, o direito aos meios de
proteção e de conforto são todos ‘propriedades’, mesmo que elas não possam
ser trocadas nem alienadas. Mais ainda, é absolutamente impossível, segundo
o conceito lockiano de pessoa, que o trabalho de qualquer um seja alienado.”
(Tully, 1980, pág. 142).
De fato, para Locke, as relações entre mestre e servidor são relações entre
homens livres: tudo o que o servidor abandona, por convenção, é produto de
seu trabalho, mas o mestre não pode dirigir esse trabalho em si mesmo

683
(atividade produtora), que só poderia ser, enquanto tal, alienado. Se se insiste
em trazer à luz os limites de Locke, eles se atêm mais a sua ligação com uma
concepção pré-capitalista do trabalho do que com sua pretensa apologia do
capitalismo nascente.
b) A gênese da moeda e suas funções sociais (§§ 46-81) colocam um
problema do mesmo tipo. Unindo ao ouro e à prata, “por capricho ou
convenção”, um valor que seu “uso real” não lhes conferia, os homens
destruíram os limites que o uso pessoal dos bens materiais impunha à
apropriação das riquezas e descobriram o caminho para a riqueza indefinida
da acumulação. Para Macpherson, isso implica que, desde o estado natural, os
limites primitivamente destinados à apropriação foram abolidos com a inven­
ção da moeda e que, desde o consentimento tácito sobre o valor do dinheiro,
o direito à aquisição ilimitada foi fundado como direito natural (1971, pág. 224
e segs.). Para Tully, ao contrário, a função do Estado civil será de restabelecer
uma ordem de acordo com a lei natural e divina que o aparecimento da moeda
perturbou (Tully, 1980, pág. 151 e segs.).
Essas controvérsias mostram bem a originalidade da situação histórica
de Locke: teórico individualista da propriedade, ele é também o defensor de
uma concepção mais tradicional que subordina o usufruto dos direitos subje­
tivos ao cumprimento da lei natural instituída por Deus e inclui uma crítica
moral do amor sceleratus habendi.
Não pensamos, contudo, que a significação da obra de Locke se reduza
a esse enraizamento histórico. A doutrina da propriedade está, certamente,
bem no âmago do Segundo Tratado do governo civil, mas a unidade do
conceito de propriedade só é pensável se se admite a subordinação da
propriedade dos bens à personalidade e à liberdade humanas. A propriedade,
em seu sentido mais amplo, é, portanto, a tradução concreta da subjetividade
e da liberdade, que não têm sentido se os produtos de minha atividade me são
totalmente estranhos. Nesse sentido, a doutrina lockeiana da propriedade é
estritamente análoga à sua concepção de autoridade política e à sua teoria do
conhecimento: quer se trate de riquezas materiais, das instituições políticas ou
das noções morais, é a subjetividade humana que é criadora e que funda o
valor econômico, a legitimidade política ou a validade conceituai. Nessa
filosofia não é o hubris da filosofia que se desenvolve nem o sonho de
dominação total ou do saber absoluto: trata-se, ao contrário, de disciplinar a
razão e a vontade humanas para impedir que as produções do indivíduo se
tornem estranhas a ele e contra ele se voltem. Esse é, talvez, o último sentido
da “racionalidade”.•

• Tu-o tr e a tise s o f G o v ern m e n t (1690), uma edição crítica por Peter Laslett, Cambridge UP,
1960, 21 edição corrigida, 1963, reed. em M e n to r B o o k s, New American Library, 1965; E ssa ys
on th e lauí o f N a tu re (1662), edições latina e inglesa, ed. W. Von Leyden, Oxford, Clarendon
Press, 1970; E s s a i p h ilo so p h iq u e c o n c e r n a n t V e n te n d e m e n t h u m a in (1690), trad. por Coste,
reed. Paris, J. Vrin, 1972; D e u x iè m e T ra ité d u g o u v e r n e m e n t civil, trad. por B. Gilson, Paris, J.
Vrin, 1977.

684
► Sir Robert Filmer, P a tr ia r c h a a n d o th e r p o litic a l w o rk s (1680), ed. P. Laslett, Oxford, Basil
Btackwell, 1949; Thomas Hobbes, D e h o m m e (1658), trad. por P.-M. Maurin, Paris, A. Blan-
chard, 1974; Emst Cassirer, D a s E rk e n n tn isp ro b le m in d e r P h ilo s o p h ie u n d W in sse n sch a ft
d e r n e u e r e n Z eit, t II, Berlim, 1907; Louis Dumont, H o m o a eq u a lis, 1 1.: G en èse e t ép a n o u is-
s e m e n t d e V id eo lo g ie é c o n o m lq u e , Paris, Callimard, 1977; Idem, La genèse chrétienne de
1’individualisme. Une vue modifiée de nos origines, em L e D ébat, n8 15, outubro de 1981; John
Dunn, T he p o litic a l T h o u g h t o fJ o h n L o ck e , Cambridge UP, 1969; Martial Guéroult, S p ln o z a ,
L II, L ’A m e, Paris, Aubier-Montaigne, 1974; Friedrich-A. Hayek, D roit, lég isla tio n e t lib e rté
(1976), trad., Paris, PUF, 3 volumes publicados, 1981-1983; C. B. Macpherson, L a th é o rie
p o litiq u e d e 1’in d iv id u a lis m e p o s s e s s if (1962), Paris, Callimard, 1971; EmiÜenne Naert, L o c k e
o u la ra lsso n n a b ilitê . Paris, Seghers, 1973; Léo Strauss, D r o it n a tu re l e t h isto ire (1953), Paris,
Plon, 1954; James Tully, A D isc o u r se o n P ro p e rty. Joh n L o c k e a n d h is a d v e s a ríe s , Cambridge
UP, 1980.

Philippe RAYNAUD.

LOLME, Jean-Louis de, 1741-1806


C onstituição da Inglaterra ou estado do governo in glês, 17 7 1

Essa obra, apesar de esquecida, desempenhou um papel importante na


história das idéias políticas: difundiu o conhecimento do sistema político da
Inglaterra e estabeleceu, assim, um certo modelo liberal que teve grande
influência até a segunda metade do século XIX. Publicada em 1771, sob o título
Constitution de VAngleterre ou État du gouvernement anglais comparé avec
la forme républicaine et avec les autres mortarchies de VEurope, depois em
1775, em Londres, sob o título The Constitution o f England or an Account o f
theEnglish Government, conheceu umas cinqüenta edições e teve considerá­
vel repercussão: foi só nos anos 1860 que essa voga ininterrupta cessou, como
se, com a fixação do liberalismo político, a obra houvesse perdido sua impor­
tância de combate.
O mais notável foi que de Lolme parecia ligado, de maneira contraditória,
a dois grandes referentes políticos do pensamento do século XVIII: Rousseau
e Montequieu. Genebriano* de origem, partidário dos "representantes" ou
democratas na grande luta que dilacera a cidade, tomou posição desde 1765 a
favor de Rousseau, então perseguido, e da democracia popular. Porém, exilado
na Inglaterra, em contato com esse contexto de nivelamento, de Lolme
tornou-se, a partir de 1768, um partidário apaixonado do “modelo inglês”: isso
chegou a ponto de fazê-lo discípulo de Montesquieu e, principalmente, do
famoso capítulo 6 do livro XI do Esprit des lois, lido muitas vezes como um
elogio ao regime inglês. De Lolme só iria desenvolver esse mesmo elogio uns

* Na época, Genebra, fazia parte da França (Nota da tradutora).(De abril de 1798 até 1814).

685
vinte anos depois, escrevendo uma espécie de “Espírito das leis inglesas”. Mas,
então, como conceber a relação entre o militantismo de democrata em seu
perído genebriano (rousseausista) e essa aproximação “positiva” de uma
realidade política erigida em modelo?
Essa ambigüidade poderia bem ser o sinal do interesse próprio da obra
de de Lolme: vínculo entre essas duas tradições - dedutiva e experimental,
normativa e positiva - do pensamento político francês. De Lolme fornece uma
“projeção” da democracia moderna, nos anos que precedem a Revolução, que
terá efeitos importantes quanto à impregnação de uma cultura política prestes
a desabrochar.

A metodologia sócio-política

Para situar esse projeto em seu próprio lugar, convém, portanto, analisar
a estrutura de sua argumentação.
Ora essa argumentação depende do método empregado. Por um lado, ele
será qualificado de empírico, pois de Lolme, estranho à nação inglesa, pretende
abordá-la de um ponto de vista que se pode batizar tardiamente de etnográfico.
Seria alguma coisa como uma etnografia política, na verdade, da qual ele
sugere o programa, sob pretexto de fazer desculpar sua pretensão: visto do
exterior, o sistema revela melhor sua coerência, de modo que é “uma espécie
de vantagem” (pág.3). Ora, trata-se de uma revelação: “Porém, um estrangeiro
fica impressionado vendo desenvolverem-se, todas ao mesmo tempo, as partes
de uma constituição que, ao mesmo tempo que leva a liberdade ao seu auge,
prevê o que parecem ser seus inconvenientes verdadeiros; vendo, finalmente,
serem executadas de repente coisas que havia visto até então muito mais como
desejáveis do que possíveis. Ora, é preciso que se esteja realmente impressio­
nado para experimentar essa espécie de plenitude, que nos leva a apreender
um princípio geral” (pág. 5).
Assim é, portanto, “a constituição inglesa” aos olhos de de Lolme: uma
espécie de “princípio vivo”. Daí a ambição dedutiva, complementar da visão
empírica: trata-se de extrair o princípio político puro da Inglaterra: “Como o
geômetra, para descobrir as relações que procura, começa por liberar sua
equação dos coeficientes e de outros números que a atrapalham, sem a
constituir propriamente; da mesma maneira, pode ser vantajoso para aquele
que procura as causas que produzem o equilíbrio de um governo, estudá-las
separadamente desse aparelho de frotas, exércitos, comércio exterior, de
possessões vastas e afastadas; resumindo, de todas essas grandes coisas que
mudam tão fortemente a face de uma sociedade poderosa, mas que não
influenciam mais essencialmente sobre seu princípio” (pág. 4). Compreende-se,
portanto, a originalidade da obra: exibir, pela primeira vez de maneira sis­
temática, o princípio político inglês. Sem isso, o modelo, aliás, célebre, não
pode ser verdadeiramente objeto de conhecimento. Está aí uma ilustração da
"política considerada uma ciência exata, isto é, suscetível de demonstração
ativa” (Advertência da edição de 1790, XXI).

686
Investigação sobre o “princípio” inglês

Porém, o atrativo do princípio inglês nada mais é do que o princípio do


liberalismo moderno. Como o subtítulo da obra sugere, trata-se de uma espécie
de antropologia política: de Lolme procurará, portanto, o “princípio” do
sistema inglês, notadamente “as razões da diferença que se encontram entre
seu governo e o da França”, o que é retornar a nada menos do que procurar
as “causas da liberdade da nação inglesa” (capítulo I).
Essas “causas”, de Lolme as procura na gênese histórica do poder na
Inglaterra: o livro I se empenha, assim, em recensear as “vantagens” do modelo
inglês, por meio dessa aproximação histórica, depois tematiza as “vantagens”
em si mesmas, no funcionamento do próprio sistema - dupla aproximação
combinada, “diacrônica” e “sincrônica”, que assinala a originalidade do méto­
do, procurando traçar seu “objeto" com rigor.
A história, todavia, é apenas um ponto de partida, de modo que, desde o
capítulo III, o funcionamento do sistema é abordado. A monarquia francesa,
exemplo de uma monarquia autoritária aos olhos do autor, serve de ins­
trumento para a colocação em evidência da evolução privilegiada da monar­
quia inglesa em direção a esse sistema “liberal” que tem o autor a seu favor.
Trata-se de compreender como, desses dois “povos vizinhos, um atingiu o auge
da liberdade", enquanto “o outro se sujeitou sucessivamente à mais absoluta
monarquia” (15). Foi preciso encontrá-la dentro de uma unidade imediata do
Estado sob a autoridade da Coroa inglesa, ainda que, paradoxalmente, a
unidade real se tenha imposto durante muito tempo na França, sem que isso
tivesse sido vantajoso parq a liberdade. De Lolme liga, assim, paradoxalmente
a eclosão da liberdade à rapidez e à eficácia da realeza inglesa (o que permite
explicar sua harmonia). Existe aí uma espécie de raciocínio implícito sobre a
evolução histórica: adquirida mais rápido, a unidade feudal da monarquia
pôde, mais cedo, deixar a liberdade política moderna se desenvolver, de modo
que “o olho já descobria as sumidades verdejantes desse horizonte feliz, em
que deviam reinar um dia a filosofia e a liberdade” (37). O sentido da história
é, para o autor, a substituição dos “princípios de obediência passiva, do direito
divino e do poder indestrutível” pelo “amor à ordem” e pelo “sentimento da
necessidade de um governo entre os homens” (54).
Ora, uma etapa decisiva nesse sentido é o que forma precisamente “a base
da constituição da Inglaterra”, a saber, “é ao Parlamento apenas que pertence
o poder legislativo, isto é, o poder de estabelecer as leis, revogá-las, mudá-las,
e explicá-las” (56): o rei é só o terceiro poder (em relação às duas Câmaras).
Enquanto tal, ele é soberano, sendo, além, disso encarregado da administração
pública: suas diversas prerrogativas não podem fazer esquecer essa caracterís­
tica da instância do “poder executivo” de tirar sua “capacidade política” de
“uma das ordens do Parlamento”. Além disso, a constituição coloca limites
claros ao poder do rei, que relativizam sua função de “mestre da lei”, sem tirar
seu poder. Também o sistema dispõe de um regulador, uma "reforma periódi­
ca” (74). É esse equilíbrio sutil que de Lolme analisa. Tanto sobre o plano

687
"geral" (da nação) quanto sobre o particular (do indivíduo), a liberdade
permanece o eixo do sistema. Em resumo, constatam-se "os recursos das
diversas partes do governo da Inglaterra, para balancearem-se um e outro”,
“sua ação e reação mútuas produzem a liberdade da constituição, a qual não
é outra coisa senão o equilíbrio entre os poderes que governam” (191).

O sistema da “liberdade”

A obra se propõe, então, a recensear as “vantagens” desse sistema. Elas


se encontram resumidas em três pontos, ao mesmo tempo diferentes e
complementares: em primeiro lugar, a reunião “ou unificação do poder
executivo: o fato de ter lançado no mesmo lugar toda a força do poder
executivo”, pela elevação de “um grande cidadão”, Cidadão maiúsculo de certa
maneira, que tem por efeito paradoxal limitá-lo mais facilmente.
A segunda vantagem reside na “decisão do poder legislativo”. Enfim, “o
poder de propor leis” é “colocado entre as mãos do povo” (223): o Parlamento
inglês “toma ele próprio em suas mãos o grande livro do Estado” (228).
Unidade executiva, divisão legislativa, iniciativa parlamentar: essa é a combina­
ção salutar do sistema inglês.
Chegando a esse ponto, de Lolme se choca com uma questão considerável,
que o confronta com Rousseau: a questão da representação popular. Ele
examina, no capítulo V do livro II, que forma nesse sentido uma censura (pausa),
"se for vantajoso para a liberdade política que todo o corpo do povo faça sufrágio
para passar suas leis” (234). Aí onde o autor do Contrato social (capítulo XV)
pensava que o povo inglês só era livre “durante a eleição dos membros do
Parlamento”, voltando a ser “escravo” “logo após essa eleição”, de Lolme coloca,
ao contrário, o fundamento da liberdade pública nessa delegação que é o meio
essencial de "estabelecer” a liberdade. Em outros termos, "o povo retiratia pouca
vantagem da faculdade de nomear seus representantes se, ao mesmo tempo, ele
não lhes conferisse toda sua autoridade legislativa” (II, 5). De Lolme insiste de
maneira original sobre o fato de que o povo não poderia ser a garantia de seus
próprios interesses, de modo que só seus representantes encarnam a coisa
pública. Compreende-se que a ruptura com Rousseau tenha acontecido junta­
mente com a adesão a esse “partido” do povo inglês de “conferir todo seu poder
a seus representantes" (II, 8), pois “uma constituição representativa coloca o
remédio nas mãos daqueles que sentem o mal”, enquanto “uma constituição
popular coloca o remédio nas mãos daqueles que causam o mal”.
Mas isso supõe, em compensação, que “aqueles em quem o povo coloca
sua confiança” não têm "nenhuma parte no poder executivo" (II, 10); a Coroa
torna-se, assim, a garantia objetiva, pelo “inteiro seqüestro da autoridade
executiva”, do exercício com pleno rendimento da instância legislativa. A
eleição periódica dos membros do Parlamento e a liberdade de imprensa (II,
12-13) asseguram esse contrapeso democrático, que se desenvolve no direito
de resistência (II, 14).
Aí termina a parte propriamente dedutiva da obra. Na última parte (caps.

688
XV-XXII), de Lolme vai se dedicar a confirmar o que é considerado daí para frente
como adquirido —a excelência do sistema inglês para o desenvolvimento da
liberdade política —por uma série de argumentos: “provas tiradas dos fatos” (cap.
XV) sobre o êxito das revoluções na Inglaterra, o modo de execução das leis que
são aplicadas para “a liberdade do súdito” (XVI). Ao que se juntam algumas
considerações sobre o futuro do sistema e as reformas exatas a serem trazidas.
A obra termina com um pedaço da bravura que reúne estranhamente esse
discurso, tão moderno em sua ênfase, com a perspectiva mitológica, caracterís­
tica da retórica do século. A liberdade é representada aí como a divindade
desconhecida, caçada de um lado ao outro do mundo, tendo conhecido dez
séculos de exílio, daí para frente “ao abrigo em sua cidadela”: "ela reina sobre
uma nação tão digna de seus favores que ela se esforça por estender o império
de sua divindade”. Consolação para o filósofo, em um mundo dominado pelo
escravo, “vendo que a liberdade desvendou, enfim, seu segredo para o gênero
humano e assegurou para si um asilo”.
Esse foi na verdade o ganho do sistema inglês: dar asilo à liberdade ou,
em termos mais técnicos, assegurar um sistema permanente de regulagem: o
que ele admira aí é menos a realização do Summun bonum político do que a
“tendência constante” para corrigir o governo e melhorar as leis. Está aí o
meio, modesto, em comparação com a Vontade Geral, de Rousseau, porém
mais seguro aos olhos do teórico da constituição inglesa, para “obter em geral
a felicidade do povo”.

Atrativos e importância da obra

Onde situar exatamente a importância de La Constitution de VAngle-


terret Antes de tudo, em sua propaganda do sistema inglês, que o levou a uma
escala européia: foi por meio da obra de de Lolme que se instituiu uma
associação entre o discurso liberal e a referência inglesa. Sem contar a
repercussão interna na Inglaterra, a obra influenciou até o liberalismo alemão
do começo do século XIX. Sua esfera de influência pode ser limitada em 1822,
data da última edição inglesa, ou em 1868, data da última de todas as edições.
A obra aparece, portanto, ligada ao destino histórico do liberalismo político em
busca de legitimação.
Pode-se certamente relativizar as afirmações de de Lolme, como mostrou
J.-P. Machelon: superestimação da independência do executivo e da inde­
pendência da Coroa, funcionamento do poder legislativo. Se a sociologia
política se verifica deficiente nessa obra, não se trata por isso de um simples
discurso a favor de uma causa partidária. Jean-Louis de Lolme, sobre as bases
formuladas anteriormente, põe no devido ponto um método que se pode
identificar como “pré-sistêmico”: o sistema político é descrito realmente, de
maneira formal e incompleta, como “sistema” sui generis, com suas próprias
engrenagens. Além disso, de certa maneira, de Lolme apreendeu ao vivo, com
uma modernidade de tom e de estilo surpreendentes, a idéia de fenômeno
político. Como ele explica em sua “Advertência”, ao justificar por que um

689
genebriano tenha podido apreender tão bem um sistema estrangeiro, evocando
as dissensões de seu próprio país: “mudanças tão consideráveis dentro de um
Estado que, ainda que pequeno, é independente e encerra em si mesmo os
princípios que o fazem agir, deveriam me dar naturalmente alguma noção da
teoria dos governos” (p. IX). Existe aí a idéia implícita de uma homologia
sistemática dos sistemas políticos, permitindo estabelecer seu princípio funcio­
nal.
Enfim, sobre o plano da filosofia política, de Lolme, sem ser simplesmente
“o Montesquieu inglês” do qual falava Disraeli, preparou o caminho para uma
linha de pensamento que se desenvolveu como uma espécie de alternativa
política do Contrato social. É revelador que um Mallet du Pan tenha definido
seu espírito como a demonstração da “vaidade” do “preconceito” da "soberania
do povo”, “por meio da experiência e da razão, pelo exemplo atual da Inglaterra”
(Mercure de France, janeiro de 1789). Se essa não era sua finalidade, era pelo
menos um de seus efeitos: de modo que A Constituição da Inglaterra pode servir
para marcar a veia liberal, que desenvolveu uma concepção da democracia sem
o postulado da soberania popular. Sob esse aspecto, é um documento maior
sobre a racionalidade política liberal, em um momento decisivo de sua evolução.

• C o n stitu tio n d e ÍA n g le te r re o u é ta t d u g o u v e r n e m e n t a n g la is c o m p a r é a v e c la fo rm e
r é p u b lic a in e e t a v e c le s a u tr e s m o n a rc h ie s d e V E urope, Amsterdam, F. Van Harrevelt, 1771,
1774,1778; Londres, 1785; Cenebra, 1787,1788,1789,1790; Breslau, 1791; Paris, 1819,1822;
33 edições inglesas entre 1775 e 1868). Nossa edição de referência: a de Genebra, de 1790, 2
vols., Manguet & Cie.

► E. Ruff, J.-L. d e L o lm e u n d s e in W erk ü b e r d íe v erfa ssu n g E n glan ds, Berlim, 1934;


Jean-Pierre Machelon, L e s id é e s p o litlq u e s d e J.-L. d e L o lm e , Paris, PUF, 1969.

Paul-Laurent ASSOUN.

LOYOLA, Inácio de, Santo, 1491-1556


As Constituições da Companhia de Jesus

Abem da verdade, Santo Inácio de Loyola não deixou obra que se possa
chamar de “política”. Entretanto, se se tomar o adjetivo no sentido amplo,
como definindo a arte de governar uma sociedade humana, as Constituições
merecem esse epíteto. Essa obra foi o fruto de uma criação contínua. Cinco
meses antes de morrer, Santo Inácio ainda manuseava seu texto. Ele não foi
publicado durante sua vida, como se, por humildade, tivesse querido deixar a

690
seus sucessores o cuidado de colocar o ponto final na obra e de difundi-la. Isso
foi feito, dois anos após a morte do Santo, por ocasião da Congregação-Geral
de 1558.
Como as Regras monásticas tradicionais - quer se pense na Regra de São
Bento ou na de São Bruno - , as Constituições representam uma obra-prima
do espírito humano. É preciso certamente um gênio para traçar as condições
da vida espiritual e material, e também administrativa de uma Comunidade, e
isso dentro da perspectiva de uma duração indefinida. Certamente, o texto de
base pôde receber no curso do tempo algumas modificações exigidas pela
evolução das idéias e dos costumes. Porém, o espírito que a anima não muda,
mesmo quando as letras variam, submetidas às pressões da vida.
Santo Inácio de Loyola colocou-se por inteiro em suas Constituições. Da
mesma forma, jamais deixou de meditar sobre elas desde o dia —era 1539 —
em que ele próprio e seus companheiros decidiram fundar uma nova Ordem.
Era preciso estabelecer normas para essa Instituição. Santo Inácio foi encarre­
gado de redigi-las, e essa tarefa se transformou numa espécie de criação
contínua, que durou dezessete anos.
Que tipo de homem era, portanto, esse fundador e, ao mesmo tempo,
legislador?
Poucos personagens religiosos, criadores de uma comunidade, conhe­
ceram a provação de serem objeto de tão malévolas caricaturas.
O conceito mais corrente no tocante a Inácio de Loyola, mas ingenua­
mente repetido sem tanta hostilidade por parte de alguns, embora muitas vezes
em conotação malévola, é a do cavaleiro de Loyola ser antes de tudo um militar.
Diz-se que após o ferimento que recebeu no cerco de Pamplona, e que o fez
mancar até o fim de seus dias, ele teve de renunciar à carreira das armas.
Tendo-se convertido, resolveu aplicar na criação de uma ordem religiosa os
dons de comando e de domínio sobre si e sobre os outros, dos quais já havia
dado prova na corte do duque de Najera. Desejoso de chegar o mais alto
possível dentro da hieraquia da Igreja, empregou um meio que lhe pareceu
eficaz: recrutou uma espécie de milícia, dirigida para a obediência mais
rigorosa e colocou-a a serviço do Papa - o Papa branco —tornando-se ele
próprio um “Papa negro”, isto é, ocupando o segundo lugar —bem acima de
qualquer cardeal - dentro da Igreja Romana.
Acrescente-se, entretanto, que esse militar, era astuto. Ele empregou,
para chegar lá, todos os meios, inaugurando em seu comportamento com o
mundo - e singularmente com os poderosos —um método de habilidade e de
intriga que seus discípulos e sucessores colocarão em prática com sucesso. Daí
esse enriquecimento do vocabulário com as palavras “jesuíta”, “jesuítico”,
“jesuiticamente”, “jesuitismo”, simbólicas de um comportamento moral, se não
de uma doutrina, ilustrado pela casuística, os ritos minuciosos, a Congregação,
e definido dentro dos Monita Secreta...
Em vez de nos dedicarmos a refutar esse amálgama de erros e de
calúnias, preferiremos estudar e conhecer diretamente a pessoa de Santo
Inácio, tal como se a pode descobrir na leitura dos escritos que ele deixou: os

691
Exercícios espirituais, as Constituições, a Autobiografia, o Diário espiritual
e a Correspondência.
Santo Inácio de Loyola era um místico. Essa evidência, uma vez admitida,
pensa-se na famosa fórmula de Péguy e se verifica a maneira pela qual a mística
do Fundador se deteriorou em termos de política. Ora, não se hesitará em dizer
que a política de Santo Inácio estava ela mesma impregnada de mística. Todas
as medidas que não cessou de pôr em prática a fundação de sua Ordem e que
se podem qualificar, com maior ou menor exatidão, de "políticas", foram
medidas “inspiradas”.
Recordar-se-á, entre as experiências primordiais, no sentido verdadeiro
do adjetivo, aquela corrida ao pé duma touceira de cardos, sobre a qual se
debruçaram com a maior insistência os especialistas. Foi no tempo de sua
presença em Manrèse. Ele se dirigia a uma igreja, a uma milha da aldeia, e
seguia por um caminho que acompanhava o rio. Ele se sentou sobre o mato
por um momento, e os olhos de sua compreensão se abriram por inteiro. “Ele
teve a visão clara e o conhecimento de numerosas coisas, tanto espirituais
como as que dependem da fé e da cultura profana, e isso com uma iluminação
tão grande que todas essas coisas lhe pareceram novas.”
Os teólogos investigaram essa narrativa. Eles a situam dentro do panora­
ma das experiências místicas e realçam o caráter intelectual do êxtase. Inácio
de Loyola “compreendeu” como Deus havia criado o mundo. “Em todo o curso
de sua vida, com sessenta e dois anos já passados, segundo comentou com seu
secretário, que escrevia o que ele ditava de sua Autobiografia, jamais lhe
parecera ter adquirido tantos conhecimentos quanto naquela única vez.”
Se compreendeu como Deus havia criado o mundo, percebeu da mesma
forma que o ato criador é um ato de amor, e que Deus só quer uma coisa, a
saber, que Sua criatura responda a Seu amor e se dedique a reunir-se a Ele em
Sua glória.
Essa é a intuição fundamental. 0 homem só tem uma missão sobre a face
da terra: realizar a vontade de Deus, isto é, trabalhar para que todos os
homens, seus irmãos, amem a Deus e, conhecendo Seu querer, façam-se os
artesãos de Sua glória. Tudo se resume neste esquema: o amor de Deus
descendo em direção aos homens e os homens, por amor, elevando-se em
direção a Deus, não sem empenhar o maior número possível de outros homens
em elevarem-se também em direção a Deus.
Se a política é a arte de agir sobre outrem em vista de seu maior bem,
toda a política de Santo Inácio definir-se-á por esta visão: fazer partilhar por
aqueles que desejarem realmente escutá-lo sua primeira intuição, a fim de que
eles a difundam por sua vez, e que nenhum limite se oponha a esta propagação
indefinida.
Será operar uma redução indevida esquematizar a espécie de ação
multiforme de Santo Inácio de, nela ver a simples transposição, dentro da
prática concreta, de uma revelação natural, percebida outrora durante uma
duração limitada? A ressonância desses instantes privilegiados perpetuou-se,
portanto, constantemente inspiradora, durante vários decênios?

692
Ousar-se-ia propor essa visão das coisa, que alguns poderão achar
simplista, se todo o comportamento do santo, todo, e até nos detalhes, não
encontrasse sua única e verdadeira explicação dentro da força contínua da
iluminação recebida em Manrèse.
Convertido, ele teria podido querer converter outrem, recrutar discípulos
e criar uma nova Instituição, sobre o modelo de tantos outros que ele poderia
conhecer. Não. A primeira tarefa que ele se impôs foi a de amoedar, se assim
se pode dizer, a visão do Cardoner dentro de um pequeno volume que será seu
“Discurso sobre o Método”. Axioma fundamentai: Deus tem um desígnio para
mim e não é certamente o de que eu deixe escoar minha vida na desordem. É
preciso que eu ordene minha vida. É preciso que eu discirna qual é a vontade
de Deus a fim de que eu possa acomodar-me a ela. Os Exercícios espirituais
me ajudarão.
E, com efeito, Santo Inácio “dará” os Exercicos a um grande número de
retirantes desejosos de ver claro em suas vidas e de tomar um novo caminho
de partida, isto é, de “fazer eleição”.
Pretendeu-se que os Exercícios espirituais fossem um instrumento do
qual Santo Inácio se servia em sua política de recrutamento. No final de quatro
semanas de ascese, de preces e de meditação, o exercitante estaria maduro para
entrar na Companhia de Jesus. É falso. Santo Inácio e seus discípulos “deram”
os Exercícios a muitas pessoas empenhadas neste ou naquele modo de
existência, leigos ou religiosos, e que não o queriam mudar.
Na verdade Santo Inácio entrega-se totalmente à sua pequena obra e
traduz uma experiência que ele convida outrem a fazer. Na verdade também,
a passagem por essa experiência é necessária para quem quer aderir ao tipo
de vida e de ação religiosa que ele concebeu e que deriva diretamente da
primeira revelação: Inácio “viu” que Deus almeja que se conheça sua vontade
e que ela seja realizada. Ora, realizá-la é ayudar a las animas, “ajudar as
almas”, para que sua glória seja indefinidamente maior.
O pequeno livro uma vez colocado no ponto —ele foi utilizável mesmo em
um estado provisório - , Santo Inácio o propõe em torno de si. Percebe, em Paris,
que ele é acolhido com benevolência por estudantes de elite. O mês de retiro
vivido sob a direção do santo os une por um cimento que não se decomporá.
O que eles vão fazer, esses primeiros companheiros? Nem Santo Inácio nem
eles próprios sabem ainda. Essa incerteza no tocante ao futuro é extraordinária.
Ela só espanta caso não se tenha refletido sobre o que se poderia chamar
de “psicologia religiosa” de Santo Inácio, ao sair da grande iluminação de
Manrèse. Para esse homem convertido uma segunda vez, o essencial é fazer a
vontade de Deus, qualquer que seja, e é importante colocar-se na disposição
de espírito necessária para percebê-la. Afirma-se desde já a noção de “indife­
rença" que desempenhará um papel tão grande nas relações entre o compa­
nheiro de Jesus e seu superior. Aqui a diferença refere-se à escolha de atividade
oferecida a todo homem que percebeu quem é Deus e que quer trabalhar para
sua glória. Qualquer atividade é boa sob a condição de que Deus a inspire e a
ratifique. É por isso que os Companheiros, na Itália do Norte, depois em Roma,

693
entregar-se-ão a “obras” diversas e que não dependem de um mesmo plano de
conjunto. Se existe, ele tem um nome: a missão.
Santo Inácio quis agrupar em torno de si discípulos que, tendo feito os
Exercícios espirituais, se sintam disponíveis para toda tarefa, qualquer que
seja. E se, por acaso, uma dúvida se levanta sobre a exata vontade de Deus, os
Companheiros terão um recurso: dirigir-se ao papa, vigário de Deus sobre a
face da terra. Há um contraste evidente entre a liberdade de iniciativa da qual
Santo Inácio e seus discípulos gozam em seu primeiro apostolado, em Roma,
e essa cláusula de obediência dócil ao Santo-Sítio. Mas, no espírito de Santo
Inácio, a submissão a Deus e a submissão ao papa são uma só e mesma coisa.
A lista de ações “caritativas” que os Companheiros assumem é rica e
incrivelmente diversa. Uns pregam, outros ensinam, como Pierre Fabre e
Lainez, os dois teólogos do grupo. Inácio “dá” os Exercícios e prega em
espanhol. Durante o inverno do final de 1538 e começo de 1539, eles se
dedicam, todos juntos, à tarefa de socorrer os famintos. Tomam conta de mais
de 3.000 pessoas. Ao mesmo tempo, Inácio abre uma casa de acolhimento para
os judeus e os judeus catecúmenos, cria a Casa de Santa Marta para as
prostitutas arrependidas, e a Confraria das Moças Pobres, que trata de salvá-las
da prostituição. Entretanto, o grupo preocupa-se em assegurar sua coesão
dando-se um estatuto. No dia 27 de setembro de 1540, o papa promulga a bula
Regimine militantis Ecclesiae que insere a jovem Companhia entre as ordens
religiosas dotadas de um estatuto canônico.
Atividade multiforme, consagração oficial, redação aprovada de Estatutos
- as Constituições - que terão força - e que força! - de lei, tudo isso não define
uma congregação de tal modo original, salvo que cada um de seus membros
recebeu uma formação notável e que está apto a preencher qualquer missão.
Apolítica de Santo Inácio consiste, então, em não ter uma e em satisfazer
simplesmente a cada vez as demandas que lhe são endereçadas. Foi assim que,
em março de 1540 - antes mesmo que a Companhia fosse oficialmente
fundada pela bula pontificial, assinada em setembro, e antes que Santo Inácio
tivesse sido eleito primeiro Geral, em abril de 1541 - Francisco Xavier partiu
para as índias, a pedido do Rei de Portugal, João III.
O grupo já restrito dos Companheiros esclareceu-se, e Santo Inácio teve
razão em chamá-lo de Minima Societas, o que não é uma fórmula ditada pela
humildade, mas uma definição. Entretanto, cada vez mais, reclama-se ao
Fundador o envio de membros da pequena Sociedade. Eles são apreciados por
sua dupla qualidade: são “letrados” e levam uma vida exemplar.
A Companhia toma o aspecto de uma ordem missionária pronta a todos
os empregos —mas que tende essencialmente à reforma da Igreja. E significa­
tivo que os Companheiros tenham recebido - e isso desde sua chegada na
Itália - o sobrenome de preti reformati. Mais tarde ver-se-á na Companhia de
Jesus uma das empresas mais eficazes que se tenham dedicado à luta contra a
Reforma. Essa luta, Inácio e seus discípulos comprometem-se com ela, come­
çando por reformar-se eles próprios, em um esforço perpétuo de ascese, e
esforçando-se em reformar o máximo de pessoas possível em torno deles.

694
Em que se teria tornado, ao longo do tempo, essa “mínima Sociedade”?
Ela teria cumprido, segundo o voto de seu fundador, uma tarefa multiforme,
dedicada à glória de Deus e à salvação das almas, mas não teria, provavelmente,
conhecido o imenso surto nem o brilho que a História registra.
Até então, era o acaso que presidia a adoção dessa ou daquela missão e
foi o acaso ainda que determinou a grande mutação que pode ser datada dos
anos 1547-1548. Em 1547, o Duque de Gandie, Vice-Rei da Catalunha, oferece
a Santo Inácio uma Universidade de presente, e, em 1548, abre-se o Colégio
de Messina. Uma nova era começa, então, para a Companhia. Sem dúvida,
Inácio de Loyola preocupara-se sempre em dar às crianças um ensinamento
religioso e ele encorajava seus discípulos a organizarem, em toda parte que
pudessem, classes de catecismo. E, depois, muito rápido, ele tinha sentido a
necessidade de proteger os candidatos à Companhia das influências que
mestres leigos podiam exercer sobre eles e tinha aberto colégios reservados
aos futuros noviços e onde ensinariam Companheiros. Em diferentes países,
na Alemanha singularmente e na Espanha, esses mesmos Companheiros foram
convidados a dar sua colaboração a Universidades. Mas essas iniciativas
esporádicas não respondiam a um plano que Santo Inácio teria concebido nem
a uma política de ensino na qual ele se teria lucidamente empenhado.
A fundação do Colégio de Messina é bem significativa: os notáveis da
cidade pediram a Santo Inácio, pelo intermédio do Vice-Rei da Sicília, Dom
Juan de Vega, que fosse criada uma casa de ensino aberta ao mesmo tempo
aos jovens desejosos de entrar na Companhia e aos jovens que não tinham essa
vocação. Essa nova idéia de um colégio misto seduziu o Fundador. Não
somente aceitou como fez sua a fórmula e dedicou-se a abrir, em toda parte no
mundo, institutos análogos àquele de Messina. Na verdade, os ditos notáveis
haviam percebido —como muitos outros, aliás — que o ensino dado pelos
Padres a seus noviços era de tal qualidade que teria sido uma pena se não
tivesse sido aproveitado também pelos jovens leigos.
Pode-se dizer que a criação dos Colégios se tornou a preocupação maior
de Santo Inácio. A extensão da Companhia logo coincidiu com a implantação
de novos institutos de educação. 0 problema do recrutamento de um corpo de
ensinadores foi resolvido de maneira elegante: foi admitido que os candidatos
à Ordem prosseguissem sua formação religiosa ao mesmo tempo em que
assumiriam o papel de mestres.
Até o presente, como vimos, Inácio de Loyola não tem outra política além
de enviar para toda parte seus discípulos, dando a seu apostolado a dimensão
do mundo inteiro. Agora, a Companhia, sem que o Fundador tenha expressa­
mente querido, torna-se uma Ordem ensinadora. Essa mutação conduziu a
conseqüências notáveis dentro da administração romana de uma Sociedade
que só tinha alguns anos de existência. Uma cifra é significativa a esse respeito:
o das cartas que Santo Inácio, assistido por seu secretário Polanco, envia todos
os dias a seus companheiros dispersos, de um lado, e às autoridades religiosas
ou leigas com que se deve relacionar, de outro. Quando se examina a estatística
dessa correspondência —o total é 7.000 cartas —percebe-se que de repente seu

695
volume cresceu. Em 1547, Inácio enviava 87 cartas, em 1548, 301. Até seus
últimos dias, ele não cessará de escrever ou de ditar. Não é simplificar as coisas
em excesso dizer que os problemas colocados pela criação e a manutenção em
bom estado dos colégios fornecem à correspondência do santo o essencial de
sua substância. Certamente, ele continua a se preocupar com as almas e em
dar diretrizes espirituais a um grande número de correspondentes, clérigos ou
leigos. Mas os "Grandes deste mundo”, doravante, ocupam um lugar à parte e
considerável dentro desse correio.
Quando lemos a lista dos soberanos com os quais Santo Inácio manteve
relações epistolares, somos conduzidos a pensar que a política não pode estar
ausente desse diálogo de alto nível. Ela está presente em toda parte, na
verdade, e se é exato que Santo Inácio se meteu em política, foi exatamente a
partir desses anos 1547 e 1548. Porém, é preciso compreender e não dar à
palavra “política” um valor que, no caso, ela não tem. Que se pense na
significação que ela tem dentro das locuções do tipo “ciências políticas” ou
“economia política”. Muito melhor, um homem de estado pode muito bem
conduzir uma “política de defesa do patrimônio” sem que essas atividades
dependam das opções do partido político ao qual ele pertence.
Da mesma maneira, é preciso admitir que Santo Inácio, assumindo-se
encarregado-geral de uma empresa cada vez mais importante, guardou cons­
tantemente presente em seu espírito o papel “político” que ele devia desempe­
nhar. Mas esse papel é de "política religiosa”. Devotado à Igreja e ao Soberano
Pontífice, Inácio de Loyola procura antes de tudo servir à Igreja e a seu chefe,
naquele que ele vê —quaisquer que sejam as relações mais ou menos cordiais
que ele manteve durante sua vida com os quatro papas que se sucederam no
trono pontificial - como o vigário de Jesus Cristo na Terra.
Que o encarregado-geral tenha procurado assentar sua Fundação sobre
bases cada vez mais sólidas é a evidência, mas a prosperidade da Ordem não
significava nada de diferente para ele além de uma eficácia crescente do serviço
das almas em vista da glória de Deus. A despeito dos milhares de ducados que
a administração da Companhia pôde angariar, seus membros permaneceram
pobres. O dinheiro recebido foi empregado para fazer os colégios sobreviverem
— onde o ensino era gratuito — e não para elevar o nível de vida dos
Companheiros. Basta visitar, em Roma, os lugares em que Santo Inácio viveu
para compreender que o voto de pobreza, ao qual subscrevia todo noviço que
entrava na Ordem, foi respeitado eminente e exemplarmente pelo encarrega­
do-geral. O voto de humildade também. O Fundador nunca quis honras nem
para ele, nem para seus companheiros. Ele os proibiu a todos de aceitarem ser
nomeados bispos ou cardeais.
A política religiosa de Loyola incita-o não a se imiscuir nos negócios
profanos dos soberanos de seu tempo, mas a obter da parte deles apoios e
subsídios, fazendo cada um deles compreender que seu dever de príncipe
cristão está aí, na proteção material de uma Companhia que só pede para
servir. Essas solicitações foram mais longe? É preciso admiti-lo. Em uma época
em que os negócios religiosos estavam estreitamente imbricados com os

696
negócios "civis”, não se podia tentar influenciar a política religiosa de um
príncipe sem lhe fazer entender que seus esforços seriam benéficos para o
futuro de sua nação. Esse argumento subentende as requisições que Santo
Inácio endereçou incessantemente a altas personagens. Ajudem-me e vocês
serão ajudados, espiritual e materialmente. Era isso habilidade? Uma espécie
de captatio benevolentiae ingênua? Nem uma coisa, nem outra. O Fundador
sabia que a implantação de um colégio dentro de uma cidade podia trazer
grandes frutos do ponto de vista intelectual e moral, de um lado, e também do
ponto de vista do espírito público e mesmo da paz social.
Entretanto, homem de Igreja e devotado de corpo e alma à sua Igreja,
Inácio de Loyola só podia lutar, na medidade seus meios, contra os adversários
de Roma.
Simplificando as coisas, pode-se dizer que Roma estava exçosta à Refor­
ma protestante, antes de tudo, e ao ímpeto da potência turca. E certo que a
implantação dos Colégios era um meio muito eficaz de conter a heresia. Se se
examinar em um mapa da Europa os lugares onde a Companhia abriu um
instituto de ensino, perceber-se-á que eles traçam uma espécie de fronteira face
aos países protestantes. Nesse ponto, pode-se falar justamente de uma política
determinada, saída mesmo de uma estratégia.
Segundo domínio em que Santo Inácio tomou uma iniciativa política
totalmente caracterizada, a da luta contra o Império turco. Tem-se sobre isso um
documento extraordinário, uma carta enviada por Inácio de Loyola ao Padre
Jérôme Nadai —mas o verdadeiro destinatário era Carlos V na qual ele elabora
todo um plano destinado a repelir a potência turca do Mediterrâneo e a assegurar
a paz definitiva das populações ribeirinhas, expostas até então a incursões
devastadoras. Em nove pontos, Santo Inácio faz uma “exposição dos motivos”;
em dez outros ele apresenta um plano de financiamento de uma expedição naval.
Entre os “motivos” que ele expõe, há aquele de que muitos cristãos são levados
como escravos para o país dos infiéis e, no dia do Juízo Final, os príncipes terão
de prestar contas da infelicidade de tantas almas e de tantos corpos “que vale
muito mais do que suas rendas, suas dignidades e seus títulos”. A "política”
inaciana está impregnada, no início, de motivações espirituais. Resta dizer que a
dupla relação, uma com a empresa a lançar, outra com seu orçamento, sur­
preende por sua espantosa lucidez. É dia 6 de agosto de 1552. Inácio de Loyola
não tem mais do que uns quatro anos para viver. Seu projeto deve ter sido
perdido nas chancelarias. Entretanto, quinze anos após sua morte, Dom Juan da
Áustria lança-se na cruzada sonhada por ele e alcança em Lepanto, em 1571, a
vitória naval que porá termo ao expansionismo turco no Mediterrâneo.
Vimos, ao começar, a que ponto as Constituitions de la Compagnie de
Jésus (Constituições da Companhia de Jesus) apresentavam-se como um texto
de valor eminentemente político, o adjetivo sendo entendido como significando
“que se relaciona com o governo das pessoas”. Governo, a palavra é exata. A
Regra que Santo Inácio propõe a quem o quer seguir ou, melhor, a quem quer
seguir Cristo, para o bem das almas e a maior glória de Deus, é um verdadeiro
monumento em que as prescrições se ligam umas às outras como os elementos

697
de uma arquitetura sábia. Tudo está previsto dentro desse documento, desde a
admissão do candidato e as etapas de sua formação até às Condições às quais ele
deverá se submeter ao longo de sua vida. Da mesma forma, um capítulo é
consagrado à “eliminação dos ineptos”. A fórmula tem razão em desagradar. No
entanto, ela corresponde ao espírito do Instituto e não deve surpreender. Santo
Inácio, levado pelas iluminações que recebeu e persuadido de obedecer à vontade
de Deus ao criar a Companhia, acolhe jovens decididos a mudar suas vidas e a
se fazerem discípulos do Fundador. Ele lhes propõe um Regulamento; pergun­
ta-lhes se eles aceitam respeitá-lo ponto por ponto. Se o infrigem e persistem, eles
mesmos dão a prova de que seu lugar não é dentro da Companhia. Se há
indignação pela espécie de crueldade que Santo Inácio teria manifestado ao
mandar embora alguns de seus discípulos - na maioria das vezes eles se
“reclassificaram”, se é que se pode falar dessa maneira, dentro de outras ordens
religiosas —, é preciso do mesmo modo reconhecer que o gênero de vida que ele
lhes oferecia não era de tal satisfação que eles pudessem lastimar tê-la perdido.
E, depois, uma evidência manifesta-se: Santo Inácio, movido por uma
inspiração das alturas, redige Constituições que traduzem perfeitamente o
ideal que ele concebeu à força de ascese, de meditação e de pesquisa. Como
ousar-se-ia entrar na Companhia contestando, por seu comportamento, a regra
instituída pelo santo e ratificada pelos primeiros companheiros e pelo papa?
Dentro dessa regra, um imperativo retém a atenção: o da obediência.
Deus sabe que se caricaturou esse imperativo, apresentando-o como uma prova
do temperamento militar de Santo Inácio, de sua inclinação para a ditadura,
de sua vontade desumana de ser obedecido com a mais ativa vigilância! A
famosa fórmula latina perinde ac cadaver, “como um cadáver”, intervém
sempre em uma conversação sobre os jesuítas e ela é pronunciada com
sarcasmo. “Será possível que homens de cultura e inteligentes tenham aceitado
submeter-se a tal lei? Mas quem era, então, esse religioso fundador capaz de
uma exigência tão humilhante?
Procurou-se a origem dessa fórmula. Pensou-se durante muito tempo que
ela tivera nascimento em certas corporações muçulmanas de lavadores de
cadáveres. Um cadáver é dócil. Mas justamente a comparação não vale: a
rigidez cadavérica intervém rápido demais. Então acreditou-se que os ditos
lavadores faziam alusão ao estado de um corpo que permanece maleável certo
tempo após a morte. É durante esse prazo que se o deve lavar. A discussão
torna-se inútil se se aceitar uma outra hipótese: o cadáver é aquele do Cristo,
abandonado nas mãos de José de Arimatéia e de seus amigos, quando foi
descido da Cruz. É essa obediência perfeita que convém imitar.
A explicação é totalmente aceitável.
Mas a obediência inaciana não é uma espécie de meio que o Fundador
teria adotado para assegurar a coesão de sua Ordem. Ela mergulha suas raízes
na intuição do divino que inundou o solitário de Manrèse: ele percebeu, então,
quem era Deus e quanto sua vontade era adorável. A própria idéia de
desobedecer a tal ser infinitamente bom pareceu-lhe impossível. Ao contrário,
a busca da vontade de Deus e a obediência amante dessa vontade é a única

698
vocação de toda criatura. Deus, o Pai, enviou seu Filho para a Terra a fim de
ensinar aos homens essas verdades e ajudá-los a vencerem o mal para viver
melhor as ditas verdades.
Nessas condições,a obediência ao Superior será, dentro da Companhia
de Jesus, a obediência ao próprio Deus. O Superior obedecerá àquele que se
encontra acima dele. No ápice, o encarregado-geral obedecerá ao papa, repre­
sentante de Deus. Desobedecer, em qualquer grau de hierarquia que se esteja
e qualquer que seja o objeto que leve à desobediência, é ofender a Deus, é
faltar com a palavra dada, é romper em certa medida com a ordem e a harmonia
do grande Corpo ao qual se aderiu.
As narrativas que os Companheiros deixaram de sua vida comum com
Santo Inácio, como o Memorial, de Luís Gonçalvez da Câmara, estão cheias
de anedotas pitorescas, divertidas, às vezes horripilantes: vê-se o encarregado-
geral aborrecer-se por bagatelas, infligir punições que parecem desmedidas em
relação à falta cometida. O espantoso é que os culpados aceitavam a penitência
e beijavam a mão daquele que a infligia a eles.
Será preciso acreditar, verdadeiramente, que Santo Inácio conduzia sua
Companhia com a severidade de um general que sabe que a disciplina faz a
força das armadas? É exatamente o inverso que é verdadeiro, e foram os
militares que se inspiraram, para pôr ordem em suas tropas, nos princípios de
obediência inaciana —sem lhes conservar o alto espírito, naturalmente.
Considera-se também que Inácio de Loyola, como autor político das
Constituições, inspirou outros teóricos além dos militares, a saber os defen­
sores do poder autocrático. Estabelecer-se-ão as analogias que se quiser, mas
será preciso não perder nunca de vista que esse autocrata era um santo.

• Nos 75 volumes da coleção M o n u m en ta H istó ric a S o c ie ta tis Jesu , estão reagrupados, sob o
título M o n u m e n ta Ig n a tia n o , uma primeira série S a n c ti I g n a til d e L o yo la , e p is to la e e t
in stru c tío n e s, 12 volumes, Madri, 1903-1911, depois um volume, E x e rc ilia e td ir e c to r ia , Madri,
1919, e uma série em três tomos, S a n c ti I g a n tit d e L o yo la , C o n s titu tio n e s S o c ie ta tis Jesu,
Roma, 1934, 1936, 1938. Para os textos de Santo Inácio em tradução francesa, ver: J o u rn a l
sp irltu e l, trad. M. Giuliani, Paris, 1959; L ettres, trad. G. Dumergé, Paris, 1959; E x e rc lc es
sp lr itu e ls , trad. F. Courel, Paris, 1960, C o n s titu tlo n s d e la C o m p a g n ie d e J é s u s , trad. e notas
de François Courel, Paris, 1966, todas obras publicadas na coleção “Christus” nas Éditions
Desclée de Brouwer. A u to b io g ra p h ie d e s a in t Ig n a c e d e L o yo la , trad. Alain Guillermou, Paris,
Éditions du Seuil, 1962.

► P. André Ravier, Ig n a ce d e L o y o la fo n d e la C o m p a n g n ie d e Jésu s, Paris, Desclée de


Bouwer, 1973; P. Joseph de Cuibert, L a s p ir itu a lité d e la C o m p a n g n ie d e J é s u s , Roma, 1953;
Alain Cuillermou, L a v ie d e s a it Ig n a ce d e L o yo la , Paris, Éditions du Seuil, 1956; P. Hugo
Rahner, I g n a c e d e L o yo la . C o rr e s p o n d a n c e a v e c le s fe m m e s d e s o n tem p s, trad. Gervais
Dumeige, Paris, Desclée de Brouwer, 1964.

A lain CUILLERMOU.

699
LUKÁCS, GYÕRGY, 1885-1971
A destruição da razão, 1954

Entre as obras filosóficas de caráter político publicadas nesses últimos


decênios, A destruição da razão apresenta a particularidade de fazer remon­
tarem as origens do facismo alemão a uma vasta tradição filosófica e ideológi­
ca, cujo denominador comum seria o irracionalismo.
O autor se recusa a considerar o fenômeno hitleriano como um episódio
infeliz ou uma convulsão passageira da história alemã; segundo a tese funda­
mental de seu livro, a emergência do nazismo não teria sido possível sem uma
longa evolução negativa da história política e ideológica alemã, no interior da
qual as correntes de pensamento irracionalistas desempenharam um papel
não-negligenciável. Instruindo um triplo processo, ao mesmo tempo político,
ético e filosófico, contra o que ele chama de o "caráter anormal” da história
alemã, Lukács fornece um número impressionante de argumentos em apoio à
sua tese: a extraordinária popularidade da extrema direita alemã nos anos
trinta e a fraqueza da esquerda nesse momento representam o terminus ad
quem de um longo caminho político e ideológico no curso do qual, depois da
derrota dos camponeses em sua guerra do século XVI e principalmente depois
do fracasso da Revolução de 1848 e da constituição autoritária do Estado
alemão unificado, as forças e as instituições antidemocráticas se reforçaram
constantemente.
A filosofia se encontra, é claro, no centro desse livro: Lukács tenta
estabelecer nos pensadores importantes do século XIX, como Schelling, Schope-
nhauer, Kierkegaard e, principalmente,Nietzche, a existência de uma tendência
cada vez mais declarada para o irracionalismo. Foi essa tendência que criou as
condições favoráveis para a explosão irracionalista do século XX (em Spengler,
Klages ou Ernst Jünger, por exemplo), da qual o nazismo seria herdeiro e
beneficiário.
Os numerosos críticos e adversários de A destruição da razão (nenhum
livro de Lukács provocou uma tempestade igual de contestações) questio­
naram o que lhes pareceu ser uma espécie de teleologia negativa do pensa­
mento alemão: a própria idéia de estabelecer uma relação entre pensadores
como Schelling, Schopenhauer, Nietzche ou Dilthey e a emergência de uma
ideologia tão deplorável quanto o nacional-socialismo lhes parecia, senão uma
monstruosidade, pelo menos uma tese totalmente inaceitável. O subtítulo
inicial do livro: “O caminho do irracionalismo de Schelling a Hitler” cons­
ternou bom número de seus leitores, desde Ernst Bloch até Michael Theunis-
sen e, na edição definitiva das Obras de Lukács publicada por Luchterhand,
esse subtítulo veio a desaparecer.
A gênese da obra explica em grande parte seu caráter de Tendenzbuch
ou de Kampfschrift(as expressões: “livro de tendência” ou “texto de combate”
pertencem, aliás, ao próprio Lukács, a segunda se referindo, no entanto, a uma
primeira versão do livro). É preciso notar que Lukács, embora de origem

700
húngara, escreveu a quase-totalidade de suas obras importantes em alemão e
não parou desde sua juventude de se interrogar sobre o destino da cultura
alemã. É surpreendente descobrir em um texto que data de março de 1913
(resposta ao germanista francês Félix Bertaux) idéias que antecipam de uma
certa maneira a problemática da futura obra. O artigo, redigido durante a
Primeira Guerra Mundial, "Os intelectuais alemães e a guerra” (1915) pode
também ser considerado como um documento participante dessa gênese.
Depois de ter aderido, em dezembro de 1918, ao Partido Comunista Húngaro,
Lukács publica, em 1923, História e consciência de classe, durante muito
tempo sua obra mais célebre, livro dominado politicamente por um ardente
voluntarismo e por um messianismo revolucionário, que designava o proletário
internacional como o agente privilegiado.
A destruição da razão pertence ao período marxista da maturidade de
Lukács, que começa no início dos anos trinta, depois do contato fecundo com
os Manuscritos econômico-fãosóficos de Marx. A obra só pode ser compreen­
dida verdadeiramente associando-a com sua contrapartida positiva, o livro
sobre Ojovem Hegel, cuja redação principal data dos anos 1937-1938: Lukács
estuda nesse livro a gênese da dialética hegeliana, que ele vai celebrizar como
a forma mais completa da razão, atingida pela filosofia clássica alemã e a partir
da qual vai desenvolver seu processo contra a involução em direção ao
irracionalismo, tendo como pontos de partida a intuição intelectual e a filosofia
tardia de Schelling. Em 1933, pouco tempo depois de ter deixado a Alemanha
hitlerista, Lukács se instala na URSS para um longo exílio que durará doze
anos e redige o manuscrito Wie ist die faschistische Philosophie in Deuts-
chland entstanden? (Como nasceu a filosofia facista na Alemanha?) que
contém in nuce várias das idéias diretrizes da futura Destruição da razão (mas
o texto sofre um forte sectarismo, pois o autor experimentava em cheio a
dominação da famosa condenação stalinista dos social-democratas como “so-
ciais-facistas”). Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941-1942, Lukács
empreenderá uma segunda redação de sua obra antifacista, articulando-a de
maneira diferente dessa vez, em torno da oposição entre a grande tradição do
humanismo alemão (o de Coethe e de Hegel) e as correntes chamadas
irracionalistas: esse segundo manuscrito, que leva o título de Wie ist Deuts-
chland zum Zentrum der reaktionàren Ideologie geworden? (Como a Alema­
nha se tornou o centro da ideologia reacionária?), também não foi impresso
enquanto o autor ainda vivia. Um capítulo foi retomado tale quale em A
destruição da razão. É somente nos anos que se seguem à Segunda Guerra
Mundial, no começo dos anos cinqüenta, que Lukács dará finalmente uma
forma quase definitiva a seu projeto amadurecido durante muito tempo: a
gênese laboriosa desse livro, cujo título original é Die Zerstrôung der Vernunft
(publicado em 1954), retém o interesse na medida em que ela traz à luz o peso
das circunstâncias (determinando o compromisso antifacista profundo do
autor) dentro da estrutura da obra*.

* Falando dos escritos de caráter político de Lukács, pode-se evidentemente ignorar seus

701
Mais de trinta anos após, colocando momentaneamente entre parênteses
a tese mais contestada e mais discutível do livro - a de uma responsabilidade
objetiva de uma parte importante da filosofia alemã (a que Lukács chama de
“irracionalista”) na emergência do movimento nacional-socialista (es gibtkeine
“unschuldige”Weltanschauung, “não existe concepção inocente do mundo”,
é a idéia-diretriz do autor) —conviria interrogar a obra principalmente quanto
a seu aspecto metodológico. Não se deve esquecer de que se trata de um livro
importante versando sobre a história da filosofia moderna, mas que aborda seu
assunto dentro da perspectiva muito particular de uma interpretação sócio-po-
lítica dessa evolução. Lukács tenta demonstrar que a lógica interna do discurso
filosófico em Schelling, tanto quanto em Schopenhauer, em Nietzche (ao qual
é consagrado importante capítulo do livro) ou em Heidegger, está intimamente
condicionada por suas respostas às grandes questões sociais e ideológicas de
seu tempo. Ele segue a migração dos grandes conflitos sócio-políticos dentro
da pura imanência dos raciocínios filosóficos: é por meio dessa hermenêutica
que ele se esforça para demonstrar como a inclinação do pensamento para o
irracionalismo (teoria aristocrática do conhecimento, ceticismo com respeito à
ciência e à validade objetiva de seus resultados, agnosticismo, desenvolvimento
dos mitos, etc.) se produziu como um amplo desvio do pensamento de suas
verdadeiras exigências dialéticas. A oposição dialética/irracionalismo percorre
a parte mais especificamente filosófica de A destruição da razão.
A tese de Lukács se resume assim: a ideologia de extrema direita alemã não
surgiu ex nihilo (do nada), ela é a conseqüência extrema de um longo processo
de acumulação de pseudoconceitos e de fórmulas aventurosas, obtidos pela
erosão progressiva das grandes aquisições da filosofia clássica. A obra conside­
ra, por exemplo, que a crescente aceitação da “filosofia da vida” (a Lebens-
philosophie) em numerosas publicações da Alemanha pré-nazista favoreceu de
maneira considerável a força de contágio dos slogans hitlerianos. É a essa mesma
filosofia da vida que Lukács atribui uma grande responsabilidade na criação do
clima favorável ao sucesso do nacional-socialismo. Os conceitos fundamentais da
Lebensphilosophie puderam ser utilizados, graças a seu irracionalismo latente,
pelos teóricos da extrema-direita alemã: os canais ideológicos que religavam
escritos políticos e sociológicos da direita alemã à tradição da Lebensphilosophie
e da crítica romântica do capitalismo são desvendados por meio de uma análise

numerosos escritos menores, pertencentes ao primeiro período de sua militância política dentro
do movimento comunista (1919-1929), que foram reunidos na série de cinco pequenos volumes
de Politische Schrtfíen publicados pelas Edições Luchterhand, na Alemanha Federal. Porém,
ainda mais importantes e de uma atualidade muito maior, são os textos consagrados durante
os últimos quinze anos de sua vida (1956-1971) à análise muito crítica do fenômeno staliniano,
análise cujo principal motivo é a contradição profunda entre o espírito do marxismo e a prática
política de Stalin e de seus continuadores: incluídos em parte na coletânea Marxismus und
Stalintsm us (publicada, em 1969, pelas Edições Rowohlt, de Hamburgo, com um importante
posfácio do autor), esses escritos compreendem também um texto de maior envergadura,
Demokratlsieerung heute und morgen (redigido em 1968), que representa a etapa mais
avançada da reflexão de Lukács sobre as origens e a natureza do fenômeno stalinista.

702
histórica bem-constituída. A desvalorização do intelecto, denunciado como mor-
tificante, e a exaltação da vida, como força eminentemente positiva —as teses de
base da Lebensphilosophie - ,puderam ser associadas aos antagonismos cultu-
ra/civilização ou comunidade/sociedade, familiares a uma certa literatura ro­
mântica anticapitalista, e convertidas posteriormente, por sua vulgarização, em
oposição dos valores vitais da raça germânica aos valores decadentes da demo­
cracia ocidental: a teoria das raças de Houston Stewart Chamberlain (os nazistas
sempre reconheceram nele um verdadeiro precursor), mas também o solipsismo
(doutrina que considera o eu como única realidade no mundo) das culturas na
teoria de Spengler, deram abundante contribuição às teses da filosofia da vida.
Uma obra como Der Arbeiter (0 Trabalhador), de Ernst Jünger, (publicada em
1932), com a glorificação da Gestalt (configuração) do trabalhador, oposta ao
mundo decadente do liberalismo e do espírito burguês, se inscreve na mesma
filiação (já anteriormente, um livro como Prussianismo e Socialismo, de Spen­
gler, publicado em 1920, reivindicando para o prussianismo o título do verdadei­
ro socialismo, havia antecipado de certa maneira a crítica demagógica do
capitalismo desenvolvida pelo nacional-socialismo). Lukács não pára de enfatizar
que Dilthey, o fundador da filosofia da vida, e Simmel, seu continuador, teriam
sem dúvida se afastado com repulsa e horror da ideologia fascista se dela
tivessem podido tomar conhecimento: mas o fato de que a Lebensphilosophie,
por sua contribuição à subversão das idéias de razão, de cientificidade e de
objetividade do conhecimento, tenha podido alimentar o irracionalismo fascis-
tizante, lhe parece justificar sua tentativa de remontar até essas fontes para
descrever a árvore genealógica do nazismo. Discite moniti: em A destruição da
razão, Lukács quer pôr de sobreaviso a intelectualidade européia contra toda
complacência a respeito das escorregadelas para dentro do irracionalismo.
A destruição da razão foi objeto de numerosas críticas e recriminações, de
Adorno a Kolakowski, de Mazzino Montinari (um dos editores das obras de
Nietzche) a Louis Dumont (para citar apenas alguns nomes entre os adversários
mais categóricos do livro): mas é preciso constatar que a refutação foi feita
raramente em nome de uma análise crítica exata e estudada atentamente, como
uma obra dessa envergadura exigia. Sem um exame detalhado da obra, para
construir uma contra-argumentação adequada, não se pode colocá-la eficazmente
em questão. De nossa parte, pensamos que, em certos casos precisos, a argumen­
tação de Lukács está fundada sobre uma distorção do pensamento dos filósofos
que ele submete à sua crítica. Colocar o pensamento de Benedetto Croce, por
exemplo, sob o signo do irracionalismo nos parece um erro não somente porque
se ignora o sentido de sua polêmica contra Giovanni Gentile, mas também porque
a atividade filosófica de Croce, enraizada na tradição do pensamento hegeliano
e kantiano, foi atravessada pela luta contra o irracionalismo, até contra suas
conseqüências políticas funestas (ver, por exemplo, as reações virulentas de
Croce a respeito de Spengler, Klages ou Heidegger). A destruição da razão
comete ainda o erro fatal de apreender a fenomenologia de Husserl quase
exclusivamente por meio da maneira pela qual ela foi interpretada e utilizada
pelos pensadores como Max Scheler ou Martin Heidegger: o irracionalismo

703
latente da Wesensschau (a intuição da essência) de Husserl é uma tese muito
discutível, as aproximações efetuadas por Lukács entre Husserl e Dilthey não
levam em consideração de maneira suficiente a oposição de Husserl a respeito
da Lebensphilosophie, a poderosa contestação do irracionalismo nos últimos
escritos de Husserl é completamente ignorada (é somente em seus Prolegôme-
nos à Ontologia do ser social, escritos em 1970, que Lukács fará caso da luta
"heróica” de Husserl contra as deformações irracionalistas de sua filosofia). As
páginas consagradas por A destruição da razão ao pensamento de Max Weber
são também um problema: só um exame detalhado dos escritos políticos de Max
Weber, cuja oposição vigorosa contra as forças conservadoras alemãs é notória,
poderia mostrar em que medida as críticas formuladas por Lukács contra o
conceito de carisma em Weber ou a respeito de suas concessões ao imperialismo
alemão teriam ou não algum fundamento.
Livro contestado e contestável, sob alguns pontos de vista, A destruição da
razão não deixa de ser uma obra de referência na literatura crítica da história do
pensamento alemão e das origens intelectuais do fascismo: é significativo que a
crítica desenvolvida muito recentemente na Alemanha a respeito das tendências
neoconservadoras, por exemplo por Jünger Habermas, tenha encontrado moti­
vos e idéias desenvolvidas de há mais de trinta anos por Lukács.

• G esch lch te u n d K la sse n b e w u sstse in , Berlim, Malik-Verlag, 1923, reeditado com um amplo
prefácio do autor em G esa m ta u sg a b e, t 2, Neuwied, Leuchterhand, 1968; P o litis c h e A u fsd tze,
1918-1929, Darmstadt und Neuwied, Luchterhand, 1975-1979, 5 tomos; D ie Z e r stõ ru n g d e r
V ernunfí, Berlim, Aufbau-Verlag, 1954, texto retomado com ligeiras correções, em G e sa m ta u s­
g a b e, t. 9, Neuwied, Luchterhand Verlag, 1962; Von N ie tz c h e z u H itle r o d e r D e r Ir ra tio n a lis-
m u s u n d d ie d e u tsc h e P o lo tik , Frankfurt am Main und Hamburg, Fischer Bücherei, 1966, com
um importante prefácio do autor, “Uber die Bewãltigung der deutschen Vergangenheit” (“Sobre
a exorcização do passado alemão”), datado de janeiro de 1966; M a r x is m u s u n d S ta lin ism u s,
Reinbek, Rowohlt, 1970; D e m o k ra tis ie ru n g h e u te u n d m o rg en , W erke, L 3, Darmstadt,
Hermann Luchterhand Verlag, 1985 (sob urgência); G eleb tes D e n k e n . E ln e A u to b to g ra p h te im
D ialog, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1981; T ra du ções fran cesas: L a d e stru c tio n d e la raison ,
Ml, Paris, L’Arche edit, 1958-1959; H is to lre e t c o n s c ie n c e d e cla sse, Paris, Éditions de Minuit,
1960; L é n in e, Paris, EDI, 1965; L ittéra tu re , p h llo so p h le , m a rx ism e, textos reunidos e apresen­
tados por Michael Lõwy, Paris, PUF, 1978.

► Jõrg Kammeler, P o litisch e T h eorie von G eorg L u k á cs, Darmstadt und Neuwied, Luchter­
hand, 1974; Michael Lõwy, P o u r u n e s o c io lo g ie d e s in te le c tu e ls ré v o lu tio n n a ire s, Paris, PUF,
1976; Yvon Bourdet, F ig u res d e L u k á cs, Paris, Anthropos, 1972; Jacques Brun, Un g e r m a n is te
en g a g é, G eo rg L u câ k s, Oficina de reprodução de teses, Lille 111, 1979 (Diffusion Champion);
Nicolas Tertulian, G eo rg es L u kács, Paris, Le Sycomore, 1980; Nicolas Tertulian, La destruction
de la raison - trente ans après, em R é ific a tio n e t u topie, A c te s d u c o llo q u e B loch -L u kács, Actes
Sud, 1986, sob urgência.

Nicolas TERTULIAN.

704
LUTERO,Martinho, 1483-1546
À nobreza cristã da nação alemã sobre o aprimoramento do estado
cristão, 1520.

Esse texto seminal, que se inscreve entre os grandes escritos reformadores


de Martinho Lutero, interessa à história das obras polítics em alto grau: apelo
aos representantes do poder civil e social contra os abusos da Igreja Católica,
constitui o questionamento mais radical da relação de poderes que, por meio
exatamente das vicissitudes, havia definido até então o mundo ocidental.

O que importa na obra

Há, portanto, uma importância política ao mesmo tempo por sua forma
—o recurso ao poder civil, encarnado pelo imperador e pela nobreza —e por
seu conteúdo: a “desestabiiização” das próprias relações de poder. A principal
motivação permanece, todavia, religiosa: é porque o texto luterano pretende
ser jogado fora da esfera política que pode produzir esse efeito de subversão,
mesmo de princípio.
Esse texto é, enfim, uma oportunidade resultante das motivações prece­
dentes - para caracterizar a política luterana em seu conjunto, pois, abstendo-
se de produzir uma doutrina política, Lutero intervém daí para frente de
maneira muito precisa no sismo que sacode, então, a ordem sócio-política, seja
por participar dela, seja por trazer o julgamento da Igreja Reformada, dora­
vante parte recebedora dos conflitos maiores. O apelo À nobreza fixa os
princípios a partir dos quais é lícito se situarem, como se verá, os textos e as
tomadas de posição posteriores de Lutero sobre a “coisa política”. O protes­
tantismo, sob a forma doutrinai que Lutero lhe imprime, tornar-se-á um
componente maior da elaboração das doutrinas políticas, mesmo em infração
aos limites colocados por seu próprio fundador.
A natureza e o próprio projeto do escrito merecem ser enfatizados dentro
desta perspectiva: Lutero escolheu exprimir-se em alemão e não em latim,
escolhendo a língua nacional para se dirigir aos leigos - escolha que terá, além
disso, conseqüências importantes quanto à constituição da língua alemã, o que
liga o acontecimento lingüístico ao acontecimento político. Assim, ele se
inscreve na tradição dos Flugschriften, que permitem tocar diretamente, por
meio do panfleto, o mundo cristão. Essa escolha em si mesma tem, portanto,
uma importância política no sentido próprio, já que o magistério se encontra,
assim, contornado e recusado. Tanto mais que o título o indica: Lutero fala de
“o estado cristão” (Christlicher Stand) em seu conjunto, não dividido em
clérigos (geistliche Stand) e ieigos (Laienstand). Revelar-se-á por esse único
elemento a modificação semântica e conceituai imprimida de imediato à
distinção entre o religioso e o político: poder-se-ia exprimi-lo dizendo que o
religioso se “socializa”, investindo no próprio grupo humano. Acontecimento
cujas conseqüências ideológicas e sociológicas são incalculáveis no final.

705
0 estado cristão, máquina de guerra contra a Igreja

Trata-se, portanto, de atingir “os romanistas” - partidários da Roma


papista, destruindo as “três muralhas” com as quais eles se cercaram: a
superioridade do poder espiritual sobre o poder temporal, a exclusividade do
direito do papa à interpretação da Santa Escritura e o direito exclusivo do papa
a convocar o Concilio. Sobre o primeiro ponto, determinante, Lutero conta a
todo mundo paradoxalmente sobre a longa tradição que havia proibido a
pretensão do poder do imperador contra aquele do papa (cf. d'Ockham, Dante,
etc.). Mas a meta é negar à Igreja sua pretensão, menos para devolver o poder
à autoridade civil do que ao eçtado cristão inteiro, reduzindo o padre a um
funcionário do “estado cristão” em seu conjunto: “Cristo não tem dois corpos
nem duas espécies de corpos, ele tem uma cabeça e um corpo."
Uma das implicações dessa tese marca, todavia, uma nítida simpatia, ainda
que conjuntural e destinada a combater a Igreja usurpadora, pela livre extensão
do poder civil: “Eu digo que, já que a autoridade temporal foi instituída por Deus
para castigãr os maus e proteger os bons, deve-se deixar que sua ação seja
exercida e sem entraves por intermédio de todo o corpo da Cristandade” (pág.
89). Assim, “a autoridade temporal” se bem que tenha uma tarefa material...
pertence ao “estado espiritual”: em conseqüência, “sua ação deve passar sem ser
entravada no caso de todos os membros do corpo” (pág. 91).
É digno de nota o fato de que essa “politização” do corpo cristão serve
para introduzir a segunda tese, propriamente religiosa, axioma da Reforma
luterana, ou seja, a contestação do mestrado da Igreja sobre a Escritura, depois
a reivindicação do direito de reunir um Concilio, sem a autorização do papa.
Tudo se passa como se Lutero considerasse o primeiro ponto a preliminar
estratégica de sua própria ação religiosa, que desemboca por sua vez sobre
uma reivindicação da “democracia” do corpo cristão - entenda-se, em contras­
te com a autocracia papal.
Sobre essa base, coloca-se uma verdadeira exortação à nação alemã a se
separar da autoridade romana: “Assim, acordemos, caros alemães, e temamos
mais a Deus do que aos homens...” (pág. 105). A Igreja é representada como o
parasita do corpo alemão, tanto nacional quanto cristão. O exemplo dos
“Anatas” que “os Imperadores e os Príncipes alemães autorizavam antiga­
mente o Papa a receber” (primeiras anuidades relacionadas a cada benefício)
torna-se simbólico da atitude da Igreja, explorando o corpo social, contando
com a tolerância do poder civil. Trata-se de apelar a esse poder para proteger
o povo “contra os lobos ladrões” (115) - tema da designação do inimigo
interior prometido a uma longa posteridade.

A teoria da função do poder civil

Pode-se, assim, compreender a fórmula de Lutero: “Tenho essa graça e


essa honra, pela graça de Deus... que, desde o tempo dos Apóstolos, nenhum
doutor nem escritor, nenhum jurista nem teólogo instruiu tão magnífica e tão

706
claramente a consciência dos poderes seculares e os consolou tão bem.”
Fórmula surpreendente, pois Lutero pretende, por outro lado, por motivos de
doutrina essencial, não querer tomar posição sobre as questões políticas e
recusar legitimação ao poder civil. Apesar disso, essa frase seria uma confissão
cínica, contraditória com a doutrina apregoada tão cara a Lutero, se não se
compreendesse sua motivação: Lutero se coloca sempre, em verdade, no
mesmo ponto de vista do “estado cristão” e de seus interesses. É desse ponto
de vista, exclusivamente, que ele pretende julgar todo acontecimento desse
“estado”. Simplesmente pode-se constatar que a introdução da Reforma tem
como efeito restabelecer, pelo menos, o equilíbrio das potências, o bastante
para “consolar” e "construir” as “potências seculares” com relação aos em­
preendimentos de usurpação espirituais.
Enquanto o momento político só é teorizado enquanto tal em À
nobreza alemã, um tratado, publicado três anos mais tarde, vai definir a
posição luterana a fundo, (Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve
obediência). É como se Lutero, depois de ter vilipendiado a autoridade da
Igreja, sentisse a necessidade de fixar sua posição diante do outro mestrado,
o civil.
Nesse nível doutrinário, é das Escrituras que se deve partir de novo, e
notadamente da famosa Epístola aos Romanos, de São Paulo. Aí, aparece a
fórmula que deve brilhar à frente da Nova Igreja: “Só existe o poder de Deus,
e os que existem são instituídos por Deus”, em função do que, “toda pessoa
está submetida aos poderes estabelecidos” (XIII, 1-3).
Mas Lutero deriva de certa forma a divisão constituinte do poder da
divisão do Mundo - uma nova recaída de A cidadela de Deus, de Santo
Agostinho - em dois mundos: no Reino de Deus, nada mais de autoridade civil.
Esta só é requerida para o nosso mundo: mas, aqui, ela é indispensável, armada
do “gládio”. O próprio Príncipe só é encarado como porta-giádio, portanto,
como aquele que deve tomar para si a tarefa, ingrata, mas inerente ao mundo
do pecado original, da punição. Isso volta a manter a ordem: “O ‘dever’ da
autoridade secular é para que não haja nem divisão, nem perturbação, nem
revolta entre seus súditos” (Introdução à visita das Igrejas). A política é
considerada, portanto, uma espécie de “ocupação” temporal.
Isso não significa que a Reforma dê sua bênção espiritual ao “gládio”, já
que ela se situa no plano da direção espiritual: o afastamento entre os dois
permanece necessário. Mas sua doutrina política se resume naquilo que ela
define como “bom” o regime que preenche sua função propriamente política,
isto é, assegurar a ordem dentro do “estado cristão”. A função política é
definida de maneira tanto mais repressiva quanto mais for reduzida a esse
papel “operacional”.

A prova da verdade da política luterana

Aí pode-se situar a prova da verdade que vai colocar a política luterana


diante de suas motivações concretas: a “guerra dos camponeses”, que se

707
desencadeia na Alemanha do Sudoeste e atinge seu apogeu entre fevereiro
e maio de 1525, entre o momento em que Thomas Müntzer toma a direção
do movimento e aquele em que o movimento é esmagado, e seu chefe,
capturado. A polêmica com Müntzer, além do acerto de contas pessoal —este
último sendo um padre católico que se tornou discípulo de Lutero e depois
metamorfoseou-se em "libertino espiritual" — foi a oportunidade decisiva
para “atualizar” as teses do apelo e do tratado da autoridade. O Manifesto
em favor da causa dos Boêmios, conhecido sob o nome de Manifesto de
Praga, definiu, por meio da pena de Müntzer, os princípios do movimento.
Müntzer postula exatamente uma “ordem que reside em Deus e nas criatu­
ras”, mas a essa se opõe a traição generalizada das autoridades civis e
religiosas: só “o pequeno povo” tem “sede de Deus” - aí onde Lutero via
dentro da “ordem social” o lugar em que se devia refletir a verdadeira ordem
de Deus. A posição mística e integralista de Müntzer só podia exacerbar a
incompatibilidade com a visão luterana. Assim como era um excelente
“revelador” negativo: a tendência iconoclasta e anarquizante, brandindo o
messianismo do espírito contra a ordem social, aparece a Lutero como o
simétrico da hidra romana. Assim como as fórmulas mais regressivas do
tratado Da autoridade temporal tomam um sentido à luz dessa controvérsia,
que atinge seu ponto crítico em 1523: “Devemos começar por dar um
fundamento sólido à lei e ao gládio temporais, a fim de que ninguém duvide
de que é pela vontade e por ordem de Deus que eles existem no mundo.”
Apesar disso, Lutero encontrava diante dele um verdadeiro programa de
reforma social, constituído pelos “Doze artigos”, instaurando um verdadeiro
comunalismo cristão, com o direito de cada paróquia escolher seu pároco e
depô-lo, uma repartição de benefícios, o direito à propriedade dos bosques, à
humanização das condições de trabalho, à supressão da pena de morte —tudo
fundado diretamente sobre a palavra de Deus. É esse “curto-circuito” entre o
espírito e o mundo, entre a reforma religiosa e a reforma social que Lutero não
pode aprovar. É por isso que ele reprova no doutrinador do movimento,
Müntzer, a contradição entre um uso etéreo do conceito do “espírito” —tão
amplo que não designa mais nada - e o desejo de realizações bem materiais.
O espírito, aqui, serve apenas, a seus olhos, para justificar a concupiscência.
Lutero define sua posição na Exortação à paz em resposta aos 12 artigos
dos camponeses da Suábia (abril de 1525). Seu escrito começa de maneira
radical: dessa nobreza, à qual apelava, ele denuncia expressamente o orgulho e
o egoísmo. Deus é invocado em legitimação da revolta: “Pois é preciso que vós
o saibais, caros senhores, Deus quis que não se possa nem se queira, nem se deva
suportar por mais tempo vossa raiva.” Julga, portanto, os artigos “eqüitativos e
justos”, sobre a base de sua teoria de autoridade-dever: “A autoridade não foi
instituída para procurar seu interesse e seu prazer, mas para dar a seus súditos
o interesse e a facilidade deles”. Mas a cólera dos camponeses é só um
instrumento para punir os senhores em nome de Deus: isso não legitima em nada
a própria violência camponesa O inaceitável é principalmente desviar essa
revolta da “causa de Deus”: “Isso aí é brandir sem razão a bandeira de Deus.”

708
Ora “sofrer, sofrer, a cruz, a cruz, eis o direito do cristão, e não existe outro*. O
pecado da revolta social é o de abusar do “nome cristão”.
Esse é o sentido do texto Contra os bandos saqueadores e mortíferos dos
camponeses (maio de 1525), em suas fórmulas mais violentas: “Caros Senhores,
apunhalai, rachai ao meio e decapitai à vontade. Se encontrardes aí a morte, tanto
melhor para vós; jamais podereis encontrar morte mais afortunada, pois morre-
reis dentro da obediência ao comando e à palavra de Deus, (Romanos 13...)”
Assim, Müntzer não passa de “um profeta assassino e sanguinário”. Se pede
clemência para os revoltosos, é para lembrar aos senhores a humildade (Missiva
sobre o duro opúsculo contra os camponeses, História espantosa de Thomas
Müntzer e julgamento de Deus contra ele...). 0 diabolismo de Müntzer é, aos
olhos de Lutero, a confusão do espiritual com o político, transformando uma
doutrina vaga em palavra de ordem de libertação, “bloqueando”, assim, em um
mesmo destino o fim celeste e a meta terrestre.

0 sentido da política luterana

Assim, se a posição de Lutero se radicalizou no tom, ela revém à posição


formulada no começo do apelo: “A primeira regra a observar... é que devemos
nos guardar com o maior cuidado para não começar nada fiando-nos em nossa
grande potência ou razão, mesmo quando todo o poder do mundo for nosso,
pois Deus não pode nem quer suportar que se empreenda uma boa obra,
fiando-se apenas em sua razão e poder. Ele a joga ao chão, sem que se possa
fazer nada, como é dito no salmo XXXIII (16): ‘Nenhum rei triunfará por sua
grande potência, nem nenhum príncipe pela extensão de suas forças’ ” (op. cit.,
pág. 79). É o que ele repete para a “potência camponesa” em revolta, com uma
paixão exacerbada pelo fato de que, paradoxalmente, a vontade de realizar o
Reino de Deus sobre a terra incita tanto mais à presunção.
Esse é, portanto, finalmente o núcleo da política luterana: de um lado,
um “ponto de vista” religioso que submete todo ponto de vista político a uma
avaliação relativizante —o que termina em uma dualidade nítida e irreabsor-
vente entre as duas ordens - tão marcante quanto o dualismo agostiniano;
porém, por outro lado, essa idéia de uma função da ordem política, com seu
braço secular, o poder civil, como expressão da ordem divina neste mundo.
Este último ponto leva a magnificar a ordem política e a condenar severamente
toda tentativa de revolução — no sentido próprio - da ordem política, a
proporção daquilo que ela coloca de presunção espiritual nesse projeto - o
que se fixará no calvinismo (cf. o artigo que é consagrado a isso); enquanto a
primeira dimensão fará paradoxalmente render lucros pela contestação da
ordem política injusta —de Müntzer, o herdeiro maldito de Lutero, até os
monarcômacos (cf. o artigo consagrado às Reivindicações contra os tiranos)...

• À la nobtesse chrétienne de la nation allemande sur 1'amendemenl de l'état chrétien (An


den christlichen adel deutscher Nation von des christllchen Standes Besserung), 1520; trad.

709
frac, À la noblesse tris chrétienne, pelo Dr. Martim Lutero, traduzido por F. Kuhn, Paris, 1881;
À la noblesse chrétienne de la nation allemande, traduzido por Maurice Cravier, Paris,
Aubier-Montaigne, com o texto da edição original, publicada por Melchior Lotther em Witten-
berg, completada pela segunda edição aumentada de 1520 (a edição Cravier é nosso texto de
referência).

► W. Kõhler, Luthers Schrlfí “An den christlichen Adel’ im Spiegel der Kultur und
Zeitsgeschichte, Halle, 1895; E, Kohlmeyer, Die Entstehung des Schrlfí Luthers “An den
christlichen Adel", Leipzig, 1922; M. Cravier, Luther et Vopínion publique. Paris, 1942; Abbé
Léon Christiani, Luther et la question sociale, A. Tralin, 1912; Karsten Klaehn, Martin Luther.
Sa conception polltique, Sorlot, 1941; Schawalb, Luther, ses opinions religieuses et sociales
pendantla première période de la Réformation, tese, Strasburgo, 1866; H. Strohl, L ’É volution
religleuse de Luther Jusqu’ en 1515, tese, Strasburgo, 1922; L ’épanouissement de la pensée
rellgleuse de Luther de 1515 à 1520, Strasburgo, 1524; cf. também Thomas Müntzer, Êcrits
théologiques et politiques, ed. Joêl Lefebvre, Presses Universitaires de Lyon, 1982.

Paul-Laurent ASSOUN.

LUXEMBURGO, Rosa - 1871-1919


Questões de organização da sociaidemocracia russa, 1904

Em 1904, Rosa Luxemburgo em Questões de organização da sociaide­


mocracia russa, estudo de umas vinte páginas publicado ao mesmo tempo no
Iskra, cujo controle acabava de escapar a Lênin, e no Die Neue Zeit, o jornal
dirigido por Kautsky, ataca vigorosamente a concepção do partido leninista.
Em Um passo à frente, dois passos para trás, Lênin prestava contas, de
maneira muito polêmica, do II Congresso do Partido Operário Socialdemocrata
Russo (POSDR), que se havia desenrolado durante o verão de 1903, em
Bruxelas e depois em Londres, e fora marcado pela cisão entre bolcheviques
(“majoritários”) e mencheviques (“minoritários"). No âmago do debate es­
tiveram as divergências sobre os estatutos e os princípios de funcionamento
do Partido, Lênin tentando impor a doutrina organizacional que havia desen­
volvido entre 1900 e 1903, principalmente em Que fazer? (1902). Os argumen­
tos de Rosa Luxemburgo são numerosos, cerrados, e se desenvolvem em duas
séries: a) crítica do centralismo a partir dos fundamentos gerais da sociaidemo­
cracia e da situação atual da Rússia; b) análise-caracterização da teoria
leninista como oportunista. Ela procura mostrar inicialmente que o “ultracen-
tralismo” de Lênin é esterilizador, já que, nas condições da Rússia contempo­
rânea, esse centralismo “rígido e despótico é a forma organizacional adequada
ao intelectual oportunista”. Rosa Luxemburgo entrará ainda muitas vezes em
discordância com Lênin, sobre o direito de as nações disporem de si mesmas,

710
o que ela contesta em nome do internacionalismo proletário, sobre a teoria do
imperialismo, quando estima que o capitalismo pode assegurar sua sobrevivên­
cia, canibalizando os modos pré-capitalistas de produção (Luxemburgo, Obras,
111 e IV, Lênin, t, 43, pág. 329) e, postumamente (após seu assassinato, em
janeiro de 1919), pela publicação de estudos sobre a Revolução Russa, onde
aparece como porta-bandeira de um marxismo revolucionário, porém democrá­
tico, radical, mas antiterrorista (Luxemburg, Obras, II, Lênin, L 33, pág. 211).
É verdade que Lênin e Rosa Luxemburgo se reencontrarão politicamente em
várias instâncias —no Congresso da II Internacional, em Stuttgart, em 1907,
onde ela representava o partido russo e assinou com Lênin e Martov uma
resolução contra a guerra - mas suas divergências pareciam irredutíveis. Em
fevereiro de 1922, Lênin as arrolará, lembrando que as águias podem voar tão
baixo quanto as galinhas, embora o mesmo não ocorra no caso inverso, e
dizendo que Rosa Luxemburgo era uma águia cujas obras completas ele
almejava publicar (t 33, pág. 211). Essa publicação só será efetuada em 1974,
o que mostra a marginalidade e o bloqueio intelectual de Rosa Luxemburgo
dentro da tradição comunista. No entanto, Questões de organização da
socialdemocracia russa permanece um texto atual principalmente se se leva
em conta que o leninismo, tal como foi instaurado na Rússia revolucionária,
uma ditadura de partido único com fundamentos terroristas, é menos o
produto de circunstâncias exógenas do que o resultado dos esforços para
desenvolver a teoria do social e da organização das quais Que fazer? e Um
passo à frente, dois passos para trás são a primeira formulação.
Rosa Luxemburgo está em oposição completa ao que consiste a pedra
angular do leninismo, do stalinismo e do sistema soviético: a teoria do Partido.
Sua crítica do “ultracentralismo” de Lênin não é, a rigor, uma recusa ao
centralismo; a ênfase com que trata as “reviravoltas de tática” (greve de São
Petersburgo, em 1896, tumultos estudantis, em 1901) como “produto es­
pontâneo do próprio movimento em efervescência” não é um repúdio da
organização. Mas, se está a favor do Partido, ela é contra a “seita”. Admite, com
efeito, ser "inerente à socialdemocracia" uma "forte tendência” à centralização,
pois visa a “reunir num partido único todos os operários, quaisquer que sejam
suas diferenças nacionais, religiosas e profissionais”. Mas essa exigência que
condiciona a “capacidade e a energia do Partido” define as tarefas “formais”
que devem ser examindadas a partir das “condições históricas específicas do
combate proletário”. O erro de Lênin seria de ter uma concepção “jacobina
blanquista”, o proletariado organizado e motivado por consciência de classe,
tomando o lugar de grupos conspiratórios, mas sempre dentro de uma
perspectiva centralista conspiradora; daí a submissão absoluta de todo o
Partido ao Comitê Central, de um modo “mecânico” que é o da “caserna” (pág.
213). Ora, para Rosa Luxemburgo, organização e progresso da consciência são
fases não-separadas, mas unidas dialeticamente, que acabam engendrando um
“autocentralismo” (Selbstzentralismus). Esse movimento não se pôde realizar
na Rússia, onde, por falta de liberdade política, não existia número suficiente
de operários educados pela luta política. A solução leninista - substituir a

711
“falta de controle público exercido pelas massas operárias sobre os órgãos do
Partido pelo controle inverso do Comitê Central sobre a atividade do proleta­
riado revolucionário” (pág. 214) — parece absurda, pois, na Rússia, como
também na Alemanha, é fácil constatar o “papel insignificante dos órgãos
centrais na elaboração da tática” (pág. 215). Esses órgãos têm, porém, um
"caráter conservador” que os poderes absolutos e “negativos” do Comitê
Central leninista reforçam, atestando não “um espírito positivo e criador, mas
o espírito estéril do guarda-noturno” (pág. 216).
Se Lênin superestima a possibilidade do “centralismo” socialdemocrata
na Rússia é porque ele o baseia sobre as qualidades de disciplina e de
organização que a indústria teria feito nascer nos operários e que os dis-
tinguiria dos intelectuais; numa passagem famosa de Um passo à frente, dois
passos para trás, ele opõe o comportamento dos intelectuais e seu “anarquis­
mo de grão-senhor” à mentalidade do proletariado educado pela “fábrica”,
“forma superior da cooperação capitalista”: “Foi o marxismo, ideologia do
proletariado educado pelo capitalismo, que ensinou e ensina aos intelectuais
inconstantes a diferença entre o lado explorador da fábrica (disciplina baseada
no receio de morrer de fome) e seu lado organizador (disciplina baseada no
trabalho em comum resultante de uma técnica altamente desenvolvida)” ( t 7,
pág. 410). Mas, para Rosa Luxemburgo, o proletariado é acostumado a essa
disciplina tanto pela indústria quanto pela caserna ou pelo burocratismo, em
resumo, pelo “mecanismo global do Estado burguês centralizado” (pág. 213).
Por essa observação ela parece interpretar melhor Marx do que Lênin.
Realmente, no capítulo 13 do livro 1 de O Capital, Marx distingue ao lado do
processo de produção cooperativo o processo de extração de mais-valia, mas
para indicar que esse segundo processo dá necessariamente à direção capitalis­
ta uma “forma despótica”. Como, nesse caso, basear nas virtudes desenvolvidas
pela indústria a organização do movimento revolucionário?
Rosa Luxemburgo censura Lênin por não ter visto que "o inconsciente
precede o consciente” e “que a lógica do processo histórico objetivo precede
a lógica subjetiva de seus protagonistas" (pág. 215). Inversão na ordem dos
fatores que não é apenas um erro, mas que revela, segundo ela, oportunismo.
Pois, argumento particularmente afiado, ela volta contra ele a análise de Lênin:
o líder bolchevique faz da recusa do “burocratismo” e dos protestos contra a
disciplina do Partido os traços característicos da intelectualidade pequeno-bur-
guesa oportunista. Ora, como sua crítica da concepção leninista da disciplina
já lhe mostrou. Rosa Luxemburgo recusa o princípio de uma análise em termos
psicológicos, mesmo se, para conduzi-la, Lênin se tenha apoiado em Kautsky
(t 7, pág. 339), que ela não cita. Para ela o oportunismo na Europa ocidental
é um efeito do parlamentarismo, mas, diz ela, "se, entretanto, formularmos o
oportunismo, de acordo com Lênin, como a tentativa de paralisar o movimento
autônomo da classe operária revolucionária para torná-lo servil aos desejos de
dominação da intelectualidade burguesa, então essa meta (...) se deixa atingir
por um centralismo de alerta e que entrega o movimento proletário ainda não
esclarecido a um punhado de dirigentes intelectuais” (pág. 221). Assim,

712
especulando sobre o “sentimento de prazer” que o proletariado experimentaria
em razão de “seu instinto de classe” perto da “firmeza” de “sua instância de
partido supremo” (pág. 218), Lênin seria um Lasalle russo. Contra o des­
potismo de uma intelectualidade ambiciosa só há remédio na “auto-atividade”
revolucionária dos operários. As raízes do oportunismo —o afluxo em direção
à socialdemocracia de elementos não-proletários por causa da “dissolução
progressiva da sociedade civil” —impedem que se espere assegurar proteção
de uma vez por todas. O oportunismo não é um acréscimo exterior ao
movimento operário: movimento de massa, a socialdemocracia só pode ultra­
passar o oportunismo pelo próprio movimento, com a ajuda das armas
fornecidas pelo marxismo.
Querendo parar “a pulsação de uma vida sã”, Lênin transforma o
Comitê Central do Partido em “demiurgo” onisciente e onipresente: o “eu”
laminado pelo absolutismo se proclama onipotente, embora só exista um
sujeito capaz de ter função dirigente: o “eu coletivo” (Ichmasse) da classe
operária (pág. 226).
A esse ataque em regra Lênin não oporá nenhuma defesa real: escreve
uma resposta que o Die Neue Zeit não publica —a despeito de duas cartas
muito corteses a Kautsky (L 43, págs. 411, 117) - e que parece pobre.
Desenvolve nela não uma tentativa de refutação, mas uma série de argumentos
factuais sobre erros cometidos por Rosa Luxemburgo a propósito do desenro­
lar do II Congresso e se queixa de ser acusado sem razão, censurando-a por
sua ignorância da dialética.
Abster-nos-emos, evidentemente, de acreditar que ele tenha deposto suas
armas. Lênin escolherá a hora de retomar seus argumentos em favor da
eficácia da organização centralizada, principalmente em sua luta de 1910
contra a corrente liquidacionista, onde incluirá Rosa Luxemburgo por causa
de seu papel na socialdemocracia polonesa. Naquele momento, ele queria
evitar a ampliação de conflitos com o mais importante dos partidos socialde-
mocratas europeus. Seria conveniente, contudo, para esclarecer todas as
sutilezas desses debates, situá-los outra vez dentro dos jogos de apadri­
nhamento, de obediência real ou fingimento entre o POSDR (russo) e o SPD
(alemão) e entre Kautsky e Lênin que, nesse momento, não passava de um
pequeno personagem dentro da socialdemocracia européia (Weil, 1976). Ele
será ainda mais discreto em suas reações ao ataque de Trotski, bem mais
agressivo em seu tom.
Depois de sua participação no II Congresso do POSDR, Trotski redige,
como também fizeram Martov e Lênin, um relatório para seus mandantes
(Trotski, 1970), que retomará e ampliará alguns meses mais tarde (Trotski,
1970, II). Ele denuncia a “robespierrada caricatural” de Lênin, cuja queda e o
perigo subseqüente aponta: a vitória dos “termidorianos”* do oportunismo
socialista (Trotski, 1970, I, pág. 84). Em seu texto mais pesquisado, Nossas

* Termidoriano - relativo aos acontecimentos de 9 de Termidor (undécimo mês do calendário


republicano francês, na Revolução Francesa). (Nota da Tradutora.)

713
tarefas políticas, onde se opõe ao conjunto das posições leninistas do período
de 1900-1904, ele denuncia o “pensar-pelos-outros" e o “substitucionalismo”,
métodos que conduzem “a organização do Partido e, finalmente, o ditador a
substituir o Partido, o Comitê Central a substituir a organização do Partido e,
finalmente, o ditador a substituir o Comitê Central” (Trotski, 1970, II, pág.
128). Ele ataca vigorosamente o regime de caserna que Lênin quer impor
dentro do Partido e a utilização da fábrica como modelo organizacional (pág.
159). Sublinhando a contradição entre os textos de Que fazer?, onde a
intelectualidade era portadora da consciência socialista que devia trazer do
exterior para o proletariado, e de Um passo à frente, dois passos para trás,
que a desacredita por causa de sua indisciplina, ele julga que Lênin utiliza o
marxismo como um “pano de chão” (pág. 120). Reunindo todos seus argumen­
tos numa análise da concepção leninista da ditadura do proletariado ele parece
profetizar: para essa “filosofia” jacobino-blanquista, a preparação do proleta­
riado para a ditadura exige que se crie uma organização coroada por um
ditador. Portanto, ditadura sobre o proletariado: “Não é a classe operária que,
por sua ação autônoma, toma nas mãos o destino da sociedade, mas uma
‘organização forte e poderosa’ que, reinando sobre o proletariado —e, por seu
intermédio, sobre a sociedade —, asseguraria a passagem para o socialismo”
(pág. 198).
Posteriormente, Trotski contestará, porém, ter sido um dos que percebe­
ram de imediato na lógica leninista da organização as premissas do totalitarismo
stalinista: seus próprios avatares políticos o farão condenar seu menchevismo
inicial. Em 1939, por ocasião da pendência entre trotskistas e luxemburguistas
no seio do Partido Socialista Operário e Camponês, de Marceau Pivert, ele
afirmará que Lênin tinha razão contra Rosa Luxemburgo e contra ele próprio, o
Trotski de 1904, três revoluções tendo mudado a natureza dos problemas
(Trotski, II, pág. 255 e Joubert, 1977, X). É bem verdade que, em 1935, tomou a
defesa de Rosa Luxemburgo contra os “grosseiros e tolos denegrimentos de
Stalin”, sem dúvida solidarizando-se com a spartakista diante dos ataques do
líder bolchevique (ele lhe reconhece o mérito de ter percebido certos perigos da
ossificação do Partido e compreendido o movimento espontâneo da história da
Revolução Alemã de 1918), mas, ainda assim reafirma que o problema essencial
era o da “direção do proletariado” (Trotski, 1970, II pág. 252).
Condenada por Lênin, injuriada por Stalin, renegada por Trotski, a
tradição luxemburguista em matéria de organização só poderia sobreviver
obscuramente. É significativo que a única grande obra marxista que analisou
a problemática de Rosa Luxemburgo para aprofundar as categorias da filosofia
marxista, História e consciência de classe, contendo vários estudos sobre essa
autora, escritos em 1921-1922, tenha sido estigmatizada no V Congresso da
Internacional Comunista e que seu autor, Gyõrgy Lukács, tenha aceito a
sanção (Lukács, 1960, Castoriadis, 1974).
No entanto, refugiada em pequenos grupos, como a equipe Spartacus
em torno de René Lefeuvre, influenciando os revolucionários da SFIO (Jou­
bert, 1977) como a crítica de “esquerda” da URSS, a tradição luxemburguista

714
vai conhecer uma ressurreição espetacular em 1968 (Guérin, 1971) e aparecer
como uma das fontes do conhecimento moderno do totalitarismo, em Claude
Lefort é claro (Lefort, 1979), mas também em Hannah Arendt, que leu muito
sua A acumulação do capital para escrever O imperialismo e nos fornece um
retrato fascinante dessa mulher judia, perseguida e assassinada no momento
em que se tramavam as maiores catástrofes de nosso tempo, da quais ela parece
condensar os dramas. (Arendt, 1974).
A qualidade dessa figura do movimento revolucionário limitou eviden­
temente certos ataques e incitou-a a tentar aproximações com Lênin para
reconstituir a primitiva imagem harmoniosa do movimento comunista. Pois
pode-se sublinhar que Luxemburgo não é, de maneira nenhuma, uma
anarquista, mesmo se essa corrente se sinta mais próxima dela do que do
líder bolchevique. Ela não recusa a forma de partido e não condena a
organização em si, e, se afirma que o inconsciente vem primeiro é para
desejar que o processo histórico o transforme em consciente. E, como coube
a Lênin enfatizar o potencial de energia revolucionária e de inovação
histórica das massas, poder-se-ia passar uma borracha sobre suas pequenas
diferenças (Frõlich, 1965). Mas isso seria esquecer que Lênin nunca fez da
liberdade um valor essencial para o movimento revolucionário. Ora, esse é o
tema que, ao lado da crítica do terror elevada ao nível de princípio, comanda
a análise da revolução bolchevique feita por Rosa Luxemburgo e animava
também seu conceito de organização em 1904.
No entanto, a oposição Luxemburgo-Lênin, vista como uma oposição
espontaneidade-consciência, quer se a queira reduzir ou acentuar, e sem
esquecer que essa alternativa não esgota toda a problemática da organização,
corre o risco de mascarar uma especificidade mais profunda do leninismo.
Realmente, Lênin faz um diagnóstico da realidade russa que não está muito
distante do de Rosa Luxemburgo. É duvidoso que ele estivesse “persuadido de
que todas as condições prévias para a constituição de um partido operário
poderoso e extremamente centralizado existissem na Rússia” (Luxemburgo,
1970, pág. 213). Ele também estima, sem dúvida, que a particularidade da
Rússia não está no "regime policial”, mas no “regime político”, e subscreveria,
provavelmente, esta análise: “Na Rússia, a socialdemocracia se vê obrigada a
suprir por meio de sua intervenção consciente todo um período do processo
histórico, de arrancar o proletariado, enquanto classe combatente que sabe o
que quer, do estado politicamente ‘atomizado’ que é o fundamento do regime
absolutista, para conduzi-lo à forma suprema da organização” (pág. 209). Mas
é exatamente essa descrença da capacidade de o proletariado se constituir em
classe por meio de seu movimento espontâneo, na verdade, o prognóstico
sombrio da possibilidade de a sociedade russa se libertar das marcas do
absolutismo, que a atravessa de lado a lado, que o leva a atribuir ao Partido o
papel de um Deus todo-poderoso, a única força civilizadora na Rússia. Para
Lênin, a especificidade da Rússia se atém ao fato de que, lá, o inconsciente não
se pode transformar em consciente, de que o capitalismo já não tenha mais
suficiente capacidade modernizadora. Somente a organização, a força, a

715
violência e, enfim, o terror poderão dar-lhe um jeito. (Colas, 1982; Ingerflom,
1984). Talvez porque suas teses fossem escandalosas com relação à ortodoxia
marxista, talvez porque hesitasse às vezes, Lênin reduziu muitas vezes sua
concepção da organização a um problema técnico. Porém, por um ou outro
aspecto, teoria da organização clandestina militarizada, teoria do Partido como
agente da transformação histórica, permanece fechado dentro da lógica, talvez
inconsciente, de uma autocracia que precede o retorno consciente à autocracia
sem limites, a do totalitarismo stalinista - onde Rosa Luxemburgo será de novo
suprimida.

• V. I. Lênin, Un pas en avant, deux pas en arrlère, em Oeuvres, t VII, Paris-Moscou, Ed.
Sociales, Ed. du Progrès, 1966; Idem, Oeuvres, 47 tomos, Paris-Moscou, 1958-1976; Rosa
Luxemburgo, Gesammelte Werke, Berlim, Dietz Verlag, t II, vol. 1,1974; Idem, Centralisme et
démocratte (Questions d ’organlsation de la social-démocratie russe), em Marxisme contre
dictature, prefácio de Lucien Laurat; Paris, Spartacus; Idem, Questions d ’organisation de la
social-démocratie, em Trotski, Nos tãches politiques, Paris, Pierre Belfond, texto revisto e
parcialmente retraduzido do alemão por Boris Fraenkel, 1970; Idem, Oeuvres, Paris, François
Maspero; Léon Trotsky, Rapport de la délégation sibérienne, prefácio, tradução e notas de D.
Authier, Paris, Spartacus, janeiro-fevereio de 1970; Idem, Nos tãches politiques, Paris, Belfond,
1970.

► Hannah Arendt, Rosa Luxemburgo, 1871-1919, em Vies politiques, Paris Gallimard, 1974;
Cornelius Castoriadis, Notas sobre Lukács e Rosa Luxemburgo, em L ’expérience du mouve-
ment ouvrier. Paris, Union générale d'Edition, 1974. Texto retomado de Socialisme ou
Barbarie, ns 26, novembro-dezembro de 1958; Dominique Colas, Le léninisme. Philosophie et
sociologie politiques du léninisme, Paris, PUF, 1982; Paul Frõlich, Rosa Luxemburg, traduzido
do alemão, Paris, Maspero, 1965; Daniel Guérin, Rosa Luxemburg et la spontanêité révolutio-
naire, Paris, Flammarion, 1971; Leo Hamon, Rosa Luxemburg, em L ’URSS vue de gaúche, sob
a direção de L. Marcou, Paris, PUF, 1982; Cláudio Ingerflom, Sur les racines russes du
léninisme. Lénine avantLénine, 2 vol., tese do 3* ciclo, EHESS; Jean-Paul Joubert, Révolutio-
naires de la SFIO. Marceau Pivert et le pivertisme, Paris, PFNSP, 1977; Leszek Kolakowsky,
Maln currents o f Marxism, t 2, The golden age, Oxford, Nova York, Toronto, Melbourne,
Oxford University Press, 1981; Claude Lefort, Le prolétariat etsa direction, em Éléments d ’une
critique de la bureaucratle. Paris, Gallimard, 1979; J.-P. Nettl, Rosa Luxemburg (1966), Paris,
Maspero, 1970; Claudie Weill, Marxistes russes et soclal-democratie allemande, 1898-1904,
Paris, François Maspero, 1976.

Dominique COLAS.
MABLY, Gabriel BONNOT de, 1709-1785
Conversas de Phocion sobre a política e a moral, 1763

Um ano depois do Contrato social, veio a lume uma pequena obra que,
no espírito dos contemporâneos, prometia obter considerável sucesso, a ponto
de passar por obra do século. Apresentada sob a forma de Conversações
supostamente traduzidas do grego, com todos os recursos da retórica aceita
na época, a obra apresentava uma “política” que devia ser bem representativa
de uma necessidade. Se o livro de Rousseau eclipsou as Conversas de Mably,
essa bem poderia ser sua cópia. A obra, consagrada com um prêmio da
Sociedade de Berna, suscitou de fato a animosidade de Rousseau: ele se queixa
em suas Confissões de encontrar nesses “Diálogos de Phocion” “uma compi­
lação de (seus) escritos, feita sem moderação e sem vergonha”. Essa polêmica
retumbante (cf. Aldo Mafey, IlPiensiero político delMably (1968) deveria nos
dizer algo sobre a importância desse texto: será que temos de vê-lo como um
sucedâneo vulgarizado de Rousseau ou uma alternativa, uma espécie de
política eudemonista que teria tentado lutar contra as políticas da soberania
antes de ser vencida? Há realmente aí, em todo caso, uma figura da ideologia
política que merece ver seu lugar assinalado dentro do terreno fértil do
pensamento europeu pré-revolucionário.
O autor, Gabriel Bonnot (1709-1785), tornado abade de Mably, não era
um iniciante. Autor de numerosas obras a partir de Parallèle des Romains et
des Français par rapport au gouvernement (Paralelo entre romanos e
franceses com relação ao governo) (1740), entre as quais Le Droit public de
VEurope (1746) e Droits et devoirs du citoyen (Direitos e deveres do cidadão)
(publicados postumamente), encarregado de importantes missões diplomáti­
cas, é, no entanto, um brevíário antimaquiavelísta que ele proporá em suas
Conversas, onde a política é recolocada dentro da órbita da moral.

As duas políticas — As Conversas, em número de cinco, têm como

717
moldura a Atenas de após a guerra do Peloponeso. Trata-se de debater o futuro
da “pátria”, equivalente espontaneamente fornecido da “república". A aparên­
cia de diálogo socrático esconde mal a profissão de fé: trata-se de fato de
converter o jovem Aristias, bem-nascido, mas seduzido pelos sofistas, à verda­
deira concepção do bem público, encarnado por Phocion. Reencontramo-nos
na atmosfera mais clássica do diálogo platônico, mas sem Calliclés: o jovem
sofista converteu-se logo (desde o fim da primeira conversa). Sua peroraçào
sofistica inclina-se diante do discurso de Phocion, o que lhe permite ter acesso
ao “santuário desse político sublime” (op. cit., II, pág. 33).
De fato, todo o diálogo repousa na oposição de dois conceitos da política:
o que, desesperançado da razão e da virtude, a reduz a “essa arte ilusória...
que só tem como regra os preconceitos públicos e as paixões da multidão, que
só emprega a astúcia, a injustiça e a força” (II, pág. 34), e o que se fundamenta
na natureza. Essa se deixa definir como “a medicina dos Estados” (I, pág. 15).
As “doenças”, aqui, são os "vícios” e as “paixões”: a ciência política em questão
deve, portanto, remontar “até a causa dos próprios vícios que obstruem o
corpo da república ou que azedam e irritam seus humores” (1^ pág. 16). A
saúde, aqui, é a “felicidade” —palavra-chave da política de Mably. A má política,
“arte de enganar os homens”, é preciso opor a boa, “arte de torná-los felizes”.
O corpo político atesta “a sabedoria suprema” (I, pág. 25), a da Providência,
não menos do que o corpo físico: assim, o saber da cidade é apropriado às
necessidades humanas.
Essa política eudemonista postula “um desejo insaciável de felicidade” (I,
pág. 28). Porém isso mesmo a dedica a uma espécie de harmonia espontânea
com a moral. Por ser a Felicidade o Bem Soberano é que ela une moral e
política, o bem individual e o bem público. Observe-se que "a política só nos
perde quando ela se prostitui a serviço das paixões” (I, pág. 29). Eis, portanto,
fixada a meta da obra: “Esta obra trata da matéria mais importante para os
homens. Remonta-se aos princípios fundamentais da política e prova-se que ela
só pode trabalhar eficazmente para a felicidade do corpo social na mesma
proporção em que esteja ligada às regras da moral mais exata.”

Desmaquiavelizar a política - Trancando dessa maneira a política,


“cooperadora da providência entre os homens”, Mably tenta arrancá-la de seu
destino maquiavelista. É o que faz dela um modelo acabado para um discurso
político preocupado com o consenso.
Esse é engrenado, portanto, a um ideal de educação cívica: não poderia
haver virtude sem “costumes públicos” (II, pág. 36). Ali está o verdadeiro
termômetro da saúde do corpo social: “As leis mais essenciais para a felicidade
e a segurança dos Estados são aquelas que observam o detalhe dos costumes”
(II, pág. 39). É também o centro de gravidade da verdadeira justiça, oposta ao
que encontrará seu nome como "política politiqueira”: “É profanar a política,
que deve tornar as sociedades felizes e florescentes, dar seu nome a esse
pequeno manejo, sempre incerto, de astúcia, intriga e velhacaria” (II, pág. 46).
Mably esboça um artifício da razão para justificar sua teoria das paixões:

718
"Examinem... o choque, a marcha, o concurso das paixões, o movimento
recíproco que elas comunicam entre si e vocês verão resultar daí essa ordem
favorável à moral” (II, pág. 51). Em resumo, “a política deve olhar a virtude
como a fonte e o fundamento da prosperidade” (II, pág. 57) - está aí a simetria
de um raciocínio à Mandeville.
Mably pode, portanto, chegar até à indicação, como “objeto” da política,
do “tornar fácil a prática” das três virtudes que são: a justiça, a prudência e a
coragem (III, 59). Assim, desenvolve-se “o amor pela pátria”, apoiado no “amor
pela humanidade” (III, pág. 95).
Os correlatos dessa concepção são um pacifismo —tantas virtudes só
podem prosperar na paz - e uma espécie de “frugalismo”: "Dando-se que a
política se ocupa mais ou menos de tesouros, dinheiro, riquezas, a república,
mais ou menos feliz, está mais ou menos afastada do momento de sua ruína”
(IV, pág. 133).
Ao fim desse trajeto, é, no entanto, a figura do legislador que se impõe,
demarcada por Licurgo e Solon. Se “a grande verdade” é que "a Providência
estabeleceu tal ligação entre a moral e a política, que a felicidade dos Estados
está ligada à prática das virtudes” (V, pág. 135), é exatamente ao legislador que
cabe inscrever essa verdade dentro das sociedades humanas. Discerne-se aqui a
que ponto Mably, homem do Século das Luzes, permanece ligado ao ideal da
politeia. Fazendo a Lei, ele torna possível a “reforma” da república e corrige sua
corrupção (V, pág. 137), encorajando “a virtude da qual um povo está menos
afastado”, se não “a virtude mais importante por si mesma” (V, pág. 139). Parece
na verdade que ele encarna o Logos, grande operador das paixões. É, em resumo,
o grande Economista da máquina política. Sente-se que o Legislador deve atestar
que “a política é uma ciência segura e fácil” (V, pág. 158). “Não se é jamais
bastante virtuoso porque não se é jamais bastante feliz” (V, pág. 158): essa
conclusão vibrante da profissão de fé eudemonista de Mably apóia-se sobre a
crença no Legislador que mantém a aderência da Virtude e da Felicidade.
Uma política eudemonista - Esse conjunto evoca uma retórica familiar
e com razão: é principalmente na forma que lhe deu Mably que ela foi
acreditada e assimilada à retórica revolucionária. Faltam-lhe, em compensação,
os conceitos “pesados” —temática da Soberania, do Contrato Social até mesmo
do Direito Natural. Mably, a esse respeito, .toma-os como implícitos ou aceita-os
mais como fatos adquiridos.
O Legislador de Mably não é o Soberano, pois assume o papel de regente
da ordem política, talhado de certa forma dentro da phusis. Mably não se demora
sobre o nascimento do vínculo social, concedendo toda sua atenção à “gestão”
do corpo social —já que não funda a soberania sobre a renúncia consecutiva ao
pactum societatis. Enfim, se ele se refere, à sua maneira, ao Direito Natural, é
como “cimento” da ordem moral e da ordem política. Em resumo, nada que se
encaixe dentro da máquina política que levará à ereção da Vontade Geral. Nada
também que justifique um imperativo de transformação radical que encontrará
sua expressão como princípio político dentro do Terror.
Ao mesmo tempo em que nos possa causar espanto a alegação de

719
Rousseau de que Mably pilhara suas Conversas (ver acima), é fato que nos
demos conta de que, também em Rousseau, essa concepção idílica da “repúbli­
ca” trabalha paralela à concepção “modernista”. No próprio discurso revolu­
cionário - Mably desapareceu em 1785, e seu opúsculo Direitos e deveres do
cidadão participará da criação de um gênero que se reencontra até em Volney
(ver o artigo que lhe é consagrado nesta obra) - essa problemática de uma
política eudemonista se mantém. É o legado do Século das Luzes mais patente
- o de uma política que ainda não conheceu a ruptura da “natureza política”
e se fia na realização de um programa em que o homem se reuniria a seu bem
próprio pelo desenvolvimento de sua “constituição”. O plebiscito das Conver­
sas atesta que esse momento da consciência política é reconhecido aí de
maneira exemplar.

• Mably, Entretlens de Phocion, sur le rapport de la morale avec la politique, traduzido do


grego de Nicoclès, com observações, Amsterdam, 1763. Rééd. La Haye, 1764; Estocolmo, 1766;
Amsterdam, 1767 e 1768; Paris, 1783; Amsterdam, 1788 e 1789; Kehl, 1789; Amsterdam,1792;
Paris, 1792, ano II, ano III, 1804, 1872, 1874, 1894. Citamos, de acordo com a edição da
Librairie de la Bibliothèque Nationale. Mably, Le Droit public de VEurope fondé sur les traités
conclus jusq u ’en 1’annés 1740 (1746); De la législation ou príncipes des lois (1776); Du
gouvernement et des lois de la Pologne (1781); Des droits et des devoirs du citoyen (1789).

► M. W. Guerrier, L'abbé de Mably, moraliste et politique, 1886; Léonin Gélineaud, Les


doctrínes sociales et politiques de Mably, 1909; Aldo Maffey, II Pensiero político dei Mably,
Turim, 1968; Brigitte Coste, Mably: pour une utopie du bon sens, Klincksieck, 1975.

Paul-Laurent a s so u n .

MAIMÔNIDES, Moisés, 1135-1204


Guia dos extraviados, Comentário sobre a Mischná, Mischnê Torá

Introdução*
A existência do pensamento político judeu e islâmico da Idade Média foi,
até recentemente, negligenciada por muito tempo nos estudos do pensamento
político da Idade Média. Em particular, o pensamento político judeu era
considerado adormecido durante quase dois mil anos, depois do segundo exílio
judeu da terra de Israel (e daí a falta de independência político-territorial judia)
até a nova criação de um Estado com dominância judia em Israel, na metade

* Devemos agradecer muito particularmente ao Padre Shlomo Pinès, que graciosamente aceitou
verificar a tradução francesa dos textos árabes e hebreus citados neste artigo. (Nota do autor.)

720
do século XX. Uma pesquisa recente revelou a existência de um conjunto
não-negligenciável de obras políticas de pensadores judeus e islâmicos da
Idade Média, colocando em relevo esses personagens não somente como
aqueles que transmitem a filosofia política da tradição clássica, mas também
como verdadeiros inovadores. Entre os pensadores políticos judeus da Idade
Média, o mais importante foi Moisés Maimônides, cujos escritos deixaram uma
marca profunda sobre todo o pensamento judeu.
Moisés Maimônides (1135 ou 1138-1204) é reconhecido por todos como o
filósofo judeu preeminente da Idade Média, e sua obra, ao mesmo tempo de
pensador religioso e de filósofo, é fundamental dentro da história do pensamento
judeu. Seus escritos mais importantes compreendem um Comentário, em árabe,
da Mischná; a primeira coletânea exaustiva da lei judia (halakha), a Mischnê
Torá (que era precedida do Livro dos Mandamentos, uma enumeração dos 613
mandamentos que a tradição atribui à lei judia, apesar de grandes discordâncias
sobre o que cada mandamento específico comporta); e o Guia dos Extraviados,
um exame um pouco teórico das questões filosóficas, religiosas e teológico-polí-
ticas, escrito dentro de uma perspectiva que, segundo Maimônides, não é
estritamente filosófica. Os procedimentos de Maimônides enquanto chefe da
comunidade judia comportam também a elaboração de numerosas responsa,
respostas a questões colocadas em matéria de lei e de prática judias, assim como
textos epistolares destinados a indivíduos ou a comunidades sobre assuntos
diversos da época. Além dessas provas de compromisso comunitário e de chefe
de comunidade, Maimônides escreveu numerosos tratados médicos e, em sua
juventude, um curto tratado filosófico sobre a lógica.

Aspectos estilísticos dos escritos de Maimônides

Um estudo global da filosofia política de Maimônides comporta algumas


dificuldades de apresentação. Essas dificuldades são devidas em parte ao fato
de Maimônides não ter escrito tratado geral do pensamento político. Um outro
problema é colocado pela sua tentativa de escrever de uma maneira adaptada
aos leitores que ele levava em consideração e cujas capacidades intelectuais
iriam variar, segundo seus próprios termos, desde “os raros indivíduos virtuo­
sos e realizados" até “a multidão dos homens vulgares”. Com efeito, Maimô­
nides informa a seus leitores, dentro do Guia dos Extraviados, de que nele
destinou pelo menos alguns de seus escritos “a um só homem virtuoso (entre)
dez milhares de ignorantes”1. Todavia, em outro de seus escritos, Maimônides
explica que se endereça a uma audiência popular com a meta de fornecer a
cada um um caminho claro a seguir: “Eu quis escrever... numa linguagem clara
e sem rodeios a fim de que a Lei Oral inteira possa ser acessível a todos”2.
Ainda que fosse errado reduzir as únicas diferenças de enfoque de Maimônides
com respeito a seus diversos leitores, àquelas entre o caráter literário de uma
obra teológico-filosófica (como o Guia dos Extraviados) e aquele de uma obra
jurídica (como a Mischnê Torá ou o Comentário sobre Mischná)3, Maimônides
explica que o Guia dos Extraviados foi escrito em um estilo esotérico,

721
comportando contradições internas intencionais, de maneira a dissimular
certas matérias obscuras (ou potencialmente perigosas) para a multidão dos
homens comuns4. Essa problemática do estilo de Maimônides torna indis­
pensável a identificação da audiência visada por ele, assim como a intenção
última de cada um de seus escritos, a fim de assegurar-se de seu ensinamento
final sobre as questões importantes. Com efeito, não seria surpreendente achar
que o pensamento político desse autor comporta elementos distintos cujos
objetivos são muito diferentes, se bem que não se oponham (e talvez sejam
complementares).
Apesar de tais dificuldades para determinar o conjunto da filosofia
política de Maimônides, é possível pôr à frente várias características gerais de
estilo que se podem encontrar em todos os seus escritos não-médicos.
1. A disposição para utilizar categorias tradicionais, mas reinter-
pretadas de uma maneira nâo-tradicional. A esse respeito, convém notar que
Maimônides evita recusar os conceitos tradicionais, mesmo quando rejeita
explicitamente a interpretação tradicional desses conceitos. Exemplos dessa
característica de seu estilo, que deve ser bem compreendida para ser apreciado
o caráter filosófico do pensamento político desse autor, compreendem sua
redefinição da profecia, da era do Messias, e do "outro mundo”. Voltaremos a
esses exemplos mais adiante.
2. A disposição para utilizar fontes religiosas tradicionais de uma
maneira nova, a fim de estabelecer reinterpretações não tradicionais das
categorias tradicionais. Todavia, sobre assuntos de controvérsia, o emprego
das fontes tradicionais por Maimônides é muitas vezes totalmente seletivo; ele
ignora frequentemente fontes que não concordam com sua visão e acentua
pontos de vista minoritários que tendem a sustentar sua posição. Além disso,
a maioria dos intérpretes filosóficos dos escritos de Maimônides sustentam que
ele interpreta de maneira nova algumas fontes tradicionais segundo sua
própria compreensão filosófica do judaísmo, mais do que em função da
significação original da fonte.
3. A utilização de materiais filosóficos nâo-judeus a fim de desenvolver
seu pensamento político (e mesmo halakhique). A esse respeito, dever-se-ia
notar que dentro dos outros escritos que não o Guia dos Extraviados,
Maimônides não cita freqüentemente suas fontes filosóficas. (Isso pode ser o
resultado do fato de que, na sua época, as fontes não-judias teriam sido
consideradas suspeitas e mesmo inadmissíveis aos clhos de muitos dentro da
comunidade judia.)5 Contudo, Maimônides faz use livremente dos escritos de
seus predecessores filosóficos não-judeus, ponto demonstrado particularmente
a propósito de Shemonah Peraqim, que contém longas passagens copiadas
quase que palavra a palavra de Al-Farabi, Aforismos escolhidos (conhecido
também como Os Aforismos do Político)6. E mais, em uma carta bem co­
nhecida que ele escreveu ao tradutor hebreu do Guia dos Extraviados,
Maimônides identifica um grande número de fontes gregas e islâmicas que ele
conhecia, até mesmo uma avaliação geral da importância filosófica desses
autores. Essa carta assinala o vasto conhecimento que esse autor tinha dos

722
textos filosóficos, e ele é de um interesse particular em razão das recomen­
dações muito favoráveis de Aristóteles (“Sua inteligência representa o extremo
da inteligência humana, se fizermos exceção daquelas que receberam a ins­
piração divina”) e de Al-Farabi ("Todos seus escritos são irrepreensivelmente
excelentes. Deve-se estudá-los e compreendê-los, pois é um grande homem”)7.
4. A tentativa de compreender as informações bíblicas e pós-bíblicas
segundo o que é natural mais do que segundo o que é miraculoso, procuran­
do habitualmente considerações práticas e explicações racionais. Esse as­
pecto do pensamento de Maimônides é acentuado em suas tentativas de
encontrar explicações racionais para todas as do Código das leis judias assim
como fornecer explicações racionais (e educativas) para quase todos os acon­
tecimentos da história humana e natural.
5. Maimônides apresenta quase sempre suas discussões de teoria
política dentro do contexto do judaísmo, que serve como modelo para uma
religião virtuosa, mais do que apresenta sua teoria política em termos
teóricos que se aplicariam a todas as nações e religiões (como é o caso dos
escritos de Al-Farabi). Essa característica do pensamento de Maimônides o faz
parecer muito mais especificamente judeu do que parecem islâmicos os
pensamentos políticos de Al-Farabi ou mesmo o de Ibn Ruchd (Averroes). Essa
impressão não diminui a importância da apreciação dos princípios teóricos
sobre os quais o pensamento político de Maimônides está fundado, e isso não
retira nada de sua filosofia política com relação à de Al-Farabi e de Averroes.
E somente examinando o conteúdo das doutrinas específicas do pensamento
político de Maimônides, sobretudo quando são apresentadas dentro da termi­
nologia das categorias e dos conceitos tradicionais do judaísmo, que é possível
julgar em que medida essas doutrinas dependem finalmente dos princípios
filosóficos ou dos da tradição religiosa.
6. Maimônides, da mesma maneira que Ibn Ruchd, não se interessa
pela vulgarização da fdosoãa para os crentes simples de sua religião.
Quando, na maioria dos casos, Maimônides apresenta idéias filosóficas que
podem enfraquecer as doutrinas geralmente reconhecidas da fé judia, ele tem
o cuidado de comunicar diferentes mensagens aos diferentes leitores. Em
particular, ele utiliza técnicas literárias variadas de maneira a comunicar seus
ensinamentos filosóficos a seus verdadeiros leitores filósofos, enquanto es­
conde numerosos de seus ensinamentos - ou ele os apresenta sob uma forma
mais convencionalmente aceita —para seus leitores que não são filósofos. O
emprego que faz de uma escrita esotérica é um dos maiores obstáculos para
uma compreensão clara e verdadeira de seu pensamento político e filosófico.

O pensamento político de Maimônides

A fim de apreciar a filosofia política de Maimônides, é necessário concen­


trar-se sobre dois domínios complementares: 1) o exame da estrutura política
e social que suas obras apresentam para a vida da comunidade judia, assim
como uma avaliação da maneira pela qual as suas formulações são construídas.

723
ou se afastam das da lei e da tradição judias; e 2) uma análise da estrutura
teórica da filosofia política desse autor e de seu pensamento teológico-político,
incluindo uma estimativa das influências filosóficas não-judias sobre seu
pensamento - com uma atenção particular aos escritos de Platão, Aristóteles
e Al-Farabi.

A) Maimônides e a estrutura institucional da vida comunitária judia

Um exame da concepção de Maimônides da estrutura institucional


adaptada à vida da comunidade judia revela o lugar central de vários persona­
gens marcantes de inspiração tradicional. Particularmente na Mischnê Torá,
Maimônides acentua a importância fundamental: 1) dos reis, 2) dos sacerdotes,
3) dos sábios e dos juizes (incluindo os membros do Sanhedrin), 4) dos profetas
e 5) do messias. Contudo, a formulação de Maimônides das qualidades e das
responsabilidades desses chefes comunitários restabelece ao menos algumas
delas segundo seus princípios políticos de inspiração filosófica. A apresentação
das qualidades requeridas para ser elegível, a fim de atingir essas posições,
acentua a existência de uma hierarquia de autoridade fundada sobre a
aquisição da sabedoria. Além disso, as responsabilidades que são confiadas
respectivamente a esses chefes asseguram o estabelecimento de uma divisão
dos poderes que limitará as tentativas da parte de um indivíduo ou de um
grupo de obter o poder absoluto ou de prejudicar a soberania última da lei
judia. A significação da discussão - exaustiva e altamente estruturada de
Maimônides - das instituições e dos chefes comunitários comporta duas
partes: 1) é uma tentativa sem precedente de descrever a estrutura política que
deveria ser estabelecida e mantida por ocasião de toda reedificação de uma
nação independente judia; e 2) é também um procedimento de reconstruir as
instituições políticas e teológico-políticas judias, utilizando o corte dos concei­
tos e dos termos da tradição. Com efeito, convém notar que a modificação por
Maimônides dos tratamentos judeus tradicionais das instituições e dos chefes
políticos implica sua crítica dos precedentes fundados sobre a Bíblia ou
desenvolvidos seguindo a história - precedentes que, evidentemente, não eram
suficientemente seguros para preservar a soberania e a independência políticas
da nação judia.
Dois exemplos da inovação de Maimônides, a propósito dos personagens-
chave da tradição judia, serão apresentados aqui; essas figuras principais são:
o profeta e o Messias.
As discussões do profeta por Maimônides se reencontram em quase todos
os seus escritos8. Enquanto essas discussões revelam algumas mudanças de
posição no assunto da necessidade, para o futuro profeta, de possuir uma
faculdade de imaginação aperfeiçoada, em todas as discussões das caracterís­
ticas necessárias ao profeta ele põe a ênfase sobre o fato de que ele deve
possuir todas as virtudes intelectuais e a maioria das virtudes morais mais
importantes. Essas qualificações para a profecia, que são fundadas sobre as
categorias aristotélicas das virtudes, criam medidas para o profeta que são

724
muito diferentes daquelas encontradas nas discussões tradicionais da profecia.
Conviria notar que, segundo Maimônides, só um indivíduo intelectualmente
perfeito pode ter acesso à profecia; isso é uma nítida limitação da capacidade
de Deus em escolher aquele que Ele deseja para profeta. Além disso, segundo
a formulação de Maimônides, só os filósofos podem ser reconhecidos por terem
respondido à condição necessária (se não suficiente) da profecia. Mesmo a
descrição da operação de profecia não-mosaica que esse autor expõe em seu
Comentário sobre a Mischná, em sua apresentação de treze princípios da fé
judia, é tirada diretamente de fontes filosóficas e é enunciada em uma
linguagem filosófica, mais do que religiosa e tradicional. Maimônides declara:

Dever-se-ia saber que, entre os seres humanos, é possível encontrar indivíduos que
possuem disposições (naturais) altamente desenvolvidas e uma grande perfeição; suas
almas estão, assim, preparadas para estar em estado de receber uma formação do
intelecto. Então, esse intelecto humano tem acesso ao Intelecto Ativo e (o Intelecto Ativo)
faz desprender-se desses (indivíduos) uma nobre emanação. Esses homens são profetas;
eis o que é a profecia, e isso é a matéria com a qual ela está implicada9*

0 Messias é um segundo exemplo de personagem marcante da tradição


judia, revisto por Maimônides de acordo com princípios filosóficos. Maimô­
nides transforma o Messias a partir daquilo que foi muitas vezes percebido
como uma figura apocalíptica até um chefe político terrestre que, sem mudar
nada nas leis naturais, realizará a independência política e a soberania para os
judeus na terra de Israel. Além disso, Maimônides não exige que o futuro
Messias realize sinais e prodígios ou ressuscite os mortos. Segundo os termos
dele, durante a era do Messias, “o mundo seguirá seu curso natural...” Os
rabinos dizem: “A única diferença entre o presente e a era messiânica é a
recolocação da servidão em poderes estrangeiros”10. De maneira mais signi­
ficativa, Maimônides considera a era messiânica inferior em categoria com
relação ao outro mundo. Segundo ele, a era messiânica deveria ser percebida
no final das contas como um meio de ter acesso ao outro mundo, última
categoria requerendo a obtenção de perfeições diversas, até - em primeiríssi­
mo lugar —a perfeição da faculdade teorético-racional.
Enquanto a redefinição do outro mundo, feita por Maimônides, não pode
ser discutida em detalhe neste artigo, conviria notar que essa faculdade é uma
condição implicando a existência incorporai da alma teorético-racional, evidente­
mente não-individualizada, para a qual a eternidade consiste em chegar à unidade
com o Intelecto Ativo11. Subordinando a era messiânica ao outro mundo,
Maimônides indica que as realizações políticas e religioso-comunitárias estão
subordinadas a uma realização da perfeição intelectual do indivíduo. Com efeito,
se Maimônides considera unicamente a realização do outro mundo - e não o
cumprimento da era messiânica —um fim em si, a existência da era messiânica
não é nem mesmo concebida como uma necessidade anterior ao acesso de um
indivíduo ao outro mundo. Dessa forma, o cumprimento da perfeição última é
possível em todo o tempo para pequeno número de indivíduos virtuosos,
independentemente da realização ou não da redenção coletiva.

725
B) Doutrinas fundamentais da filosofia política de Maimônides

Os elementos seguintes da filosofia política de Maimônides e seu pensa­


mento teológico-político merecem uma menção particular. Esses aspectos do
pensamento político de Maimônides são fundamentais para obter uma com­
preensão global de sua percepção do papel político da religião, no âmbito de
um regime político virtuoso, incluindo as forças essenciais da religião e suas
vantagens tanto quanto suas limitações necessárias.

A elite e a multidão

Uma distinção fundamental e constante que pode ser encontrada ao


longo dos escritos de Maimônides é aquela entre o pequeno número daqueles
que possuem a virtude intelectual (isto é, a elite) e a multidão das pessoas
ordinárias. Enquanto a existência dessa distinção é nitidamente aparente no
Guia dos Extraviados, ela não deixa de estar presente em outros escritos de
Maimônides, como, por exemplo, seu Comentário sobre a Mischná ou o
Tratado sobre a Ressurreição. Se bem que, às vezes, ele faça referência às
multidões imperfeitas em uma linguagem não-pejorativa, descreve muitas
vezes “o grande número dos homens” como “os doentes da alma”, e, dentro
do Guia dos Extraviados, eles são comparados a animais domésticos ou
selvagens, dos quais alguns possuem a potencialidade de fazer o mal e de
causar prejuízos acima das capacidades de todos os outros animais.
Um exame global da relação entre o sábio e “a multidão dos homens” pode
ser obtido referindo-se à Introdução geral de Maimônides dentro de seu Comen­
tário sobre a Mischná. Nessa obra, Maimônides apresenta o ponto de vista
teleológico de que a existência do mundo e de tudo que nele está contido
encontra sua finalidade no sábio que procura conceber tudo o que é inteligível12.
Com isso no espírito, Maimônides é conduzido a se perguntar: qual era a intenção
da criação da "multidão dos homens” que não procuram ou são incapazes de
obter uma concepção daquilo que é inteligível13? Maimônides dá duas razões
para a criação da “multidão dos homens”. A primeira, que ele sustenta de modo
ousado, é que esses homens foram criados “para servir esse indivíduo (sábio)”.
“Todas essas pessoas (‘a multidão dos homens’) foram criadas para cumprir essas
atividades que são requeridas dentro da Cidade, enquanto o sábio foi criado para
ele mesmo; dessa maneira, a terra povoar-se-á, e a sabedoria será encontrada.”14
A ênfase aqui é colocada sobre a diferença entre o telos limitado ou o fim que se
encontra por trás da criação da “multidão dos homens” (um fim que na realidade
é um meio) e o telos que tem necessidade da criação do sábio e que é a meta (a
perfeição intelectual) do ser humano perfeito. Assim, o que é uma divisão do
trabalho racional, até mesmo natural, assegura a conservação durável da Cidade
- com a sabedoria como guia e regra. A segunda razão que ele fornece para a
criação da “multidão dos homens” é uma razão social. Só se pode encontrar um
pequeno número de indivíduos sábios. Assim, “a multidão foi criada para servir
de companheiros ao sábio”15.

726
A distinção que Maimônides faz entre os sábios e a multidão pode ser
facilmente retraçada a partir do pensamento político da tradição platônica —
tradição na qual se inspira fortemente Al-Farabi e que é desenvolvida dentro de
sua filosofia política. No entanto, enquanto é fácil fazer sobressaírem as influên­
cias filosóficas sobre Maimônides quanto ao emprego dessa distinção, conviria
notar que, segundo as circunstâncias, ele se esforça para demonstrar os prece­
dentes da tradição judia para esse ponto de vista. Um exemplo é a sua referência
ao ditado talmúdico de que alguns ensinamentos —“A Explicação do Começo” e
“A Explicação do Carro” —deveriam ser ensinados unicamente a alguns eleitos16.
Além disso, ao menos aparentemente, não há contradição com a tradição judia
em pleitear a existência de uma hierarquia no âmbito da sociedade. Os leitores
judeus de Maimônides aceitaram que Moisés fosse o mais perfeito dos homens e
que a categoria dos profetas fosse mais elevada do que a do homem ordinário,
pelo fato de sua proximidade de Deus. E mais, durante os períodos do Primeiro
e Segundo Templos, existiram instituições hierárquicas de reis e de sacerdotes.
Num nível mais baixo, ou pelo menos mais visível, no seio da comunidade judia
—mesmo durante a Diáspora - a posição dos juizes, dos chefes comunitários e
dos sábios era geralmente bem estabelecida, mesmo sendo às vezes contestada.
Era precisamente a essas hierarquias reconhecidas que Maimônides podia
referir-se - e, na ocasião, redefini-las para que elas pudessem estar de acordo com
sua hierarquia dos valores de orientação filosófica. Com efeito, nas mãos de
Maimônides, tais modelos tradicionais ajudaram a conferir legitimidade à filoso­
fia, enquanto empresa essencial para o indivíduo judeu, assim como elemento
precioso dentro da estrutura do regime teológico-político judeu.

Empenho comunitário contra a contemplação solitária

Na oposição à contemplação solitária, a posição de Maimônides não é


inequívoca quanto à importância relativa do compromisso político e comunitá­
rio, enquanto atividades necessárias para obter a perfeição humana. A esse
respeito, suas diversas observações podem refletir as diferenças de acentuação
encontradas nos escritos de Al-Farabi (que seguia a tradição de Platão,
encorajando os filósofos a serem dirigentes políticos) e de Ibn Bajja (que sobre
esse ponto pare» c mais próximo de Aristóteles, que, ao menos na ausência de
um regime virtuoso, estima preferível para o filósofo escolher a vida de um
homem privado, à margem do regime político). Enquanto for possível encon­
trar passagens que sugiram que a vida solitária contemplativa .deveria ser a
escolha d' .ndivíduo verdadeiramente perfeito, em particular no Guia dos
Extravia os, a tendência dos escritos desse autor —assim como seu exemplo
pessoal de implicação comunitária associado a um compromisso com a perfei­
ção intelectual - deixa entender que ele considerava o compromisso comuni­
tário parte importante da atividade do indivíduo intelectualmente virtuoso e
aperfeiçoado. Dessa maneira, parece que Maimônides se alinha mais do lado
de Al-Farabi do que do Ibn Bajja quanto ao desejo do filósofo verdadeiro e
aperfeiçoado de estar associado ao governo político.

727
As forças e as fraquezas da lei religiosa revelada

A importância da lei religiosa enquanto moldura das ações e das crenças


do povo judeu é, talvez, a doutrina mais notável do pensamento político de
Maimônides. É a Lei Judia que organiza a vida política do povo judeu como
um conjunto, da mesma maneira que ela proporciona a estrutura para a vida
social e moral dos indivíduos dentro da comunidade. Maimônides pensava que
não haveria, nunca, mais do que um pequeno número de indivíduos, por
geração, que poderia viver segundo os princípios da razão; para todos os
outros indivíduos, a religião, por suas leis e crenças, proporciona um guia
insubstituível17. Além disso, a opinião dele era de que a lei é necessária em
todas as comunidades humanas para que “a diversidade natural dos homens
seja escondida pelos múltiplos pontos de acordo convencional e para que a
comunidade se torne bem ordenada”. Por essa razão, ele pretende que “a Lei,
se bem que ela não seja natural, penetre o que é natural”18, e sua sabedoria
última deve ser defendida e preferida em todas as circunstâncias normais,
mesmo indo contra a soberania absoluta do mais sábio dos governantes.
Enquanto Maimônides segue o raciocínio de Al-Farabi sobre a importância
política da religião enquanto fonte de padrão para as leis e as crenças que serão
facilmente compreensíveis e aceitáveis pela multidão, ele recusa a acentuação por
Al-Farabi do caráter provisório e variável da lei. Desse modo, contrariamente a
Al-Farabi, Maimônides defende fortemente a supremacia do “regime baseado
sobre a razão”. Enquanto Maimônides, como a própria tradição judia, deixa lugar
para suplementos provisórios da lei religiosa como para suspensões temporárias
de ordens particulares em períodos de crise, mesmo um verdadeiro profeta ou
Sanhedrin (Alta Corte dos 71 sábios judeus) não tem, autoridade para revogar
de maneira definitiva o menor dos mandamentos.
A razão pela qual Maimônides prefere a supremacia da lei sobre a
autoridade viva do raciocínio filosófico está fundada sobre sua preocupação de
que as mudanças no interior da lei religiosa poderiam facilmente conduzir a
um enfraquecimento da legitimidade da lei aos olhos da multidão e, por esse
meio, abalar a estabilidade da ordem política. Essa matéria é particularmente
delicada pois, segundo Maimônides, a lei em questão é revelada de modo
divino; daí, acrescentar ou subtrair alguma coisa aos mandamentos da lei
poderia conduzir à corrupção das prescrições da Lei e à crença de que esta
última não provém de Deus.19 Realmente, segundo Maimônides, é o caráter
fixo e obrigatório da lei que é a verdadeira fonte de sua força e deve, em
conseqüência disso, ser preservado mesmo à custa de uma tomada em consi­
deração exaustiva das necessidades particulares de certos indivíduos. Maimô­
nides declara: “O governo pela lei deve ser absoluto e universal, e englobar
cada um, mesmo se esse só convier a certos indivíduos e não aos outros; pois,
se ela fosse adaptada aos indivíduos, o todo seria corrompido e vocês fariam
dela alguma coisa variável.”20
Apesar do apoio de Maimônides para o caráter absoluto e universal da lei
religiosa (política), da mesma forma que Al-Farabi e a tradição filosófica, ele

728
indica igualmente as limitações intrínsecas da lei e, conseqüentemente, do
“regime baseado sobre a lei”. Fazendo eco às observações que se encontram nos
escritos de Platão e de Al-Farabi quanto à não-especificidade e à inflexibilidade
da lei, Maimônides escreve: “A lei é orientada somente para o que tem lugar
dentro da maioria dos casos e não se ocupa com o que acontece raramente nem
com o prejuízo sobrevindo ao ser humano particular em razão dessa via de
determinação e do caráter jurídico do governo.”21 Ainda, Maimônides sustenta
que “será, além disso, impossível que as leis sejam dependentes das mudanças
de época ou da condição dos indivíduos, como é o caso para o tratamento médico,
que é adaptado a cada indivíduo segundo o aspecto que ele tenha no momen­
to”22. Por sua crítica da lei, Maimônides sugere uma conclusão que Platão e
Al-Farabi indicam explicitamente: a lei não é sempre capaz de se ocupar de um
particular ou de uma situação dada de uma maneira totalmente justa ou perfeita,
já que a lei não leva em consideração um particular enquanto tal. Efetivamente,
ele insiste sobre o fato de que a lei não se preocupa com o prejuízo ocasionado
a um indivíduo particular, pois ela só tem como objeto as coisas que acontecem
na maioria dos casos e porque sua autoridade tem um caráter fundamentalmente
legal (mais do que racional ou filosófico)23. Isso levanta a questão de saber se a
observância da Lei judia é suficiente para conduzir os mais perfeitos indivícjuos
à última perfeição humana.
Segundo Maimônides, a observância mesmo da lei mais perfeita é insufi­
ciente para permitir a um indivíduo o acesso à última perfeição humana. A Lei
não pode fazer mais do que mostrar como a perfeição pode ser alcançada. “No
que concerne às opiniões corretas pelas quais a última perfeição pode ser
realizada, a Lei só comunicou suas finalidades e convidou apenas de uma
maneira sumária a acreditar nelas.”24 É unicamente por meio de uma inves­
tigação e de uma especulação racionais dentro das ciências teóricas que os
indivíduos podem atingir a perfeição, incluindo a vida eterna do outro mundo.
Uma tal investigação intelectual é a única base possível para adquirir o
conhecimento verdadeiro e demonstrativo - na medida em que esse co­
nhecimento pode ser adquirido por seres humanos. Maimônides descreve a
última perfeição do homem assim:

A última perfeição (do homem) é a de tornar-se racional em ato, quero dizer, a de ter a
inteligência em ato; isso consiste, dentro de seu conhecimento de todas as coisas
concernentes a todos os seres, que é da capacidade de o homem conhecer em nome de
sua última perfeição. É evidente que nem as práticas, nem as qualidades morais
dependem dessa última perfeição e que essa consiste unicamente em opiniões em direção
às quais a especulação se referiu e que a busca tornou inevitáveis25.

As limitações da lei judia para obter a última perfeição para o indivíduo


verdadeiramente virtuoso não invalidam a importância dessa Lei. A Lei religio­
sa preenche um papel essencial por sua capacidade de endereçar-se à imagina­
ção dos homens, conduzindo, por meios não-racíonais, a multidão a agir em
conformidade com as exigências da razão e da moralidade. Esse ponto é
acentuado pela comparação de Maimônides entre a Lei judia —que serve de

729
modelo de lei religiosa virtuosa - e as leis pagãs - que são o modelo de leis
não-virtuosas. De um lado, Maimônides continua a sublinhar que os indivíduos
devem viver dentro das comunidades políticas bem ordenadas a fim de atingir
a perfeição e que um código virtuoso de direito é necessário para manter a
ordem dentro de tais comunidades. De outro lado, Maimônides tenta mostrar
que a Lei judia virtuosa não se opõe à pesquisa filosófica e à realização da vida
de perfeição humana última; realmente ele encoraja tal atividade. Maimônides
distingue entre as leis divinas e os nomoi, segundo a compatibilidade da lei
com a realização da última perfeição humana, e ele exprime a opinião de que
a Lei judia conforma-se às exigências esperadas da Lei divina26. Entre suas
numerosas qualidades, a Lei judia aboliu crenças e ações errôneas e pernicio­
sas que faziam parte integrante de um grande número de leis pagãs - se não
de todas27. As atividades e as crenças que a Lei judia exige não interferem com
a realização pelo homem de sua perfeição última; além disso, ao menos de uma
maneira sumária (pelo mandamento de “amar a Deus”, especialmente na
máxima: "Vós amareis vosso Deus com todo vosso coração, com toda vossa
alma e com toda vossa força”)28, a lei convida os homens a aceitarem todas as
opiniões corretas concernentes ao conjunto do ser - cujo conhecimento é uma
condição necessária para atingir a perfeição humana29.
Fazendo sobressaírem as qualidades marcantes da Lei judia, Maimônides
acentua o espírito telelógico dos mandamentos dessa Lei. Segundo ele: “É
doutrina de todos nós (judeus) —ao mesmo tempo da multidão e da elite - que
todas as Leis têm uma causa.”30 Enquanto explica que os detalhes específicos
de certos mandamentos não têm razão de ser particular e “foram dados
simplesmente para ordenar alguma coisa”, sustenta também que “as generali­
dades dos mandamentos têm necessariamente uma causa e foram dadas em
razão de uma certa utilidade”31. A discussão de Maimônides do espírito
telelógico da Lei judia é motivada por seu desejo de provar que ela é um
exemplo de lei tão perfeita quanto possível - considerando as restrições
impostas à natureza humana e a existência contínua de um grande número da
multidão dentro de toda comunidade política. Assim, mesmo se a Lei tem
limitações e mesmo se ela só faz indicar a finalidade mais do que ser ela mesma
o fim, o pensador filósofo judeu deve apreciar a necessidade da lei e a
excelência, e a utilidade da Lei judia como um fundamento supremamente
virtuoso para a existência durável do povo judeu e para suas estruturas sociais,
jurídicas e políticas bem ordenadas.

Conclusão

À luz do tratamento de Maimônides da importância da lei em geral e


da Lei judia em particular, pode ser possível apreciar seus esforços infatigá­
veis na preparação de sua codificação da Lei judia. A elaboração da Mischnê
Torá e de suas numerosas Responsa são exemplos dos esforços de Maimô­
nides em conservar e defender a Lei judia, assim como em aplicá-la ativa­
mente nas circunstâncias de sua época. Por todos esses meios, ele tentava

730
fazer da Lei judia um exemplo de lei tão virtuosa quanto possível. Contudo,
ele não compromete seu empenho para com o estudo e o rigor intelectuais,
e, desse ponto de vista, ele estava pronto a indicar as limitações de toda lei,
incluindo aquelas da Lei judia. A esse respeito, seu empenho em favor da
pesquisa filosófica, que o conduzia para além da esfera político-religiosa, é
uma característica essencial de seu ideal de verdadeira profecia e de verda­
deira direção política. É a realização da perfeição intelectual, além da
perfeição da faculdade imaginativa, que separa o verdadeiro profeta da
“classe daqueles que governam as cidades”, isto é, daqueles que dirigem a
partir de uma imaginação altamente desenvolvida, mas associada a facul­
dades intelectuais deficientes32. Maimônides, da mesma maneira que Platão
e Al-Farabi antes dele, reserva o mais alto elogio para aqueles que, primeiro,
realizam a perfeição filosófica e somente em seguida se empenham na
atividade política de governar dentro de seu próprio regime. O empenho de
Maimônides dentro da comunidade religiosa e sua defesa do judaísmo devem
ser apreciados sob esse esclarecimento.

Jeffrey MACY.

T r a d u z id o d o i n g l ê s p o r T e r e n c e e A n n e - J e a n i n e M a r s h a l l •

• Moisés Maimônides (Moshe ben Maimon) nasceu em 1135 ou 1138, em Córdoba, na Espanha,
onde, após estudos judaicos com seu pai, estudou a filosofia e a ciência natural com sábios
muçulmanos. Por causa da perseguição religiosa dos Almohades, ele deixa a Espanha em 1160 com
sua família para habitar o Marrocos, em Fez, onde continua seus estudos até 1165 com sábios
muçulmanos. De novo a perseguição o obriga a partir, depois de ter habitado Acre e Jerusalém, ele
se instala definitivamente em Fosfat, no Cairo, onde se toma o médico do vizir de Saladin. Ele
morreu no Cairo em 1204 e foi enterrado em Tiberias. Além do Guia dos Extraviados (escrito em
árabe), a principais fontes do seu pensamento político encontram-se no Mischnê Tord (escrito em
hebreu) e no Comentário sobre a Mischnd (escrito em árabe). 0 Comentário sobre a Mischnd,
escrito em 1168, foi sua primeira obra jurídica e explica o grande Código de direito rabínico, a
Mischnd, que fora elaborada no século III da era cristã e em seguida incorporada ao Talmude. O
Mischnê Tord, escrito em 1180, representa igualmente uma tentativa de expor as leis talmúdicas
de uma maneira clara e sistemática. O primeiro dos quatorze livros do Mischnê Tord está disponível
em língua francesa sob o título de: Le Livre de la Connaissance (O livro do conhecimento), PUF,
1961. A obra magistral de Maimônides, o Guia dos Extraviados (1185-1190), examina o problema
colocado pela filosofia grega para aquele que acredita na Lei revelada. Para a edição crítica, ver
Salomão Munk, Le Cuide des EgarésfO Guia dos Extraviados), texto árabe e francês, 3 voL, Paris,
1856-1866. Esse texto foi revisado e reeditado por Issacher Joel (Dalalat al-ha’irin, Jerusalém, J.
Junovitch, 5691, 1930/1931). Uma nova edição francesa, sem o texto árabe, está disponível em
Maisonneuve et Larose, Paris, 1970, assim como uma edição da tradução de Munk, sem suas notas,
em Verdier, Lagrasse, 1979. Esta última edição comporta igualmente o Traité des Huit Chapitres
(Tratado dos Oito Capítulos), um longo ensaio sobre a ética que serve de introdução a Pirqei Avot
(“Os Capítulos dos Pais”), e faz parte do Comentário sobre a Mishná.
(Ver igualmente a excelente edição em língua inglesa, The Cuide o f the Perplexed, trad. inglesa
por Shlomo Pinès, em dois volumes, Chicago, University of Chicago Press, 1963, com ensaios

731
de introdução por Leo Strauss, “How to begin to study ‘The Cuide o f lhe Perplexed'", e por
Shlomo Pinès, “The Philosophlc Sources o f ‘The Cuide o fth e Perplexed”’, págs. XI-CXXXIV.
Para bibliografias detalhadas, ver H. Serouya, Maimonides, PUF, 1964; S. Zak, Malmonides,
Seghers, 1965; S. Pinès e Y. Yoval, eds, Maimonides and Phllosophy, Dordrecht, Martinus
Nijhoff Publishers, 1986; Déllvrance et fidelité: Maimonide. Textos da Conferência acontecida
na Unesco em dezembro de 1985 por ocasião do 850* aniversário do filósofo, Paris, Unesco e
Edition Erès, 1986; Leo Strauss, Maimonide, traduzido por Rèmi Brague, PUF, 1988.

NOTAS
1. Guia dos Extraviados, 1* parte, Introdução.
2. MtschnS Tord, Introdução Ceral.
3. Com efeito, particularmente nas longas Introduções de Maimônides no Comentário
sobre a Mishnd e os quatro primeiros capítulos do Livro do Conhecimento dentro da MtschnS
Tord, pode-se achar algumas questões apresentadas dentro de uma perspectiva mais filosófica
do que dentro do Guia dos Extraviados.
4. Guia dos Extraviados, 1* parte, Introdução.
5. Ver o fim da seção introdutória do Shemonah Peraquin, em Maimonides, Commen-
taire sur la Mishnah.
6. Sobre esse ponto ver Herbert Davidson, Maimonides’ “Shemonah Peraquim” and
al-Farabi’s “Fusul al-Madani”, Proceedings o f the American Academy for Jewish Research, 31
(1963), págs. 33-50, e Jeffrey Macy, A study in Medieval Jewish and Arabic Political Philosophy:
Maimonide’ “Shemonah Peraquin”andal-Frabi's “Fusul al-Madani”, tese de doutorado, The
Hebrew University of Jerusalem, 1982.
7. Ver Alexander Marx, Texts by and about Maimonides, Jewish Quarterly Review, vol.
XXV (Novas séries) (1935), notadamente as págs. 378-380.
8. Ver Commentaire sur la Mishnah: Shemonah Peraquim, cap. 7, e Sanhedrin, 10,1
(6* e 7* Princípios de Fé); Mishneh Torah, Le Livre de la Connaissance, “Príncipes de la
Torah", caps. 7-10; Cuide des Egarés, principalmente Livro II, caps. 32-48.
9. Commentaire sur la Mishnah, Sanhedrin, 10,1 (6* Princípio da Fé). Comparar essa
passagem com a discussão de Al-Farabi da “revelação” filosófica dentro de Le Régime politique
(Al-Siyasa at-Madaniyya), texto árabe, ed. Fauzi Najjar (Beirute, Imprimerie Catholique, 1964),
págs 79-80.
10. Mishneh Torah, Livre des juges, “Les Rois et leurs guerres”, 12. Na Mishneh Torah,
ver, geralmente, caps. 11 e 12 de “Os reis e suas guerras”, e o Livro do Conhecimento. “0
Arrependimento”, cap. 9. A era messiânica é também discutida nos outros principais escritos de
Maimônides.
11. Para as discussões de Maimônides sobre o outro mundo, ver a Mischné Tord, O Livro
do conhecimento, “O Arrependimento”, caps. 8-10, Comentário sobre a Mischnd Sanhedrin,
X, 1, O Tratado sobre a Ressureiçdo e outros de seus escritos.
12. Commentaire sur la Mishnah, Introdução geral, nas edições Kafili do texto judaico-
árabe (Jerusalém, Mossad Harav Kook, 1964), 1,4243.
13. Ibidem, 1,43.
14. Ibidem, 1,44.
15. Ibidem. Deve-se notar que se encontra em L ’A ccession à la Felicité.de Al-Farabi (Tah
sil al-Saeada) (Sec. 18) um paralelo ainda não notado a propósito da discussão acima dentro do
Commentaire sur la Mishnah de Maimônides. Al-Farabi declara: “O homem chega à última
perfeição unicamente quando ele se esforça, segundo os princípios racionais, para realizar essa
perfeição. Além disso, ele não pode se esforçar para realizar essa perfeição sem explorar um
grande número de seres naturais (incluindo homens não-aperíeiçoados) e antes de tê-los tomado
úteis a seu acesso à última perfeição que ele deve realizar... Um homem isolado não pode realizar
todas as perfeições por si mesmo e sem a ajuda de muitos outros indivíduos. É também da
natureza inata de ser vivo procurar refúgio e pemanecer perto daqueles que pertencem à mesma
espécie. É por isso que ele é chamado de animal social e político.”

732
16. Ver, por exemplo, Commentaire sur la Mishnah, Hagigah, 2 ,1. A fonte rabínica para
esse princípio pode ser encontrada dentro da Mishnah, Hagigah, 2,1, e no Talmude babilõnico,
Hagigah, 1 lb e 13a. Maimônides apresenta também esse ponto de vista em outros escritos,
incluindo a Mlschnè Tord e o Gula dos Extraviados.
17. Para uma vista semelhante dentro dos escritos de Al-Frabi, a qual é muito mais
explícita a respeito do fundamento da religião dentro da imagem mais do que dentro do que é
verdaeiro e demonstrável, ver O Regime político, op. cit., (texto árabe), págs. 85-86. Al-Farabi
declara:"... A maioria dos homens, seja por natureza, seja por hábito, é incapaz de compreender
e de conhecer essas coisas; esses são os homens para quem se deve representar (essas coisas)...
por meio de outras que são imitações dessas... É possível imitar essas coisas para cada grupo
ou para cada nação, utilizando matérias diferentes em cada caso. Em conseqüência, pode haver
numerosas nações e cidades virtuosas cujas religiões são diferentes, mesmo quando todas elas
perseguem a mesma espécie de felicidade. Com efeito, a religião ê somente as impressões
dessas coisas ou as impressões de suas imagens, gravadas na alma. Porque é difícil para a
multidão compreender essas coisas tais como elas são, a tentaiva era ensinar-lhe essas coisas
por outros meios que são as vias da imitação.”
18. Guide des Egarés, II, 40.
19. Guide des Egarés, III, 41.
2 0 . Guide des Egarés, III, 34.
21. Ibidem.
22. Ibidem.
2 3 . Ibidem.
2 4 . Guide des Egarés, III, 28.
25. Guide des Egarés, III, 27.
2 6 . Guide des Egarés, II, 39 e II, 40.
27. Ver notadamente, Guide des Egarés, III, 29-32, e II, 39. Ver também a discussão das
“razões de ser para os mandamentos” em III, 35-50.
28. Deutéronome 6, 5, e Cuide des Egarés, UI, 28. Cf. Guide des Egarés, I, 39 (o fim), e
III, 53 (o fim).
29. Guide des Egarés, II, 39-40, e III, 25-34.
30. Guide des Egarés, III, 26.
31. Ib id em . Cf. M ish n eh Torah, “Hilkhot Meeilah”, 8,8. Sobre u discussão por Mimônides
de h u g g im e de m is h p a tim ou m itzv o t, ver também S h em o n a h P e r a q u im , cap. 6.
32. Guide des Egarés, II, 37.

MAISTRE, Joseph de, 1753-1821


Considerações sobre a França, 1797

As Considérations sur la France foram publicadas em 1797. Pela


primeira vez, as vítimas da Revolução falam não para gemer ou insultar, não
para divulgar seus danos, mas para se esforçar a compreender o que se passou
e também para considerar o futuro provável. Pela primeira vez no próprio
continente e na própria língua dos revolucionários, o pensamento se esforça
para enfrentar a radicalidade da Revolução. Burke certamente abrira de
maneira magnífica o caminho, mas estava afastado do grande teatro, a Revolu­
ção não o havia tocado diretamente. Joseph de Maistre, ao alcance dos canhões

733
do exército francês, foi o primeiro grande recusante: mais do que as Reflec-
tions de Burke, suas Considerações fundam a tradição da reação ou da
contra-revolução, dessa corrente de pensamento que, em vez de criticar a
Revolução por tal ou tal de suas medidas, ou por seus “excessos”, em geral, a
rejeita por inteiro, em seu princípio, como contrário à própria natureza do
homem social e moral.
O que determina toda a vida do pensamento de Maistre é uma cons­
tatação: a Revolução é um fenômeno radicalmente novo, cujo caráter mais
saliente é a irresistibilidade. Pela primeira vez na história, todas as leis da
previsão e da prudência humanas foram, por assim dizer, suspensas. Não
somente os adversários da Revolução foram impotentes e mesmo ridículos,
mas ainda seus partidários e seus atores foram levados por ela. Nem uns, nem
outros sabiam o que estavam fazendo: “O que é mais surpreendente na
Revolução Francesa é essa força condutora que derruba todos os obstáculos...
Mesmo os celerados, que pareciam conduzir a Revolução, nela só entraram
como simples instrumentos; e, quando tiveram a pretensão de dominá-la,
caíram ignobilmente. Aqueles que estabeleceram a República o fizeram sem
querer e sem saber o que faziam; eles foram levados pelos acontecimentos: um
projeto anterior não teria sido bem-sucedido. Jamais Robespierre, Collot ou
Barère pensaram estabelecer o governo revolucionário e o regime do Terror...
Enfim, quanto mais se examinam os personagens aparentemente mais ativos
da Revolução mais se encontra neles alguma coisa de passivo e de mecânico”
(cap. I). Qualificações infamantes à parte, não se pode duvidar de que Maistre
tenha formulado aqui, muito bem, os sentimentos dos contemporâneos da
Revolução, sentimentos imediatos que o olhar retrospectivo, que hoje é
possível para nós, confirma mais do que os reprova: o primeiro ou, melhor, o
único ator da Revolução foi a própria Revolução ou, ainda, como diz Maistre,
o “espírito” ou a “fé” revolucionária.
Aqui está a fonte do “providencialismo” desse autor. Os homens não
sabem o que fazem, e, no entanto, o resultado de suas ações cegas não é uma
pura anarquia, mas uma organização política e militar de uma potência que
confunde. É preciso realmente responder à questão: quem faz o quê? Se não
são os homens, só pode ser a Providência. E, como a Revolução devasta, é que
a Providência castiga. A Revolução “satânica” castiga a Europa - e primeiro a
França —por sua longa impiedade.
Esse tema, o tema de Maistre por excelência, assegurou sua celebridade,
pois ele o orquestrou magnificamente; mas ele fez também com que, mesmo
admirando-se o escritor, não se levasse a sério o pensador. Os ateus sorriram,
e os crentes estremeceram, pois nada é mais certo para o crente do que isto:
os caminhos da Providência são impenetráveis. Joseph de Maistre, escrutando
"os caminhos da Providência na Revolução Francesa”1, colocou a contra-revo­
lução européia em uma posição literalmente excêntrica.
No entanto, todo o pensamento europeu, em seguida a precisamente e
em conseqüência dessa mesma revolução, deveria fazer face à mesma
dificuldade: se os acontecimentos não são inteligíveis a partir das intenções

734
e das ações dos atores políticos colocados em circunstâncias dadas, qual é o
princípio de inteligibilidade? A opinião dominante responderá: é a História.
O que é a história? O que acontece necessariamente sem ser nem previsto,
nem desejado por ninguém. À excentricidade brilhante do conde de Maistre
sucederão as tautologias científicas do século XIX. Os acontecimentos dos
quais a Revolução Francesa é o eixo fornecerão ao historicismo sua impres­
sionante palusibilidade. O "providencialismo” de Maistre não pode ser, em
boa lógica, menos plausível do que esses historicismos. Em sentido inverso,
é preciso contar com que as dificuldades e as contradições do historicismo
já fossem as suas.
A dificuldade diante da qual se encontra Maistre é a seguinte: se toda
ação humana realmente boa só pode vir de Deus, de sua ação direta, o que
pode fazer o homem dentro da ordem política, além de rezar a Deus e
"conjeturar” os caminhos da Providência? Maistre propõe duas respostas.
Se apenas Deus age verdadeiramente, o homem só pode agir com Deus,
cooperando com ele, contando-lhe todas suas ações, dedicando-as. A política
só é boa quando aliada à religião. Aqui ainda a dedução metafísica (influencia­
da sem dúvida pelo sistema de Malebranche) está apoiada sobre uma cons­
tatação: as coisas humanas mais duráveis —instituições, festas, línguas —têm
sempre uma raiz religiosa. A religião, verdadeira ou falsa, só ela pode fundar.
Sobre esse ponto, Maistre invoca, justamente, a opinião de Rousseau. Como o
cristianismo ou, melhor, a Igreja católica é a matriz da civilização européia, a
política européia, para retornar a ser salutar, deve entrar em sinergia com essa
Igreja da qual o Papa é o fecho da abóbada. Maistre acredita que a Igreja
Católica seja verdadeiramente uma instiuição divina, mas, a seus olhos, o
argumento valeria mesmo se suas pretensões fossem tão pouco fundadas
quanto as de Maomé. É preciso fazer de novo, do catolicismo, a religião civil
da Europa. Essa é a primeira resposta de Maistre à questão que fazer se o
homem nãda pode fazer?
Sua segunda resposta se apóia exclusivamente sobre as leis e os fatos
deste mundo. Já que o homem nada pode fazer, ele nada deve fazer. Quando
pretende agir com deliberação, fracassa invariavelmente. Os modernos acredi­
tam que o homem pode organizar o mundo social segundo uma ordem
previamente construída pelo espírito, segundo uma constituição escrita: ilusão
fatal! O homem não pode fazer acontecer o que não existe; ele pode, no
máximo, fazer acontecer o que já existe, torná-lo visível. Desde as Conside­
rações, Maistre desenvolve uma crítica do “construtivismo” moderno que,
enquanto tal, é perfeitamente independente de seu “providencialismo”, assim
como de seu catolicismo. Essa crítica pode ser condensada da seguinte
maneira:
1) Nenhuma constituição política, boa, resulta de uma deliberação. O que
está escrito, para não ser frívolo ou funesto, se deve limitar a declarar o que
existia anteriormente.
2) Não há nenhum sentido em falar em geral dos direitos do homem ou
dos direitos do povo. Primeiro, esses “direitos” declarados têm muitas vezes

735
sua origem na concessão do soberano, concessão de maneira nenhuma "livre”
ainda assim, já que ela fora exigida pelas “circunstâncias”. Na verdade, “os
homens são apenas circunstâncias” (cap. VI). Em seguida, esses “direitos” só
são declarados quando forem anteriormente atacados. O autor se apóia
ordinariamente em exemplos fornecidos pela história inglesa. Permanecerá
durante toda sua vida grande admirador do sistema político inglês, tomando
sempre a precaução de acrescentar: para a Inglaterra.
3) Mesmo os “legisladores” mais “criativos” não fazem mais do que
reunir e codificar elementos políticos preexistente nos hábitos do povo que
eles parecem instituir.
Em outros termos, aos olhos de Maistre, o problema da legislação ou
da constituição é um problema de “sociologia política”: “Sendo dados a
população, os costumes, a religião, a situação geográfica, as relações
políticas, as riquezas, as boas e as más qualidades de uma certa nação,
encontrar as leis que lhe convêm ”2. Sobre esse ponto fundamental, o ultra,
o reacionário, o papista coloca o problema político não como os antigos nem
como a tradição católica que os seguira, mas como o liberal Montesquieu e,
mesmo, como o revolucionário Rousseau3: um corpo político é essencial­
mente um indivíduo, um particular. Daí sua famosa saída: “A Constituição
de 1795, exatamente como as mais velhas do que ela, foi feita para o homem.
Ora, não existem mais homens no mundo. Eu vi, em minha vida, franceses,
italianos, russos, etc.; sei mesmo, graças a Montesquieu, que se pode ser
persa; mas, quanto ao homem, declaro não o ter encontrado em toda minha
vida; se ele existe, na verdade eu não o soube” (cap. VI, sublinhado por
Maistre).Aqui se apresentam, como no caso de Burke, os efeitos intelectuais
da reação política. Os revolucionários baseavam a legitimidade de seu
empreendimento na universalidade de seus princípios, na natureza do
homem enquanto homem. Os contra-revolucionários, violentamente repeli­
dos pelas conseqüências desse empreendimento, vêm a rejeitar a própria
idéia de princípios políticos universais, valendo para o homem enquanto
homem. Por esse aspecto mesmo eles rompem mais radicalmente com a
tradição da filosofia política clássica do que o haviam feito os próprios
revolucionários. E, politicamente, se colocam deliberadamente numa posição
de inferioridade ante o universalismo do empreendimento revolucionário:
eles chamam de Homem a esse homem aqui. A parte não é igual (ao todo).
É verdade que a filosofia política clássica concedera às considerações de
prudência, no exame atento das particularidades de um corpo político dado,
uma importância muito maior do que a filosofia política oficial4 das Luzes, que
concentrava sua atenção sobre os "direitos do homem” em geral. Nesse
sentido, Burke e Maistre reencontram o ponto de vista clássico, mas eles
exageram a ponto de torná-lo irreconhecível. Separada de toda orientação por
princípios universais valendo para o homem enquanto homem, a idéia de
prudência, de adaptação à particularidade, invade todo o campo da reflexão
política: por isso mesmo ela tende a se autodestruir. Com efeito, só o universal
pode ser um fim para o homem; não certamente o fim imediato em que termina

736
a ação, mas esse fim último, em si mesmo irrealizável, que orienta os fins
particulares, os únicos realizáveis. O universal só pode ser visado pela ação, o
particular, sendo o que é, constatado posteriormente. Portanto, a reação
contra-revolucionária, de Burke ou Maistre, que havia partido para reconquis­
tar o domínio da razão prática extenuado pelo doutrinalismo revolucionário,
anulou ou tentou anular completamente esse domínio. O mundo humano,
concebido como uma constelação mutável de particularidades, não é mais o
teatro da ação política, mas o objeto da contemplação histórica, nostálgica e
provinciana, ocupada em conservar a lembrança e as cores do “mundo que
perdemos”. Ou, então, em um outro registro, obedecendo, no entanto, à mesma
lógica, o mundo humano tornou-se o objeto do olhar sociológico, ocupado em
desenvolver indefinidamente o caleidoscópio de suas correlações, correlações
entre particulares que não organizam e não orientam mais fins humanos
universais.
O “particularismo” e o “providencialismo” de Maistre se misturam e se
fundem na apoteose da nação, da França. O título da obra já o assinala: o objeto
específico dessas Considerações, a Revolução, está envolvido por aquilo que
é seu objeto eminente: a França. É possível que o autor tenha desejado não
lembrar exatamente demais o título reservado por Burke5, mas suas razões são
mais profundas.
Para Maistre, o drama que sofre a Europa não é tanto o da Revolução
Francesa, mas muito mais o da França em Revolução. E a França terá a última
palavra sobre a Revolução, pois ela (ou melhor a Providência que vela por ela)
saberá fazer “o satanismo” da Revolução servir para sua salvação. Os coligados
querendo desmembrar a França, é claro que, “o movimento revolucionário
uma vez estabelecido, a França e a monarquia só podiam ser salvas pelo
jacobinismo... Como resistir à Revolução? Só o gênio infernal de Robespierre
podia operar esse prodígio... esse monstro de poder... era ao mesmo tempo um
castigo horrível para os franceses e o único meio para salvar a França... [nossos
sobrinhos] se consolarão facilmente dos excessos que vimos e que conserva­
ram a integridade do mais belo reino depois daquele do Céu’’ (cap. II, a,
sublinhado por Maistre). O cinismo estranho das primeiras linhas - apesar de
explicável em parte pela intenção imediata da proposição: trata-se de mostrar
que “toda revolução realista é impossível antes da paz” - merece nossa
reflexão. Maistre ataca em as Considerações a “cruel filosofia” moderna que
assegura que “tudo está bem” quando seria preciso dizer bem mais que “tudo
está mal” (tudo está marcado pelas conseqüências do pecado original). Ora, as
linhas que acabamos de ler sugerem que dizer “tudo está mal” é apenas uma
outra maneira de dizer “tudo está bem” ou, ainda, “tudo é necessário”. Ou,
mais precisamente, para o autor "tudo está bem” mantém ou restaura as
soberanias estabelecidas.
A revolução realizou-se primeiro dentro de um corpo político cujos
limites e cuja consistência haviam sido estabelecidos pela soberania dos reis
da França. No momento em que Maistre escreve, a França tem duas definições
à primeira vista rigorosamente exclusivas: ou bem ela é uma nação soberana

737
em nome da soberania do povo, ou bem ela está sujeita à soberania dos reis
da França, soberania suspensa, mas da qual Maistre espera e anuncia a
restauração. Porém, se ele conta com o fato de que a França - e portanto a
verdadeira soberania, a do rei - triunfará sobre a Revolução depois de se ter
servido dela, sugere também que ela —a França que está deste lado ou além
de uma e de outra soberanias —domesticará a “verdadeira” soberania restau­
rada: “O poder da soberania é totalmente moral. Ela comanda em vão se esse
poder não for para ela... O rei da França que subirá ao trono de seus ancestrais
certamente não terá o desejo de começar por abusos: e, se o tivesse, seria vão,
porque ele não seria suficientemente forte para contentá-lo. “O barrete verme­
lho*, ao tocar a fronte real, fez desaparecer os traços do óleo santo: o encanto
foi rompido...” (cap.X). Certamente, ainda aí, convém não solicitar demais
dessas linhas, imediatamente destinadas a tranqüilizar os franceses sobre as
conseqüências de uma restauração. Em todo caso, para Maistre, o que deve
ser, podendo apenas ser uma declaração do que é, a soberania absoluta (o que
deve ser) é declarada pela obediência de seus súditos, por todo o tempo em
que obedeçam, e especificada pela opinião que determina as modalidades
dessa obediência. A nação que, para existir, exige uma soberania é mais
fundamental do que o regime político.
Maistre quer restaurar a soberania real em seu esplendor, situada acima
dos homens que se quiseram dela apropriar e, no sentido estrito da palavra,
fazê-la. Porém, já que precisamente os homens não podem fazer a soberania,
ela continua sempre lá, apenas latente às vezes. Desde que um corpo político
dure, a soberania está presente. O desejo do autor de restaurar a soberania só
pode ser o desejo de fê-la restaurada pelas circunstâncias. A atitude política
de Maistre parece extraordinariamente agressiva ou polêmica; é que se trata
de resistir à tentação quietista que é consubstanciai em seu pensamento:
contemplar a presença permanente da soberania que se faz apenas uma com
a história da nação.
O estilo desse autor alia muito eloqüentemente a indignação e a ironia:
indignação diante dos homens que, querendo fazer, só podem fazer o mal, só
podem destruir; ironia diante dos homens, os mesmos, que, querendo fazer, só
podem fazer o nada: os “donos da França”, que "uma revolução inaudita
revestiu de todos os poderes..., não podem organizar uma simples festa” (cap.
V). As Considérations sur la France deram a tônica do ponto de vista
contra-revolucionário: a revolução só faz o mal (a ela é preciso se opor por
todos os meios), mas ela nada pode fazer (basta esperar que a “invencível
natureza” retome seu império). Dividido entre o ativismo muitas vezes in­
tempestivo e o quietismo irônico, entre a conspiração e a literatura, a contra-
revolução de tradição maistreana permaneceu sem influência sensível sobre o
destino político dos povos europeus.
Entretanto, é preciso ser justo: formulando de maneira brilhante sua recusa
da “libertação” revolucionária, percebendo com uma admirável acuidade certos

* Barrete vermelho - partidário da Revolução Francesa.

738
traços fundamentais do espírito e da prática revolucionária, Maistre guarda o
imperecível mérito de ter observado sem pestanejar a esfinge mortífera, a
Revolução, e de tê-la detestado o bastante para procurar compreendê-la.

• Utilizar-se-á a edição crítica das Considérations sur la France, estabelecida por Jean-Louis
Darcel e publicada por Slatkine, Cenebra, 1980, avant-propos de Jean Boissel.

► Sobre Joseph de Maistre em geral, Sainte-Beuve permanece o melhor guia. Ler-se-á em


particular seu longo estudo de 1843 retomado em Oeuvres, Pléiade, 1.11, págs. 385-466. Sobre
o estilo intelectual de Maistre, poder-se-á ler também Charles Du Bos, Approximations, Fayard,
1965, págs. 563-578.

Pierre MANENT.

NOTAS
1.0 título do capítulo II (a) é Conjectures de la Providence dans la Révolution françalse.
2. Cap. VI. Sublinhado por Maistre.
3. Cf. Esprit des lols (XIX, 4 e 5) e Contrai social (II, 2).
4. Compreendo por “oficial” o que era dominante na opinião pública e que foi eficaz.
Assinalei anteriormente que a posição efetiva de Montesquieu e Rousseau, por exemplo, tinha
pouco a ver com a vulgata dos “direitos do homem”.
5. Reflections on the Révolution In France.

MAN, Henri de, 1883-1953


Além do marxismo, 1922

Publicado primeiro na Alemanha, em 1922, sob o título de Zur Psycho-


logie des Sozialismus, Além do marxismo não podia escapar ao destino de seu
autor. A obra marcou uma ruptura no itinerário quase banal de um filho da
burguesia belga, primeiro tentado pelo anarquismo e que muito depressa
adotou o socialismo. Renunciar ao destino prometido pelo pai, trabalhador de
fábrica, procurar na Alemanha a terra do socialismo, estudar Marx como,
Talmude, Henri de Man havia querido transpor as etapas que o deviam lavar
de suas origens sociais; pelo menos até a guerra de 1914, que vencera a
resistência de seu integrismo. Pois só a guerra podia sujar o que a conversão
havia purificado, discreditando tudo o que lastreava o marxismo, valorizando
tudo o que ele ignorava.

739
É à luz desse passado que é preciso compreender Além do marxismo,
“fragmento de autobiografia pessoal”, teoria de uma prática que o autor quis
sublimar. Mas, pode-se evitar totalmente uma leitura retrospectiva, analisar o
que de Man escreveu sem saber o que ele se tornou? Um militante que, em
1940, apela para a dissolução do Partido operário belga, que ele próprio
presidiu, e vê "na derrota do regime parlamentar e da plutocracia capitalista
nas supostas democracias” uma redenção para o socialismo.
Apelo efêmero à colaboração: desde 1941, Henri de Man se afasta da
política ativa, se refugia na França onde se consagra a escrever. Mas ele não
poderá jamais escapar à etiqueta infamante. O historiador lê os fatos à luz de
seus próprios valores, pensava Max Weber. De Man, cuja epistemologia
repousava sobre as mesmas bases, não o teria desaprovado. Lê-se, portanto,
Além do marxismo e sublinham-se as palavras que já anunciam a conduta do
autor: as referências à autoridade, ao heroísmo, à elite. E espanta-se por
encontrá-las associadas ao amor, à justiça, à democracia. Mas, além dessas
contradições e dessas ambigüidades sobre as quais será preciso retornar
realmente, como ignorar o duplo esforço de demolição e de ultrapassagem do
marxismo - que sustenta a obra? Se Além do marxismo não é sem dúvida “o
mais importante trabalho de teoria socialista desde O Capital”, como por vezes
foi considerado, ele pode, no entanto, aparecer legitimamente, pela riqueza de
suas fontes e de sua análise, como uma das mais belas antropologias do
socialismo.

O marxismo ultrapassado

Enquanto Bernstein se propõe a adaptar os princípios do marxismo aos


problemas de seu tempo, enquanto Blum quer associar Jaurès e Marx, de Man
pretende ultrapassar o marxismo destruindo os três pilares sobre os quais ele
repousa: o determinismo, o hedonismo e o racionalismo.
Determinismo, primeiro. Henri de Man não reprova Marx por ter negado
a influência da vontade sobre o vir-a-ser histórico. Existe, no caso deste último
uma atenção ao político que supõe a atividade humana, mas essa tem,
definitivamente, um caráter predeterminado: “Basta conhecer a lei para cum­
pri-la.” Sublinhando o peso da infra-estrutura, Marx se fecha dentro de um
mecanismo causai característico do pensamento do século XIX. Ele mesmo
partia, sem dúvida, de um julgamento moral, porém devia apresentar como
necessário o que lhe parecia simplesmente desejável para sustentar a crença
no inevitável. As massas precisavam de um “Deus severo, violento e cruel”,
Marx lhes deu esse Deus com seu ato de fé determinista.
Que a existência material seja para o trabalhador uma condição do
despertar cultural, quem poderia negá-lo? Marx não se enganou ao resgatar
vínculos que a observação confirma ainda hoje, mas sim ao se esgotar na
procura de uma causa última reveladora de um espírito formado na escola do
cientificismo: “Salta aos olhos que um adepto do determinismo, como Marx,
não teria tido nenhuma dificuldade em procurar - e em achar - atrás dessas

740
causas ainda outras. Por que, por exemplo, ele não fez a evolução social derivar
da evolução geológica ou cosmológica?” A dependência aqui é também total­
mente evidente. Dir-se-á por isso que há determinação? Isso seria ignorar os
limites da casualidade em ciências sociais. A subjetividade do historiador, a
relatividade das hipóteses impedem de falar, aí, a linguagem da lei e, portanto,
da predição. Mas, pode-se ater, nesse caso, à da verdade: guiado pelo co­
nhecimento das condições - e não mais das causas —que favorecem a evolução
histórica, o homem se dá os meios de prever —e não mais de predizer —“certos
acontecimentos ou certas tendências de evolução”, em resumo, de medir a
influência de seu ato.
Se sobre essa distinção entre previsão e predição —que lembra a que Karl
Popper explicitará mais tarde - de Man, é claro, seu pensamento parece mais
hesitante quando desenvolve sua crítica da monocausalidade marxista. Ele
mesmo não rejeita totalmente a idéia de causa primeira e não está certo de não
encontrar no recurso às representações, à idéia, um substituto para a explica­
ção pela economia. A ponto de ele ver, mesmo em Marx, dissimulada pela
explicação causai, uma teoria dos motivos: “A elevação da série causai econô­
mica ao nível de causa última só significa, portanto, a profissão de uma fé
totalmente subjetiva, a saber a crença de que o motivo do interesse econômico
é a causa última da vontade nos homens que vivem em sociedade, ainda que
essa série causai se apresente sob a aparência de um conhecimento científico
objetivo.” A crítica do materialismo histórico visa em definitivo ao hedonismo
psicológico que funda o marxismo.
Hedonismo realmente, já que, para Marx, o interesse econômico é o
primeiro impulso da atividade humana: “O ser humano que pressupõe a teoria
marxista da ética baseada sobre o interesse de classe é um velho conhecimento.
É simplesmente o homo economicus da economia política liberal, o egoísta e
o hedonista perfeitos, que só conhece o instinto da perseguição de seu
interesse ‘bem compreendido’”. A incerteza reside nesta última expressão que
supõe a fixidez dos motivos e negligencia o trabalho original de percepção e
de representação do indivíduo. O instinto aquisitivo existe sem dúvida, mas em
concorrência com múltiplas outras necessidades, desejos e representações que
podem engendrar tanto a adaptação quanto a reação ao meio.
No fundo, Marx não escapou à problemática utilitarista de seu tempo:
observador do capitalismo, ele reproduziu sua mentalidade a ponto de confun­
dir a felicidade e o dinheiro. Deve-se falar de efeitos perversos? Os efeitos estão
inscritos dentro da própria lógica do paradigma marxista? Esse, em todo caso,
não pode dar conta da inqüidade do lucro. Pior, ele é culpado de ter
exacerbado “o instinto aquisitivo à custa dos motivos sociais mais elevados que
formam a convicção socialista”. Mais paradoxal enfim, ele traz em si o
inevitável desvio reformista: a consideração do interesse conduzido a privile­
giar o prazo curto.
É um defeito característico do racionalismo hipostasiar assim o interesse.
Fascinado pelas ciências da natureza, Marx não se contenta em postular a
racionalidade do real, identifica-a a uma de suas formas particulares: a matéria.

741
Fazendo a economia de sujeito, pensa, a partir do conhecimento da causa,
poder determinar a espécie, a intensidade e a medida da reação. Que seja
preciso operar assim por saltos epsitemológicos, H. de Man tenta mostrá-lo por
meio de uma reflexão sobre o “realismo conceituai”. Como todas as filosofias
da história, o marxismo substancializa as categorias; materializa-as “para que
as relações entre elas não apareçam mais como apenas relações entre objetos,
regulados por leis mecânicas da transmissão do movimento”. H. de Man, que
não parece ter lido ainda Max Weber, opõe a essa epistemologia um modo que
lembra o do tipo ideal: os "conceitos coletores” —imperialismo, militarismo...
—permitem ler o real, trazer à luz relações de casualidade entre os fatos, sem
poder se confundir com eles.
Sobre essa constatação, que ignora a distinção que Marx opera entre
modo de produção e formação social, instrumento teórico e realidade histórica,
de Man acredita poder opor ponto por ponto o que ele chama de a reação
mecânica e a reação psicológica. Tudo se mantém de fato no lugar por essa
reservado ao sujeito animado: a “natureza voluntarista e teleológica” das
reações psicológicas desacredita toda problemática mecânica.
Não se trata, certamente, de renunciar à razão, mas sim de testemunhar
um ceticismo construtivo que dá ao homem as chaves de seu destino: “Partir
do postulado de que a técnica e a economia dependem do homem para que
nos seja possível acreditar que a técnica e a economia têm um sentido.”

A psicologia do socialismo.

A psicologia diz o que a economia é impotente para explicar, a saber, que


tudo é caso de instintos, de estados afetivos, que o socialismo, ele mesmo fato
psicológico, não é um produto do capitalismo, mas canaliza e sublima um
complexo de inferioridade social: “Colocar o problema nesses termos é se dar
conta de que o motivo essencial do movimento operário é o instinto de
auto-estima ou, para dizê-lo em uma linguagem menos prosaica, de que é uma
questão de dignidade pelo menos tanto quanto uma questão de interesse.”
Marcado pelo pensamento de Freud e de Adler, H. de Man pensa que o operário
se define menos por seu ser do que pela apresentação de seu ser, menos por
sua situação econômica do que por sua maneira de vivê-la. É preciso aprofun­
dar-se até as crenças do indivíduo para compreender a disparidade das
aspirações e reencontrar a inibição, mas também a força de vontade humana.
Encaminhada pelo instinto combativo e pela necessidade de reconhe­
cimento, essa se exprime, no caso dos trabalhadores, pela “busca de uma
exaltação imaginária do Eu”. Longe de tomar forma por uma simples tomada de
consciência, o socialismo exprime desde logo, na ordem do ideal, uma repre­
sentação compensatória, uma saída que libera a tensão psicológica do indivíduo
explorado. O ser com medo e desejo, disponível para a autoridade e para a
agressividade, encontra no socialismo seu reconhecimento como sujeito.
Vê-se todo o proveito que o socialismo pode tirar da psicologia: uma
compreensão das motivações, uma reabilitação do que de Man chama de a idéia

742
socialista, isto é, das orientações da vontade. Se não se apoia mais sobre o
único impulso do interesse, o socialismo se eleva e eleva o homem à dimensão
da ética; torna a ser uma escatologia que reencontra os motivos da vontade e
reconcilia as metas e os meios.
Ao contrário, o socialismo prolonga e completa a psicologia impotente
para assegurar uma terapia dos instintos recalcados. A contradição entre o
estado social e o sentimento de comunidade nele se resolve, em sua capacidade
para assegurar a transformação do eudemonismo* em ética. H. de Man não
esquece, certamente, quanto a desigualdade política e a exploração econômica
exacerbam, na sociedade capitalista, as reações do que ele chama o “instinto
social recalcado”; porém, ele resgata, por meio deste esclarecimento, as raízes
comuns a todas as recusas da injustiça: como o cristianismo ou o feudalismo,
o socialismo se realiza na idéia de uma ordem ética absoluta.
Numa linguagem freudiana, H. de Man reencontra no fundo o humanis­
mo socialista tal como é exprimido por Jaurès e Blum. Em seu caso, a
psicologia é o instrumento que permite ultrapassar a ordem da natureza e da
necessidade para atingir a da moral e da vontade. Basta partir de uma
perspectiva ética para reencontrar a obediência ao dever. Nessa crença que
constitui o socialismo não há mais conflito entre o individual e o social.
Libertado da hipoteca utilitarista, o socialismo transforma os instintos de
auto-estima e de gregarismo em um sentimento escatológico no fundo idêntico
a todos os messianismos. Como, então, reduzir o socialismo à classe social?
Sem dúvida, o complexo de inferioridade de classe é uma fonte específica do
sentimento de solidariedade socialista, mas o próprio de todas as escatologias
é justamente sublimar os egoísmos e ampliar as perspectivas de liberação para
a humanidade inteira: "No mais profundo de seu ser, os oprimidos tiram sua
esperança e coragem do sentimento do bem e do mal, do interesse público, da
dignidade humana, do amor ao próximo, em resumo, daquilo que, a cada
época, aparece como o sentimento moral comum a todos os homens.”
É uma moral da conduta política que H. de Man nos propõe aqui. O
marxismo pode ser culpado de todos os males - racionalismo, determinismo,
historicismo, estatismo - , o essencial resulta no fundo de sua ignorância do
homem. Que a argumentação seja, sobre esse ponto, de uma grande fragili­
dade, vê-se bem na hesitação permanente do autor em fixar as respon­
sabilidades. Deve-se incriminar Marx ou o marxismo? A primeira vista, de Man
se considera claro em sua crítica: “Trata-se para mim de uma crítica mais do
marxismo do que de uma crítica de Marx... O que importa não é Marx defunto,
é o socialismo vivo”, isto é, essencialmente o “marxismo vulgar” do comunismo
culpado de ter reduzido, na teoria e na prática, os preceitos “ao nível primitivo
de um simbolismo bastante grosseiro pelo uso dos agitadores”. No entanto,
toda a força do raciocínio se mantém exatamente na oposição que o autor
acredita poder desvendar entre um produto que traz a marca do século XIX e

* Eudemonismo - sistema ético em que a felicidade material (e espiritual) é o supremo fim. (Nota
da tradutora.)

743
os ensinamentos contemporâneos da psicologia. Ora, o que se torna tal
oposição se Marx, como H. de Man afirmará mais tarde ao descobrir os
manuscritos da juventude, colocava, ele mesmo, o humanismo ético na fonte
de sua reflexão: “Esse Marx jovem era realista e não materialista. A recusa do
idealismo filosófico não o incita a opor a realidade superior da matéria à
pretensa realidade superior da idéia; ao contrário, ele as subordina, as duas, à
realidade maior da vida em sua totalidade passiva/ativa, inconsciente/cons-
ciente”1? A crítica desse autor se reduz apenas a uma condenação da prática
comunista; Além do marxismo perde seu objetivo: não é mais ultrapassagem,
mas, sim, simplesmente enriquecimento de uma doutrina justa dentro de sua
intenção central.
Mas talvez isso não seja o essencial, pois, se a ética redescoberta basta
para apagar as suspeitas de hedonismo e de utilitarismo e para abalar o
questionamento do marxismo, os desenvolvimentos que o autor consagra à
psicologia do socialismo levantam mais profundamente o problema da posição
da ciência e de sua utilização na análise dos movimentos sociais. Sabe-se que
de Man opõe ao positivismo marxista a relatividade das hipóteses e das
conclusões. Muito curiosamente, para ele é uma fraqueza própria dos intelec­
tuais ignorar a compreensão das variações individuais. Mas é permitido se
perguntar como o próprio H. de Man joga com a problemática que desenvolve
e com as conclusões que tira daí. O autor nos diz claramente que a psicologia
fornece apenas hipóteses, que as ciências sociais não podem se apoiar sobre
as certezas da análise de causalidade; porém, não é certo que ele mesmo escape
aos deslocamentos que censura no marxismo. Com efeito, tudo se passa como
se de Man evoluísse permanentemente em seu estudo do plano do saber ao do
dever, como se quisesse retirar do prestígio da ciência os desenvolvimentos
que devem mais à experiência do militante do que ao conhecimento do sábio.
A crítica não vale sem dúvida para as passagens que o autor consagra à
vida operária. A atenção ao simbólico, à iconografia, à cultura abre parágrafos
que anunciam as análises mais atuais da antropologia. Aí o autor pôde associar,
em uma síntese muito rica, sua experiência às fontes mais diversas do
conhecimento. Mas H. de Man, que é um socialista decepcionado, quer
também, como M. Grawitz2 viu bem, “demonstrar a verdade do socialismo e,
no fundo de si próprio, justificar racionalmente suas necessidades emotivas e
suas aspirações éticas”. Ele, que, no entanto, desenvolvia a idéia de um
socialismo comunitário transcendendo aos desnivelamentos sociais, encontra
nessa exigência a necessidade de deslocar o eixo da teoria socialista, de passar
do testemunho da classe operária para os intelectuais.
Retomemos a demonstração que o autor desenvolve sobre esse ponto.
Considerando o Estado ou a empresa, não são os capitalistas que detêm o
poder, mas uma categoria de indivíduos escolhidos em consideração de sua
competência: o poder não está ligado à propriedade, mas à função. Pouco
importa a origem social dos diretores, dos funcionários, dos parlamentares,
todos se tornam, no exercício de sua profissão, especialistas intelectuais.
Pode-se sem dúvida cultivar a ficção democrática da representação, mas é

744
ingênuo acreditar na derrubada das relações de poder: a autonomia do político
e da dominação burocrática são exigências sociológicas de nosso tempo. Por
que, então, não aceitar a era dos intelectuais? Basta no fundo convencer os
organizadores de se porem a serviço da comunidade, de fazer disso o crisol de
um novo socialismo: “O socialismo corporativo quer que a motivação aquisitiva
do capitalista e do trabalhador dê lugar a uma nova motivação de serviço
comunitário, cuja encarnação ideal é, para ele, o intelectual diretor ou funcio­
nário de fábrica...”.
Sobre o valor sociológico da demonstração, não há nada a dizer. Em
seguida a R. Michels e bem antes de Burnham, H. de Man desmonta com
grande rigor os mecanismos de privação da posse dos governados e de
autonomização crescente do pessoal político. É preciso ler as páginas que o
autor consagra ao funcionamento do partido, à lógica da máquina burocrática,
para apreciar a sutileza da observação. Ocorrerá o mesmo quando H. de Man
avançar suas conclusões sobre o que ele chama de “socialismo no tempo”?
Seria preciso para legitimá-las não ter contestado a pretensão marxista de
propor uma ciência do socialismo. Mobilizando a sociologia e a psicologia a
serviço de seu racicínio, H. de Man desordena os princípios epistemológicos
que subentendiam seu modo de proceder.
A ciência torna-se o ponto de contato que permite a passagem de uma
ética do socialismo para um socialismo de elite. Em nome da recusa do
cientificismo, H. de Man ultrapassa o marxismo e atinge a ética; em nome da
ciência, racionaliza uma experiência frustrada. Por meio de um verdadeiro
passe de mágica epistemológico, pôde, assim, reunir dentro de um mesmo
corpo de doutrina o inconciliável: uma moral da justiça e uma psicologia da
desigualdade, uma atenção ao fraco e um culto do herói, um voluntarismo do
coração e um fatalismo da razão. De Man escorrega insensivelmente de um
além do marxismo para um além do socialismo. Talvez porque, como Tocque-
ville, ele tenha pelas instituições democráticas “um gosto racional”, mas,
"aristocrático por instinto”, desdenhe e tema a multidão; seguramente porque
esqueceu o que ele próprio colocou em sua crítica conjugada do materialismo
e do idealismo racionalistas, a saber, que não se pode assimilar o ser e o
dever-ser, o espiritual e o material e que não existe, para um socialista, real que
não se leia à luz do ideal.

• A u -delà d u m a rx ism e. Paris, Ed. du Seuil, 1974 (1! edição, 1922); L a j o i e au íra v a il, Paris,
F. Alcan, 1930; N a tio n a lis m e e t so c ia lism e , Paris-Bruxelas, L’Eglantine, 1932; L e s o c ia lis m e
c o n stru tif, Paris, F. Alcan, 1933; L 'idée so c ia liste , Paris, B. Crasset, 1935; A p r è s cou p, Bruxelas,
Paris, Ed. de la Toison d’Or, 1941; A u -delà d u n a tio n a lism e, v e r s un g o u v e r n e m e n t m o n d ia l,
Genebra, Ed. du Cheval Ailé, 1946; C a v a lie r seu l, 45 anos de socialismo europeu, Cenebra, Ed.
du Cheval Ailé, 1948; L ’è r e d e s m a sse s e t le d é c lin d e la c iv ilisa tio n , Paris, Flammarion, 1954;
M a rx re d é c o u v e rt, Genebra, Association pour 1’étude de 1’oeuvre de H. de Man, mimeografado,
1980 (1® edição em D e r K e m p k , maio-junho de 1932).

745
► A c te s d u C o lloqu e In te rn a tio n a l s u r V oeu vre d e H. d e M an, Faculdade de Direito da
Universidade de Genebra, 3 vol., 1974, reproduzidos em C a h ie rs V ilfredo P a re to , “Sur l’oeuvre
de H. de Man", 1974 (21, XII); P. Dodge, B e y o n d M arxism , The faith a n d w o r k s o f H e n d rik d e
M an, La Haye, M. Nijhoff, 1966; V. Leduc, L e m a rx ism e e st-il d é p a ssé? , Paris, Ed. Raisons
d’être, 1946; A. Philip, H e n r i d e M an e t la c r is e d o c tr in a le d u so c ia lism e , Paris, Librairie
Universitaire, J. Gamber, 1928; Z. Sternhell, N i d r o iie n i g a ú ch e, T id e o lo g ie fa sc iste en F rance,
Paris, Seuil, 1983.

M a r c SADOUN.

NOTAS
1. M a r x re d é c o u v e rt, Genebra, mimeografado, 1980.
2. M. Grawitz, H. de Man et Ia psychologie sociale, C a h ie rs V ilfredo P a re to , 1974 (31,
XII), págs. 75-102.

MAO TSE TUNG (OU MAO ZEDONG*), 1893-1976


Relatório sobre a investigação conduzida em Hunan, a propósito do
movimento camponês, 1927

A história, às vezes, se acelera. O período que se estende do verão de


1926 ao outono de 1927 na China é uma das melhores ilustrações disso.
Raramente, com efeito, tantos acontecimentos tão pesados de sentido e de
conseqüências se sucederem dentro de um mesmo lapso de tempo.
No dia l 2 de julho de 1926, o governo do Guomindang (Partido nacionalis­
ta), instalado em Cantão, dá partida à Expedição do Norte cuja meta era a
unificação da China, então dividida entre senhores da guerra, grandes e peque­
nos. Comandados por Chiang Kai-Shek e sustentados por conselheiros soviéti­
cos, os exércitos expedicionários conquistaram Wuhan em 10 de outubro e
Nanchang em 8 de novembro. Desde Ia de janeiro de 1927, o governo do
Guomindang foi transferido de Cantão para Wuhan. Três meses mais tarde, com
a ocupação de Nankin e de Shangai, em março, os nacionalistas detêm o vale do
Yangzi e controlam toda a parte da China situada ao sul do grande rio.

A progressão rápida dessa cruzada militar se explica facilmente. As forças


nacionalistas, apesar de sua inferioridade numérica inicial, estão motivadas
ideologicamente. Elas se beneficiam não só do apoio ativo do Partido Comunis­
ta Chinês (PCC), do qual bom número de dirigentes aderiu, desde 1924, ao

* Em grafia corrente, que parece ser mais fiel à fonética chinesa, os nomes de Mao Tse Tung e
Kuomintang passaram a Mao Zedong e Guomindang, respectivamente. (N. da T.)

746
Guomindang individualmente, conforme uma decisão do Komintern, mas
também do apoio do campesinato, da classe operária, da pequena burguesia e
da intelectualidade que, todos, aspiram ardentemente à restauração da unidade
política do país. Elas se aproveitam, além disso, dos reatamentos dos senhores
da guerra locais prontos a distinguir o sentido do vento. Mas elas tiram
proveito principalmente da desunião profunda dos potentados do norte que
continuam a se entregar a lutas de influências tão complexas quanto irrisórias.
A revolução nacional chinesa se duplica com uma revolução social. Nas
cidades conquistadas pelos nacionalistas, os comunistas criam sindicatos e
organizam milícias operárias. Muitas vezes, a mobilização precede mesmo a
chegada das tropas do Guomindang. É assim que, em Wuhan, os operários do
arsenal de Hanyang desencadeiam, em agosto de 1926, uma greve geral e que,
em Shangai, os operários armados se revoltam três vezes antes da entrada na
cidade dos soldados de Chiang Kai-Shek. Nos campos “libertados", as asso­
ciações camponesas se multiplicam, e o número de seus efetivos aumenta de
maneira fulminante. Em certas regiões rurais, as associações camponesas
tornam-se o único poder organizado, e os camponeses se recusam a pagar os
arrendamentos aos fazendeiros, se apropriam das terras e chegam mesmo a
tomar as armas e a atacar violentamente os figurões locais e os proprietários
fundiários.
Era fatal que o surto dessa dupla revolução, nacional e social, suscitasse
divergências profundas no interior do Guomindang. No começo de 1927, ele
se divide virtualmente em dois. A ala direita do Partido, representada por
Chiang Kai-Shek, reprime toda desordem, urbana ou rural, e se prepara para
desencadear uma repressão anticomunista sangrenta. A esquerda do Guomin­
dang, aconselhada por Borodin, o homem de Staiin, controla o governo de
Wuhan e continua a colaborar estreitamente com o PCC. Ela tolera o desen­
volvimento de movimentos operários e camponeses dentro de sua zona de
influência, o Hunan e o Hubei, inquietando-se cada vez mais com os “excessos”
camponeses. Essa inquietação é partilhada também pelo Komintern e pela
direção do PCC. A maioria dos oficiais das forças nacionalistas tendo saído das
camadas superiores rurais, é para temer que a violência camponesa exercida
contra os figurões locais e os proprietários fundiários venha a provocar reações
não menos violentas da parte dos militares. Certas medidas tomadas pelas
associações camponesas, tais como o embargo do arroz, a recusa a pagar as
taxas e a constituição de milícias armadas, poderiam mesmo prejudicar direta­
mente os interesses dos soldados simples das forças expedicionárias que não
deixariam de reagir brutalmente se vissem suas fontes de abastecimento e sua
segurança ameaçadas.
Será preciso frear a dinâmica do movimento camponês para não quebrar
o estímulo da revolução nacional? No começo de 1927, torna-se urgente que o
governo de coalizão de Wuhan dê uma resposta clara a essa questão.
É precisamente nessas circunstâncias decisivas que Mao Zedong, um dos
raros dirigentes comunistas chineses saído de família camponesa, realiza um dos
gestos mais surpreendentes de sua vida. No momento em que Chiang Kai-Shek

747
se prepara para trair e massacrar os comunistas, em que o Guomindang de
esquerda, o Komintern e o PCC usam de evasivas diante de uma situação de
urgência, ele volta para sua terra, o Hunan, para fazer uma pesquisa sobre o
movimento camponês. De 4 de janeiro a 5 de fevereiro de 1927, ele circula nas
aldeias e nas capitais de cinco distritos (Xiangtan, Xiangxiang, Hengshan, Liling
e Changsha) para escutar o que camponeses analfabetos lhe contavam sobre suas
experiências de revolta agrária. O que ele viu e ouviu durante esses trinta e três
dias o impressionou como uma revelação. Os traços desse abalo interior se
encontram em cada página do documento vibrante de ardor revolucionário que
ele redige em fevereiro em Wuhan.
Esse documento, o Relatório sobre a investigação conduzida em Hunan
a propósito do movimento camponês, aparece pela primeira vez em março de
1927 (Takeuchi, I, págs. 207-248). É significativo que somente a revista
Zhanshi (O Combatente), editada pelo Comitê provincial do PCC em Hunan,
tenha publicado o texto integral. Na época, é nesse comitê que se reagrupam
os raros dirigentes comunistas (Mao, Cai Hesen, Peng Gongda...) favoráveis a
um desenvolvimento rápido da revolução camponesa. O Xiangdao (O Guia),
semanário do Comitê Central do PCC, e o Zhongyang Ribao (Central Daily
News), órgão oficial do governo de Wuhan, depois de haverem publicado cerca
de um terço do Relatório, se abstêem de publicar a seqüência (Hofheinz, págs.
310-312), sem dúvida porque a tomada de posição de Mao com relação ao
movimento camponês é julgada radical demais pelos responsáveis do Guomin­
dang de esquerda e pela direção do PCC.
Em princípio, o Relatório sobre Hunan é um documento destinado ao
Comitê Central do PCC. Mas é claro que Mao não redigiu um relatório habitual
com referências às atividades do Partido e com recomendações sobre a política
a seguir. Desdenhoso dos floreios doutrinais, ligeiramente despreocupado com
as implicações teóricas do que ele adianta, não exprime nada mais do que suas
convicções profundas, sem pensar nem em Marx, nem em Lênin. Seu Relatório
não foi escrito para Chen Duxiu, secretário-geral do Partido, nem para Boro-
din, nem, por seu intermédio, para Stalin e para o Komintern, mas sim para
aqueles que se comprometerão, um dia, com a revolução camponesa, na China
e talvez no mundo. Redigindo em um estilo pessoal e eloqüente, o Relatório
sobre Hunan tem a maravilhosa simplicidade da evidência. É animado por um
movimento imperioso que se parece surpreendentemente com aquele da
revolta camponesa em curso. Percebe-se aí a espontaneidade, a paixão e o
exagero. Sente-se primeiro a surpresa diante do despertar dos mais miseráveis,
depois a admiração face à sua capacidade de ação, e, enfim, a alegria da
descoberta de uma força revolucionária tão determinada quanto e mais
poderosa do que a do proletariado urbano.
De imediato, Mao escolhe a aceleração do processo e varre de vez o
dilema do dia que obriga o governo de Wuhan a optar entre a revolução
nacional e a revolução social. O movimento camponês espontâneo, prevê Mao,
se desenvolverá seguindo sua própria dinâmica. Logo, em toda a China,
centenas de milhões de camponeses se levantarão, impetuosos, invencíveis,

748
como um furacão, e varrerão todos os imperialistas, senhores de guerra,
funcionários corrompidos, déspotas locais e maus fidalgotes provincianos. A
revolução camponesa é, portanto, toda a revolução. A única decisão a ser
tomada por todos os partidos e todos os camaradas revolucionários é escolher
entre três possibilidades: colocar-se à frente dos camponeses, ficar atrás deles
ou se erguer diante deles para os combater.
Tendo estabelecido essa premissa, Mao retraça o desenvolvimento das
associações camponesas em Hunan e afirma que, em janeiro de 1927, seus
efetivos atingiam dois milhões, e as massas sob sua direção, dez milhões de
indivíduos. Na Província, a palavra de ordem “Todo o poder para as asso­
ciações camponesas!” passou a ser fato. A meta verdadeira da revolução
nacional sendo precisamente derrubar as forças feudais, a situação nos campos
pode se resumir em uma só frase: “Vai tudo muito bem!” Todos os que dizem
que “Tudo vai mal!” defendem os interesses dos proprietários fundiários.
E os “excessos” camponeses? Claro que eles existem, admite Mao, mas
eles são absolutamente necessários. Para se fazer a revolução, é indispensável
que se estabeleça em cada região rural um breve período de terror. Aliás, os
camponeses cometeram excessos porque foram irritados ao extremo pelos
déspotas locais, os maus fidalgos e os proprietários fundiários. E, depois, “a
revolução não é nem um jantar de gala, nem uma obra literária, nem um
desenho, nem um bordado; ela não se pode realizar com tanta elegância,
tranqüilidade e delicadeza ou com tanta doçura, amabilidade, cortesia, mode­
ração e generosidade d’alma. A revolução é uma revolta, um ato de violência
pelo qual uma classe derruba uma outra”.
Todos os camponeses, prossegue Mao, não participam com o mesmo
ardor da revolução agrária. Os camponeses ricos não mostram nenhum
entusiasmo em trabalhar para as associações camponesas; eles permanecem
inativos. Os camponeses médicos ficam indecisos. Os únicos que realmente
lutam durante todo esse duro e obstinado combate que prossegue nos campos
foram os camponeses pobres, a vanguarda da revolução. A “classe dirigente
dos camponeses pobres”, afirma Mao, se divide em dois grupos: os pobres e os
extremamente pobres. Neste último grupo entram os assalariados agrícolas e
o lumpenproletariado do campo. São eles que constituem os elementos mais
revolucionários. Certamente, entre os camponeses pobres que ocupam postos
dirigentes, restam ainda “alguns elementos doentios”. Porém, a grande maioria
deles tornou-se, graças à prática revolucionária, elementos positivos, homens
capazes e enérgicos, desembaraçados de seus maus hábitos.
A última parte do Relatório sobre Hunan é consagrada a uma descrição
detalhada das “quatorze conquistas importantes” das associações camponesas.
Elas vão da eliminação do despotismo político e econômico dos figurões e dos
proprietários fundiários à transformação dos hábitos e dos costumes, passando
pela criação de milícias armadas, pela supressão do banditismo, pela prática do
auxílio mútuo e da construção de estradas e pelo levantamento de diques. É
nessa parte que Mao enumera os diferentes métodos utilizados pelos campo­
neses para aterrorizar os proprietários fundiários, desde simples multas até os

749
"desfiles com chapéu de burro” pelas aldeias e as execuções. Ele desenvolve aí
também a idéia de que a revolução camponesa engloba não somente a
revolução nacional, mas também a revolução cultural. O poder político dos
proprietários fundiários sendo o eixo em torno do qual gravitam as três outras
formas de poder na China, clâmico, religioso e marital, sua derrubada arras­
taria consigo o conjunto da ideologia e do sistema feudal-patriarcal chinês.
Vê-se que a audácia, para não dizer a temeridade, do Relatório sobre
Hunan tem por que assustar Chen Duxiu e Borodin. Não somente o papel do
Partido e do proletariado fica oculto aí, e a política da frente unida, curto-circui-
tada, mas a estratégia de ruptura que ele implica se arrisca também a fornecer
um casus belli ao Guomindang, tanto de direita como de esquerda. No começo
de 1927, realmente, o PCC tentava preservar a todo preço a aliança com os
nacionalistas, usando de toda sua influência para manter o movimento camponês
dentro dos limites aceitáveis para o Guomindang (Jiang, págs. 277-353). Essa
linha política é definida nas teses, a propósito da situação na China, adotadas
pelo 72 plenário do Comitê executivo do Komintern, acontecido em Moscou de
22 de novembro a 16 de dezembro de 1926 (North e Eudin, págs. 131-145).
Segundo esse documento, a revolução chinesa se mantém sempre uma revolução
democrático-burguesa dirigida contra o imperialismo estrangeiro, o militarismo
chinês e os vestígios do feudalismo. Ela estaria no limiar de uma nova etapa
histórica, no curso da qual a força-motriz da revolução seria constituída por um
bloco composto pelo proletariado, pelos camponeses, pela pequena burguesia
urbana e mesmo por uma parte da grande burguesia. No decorrer dessa etapa,
o proletariado tomaria cada vez mais a direção do movimento revolucionário,
pois ele é a única classe capaz de conduzir bem uma política agrária radical,
considerada a questão-chave da revolução. Ora, para que o proletariado possa
realizar sua missão, é preciso que os comunistas chineses se infiltrem no
Guomindang, transformem-no em um verdadeiro partido do povo e utilizem seu
apaelho administrativo e militar para impor um programa agrário revolucionário.
“Por essa razão e por muitas outras, igualmente importantes, afirmam as teses
do 7S plenário, é um erro acreditar que o PCC deve deixar o Guomindang.”
É claro que, mantendo a exigência de participação dos comunistas no
Guomindang, o Komintern sacrifica implicitamente o movimento camponês na
China. Stalin fez sua escolha: favorecer a unificação da China sob um governo
nacionalista amigo para assegurar a segurança sobre as fronteiras da União
Soviética mais do que para encorajar uma revolução camponesa que corre o
risco de se tornar rapidamente incontrolável.
No Relatório sobre Hunan, Mao não se atrapalha com essas análises
teóricas e com cálculos frios. Pronuncia simplesmente um discurso apaixonado
em favor da liberdade sem entraves das associações camponesas, sem se
preocupar com o fato de que isso recoloca em questão todo um sistema de
pensamento. Proclamando sem rodeios que o centro da ação revolucionária se
encontra no campo e não nas cidades, que os camponeses e não o proletariado
representam a força principal da revolução e que os camponeses pobres e não
o Partido Comunista constituem a vanguarda da revolução, Mao enuncia,

750
realmente, uma verdade que não era aquela do Komintern e do PCC. Isso não
impede, curiosamente, que o Relatório seja traduzido e publicado pelo Komin­
tern desde o fim da primavera de 1927. Inconsciente das implicações políticas
e doutrinais de seu conteúdo, Boukharin chega mesmo a fazer seu elogio
publicamente, atribuindo-o a “um de nossos agitadores” (Carrère D’Encausse
e Schram, pág. 83).
Mas, em 1927, a China não estava madura nem para Stalin, nem para
Mao Zedong. A estratégia imposta ao PCC pelo Komintern, que consiste em
manobrar do interior do Guomindang e em “espremer o limão nacionalista até
o fim antes de jogá-lo fora” (North e Eudin, pág. 57), termina no massacre dos
comunistas por Chiang Kai-Shek em abril. O surto do movimento camponês
encorajado por Mao e a incapacidade dos comunistas em controlar sua
derrapagem acabaram por provocar a contra-revolução mortífera dos generais
do Guomindang de esquerda, em maio, depois a ruptura entre o governo de
Wuhan e o PCC, em julho. O fracasso da Insurreição armada de Nanchang, em
agosto, e principalmente o da Revolta da Colheita de Outono, dirigida pelo
próprio Mao, em setembro, confirmam de maneira fragorosa que ele cometeu
um erro trágico em seu Relatório sobre Hunan, superestimando a potenciali­
dade revolucionária dos camponeses da época. Confrontadas com o poder
militar organizado do Guomidang, as associações camponesas se revelaram
organizacional mente ineficazes e militarmente impotentes.
Mas, apesar de seu erro de julgamento sobre as perspectivas imediatas
do movimento camponês, o Relatório sobre Hunan, colocando pela primeira
vez ao PCC a questão do recurso ao campesinato como força principal
revolucionária, forneceu a chave da vitória futura da revolução chinesa. Ele se
constitui, paradoxalmente, ao mesmo tempo no primeiro passo em falso de Mao
e em sua primeira irrupção na História.
Talvez Mao, por ter entrado na História cambaleante com seu Relatório
sobre Hunan, tenha julgado necessário fazer modificações importantes em seu
texto quando ele foi incluído em suas Obras escolhidas, publicadas em 1951
(Mao, março de 1927). Essas revisões respondem a uma tripla preocupação:
atenuar os excessos camponeses eliminando certas frases “de choque” (“Mes­
mo quando um representante da associação camponesa faz uma besteira, essa
é ratificada...”); não se chocar com a ortodoxia marxista-leninista, reintroduzin-
do referências ao papel dirigente do Partido Comunista; reduzir, enfim, a
importância dada ao campesinato em geral e ao campesinato pobre em
particular, suprimindo numerosas passagens que atribuem aos camponeses
pobres o mérito exclusivo da revolução no campo (Schram, págs. 219-232;
Hofheinz, págs. 311-312). Em 1951, o PCC se esforçava para incorporar a
revolução chinesa à corrente dominante do movimento comunista mundial.
Era compreensível que Mao revisasse seu Relatório para satisfazer as exigên­
cias ideológicas e políticas do momento. Mas, com essas revisões no tocante
não somente à reforma, mas também ao fundamento do texto, é forçoso
constatar que, com elas, ele conscientemente obscureceu seu verdadeiro papel
histórico dentro do movimento camponês.

751
Mao deixou uma obra política abundante. Bom número de seus escritos
influenciou o curso da história da China contemporânea. Mas nenhum texto
mais do que o Relatório sobre Hunan revelou tão claramente certos traços
mais profundos de sua personalidade. Revela-se aí realmente um otimismo
exagerado que frisa o utopismo puro e simples, uma propensão para tomar
seus desejos por realidades, uma necessidade de ação tão visceral que se
transcende em gosto vivo pela violência. Com o recuo do tempo, pode-se
legitimamente interrogar-se para saber se o Relatório já não anunciava a
chegada do Grande Salto para frente e da Revolução cultural, as duas outras
extravagâncias maoístas nascidas da mesma impaciência diante da realidade.
O Relatório contém igualmente certos elementos constitutivos que estão
entre os mais fundamentais do maoísmo. Além da idéia central da importância
do campesinato, já se distinguem aí confusamente o antielitismo, a maleabili­
dade da natureza humana, o voluntarismo, a inclinação pelos elementos
marginais, o conceito da linha de massa, o valor redentor da prática revolucio­
nária, a importância da emancipação das mulheres, a idéia segundo a qual a
pobreza é não somente um estímulo para a revolução, mas também uma fonte
de virtudes.
Após a tomada do poder pelos comunistas na China, quando o culto
maoísta foi solidamente instaurado, o Relatório sobre Hunan passou a ser
citado e comentado abundantemente. Os ideólogos e os historiadores do PCC,
como é devido, cobrem-no de louvores. Se Li Rui se contenta em apresentá-lo
como “o documento mais importante do PCC no curso do período da primeira
guerra civil revolucionária na China” (Li, pág. 30), Chen Boda não hesita em
o qualificar de “uma das mais perfeitas cristalizações do pensamento chinês de
toda a história da China" e da "expressão da fusão real da estratégia leninista
e da revolução chinesa” (Chen, pág. 24).
As opiniões dos historiadores ocidentais que trabalham sobre a revolução
chinesa são verdadeiramente mais variadas. Em uma controvérsia, daí em
diante célebre, entre Benjamim Schwartz e Karl Wittfogel, duas teses diame­
tralmente opostas se confrontam em torno do Relatório sobre Hunan a
respeito da originalidade de Mao. Segundo Schwartz, o Relatório é quase
desprovido de empréstimos ao marxismo. Ele não exprime nenhuma das
reservas que se encontram em toda a literatura marxista-leninista sobre a
possibilidade de o campesinato desempenhar um papel independente na
revolução. Em compensação, a idéia de que o campesinato constitui a força
principal da revolução chinesa é apresentada aí constantemente. Certamente,
encontra-se no Relatório a influência da tática leninista, pois Mao insiste sobre
a necessidade de fazer dos camponeses pobres "a vanguarda da revolução”.
Mas, em nenhuma parte do texto, ele acrescenta a condição vital de que é “sob
a hegemonia do proletariado”. Do ponto de vista marxista-leninista, escreve
Schwartz, não sem ironia, a declaração de Mao mais surpreendente em todo o
Relatório é a de que ele atribui 70% do mérito da realização da revolução
democrática ao campesinato e 30% somente aos citadinos e aos militares. Há,
conclui Schwartz, um imenso abismo separando a proposição do Komintern,

752
segundo a qual a revolução agrária é o conteúdo principal da revolução, e o
postulado de Mao, segundo o qual o campesinato é a força principal da
revolução. Politicamente, o Relatório sobre Hunan é, segundo Schwartz, não
somente um protesto contra o “oportunismo” de Chen Duxiu, mas também um
ataque implícito contra a linha política geral do Komintern. Doutrinalmente,
ele é não-marxista-leninista (Schwartz, 1951, págs. 73-78; 1960).
Wittfogel contesta a interpretação de Schwartz, partilhada por dois outros
historiadores da escola de Harvard, John Fairbank e Conrad Brandt Ele sustenta
que Mao, no Relatório sobre Hunan, apenas seguiu o esquema marxista-leninista
da revolução em um país agrícola (Wittfogel, 1960). Sua demonstração, fundada
principalmente sobre citações de Marx e de Lênin a propósito do papel essencial
do campesinato nos diferentes tipos de revolução, não parece ter convencido
muitos especialistas da questão chinesa. Stuart Schram sem dúvida tem razão
quando escreve: “Todos os marxistas, a começar pelo próprio Marx, viram no
campesinato uma força revolucionária muito importante. Nenum deles jamais
admitiu que os camponeses fossem capazes de ação revolucionária autônoma. É
difícil contestar que, no Relatório sobre Hunan, Mao Zedong atribua aos
camponeses um grau de autonomia e de iniciativa que vai bem além das
formulações de Lenin e bem além do que Stalin estava disposto a lhe conceder
na época” (Schram, pág. 44). Para Schram, o Relatório sobre Hunan é um
documento essencialmente amarxista, mas que revela, ao mesmo tempo, o
“leninismo natural” de Mao, no sentido em que ele concede uma grande
importância à organização e à luta política (ibidem, págs. 4546).
Considerando o maoísmo sob um ângulo diferente, Maurice Meisner
discerne no Relatório uma tendência populista pronunciada. Mao, escreve ele,
a exemplo dos populistas russos, procurava as fontes da revolução no campo
e nos camponeses, especialmente nas camadas mais pobres e mais atrasadas
por serem as menos corrompidas pela cultura burguesa das cidades, elas
constituíam “um reservatório de energia nova e de criatividade revolucionária”
(Meisner, págs. 18-23). Visto sob esse ângulo, Mao torna-se um narodnik,
chinês que não tem praticamente nenhuma afinidade com o marxismo.
Outros historiadores analisam o Relatório sobre Hunan dentro de
perspectivas mais históricas do que ideológicas e sublinham que a visão
maoísta do campesinato, tal como aparece no Relatório, não foi formada ex
nihilo. Vários artigos de Mao, redigidos em 1926, já constituem o prelúdio de
seu famoso texto de março de 1927 (Womack, págs. 53-68; Hofheinz,págs.
30-31). Mao, aliás, não é de maneira nenhuma o único nem o primeiro dirigente
comunista chinês a se interessar pelos camponeses. Roy Hofheinz, entre
outros, assinala que Peng Pai, o verdadeiro fundador do movimento camponês
na China, tentava organizar os camponeses desde 1922 e que “Mao era um
tardio convertido à estratégia rural que chegou a ela em grande parte por uma
observação calculada mais do que pela prática da ação rural” (Hofheinz, pág.
30). Todavia, Hofheinz admite que o Relatório de Mao, pleno de força e de
dinamismo, bem estruturado e exprimindo uma idéia clara, é superior, quanto
ao estilo, aos melhores escritos de Peng Pai e principalmente nos artigos

753
embotados publicados pelo órgão do PCC, O guia. “Pela primeira vez na
história do movimento camponês, diz Hofheinz, um autor fez choverem elogios
sobre os simples camponeses em vez de proferir invectivas contra seus
presumíveis inimigos” (Hofheinz, pág. 34).
O Relatório sobre Hunan colocou a primeira pedra do que se chamará
mais tarde a estatégia maoísta para a conquista do poder em um país
pré-industrial. Ele está na base de todas as ações futuras de Mao que, depois
de vinte e dois anos de luta armada, acabou por provar que sua idéia de
recorrer ao campesinato como força principal da revolução era boa. Foi nesse
sentido que o Relatório sobre Hunan, que é para a revolução camponesa o
que o Manifesto do Partido Comunista é para a revolução proletária, determi­
nou não somente a existência de um homem, mas também o destino de um
povo. E, mais pelo contágio dos fatos que ele contribuiu para fazer nascer do
que pela persuasão das palavras, deixou, e deixará talvez ainda, sua marca na
história contemporânea.

• Zedong, Mao, Z h o n g g u o n o n g m in z h o n g g e j i e j i d e fe n sh i j i q i d u iy u g e m in g d e ta id u
(Análise de todas as classes no âmbito do campesinato chinês e de sua atitude com relação à
revolução), Z h o n g g u o N o n g m in ( C a m p o n ê s c h in ê s), vol. 1, n9 1, janeiro de 1926, págs. 13-20;
Análise das classes da sociedade chinesa (março de 1926), em O e u v re s ch o isies, 11, Pequim,
Edições em línguas estrangeiras, 1966, págs. 9-19; Relatório sobre a investigação conduzida em
Hunan a propósito do movimento camponês (março de 1927), ibidem , págs. 21-62.

► Hélène Carrère d’Encausse et Stuart Schram, L e m a rx ism e e t VAsie, 1 8 5 3 -1 9 6 4 , Paris,


Armand Colin, 1965; Boda Chen, Du Hunan nongmin yungdong kaocha baogao (anotação de
leitura sobre o “Relatório sobre a investigação conduzida em Hunan a propósito do movimento
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Hu CHI-HSI.

754
MAQUIAVEL, em italiano MACHIAVELLI, Niccolo, 1469 - 1527
O P rín cip e, 1 5 1 3 , D iscu rsos sobre a prim eira década de Tito Lívio,
1 5 1 3 -1 5 1 9

Examinaremos simultaneamente O Príncipe e os Discursos. A oposição


entre os dois livros é mais aparente do que real. O Príncipe trata do governo
(lo stato) de um só*; os Discursos tratam do governo pelas leis. No caso dos
principados, assim como no das repúblicas, o que importa é a presença ou não
da virtu (virtude). Sua ausência conduz inevitavelmente à tirania tanto dos
príncipes quanto das leis. A virtu não designa o meio mais seguro que permite
tomar o poder e conservá-lo. Ela é um fim em si mesma, solidária com os meios
que lhe são próprios. Maquiavel procura circunscrever o que é “político”, em
seu caráter puro e irredutível.
Distinguir-se-á com relação a essa empresa três temas que, ligados entre
si, no entanto dificilmente, se deixam tratar de maneira unificada. 1) Tema de
uma lógica atomista. Ela concebe os dilemas e as decisões do príncipe sobre o
modelo de uma racionalidade calculista utilitarista. Vê-se delimitado um espaço
pré-político constituído de elementos semelhantes definidos por um interesse
egoísta. Estamos dentro de uma lógica do quantitativo, no nível da transforma­
ção pelo príncipe de seres dispersos em átomos homogêneos. 2) Tema de uma
lógica dinâmica e qualitativa correspondente à formação de grupos ou de
classes heterogêneas e diferenciadas (ricas e pobres; optimates e povo). Um
novo espaço é delimitado, e nele se coloca uma causalidade social, fazendo
entrar em conflito não mais indivíduos egoístas, mas grupos. O caráter
conflitual e qualitativo do corpo social dá uma outra dimensão à intervenção
do príncipe. É questionada, na verdade, a idéia de racionalidade calculista. 3)
Tema da virtu. E o tema político por excelência, mas também o mais difícil de
delimitar. A virtu, quando existe, procura abrir um novo caminho face aos
egoísmos privados e aos conflitos de classes, bem menos para os utilizar ou
dominar do que para lhes resistir ou deles se proteger. O capítulo 25 do
Príncipe é decisivo sobre esse ponto. (O capítulo 26 foi acrescentado pos­
teriormente).
A quantificação e a qualificação do corpo social não devem ser concebi­
das como momentos de tipo hegeliano cuja síntese (o político) seria a instância
superior a seus elementos constitutivos. A virtii as presupõe, mas não é
resultante delas. Pode-se - grosso modo — assimilar egoísmos privados e
conflitos de classes à Fortuna. A assimilição é paradoxal já que falamos de duas
“lógicas”. Se a lógica utilitarista e a das classes pudessem explicar a virtu,
Maquiavel seria o fundador da ciência çolítica moderna. Ainda mais, as lutas
sociais tendem a quebrar toda lógica. É a razão pela qual as repúblicas são
regimes instáveis. Maquiavel não nos diz de onde vem a virtu. Ela depende
mais da ordem do postulado ou ainda da “idéia reguladora”. Ê exatamente o

O Príncipe será citado: P; os Discursos...: D.

755
que é preciso supor para que seja fundada a possibilidade de agir politica­
mente. “Para que nosso livre-arbítrio não seja extinto", escreve ele no fim do
Príncipe, é preciso postular a existência da virtú. Essa é a única indicação.

O tema atomista e o príncipe como "empreendedor”

A afirmação segundo a qual “todos os homens são maus” (P, 17) é uma
maneira de dizer que eles perseguem exclusivamente seus desejos egoístas. A
socialização começa a partir do momento em que os desejos se tansformam
progressivamente em interesses. Nascem conjuntamente as noções de interesse
particular e de bem comum (D, II, 2). Nos capítulos 17 e 18 do Príncipe,
assistimos a esse trabalho de quantificação que tansforma seres esparsos èm
átomos iguais entre si ou que partilham em igualdade a mesma natureza. Os
homens só agem em função do curto prazo (è appressa) e não em função do
longo prazo (discosto), de modo que ninguém quer sacrificar um ganho imediato
em proveito de um ganho futuro. O prazo curto é ligado à idéia de que o
enriquecimento de uns só pode ocorrer em detrimento de outros. O príncipe vai
jogar com o egoísmo de seus súditos. Longe de forçá-los a renunciarem a ele, vai
inseri-lo na perspectiva do longo prazo. Como um empreendedor, ele miniminiza
o mal (a perda de um ganho imediato), transformando-o em custo de produção
de um bem futuro. Ele introduz a idéia de investimento e de crescimento
implicando que o enriquecimento de uns não conduz mais ao empobrecimento
de outros. Favorece ao mesmo tempo a competição cujo efeito é aumentar a força
da città. Estamos aqui dentro da lógica do "proveitoso”, do sono utili (P, 18).
A relação do príncipe com seus súditos é “econômica”, no sentido de essa
relação ser quantificável, quer se trate dos “bens”, das honras, das recompen­
sas, etc. Ele os "utiliza” como meios a serviço do fim, que é a città. Além disso,
o que vale para os súditos vale para o príncipe em sua relação com o poder
que exerce. Um poder sem “reputação” é prisioneiro do curto prazo. “Adquirir
uma reputação” é acumular um capital de poder que permita ao príncipe
sacrificar seus interesses a curto prazo, usar uma reserva de poder sem a
esgotar no momento e isso em vista de um uso posterior mais proveitoso.
Pode-se medir aqui tudo o que separa o príncipe do tirano; este último se
apresenta como um ser egoísta voltado para o curto prazo, incapaz de
antecipar o futuro e a meta da città.
Pode-se ler a estratégia “utilitarista” do príncipe como uma fenomenolo-
gia da consciência política de seus súditos. Fazendo-os terem acesso progres­
sivamente à consciência do útil (e do nocivo), ele os leva à do tempo e, ao
mesmo tempo, ao logos. Tomemos apenas um único exemplo (P, 17). A
estratégia do príncipe deve ser fundada sobre o temor e não sobre o amor. Com
efeito, o temor que ele inspira “se mantém”, já que aquele que teme hoje sabe
que temerá amanhã; só o temor de um castigo (futuro) pode fazer ceder o
interesse do momento quando ele se apresenta. O temor faz nascer a primeira
figura de uma visão de para além do “agora”; ele instala a dimensão do futuro;
ele faz os súditos saírem da imediatidade.

756
Maquiavel encontra o sentido da distinção aristotélica da voz e do
discurso. A voz, fixada ao desejo imediato e só ao presente, não pode significar
o útil e o nocivo. Estes últimos supõem cálculo e temporalidade e, consequen­
temente, o logos. O logistikon designa o poder de calcular em vista de um fim
futuro que concerne ao mesmo tempo ao futuro da cidade, isto é, ao bem
comum. É a partir da consciência do útil e do nocivo que se formará a do justo
e do injusto ou a consciência propriamente política.
A intervenção do príncipe consiste, portanto, em igualar os egoísmos,
por si sós anarquizantes, fazendo-os entrarem em uma sociedade concorrencial
guiada pela perspectiva do longo prazo. Esta não exclui ninguém, já que cada
um recolhe os benefícios devidos no prazo longo. Cada um tem daqui para
frente o direito de fazer frutificar seu interesse particular. Essa igualação está
logicamente ligada ao tipo de poder que representa o príncipe. A obrigação de
obedecer está fundada sobre o interesse dos súditos, mas também sobre o
temor. Esse é requerido, já que cada um pode ser tentado pelo proveito (lucro)
a curto prazo. O temor ao príncipe garante o igualitarismo. Além disso, como
a sociedade é dividida em átomos, cada indivíduo, tomado isoladamente, não
pode duravelmente e com força suficiente sustentar um poder soberano.
Portanto, é necessário que esse poder resida em uma só pessoa, que deve
contar com suas próprias forças. Compete ao príncipe perpetuar seu poder por
seus próprios meios. Se Maquiavel se tivesse limitado a isso, teria anunciado
Hobbes, isto é, a idéia de que os indivíduos devem colocar tudo nas mãos de
um só. Mas as coisas se complicam com o aparecimento dos conflitos de classe.

O tema das lutas entre classes

O desejo individualista de enriquecer caracteriza daí em diante a classe


dos ricos (P, IX; D, I, 3 7 ,1, 4; I, 17). A formação de solidariedades de classes
em que os átomos "tomam corpo” supõe a representação de uma meta comum
e futura. A classe rica não procura somente enriquecer; ela coloca o bem da
città (cidade) redutível à riqueza; ela só pode tomar a parte que ela é pelo todo
porque ela se apresenta como o todo. Mas, como ela não é o todo, o conflito
social é inevitável. É o nascimento da desigualdade.
A classe pobre é mantida pelos ricos no papel negativo do “não adquirir”
ou do "conservar o que já possui”. Em compensação, “o temor de perder
provoca movimentos tão fortes quanto o desejo de adquirir”. (D, I, 5). Es­
tigmatizando os ricos, "cuja insolência excita na alma dos que não possuem o
desejo de possuir” e de espoliá-los, Maquivel mostra que os pobres entram
como atores dentro da lógica do todo e do conflito. Uma sociedade composta
de partes heterogêneas ou qualitativamente diferenciadas substitui a sociedade
“atomista” e homogênea. Fazendo o elogio da desunione, ele deixa entender
que se trata de um progresso.
E também significativo comparar esse encaminhamento ao de Aristóteles
nos livros III a V (incluídos) da Politique. A heterogeneidade do corpo social
é solicitada, já que este último "não pode ser formado de elementos seme-

757
lhantes”. A existência de classes sociais antagonistas (os ricos e os pobres) é o
sinal de um processo de qualificação que quebra a igualdade quantitativa e
permite o estabelecimento de relações entre partes heterogêneas. Mas, por
outro lado, o desejo de cada classe de açambarcar o todo (mais vivo ainda no
caso dos ricos do que no dos pobres) torna singularmente difíceis as idéias da
partilha e do compromisso. O desejo de adquirir, efetivamente, fala de um bem
que, por definição, não pode ser partilhado. Se a comunidade política fosse à
imagem desse não-partilhável, seria o mesmo que dizer que ela não seria
política. “Se os homens se associassem somente em vista da prosperidade
material, o argumento dos campeões da oligarquia pareceriam ter uma grande
força” e “a comunidade política só existiria em vista da vida em sociedade”.
A orientação antiaristocrática de Maquiavel caminha no mesmo sentido.
Os conflitos de classes não poderiam por si só definir a vida política. Ele
escreve no capítulo IX do Príncipe: “Um homem que é feito príncipe, seja pelo
favor popular (dos pobres), seja pelo dos Grandes (os ricos), não tem necessi­
dade de virtii." Sua análise da tirania caminha no mesmo sentido. Ela possui
ao mesmo tempo os vícios da oligarquia e os do governo popular. Quando a
divisão do corpo social é levada ao extremo, essa divisão se abole. Cada classe
“se atomiza” no sentido em que cada uma delas “só confia em seus próprios
aliados e só procura se dar um chefe em estado de a defender” (D, I, 37). A
formação de solidariedades de classes faz com que cada súdito não reconheça
mais a igualdade que existia entre eles dentro do quadro da sociedade
atomista; assim, foi liberado de novo o desejo de açambarcar riquezas e honras.
A existência de classes sociais desloca a questão da autoridade política.
Pode-se, na verdade, conceber que cada indivíduo, tomado separadamente,
remeta todo seu poder a um teceiro; mais é muito improvável que uma classe,
consciente de sua força, se possa desfazer dele. Cada um só tem razão para se
desfazer de seu poder porque está certo de trabalhar em pé de igualdade para
o todo. Essa condição tende incessantemente a ser rompida pela lógica das
classes que caminham no sentido da desigualdade. Maquiavel parte da idéia de
que o conflito de classes é um dado intransponível. Ele está à procura de uma
organização política que possa instaurar uma igualdade dentro de um contexto
econômico não-igualitário. A maior parte dos Discursos nos parece tratar desse
problema.
Essa procura se desenvolve segundo dois eixos: um sócio-econômico ou
empírico e um propriamente político. “Como é fácil fazer funcionarem todas
as coisas dentro de uma república em que o povo ainda não foi corrompido;
onde reina a igualdade, não pode haver principado; onde não se encontra a
igualdade não pode haver república” (D, III, 55). O exemplo das pequenas
repúblicas da Alemanha parece apresentado como um modelo, na medida em
que o povo respeita as instituições. Esse respeito se enraíza na integridade e
na religião. Essas, por sua vez, supõem duas condições: 1) o aniquilamento dos
gentis-homens, isto é, daqueles que vivem sem fazer nada; 2) a autarcia
(auto-suficiência) econômica e política. A segunda condição tornou-se irreali-
zável, já que as repúblicas modernas só podem ser expansionistas: é um dos

758
sustentáculos da moralidade que desaparece. A primeira condição se vê, ao
contrário, reforçada. Uma classe burguesa, que só tem de nobre o nome, se
desenvolve e, longe de prejudicar a república, favorece seu enriquecimento. Se
a acumulação privada própria a essa classe permite aumentar a riqueza
nacional, isso supõe que a lógica de classes é compatível com a idéia de
harmonia do corpo social. Ora, o que diz Maquiavel da revolta dos Ciompi
contradiz essa idéia. Os pobres não se beneficiam das conseqüências do
enriquecimento dos burgueses, e a desigualdade não favorece a igualdade.
Por outro lado, a República, regime que corresponde ao governo popu­
lar, vive da tensão entre o povo e os burgueses. Maquiavel rejeita a idéia de
um regime dominado por uma só classe (cf. D, 37). A heterogeneidade do corpo
social deve ser preservada. O problema político propriamente dito encontra a
seguinte dificuldade: como fazer o “centrípeto” com forças “centrífugas”?

O tema da "virtude"

A obscuridade que cerca esse tema pode fazer duvidar da existência de


uma teoria da virtü (virtude) e, da mesma maneira, de uma teoria política. A
virtü caracteriza as qualidades de um homem (príncipe, guerreiro), mas
também o espírito das instituições; de modo que ela poderia designar, ao
mesmo tempo, um dom natural e o resultado de um exercício e de uma
disciplina. Na realidade, ela não é redutível nem ao inato, nem ao adquirido. O
melhor é partir do 25“ capítulo de O Príncipe e dos capítulos que fecham os
três livros dos Discursos
Os "assuntos do mundo” são governados ou por Deus, ou pela Sorte. Essa
opinião antiga só interessa a Maquiavel quando ela é retomada em seu tempo
sob a pressão de acontecimentos novos. Os “assuntos do mundo” estão expostos
a transtornos de tal amplitude que desafiam toda a conjuntura. Ele confessa ter
partilhado a opinião daqueles que preferem se afastar: “Por que suar para
governar os negócios do mundo?” Fugir da Sorte vem a dar em suportar o mal
e não em procurar o menor mal. No entanto, o solipsismo reúne-se logicamente
ao realismo, já que o “tudo aceitar” eqüivale ao “laisser-faire”.
“Para que nosso livre-arbítrio não seja extinto, eu julgo’’ que a des­
proporção estimada exorbitante entre a Sorte e nós pode ser consideravel­
mente reduzida e levada de novo a uma relação “quase” igualitária. O
postulado do livre-arbítrio rompe de uma só vez com a visão fragmentária,
esparsa das coisas do mundo. De repente, todos esses fios partidos parecem se
organizar, e o caos do mundo se reúne em uma totalidade possível. A rejeição
da atitude passiva frente ao mundo está ligada à recusa da visão contemplativa
que engendra a melancolia. Maquiavel quer operar uma conversão da contem­
plação em ação.
A atitude contemplativa tornou-se melancólica porque não pode mais nos
fazer alcançar uma totalidade qualquer. O ser total do mundo permanece
inacessível para nós daí em diante; o mundo se entrega por bocados, objetos
de saberes parciais, não-totalizáveis. Isso é principalmente verdadeiro para os

759
“assuntos humanos” que, vistos pelo lado da contemplação, nos parecem
retalhados ou entregues ao acaso. Se o homem tivesse que se guiar pela
contemplação, o estado de dispersão das coisas humanas que lhe seria
entregue o tornaria incapaz de decidir agir. A possibilidade de agir está ligada,
efetivamente, à idéia de totalidade em que se articula o presente ao passado e,
por um movimento retroativo que vai do futuro ao presente, em que se articula
o presente ao futuro. Na falta dessa solidariedade entre os momentos do
tempo, cada ato seria um golpe de espada dentro d’água.
Quando o homem de ação sente o momento propício, pressente que o
futuro lhe mostrará que tinha razão em agir; se não, ele não agirá. A melancolia
remete à humildade do homem que se entrega à contemplação de um mundo
que o tempo retalha. A ação, principalmente a ação gloriosa é solidária com
uma outra visão do tempo que abre um futuro, inserindo a ação presente em
uma unidade histórica. O apelo ao livre-arbítrio é menos o apelo a uma
“faculdade” tomada abstratamente do que a uma decisão de agir, supondo
necessariamente que já se agiu. É preciso ter tido de agir para que se mostre
a dimensão da totalidade. Maquiavel procura reativar a decisão de agir
mostrando que os homens já agiram. Esse é o sentido do seu recurso à história
da República Romana, época em que uma história foi feita (cf. a troca de cartas
entre Guicciardini e Maquiavel, 18 de maio de 1521).
No entanto, se a dimensão do possível e a do futuro são reveladas pela
ação, isto não significa que o homem crie o futuro ou que se tenha tornado
o dono do tempo. É preciso reinterrograr a interpretação que o partidário
do domínio faz de Maquiavel. O exemplo da enchente dos rios é instrutivo
sobre esse ponto. Não se domina a enchente, ela não é explorada, tenta-se
resistir-lhe ou proteger-se dela. É possível “colocar de pé” ou “construir” a
virtit para fazer contrapeso à Sorte em enchente. Não se muda o curso do
mundo. A virtit, portanto, não é redutível seja ao cálculo utilitarista, seja a
uma estratégia, jogando habilmente com conflitos entre classes, solidários
um e outra com o domínio. Entre o domínio e a atitude passiva, Maquiavel
adota uma posição intermediária - uma espécie de meio-termo - , a da
“resistência” (resisterle, no capítulo 25), que consiste em reservar um lugar
no exercício da liberdade.
Sem dúvida, é “enfrentando” a Sorte (acaso) que o homem descobre sua
liberdade; mas trata-se aí apenas de um meio, permitindo abrir um espaço para
essa liberdade, que se exerceria por ela mesma dentro de sua autonomia. Que
atividade é essa, então, que só tem como finalidade ela própria e que foi
tornada possível por essa colocação à distância da Sorte? Uma atividade
política, certamente. Uma atividade que não é simplesmente "societária", no
sentido em que ela estaria exclusivamente a serviço de interesses incapazes
por si mesmos de regularem seus conflitos. Maquiavel reencontra o ideal
antigo do “bem-viver” que ultrapassa o do simples fato do “viver-junto”. É o
ideal a visar; ele também depende da “idéia reguladora”. Mas é claro que, na
imensa maioria dos casos, a virtit sacrifica sem parar sua livre atividade,
monopolizada como está por sua resistência à Sorte.

760
0 retrato do príncipe traçado por Maquiavel no capítulo 25 apresenta a
virtü, de um lado, como faculdade empírica de adaptação à Sorte e, de outro,
como capacidade de desprender-se face à sua função empírica. Maquiavel
estabelece uma oposição entre a natureza rígida dos homens (privados de
virtü) e a fluidez da Sorte. Oposição entre o sólido e o líquido. Cada homem é
definido por uma qualidade ou por uma “natureza” que lhe é própria e que
determina sua maneira de agir: um é circunspecto; outro, impetuoso; outro
ainda, violento ou paciente, etc. Se, por acaso, existir uma concordância exata
entre tal qualidade e tal situação, o sucesso imediato está assegurado. Mas, ao
mudar a situação, a concordância desaparece. Imobilizado em sua natureza, o
homem de ação é destruído.
O homem virtuoso reúne todas essas qualidades; utiliza-as em função das
flutuações da Sorte. Essas qualidades são, portanto, qualidades emprestadas.
O homem virtuoso não tem ser próprio; não tem natureza; é uma figura vazia.
Não se sabe nada sobre seu ser empírico. A virtü não é uma qualidade natural;
ele não é, tampouco, uma arte que supõe uma regra já existente; enfim, ela não
é o resultado de experiências adquiridas “sobre o acúmulo”. Cálculo e es­
tratégia supõem sempre uma razão para agir, um objetivo nitidamente delimi­
tado, um conteúdo preciso de decisão. Isso depende do olhar exterior do
entendido no cálculo e na manipulação das forças. Não é a matéria racional­
mente definida pelo cálculo e a estratégia que determinam a virtü, mas seu
caráter formal; poder-se-ia até dizer seu caráter transcendental. Nenhum
caráter empírico podendo descrevê-la, pode-se designá-la como uma visão que
transcende toda estratégia e todo cálculo O uso da estratégia não depende de
uma estratégia. Não há ciência da decisão, já que a regra geral deve ser
inventada em cada caso.
A obscuridade que cerca a virtü não impede que se possa fazer duas
observações: 1) A atividade política não é um pragmatismo. A esse respeito, O
Príncipe não é assemelhável, contrariamente aos Miroirs des Princes (Espe­
lhos dos Príncipes), a uma coleção de regras de conduta tiradas da experiência
e válidas em todos os tempos e em todo lugar. Maquiavel não procede aí por
generalização de observações particulares. 2) Não existe teoria da virtü.
Maquiavel não é “o Galileu da política” (para retomar essa expressão de
Cassirer). Os temas da virtü e da Sorte se colocam em oposição. Nenhum saber
positivo dos átomos egoístas e dos conflitos de classe pode permitir derivar-se
das regras de ação. Nesse sentido, a virtü não é redutível a uma estratégia. Mas
a dificuldade se vê reconduzida. Deve-se ver aí uma “derrota do universal” e,
ao mesmo tempo, o alinhamento do “direito” sobre o “fato”? Nesse mesmo
capítulo 25 do Príncipe, Maquiavel indica que a relação virtü/Sorte tem um
alcance universal (in universali). A vida política está, portanto, inscrita exata­
mente no universal; mas neste último, não há mais ciência. Estamos longe da
arte política, como Platão a compreendia, que coincidia com a ciência da
justiça e do Bem. Da mesma maneira, a virtü não poderia ser assemelhada à
prudência aristotélica que permanece uma virtude intelectual. Teríamos mais
de tratar de uma atividade original e não racional no sentido em que Kant fala

761
do Gênio. Porém, ainda aí, a posição de Karit se inscreverá dentro do quadro
de uma teoria da razão que se encontra ausente em Maquiavei.
O que causa problema não é a existência da Sorte; pois, se não houvesse
em certas situações uma possibilidade a aproveitar, não somente o homem não
teria nunca a oportunidade de agir, como a própria ação seria impossível: a
contingência é exigida. O problema reside nisto: que idéia da vida política
acompanha a virtü? Qual é a posição da vida política? O apelo ao livre-arbítrio
representa o único elemento de resposta. Mas não se trata de esboço de uma
teoria “determinista”. Se a liberdade decide enfrentar a Sorte, não é primeiro
para inscrever aí uma ordem que seria sua própria produção, mas para preservar
a si mesma. Trata-se de uma liberdade mais defensiva do que ofensiva. É menos
o conteúdo do que o caráter formal que deve ser afirmado dessa maneira
A resistência à Sorte é apresentada como sendo raramente coroada de
sucesso. A maioria das sociedades se aparenta mais com a tirania. Essa tem a
particularidade de ser durável. No entanto, por sua falta de virtü, o tirano
deveria ser destruído pela Sorte. Choca-se, aí, com alguma coisa enigmática.
Maquiavei deixa entender, à maneira de Aristóteles, que a tirania pode ser
modificada. Considera dois casos de configuração: um em que a tirania é
relativa; outro em que “o estado de corrupção está em seu último estágio” (D,
1,18,16 e D, III, 1). Apresenta as possibilidades de melhoramento sob a forma
de uma alternativa na qual cada termo chega, no entanto, a um impasse.
l fi caso —A corrupção é relativa, mas seu caráter abjeto a torna difícil de
ser percebida pelos súditos ou cidadãos, com exceção de um só, caso exista.
Este último tenta aplicar um remédio com relação ao grau de corrupção (uma
reforma). No entanto, o tratamento fracassa por causa da cegueira dos homens.
O homem virtuoso sabe, mas nada pode fazer.
22 caso - A corrupção chegou a seu último estágio e explode aos olhos
de todos. É preciso que surja “um cidadão generoso e probo” que aplique um
remédio brutal (uma revolução). Porém, nesse caso, seria preciso ou um
homem de bem que faça o mal, ou um homem malvado que faça o bem. Ou o
bem se corrompe, ou o mal é poderoso, mas só faz reconduzir o mal.
Reecontra-se aqui o espírito dos escritos antigos onde um sábio é colocado na
presença de um tirano: o sábio tem necessidade do tirano para ser eficaz; mas
ele cessa, por isso mesmo, de ser sábio. Uma República principalmente,
procurando lutar contra o mal que a corrompe, se arrisca a se perder
totalmente, usando o mal contra o mal. Além disso, “semelhantes homens
podem não nascer nunca”. Maquiavei escreve ainda sobre as chances de limitar
a corrupção: “Ignoro se já se viu coisa parecida ou mesmo se é possível que
ela seja vista.” Raríssimo é o “cidadão virtuoso (D, III, 30 e D, III, 49) que sabe
apreciar a natureza do mal e que traz para ele um remédio conveniente sem
causar perturbações”.
Essas apreciações “pessimistas” não devem passar a imagem de um
Maquivel derrotista, muito pelo contrário. A liberdade - cujo conteúdo é
indeterminado por estar aberto sobre uma obra a ser concluída —é o motor e
a finalidade da virtü. Promover a vida política, da qual ela seria a medida,

762
aparece da mesma maneira como um ideal que, paradoxalmente, a aparenta
com a idéia tão alta que um Platão ou um Aristóteles tinham da política.
Aristóteles só pretendia elevar a vida social a alturas supra-sociais sobre a base
do desejo de ser feliz, desejo único em seu gênero que poderia ser partilhável.
Esperava dessa poderosa motivação que fizesse os homens aspirarem ao
melhoramento (em um sentido ético) de sua condição, mesmo se, nos fatos, o
desejo da felicidade recaísse muitas vezes na trivialidade (prazer, riqueza,
honra). O que importa para Maquiavel é estabelecer a possibilidade de agir
sem, para isso, pretender fornecer garantias. Mostra que o “velho Mundo” pode
ser rejuvenescido; que a seiva pode retornar se se considerar o mundo não
como um inimigo que nos oprime, mas como um parceiro difícil com o qual se
pode negociar.
A despeito dos esforços de interpretação tão numerosos concernentes
a obra de Maquiavel, essa guarda, ciumentamente, seu segredo. O invetário
dos três temas que estabelecemos não tem outra pretensão senão fornecer
pontos de referência possíveis, de tal maneira esses temas formam uma
espécie de mistura, indecomponível em si mesma, que previne toda tentativa
redutora ou dominadora de um dos temas com relação aos outros. Uma
teoria exige um conhecimento das articulações no interior de uma totalidade.
Sobre esse ponto, Maquiavel figura como cavaleiro só; não porque ele fosse
o “fundador” das teorias futuras que retiraraim dele tal ou tal elemento como
lhes conviesse, mas porque ele frustra maliciosamente todas as tentativas de
“fechamento” para pensar uma vida política cuja característica é a de ser
indefinidamente aberta.

• O e u v re s c o m p lè te s, La Pléiade. A tradução deve ser muitas vezes revista.

► Innocent Centillet, D isc o u r s c o n tre M a c h ia v el (1576), Firenze, Casolini Libri, 1974; Anôni­
mo (1577), D e la P u ls s a n c e L é g ltlm e d u P r ín c e s u r le P e u p le e t du P e u p le s u r l e P r in c e , Paris,
Éditions d’Histoire Sociale, 1977; Felix Gilbert, M a c h ia v elll a n d G u ic c a r d ln t, Princepton, Nova
Jersey, 1965; T o u tes le s le ttr e s d e M a ch ía vel, Gallimard, 1955; A. Renaudet, M ach iavel,
Callimard, 1956; Q. Skinner, M achiavelll-, Põggeier, Hegel et Machiavel, A rc h lv e s d e p h llo so -
p h ie, 1 41,1978; B. Groethuysen, Anthropologie philosophique, Callimard, 1952; Merleau-Pon-
ty, S lg n es, Gallimard, 1960; Cassirer, The M yth o f th e S ta te , Yale University Press, 1969; Fichte,
M a ch ia vel, Payot, 1981; Nietzche, V o lo n té d e p u ls s a n c e , Callimard, 1948, L 2, p. 481; C. Lefort,
L e tr a v a il d e 1’o e u v re , Gallimard, 1972; Leo Strauss, P e n s é e s s u r M a c h ia v e l Payot, 1982; John
Elster, L e ib n iz e t la fo rm a tla n d e V e sp lrlt c a p lta lls te , Aubier, 1975; Macpherson, L a th é o r ie d e
V ln d lv ld u a ltsm e p o ss e s slf, Gallimard, 1962,1971.

Michel-Pierre EDMOND
MARCÍLIO DE PÁDUA, por volta de 1275 - por volta de 1343

O defensor da paz, 1324

O defensor da paz representa uma etapa decisiva na formação do sistema


teórico sobre o qual foi edificado o Estado moderno, isto é, o princípio de
soberania. Dois elementos essenciais ao poder de Estado são nele realmente
colocados: a autonomia do poder político e civil e o monismo estatal.

Autonomia do poder político

A obra, que se divide em duas partes, é ao mesmo tempo um texto polêmico


e um texto teórico: Marcílio, apoiando-se na Política de Aristóteles, combate a
pretensão papal à “plenitude de poder”. Assim, a primeira parte, toda conceituai,
dedica-se a definir propriamente a Cidade em seu princípio; a segunda parte é,
segundo a expressão pertinente de J. Quillet, "um verdadeiro tratado de eclesio-
logia”. Todavia a doutrina eclesiológica de Marcílio não é obra de um teólogo: é
preciso, ao contrário, ver nela a justificação de seu combate político. Essa
segunda parte, mais importante em volume do que a primeira, encerra, real­
mente, a chave da inspiração do autor: ela é, por inteiro, um violento ataque
contra a doutrina da superioridade do Papa em matéria tanto espiritual quanto
temporal. Vê-se que se a motivação é política - Marcílio querendo, contra “o
bispo de Roma”, estabelecer o poder do Imperador de maneira absoluta - , o
combate é levado para o interior de uma problemática teológica. Se é verdade
que a eclesiologia marciliana fornece a chave de sua política, pode-se dizer que,
em compensação, sua teologia é a vestimenta de sua política.
Querendo fundar a autonomia da vida civil e política, Marcílio é forçado a
lutar contra os que se opõem a essa autonomia. Ora, o inimigo sendo o Papa ou,
melhor, sua doutrina da plenitude de poder, Marcílio escolhe, no começo da obra,
ignorá-lo: não se descobrem, imediatamente, suas cartas. O adversário será
nomeado mais tarde, no momento de expor a doutrina eclesiológica. Não
enfrentando o reverso da doutrina da plenitude de poder, ele se apóia sobre a
autoridade de um pensador pagão, a saber Aristóteles, de quem toma emprestada
a problemática teória da origem da Cidade e de suas partes: "Segundo Aristóteles
- escreve ele, no livro I da Politique, capítulo 1 - , uma cidade é uma comunidade
perfeita, possuindo por si mesma a plenitude de sua suficiência, como conseqüen­
temente se deve dizer; ela é criada para viver, existindo, por isso, em função do
bem-viver”. Estas palavras de Aristóteles, “criada para viver, existindo em função
do bem-viver”, designam sua causa final perfeita.” (pág. 66).
Está aí a meta da vida civil: não somente viver - pois é também a sorte dos
animais irracionais - , mas principalmente viver bem. A essa finalidade corres­
ponde uma origem ou causa da comunidade. Essa origem é eminentemente
terrestre e mesmo profana. Marcílio explica na verdade que o bem extramunda-
no, a “segunda vida”, a eterna, não conta como princípio constitutivo da Cidade:
não se poderia, conseqüentemente, descobrir aí sua causa. Ao contrário, a

764
felicidade terrestre, intramundana, deve ser reconhecida como essa causa: “O
homem nasce composto a partir de elementos contrários, ou seja, ele vem ao
mundo nu, sem defesa, padece e se corrompe sob os golpes da atmosfera e de
outros elementos, como diz a ciência das coisas naturais. Ele também tem
necessidade de diversos gêneros e espécies de arte para evitar os danos já
mencionados. Ora, essas artes só podem ser praticadas por um grande número
de homens e não podem ser adquiridas sem sua ajuda mútua, os homens também
continuam a se associar para tirar proveito dessas artes e evitar os danos” (pág.
67). Esta é, portanto, a origem, única, da Cidade: prover as necessidades materiais
e trocar mutuamente os bens capazes de satisfazê-las. Está aí uma origem realista
e, em todo caso, profana. O “bem-viver” aristotélico retido por Marcílio concerne
à satisfação do corpo; a felicidade é uma meta terrestre e, mesmo, profana, como
se acaba de dizer. “A comunidade tem necessidade de diversas comodidades,
reparações e proteção de bens comuns; ela deve comportar homens que tenham
esse encargo para estar em estado de prover essa necessidade quando for
necessário e oportuno... os homens se reuniram, portanto, para viver de maneira
suficiente (a uma subexistência segura), obter as coisas necessárias de que se
falou e trocá-las mutuamente” (pág. 68).
É dessa concepção (burguesa) da vida terrestre e da felicidade presente
que se deduz o princípio de governo. Com efeito, se existe um problema
político, é porque várias funções e partes da Cidade concorrem para o bem
comum. De modo que a questão que se coloca é a de saber quem governará a
associação em vista do bem terrestre, qual norma juirídica presidirá o respeito
da associação e a boa marcha das trocas. À questão da origem da Cidade
corresponde, portanto, a questão política da legitimidade do poder em seu
âmbito: “E preciso, portanto, estabelecer uma regra do justo e um guardião ou
executor de justiça para suas trocas” (pág. 68).
Este problema - quem deve governar? - é ao mesmo tempo lógico e
teológico. E política pura. Acabamos de ver que a Cidade possui em si mesma
seu princípio constitutivo: a vida suficiente por si. Conseqüentemente, a parte
que será chamada para governar deve ser determinada segundo o mesmo
princípio de autonomia. A autonomia da sociedade civil —da qual o autor é o
inventor, como acabamos de ver —corresponde à autonomia do poder político.
Aquele que governa a sociedade civil terá saído dela, isto é, seu princípio
procederá de si mesma ou, se se preferir, seu princípio procederá da finalidade
imanente à sociedade civil: a felicidade terrestre.
É aqui que o combate se empenha contra o Papa e contra seus suportes
no âmbito da Cidade civil: os padres. O objeto político de Marcílio é caçar os
padres do governo da Cidade terrestre. Isso é feito graças à demolição - não
há outra palavra —do“sofisma” papal da plenitude de poder. Um sofisma que
é denunciado no decorrer de toda a segunda parte de O defensor da paz. O
título da obra toma, então, seu sentido: se os padres, encarregados da salvação
da alma (a felicidade extramundana), estão encarregados do governo da Cidade
terrestre, há o risco de guerra civil. Além disso, esse risco não é somente
teórico: é a querela ou, melhor, o conflito, que atravessa toda a Idade Média,

765
conflito dito do Sacerdócio e do Império, do espiritual e do temporal. “Tanto
no monopólio dos poderes e governos seculares que eles já possuem quanto
dentro daqueles que eles procuram também monopolizar e os quais os bispos
de Roma se esforçam para atingir com todos seus esforços, se bem que isto aí
seja coisa indevida, esse lugar sofistico, que eles chamam de plenitude de
poder, não constituiu, não constitui ainda e não constituirá o mínimo elemen­
to; é daí também que tira sua origem o paralogismo, pelo qual eles tentam
concluir que reis, príncipes e indivíduos estão sujeitos a sua jurisdição
coercitiva” (págs. 433-434).

Monismo estatal

“Sofisma”, porque, repousando sobre o falso princípio da felicidade


extramundana, a doutrina da plenitude de poder é ainda um “paralogismo” por
ela se opor à lógica interna da sociedade civil e política. Qual é essa lógica?
Tata-se de uma representação da sociedade civil sobre o modelo da
relação do todo com suas partes. Há três partes dentro da Cidade, três ordens:
a ordem do sacerdócio encarregado da salvação eterna (o clero), a ordem da
produção e dos ofícios (provedora de bens necessários à satisfação do corpo)
e, enfim, a ordem da coerção (executora das leis e guardiã do que é justo dentro
da Cidade). A paz civil - cuja determinação das condições é o objeto teórico
de O defensor... - é atingida e assegurada se, e somente se, cada parte da
Cidade se limitar à execução das tarefas que lhe cabem. Se uma parte vier a se
tomar pelo todo no cortejo de um sofisma mantido ou de um paralogismo, a
ordem e a paz serão ameaçadas. “Eu coloco, escreve Marcílio, esta noção
comum: o todo é maior do que a parte, o que é verdadeiro tanto sob o aspecto
do tamanho ou massa quanto sob o da virtude ativa e da ação. Conclui-se daí
necessariamente, de maneira bastante evidente, que o conjunto dos cidadãos
ou sua maioria preponderante - o que eqüivale à mesma coisa —pode discernir
o que deve ser escolhido ou rejeitado melhor do que qualquer uma de suas
partes tomadas à parte” (p. 119).
Não se terá dificuldade em determinar qual parte da sociedade pode
pretender valer o todo. É a parte sacerdotal que, por eleição divina supraterres-
tre ("sofisma" com base em uma comunidade cuja origem e finalidade são
intramundanos), se mantém no governo das coisas comuns. Já que a causa da
discórdia civil é daí em diante conhecida, resta apenas determinar as condições
da harmonia. Ora, a sociedade civil é pensada pelo autor como uma totalidade
tendo sua meta em si mesma (o viver bem) e cuja origem é natural, se bem que
os indivíduos que a compõem estejam associados voluntariamente. Para evitar
o cisma civil, cuja causa reside na captação ou monopólio do poder da parte
do sacerdócio, Marcílio pensa sobre a totalidade como unidade.
Essa noção de unidade do corpo social é capital: dela será deduzida a
noção da unidade da parte governante (nós diríamos hoje em dia o poder
executivo): uma sociedade una conduzida por um só chefe. O chefe deve ser
pensado como o princípio da unidade civil e política.

766
É, portanto, a partir de uma concepção lógica da sociedade como
totalidade una e homogênea que Marcílio deduz o princípio geral do governo
de todos por um só. Está aí o princípio do monismo estatal que será desenvol­
vido, dois séculos e meio depois de O defensor, por Jean Bodin. Para fazer isso,
Bodin construirá o conceito da soberania, a própria essência do Estado
moderno.
Por hora, a questão da unidade está na ordem do dia, e Marcílio coloca
seus fundamentos. “Daquilo que já dissemos, escreve ele; aparece de certa
forma o que é a unidade numérica da cidade ou reino. E uma unidade de
ordem, não uma unidade absoluta. É mais uma pluralidade de homens que é
dita una ou, ainda, dos homens que são ditos ser uma coisa única quanto ao
número”(pág. 161).
O comando coercitivo do príncipe será, então, colocado como uma conse­
qüência do princípio de unidade: “Cada uma das funções é dita também una,
quanto ao número, ou uma parte da cidade una quanto ao número, não obstante
a pluralidade numérica dos súditos que constituem essas partes e não certamente
por uma unidade que lhes é inerente, mas porque eles se referem a um único
preceito ativo do príncipe, segundo a determinação da lei" (pág. 163)
Resta, portanto, para conhecer as causas da paz civil, determinar de onde
vem a lei e o que ela é: "Essa é a lei, diz Marcílio, o príncipe realmente é levado
a efetuar os julgamentos civis segundo a lei; a instituição da lei é, portanto,
necessária dentro da sociedade política” (pág. 101). A lei —preceito coercitivo
acompanhado de pena - tem sua causa eficiente no povo “ou em sua parte
preponderante por sua eleição ou sua vontade”. É, portanto, segundo o autor
de O defensor, na vontade popular que reside, em última análise, o princípio
da paz civil.
Está aí uma antecipação da doutrina de Rousseau do “povo soberano”.
Antecipação somente, pois nem o príncipe —executor da vontade do povo —,
nem o povo - autor da lei — podem ser ditos soberanos. Pensar sobre o
príncipe soberano, o que fará a tradição moderna do direito político, é pensá-lo
independente das leis das quais ele próprio é o autor, é uma concepção
estranha a Marcílio de Pádua.

• L e D é fe n se u r d e la Palx, tradução, introdução e comentário de Jeannine Quillet, Paris, Vrin,


1968.

► G. de Lagarde, L a n a iss a n c e d e 1’e s p r lt la iq u e au d é c lin du M o y e n  ge, Louvain-Paris,


Nauwelaerts, 1956-1970; Jeannine Quillet, L a p h ilo s o p h ie p o litiq u e d e M a rsile d e P a d o u e ,
Paris, Vrin, 1970; Idem, L e s clefs d u p o u v o i r a u M o y e n A ge, Paris, 1972, págs. 99-108.

Gérard MAIRET

767
MARCUSE, Herbert, 1898- 1979
Eros e civilização, 1953, seguido de A noção de progresso à luz da
psicanálise, 1968

Eros e Civilização e A noção de progresso à luz da psicanálise formam


uma unidade. O segundo reúne em umas vinte páginas o essencial das teses
desenvolvidas no primeiro. Trata-se nos dois casos, para Marcuse, de interrogar-
se em função de Freud sobre a essência da dominação e de discutir, em
conseqüência disso, as condições sob as quais a humanidade poderia um dia
realizar suas aspirações à felicidade e à liberdade. Marcuse deve, então, colocar
também em questão, em Freud, certas pressuposições que o puderam impedir
de acreditar nas possibilidades utópicas de uma civilização não-repressiva. E
essas possibilidades utópicas, Marcuse argumenta com elas essencialmente a
respeito de uma “dialética" imanente da civilização, mesmo quando pode obser­
var, como os preâmbulos de um futuro possível, os movimentos espontâneos de
revolta e de contestação estudantis. Aliás, não se tinha mais ilusões sobre o
Termidor que aflige invariavelmente os episódios revolucionários (A noção de
progresso, pág. 265): as revoluções passadas fracassaram onde elas se arriscavam
a introduzir uma mudança qualitativa na situação, “ao passo que a interiorização
da dominação retoma e prossegue em um nível superior”.
Mas por quê? Essa inquietação prática fornece o ponto de partida da
investigação. Marcuse suspeita de que a dominação esteja com efeito bem mais
ancorada nas estruturas internas da sociedade e da organização do ego do que
Marx o deixava supor: “É realmente verdade que as revoluções só são
recusadas, recuperadas e vencidas do exterior? Não existe já nos indivíduos
uma dinâmica interna que nega a possibilidade da liberação e da satisfação, de
tal modo que essa negaço não se exerce somente do exterior sobre os
indivíduos?” (ibidem, pág. 265). Ora, essa questão se coloca de maneira
totalmente natural em direção às teses freudianas sobre o motivo fundamental
da repressão e da civilização. Marcuse concede a esse respeito um valor
exemplar ao mito que Freud havia elaborado, em Moisés e o monoteísmo,
sobre a origem da história dos homens, inaugurada pela morte e a consumação
do pai primitivo1. O mito freudiano explicita, à sua maneira, a dinâmica fatal:
repressão, revolução, restauração da dominação sob uma forma sublimada -
Marcuse diz: sob uma forma “racional”, interiorizada e cada vez mais anônima.
E, portanto, dentro da estrutura do próprio ego socializado e não mais da parte
de um agente exterior de repressão (o despotismo do pai primitivo) que se deve
procurar os determinantes da inibição do instinto. Porém, esta última é, por
outro lado, exigida, segundo Freud, no próprio interesse da conservação da
civilização e do progresso da cultura. Marcuse sublinha que, aos olhos de
Freud, “a renúncia produtiva é exigida para o progresso (...) Pois só o caráter
repressivo do princípio de realidade é capaz de desviar a energia do instinto
para um trabalho penoso fundado sobre a renúncia e a rejeição dos desejos
instintivos, que se pode tornar e ficar, somente a esse preço, socialmente

768
produtivo”^ noção de progresso... pág. 260). Marcuse não poderia evidente-
mente negar o ‘princípio de realidade’ como tal. É por isso que toda sua
estratégia conceituai consistirá em colocá-lo em questão em sua forma his­
tórica atual.
Com efeito, na medida em que Freud raciocinava mais como psicólogo do
que como sociólogo2, os dados antropológicos de base, que são para ele os
instintos primários, o princípio do prazer e o de realidade, eram considerados
mais sob o ângulo de sua “natureza” do que sob aquele de seu caráter histórico.
Eles eram nessa medida apresentados mais como invariantes do que como dados
evolutivos cuja transformação seria ligada a mudanças históricas dentro dos
princípios de organização social. Ora, o sociólogo deve quanto a isso levar em
consideração de maneira categórica a diversidade das formas culturais. Ele deve
se preocupar com a maneira pela qual cada forma histórica de organização social
institui seu modo específico de repressão, por meio dos símbolos normativos, das
“imagens do mundo”, que lhe são próprios e estruturam cada vez de maneira
diferente as relações do indivíduo com sua sociedade. É precisamente nessa
linguagem social que as opressões da realidade se encontram historicamente
formuladas e culturalmente interpretadas, de sorte que o princípio de realidade
nunca é dado socialmente como princípio de realidade “em geral”. Marcuse
reprova constantemente Freud por sua "naturalização” do princípio de realidade.
Ele pensa em particular que essa hipóstase conduz a identificar o princípio da
realidade como tal, o que é, no fundo, apenas uma forma modal, pertinente
principalmente no contexto específico das sociedades modernas produtivistas,
como o “princípio de rendimento".
O princípio de rendimento, explica Marcuse, “é o de uma sociedade
orientada para o ganho e a concorrência dentro de um processo de expansão
constante. Ele pressupõe uma longa evolução no curso da qual a dominação
foi cada vez mais racionalizada” (Eros..., pág. 52). Marcuse ressalta um pouco
antes que “aparentemente, não é o único princípio de realidade na história.
Outras formas de organização social não só dominaram nas civilizações
primitiveis, como também sobrevivem na época moderna”. A exatidão dessa
observação é amplamente atestada pelos estudos etnográficos contemporâ­
neos. Antropólogos, como J. Lizot, M. Sahlins e P. Clastres, enfatizaram
principalmente o fato de que as sociedades ditas “selvagens” dependem de um
princípio radicalmente antiprodutivista, que o rendimento, a concorrência, o
"progresso” são valores totalmente estranhos à sua imaginação social e que,
mesmo certas práticas sociais, que para nós teriam uma significação econômica
evidente, não têm necessária ou prioritariamente, para essas sociedades, a
mesma significação 3. Nesse caso, o princípio de realidade não se faz conhecer
nem como “princípio de rendimento”, nem como “princípio de progresso” 4.
Em nossas sociedades, no entanto, a renúncia dos instintos é exigida exata­
mente para o progresso da civilização; e, nessa medida, o motivo da repressão
perde seu caráter puramente “natural” para aparecer também como ideológico.
Marcuse relativiza, assim, o caráter natural da opressão, tal como pelo menos
esta última se encontra socialmente exprimida nas instituições. Talvez ele

769
pense já ter aberto por aí uma brecha por onde se possa entrever a possibili­
dade alternativa de uma civilização não-repressiva, isto é, de um princípio de
realidade “qualitativamente diferente”. Na verdade, esse primeiro ataque é
mais retórico, e ele não mina verdadeiramente as bases argumentativas que
permitiram a Freud afirmar o caráter fundamentalmente repressivo de toda
civilização em geral.
Pois essa é a verdadeira questão: pode-se fundar racionalmente a pers­
pectiva de uma sociedade não-repressiva, isto é, de uma sociedade na qual o
princípio de realidade não seria oposto ao princípio de prazer, mas harmoni­
zado com ele? Marcuse indica, certamente de maneira justa, formas de
organização social que não são de maneira nenhuma dominadas pelo princípio
de rendimento e nas quais o princípio de realidade não se identifica de maneira
nenhuma com o princípio de progresso. Mas, seguramente, ele nem sonha em
dar essas formas históricas como exemplos de sociedades não-repressivas. E
também ele não sonha em voltar sobre as aquisições do “progresso”, por mais
ambíguas que sejam. Marcuse não situa sua utopia na “idade da pedra, idade
de abundância”, porque sua crítica da dominação é historicamente situada e
politicamente orientada. O que ele quer mostrar é mais que, com relação às
condições já apresentadas, é possível considerar que a felicidade e a liberdade
sejam tornadas compatíveis com a civilização5. Por isso, ele argumenta - ao
mesmo tempo com Freud e contra ele - em duas direções distintas: na
primeira direção, trata-se de contestar que a penúria, a necessidade, anankè,
é uma constante da civilização. Notemos que implicitamente isso significa
também admitir que existe realmente um fundamento natural do princípio de
realidade e que esse não é, portanto, por assim dizer, histórico do princípio ao
fim. Na segunda direção, Marcuse deve perguntar de maneira mais profunda
se Freud tem razão em pensar que a dominação se manteria necessariamente,
mesmo na ausência de toda penúria. Essa interrogação faz, quanto a ela
diretamente, eco à inquietação que havíamos mencionado, a respeito de um
enraizamento interno da repressão dos instintos.
—Sobre o primeiro ponto, no tocante à questão do fundamento externo
da repressão, isto é, ao problema da penúria, da luta pela existência e da
obrigação de trabalho, Maracuse supõe que é o próprio princípio de rendimen­
to, resultante de uma longa evolução da repressão social, que prepara jus­
tamente as condições de emancipação. Isso se compreende facilmente do ponto
de vista econômico: sob o princípio de rendimento, realmente, a civilização
desenvolveu possibilidades produtivas tais que a persistência da miséria
material coloca, sem dúvida, objetivamente, mais um problema de repartição
do retorno mundial do que um problema de aumento das capacidades produ­
tivas. Pode-se, além disso, admitir que, com a automação, foi uma mudança
qualitativa que interveio no modo de produção dominante. Essa “terceira
revolução industrial" não só tende a resolver o problema quantitativo de
penúria e da riqueza socialmente disponível, como também deixa entrever uma
mudança qualitativa na forma do trabalho social, na medida em que a produção
dos bens reprodutíveis de grande consumo pode ser realizada de maneira

770
automática 6. Essa hipótese, no final das contas realista, permite a Marcuse
dizer que nós atingiríamos hoje em dia os "limites históricos” do princípio de
realidade atual. É por isso que ele não hesita em perguntar se o principio de
rendimento não “criou as pré-condições de um princípio de realidade qualita­
tivamente diferente, não-repressivo” (Eros..., pág. 125).
- Marcuse havia tomado o cuidado de falar somente de “pré-condições”.
Pois o problema da penúria poderia ser resolvido, sem que isso implicasse o
fim da dominação. Está aí o segundo ponto e, para dizer a verdade, o mais
decisivo. Levando a maldição bíblica da obrigação de trabalho, a civilização
pode quando muito suprimir por aí o fundamento externo da repressão, que é
da ordem da natureza. Mas resta o problema de um enraizamento interno da
dominação, que seria, segundo ele, da ordem da cultura - o que se pode, então,
traduzir nos termos de uma "causalidade do destino”, pelo fato de não ser a
necessidade natural que está em causa, mas um determinismo interno aos
sistemas de personalidade assim como à lógica da individuação, e que, conse­
qüentemente, está fundamentalmente ligada à uma causalidade dos símbolos,
das significações socialmente instituídas e das estruturas normativas. Com
efeito, o destino da dominação não está diretamente ligado à lógica da luta pela
existência, isto é, à lógica do trabalho, porém está ligada mais diretamente a
uma lógica da própria organização repressiva. Ora, essa “lógica” traria nela
uma espécie de fatalidade: a manutenção e o progresso da civilização exigem
o desvio da energia sexual para o trabalho e, de uma maneira mais geral, o
controle repressivo dos impulsos libidinosos e agressivos. Porém, por motivos
que não podemos desenvolver aqui, parece que, para Freud, esse desvio dos
instintos sob forma de sublimação ou de conversão socialmente útil tende a
enfraquecer o Eros e a desenvolver correlativamente o sentimento de culpa.
De um lado, os impulsos sexuais, associados ao instinto de vida, tenderiam a
se enfraquecer; do outro lado, os impulsos agressivos voltados para o eu e
associados ao instinto de morte tenderiam a se consolidar: a libido perderia de
alguma maneira terreno em proveito do destrudo. É por isso que Freud não
parece acreditar na possibilidade de uma civilização não-repressiva - precisa­
mente por causa do poder que adquiririam os derivativos do instinto de morte.
A isso, Marcuse objeta que o destino do destrudo está, por hipótese, submetido
ao da libido. Pois, desde que uma forma de vida se mantenha, isso não significa
que a energia destrutiva tenha podido, de uma forma ou de outra, ser colocada
a serviço da energia produtiva? Esse argumento quase tautológico parece, para
dizer a verdade, uma petição de princípio. Talvez seja aí que resida a fraqueza
lógica de sua argumentação contra Freud. E Marcuse conclui: “Portanto, uma
mudança qualitativa do desenvolvimento da sexualidade deve necessariamente
transformar as manifestações do instinto de morte.” {Eros..., pág. 133).
Marcuse começa, então, a demonstrar “a possibilidade de um desenvolvi­
mento não repressivo da libido nas condições de uma civilização que chegou
à maturidade" {Eros..., pág. 134). Levando em consideração o que precede, não
se trata mais dessa vez de contar com as pré-condições objetivas ou econômicas
de uma auto-ultrapassagem do princípio de rendimento. De maneira conse-

771
quente, Marcuse interroga agora sobre um outro aspecto, uma outra dimensão
da evolução social: a da tradição culturaí, onde são depositados os símbolos
legados, as imagens herdadas, as representações consagradas, que estruturam
um imaginário em que permanece encerrada a utopia.
Seguindo uma tradição que remonta a Ernst Bloch 7, Marcuse recorre às
possibilidades utópicas que seriam de alguma forma "arquivadas” naquilo que
Freud chamava “o patrimônio espiritual da civilização”. Ele se apoia principal­
mente, do lado da arte e da filosofia, sobre o que ele chama de “as reivindicações
utópicas da imaginação” (Eros..., pág. 148). Para Marcuse, a imaginação é essa
faculdade criadora que projeta na arte clássica a utopia de uma reconciliação
entre o princípio do prazer e o d e realidade. Dentro da filosofia, a imaginação
se apresenta também como esse lugar do espírito, sede do gênio, onde se exerce,
como dizia Kant, o “livre jogo das faculdades”. Ela se manifesta como produtivi­
dade livre, autônoma, em que as potencialidades criadoras do indivíduo se podem
desenvolver plenamente. Ela fornece, nesse sentido, o paradigma do trabalho
liberado da pena e da produção isenta da alienação, antecipando, ao mesmo
tempo, “uma outra relação com o princípio do prazer” e "um novo princípio de
realidade”. É a utopia inteligente não da supressão do trabalho - o que Marcuse
não deseja - , mas da chegada de uma nova forma de trabalho, que seria bem
mais produtiva, pois não seria mais operada sob coação:

Uma tal mudança na orientação do progresso vai além da reorganização fundamental do


trabalho social que ele pressupõe. Por mais justa e racional que possa ser a organização
da produção industrial, ele não pode nunca ser o domínio da liberdade e da satisfação,
mas ela se pode liberar do tempo e da energia para o jogo livre das faculdades humanas
fora do domínio do trabalho alienado. Quanto mais a alienação do trabalho é total, maior
é o potencial de liberdade: a automação total seria o ponto ótimo {Eros..., pág. 148).

Deve-se rejeitar a utopia de Marcuse? Pode-se recusá-la agora, na hora


em que, uns trinta anos depois de Eros e civilização, as possibilidades que
Marcuse esperava da automação parecem mais ao alcance da mão, enquanto
as buscas de novas formas de vida e de autonomia sociais não se podem mais
exprimir somente no ativismo crítico de movimentos estudantis ou no recôn­
dito apático dos movimentos hippies ou dos Jesus-people 8? Marcuse pode ser
repelido hoje em dia. E sua utopia pode ser levada a sério na medida em que
ela se quer racionalmente fundada. Essa convicção, Marcuse a anunciava em
seu ensaio de 1968, que ele terminava com estas palavras: “Talvez seja menos
irresponsável, hoje em dia, desenvolver uma utopia fundada do que denunciar,
como utópica, a idéia de condições e de possibilidades que são, desde muito
tempo, perfeitamente realizáveis.”•

• L ’h omme unldlmensionnel, Paris, 1968; Raison et Révolution, Paris, 1968; La fín de


1'utopie, Paris, 1968; Vers la libération, Paris 1969; Philosophie et Révolution, Paris, 1969;
Culture et Société, Paris, 1970; Contre-Révolution elRévolte, Paris, 1973; Eros et civilisation,
Paris, 1963 e 1970; Le marxisme sovlétique, Paris, 1963.

772
► M. Ambacher, Marcuse et la civlltsation américaine, Paris, 1969; P. Masset, La pensée de
H. Marcuse, Paris, 1969; J. Habermas, Herbert Marcuse. Introduction à un anti-hommage, em
J. Habermas, Profíls philosophiques et potítiques. Paris, 1974.

Jean-Marc FERRY

NOTAS
1. Eros e civilização, cap. 3: “A origem da civilização repressiva (filogênese)”. Na origem
da história da humanidade, o pai primitivo impunha, como déspota absoluto, seu domínio sobre
todos os outros membros da horda, impedindo a posse da mulher, monopolizando em seu
proveito o direto ao gozo. A rebelião dos filhos e a morte do pai foram uma primeira tentativa
para liberar os instintos e estender a todos a satisfação dos instintos. Veio em seguida o
momento em que os filhos reconheceram a utilidade do pai, julgando propriamente impossível
a ausência de toda dominação.Eles reestabelecem, então, o Pai, porém sob uma forma in­
teriorizada, anônima, universal.
2. Foi de maneira muito explícita que Freud concebeu a sociologia como uma psicologia
aplicada (cf. S. Freud, Nouvelles conférences sur la psychanalyse, Paris, Gallimard, 1971, pág.
237).
3. Foi notadamente C. Castoriadis quem chamou a atenção de maneira muito viva sobre
este último ponto (cf. Comelius Castoriadis, L ’instltuílon imaginalre de la societé, Paris, Seuil,
1964, em partigular, págs. 38-39 e segs.).
4. A noção de progresso..., págs. 259-260: “A renúncia produtiva é exigida para o
progresso. E é, aliás, por aí que o princípio de realidade se identifica com o princípio de
progresso.”
5. Está aí na verdade o motivo decisivo da explicação com Freud. A noção de progres-
so...,(pág. 259). Marcuse explica que “segundo Freud, a felicidade, não mais do que a liberdade,
não é um produto da civilização. A felicidade e a liberdade são incompatíveis com a civilização
cujo desenvolvimento repousa sobre a repressão, a restrição, o recalque dos instintos sensuais.
Ela é inconcebível sem uma transformação repressiva dos instintos... O princípio do prazer deve
ser substituído pelo princípio da realidade, se se quiser que as sociedades humanas saiam da
esfera animal para ter acesso à verdadeira humanidade”. Um pouco mais adiante, Marcuse
justifica assim suas interpretação um pouco material das teses de Freud: “Eu disse tudo isso de
maneira grosseira e esquemática para evitar simplesmente que se renove aqui um grave
mal-entendido que consiste em tomar Freud por um irracionalista em certo sentido (...). Sua
frase ‘O isto deve ser substituído pelo eu’ (Wo Es war soll Ich werden) talvez represente a
fórmula mais racionalista que se possa imaginar em psicologia.”
6. Marcuse, no fundo, reencontra aqui um pensamento de Marx. Nos Fundamentos da
crítica da economia política, Marx havia realmente desenvolvido uma reflexão que não retorna
nas pesquisas paralelas de O Capital). Marx concluía assim: “A produção baseada sobre o valor
de troca se desmorona por esse fato, e o processo de produção material imediata se vè ele mesmo
despojado de sua forma mesquinha, miserável e antagônica. Ejáste, então, o livre desenvolvi­
mento das individualidades. Não se trata mais, desde então, de reduzir o tempo de trabalho
necessário em vista de desenvolver o sobre-trabalho, mas de reduzir em geral o trabalho
necessário da sociedade a um mínimo”...(pág 221, t II, Paris, Ed. Anthropos, 1967).
7. E. Bloch, L ’esprit de Vutopie (1918), trad. franc., Paris, Ed. Gallimard, 1977, e
principalmente, do mesmo autor, Le príncipe espérance (1959), trad. franc.. Paris, Ed. Calli-
mard, 1976.
8. Sobre o problema do simbolismo social e sobre as tendências para a crise de
legitimação e de motivação em nossas sociedades, cf. o apaixonante estudo de J. Habermas, em
Raison et legltimité, trad. franc. Paris, Payot, 1978, em particular pág. 107 e segs.

773
MARITAIN, Jacques, 1882-1973
O homem e o Estado, 1953

As seis conferências dadas na Universidade de Chicago em 1949, traduzi­


das do inglês e desenvolvidas dentro de Vhomme et VÉtat (O homem e o
Estado), são só um momento dentro do itinerário intelectual de Jacques Maritain
e, sem dúvida, não são o mais importante, de acordo com seus próprios
julgamentos, lá pelo fim de sua vida. Contudo, o lugar do Maritian de antes da
guerra dentro da redescoberta do tomismo, seu papel dentro da Igreja católica
graças a Humanismo integral (1936) para fundar uma firma distinção entre o
espiritual e o temporal, a influência exercida por ele na elaboração da Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948, ONU) atestam bastante que, dentro de
uma obra abundante, sua filosofia política não é mais secundária.
Escritos ao sair da Segunda Guerra Mundial, os textos reunidos em O
homem e o Estado poderiam ser lidos como uma crítica radical dos totalitaris-
mos, os já vencidos (nazismo) e os ainda triunfantes (marxistas-leninistas), ou
como uma vigorosa denúncia das armadilhas fatais para as democracias.
Porém, de um lado, desde antes da guerra Maritain criticara o totalitarismo em
termos próprios, mais lúcido nesse ponto do que muitos que em seguida
passaram por campeões do compromisso, e, de outro lado, uma atenção
exclusiva sobre os julgamentos circunstanciais ocultaria um traço essencial da
arte filosófica de Maritain. Trata-se sempre, para ele, de remontar aos princípios
e de denunciar os erros teóricos das doutrinas que impeliram as democracias
modernas para os impasses ou para a representação delas mesmas.
Também não é de espantar se viermos a encontra em O Homem e o
Estado um despedaçamento não somente do Estado absolutista, substancialis-
ta e despótico, mas também dos conceitos que sustentaram e mantêm sua
existência. A noção de soberania é particularmente despedaçada como o erro
fatal que, sob pretexto de exaltar o povo, o despoja de seu direito inalienável
de governar a si mesmo. O conceito de soberania “intrisecamente ilusório”
apareceu, na aurora da época moderna, de sua transposição de um domínio
em que ele tem seu lugar, o domínio espiritual ou metafísico, pois com rigor
só Deus é soberano, para um outro, o campo político onde ele semeia confusão,
desordem e dependência. Ele é afirmado a partir de um “erro original”; pois
os teóricos da soberania (Bodin e Hobbes) “sabiam que o povo possui
naturalmente o direito de se governar. Mas eles substituíram a consideração
desse direito pela do poder do povo constituído em cidades” (pág. 31). Eles
abordaram “o problema em termos de bens (ou de poder material) tidos em
propriedade ou em depósito, em vez de discuti-lo em termos de direitos
possuídos por essência ou por participação”. Se um bem não pode ser
apropriado por um sem que o outro seja privado dele, não precede da mesma
forma um direito que “pode ser possuído por um como pertencendo à sua
natureza e pelo outro como participado por ele”. Se o poder é um bem
reconhecidamente do Príncipe, o povo só pode estar despojado dele. Esse erro

774
engendra a idéia de soberania, e essa idéia significa ela mesma duas coisas: um
direito à suprema independência do poder considerado um direito natural e
inalienável e um direito a um poder que, dentro de sua esfera própria, é
supremo absolutamente. A independência e o caráter absoluto do soberano
despojam o corpo político de um de seus atributos essencias; eles dividem o
próprio povo, o qual é apenas o conjunto dos membros organicamente unidos
que constituem o corpo político.

Uma filosofia da democracia

Porém essa crítica só tem sentido se fundada sobre uma filosofia eminen­
temente positiva do povo. O conceito de povo é, aliás, “o mais alto e o mais nobre
dos conceitos fundamentais” de uma filosofia política. Pois “o povo é a própria
substância, a livre e viva substância do corpo político. O povo está acima do
Estado, o povo não é para o Estado, o Estado é que é para o povo” (pág. 25). É
ele que, organizado em corpo político, unido pelos vínculos da amizade cívica, é
autônomo, tendo um direito natural de se governar ele mesmo, o que as teorias
da soberania desconhecem ao falar de independência. Ele é autônomo como um
todo “perfeito”, isto é, não que seja sem defeitos, mas sim plenamente constituído
“segundo as propriedades e as exigências especificas do objeto de pensamento
chamado sociedade” (pág. 185, n.l). Ele só se pode despedaçar ao reconhecer a
um poder humano um direito soberano sobre ele próprio. Pois “nenhum agente
humano nem instituição humana possui, em virtude de sua própria natureza, o
direito de governar os homens” (pág. 39).
Uma filosofia democrática pressupõe evidentemente a confiança no povo,
o que constitui “o primeiro axioma e o primeiro preceito de uma democracia”
(pág. 133), enquanto, ao contrário, aqueles que querem forçar o povo a ser livre
(Rousseau) o traem, considerandoo uma criança a quem é preciso impor as
justas instituições ou mesmo as liberdades, se for preciso, pelo terror. A
justificação de tal confiança não é mais ingênua se ela estiver consciente de que
a democracia é o resultado de um longo processo histórico, no curso do qual se
enraíza o gosto pelos valores morais e espirituais dentro de um povo, os quais
fundam os direitos do homem. E por isso que “uma sociedade de homens livres
supõe princípios fundamentais que estão no âmago mesmo de sua existência.
Uma democracia autêntica implica um acordo profundo entre espíritos e von­
tades sobre a base da vida comum; ela está consciente de si mesma e de seus
princípios, e deve ser capaz de defender e de promover sua própria concepção
da vida social e política; ela deve trazer em si um credo humano comum, o credo
da liberdade" (págs. 101-102, sublinhado no texto). Certamente esse credo não
tem nada de religioso, ainda que Maritain mantenha que o fermento evangélico
é uma das garantias mais seguras da substância democrática infundida nos
espíritos e nas vontades de um povo. O que ele chama também de uma “fé
comum” é secular; ela cede todo seu lugar para o pluralismo de nossas
sociedades, mas fornece as bases de um acordo sobre alguns princípios funda­
mentais da vida comum democrática.

775
Por povo não se deve entender alguma realidade mítica, um desses
pseudoconceitos que Maritain racha ao meio, nem o simples agregado de
indivíduos ligados entre si unicamente por seus interesses de troca comercial.
"O erro do liberalismo burguês foi o de conceber a sociedade democrática
como um campo fechado em que todas as concepções das bases da vida
comum, mesmo as mais destruidoras da liberdade e da lei, só encontram a pura
e simples indiferença do corpo político” (pág. 102). O povo é constituído por
pessoas, e essas participam do bem comum que as liga entre elas e as
ultrapassa porque elas esgotam aí suas referências morais e espirituais tanto
quanto suas condições materiais de vida. E por isso que o bem comum
enquanto vida boa de uma porção de pessoas é a meta da sociedade política.
O bem comum exige o reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas
(direitos do homem aos quais O Homem e o Estado consagra o importante
capítulo 4), mas também, como valor principal, a acessão mais alta possível ao
bem do todo, dessas mesmas pessoas à sua vida de pessoa e à sua liberdade
de expansão. Está claro para Maritain que o bem comum das pessoas trans­
cende a sociedade política (ou o único bem político) porque "a ordenação
direta da pessoa humana a Deus transcende todo bem comum criado” (pág.
139). Maritain fala mesmo dentro dessa perspectiva de uma primazia do
espiritual, já que a motivação da destinação última, religiosa, do homem é mais
decisiva do que qualquer outro bem. É preciso no entanto notar que, como
tomista rigoroso, Maritain tem para ele que essa referência a um bem sobrena­
tural não anula de maneira nenhuma a importância do bem comum político;
segundo ele, "mesmo dentro da ordem natural, o bem comum do corpo político
implica uma ordenação intríseca, embora indireta, ao que o ultrapassa” (pág.
139). O caráter indireto dessa ultrapassagem funda o lugar da Igreja não como
potência diretamente política, mas como mensageira de um Evangelho que
anuncia ao homem seu último destino. Esse mesmo caráter indireto funda da
mesma forma a possibilidade dessa “carta democrática" sobre a qual os
cidadãos, por mais diversos que sejam em suas concepções do mundo, podem
entender-se praticamente para organizar o viver-bem comum.

Uma teoria instrumentalista do Estado

A crítica do conceito de soberania, a importância concedida ao poder do


povo de se governar, a insistência concomitante sobre a democracia, a consi­
deração dos componentes naturais e sobrenaturais do bem comum formam
sistema com uma recolocação em causa sem equívoco das teorias absolutistas
do Estado. Pois, com relação à sociedade política, o Estado é só uma parte
dentro do todo, um instrumento a serviço do todo, um órgão como “a cabeça
do corpo político”, de maneira nenhuma a instância superior, consciente,
lúcida, comandando do alto e absoluta (desligada do todo). E Maritain chega
mesmo a confessar que ele não gosta mais dessa “máquina”. Entretanto, o
Estado tem sua importância, já que seu “dever principal é a colocação em vigor
da justiça social” (pág. 19); pois, "é pelo corpo político e pelo povo que ele vigia

776
a ordem pública, faz aplicar as leis e possui o poder; e, sendo uma parte a
serviço do povo, deve ser controlado pelo povo” (pág. 189). Nesse sentido, o
Estado não deve tomar sobre si exercer as funções e cumprir as tarefeis que
dependem do corpo político em sua organização complexa. Ele não encontra
sua verdadeira dignidade nem pela potência, nem pelo prestígio, mas sim no
exercício da justiça.
É preciso acrescentar, além disso, que Maritain vê bem que um dos
problemas difíceis de uma democracia é o da autoridade e de seu fundamento.
Mas ele recusa tanto as teorias da obediência quase incondicional ao soberano
das teorias da soberania quanto "o mito da vontade geral”, que chegam por
caminhos diferentes ao despojamento total do povo da autoridade, depois de
lhe ter atribuído um papel excessivo. “O Estado de Rousseau não passa do
Leviatã de Hobbes coroado pela Vontade Geral no lugar da coroa daqueles que
o vocabulário jacobino chamava de "os reis e os tiranos” (pág. 41). Esse
absolutismo, primeiro monárquico, depois popular, está na origem do totalita­
rismo, na falta de ver que o povo possui ele próprio a autoridade por
participação e que ele a pode delegar a seus representantes sem, de maneira
nenhuma, a abandonar. Maritain afirma também que o conceito de repre­
sentação ou, como ele prefere dizer, tomando emprestado o vocabulário da
teologia, de “vicariância” (suplência) é “absolutamente essencial à filosofia
democrática autêntica. É sobre a noção de representação ou de vicariância, em
virtude da qual o próprio direito a se governar é exercido pelos homens que a
escolha do povo colocou em função, que repousa toda a teoria do poder dentro
da sociedade democrática” (pág. 120). Esse conceito mostra efetivamente que
o próprio povo participa da autoridade que vem de Deus, portanto, que ele não
é mais também a fonte última e não pode nunca ser absolutizado; porém ele
mostra também que pode fazer homens participarem dessa autoridade sem que
esses possam nunca se tomar por autoridade soberana ou fonte do direito em
virtude de sua função. Os homens não devem governar separados do povo, mas
sim “unidos a ele dentro de seu próprio ofício de seus deputados ”. E, se o
responsável “é direito e fiel a sua missão, há razões para crer que, quando o
bem comum do povo está em jogo e quando ele age em comunhão com o povo,
pode receber de alguma maneira, por caminhos tão obscuros ou mesmo
tortuosos quanto se queira, alguma inspiração particular ou ‘graça de Es-
tado'..d’Aquele que é o supremo governante da história humana" (pág. 122).
Por mais sucinta que seja, esta exposição omitiria uma dimensão
essencial à filosofia política de Maritain se não assinalasse a importância da
reflexão sobre "a unificação política do mundo” (Cap. 7). Porque os Estados
modernos são justamente instrumentos e não soberanos absolutos, é possí­
vel, necessário, pensar e imaginar as bases de uma organização política do
mundo. “Uma teoria puramente governamental" só conseguiria conceber
um Estado mundial calcado sobre os Estados particulares a eles superpostos,
“um cérebro sem corpo”. Só uma teoria plenamente política, reconhecendo
os lugares das sociedades políticas das quais os Estados são apenas ins­
trumentos, funda a possibilidade de uma organização mundial. Porém, essa,

777
fazendo fundo aos povos, se apóia sobre a moralidade deles e supõe uma
mudança profunda da moralidade e da sociabilidade deles. Essa transforma­
ção dos costumes em direção ao universal e essa abertura para a comunidade
humana da terra para a vontade comum de viver junto. A tarefa é certamente
aleatória, mas, da mesma maneira que a moralização lenta da existência
profana e da vida política gerou a democracia, também só uma universaliza­
ção progressiva das consciências coloca as bases de uma organização
mundial que nós apenas entrevemos.
Coerente do começo ao fim com um personalismo que dá às referências
morais e espirituais um lugar eminente dentro da democracia, Maritain
preocupa-se pouco em analisar o jogo das instituições. Ele acha que a
democracia pluralista é uma forma política frágil e que é da vontade e da
inteligência dos homens que ela retira sua força, mesmo quando as garantias
institucionais não são, de maneira nenhuma, negligenciáveis. O papel do
filósofo também é essencial não somente para criticar os conceitos errôneos
que engendram tantos crimes, mas também para fortificar o gosto das pessoas
pelo conhecimento exato de sua vocação essencial.

• As Obras Completas (Oeuvres complètes) de Jacques e Raissa Maritain estão em vias de


publicação pelas Éditions Universitaires de Friburg (Suíça) e pelas Éditions Saint-Paul (Paris),
15 volumes. L ’homme et 1’Êtat figura no volume IX (1947-1951); Desclée de Brouwer (Biblio-
thèque européenne) editou igualmente uma reunião de Oeuvres (Obras) em 2 volumes: tomo 1:
1912-1939-, tomo 2: 1960-1963. Apresentação e notas por H. Bars. O homem e o Estado foi
editado em volume separado por PUF (1953), traduzido do inglês por R. e F. Davril. 206 páginas.
Todas as referências remetem a essa edição. Não se pode ter uma idéia da extensão da filosofia
política de Maritain sem: La prímauté du spirituel, 1927; Du rêgime temporel de la liberté,
1933; Letrre sur Vindépendance, 1935; Humanlsme intégral. Problèmes temporels et s-
pirituels d'une nouvelle chrétienté, 1936; Les Drolts de 1’h omme et la loi naturelle, 1943;
Christianlsme et démocratie, 1945; Príncipes d ’une politique humaniste, 1945.

► Henry Bars, Maritain en notre temps, Grasset, 1959; La politique selon Jacques Maritain,
Éditions Ouvrières, 1961; Recherches etDébats, no. 19,1957; Revue thomiste, 1948, t XLVIII,
n.1-2, em particular Charles Journet, D’une philosophie chrétienne de 1’histoire et de la culture,
pág.33-61, e Olivier Lacombe, Philosophie politique, págs. 62-75. Vittorio Possenti, Philosophie
du droit et loi naturelle selon J. Maritain, Revue thomiste, out-dez. 1983, págs. 598-608;
Raymond Aron, Sobre o maquiavelismo. Diálogo com J. Maritain (1982) em R. Aron, Historie
et politique. Commentaire, 8, 28-29, 1985, págs. 511-516; Jean Laloy, L'idée de “nouveile
chrétienneté” chez J. Maritain, Commentaire, 16, 1981-1982, págs. 552-559; Jean Leca, La
théorie maritainienne de lÉtat face aux problèmes contemporains de la démocratie, em Notes
de Documents (Institut intemational Jacques Maritain), 7,1986, págs. 64-87; Philippe Bénéton,
J. Maritain et 1’action française, Revue française de Science politique, 6,1973, págs. 1202-1238.

Paul VALAD1ER.

778
MARX, Karl, 1818-1883
Manifesto comunista, 1848

Ainda se pode ler Marx? Não se aproximar dele na postura do historiador,


mas sim encontrar em seus escritos uma incitação para pensar, entabular um
diálogo com ele, de tal maneira que as questões que ele tirava da experiência
de seu tempo alimentem aquelas das quais a experiência do nosso tempo nos
incumbe? A nossos olhos, a resposta não é duvidosa. 0 fato, pouco contestável,
de que o marxismo no presente está se decompondo não leva, como acreditam
algumas críticas desenvoltas, a obra de Marx a cessar de nos interpelar. A
verdade é somente que suas teses nos importam menos do que o caminho que
ela seguiu para tentar compreender, rompendo com as diversas correntes
tradicionais, o mundo novo que se delineava na Europa do século XIX; seu
esforço para descobrir do outro lado das instituições econômicas e políticas,
do outro lado das representações filosóficas, morais e religiosas, o sentido das
práticas sobre as quais elas se fundavam, para apreender o princípio de sua
gênese, e, ao mesmo tempo, adquirir um conhecimento geral das relações
sociais e do vir-a-ser histórico. Certamente, temos boas razões para julgar que
esse empreendimento se embaraçou dentro de contradições e fez nascer
ilusões que alimentaram mais tarde uma ideologia totalitária. Mas não pode­
ríamos concluir por isso que ela foi inútil nem mesmo que ela só instrui por
seu fracasso. Seria verdade que Marx não pôde fazer melhor do que oscilar
entre o racionalismo e o irracionalismo, entre o voluntarismo e o fatalismo,
entre um extremo subjetivismo e um extremo objetivismo? A tarefa permane­
ceria sendo a mesma de apreciar sua intenção, de saber como tentou se evadir
dessas oposições - tarefa tão legítima quanto a fórmula de sua superação que
outros procuraram depois dele e ainda estamos procurando. Seria verdade que
ele não conseguiu conceber ao mesmo tempo a especificidade do mundo
humano e sua implicação no mundo da natureza ou, então, elaborar uma
distinção entre o real e o imaginário que não os livre um do outro?! Mesmo
assim, ainda seria preciso admitir que seu trabalho de interpretação traz
constantemente o traço desse objetivo. Deveríamos, enfim, denunciar seu
desconhecimento do fato político, concluir que é ilusório reduzi-lo aos efeitos
de relações de classe, eles mesmos determinados por um modo de produção,
e decidir, em conseqüência disso, voltar às grandes fontes da filosofia política
que Marx acreditava esgotadas? Essa própria exigência, ignoraríamos injus­
tamente o que ela deve ao trajeto de sua obra e que não existe interrogação
séria quanto ao político que não se liberte da questão do social.
Mas por que fazer tal divisão entre as teses de Marx e a obra que as
contém? Porque essa obra, como toda obra de pensamento, não se reduz à
parte do que se encontra afirmado nela. Porque se procuraria em vão aí os
sinais de um caminhar sobre uma estrada retilínea, desde o ponto de partida
até uma conclusão. Ela traz os traços dos obstáculos que o pensamento cria
para si próprio em seu próprio exercício, desde que escape à tentação da

779
dedução formal, desde que se dedique à interpretação daquilo que o excede
ou se deixe atrair por aquilo que se furta a suas apreensões. Enquanto o
enunciado das teses, por seu poder de afirmação, só se presta à adesão ou à
condenação do destinatário, a obra se oferece à leitura em razão do debate
íntimo do pensamente ao qual ela dá passagem. É assim que ela interpela ainda
os leitores. Ou, em outras palavras, é pelo fato de Marx não ser marxista (e
sabe-se que ele recusou com irritação essa denominação) que ele permanece
vivo ainda hoje. De sua parte, o marxista conhece a definição do modo de
produção, a de classes sociais, a da ideologia, a das relações entre infra e
superestrutura, a de conexão das formações sociais. Mas, para Marx, es­
crevendo sua obra, a significação desses conceitos não está fixada ainda, ele a
descobre na interrogação e no trabalho da interpretação. De um livro a outro
ou no espaço de um só livro - no mais importante, principalmente, O Capital
- ela se desloca; o argumento não evita se expor a seu desmentido; as
digressões impostas pelo exame de novos fenômenos reintroduzem uma
ambigüidade que se acreditava dissipada... Assim, a noção de modo de produ­
ção é abalada pela análise do despotismo oriental; a imagem de uma história
única regida pelo desenvolvimento das forças produtivas se desfaz, quando
surge a de uma ruptura entre o capitalismo moderno e o conjunto das formas
pré-capitalistas; a idéia de uma transparência enfim advinda das relações
sociais no mundo burguês é colocada em cheque pela descrição do “universo
enfeitiçado" do capitalismo, por aquela do “monstro mecânico” que faz dos
indivíduos seus órgãos dentro da grande indústria ou, ainda, por aquela dos
revolucionários burgueses possuídos por fantasmas que lhes sopram seus
papéis.
A obra de Marx não coincide com ela mesma. Ela dá a seu leitor,
abrindo-se assim para ele, o poder de explorá-la, de objetar, de duvidar, de
voltar a ela própria no momento em que ele está totalmente ocupado em
conhecê-la.
No entanto, esta defesa da obra de Marx não a livra de uma questão mais
precisa: ainda se pode ler o Manifesto?
O ler, não no sentido em que nós o compreendemos, isto é, não
examiná-lo como documento ou tratá-lo como um episódio da história das
idéias (eis exatamente o ponto de vista que seu autor teria recusado), mas sim
experimentar a sedução que todo grande texto ocasiona e, cedendo a ela,
esquecer por um momento a distância existente entre o passado e o presente.
Questão inútil, dir-se-á talvez... A resposta já foi dada, já que o Manifeso —
ainda que ele tenha sido concebido em colaboração com Engels e redigido em
nome dos comunistas - faz eminentemente parte da obra de Marx e é sua peça
mais célebre. Para inúmeros leitores, disseminados no mundo inteiro, ele
contém a grande mensagem do fundador; para milhões de militantes, que
recorreram à ciência de O Capital, ele é de fato a única de suas obras que lhes
é familiar. E ainda mais, não somente Marx jamais o repudiou, como ele o
apresentava no fim de sua vida como a melhor introdução à sua obra. Todavia,
essa resposta não basta. Seria se contradizer, admitir, por um lado, que se pode

780
ler o Manifesto em comparação com outros escritos de Marx, com a condição
de se ficar atento a tudo que dentro deles venha a desmentir suas certezas e,
por outro lado, que, trazido de volta a seus limites, apreendido em si mesmo,
ele perdeu o poder de nos interpelar? Ora, essa é exatamente a nossa opinião.
É verdade que ela nos obriga a voltar a nosso primeiro argumento. É pelo
fato de Marx não ser marxista, notamos, que ele permanece vivo ainda hoje.
Nós o dissemos observando que ele se impediu de sê-lo, deixando crer, assim,
que o marxismo era assunto de seus sucessores. Isso é apenas uma meia-ver-
dade. Uma vez reconhecido que seu pensamento é irredutível àquilo que fez
dele o lênin-marxismo, o stalin-marxismo, o trotski-marxismo e o mao-marxis-
mo, é preciso convir também que existe um marx-marxismo, e que sua
expressão mais pura se encontra no Manifesto. Fechado sobre si mesmo,
enunciando o verdadeiro sobre o verdadeiro, o discurso do Manifesto deixa o
leitor de fora. Monumento é o que ele é e permanece! Mas não é o mausoléu
espiritual de Marx, elevado por sua própria pena, junto do qual só peregrinos
podem vir se recolher?
Fenômeno estranho, decididamente, o da representação que um pensa­
dor faz de seus próprios escritos. Marx comprazeu-se em dizer que tinha
abandonado o manuscrito de A Ideologia Alemã à crítica corrosiva dos ratos.
Os ratos não vieram: o livro continuou a respirar. Do Manifesto, ele esperava,
em compensação, que ele desafiasse o tempo (o tempo pelo menos em que os
homens conheceriam ainda a necessidade de ler). Ora, não estaria justamente
aí a parte do morto? Seu sucesso talvez só se deva ainda ao trabalho dos ratos
que levam entre seus dentes para outros ratos, nos quatro cantos do mundo,
o que se tornou a hóstia do comunismo.
Essa opinião não torna a opor um bom e um mau lado da doutrina. Essa
disposição induz sempre a se insinuar no debate marxista, ainda que ele nos
pareça ter perdido toda sua legitimidade. O que é totalmente diferente, nós
reconhecemos um Marx pensador, sem dissimular que ele sufocava em si
mesmo o pensamento, para ganhar um saber invulnerável, e que, para querer
ocupar tal posição, ele se prestava à aventura que lhe aconteceu: a conjunção
da ciência marxista com um poder ocupado ele próprio em se tornar invulne­
rável. A esse respeito, a posição do Manifesto nos parece notável. Nesse
momento, por um instante, dir-se-ia que Marx renuncia a pensar, se aplica em
não pensar, para só fazer uma coisa: designar as próprias coisas e o curso da
história, que esperam apenas ser denominados. Sem dúvida, o poder da ilusão
é imenso. Porém, uma vez que ela esteja dissipada, percebemos apenas os
artifícios de uma pintura, na qual procurar-se-ia inutilmente outra coisa além
dos sinais de um estilo e de uma época.
Observando já o declínio do marxismo e almejando fazer redescobrir o
pensamento de Marx dissimulado sob a ideologia, Merleau-Ponty escreveu no
prefácio de Signes: “A história do pensamento não pronuncia sumariamente:
isso é verdadeiro, isso é falso. Como toda história, ela tem decisões surdas; ela
neutraliza ou embalsama certas doutrinas, transforma-as em ‘mensagens’ ou
em peças de museu. Há outras que, ao contrário, ela mantém em atividade...

781
porque elas permanecem falantes além dos enunciados, das proposições,
intermediários obrigatórios se se quiser ir mais longe. Essas são as clássicas,
são reconhecidas pelo fato de ninguém as tomar ao pé da letra, e, por isso, os
fatos novos não estão nunca absolutamente fora da competência delas, por
tirarem deles novos ecos, que revelam em si novos realces. Dizemos que o
reexame de Marx seria a meditação de um clássico e que ele não poderia
terminar pelo nihilobstat, nem por sua colocação na lista negra.”
Essas frases, desde que nós as lemos pela primeira vez, trouxeram nossa
convicção. Elas nos parecem oportunas ainda em nosso tempo, afora uma
exceção, todavia: a história transformou Marx em um clássico e, simultanea­
mente, embalsamou o que era, dentro de sua obra, a parte do marxismo,
converteu em peça de museu o Manifesto.

O Manifesto é aberto por um preâmbulo que nos informa sobre seu


caráter e sua função. Lembremos o ponto de partida: “Um espectro assombra
a Europa - o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa
concluíram uma aliança sagrada para encurralar esse espectro.” Trata-se
aparentemente de uma constatação. Marx tira daí duas conclusões: a primeira,
que o comunismo é universalmente reconhecido como potência (basta escutar,
ver o ódio, o medo que ele inspira: sob a capa da lenda, da mentira, o fato é
irrecusável); a segunda, “que já faz muito tempo que os comunistas expõem
abertamente (offen darlegen) em face do mundo inteiro sua maneira de ver,
suas metas e suas tendências...” Marx não enuncia essas conclusões em seu
nome: "Para esse fim, escreve, comunistas pertencentes às mais diversas
nações se reuniram em Londres e traçaram as grandes linhas do manifesto que
aqui está...” O autor se apaga; portanto, os comunistas falam por seu intermé­
dio. O leitor, por seu lado, é indeterminado: é em face do mundo inteiro que
os comunistas expõem o que vêem, o que querem, o que são. O Manifesto se
apresenta como uma simples exposição. Ele o é em um sentido ainda mais
profundo do que as palavras sugerem. Pois essa exposição em face do mundo
é uma exposição do próprio mundo; o movimento daqueles que aparecem pela
primeira vez em plena luz do dia o faz aparecer em sua inteira visibilidade. Os
comunistas, percebe-se logo, não formulam um ponto de vista, metas e
tendências de um lugar particular; face ao mundo inteiro, paradoxalmente, eles
estão sem distância a seu respeito. Se podem ganhar tal posição é porque
encarnam a generalidade do mundo. Apresentando-se diante dele, eles o
representam essencialmente, além daquilo que aparece na imaginação dos
homens que se encontram situados aí de uma maneira histórica e socialmente
determinada. Como a segunda edição do opúsculo indica com exatidão: “As
proposições teóricas dos comunistas não repousam de maneira nenhuma sobre
idéias, sobre princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reforma­
dor do mundo. Elas são só a expressão geral de relações efetivas de uma luta
de classes que existe, de um movimento histórico que acontece sob nossos
olhos.” Exposição é o que o Manifesto quer absolutamente ser. Marx não expõe
a teoria dos comunistas, os comunistas não expõem a si próprios, é o mundo,

782
é a história que se expõem por intermédio de um ou de outros. O Manifesto
apela somente para que se abra os olhos para o que se produz, isto é, o que
acontece e aparece.
A divisão das três primeiras seções parece corresponder aos três momen­
tos da exposição dos comunistas: o ponto de vista, as metas e as tendências.
Mas a exposição do suposto ponto de vista compreende os outros dois, pois,
na verdade, ela só quer ser a pura representação do que se apresenta aqui e
agora e, ao mesmo tempo, torna visível o movimento histórico por inteiro. A
exposição das metas dos comunistas não poderia ser outra coisa senão a das
metas do movimento histórico, e a exposição de suas tendências, que as
diferenciam das outras tendências do socialismo, só poderia ser a da divisão
que a história opera entre aqueles que ela coloca em posição de descobrir sua
própria tendência e aqueles que permanecem tomados pela ilusão.
A visão do que é, isto é, do que se torna carrega tudo dentro de sua
exigência de coincidir com a realidade efetiva do mundo em transformação: ela
apaga a posição particular de Marx, assim como a dos comunistas e, igual­
mente, a do proletariado, já que ele não tem outro destino além do de
representar sua própria aparição histórica, além de agir conforme a meta que
lhe está destinada; enfim,ela chega a abolir a do adversário de classe, cujas
mentiras não dependem do poder que ele teria de conhecer a razão de seus
interesses e de sua luta, mas do fato de que seu modo de inserção na sociedade,
sua condição determinada historicamente, não lhe permite ver-se, encerra-o
irremediavelmente num lugar opaco.
Assim, no âmago de uma passagem da segunda seção, em que se obstina
em pulverizar, pêlo desprezo e pela ironia, as objeções do burguês, Marx
interrompe de repente o que parecia um diálogo: "Mas não trapaceiem conosco
medindo a abolição da propriedade burguesa pela medida de suas idéias
burguesas de liberdade, cultura, direito, etc. Suas próprias idéias são produtos
das relações burguesas de produção e de propriedade, assim como seu direito
não passa da vontade de sua classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é
dado dentro das condições materiais dessa mesma classe. A concepção inte­
ressada que faz com que vocês transformem em leis eternas da natureza e da
razão suas relações de produção e de propriedade - relações históricas que o
curso da produção torna caducas - vocês a partilham com todas as classes
dominantes desaparecidas. O que vocês compreendem por propriedade antiga,
o que compreendem por propriedade feudal, isso não lhes é mais permitido
compreeenderem por sociedade burguesa.” Nenhum ponto de vista para
defender, portanto, para fazer prevalecer contra o do adversário: Marx vê a
realidade que está no fundo do burguês, ele vê o que o burguês não vê, não
porque esse o esconda de si próprio, mas porque ele está privado, por sua
existência de classe, do conhecimento de si. Essa passagem é ainda uma das
raras em que Marx se deixa levar à argumentação e à polêmica. A maneira pela
qual ele renuncia a isso é bem mais notável. Pois essas sugerem a presença de
um interlocutor; ora, o Manifesto, que parece expor a teoria dos comunistas e,
de fato, abre caminho para a exposição da sociedade burguesa, da história, do

783
mundo, não pode, sem risco, seguir o caminho de uma outra palavra, evocar
um sujeito falando, alguém. Só devem contar as classes e suas relações. Daí
esse paradoxo já mencionado que é o fato de que o Manifesto lançado face ao
mundo inteiro não se endereça, a despeito das aparências, a ninguém. O
discurso se desenvolve dentro do elemento puro da generalidade. Ele não
existe para convencer; ele exibe uma verdade que reside nas próprias coisas,
em seu vir-a-ser.

É verdade que Marx dispensa reivindicar, seja para si mesmo, seja para
os comunistas, a direção das forças revolucionárias, dispensa anunciar a
formação de um partido que substituiria os outros partidos e pretenderia o
monopólio do poder político. De fato, ao escutá-lo, tem-se a impressão de que
os comunistas são só destinados a exercer uma espécie de “poder espiritual”,
se é que se pode ousar empregar essa expressão sacrílega, à guisa de alusão a
Saint-Simon e a Comte. Como demonstra a segunda seção: "Os comunistas não
constituem um partido particular em face dos outros partidos operários. Eles
não têm interesse separado do interesse do proletariado inteiro.” Nesse
sentido, julgou-se de maneira justa que a concepção leninista do partido era
absolutamente estranha ao espírito de Marx. Porém, acontece que cintila sobre
o registro do saber uma aventura sem precedentes, da qual se negaria
imprudentemente que ela pudesse ficar sem efeito sobre o registro da ação. O
Manifesto postula uma coincidência entre o real e o racional, cujo traço
procurar-se-ia inutilmente na filosofia de Hegel, por exemplo, o qual não
confunde o que ele chama de o real com o detalhe dos acontecimentos
históricos e não investe um ator social da função de encarnar o universal, de
atualizar o conceito dentro da existência sensível de uma classe. Sem dúvida,
já foi igualmente enfatizado, Marx mantém uma preciosa diferença entre a
teoria e a prática. O assunto dos comunistas é a teoria. O ator só pode ser o
proletariado no qual se imprime o movimento da história. A esse os comunistas
não têm lição para dar. Mas ele não saberia em princípio encontrar na prática
o que quer que seja que se furte à teoria, pois a prática contém a teoria como
sua própria expressão. O que a teoria não pode designar é a figura do futuro,
da sociedade dentro da qual serão suprimidas as antigas relações de domina­
ção e de exploração. Mas ela não reconhece de maneira nenhuma seu limite
em sua recusa de antecipação, já que o que ainda não é representável se
encontra predeterminado no presente. O proletariado não pode parir uma
sociedade que não esteja de acordo com a sua natureza, e essa natureza é de
tal maneira que não contém nenhuma opacidade. Supondo que o proletariado
fracasse, hipótese que não é mesmo mencionada, esse fracasso só teria como
conseqüência uma regressão.
A evidência do comunismo não consente a descrição do que acontecerá.
Mas a descrição do mundo que aparece sob nossos olhos não deixa nenhuma
dúvida sobre o sentido de sua gestação e sobre seu resultado. Assim, a
refutação das objeções burguesas, que ocupa a maior parte da segunda seção,
tem como principal objetivo mostrar que essas, estando totalmente a serviço

784
de uma defesa de interesses particulares, fazem parte de um argumento que
supõe o fatal desenvolvimento do comunismo. A ironia de Marx acompanha a
ironia da história que faz com que cada enunciado burguês se volte contra si
mesmo ou com que a refutação do comunismo produza sua própria refutação.
Os burgueses se indignam com a idéia da supressão da propriedade privada,
Marx lhes responde que se trata da propriedade, fruto do trabalho, do esforço,
do mérito pessoal,"... nós não nos preocupamos em aboli-la, o desenvolvimento
da indústria se encarrega disso e se encarrega disso todos os dias”. Caso se
trate da propriedade burguesa moderna, ele lhes responde que ela não está
ligada a uma posição puramente pessoal, mas a uma posição social. O
capitalista não existe por si mesmo, ele é o agente do capital que tem um
caráter social, e é somente desse caráter social que os comunistas anunciam a
transformação. De maneira geral, seria inútil censurá-los por quererem abolir
a propriedade privada, desde o momento em que ela já está abolida por nove
décimos de seus membros. O tema da abolição da família, o da comunidade de
mulheres ou ainda o da educação provocam escândalo? Mas não só a base da
família burguesa é o capital, o ganho individual, como ele tem como contrapar­
tida a miséria dos proletários e a prostituição pública; portanto o burguês só
vê em sua mulher um instrumento de produção, e o casamento burguês implica
a comunidade das mulheres casadas. Quanto à educação, a ação que a
sociedade atual exerce sobre ela mostra bem que os comunistas não inventam
sua socialização e que se trata para eles de arrancar as crianças da influência
da classe dominante. Ainda lhes é imputado o crime de querer suprimir a
pátria, a nacionalidade. Porém, o capitalismo engendrou uma classe, o prole­
tariado, sem pátria, sem vínculo nacional. Como, então, o comunismo poderia
privá-la daquilo que ela não possui?
Em resumo, os comunistas não inventam nada, eles simplesmente mos­
tram como as conseqüências surgem das premissas. Eles convidam para a
revolução, certo; mas eles dizem o que eles são intimados a dizer, sob o efeito
de uma necessidade interna da linguagem, do pensamento, que reflete a
necessidade da produção social. 0 problema deles não é o de comandar o
proletariado enquanto grupo e, menos ainda, enquanto indivíduos, de reuni-lo,
de alistar-se em suas fileiras, de escolher sua causa. Apesar de ser um
intelectual, Marx ignora inteiramente o que será o drama dos intelectuais,
dilacerados entre o sentimento de pertencimento à burguesia, a consciência de
serem “porcos” e a atração do compromisso. É do próprio interior da teoria
que ele se sabe evidentemente ligado à prática do proletariado, assim como é
pela própria prática que o operário se descobre teórico. A palavra revolucioná­
ria é natural, assim como o é a ação revolucionária; elas são igualmente
tomadas dentro de uma história natural.

História natural? Trata-se exatamente de um processo cuja lei de desenvol­


vimento pode ser conhecida, mas esse conhecimento faz parte do próprio
processo, essa lei explica o motivo do fato de ela se tornar inteligível no momento
histórico atual. “É necessário ir ao fundo das coisas (Bedarf es tiefer Einsicht),

785
pergunta Marx, para compreender que com as condições de vida dos homens,
com suas relações sociais, com sua existência social, também suas repre­
sentações, concepções e noções, para encurtar, suas consciências, mudam? O que
provoca a história das idéias, senão que a produção intelectual se metamorfoseia
com a produção material? As idéias dominantes de uma época foram sempre
apenas as idéias da classe dominante.” Em outros termos, não existe nada que
não seja visível, que seja mais profundo do que o que se manifesta materialmente;
as idéias dos homens são uma película que se produz e se transforma ao mesmo
tempo que o tecido social que ela recobre. O próprio passado não tem necessi­
dade de ser sondado; nada nele é dissimulado para os contemporâneos, já que a
cada época tudo se mantinha junto no mesmo movimento e tudo deslizou junto
pelo próprio fato da existência desse movimento para se ordenar necessaria­
mente segundo uma nova forma. Essa mudança de forma é marcada sobre a
superfície do presente, porque a organização material, social, intelectual presente
traz o traço da dissolução de uma organização precedente, e esta última já
resultava da dissolução de uma organização anterior.
Sem dúvida, aqueles que resistem diante da imagem de uma metamor­
fose da produção intelectual recorrem a constantes do espírito humano. Não
lhes basta admitir que o declínio do mundo antigo e a vinda da sociedade
feudal explica o motivo do surto da religião cristã, que o declínio dessa e a
expansão da burguesia explicam o surto das idéias iluministas ou, então, mais
precisamente, que “as idéias de liberdade de consciência e de liberdade
religiosa exprimiam apenas no domínio da consciência o reino da livre concor­
rência”. Marx, portanto, leva em consideração o argumento deles: “Mas,
dir-se-ia, idéias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc. se modifi­
caram realmente no curso da história. A religião, a moral, a filosofia, a política,
o direito se mantiveram sempre no âmbito dessas mudanças. Há, além disso,
verdades eternas, como a liberdade, a justiça, etc. que são comuns a todos os
regimes sociais. O comunismo abole verdades eternas...” Sua resposta é que
todas as sociedades anteriores, tendo sido compostas em função de uma
oposição de classes, não apresentam “nada de surpreendente... no fato de que
a consciência social de todos os séculos, a despeito de toda multiplicidade, de
toda variedade, se mova dentro de certas formas comuns, formas de cons­
ciência que só se dissolverão plenamente com o desaparecimento completo da
oposição”. A visão da história que não deixa nenhuma sombra de dúvida
quanto a isso se verifica, assim, inscrita no movimento que, depois de ter
deslocado os termos da oposição, engendra as condições de sua resolução.
Quando Marx refutava ironicamente as objeções de seus adversários,
podia-se ainda supor que ele se abstinha por prudência de definir uma
liberdade, uma moral, um direito que não fossem burgueses. Entretanto, a
dúvida não é mais permitida, no momento em que ele recusa explicitamente o
que ele chama de “idéias eternas". Certamente, ele esclarece que a velha
sociedade burguesa será substituída por “uma associação na qual o livre
desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”.
Mas a palavra livre não tem mais sentido, nesse momento, do que, um pouco

786
anteriormente, a palavra indivíduo, quando nos era dito: "Toda a produção será
concentrada nas mãos dos indivíduos associados.” Seria em vão, apoderar-se
dessas declarações a serviço de uma interpretação democrática ou libertária.
Essa se pode fundar sobre outros textos, mas não sobre o Manifesto. Por livre
desenvolvimento de cada um e de todos, Marx entende somente um cres­
cimento sem entrave das forças produtivas. Ele não admite que para ser livre
é preciso querê-lo, é preciso que a liberdade seja outra coisa que não um
estado. E seu conceito de associação —ainda assim comumente divulgada na
literatura dita utopista - não dá forma a indivíduos que se apreenderiam como
tais, isto é, reivindicariam o direito de ser, cada um, singular, diferente dos
outros; a sociedade comunista aparece como uma sociedade natural, da mesma
maneira que a história se apresentava inteiramente como natural. É, em
definitivo, pela mesma razão que as idéias de liberdade e de direito são ditas
terem surgido para garantir e disfarçar a prática da classe dominante e dever
desaparecer num mundo isento de divisão social. Resta o paradoxo: a história
da humanidade, que se desvenda inteiramente diante do olhar dos comunistas,
esclarece sobre uma sociedade sem idéias, uma sociedade que coincide com
ela mesma a ponto de anular toda possibilidade de julgamento em seu âmbito.
Eis, então, finalmente, por que Marx se recusa a imaginar suas feições; sua
existência se basta; ela exclui toda representação de si mesma; não se saberia
dizê-la, ela não se saberia denominar, livre e justa. Ora, esse paradoxo denuncia
a fantasmagoria do Manifesto, pois como Marx se dá a liberdade de conceber
a humanidade como uma, a mesma no curso de suas metamorfoses, em virtude
de que direito ele fala de opressores e de oprimidos, de uma luta destes últimos
por sua emancipação, se a liberdade e o direito não são reconhecidos pela obra
dentro da História?

Por que o naturalismo de Marx engana, no entanto? Porque ele se


dissimula parcialmente, inserindo-se em dramática composição. 0 Manifesto,
sabe-se, não começa por descrever o que bons olhos deveriam distinguir em
primeiro lugar, como se estudará mais tarde: o movimento da produção material
e o cortejo de transformações sociais e intelectuais que o acompanha. A primeira
seção é aberta pelo desfile das classes que se confrontaram sucessivamente, uma
a uma: “A História de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de
classes. Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, barões e servos, patrões
de oficina e companheiros (de ofício), em resumo, opressores e oprimidos
estiveram em oposição constante, conduziram uma luta ininterrupta, ora es­
condida, ora aberta, luta que cada vez terminou por meio de uma transformação
revolucionária da sociedade inteira ou com a ruína comum das classes em
conflito.” Que esse quadro foi pedido emprestado aos saint-simonianos por Marx,
de um lado, e que ele é, sob muitos aspectos, inexato, outros já o disseram antes
de nós (o erro mais significativo sendo o de apresentar os primeiros burgueses
como descendentes dos servos), não entraremos, portanto, em detalhes1 O fato
notável é que a unidade da humanidade, a continuidade da História se encontram
logo estabelecidas no espetáculo da guerra que prossegue desde os tempos mais

787
antigos até nossos dias. Os protagonistas mudam, mas a guerra conserva o
mesmo caráter. Melhor, quando os oprimidos não saem vencedores de um
conflito e não instauram uma nova ordem, quando os adversários não podem
fazer melhor do que se extenuarem uns aos outros, a guerra requer novos
combatentes. Assim, a guerra de classes sempre recomeçada é uma só com
múltiplos episódios, uma espécie de guerra civil no sentido de que ele tem como
teatro único a cidade dos homens. O sentido do drama se revela na época atual,
ao mesmo tempo que se deixa entrever, pela primeira vez, o sentido de seu
desenlace. O presente se verifica efetivamente no prolongamento do passado: a
sociedade burguesa testemunha a repetição do conflito entre opressores e
oprimidos, já que ela “apenas substitui as antigas por novas classes, por novas
condições de opressão e novas formas de luta”. E, se estamos em condições de
afirmar isso, é porque o que se encontrava escondido tornou-se plenamente
visível, porque daqui para frente tudo se ordena segundo uma direção única e
em função de uma única oposição, tudo revela um só espaço e um só tempo.
Enquanto antigamente as sociedades permaneciam heterogêneas, e a linha de
corte entre a classe dominante e a classe dominada estava ainda embaralhada
sob o labirinto dos vínculos de dependência, a sociedade burguesa “simplificou
as oposições de classe”. Ela “se divide cada vez mais em dois grandes campos
hostis”. Daí em diante, o duelo acontece à frente da cena (e não mais por trás).
Anteriormente, a lentidão das transformações sociais não permitia compreender
seu encadeamento; no presente, a História se precipita, a mudança acontece sob
nossos olhos. Ela se operava dentro de quadros limitados, e agora é o mundo
inteiro que se encontra submetido a seu ritmo acelerado e tomado pela luta de
classes. Enfim, a burguesia, se bem que seja apenas um substituto das antigas
classes dominantes, delas difere radicalmente por seu comportamento. Essas,
uma vez estabelecidas, tinham como meta apenas sua conservação; ela é levada
pela febre da destruição e da inovação. Trata-se realmente de uma classe que
sucede a outras classes dentro da História, mas a história se imprimiu nela, ela
fez do vir-a-ser o princípio de sua existência. Ela é sim o produto de uma
revolução, que foi apenas o último elo de uma longa cadeia de revoluções, mas,
essa revolução, ela a deixou por inteiro atrás dela; o papel que ela desempenha
é, observa Marx, “um papel no mais alto ponto revolucionário”. Nenhuma
tradição lhe resiste. Os vínculos feudais que uniam o homem a seus superiores
naturais, ela os quebrou. Ela só conhece “o interesse puro e simples”. “Ela
afogou rias águas geladas do cálculo egoísta os estremecimentos sagrados da
exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia sentimental dos
pequenos burgueses...” Sua marcha é uma conquista sem limites. Sob seu efeito,
os homens perdem sua ligação com o solo, com a nação, suas relações tornam-se
universais, a produção material, assim como a produção intelectual, se encontra
reduzida a um mesmo denominador. Os povos mais bárbaros são levados por
seu turbilhão. “Em poucas palavras, ela cria um mundo à sua imagem.”
É, desse modo, um verdadeiro retrato que Marx pinta da burguesia. Esse
conquistador moderno destrói tudo por onde passa, ele não deixa nada subsistir
do passado, mas, simultaneamente, libera no homem um poder formidável de

788
criação que o habitava e que ele ignorava. “A burguesia foi, assim, a primeira a
mostrar aquilo de que é capaz a atividade dos homens. Ela realizou maravilhas
totalmente diferentes das pirâmides do Egito, dos aquedutos romanos e das
catedrais góticas, ela realizou expedições totalmente diferentes das grandes
invasões e das cruzadas.” Ou, diz ainda Mane “Em sua dominação de classe, a
burguesia criou forças de produção mais sólidas e mais colossais do que todas
as gerações passadas juntas.” “Que século passado, pergunta ele, teria suspeitado
de que tais forças de produção dormitavam no seio do trabalho social?”
Submetida a tal conquistador, a humanidade fez sua aprendizagem: a do
desencantamento. A vela da credulidade se dilacera. O social, como tal, se deixa
descobrir em sua plasticidade inteira, para além da aparente rigidez das
instituições que determinam o lugar e a função de cada um; o histórico, como
tal, se deixa descobrir no movimento incessante de consumação do passado.
“Toda hierarquia e toda permanência se volatizam, tudo o que é sagrado é
profanado, e os homens são, enfim, forçados a considerar friamente sua
posição na vida, suas relações mútuas.” Esse desencantamento se faz acompa­
nhar da prova inevitável da realidade. Ora, ver a realidade não é aceitar a
ordem estabelecida, é se desligar da ilusão de que a burguesia possa manter
seu próprio domínio dentro do trabalho criação/destruição que ela opera, de
que, no momento em que toda hierarquia se desfaz, ela possa continuar a se
enroscar dentro de suas fronteiras de classe e excluir do processo de socializa­
ção a massa dos explorados.
É um romance de aprendizagem que Marx esboça, a partir da descrição da
sociedade burguesa. Porém muito estranho, pois, para que o herói compreenda
a lição, é preciso que seja de tal natureza que nada do passado o atraísse, que
nada no presente lhe dê a ilusão de existir, e que sua temporalidade e sua
sociabilidade sejam pulverizadas. Essa é, na verdade, a figura quando muito
representável do proletariado. É porque ele existe, porque ele cai sempre cada
vez mais abaixo da condição em que permanecia nas sociedades anteriores, a do
explorado (e essa queda acompanha a de todas as classes intermediárias que
caem de suas fileiras), é porque ele se encontra sem vínculos familiares, nacional,
religioso, que o proletariado pode encontrar, dentro da única exigência da luta
contra a ameaça de morte, o caminho da revolução e do comunismo. Pouco
importa para nossa proposta a narração de sua transformação progressiva em
classe combatente, consciente de si mesma, política. Observamos somente que,
de maneira diferente de O Capital, o Manifesto não finda a potência do
proletariado sobre o desenvolvimento da sociedade burguesa, sobre a função que
ele exerce dentro da grande indústria. O aniquilamento de sua existência social
é a única condição para sua revolta, e essa revolta basta para um revolução total:
"O proletariado, camada mais baixa da sociedade atual, não se pode pôr de pé,
se reeguer, sem fazer voar aos pedaços toda a superestrutura das camadas que
constituem a sociedade oficial.”

O naturalismo de Marx é meio dissimulado, notamos, em dramática


composição. Mas não poderíamos dizer, do mesmo modo, que o drama, sua

789
intriga e seus heróis só tomam consistência porque, no mesmo momento, a
descrição das relações de produção surgindo do surto natural das forças
produtivas fala à nossa imaginação? Assim, em uma mesma passagem, Marx
mostra a sociedade burguesa fazendo “jorrarem como por encanto meios de
produção e de troca... prodigiosos” - ele a compara, então, com um feiticeiro
que não é mais capaz de dominar as potências infernais que evocou - , depois,
sem transição, retoma sua linguagem estritamente determinista, para fazer do
choque das forças produtivas contra as relações de produção a condição para
a existência e a supremacia da burguesia. De um modo geral, um espetáculo
dubla o outro, e é por meio do artifício do paralelismo entre um e outro que
ganha crédito a ilusão de uma história totalmente visível. Mas é preciso muita
credulidade para conservar essa ilusão, pois cada espetáculo tem sua ordem
própria que desmente a verdade da outra; por exemplo, se acontece em um
que a burguesia se transforme em mágico, no outro, ela aparece como um
“agente fraco e sem resistência” dos progressos da indústria.

Finalmente, não se poderia dar razão à atração durável do Manifesto


sobre um público tão grande, se não se levar em conta a eloqüência do autor
—ele próprio habilmente em recuo em seu discurso e seu quadro. Ele consegue
este pequeno prodígio: a história parece caber por inteiro sob um só olhar, a
verdade é ouvida como uma só frase em que se misturam as palavras de
Filosofia, economia, política e moral. Prodígio da divulgação do saber, ao qual
se liga a arte particular de emocionar. Não que Marx procure enternecer o
mundo quanto à miséria dos proletários. Disso, ele só fala de passagem e,
dentro da última seção, ele censura os utopistas por terem como primeira
preocupação “defender a classe que sofre mais”. É o coração do espírito que
ele quer fazer bater ao som das batidas dos tambores do conhecimento. A
sucessão das classes combatentes, a das etapas do capitalismo, desde a
descoberta da América até o aparecimento da grande indústria, a dos modos
de divisão do trabalho, a dos assaltos das forças produtivas contra as relações
de propriedade (estas últimas “paralisavam a produção em vez de fazê-la
progredir. Tranformaram-se em entraves. Era preciso transpô-las. Foram trans­
postas”) ou, então, a sucessão das formas de organização do proletariado (“a
união que levou séculos para os burgueses da Idade Média conseguirem com
os caminhos vicinais, os proletários a realizaram em alguns anos, graças à
estrada de ferro”), tudo é dito segundo um ritmo que evoca ora o desfile
militar, ora o curso de um rio, ora o ipexorável movimento da máquina. Ao
testemunho estupefacto, ele não deixa outra escolha senão seguir ou fazer uma
covarde retirada em direção às ruínas do passado... Mesmo essa retirada foi
prevista por Marx. A seção consagrada à “literatura socialista e comunista”
impede a esse testemunho toda nostalgia. O Manifesto procede, na verdade, a
uma rigorosa purificação dos pretendentes a toda teoria revolucionária marca­
da de sentimentalismo... ele os escalona, destinando, a cada um, um grau de
imaturidade, de ilusão ou de cumplicidade com as classes decadentes, depois
ele tira a escala no vértice da qual se teria podido acreditar que ele quis se

790
empoleirar, pois a palavra presente, o olhar presente só poderiam surgir do
próprio espetáculo, do próprio discurso da História2.

• Le Manifeste communiste, tradução de Laura Lafarge, revisto por Engels, introdução de


Bracke (A.-M. Desrousseaux), Paris, Ed. de la Liberté, 1945.

► Le Manifeste communiste de Karl Marx et Frédérik Engels, introdução histórica e comen­


tário de Charles Andler, Paris, Rieder, 1925; Le Manifeste communiste de Karl Marx et
Frédérik Engels. Comment se réalisera le socialisme?, Cahiers Spartacus, A, n2 24, 1948; Le
Manifeste communiste de Marx et Engels. Histoíre et bíblíographie, 1848-1918, Milão, Feitri-
nelli, 1963; Le Manifeste du Parti communiste, apresentado e traduzido por E. Bottigelli,
seguido dos prefácios dos autores (ed. bilíngüe), Paris, Aubier-Montaigne, 1971; Le Manifeste
communiste de Marx et Engels, apresentado e comentado por Fr. Châtelet, Paris, Bordas, 1981.

C l a u d e LEFORT.

NOTAS
1. Remeter-se-á sempre com proveito à introdução e aos comentários de Charles Andler
em sua edição do Manifesto. Petite Bibliothèque Socialiste, 1925.
2. Charles Andler, como já mencionamos, explorou com minúcia exemplar a dívida de
Marx com relação a seus antepassados.

MAURRAS, Charles, 1868-1952


Kiel e Tanger, 1910

Entre todos os livros que compõem a obra abundante e diversa de


Charles Maurras, escolhi, para ter acesso à inteligência de seu pensamento e
apreender o segredo da influência que ele exerceu em sua época, aquele que
se intitula bastante curiosamente Kiel e Tanger, acompanha esses dois nomes
de cidades dos milênios 1895-1905 e traz o subtítulo “A República Francesa
diante da Europa”. Não é um dos mais conhecidos nem o que propõe a visão
mais completa do corpo de doutrina que se chama maurrasismo, mas não só
obteve em sua época a estima de bons espíritos que não eram inteiramente
dedicados à idéia monárquica como também sua influência se prolongou além
das circunstâncias que o inspiraram; ele conserva ainda hoje fervorosos
admiradores. Li recentemente em um pequeno jornal de direita que “esse
admirável tratado não tinha perdido nada de sua verdade” e Pierre Boutang o
qualifica de “conhecimento adquirido para sempre”. Sobretudo eu o tenho

791
como particularmente representativo dentro de sua gênese, assim como dentro
de sua condução do método, que Maurras pratica com relação à história
contemporânea: talvez em nenhum outro lugar se veja tão bem a maneira pela
qual se estabelece a articulação entre análise de uma situação política conjun­
tural e sistema de pensamento. A obra mantém, com efeito, um vínculo estreito
com a história de seu tempo que explicita o título e que aparece dentro de sua
própria construção.
Ele próprio tem uma história que reflete as vicissitudes de nossa política
estrangeira e que se tornou, por sua vez, um dos elementos da demonstração
maurrasiana. Essa história se desenrola em três tempos. Na origem de uma
série de artigos escritos no dia-a-dia, entre junho e julho de 1905, para La
Gazette de France, da qual Maurras era há muito tempo colaborador (ela o
enviara aos Jogos Olímpicos de Atenas, em 1896, onde ele teve a iluminação
da virtude da instituição monárquica) e para LAction française —que ainda
não era quotidiana - , onde ele comentava as peripécias da crise que havia
aberto o desembarque de Guilherme II em Tanger e que foi resolvida pela
demissão do Ministro Delcassé, sacrificado pelo gabinete Rouvier às exigências
da Alemanha e ao desejo de paz que Maurras designa como "uma humilhação
sem precedentes”.
Ele esperou cinco anos antes de ceder ao desejo de numerosos leitores
de vê-lo recolher esses artigos em um volume: explica essa demora por seu
desejo de não importunar o governo por tanto tempo, tempo em que conser­
vara a esperança de vê-lo tirar a lição dos acontecimentos, e também por um
escrúpulo de concluir talvez prematuramente pela impossibilidade da Repúbli­
ca de se reformar. O agravamento da situação tendo convencido-o de que era
um dever patriótico dar maior eco a suas advertências, publicou essas reflexões
em julho de 1910.
Terceira e última etapa: Maurras reedita a obra, em agosto de 1913,
enriquecida por um copioso prefácio de mais de cem páginas que constitui,
sozinho, um pequeno tratado do qual ele encontra a matéria nos acontecimen­
tos que se atropelam desde 1910, em particular a nova crise marroquina que
culminou com o envio pela Alemanha da canhoneira Panther para porto de
Agadir. Os fatos não trouxeram um acréscimo de provas em apoio à tese que
inspirara os artigos de 1905? Essa segunda edição será objeto de cinco tiragens
sucessivas entre 1913 e 1921. A vida da obra se estende, assim, por uns quinze
anos e dialoga com a atualidade desse período que tem enorme importância
histórica.
Do ponto de vista da política estrangeira da França ou, para falar como
o autor, da República francesa —o que a seus olhos não é absolutamente a
mesma coisa —, Maurras acredita discernir, nos dez últimos anos, três políticas
sucessivas, concebidas e conduzidas por três frações diferentes do partido
republicano. A primeira foi entre 1894 e 1898, pelos republicanos conserva­
dores de Méline e Dupuy: Gabriel Hanotaux foi seu arquiteto. Pela primeira
vez, desde a instauração do regime republicano, havia um grande projeto de
política estrangeira: sob a pressão da Rússia, com a qual a França acabava de

792
estabelecer uma aliança, essa se reaproxima da Alemanha: esse sistema de
harmonia continental implicava a renúncia à Alsácia Lorena e o abandono da
revanche que era, até então, o pensamento constante da nação inteira. O
encontro de 18 de junho de 1895, no grande porto alemão de Kiel, na entrada
do canal escavado com o produto da indenização de guerra extorquida da
França pela Alemanha, da esquadra francesa com a frota do Reich e com navios
russos, foi o símbolo dessa nova política: daí um dos elementos do título do
livro. Esse sistema tinha como contrapartida a liberdade reconhecida pelos
novos parceiros da França para ela se empenhar em empreendimentos colo­
niais: essa orientação comportava um risco de conflito com a Grã-Bretanha que
desejara que a França se tivesse preparado para tanto, reforçando sua marinha;
por falta de se ter dedicado a isso, o governo foi forçado a recuar, e sua
capitulação em Fachoda soou como o dobre (toque dos sinos em finados ou
em funerais) do sistema Hanotaux.
A república radical, que se coloca a favor do caso Dreyfus, opera uma
completa reviravolta de orientação. Ela esquenta, por sua vez, um grande projeto,
do qual Delcassé é o artesão. Contra a Alemanha, ela se reaproxima da Grã-Breta­
nha: Maurras recusa a Delcassé o mérito dessa política, cuja iniciativa seria
remetida a Eduardo VII. A França fica sob a tutela de Londres. A harmonia
continental só podia ser viável apoiando-se sobre uma marinha poderosa: a
Entente cordiale, que fazia da França o instrumento da diplomacia britânica
contra o poderio alemão, exigia o reforço da armada francesa. Em vez disso, o
dreyfusismo e o sectarismo dos radicais aplicavam-se em desorganizá-la e em
desconsiderá-la diante da opinião pública. Resultado dessa bela política: Tanger,
o segundo elemento do título. Em 1905, colocado contra a parede, mal suportado
pela Inglaterra, o governo francês é forçado a ceder às exigências alemãs e a se
separar do ministro que desagradava a Berlim: “fato único dentro da história”.
A história não pára aí: os republicanos, por não terem percebido as
conseqüências desses dois fracassos, expõem a França a uma segunda humi­
lhação em 1911: em seguida ao golpe de Agadir, ela deve comprar sua
liberdade de ação no Marrocos pela cessão, em pleno período de paz, à
Alemanha, de um território na África tão grande quanto a metade da França,
e o patriotismo de Maurras, originariamente indiferente às aquisições de
além-mar, se indigna com essa nova capitulação. Nos meses que se seguem à
assinatura do tratado, produz-se um sobressalto: a "reação poincarista”. Os
republicanos pedem emprestados a L'Action française alguns de seus objeti­
vos, mas, na falta de um ataque à raiz do mal, isto é, de uma reforma profunda
e total, a República permanece, dessa maneira, impotente: entre 1910 e 1913
são reproduzidos todos os males que haviam afligido nossa política estrangeira
entre 1895 e 1905. Assim, a República fez em dezoito anos três experiências
que, igualmente, terminaram em desastres.
Tal sucessão de derrotas não pode ser simples efeito do acaso. Também
não foram sanção das fraquezas do país: a nação não perdeu o merecimento,
nosso povo não perdeu nada das qualidades da raça. Existe uma causa para
tantos fracassos, e a razão deve ser procurada em outros motivos.

793
A experiência impõe a questão: a República será incapaz de ter uma política
estrangeira? Essa é a única interrogação à qual Maurras pretende responder, e
isso atesta a primazia que ele confere à conduta da política exterior: é a missão
principal de todo governo. A grandeza, a independência e a segurança nacionais
são imperativos absolutos aos quais todo o resto deve estar subordinado, até
mesmo a forma do regime: trata-se de definir as instituições mais capazes de
atingir esses objetivos. O autor se defende do fato de ter partido de uma tese da
qual ele teria em seguida procurado a confirmação dentro da história; o que ele
diz é a conclusão de uma pesquisa sem a priori. Sua técnica foi experimental.
Essa afirmação é um ponto importante dentro da exposição de seu pensamento.
Maurras sempre se defendeu de ser um espírito sistemático. “Nós não fazemos
nem ontologia, nem mitologia política.” Seu livro nada mais é do que “a história
seguida segundo o fio reto dos acontecimentos sem idéia pré-concebida”. Mas há
uma natureza das coisas. Os atributos da natureza humana não variam de modo
algum ao bel-prazer das idéias. “As grandes leis materiais e morais que existem
desde os alicerces da natureza humana não puderam ser mudadas em virtude de
1789 ou de 1848.” Existem leis não escritas que regem a vida das sociedades.
Todo o resto é utopia.
A experiência impõe, como uma evidência, que a República não pode ter
política estrangeira por motivos que não se atêm nem aos homens, nem às
circunstâncias, mas que procedem direta e inevitavelmente da natureza do
regime. A República é a única culpada, única responsável por tantos fracassos.
Como prova a experiência das outras Repúblicas, para as quais o autor
apaixonado, porém pouco atento à diferença das situações e das sociedades e
às referências históricas, apela, buscando socorro em seus exemplos: República
de Atenas, que não escutou os avisos de Demóstenes, ou República polonesa,
que conduziu à destruição do país.
A República é na verdade a irresponsabilidade: não há nem governo, nem
Estado. O que se chama República é a “carência dos poderes”. O regime das
assembléias pretendidas soberanas é o reinado da irresponsabilidade; pela
diluição da decisão partilhada entre tantos homens nenhum assume a res­
ponsabilidade dos erros. É também o regime do esquecimento: a República não
tem memória. Ora, a política estrangeira se desenvolve dentro da duração,
exige a continuidade e não pode ficar sem memória: não há nenhum domínio
em que a ausência de memória seja tão prejudicial ao interesse nacional. Um
governo que depende da opinião pública está sujeito a suas marés de humor,
está inteiramente consagrado à instabilidade e é forçado a se sacrificar à
demagogia; não há ninguém para representar e defender o interesse superior
do país contra os interesses particulares que cada um está tentado a favorecer
para ter acesso ao poder ou para nele se manter. “A política da República é,
portanto, uma média entre a traição e a salvação pública: está aí sua verdadeira
proporção.” A idéia republicana é, desse modo, contrária à idéia francesa. A
salvação pública exige, portanto, que se acabe com a República.
A inspiração do regime não é menos perniciosa do que a forma de suas
instituições; acima do regime, Maurras coloca o processo das idéias democrá-

794
ticas, estéreis e malfazejas. O erro da democracia é instaurar uma organização
mecânica que vai contra as leis que regem a vida dos seres organizados e das
sociedades. E, no entanto, Maurras se defende de esposar os postulados do
organicismo social. É preciso reagir contra vinte anos de revolução e de erros.
O pensamento de Maurras é, na verdade, contra-revolucionário. Ele faz suas
as palavras que seu mestre Anatole France empresta ao Abade Lantaigne e que
retornam como um estribilho: “A democracia é o mal.” Maurras não tem, para
detestar a democracia, exatamente as mesmas razões que o personagem de
L ’Orme du mail, mas ele partilha de sua condenação a ela.
Portanto, nada que a República empreenda pode ter sucesso. Tudo gira,
ao contrário, em favor da monarquia, mesmo seus erros. A República comete
erros, a monarquia tem infelicidades. Assim, erros do reinado de Luís XV
pareciam leves a Maurras, comparados com os erros da República: “As
infelicidades de então diferiam dos erros de hoje em dia quanto ao fato de que
nossas faltas de antigamente, por mais numerosas que tenham sido, mostram
em seu conjunto muito menos imprevidência e despropósito.” Assim o quer a
petição de princípio.
Da inegável superioridade da monarquia sobre a República, Maurras
encontra ainda outras provas para além das fronteiras (francesas): se a
Alemanha obtém sucesso em tudo, é porque ela vive sob o regime da
monarquia; e de onde vem a força da Grã-Bretanha? "A aristocracia e a
monarquia são suas duas geradoras.” Desse modo, a experiência manifesta
simultaneamente a nocividade da democracia e as virtudes da monarquia.
Sobre esse eixo maior se enxertam temas subsidiários, mas que não
deixam de ter relação com a idéia-mestra de que a República é, por natureza,
incapaz conduzir uma política exterior independente. Há o papel do es­
trangeiro: a política exterior consiste em frustrar seus ardis, a República é
incapaz disso. A ação do estrangeiro é, ao mesmo tempo, as intrigas das
grandes potências e a presença, sobre o território nacional, de indivíduos que
não são franceses e se fazem instrumentos de nossos adversários. Maurras
adere sem o menor espírito crítico às teses que atribuem nossas dificuldades
internas à ação do exterior: ele não duvida absolutamente de que todas as
nossas revoluções tenham sido suscitadas de fora para enfraquecer a França e
dirigidas contra aqueles de nossos governos cuja ação atrapalhava as ambições
dos outros. Foi o ouro inglês que financiou a Revolução de 1789. A Revolução
de 1830 contra a Restauração foi desencadeada pela Inglaterra, inquieta com
a conquista da Algéria, e, se Luís Felipe foi derrubado em 1848, não procurem
outra causa além do esfriamento da Entente Cordiale. Foi também a ação do
exterior que montou o caso Dreyfus com a única finalidade de dividir os
franceses, de enfraquecer nossas forças armadas e de nos desviar do pensamen­
to da revanche; Maurras acredita ainda adivinhar a mão estrangeira nas
intrigas que precederam a eleição presidencial de 1913.
A influência do exterior ainda é exercida pelos estrangeiros que vivem
sobre nosso solo e que a República acolhe de forma excessivamente liberal.
Maurras considera estrangeiro quem quer que não seja de origem francesa há

795
várias gerações: dessa maneira, a seus olhos, nosso embaixador em São
Petersburgo, Paleólogo, não passa de um meteco (pejorativo, estrangeiro
domiciliado na França). Entre todos os estrangeiros o mais perigoso por ser
incapaz de ser assimilado é o Judeu, e Maurras denuncia “o descaramento” do
povo judeu. Evoca a presença em Paris de uma guarnição de vários milhares
de judeus russos, galícios e romenos, dos quais ele não duvida que sejam
também revolucionários.
Se ele só tem desconfiança dos empreendimentos coloniais, é porque
ele os acredita encorajados pelo estrangeiro, Birmarck no começo, Eduardo
VII a seguir. Nessa obra escrita em 1905 persiste o preconceito tenaz que a
direita nutria contra as expedições de além-mar e que havia feito Jules Ferry
cair vinte anos atrás. Empenhando-se nessas aventuras, a França se coloca
à mercê das potências vizinhas. Para o autor não há nenhum traço de
orgulho patriótico no pensamento da expansão colonial. Uma outra suspeita
inspira sua desconfiança: a convicção de que a maioria desses empreendi­
mentos é motivada por interesses financeiros que nada têm a ver com o
interesse nacional. A crítica contra-revolucionária se une sobre esse ponto
às teses socialistas que denunciam o imperialismo. Um mesmo anticapitalis-
mo inspira seus anticolonialismos que conduzem a superestimar a influência
dos poderes do dinheiro. Essa herança da direita legitimista, ardente ao
combater a direita liberal e ao denunciar seu compromisso com as finanças,
será reencontrada na crítica das Responsabilités des dynasties bourgeoises
(Responsabilidades das dinastias burguesas) na pena do historiador Emma-
nuel Beau de Loménie. O mesmo preconceito contra o dinheiro dita o
julgamento sobre a democracia americana: aí reina uma oligarquia plutocrá-
tica, e Maurras vê no Presidente Theodor Roosevelt o homem dos trustes,
só com o inconveniente de valorizar em sua segunda edição Woodrow
Wilson, cujas declarações dão razão às teses monárquicas pela ênfase
colocada sobre o caráter pessoal da função presidencial.
Uns oitenta anos depois de sua primeira publicação, como o leitor de hoje
em dia aprecia a obra? Se ele puder compreender algumas das razões que
causaram seu sucesso entre contemporâneos e se puder ser, ele próprio,
sensível à sedução do talento do escritor, da coerência da tese e da habilidade
dialética, como a análise resistiria à experiência? Prova particularmente peri­
gosa para um livro que se apóia sobre uma análise dos fatos. Mas o que poderia
ser mais legítimo do que submetê-lo à prova da história, já que seu autor apela
de antemão para o julgamento da posteridade?
Nada envelheceu tanto, com o tempo e o apaziguamento das paixões, do
que a violência ad hominem e a injustiça dos questionamentos pessoais. A
consciência, tanto quanto a razão, se ergue contra certas alegações: o que
restou hoje em dia das fábulas daquele tempo sobre o sindicato judeu, assim
como do papel que lhe era atribuído, sem um mínimo de provas existentes, na
intervenção estrangeira nas dissenções internas? Essa mixórdia de acusações
polêmicas, de suspeitas, de insinuações prejudica o livro e enfraquece mais
ainda afirmações sérias que mereciam ser examinadas com cuidado.

796
A conjectura supre às vezes a falta de informação e a imaginação do
jornalista, quando não a fantasia do doutrinário, preenche as lacunas. Como
poderia agir de maneira diferente dentro da ignorância em que o oponente é
a intenção dos governantes? Maurras tem a boa vontade de convir: “Para que
se esconder? Na medida muito estreita em que um simples escritor, que não
está preocupado em usurpar, pode dar sua opinião sobre um assunto de
Estado, do qual ele não tem em mãos as peças.” Por que, então, não deixar em
boa lógica a dúvida substituir as afirmações categóricas? Mas está escrito que
a dúvida não deve nunca ser útil à República. Quarenta anos mais tarde, seu
comportamento será inverso: a ignorância de suas intenções profundas em que
o Marechal Pétain manterá os franceses será para Maurras uma razão para
confiar nele. Comportamento contraditório? Não, é a última ilustração da
antítese fundamental entre República e Monarquia.
A ignorância não é menor sobre o estrangeiro. O autor o compartilha com
a maioria de seus compatriotas, é verdade. Os progressos do conhecimento do
governo comparado trazem cruelmente à luz as idéias errôneas que Maurras
tem a respeito das instituições britânicas ou alemãs: ele imagina que Eduardo
VII conduz sozinho, como mestre absoluto, a política externa da Grã-Bretanha.
Maurras se deixa enganar pelas denominações: como se bastasse que um
regime se intitule monarquia para que o monarca seja o soberano verdadeiro.
Ele sucumbe tanto a essa tentação nominalista de que a tese da superioridade
existencial da monarquia, a despeito de suas declarações sobre o empirismo de
sua técnica, prevalece muitas vezes sobre a análise objetiva das realidades e o
exame de prática. Porém, mesmo que a direção da política externa pelo
soberano seja necessariamente um bem para um país, a catástrofe em que
Guilherme II precipitará a Alemanha é própria para inspirar a dúvida. Mas isso
já seria empreender o exame da tese existente no fundo e sua confrontação
com a história.
O destino do livro não parou em 1913. A seqüência dos acontecimentos
lhe assegurou uma sobrevivência. Para muitos o desencadeamento da guerra
em 1914 apareceu como uma confirmação da justeza das visões de Maurras: a
predição famosa, que figura no prefácio da segunda edição e só precede,
portanto, o começo do conflito em um ano apenas, e que diz que a manutenção
das instituições teria por conseqüência “pelo menos, em termos concretos,
500.000 jovens franceses deitados, frios e ensangüentados, sobre sua terra mal
defendida”, fez muito para que se acreditasse em uma reputação de presciência
infalível e para impor a convicção de que suas idéias eram justas. Que,
desmentindo esses funestos prognósticos, a República tenha podido conduzir
o país à vitória, não perturbará a certeza de Maurras: ele a explicará pelo
reatamento temporário do regime a uma forma de monarquia pessoal com a
ditadura de Clemenceau e pelo apoio da LAction française que conteve os
fermentos de divisão. Assim, não foi a República quem ganhou a guerra, foi a
França e apesar da República. Para dizer a verdade, a análise das razões que
tornam efetivamente difícil para uma democracia parlamentar conceber e
prosseguir com a continuidade necessária uma política estrangeira, inspirada

797
unicamente pelo interesse nacional, encontraria, em mais alto grau, sua
aplicação nos anos que precederam a Segunda Guerra: sobre numerosos
pontos, a convergência é surpreendente entre o raciocínio de Kiel e Tanger e
a descrição que Duroselle faz em La Décadence (A decadência): o paralelismo
se estende até a semelhança entre a reação que se cristalizou sobre o nome de
Poincaré em 1913 e o movimento de opinião que se delineia em torno de
Daladier em 1938. Mas, então - e como esquivar-se da questão? —, como se
explica a diferença dos comportamentos de Maurras após vinte e cinco anos
de intervalo? Por que o publicista, que, em 1905 ou 1913, denunciara com
lucidez o perigo que fazia correr à França a vontade hegemônica da Alemanha
de Guilherme II e que preconizava então a firmeza, não pressentiu o perigo
que representava o III Reich e recomendou uma política de apaziguamento, a
mesma que ele condenara antigamente? Essa contradição permanece um
grande enigma.
Uma leitura de segundo grau de Kiel e Tanger, esclarecida pelo co­
nhecimento da seqüência, sugere alguns elementos de explicação que dariam
para pensar que a contradição é menos nítida. Há, primeiro, esse postulado de
que a política estrangeira deve ser realista e excluir as considerações ideológi­
cas tanto quanto os escrúpulos morais. Ora, em 1938, Maurras, que continua
a atribuir um papel determinante às ações do estrangeiro, se persuade de que
a guerra por vir será uma guerra ideológica desencadeada pelos democratas,
os antifascistas e os judeus por causa de seu ódio pelo regime de Hitler: guerra
ideológica e não pelos interesses franceses. Um terço de século antes, uma
página pressagiava a aprovação que será dada à política de colaboração de
Vichy com o vencedor: é a propósito da política que teria podido ser feita
depois de 1870: “O mais nacional dos governos teria podido governar de uma
maneira útil e mesmo gloriosa fazendo uma violência passageira ao sentimento
nacional e formando uma aliança com os vencedores de Sedan: ele governou
assim de 1815 a 1848 com a amizade dos vencedores de Waterloo contra a
opinião do país, mas no interesse do país.” Não é, antecipadamente, a jus­
tificação de Montoire? O encontro feria o sentimento nacional, mas e se o
Marechal Pétain estivesse, obedecendo ao interesse nacional, preparando as
condições da paz? Desde que o regime seja monárquico, tudo lhe é permitido,
mesmo o mais criticável. Pascal diz que tudo se transforma em bem para os
eleitos. Para a monarquia também. Já que o mal só pode sair da República.
Somos levados, uma vez mais, à petição de princípio que inspira toda a obra e
toda a filosofia de Maurras. Não existe o menor paradoxo nesse pensamento
sutil, sedutor, que é fazer definitivamente o julgamento sobre a política
estrangeira, sobre a qual ele afirma que não deve ser subtraída das eventuali­
dades da política interna, depender das apreciações da política interna.•

• Em obra abundante e diversa se escolherá, para aprofundar o conhecimento do pensamento


político: Enquêtesurla monarchie, 1900;-Dictionnaire polilique et critique, estabelecido por
Pierre Chardon, 5 vol.; 1932-1934; Mes idées politiques, 1937; e para as relações entre

798
catolicismo e política que tiveram um lugar tão grande na história de L ’A ction française: Le
dilemme de Marc Sangnier. Essaisurla démocratie religieuse, 1907; La politique religieuse,
1912; Le pape, la guerre et la paix, 1917.

► Albert Thibaudet, Les idées de Charles Maurras, 1920; Henri Massis, Maurras et notre
temps, 2 vol., por um próximo; Jean de Frabrègues, Charles Maurras et son “Action française".
Un drame splrltuel, 1966, por um católico que foi marcado por Maurras; Pierre Boutang,
Maurras, la deslinde et Voeuvre, 1984, estudo mais recente por um discípulo; Jacques Paugam,
L ’âge d ’o rdu marrassisme, 1971: para o autor, essa idade de ouro se situa entre 1899 e 1908;
Colette Capitan Peter, Charles Maurras et Videologie d ’A ction française. Êtude sociologique
d ’une pensée de droite, 1972 James McCeamey, Maurras et son temps, 1977; para uma crítica
do ponto de vista católico, Joseph Vialatoux, La doctrine catholique et Vêcole de Maurras.
Êtude critique, Lyon, 1927.
O centro Charles- Maurras, d’Aix-en-Provence, organiza colóquios consagrados ao pensamento
do escritor monarquista e publica cadernos d'Études maurrasslennes.

R e n é REMOND.

MERLEAU-PONTY, Maurice, 1908-1961


Humanismo e terror, 1947

Pode-se imaginar ler, daqui em diante, Humanisme et terreur (Humanis­


mo e terror) (1947)1sem parodiar imediatamente os julgamentos sumários e
apaixonados que acolheram essa obra quando ela apareceu? Nada é menos
certo... As suspeitas persistem, e a acusação de ambigüidade continua a pesar
muito sobre um livro muitas vezes confundido com uma ou outra de suas
fórmulas - “não se pode ser anticomunista, não se pode ser comunista” (pág.
49), “Não se livrou dos problemas comunistas por ter constatado que o
comunismo do presente está em dificuldade diante deles” (pág. 259).
Segundo certos intérpretes, Humanismo e Terror corresponderia a
uma transposição para o domínio político da ambigüidade "característica”
da filosofia de M. Merleau-Ponty. No entanto, essa obra não pode ser
considerada um parênteses, já que ela se inscreve no percurso de uma obra
mais geral, da qual ela marca uma etapa. Vale mais a pena apoderar-se das
transferências mais ou menos perceptíveis que conduzirão progressivamente
ao destacamento do marxismo, do qual Les aventures de la dialectique (As
aventuras da dialética) (1955) e o prefácio de Signes (Sinais) (1960) serão
as ilustrações manifestas2.
Mas, principalmente, como esquecer que essa ambigüidade é primeiro a
de uma geração que, dentro do pós-guerra, tomava distância do PCF sem
romper com o marxismo. Retrospectivamente, a ambigüidade de Humanismo

799
e terror faz mais eco ao éthos (parte da retórica que trata dos costumes)
político de uma época do que à aventura política de um filósofo.
Um éthos que se vai manifestar na arquitetura conceituai em que
imbricam um pensamento da violência, uma ideologia da história, assim como
um degredo do político.
“Não temos escolha entre a pureza e a violência, mas sim entre diferentes
espécies de violência... A violência é a situação de partida comum a todos os
regimes. A vida, a discussão e a escolha política só têm lugar sobre esse fundo”
(pág. 213, ver também pág. 308). Por Humanismo e terror ter principalmente
retido a atenção por sua interpretação dos processos de Moscou e por sua
polêmica com O zero e o infinito, de Arthur Kestler, sublinha-se raramente seu
verdadeiro objeto que não é conjuntural: uma reflexão crítica sobre as diversas
formas de violência.
A começar pela guerra que acabava de acontecer3. “A derrota de 40 foi
na vida política francesa um acontecimento sem medida comum com os
maiores perigos de 1914-1918” (pág. 125). Despida da violência que ela
exacerba selvagemente, a guerra de 40 contrastava de forma bizarra com a
falsa paz que a havia precedido no seio das democracias liberais. Estas últimas
são paradoxalmente "máquinas de guerra" (pág. 308): elas se enfeitam de
máscaras enganadoras da paz a fim de esconder sua própria violência e
favoreceram demasiadamente tarde a luta à morte da guerra real. A visibilidade
extrema da violência dentro da guerra é a contrapartida da invisibilidade da
violência nas sociedades liberais, essa se tornando cruelmente seu contrário.
A guerra é a verdade histórica do liberalismo do qual ela vem desmascarar a
hipocrisia fundamental. Durante a guerra de 1940, “as consciências se encon­
travam recolocadas dentro do dogmatismo e da luta à morte. Assim apareciam
as origens passionais e ilegais de toda legalidade e de toda razão” (pág. 126).
Como escapar da guerra real e da paz fictícia que é seu inverso liberal,
se a visibilidade dos conflitos e da violência intervém necessariamente como a
condição de possibilidade da coexistência. “Devemos lembrar que ela (a
mistificação liberal) começa a ser um indício mentiroso —um ‘complemento
solene’ da violência - no momento em que ela se condensa em idéia e em que
se defende mais a liberdade do que os homens livres... É essencial à liberdade
existir apenas em ato, no movimento incerto que nos une aos outros, às coisas
do mundo...” (pág. 52). Assim como sua invisibilidade, a visibilidade da
violência só teria como saída a guerra real, não se tornaria ela, então, sempre
guerreira, excessiva?
Um terceiro caso de figura, uma outra modalidade histórica da violência
intervém então; a do comunismo soviético, cujo mérito histórico é manifestar
abertamente os conflitos que a atravessam sem provocar a guerra, tomando,
assim, essa “responsabilidade histórica que ultrapassa as características do
pensamento liberal” (pág. 133). É preciso, então, compreender que os processos
tornam visíveis certos conflitos internos à política revolucionária ou, então, que
eles aceleram sua degradação e precipitam a regressão histórica e o fracasso do
marxismo? Quanto a Koestler, que disfarça, segundo Merleau-Ponty, a história

800
efetiva, opondo abstratamente a subjetividade de Rubachov Bukharin e uma
história inabalável submetida ao jugo da necessidade, Humanismo e terror
interpreta os processos como tantos conflitos entre opções políticas divergentes.
“Opor a Rubachov o ‘sim’ e o ‘não’ absolutos do cristão ou o ‘em alguns casos’
de Kant, é simplesmente provar (...) que o curvam sobre as posições da boa
consciência (...) É preciso primeiro reconhecer como moral a preocupação
comunista do papel objetivo, a vontade de se ver de fora e de dentro a história
(...). Mas quem garante que a história é um relógio, e o indivíduo, uma
engrenagem? Não é Marx; é Koestler” (págs. 106-107). Esse não vê que a
revolução não é determinada por um sentido único e que as possibilidades da
história real são múltiplas. “É justamente nossa abstenção ou nossa intervenção
que a história espera para tomar forma. Isso não quer dizer que, o que quer que
façamos, estará dentro do risco” (pág. 159). Depois da discussão de O Zero e o
infinito, Merleau-Ponty esclarece na segunda parte de Humanismo e terror os
embasamentos teóricos de sua crítica. A URSS continua a usufruir de um certo
crédito, pois esse regime não expulsa a violência e os conflitos da cena histórica,
mas procura, ao contrário, favorecê-los, assegurar a passagem da liberdade
formal para uma liberdade efetiva, isto é, realizar os princípios idolatrados e
congelados pelo liberalismo. “Os processos de Moscou só são compreensíveis
entre revolucionários, isto é, entre homens convencidos de estarem fazendo
história...” (págs. 115-116). A política soviética não traiu, portanto, os postulados
que valorizam o marxismo: “O que o marxismo se propõe a fazer é resolver
radicalmente o problema da coexistência humana para além da opressão da
subjetividade absoluta, da objetividade absoluta e da pseudo-solução do liberalis­
mo” (pág. 205). “O marxismo... é o único humanismo que ousa desenvolver suas
conseqüências” (pág. 270). Se a URSS se beneficiou de uma prorrogação, foi
graças ao marxismo que justifica a priori a complexidade e as contradições da
política, chamandoas de práxis, contingências, etc.
Em compensação, o desenvolvimento dos processos, a apresentação
desses processos revolucionários, assim como dos processos ordinários (pág.
116), indicam o recuo do ideal revolucionário. "É nesse ponto que se indigna
e se revolta contra a barbárie. Na realidade, o que é grave e ameaça a civilização
não é matar um homem por suas idéias (fez-se isso muitas vezes em tempo de
guerra), mas é fazê-lo sem o confessar ou dizer, é colocar sobre a justiça
revolucionária a máscara do código penal. Pois, escondendo a violência,
acostuma-se com ela, ela é tornada institucional” (pág. 122). Sem poder ser
assimilada, a violência soviética se aproxima paradoxalmente da violência
liberal, já que ela se torna invisível, se mascara progressivamente, insti­
tucionalizando-se, o que testemunha o processo de Bukharin. Esta é a verda­
deira ambigüidade de Humanismo e terror, a regressão revolucionária não
penetra ainda a credibilidade do marxismo, que permanece o único pensamen­
to da práxis. Como se fosse para legitimar essa ambigüidade, os temas da
maldição da história, da tragédia e dos malefícios do político vão intervir como
motivo característico (ver pág. 129).
A ambigüidade de Humanismo e terror é indissociável do método que

801
Merleau-Ponty privilegia4. Sobre esse método existencialista, Merleau-Ponty
escreve: “Ele não favorece o conflito das opiniões, ele o constata no início... Essa
filosofia, diz-se, é a expressão de um mundo deslocado. Certamente, e é isso que
faz a verdade” (pág. 308). Merleau-Ponty não é, então, vítima de suas hipóteses
contraditórias: postular levar-se em conta a violência rejeitando totalmente sua
institucionalização condena a desenhar um círculo da violência e a não distinguir
entre as formas de institucionalização. Se a legalidade é suspeita, a exigência de
visibilidade da violência conduzirá mais facilmente à guerra do que a uma
coexistência pacífica entre os homens. A comparação com a guerra de 1940 que
faz aparecerem “as origens ilegais de toda legalidade” indica bem que a guerra
polariza esse pensamento, sendo, como ele é, o final do liberalismo.
Pensamento do deslizamento da violência, fenomenologia política, a
reflexão de Merleau-Ponty se choca com suas próprias contradições. Se o
direito é sacrificado ao fato, no caso do liberalismo, a filosofia da história
marxista e a idéia de práxis vêm, ao contrário, salvar a degradação do fato
revolucionário. Essa distorção entre o fato e o direito, entre o direito e o fato,
permite compreender, por um lado, a deslocação entre levar em conta a
particularidade histórica e a análise que remete ao “funcionamento total da
sociedade”; e, por outro lado, o degredo do poder político, sua dependência.
“Na realidade, não há uma ordem jurídica e uma ordem política, uma e outra
são sempre só duas expressões do funcionamento total da sociedade” (pág.
119). Se a reflexão paralela de Merleau-Ponty sobre Maquiavel e o maquiave-
lismo5 podia lhe permitir esclarecer progressivamente o papel do político e a
necessidade de uma institucionalização da violência, será preciso contornar as
incertezas metodológicas de Humanismo e terror para avaliar diferentemente
o liberalismo e o comunismo instituído. Parece, assim, em Claude Lefort, que
o visível é o invisível, isto é, que as diversas modalidades da violência se
inverteram6. Se a institucionalização política torna possível a expressão dos
conflitos traduzindo a violência, o totalitarismo, em compensação, impede toda
manifestação conflitual... As máscaras do liberalismo protegem a coexistência,
enquanto o totalitarismo faz a representação da violência deslizar até o ponto
em que a guerra civil não é nem mesmo mais concebível. O totalitarismo
representa a não-guerra civil absoluta, enquanto a democracia não pode
escapar à hipótese da guerra.
Colocando a ênfase sobre a guerra e a violência, Merleau-Ponty pôde
permitir a outros interpretarem as formas de violência que sacudiram o século
XX. Ainda seria preciso que outras condições de interpretação interviessem,
pois a violência foi sempre colocada em forma pela história, instituída por uma
política, e jamais foi vista como esse dado original que vem somente qualificar
relações de coexistência.•

• Humanlsme et terreur (Essai sur te problème cammuniste), C allim ard, 1947, 1980; Les
aventures de la dialectique, G allim ard, 1955, 1977; Sens et non-sens, Nagel, 1966; Signes,
G allim ard, 1960.

802
► Simone Coyard-Fabre, Merleau-Ponty et la politique, R e v u e d e M é ta p h y siq u e e t d e m o ra le,
A. Colin, abril-junho de 1980; Claude Lefort, Un h o m m e e n trop, Seuil, 1971; Idem, Introduction
à H u m a n ism e e t terre u r, op. cit.; Idem, Maurice Merleau-Ponty, em H is to ire d e la p h ilo so p h ie ,
t III, La Pléiade, 1974; Idem, S u r u m c o lo n n e a b se n te , escritos em torno de Merleau-Ponty,
Callimard, 1978; Pierre Llvet, Pensée du temps et recherche éthique, E sp rit, junho de 1982;
Olivier Mongin, depois Lascaux, E sp rit, número especial consagrado a Maurice Merleau-Ponty,
junho de 1982; Idem, Merleau-Ponty et Claude Lefort; les conditions d'une interprétation, em
L e s in te r p r é ta tlo n s d u sta lln is m e , E. Pisier-Kouchner éd., PUP, 1983.

Olivier MONGIN.

NOTAS
1. H u m a n ism o e te r ro r (ensaio sobre o problema comunista), Callimard, 1947, col.
“Idées”, 1980. Essa última edição à qual nós nos referimos comporta uma introdução importante
de Claude Lefort.
2. Ver Claude Lefort, introdução citada na nota ns 1. Para um estudo mais geral, ver S.
Goyard-Fabre, Merleau-Ponty et la politique, R e vu e d e M é ta p h y siq u e e t d e M orale, abril-junho
de 1980, Armand Colin.
3. Ver La guerre a eu lieu, em S e n s e t n on -sen s, Nagel. “Pela primeira vez, diz
Merleau-Ponty, éramos levados não somente a constatar, mas também a assumir, a vida em
sociedade” (pag. 293). Vê-se que a guerra faz eco à sociedade.
4. Sobre todos esses pontos e os problemas de interpretações que eles levantam, ver
Claude Lefort, Un h o m m e e n tro p , Seuil, 1976. Uma longa passagem é consagrada a H u m a n is­
m o e te r r o r (cf. págs. 140-155). “É sobre dois planos distintos, escreve ele, que se desenvolve o
pensamento do filósofo: o da teoria marxista e o da análise histórica, sem que jamais a
legitimidade da passagem de um a outro seja estabelecida” (p. 150).
5. Ver, por exemplo, nota sobre Maquiavel, em S ig n es, Callimard, 1960 págs. 267-283,
onde se pode ler esta frase significativa de um deslocamento: “Pelo domínio de suas relações
com o outro, o poder atravessa os obstáculos entre o homem e o homem e coloca alguma
transparência em nossas relações - como se os homens só pudessem estar próximos dentro de
uma espécie de distância” (pág. 275).
6. Sobre as condições dessa inversão, ver O. Mongin, Merleau-Ponty et Claude Lefort les
conditions d’une interprétation, em L e s in te r p r é ta tlo n s d u sta lin is m e , E. Pisier-Kouchner, PUF,
1983; ver também os artigos de Pierre Livet, pensée du temps et recherche éthique, e de Olivier
Mongin, Depuis Lascaux, no número especial da revista E sprit, consagrado a Maurice Merleau-
Ponty, de junho de 1982.

MICHELET, Jules, 1798-1874


O povo, 1 8 4 6

Se a obra de Jules Michelet (1798-1874) é unanimemente louvada hoje


em dia, ao contrário das de um Tocqueville ou de um Marx, ela é raramente
objeto de discussões, de um diálogo das idéias ao longo do tempo. A homena-

803
gem que lhe prestam parece mesmo um pouco acadêmica, pois, se bem que a
Nova História o tenha como precursor de uma historiografia total, e que um
público mais amplo ainda saboreie seu sentido da narração e do retrato (Joana
D’Arc, Luís XI, Danton-Robespierre, Napoleão), ninguém mais acredita numa
história providencial, mesmo secularizada, em que a liberdade alternadamente
ridicularizada e triunfante guia a marcha do tempo. Um recurso sistemático a
“divindade temporárias", como a Vida, o Homem, o Amor, o Direito ou a Justiça
[7], uma narrativa apaixonada a ponto de se duvidar de sua veracidade, um
nacionalismo flamejante que faz a Natureza, quer dizer, a França e suas
paisagens, dar à luz o conceito de Pátria ou de Unidade nacional [2] constituem
um bocado de bizarrices pré-científicas para a crítica contemporânea. O
historiador romântico interessa mais por seu verbo do que por suas idéias e,
não tendo direito à posição de par na inteligência, deve se submeter aos ferros
da interpretação literária, psicanalítica ou feminista [8]. Essa privilegia o último
Michelet, o homem do exílio interior sob o Império, o autor de L'oiseau (O
pássaro), L ’insecte (O inseto), L'amour (O amor), La femme (A mulher), La
mer (O mar), La sorcière (A feiticeira), La montagne (A montanha) [4].
Dois resumos críticos estudam, no entanto, o historiador e o polemista,
dando um grande lugar ao Peuple (Povo) [1]. Um, La voie royale (O caminho
real), privilegia a lógica interna da obra [9]. Paul Viallaneix segue a cronologia
das obras e a vida pessoal de Michelet para pôr em evidência a coerência de
seu pensamento por meio da idéia de Povo. Ele nota a fidelidade a seus
inspiradores Voltaire, Ballanche e Vico, a constância de seus compromissos
públicos e a precisão de suas escolhas metodológicas que o levam a recusar “a
escola pitoresca”, assim como a história "fatalista” e a “escola filosófica” (P.
Viallaneix, 1971. pág. 173 e segs.). O outro estudo, Le temps des prophètes (O
tempo dos profetas), situa Michelet nas origens do pensamento republicano
[10]. Paul Bénichou reagrupa aí as doutrinas românticas em quatro famílias:
liberais, neocatólicas, utopistas científicas e, enfim, democratas humanitárias
que partilham um mesmo culto ao povo e inspiram os milhares de republicanos
no fim da Monarquia de Julho. É evidente que é a este último movimento que
ele liga Michelet em companhia de seu amigo QuineL Quando O povo foi
publicado, em 1846, o historiador do Colégio da França estava no meio da
totalidade de suas obras; era um especialista reconhecido da Idade Média
desde a colocação à venda do tomo IV de sua História da França (1840) e de
seu Luís X I (1843) e preparava sua maior obra sobre a Revolução Francesa,
cujo tomo I aparecerá em 1847. Paralelamente a essa intensa criação histórica,
Michelet se fez polemista com Des jésuites (Jesuítas), escrito em colaboração
com Quinet em 1843, e Le prêtre, la femme et la famille (O padre, a mulher
e a família), em 1845 [3]. Todavia, com O povo, o cientista político, que
acredita em sua missão de homem letrado encarregado de anunciar o progres­
so irresistível da história [II], pretende abandonar “os livros negativos” e passar
para “livros positivos que não combatem mais, porém ensinam” (introdução de
Viallaneix, 1974, pág. 6). Feita essa nuance, nada impede que O povo tenha
aparecido desde sua publicação como uma obra cujos argumentos fortificam

804
a campanha de oposição ao regime sustentada pela imprensa de vanguarda do
Nacional e da Reforma. Paralelamente utiliza sua cátedra como uma tribuna
de onde convida seu jovem público burguês e republicano à subversão
cultural, o que lhe vale uma suspensão administrativa no começo de 1845 [4].
Três mil estudantes protestam contra essa medida manifestando-se diante da
Câmara, a 3 de fevereiro. O que se chama comumente de “espírito de 1848”
anima a pena e a eloqüência do mestre.
A profissão de fé de Michelet, tal como ela aparece em O povo, é original,
contudo. Mediante esse a fresco dos humildes que realça ao mesmo tempo a
história, a sociologia e a profecia, o autor deseja tocar a grande maioria e
ponderar sobre sua época bem mais do que divulgar os resultados de uma
pesquisa sobre a França dos anos 1840. Esse desejo de elevar o povo instruindo-o
sobre si mesmo não se limita à exortação, Michelet argumenta a partir de seu
trabalho de historiador e da filosofia que o anima para expor sua concepção do
mundo democrático por vir. Deduzindo assim o ideal político do problema da
história, o “pai de uma imagem de esquerda da França” [12] dá uma origem
nobre à enumeração intangível e às vezes um pouco fácil dos artigos da fé
republicana que são três: a Pátria, a Escola e a Caça aos pobres. Além do mais,
se essa filiação não é simplesmente afetiva e temática, Michelet, interrogando-se
sobre a posição do indivíduo e do povo em história, não se estaria antecipando
sobre as questões que se colocarão os ideólogos da III República a propósito das
noções de representação e de soberania em matéria política [13]?
Michelet ambiciona mostrar que “a meta da Cidade é o amor”. A
subordinação da obra a essa idéia-diretriz explica sua forte estrutura final que
aparece em uma simples leitura dos títulos dados às três partes. Du servage et
de la haine (Da servidão e do ódio) torna a perda da liberdade responsável
pelos antagonismos de classe. De 1'affranchisssement par iamour, la nature
(Da libertação pelo amor, a natureza) trata dos progressos passados da
humanidade que são descritos sob a forma de uma mudança social "natural",
quase contínua e sem autor. Enfim, a conquista da liberdade por vir desde
1789, De Vaffranchissementpar Vamour, la patrie (Da libertação pelo amor,
a pátria), deve realizar-se pela educação patriótica.
Mas quem Michelet supõe ser digno de pertencer ao Povo na primeira
parte? Por direito, todos os humildes, por cooptação, quase todos os outros.
Os excluídos são pouco numerosos e, se o conjunto dos agiotas e dos
banqueiros fazem parte deles, só os egoístas são descartados dentro dos outros
grupos sociais privilegiados. Da mesma maneira, nenhuma servidão fatal pesa
sobre uma classe social inteira. O camponês que cai nas redes do agiota, o
operário que se entrega à bebedeira, o funcionário que se dedica a seu superior
hierárquico correspondem a realidades sociológicas, mas são também es­
tereótipos que favorecem a incompreensão no seio do Povo. Pleiteando a
reaproximação, o amor, Michelet desculpa os comportamentos, explicando-os,
minimiza o número de indivíduos afetados e constrói um quadro oposto. O
camponês, longínquo descendente do soldado-trabalhador das colônias anti­
gas, aferra-se à terra como a "pequena videira” ou a “castanheira”; a defesa da

805
Pátria, portanto, é natural para aquele que foi “o cavaleiro da Revolução”. O
trabalhador bem auxiliado por sua esposa pode ser um modelo de virtudes
familiares, pois toda a família lhe é reconhecida por lhe trazer o pão: “Só o
pobre é pai.” O funcionário, cujo modelo é o professor, é mal pago, a cada
instante transferido, mas honesto (Michelet, 1974, pág. 128). Além disso, bem
além dos indivíduos, o conjunto do grupo trabalha para o bem comum. O
campesinato é o alimentador da cidade. O sacrifício de sua liberdade que o
operário oferece à máquina “aristocrática” traz vantagem ao “consumidor”. O
fabricante por sua "arte”, sua habilidade técnica se rivaliza com os ingleses,
concorrendo com seus produtos (Michelet, 1974, pág. 119). Enfim, o professor
escolar faz frente à influência perniciosa do padre, de Roma, do estrangeiro.
Por intermédio dessa galeria aduladora de retratos, o historiador sociólogo fixa
antecipadamente os traços do camponês ideal e do funcionário modelo que a
III República perenizará. Todavia, o autor do Povo se mostra perfeitamente
sensível às evoluções e notadamente aos efeitos destruidores da penetração da
economia de mercado. A agricultura dominada irremediavelmente pela indús­
tria vê suas saídas tradicionais bloqueadas. “A fábrica mecânica”, à procura de
baixos salários, domina primeiramente o trabalhador e depois sua mulher e
seus filhos. Desse ponto de vista, a categoria social mais alienada e, no entanto,
também a mais invejada é a dos comerciantes, pois no caso deles se produz
uma verdadeira inversão dos valores. Esse grupo, que não é criador de
riquezas, faz sua honra consistir em seus negócios já que para ter sucesso neles
é preciso “enganar o comprador”, “adular e agradar” até por intermédio de sua
mulher no balcão (Michelet, 1974, pág. 124). Longe de suscitar a felicidade, a
concorrência generaliza “a extrema sensibilidade individual”, pois, ao lado dos
pobres que sofrem no presente, os ricos se inquietam com o “futuro possível”.
Outra subversão que faz Michelet se interrogar é a difusão do “Maquinismo”.
Todavia, no caso desse homem de progresso e de ciência nenhum pesar
passadista macula a argumentação. A máquina é também um “agente do
progresso democrático”: as roupas a baixo preço que ela produz concorrem
para a “igualdade visível”. Entretanto, a censura é severa, pois a “concentração
mecânica” reagrupa os operários “sem os aproximar”, os faz “cooperar sem
gostar”, censura tanto mais forte pelo fato de essa “relojoaria” ter pretensões
imperialistas. A idade das “máquinas industriais” pode ser seguida pela das
“máquinas políticas”, suscitando uma “filosofia de Estado” (Michelet, 1974,
págs. 144-145).
Quer a crítica insista sobre os aspectos destruidores do mercado ou sobre
o novo servilismo devido ao maquinismo, nos dois casos o homem arrisca sua
humanidade. É bem mais a civilização capitalista que não data da revolução
industrial, que está no centro da proposta, do que o capitalismo enquanto
sistema de produção. A ascultação de “todas as partes do corpo social” leva o
sociólogo humanista a repelir a idéia de um “fatalismo” catastrófico e a negar
a rigidez das classes mesmo quando elas pintam um quadro sombrio das
evoluções em curso (Michelet, 1974, pág. 156). Daí seu furor extremo, no
começo da segunda parte, a respeito dos homens de letras, culpados, a seus

806
olhos, de reduzir o povo a essa classe “urbana, corrompida e espiritual” dos
subúrbios ou a dos operários de manufatura. Segundo ele, nenhum grupo
social da França de dominante rural dos anos 1840 pode pretender encarnar
o povo. Além disso, como “o povo em sua mais alta idéia se encontra
dificilmente dentro de O povo", ele escolheu dar uma definição cultural em
parte destacada da realidade (Michelet, 1974, pág. 186).
A cultura, retida como o critério maior de distinção social, separa os
dominantes dos dominados, o belo espírito reflexivo alimentado pela escolás-
tica do pensamento popular instintivo próximo da ação. A história cultural é
solicitada para retraçar a antigüidade e a profundidade da divisão. Assim, a
promessa de libertação contida na mensagem da Igreja primitiva foi renegada
desde a Idade Média por uma “Igreja eminentemente aristocrática” que,
apoiando-se sobre “um ensinamento sutil”, justificou uma “ordem civil ranco­
rosa, a desigualdade diante da lei, dentro do Estado e da família”. Essa
“metafísica do mundo” pesaria ainda sobre a criança que, decretada “heredita-
riamente perversa” por causa da natureza humana julgada definitivamente má,
deve suportar uma “educação de suplícios” destinada a subjugá-la (Michelet,
1974, pág. 193). Também, hoje em dia, aquele que se opõe diretamente ao
instinto das crianças, ao dos animais “tribos inferiores de vida inferior”, ao do
simples ou dos povos jovens em vias de “exterminação” ataca ao mesmo tempo
o povo e agrava a distância social (Michelet, 1974, pág. 193). Ao contrário, a
"regeneração da sociedade” passa pela aproximação simpática entre o “calor”,
a “força”, a “seiva” popular e a cultura dominante. Mas não se pode tratar de
uma harmonia social espontânea. Michelet, reconhecendo o caráter aberto da
sociedade moderna, pensa que a “mistura rápida e grosseira” que não é “união
nem associação” dá na maioria das vezes numa cultura vulgar e sem futuro.
Vem daí seu sentimento de que a espécie de liberalismo cultural que acha que
"o tempo e a cultura fazem tudo” é uma idéia falsa (Michelet, 1974, pág. 112).
A harmonia também não virá mais do "enriquecido" esquecido de sua cultura
de origem nem do desclassificado intelectual encolerizado contra sua condi­
ção. Plagiando Guizot, pode-se dizer que ele recusa o “cultive-se” (ou “instrua-
se”) e que ele quer suprimir o “censo” cultural. Ele se dedica a isso lembrando
que não há hierarquia absoluta dentro da ordem do pensamento (“a reflexão
de hoje em dia foi o instinto de ontem”), celebrando a “cultura voluntária"
qualificada de “vegetação espontânea que se desenvolve por obstáculo” de
homens fortes do povo “que não desejarão subir” depois de ter adquirido a
cultura erudita (Michelet, 1974, pág. 111). Enfim, ele trabalha recomendando
a abertura da cultura abstrata que se arrisca à esterilidade se não integrar “os
homens de instinto, de inspiração, sem cultura ou outras culturas".
Essa teoria ao mesmo tempo germinativa e normativa da mudança social
não precisa de ator, assim como a dos progressos da humanidade, isto é, a do
povo no sentido mais amplo, não tem necessidade de herói. A evolução
histórica se faz de maneira contínua, por meio do modo de “parto social” sem
que se possa seriar suas etapas. Essa fecundidade é atribuída a “o homem de
gênio”, próximo da criança, do simples e do sábio, porque ele alia o instinto e

807
a reflexão (Michelet, 1974, pág. 187). A vox populi (voz do povo) só é uma vox
Dei (voz de Deus) quando ela se faz ouvir por intermédio desse andrógino do
pensamento; portanto, não se trata de um puro providencialismo secularizado
creditando a toda manifestação de baixo um valor positivo. Esse plebianismo
seletivo é também um progressismo que coloca em perspectiva os sinais da
conquista difícil e muitas vezes contrariada da liberdade do povo em referência
ao ideal democrático de 1789.
A revolução fez da França uma “nova Roma”, "a pátria universal” que
ofereceu ao mundo "o evangelho da igualdade”. "Resumo da história universal”,
ela tem “sozinha o direito de ensinar” às outras “nacionalidades” do século XIX
cujos povos, como a criança crescendo, se descobrem uma individualidade
(Michelet, 1974, pág. 223). Mas à maneira do indivíduo do qual todas as etapas
da vida confirmam a natureza de ser social, as nacionalidades, se caracterizando
moralmente, preparam a “concórdia geral” e não a guerra. Para os homens, assim
como para os povos, Michelet formula, de maneira sempre atual, o programa da
Cidade democrática: “Diferentes, mas harmonizados pelo amor, tornados cada
vez mais semelhantes” (Michelet, 1974, pág. 201). A conciliação entre esse
respeito às “diversidades”, a organização “de uma desigualdade em proveito dos
menores”, e o reforço da "unidade harmônica” supõem um grande amor pela
pátria de todos. Para vivifkar esse e desenvolver o sentido de sacrifício, Michelet
propõe organizar grandes festas públicas. A educação patriótica, elevando os
costumes públicos, favorece “a circulação espiritual” no âmbito da sociedade
transformada na “Grande Associação”. A pedagogia caça a coação: “Menos leis,
porém, pela educação, fortifiquem o princípio das leis feitas pelos homens e tudo
irá bem” (Michelet, 1974, pág. 244). Michelet chama de seus desejos uma escola
capaz de reunir “sobre um mesmo banco todas as crianças”, capaz de favorecer
“o adiantamento de todos por todos” a ponto de “ensinarmos às crianças a
vaidade das graduações...” Essa escola democrática, “enternecedora ideal da
sociedade”, requer uma pedagogia nova, aberta para o mundo, partindo do “ser”
sem procurar fazer da criança um “erudito”, longe do "espírito de rivalidade”
(Michelet, 1974, pág. 241).
Michelet historiador recusa fazer o “estóico do destino”, o “epicurista do
acaso” ou ainda “o filósofo solitário que isola o homem” [5]. Para ele e para
os fundadores da III República, que o repetirão depois sob outras formas, “a
história é nossa obra e não nosso tirano" (P. Viallaneix, 1971, pág. 176 e segs.),
sem que isso seja contraditório a um culto da Revolução (e uma abominação
do terror, obra de uma cultura retórica de burguês) que deve reunir e não
dividir. “Não gosto de romper a unidade da grande Igreja”, nos diz, em 1868,
em seu prefácio à Histoire de la Révolution française (História da Revolução
Francesa). Michelet, cientista político, recusa o comunismo ou o liberalismo,
todos dois materialistas, mas não acredita também na “comunidade natural
bárbara e improdutiva” nem na “comunidade voluntária” heróica e passageira,
muito menos na "comunidade forçada” impossível dentro de uma França com
propriedades divididas (Michelet; 1974, pág. 216). De toda maneira, em
nenhum caso “a jovem pátria do futuro” (título do último capítulo) pode se

808
limitar a uma associação de interesses, qualificada de "sociedade negativa”. "A
grande Amizade” é a nação francesa autocelebrando sua unidade espiritual à
mesa de um Banquete permanente onde se repartiria de comum acordo "o pão
moral” [6].
Seu jacobismo é filosófico e não estatal, já que se faz acompanhar por
um liberalismo político, mais absoluto do que seu liberalismo econômico que
inclui a proteção social dos fracos.
Portanto, é natural que na febre das jornadas revolucionárias de 1848 o
autor desse pensamento nem determinista nem voluntarista vise a trazer sua
contribuição à república sob a forma de um projeto de educação popular.

• [11 Jules Michelet, L e p e u p le, Paris, Flammarion, 1974; [2] Jules Michelet, T ableau d e la
F ran ce: introdução ao tomo II de H isto ire d e F ran ce, Ed. de Saint-Clailt, 1950; [3] Jules Michelet
et Edgar Quinet, D e s J é s u ite s , Utrecht, J.-J. Pauvert, 1966; Jules Michelet, L e p rê tre , la fe m m e
e t la fa m ille, Paris, Chamerot, 1862; [4] Lições proibidas difundidas por Hachette reunidas em
um volume em 1877, Jules Michelet, L é tu d ia n t, Paris, Seuil, 1970; [5] Jules Michelet, O e u v re s
c o m p lè te s, Paris, Flammarion, 1971, sob a direção de P. Viallaneix, 11. Prólogo a seu discurso
sobre o sistema e a vida de Vlco. Vico contra o método geométrico e a favor dos direitos do
senso comum do gênero humano, 1827; [6] Jules Michelet, O e u v re s c o m p lè te s, Paris, Flamma­
rion, 1971, t XVI (1851-1857): L e ba n q u et, págs. 635,638 e segs.; [7] Charles Maurras, E ss a ls
p o lltiq u e s. T ro ts Id ées p o lttiq u e s: M ic h e le t o u la d é m o c r a tie , Paris, Flammarion, 1973; [8]
Roland Barthes, M ic h e le t p a r lu l-m êm e, Seuil, 1954; Alain Besançon, H is to ire e t e x p é r le n c e
d u m oi, Flammarion, 1971; Thérèse Moreau, L e s a n g d e V h istoire, Flammarion, 1982; [9] Paul
Viallaneix, L a v o ie ro y a le: e s s a i s u r V idêe d e p e u p le d a n s V oeu vre d e M ich elet, Paris,
Flammarion, 1971; [10J Paul Bénichou, L e te m p s d e s p ro p h è te s: D o c tr in e s d e V áge ro m a n ti-
qu e, Paris, Callimard, 1977; [11] Paul Bénichou, L e s a c r e d e V écrivain , 1 7 5 0 -1 8 3 0 . E s s a i s u r
V a v è n e m e n t d ’u n p o u v o lr s p ir itu e l la iq u e d a n s la F ra n ce m o d e r n e . Paris, José Corti, 1973;
[12] Pierre Nora, Le troisième homme?, artigo publicado na revista L ’A rc, ns 52; [131 Georges
Burdeau, T ra itê d e S cien ce p o litiq u e , vol. II, L VI: L a d é m o c r a tie g o u v e rn é e , Paris, LGDJ, 1971.

Pierre-Marc RENAUDEAU.

MICHELS, Roberto, 1876-1936


Os partidos políticos, 1911

“Reduzida à sua mais simples expressão, a lei sociológica fundamental


que rege inevitavelmente os partidos políticos (dando à palavra ‘políticos’ seu
sentido mais amplo) pode ser formulada assim: a organização é a fonte de onde
nasce a dominação dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatários sobre os
mandantes, dos delegados sobre aqueles que delegam. Quem diz organização
diz oligarquia" (Os partidos políticos, p. 196).

809
0 nome de Roberto Michels permaneceu ligado à lei de bronze da
oligarquia que ele enuncia assim, sob forma sintética, no fim de seu ensaio
sobre Os partidos políticos (Les partis politiques). Ele tinha 35 anos quando
fez publicar em 1911, em alemão, a primeira versão desse livro. Uma evocção
biográfica não é inútil. Poucas obras de vocação “científica” foram, com efeito,
tão marcadas pela experiência pessoal de seus autores. Nascido em 1876, em
Colônia, em uma família da burguesia comerciante, Michels, depois de uma
breve passagem pelo exército, escreveu uma tese de história, antes de viajar,
nos primeiros anos do século, pela França e, sobretudo, pela Itália. Foi nesse
país, em 1902, que ele se tornou socialista. De volta à Alemanha, instalou-se
em Marburgo e aderiu à social-democracia, no seio da qual militou de 1903 a
1907. Muito rápido situou-se na ala esquerda desse partido, encetando relações
bastante estreitas com Kautsky e mesmo com o grupo “anarco-sindicalista” de
Rafael Friedeberg. De maneira incessante, denunciou a falta de democracia no
interior da organização e a confiscação do poder pelo grupo dirigente.
Os partidos políticos não é, portanto, o fruto do estudo e da reflexão de
um observador neutro, até mesmo de um “espectador comprometido”, mas a
análise de um militante decepcionado. É a história da passagem de Michels pela
social-democracia alemã tanto quanto um trabalho sobre o próprio partido. Daí
a posição ambígua do livro. Em Michels, entre 1903 e 1911, o partidário foi
dando lugar pouco a pouco ao sociólogo e ao universitário, sem que desapare­
cesse nunca a vontade de compromisso. Ao mesmo tempo em que ele freqüenta­
va as tribunas social-democratas, tentara obter um ensino na Universidade de
Marburgo, que lhe foi recusado, parece, em razão de seu partidarismo político.
Ele teve, portanto, para viver, de multiplicar seus trabalhos escritos, as conferên­
cias no exterior, empreendendo uma busca de longa duração. Foi dentro desse
contexto que ele conheceu Max Weber. Este último não se contentou em
denunciar pela imprensa o ostracismo do qual Michels era vítima. Tonou-se
rapidamente seu mentor, e a primeira edição de Os Partidos políticos lhe é
logicamente dedicada. Em uma carta de 26 de março de 1906, Max Weber fixava
praticamente para Roberto Michels seu programa de trabalho: “A especificidade
do SPD, escrevia-lhe ele, vem sobretudo do fato de que, contrariamente aos
partidos anglo-saxões, ele possui uma concepção global do mundo e não somente
uma máquina, como os partidos americanos. Mas o SPD é também e deve ser
uma máquina. Um problema — que vocês levantam - parece-me muito inte­
ressante: como se desenvolve concretamente dentro do partido a influência
recíproca entre os ideais materiais, a maquinaria indispensável, a hierarquia que
decorre dela e a burocracia. Não se trata realmente da questão daqueles que se
chama de revisionistas, acadêmicos etc., mas, bem mais, de uma interrogação
sobre o caráter ideológico do partido e de seu desenvolvimento.”
Michels vai, portanto, desmontar, do interior, a maquinaria da organização,
mostrando como essa, pelo que se chamaria hoje em dia de um efeito perverso,
produz uma oligarquia que vai contra a democracia moderna que ela supos­
tamente deve buscar. De saída, uma constatação simples: “O partido moderno é
uma organização de combate no sentido político da palavra e, como tal, deve

810
conformar-se às leis da tática. Essa exige antes de tudo a facilidade de mobiliza­
ção” (pág. 39). É, portanto, por causa da preocupação com a eficácia que o
partido se dota de uma estrutura quase militar: “O vínculo íntimo que existe entre
o partido e as forças armadas é atestado pelo interesse apaixonado com o qual
alguns dos chefes mais notórios do socialismo alemão se ocuparam de questões
militares” (pág. 41). Ora, nas forças armadas, os soldados não elegem seus
oficiais. Dentro do partido, em compensação, os militantes escolhem seus
dirigentes. E, no entanto, o resultado é, no final das contas, idêntico: rapida­
mente, os dirigentes do partido procuram tornar sua posição inamovível, impor
à base, sem debate, seus pontos de vista, exigir uma obediência cega de seus
mandados. É por esses dirigentes (que ele designa na maioria das vezes pelo
termo abstrato de leadership (liderança) - mal traduzido pela palavra “chefes”
na edição francesa) que Michels se interessa antes de tudo: por suas motivações,
pela maneira mediante a qual eles conseguem perpetuar sua dominação, por sua
origem social. E suas análises tomam emprestado mais da psicologia social do
que das pesquisas weberianas sobre a burocracia. Michels escreverá, além disso,
a Gustave Le Bon, em 23 de novembro de 1911: “Eu simplesmente apliquei sobre
o terreno dos partidos políticos e sua estrutura administrativa e política as teorias
que você estabeleceu de maneira tão brilhante sobre o terreno da vida coletiva
das multidões.” E preciso tirar a parte da bajulação dessa declaração (Michels
procurava nessa época fazer traduzir seu livro pela “Nova Biblioteca Científica”
dirigida pelo mesmo Le Bon, na editora Flammarion). Le Bon é pouco citado na
obra, e suas idéias só são retomadas aí de maneira muito geral. Mas não deixa
de ser verdade que Michels recorre permanentemente a expressões, tais como a
superioridade do saber, a profundeza das convicções, a solidez ideológica e,
igualmente, a confiança em si, o carisma ou a eloqüência, para explicar a
dominação dos chefes (líderes) sobre as massas. O que permite a George Lukács,
crítico severo de Michels, escrever que esse “não propõe mais do que uma
descrição do surto de oportunismo dentro da social-democracia na época im­
perialista — sob a influência do aparecimento e do desenvolvimento da aris­
tocracia operária” (Lukács, 1928). A psicologia das multidões, acrescentava
Lukács, “é, aliás, para dizer as coisas brevemente, apenas a quimera científica da
burguesia que espera que o estado de desorganização das massas que ela suscita
dia após dia se mantenha eternamente”. Um verdadeiro procedimento científico
teria, ao contrário, consistido em perguntar-se “qual é a base econômica da
democracia e qual é sua função social para a classe dominante”. Lukács estava
sem dúvida nehuma baseado em esperar de um militante da socialdemocracia
alemã que ele propusera uma análise marxista do funcionamento de seu partido.
É preciso primeiro enfatizar que o resto da obra de Michels (mais de 30 volumes
e 700 artigos que o sucesso de Os Partidos políticos infelizmente fez esquecer
um pouco hoje em dia) mostra que ele tinha um conhecimento aprofundado da
obra de Marx. Mas, principal mente, a proposta de Michels não era essa: é inegável
que seu estudo da “maquinaria” emana mais do panfleto do que do expurgo
científico. Weber censurou-lhe isso em muitas ocasiões, tratando-o ironicamente
de Gesinnungsethiker (moralista), enfatizando sem indulgência a imprecisão de

811
seu vocabulário ou sua tendência a misturar fatos e julgamentos de valor. E no
entanto, a despeito dessas fraquezas conceituais, Os partidos políticos perma­
nece uma extraordinária coleta de dados e uma denúncia, que nada perdeu de
sua força, das extravagâncias das oligarquias partidárias.
Porém existe um outro nível de leitura da obra, que ultrapassa o da
sociologia de um partido político. Roberto Michels quis também propor, por
intermédio desse texto, uma reflexão sobre a democracia. O título original: Zur
Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie. Untersunchungen
ilber die oligarchischen Tendenzen des Gruppenlebens, traduzido em francês,
numa fórmula contraída, pelo subtítulo: Ensaio sobre as tendências oligárqui-
cas das democracias, dá, aliás, uma idéia melhor das ambições do autor. A
questão da democracia está no âmago de suas ocupações. E, sobre esse plano,
seu pensamento encontra-se na confluência de correntes ideológicas antagonis­
tas. De novo, o esclarecimento biográfico torna-se necessário.
Em 1907, Michels deixou Marburgo e foi para Turim, onde lhe haviam
confiado o ensino de Economia na Universidade. Nessa cidade onde ele já
conhecia Luigi Einaudi e Achille Loria, que haviam trabalhado pela sua nomea­
ção, ele encontrou logo Gaetano Mosca. Ao mesmo tempo, suas freqüentações
políticas o haviam conduzido para o lado dos sindicalistas revolucionários,
franceses principalmente. Colaborador regular do Movimento socialista, ele
visitou com freqüência Paris, onde conheceu Georges Sorel, Hubert Lagardelle
ou Edouard Berth. Essa dupla influência. Mosca e os sindicalistas revolucioná­
rios, conjuga-se de maneira inesperada dentro de Os partidos políticos.
Michels tomou emprestado de Gaetano Mosca sua distinção entre “gover­
nantes” e “governados". “Dentro de todas as sociedades, afirmava Mosca, a
começar por aquelas que são menos desenvolvidas e chegaram apenas às
origens da civilização até as mais cultas e as mais fortes, existem duas classes
de pessoas: a dos governantes e a dos governados” (Mosca, 1896). O que se
tornou dentro de Os partidos políticos: “A existência dos chefes é um fenô­
meno inerente a todas as formas da vida social” (pág. 295). Portanto, acres­
centa Michels, a ciência “não deve procurar saber se esse fenômeno é um bem
ou um mal ou mais um do que outro. Mas, em compensação, é de grande
interesse científico estabelecer que todo sistema de chefes é incompatível com
os postulados mais essenciais da democracia” (idem). É nesse ponto que reside
o paradoxo de seu livro: Michels faz sua a hipótese de uma “fatalidade da classe
política” (para retomar o título de um de seus artigos) e, ao mesmo tempo, ele
não pode ser resolvido aí. Pois “a democracia é (...) um tesouro que ninguém
poderá nunca atualizar. Mas prosseguindo as pesquisas e investigando infati­
gavelmente para achar o não-encontrável, não se deixará de cumprir um
trabalho proveitoso e fecundo para a democracia” (pág. 300).
Como, portanto, atingir “o próprio da democracia”, que é “de fortificar e
de excitar no indivíduo a aptidão intelectual para a crítica e o controle” (pág.
301)? "O ideal absoluto, confessa Michels, seria uma aristocracia de homens
moralmente bons e tecnicamente capazes.” Teria ele se juntado aos “elitistas”,
Mosca e Pareto, ao lado dos quais se tomou - erradamente - o hábito de

812
colocá-lo? Não. Pois ele não tem nehuma ilusão: "Mas onde encontrar essa
aristocracia?" (pág. 302), pergunta ele logo, para constatar que aí não está a
solução. Será então possível, a despeito da "imaturidade objetiva das massas” (na
qual se enraíza a liderança) encontrar procedimentos eficazes de controle dos
governantes? Michels consagra um capítulo inteiro à questão do referendum
para concluir que ele também pode ser desviado e manipulado. Talvez, então,
exista um outro tipo de organização diferente do partido político, que escape à
esclerose, ao desaparecimento progressivo dentro do conservadorismo e do
aburguesamento de seus dirigentes? Nesse ponto intervém o encontro com os
sindicalistas revolucionários. Michels acreditou por um momento que o sindica­
lismo poderia fornecer um meio de contornar as oligarquias e de restaurar “o
ideal prático da democracia (que) consiste no autogovemo (self-government) das
massas, de acordo com as decisões das assembléias populares” (pág. 27). Porém,
essa esperança foi de curta duração. Desde março de 1907, ele debateu sobre
esse assunto com Edouard Berth em O Movimento socialista. Berth tinha escrito
que só a ação direta permitiria à classe operária agir na qualidade de “massa
autônoma e não representada” porque "representação significa, necessaria­
mente, traição, desvio, aburguesamento”. Mas por que, replicou Michels, “Berth
aplica arbitrariamente suas teorias só ao partido? A ação direta tem necessidade
das organizações econômicas, do sindicato. Os sindicatos sem ‘representantes’,
sob qualquer forma que seja, ainda não foram criados! Berth não aprofundou
sua tese. Em vez de dizer: ‘O partido engendra o aburguesamento’, ele deveria
ter dito: ‘A organização engendra o aburguesamento e o desvio.’ Mas o princípio
da organização abraça igualmente o partido e o sindicato. O problema a resolver
(...) consiste antes de tudo em encontrar um meio de reagir contra os defeitos
imanentes de toda organização, de toda representação. Essa reação chama-se
o sindicalismo. Mas já que ele se serve, também, de entidades baseadas sobre o
princípio da representação (os empregados dos sindicatos), ele traz, também, em
si, sua antinomia cruel... “Esse é um problema a resolver, mas ainda não
resolvido.” Quatro anos mais tarde, ele já não o era mais. Interrogando-se, em Os
partidos políticos, sobre “a ação profilática do sindicalismo” face ao poder
excessivo dos chefes, Michels deplorou, com Georges Sorel, a “degenerescência
progressiva do sindicalismo” em “governo operário” (pág. 261). Quanto ao
autogovemo, ele devia admitir que “se é verdade que esse sistema limita a
extensão do princípio da delegação, ele não oferece, em compensação, nenhuma
garantia contra a formação de um estado-maior oligárquico. (...) De um lado, a
massa se deixa facilmente sugestionar pela eloqüência de potentes oradores
populares; e, de outro lado, o governo direto do povo, com seu sistema que não
admite nem discussões sérias, nem deliberações refletidas, facilita singularmente
os golpes que os homens excepcionalmente audaciosos, enérgicos e hábeis
poderiam tentar” (pág. 27).
Seria, portanto, preciso resignar-se, a que o sistema democrático se
reduz, "em última análise, ao direito que possuem as massas de eleger, a
períodos determinados, chefes aos quais eles devem nesse intervalo obediência
absoluta”? (pág. 162). Tais propostas irritavam Max Weber, que só tinha pouca

813
simpatia pelas versões fundamentalistas clássicas da democracia saídas dos
princípios de Rousseau (Mommsen, 1981). “Esses conceitos de ‘vontade do
povo’, ‘verdadeira vontade do povo’, etc., não existem mais para mim há muito
tempo. São ficções”, escrevia ele a Michels, em 4 de agosto de 1908. A despeito
dessas divergências, Michels continuou a sacrificar muito à ética de convicção,
correndo o risco de enfraquecer a importância teórica de sua obra. A impor­
tância de Michels, afirmou David Beetham, reside menos na originalidade de
seu pensamento do que em sua notável capacidade de sintetizar as idéias dos
outros (Beetham, 1981). Mais tarde, sua adesão ao nacionalismo italiano
(depois de 1911) e sua busca jamais desmentida de uma democracia ideal iriam
fazê-lo um partidário de Mussolini. O “chefe carismático”, era assim que ele
designava o Duce, tomando emprestado de Weber seu conceito de carisma sob
uma forma que esse teria provavelmente recusado, havia inventado uma nova
forma de relações com as massas? Michels, no entanto, havia, ele próprio,
enfatizado os perigos do “governo direto” do povo tal como ele foi exercido do
balcão da Praça de Veneza. Mas (pressentimento?) ele havia também escrito,
no fim de Os Partidos políticos, que a “ditadura demagógica, mesmo a mais
revoltante”, abriga em seu “organismo corrompido (...) um princípio são que
permite esperar sua cura.” O facismo ocultava este misterioso “princípio são”
sobre o qual ele não dava outros esclarecimentos?
Michels não se colocou a questão de saber se o sistema do partido único,
consubstanciai ao fascismo, era compatível com a democracia à qual ele
aspirava. Toda sua análise, centrada - desde Os partidos políticos - sobre o
problema da democracia no interior de uma organização, iludiu a questão da
competição pluripartidária. Daí as interrogações suscitadas pela extrapolação
de suas hipóteses para uma reflexão global sobre a democracia. Como escreveu
Seymour Martin Lipset, “uma pluralidade de organizações oligárquicas per­
mite manter a democracia política dentro do conjunto da sociedade” (Lipset,
1961). O trabalho de Michels sofre, nesse plano, de uma inegável lacuna.
Roberto Michels foi rapidamente decepcionado pelo facismo como ele já
o fora pela socialdemocracia. Mas ele próprio não havia declarado que “as
correntes democráticas constatadas na história parecem-se com ondas que se
seguem. Elas se quebram todas contra o mesmo rochedo. E a todo instante
elas são produzidas de novo. É um espetáculo ao mesmo tempo reconfortante
e entristecedor”?•

• Zur Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie. untersuchungen über die
aligarchischen Tendenzen des Gruppenlebens, Leipzig, Dr. Werner Klinkhardt, Philosophisch-
soziologische Bürcherei, 1911, 402 págs. Segunda edição aumentada, Leipzig, Alfred Krõner,
1925, 528 págs. Tradução francesa de S. Jankélévicth, Les partis politiques. Essai sur les
tendances oligarchiques des démocraties, Paris, Flammarion, “Bibliothèque de Philosophie
scientifique”, 1914, 314 págs. De acordo com a correspondência Michels-Le Bon, conservada
(com o conjunto dos Arquivos Michels) pela Fondazione Einaudi de Turim, parece que essa
tradução foi feita sobre a primeira edição italiana. Le Bon tinha exigido uma redução do texto,
e os cortes foram indicados pelo próprio Micheis. Foi infelizmente essa tradução muito errônea,

814
amputada de uma parte do texto e da totalidade das notas, que foi retomada em livro de bolso,
sempre pela Flammarion, em 1971, com um prefácio de René Rémond. Ela só é citada aqui por
motivos de comodidade. Atualmente, o texto de referências é o da segunda versão italiana,
estabelecida a partir da edição alemã de 1925, e retomada com um notável prefácio de Juan
Linz: L a s o c io lo g ia d e i p a r tid o p o lític o n ella d e m o c r a z ia m o d e r n a , Bolonha, II Mulino, 1966,
CX1X-558 págs.

► A revisão dos P a r tis p o litiq u e s por Georg Lukács foi publicada no A rc h iv fü r d ie G esch ich te
d e s S o z ia lis m u s u n d d e r A rb e ite rb e w e g u n g , XIII (1928), págs. 309-315; Caetano Mosca,
E le m e n ti d i s c i e n z a p o lític a , 1896 (ed. abreviada, L a c la s se p o lítica , Bari, Laterza, 1975, 296
págs.); Wolfgang Mommsen, Max Weber and Roberto Michels. An asymetrical parthership,
A r c h iv e s e u r o p é e n n e s d e so c io lo g ie , XII (I), 1981, págs. 100-116; e Roberto Michels and Max
Weber moral conviction versus the politics of responsability, em Wolfegan Mommsen and Jugen
Osterhammel, M a x W eber a n d h is c o n te m p o ra r ie s, Londres, Allen and Unwin, 1987, págs.
121-138; David Beetham, Michels and critics, A rc h iv e s e u r o p é e n n e s d e so c io lo g ie , XXII (I),
1981, págs. 81-93; Seymor Marin Lipset, introdução a P o litic a l P a rties, Nova Iorque, Free Press,
1962,382 págs (a tradução americana do livro foi bizarramente calcada sobre a versão francesa).
A obra de Michels foi recentemente objeto de um novo ganho de interesse. Só foi voluntaria­
mente citada aqui a última conferência cujas atas foram publicadas: Atti dei Convegno su
Roberto Michels nel 50s anniversario delia morte, em A n n a li d i S o c i o lo g i a / S o z io lo g is c h e s
Jah rbu ch , Universitá di Trento, 2, 1986,1,304 págs.

Jean-Luc POUTHIER.

MILL, John Stuart, 1806-1873


A liberdade, 1859

Poderia parecer paradoxal escolher On liberty no conjunto da obra política


de John Stuart MilI, na medida em que foram, sem dúvida, suas Considerações
sobre o governo representativo que fizeram dele uma espécie de autor canônico
do pensamento liberal inglês. Notemos, entretanto, que, de maneira geral, as
concepções da representação estão ligadas, como assinala Hannah Pitkin, a
visões mais amplas sobre o próprio sentido das motivações políticas, à função da
sociedade ou à natureza do homem. Estes últimos elementos formam o que ela
chama para cada autor sua “metapolítica” (Pitkin, 1967, pág. 146). Quanto a John
Stuart Mill. trata-se. exatamente no caso de On liberty, da matriz que dá sentido
a todo o edifício político de sua maturidade e de algo mais que é o fato de este
último estar em oposição às teses defendidas em suas primeiras obras. Se, nos
anos trinta, realmente, Mill colocava à frente a liberdacTe-autonomia e o papel
necessário das elites dentro da representação, seu pensamento dos anos sessenta
repousa sobre uma concepção da liberdade-participação estendida de uma
minoria ao conjunto do corpo social. Entre os primeiros textos e as Conside-

815
rações, Mill escreveu sua lógica e sua economia política, mas principalmente uma
obra em que ele tenta responder a um duplo desafio: conceber, no sentido de
Benjamim Constant, a liberdade dos Modernos, mas também fazer de talmodo
quêela deixe âesér o feito de um pequeno número de cidadãos esclarecidos para
se estender a todos. Dentro da primeira dimensão,~e ahistória que é objeto e
pode-se avançar que todo pensamento político de Mill se enraíza na vontade de
compreender como a tirania pode não ser mais, como em Locke, o desvio ou a
í captação do poder por aquele que dele dispõe (Segundo tratado do governo
civil, cap. XVIII), mas a ação do povo sobre si mesmo.
Aos fantasmas do Terror que assombram todo o pensamento do século
XIX, Mill recusa, no entanto, opor o retorno à ordem antiga ou o curvar-se às
tradições. Ele se quer decididamente moderno e. para isso, tenta conciliar a
democracia e a liberdade. Aqueles que pretendem impor ao povo sua própria
felicidade, ele opõe a procura das condições que lhe poderiam permitir
inventá-la apenas. Àqueles que vêem a liberdade como frágil demais para ser
partilhada, ele opõe uma concepção dessa que abre sobre sua universalidade.
O John Stuart Mill de 1859 que escreve On Liberty, partindo da idéia de
felicidade dentro da proteção, chega à da liberdade na confrontação das diferen­
ças. Por uma teorização do papel positivo do antagonismo, pode, então, tentar
repensar as condições modernas da política, sob a exigência da liberdade.
O pontod e partida desse autor em A Liberdade é uma reflexão sobre as
condiçõesTo sentido da realização da felicidade pública. O pensamento ufi-
litarista inglês tinha realmente desenvolvido uma filosofia política que se pode
analisar, após Elie Halévy. em três tempos.
O objetivo é atingir “a maior felicidade de todos os indivíduos” ou, ao
menos e levando-se em consideração a raridade dos recursos, "a maior
felicidade do maior número possível” (Halévy, 1904, III, pág. 175). A isso se
opõe, no entanto, a constatação da universalidade do amor próprio, do
egoísmo individual que faz com que não se possa afirmar a absoluta e natural
identidade dos interesses. É forçoso, portanto, considerar uma solução que se
torne princípio, a da "identidade artificial dos interesses”. O problema essencial
é, então, criar condições tais que o interesse individual possa coincidir com o
interesse geral, ou seja, em matéria política, o dos governantes com o dos
governados. E o sistema dito "democracia pura representativa” que realiza
essas condições e permite a James Mill dizer que a representação é “a grande
descoberta dos tempos modernos” (James Mill, 1976, pág. 13). Essa permite
realmente a adequação dos interesses dos governantes e dos governados: aos
primeiros, deixa uma latitude importante de ação, pelo menos no quotidiano;
aos segundos, assegura a possibilidade de um controle conveniente ao princí­
pio de economia pela minimização do custo da representação. Suas relações
dentro desse quadro se caracterizam pela limitação máxima da confiança, pelo
fato de a questão política voltar a "impedir aqueles entre as mãos de quem são
colocados os poderes necessários à proteção de todos de fazer deles um mau
uso” (ib id pág. 5). Pode-se constatar no primeiro instante que essa concepção,
que repousa finalmente sobre o princípio de maioria, é muito diferente de
todas as teorias da limitação necessária do poder. Mais ainda, seu correlato é
que, segundo os termos de John Stuart Mill, "os povos não têm necessidade
de limitar seu poder sobre si mesmos” (John Stuart Mill, 1975, pág. 8). Ele nota
logo a ambigüidade, até mesmo o perigo de tal concepção, na medida em que
ela não poderia evitar a ditadura de uma minoria em nome do interesse do
povo. Mill analisa, então, da maneira seguinte as conseqüências do princípio
de identidade dos governantes e governados: “Percebe-se, então, que frases
como ‘o governo de si’ e ‘o poder do povo sobre si mesmo’ não exprimiam o
verdadeiro estado das coisas. O ‘povo’ que exerce o poder não é sempre o
mesmo povo sobre o qual o poder é exercido; e o ‘governo de si’ do quaH e
fala não é o governo de cada um por si mesmo, mas de cada um por todos os
outros. A vontade do povo, na maioria das vezes, significa na prática a vontade
da parte mais numerosa e mais ativa do p o v o a i” (ibidem). A conseqüência é
clara: o povo pode querer oprimir uma parte de si mesmo, e a tirania pode
renascer, transformada, deslocada do désposta solitário para a maioria ou
mesmo uma minoria ativa.
Uma tensão parece se colocar, portanto, entre dois valores: a felicidade f y 5
do maior número e a autonomia do indivíduo. Quando ele afirma que existe
um "limite para a legitimidade da ação da opinião coletiva sobre a inde­
pendência individual” (ibidem, pág. 9), Mill parece em completa reação contra
o que ele considera o pensamento comum dos democratas da geração que o
precedeu. Porém ele logo acrescenta que a questão, longe de ser abstrata, é
prática e deve ser colocada em termos "de ajustamento entre independência
individual e controle social” (ibidem). Há, para ele, urgência em resolver essa
questão que, aliás, se inscreve dentro de uma periodização da história do
pensamento político. A primeira geração dos liberais, que opunha à tirania dos
governantes direitos políticos e freios constitucionais, foi sucedida, na verdade,
por aquela para quem o ideal se tornava a identidade da sociedade com ela
mesma, quer ela seja efetuada pela democracia direta ou por um tipo de
representação tal que realiza essa identidade dos interesses dos governantes e
dos governados. A crítica de Mill do despotismo possível das mdiorias vale,
portanto, contra uma e outra tese, e pode-se pensar que ele a aplica, em
particular, ao Terror. Além disso, no contexto mais próximo de Mill, ela é
voltada para os utilitaristas que opunham à noção de equilíbrio dos poderes
ou de governos mistos a idéia de uma soberania absoluta de um corpo
legislativo que exprimiria a vontade do povo sob o único controle daquilo que
Bentham chama de “o tribunal da opinião” (Halévy, 1904,111, pág. 189).
À uma teoria política construída sobre o valor central da felicidade pública
e um edifício governamental que decorre dela diretamente, John Stuart Mill opõe
um outro valor, a liberdade, da qual ele se aproxima pelo aspecto do indivíduo.
Ela tem para ele daí em diante uma dimensão universal, e ele é particularmente
severo face àqueles heréticos que defendem a liberdade para eles mesmos sem a
estender a todos e a todo pensamento. Àquilo que se poderia chamar de a lógica
do sectarismo, Mill opõe aqueles que “afirmaram a liberdade de consciência como
um direito indestrutível e negam absolutamente que o ser humano seja res-
ponsável por suas crenças religiosas face aos outros” (Mill, 1975, pág. 13). Sem
dúvida nenhuma, faz-se aqui alusão a John Locke que, em sua Carta sobre a
tolerância, de 1689, se levantava contra as práticas “dos governantes com
relação ao povo em geral”, mas também “seitas não-conformistas com relação a
uns e outros” e valia-se daquilo que ele chamava uma “liberdade absoluta, uma f
justa e verdadeira liberdade igual e imparcial” (Locke, 1980, pág. 10).
pensamento de Mill em 1859 se inscreve como um protesto em nome do
indivíduo face à opressão do corpo social, como um retorno aos fundadòresdo
' liberalismo co n trai radicalismo dos utilitaristas. Esse protesto contra o “des*
potismo da sociedade sobre o indivíduo” (Mill, Í975, pág. 19) esclarece sobres,
uma definição simples da liberdade: “Procurar nosso próprio bem à nossa própria *
maneirei, por todo o tempo em que não tentarmos privar os outros do deles ou
entravar seus esforços para obtê-lo” (ibidem, pág. 18).
Essa definição tem como característica colocar a liberdade do indivíduo
imediatamente em sua relação com o outro: minha liberdade, diz em resumos*,
Mill, não é somente meu direito de agir, como eu o compreendo, para reaíiizãr
meus fins pessoais, mas também só é possível dentro da existência estritártrefíte
idêntica desse direito para o outro. Essa concepção esclarece, do ponto de vista
do indivíduo, sobre a afirmação de uma esfera de autonomia que deve. seif,
protegida de toda invasão (ou usurpação). Ela permite, aliás, definir, além da o ,,
liberdade, liberdades que Mill descreve sob duas categorias, o p e n s a m e n t o s i
r /* ação. Com a primeira se encontra colocada uma total liberdade de consciênéfáy''
i.V' uma “absoluta liberdade de opinião”, com suas conseqüências em matéria de
expressão e de publicação. Sob a segunda, Mill desenvolve a idéia essencial da ,V: r
possibilidade de “construir o plano de nossa vida”, sozinhos ou associados a'
outros (ibidem, pág. 18). Tal afirmação, que está no centro do pensamento de
Mill, repousa sobre o que se poderia chamar de uma concepção aberta da
natureza humana. Essa, realmente, longe de ser única, é diversa e irredutível,!
a qualquer modelo que exista, seja ele o feito do príncipe, do poder espiritual
ou do conformismo moral. Na verdade, diz Mill, “não há razão para que todass
as experiências humanas sejam construídas sobre o mesmo modelo ou sobre,
um pequeno número de modelos. Se uma pessoa possui uma quantidade
razoável de senso comum e de experiência, sua própria maneira de organizar
t á
sua existência é a m elh o r, nãn pn^giip seja a m plh o r em si mesma, mas porque
ela é a sua” (Mill, 1975, pág. 83).
Mill, entretanto, leva mais longe a reflexão, considerando uma segunda
conseqüência de sua definição de liberdade, sob o registro das relações do
homem com o corpo social. No caso, por mais que seja necessário que se
impeçam eventuais abusos de cada um face aos outros, o problema será o da
legitimidade de uma coação exercida sobre o indivíduo pela sociedade. Mill define
o princípio assim: “O único fim que autoriza os homens, individual ou coletiva­
mente, a interferirem na liberdade de ação de qualquer um entre eles é a própria
proteção. O único fim para o qual o poder pode ser legitimamente utilizado por
uma comunidade civilizada contra um de seus membros a despeito de sua
vontade é para impedi-lo de prejudicar outro ou outros" (Mill, 1975, pág. 15).

818
Nesse nível surge sem dúvida uma dificuldade que resulta da delimitação precisa
e da liberdade de ação de cada um e da esfera intocável da liberdade dos outros.
Duas idéias guiam Mill nessa reflexão sobre as relações do indivíduo com a
sociedade. Positivamente, esta última pode e deve intervir cada vez que a
liberdade é atingida ou afetada; negativamente, entretanto, “há uma esfera de
atividade na qual a sociedade, como algo distinto do indivíduo, só tem um ' ^
interesse indireto” (ibidem, pág. 17). Dois elementos, portanto, são adiantados, ^
um direito e um princípio, que é a utilidade. Toda a questão está em saber até^ ^ i ^
onde e como eles se aplicam. Pode-se pensar que a delimitação proposta ou, pelo
menos, esboçada por Mill não é inteiramente satisfatória, como testemunharia,
por exemplo, a posição da troca econômica (Manin, 1984, págs. 15 e 18). De um
lado, realmente, o do direito e da liberdade, “o comércio é um ato social” e, por
esse fato, vender um bem qualquer “toca o interesse dos outros e da sociedade
em geral” (Mill, 1975, pág. 116). Poder-se-ia, então, esperar a justificação da
intervenção econômica do Estado. Entretanto, Mill faz logo referência a um outro
princípio, a utilidade, e faz notar que o mecanismo da troca-livre é o que
“assegura o bom mercado e a melhor qualidade dos produtos, deixando produ­
tores e vendedores perfeitamente livres, sob o freio da liberdade igual para o
comprador de se abastecer noutro lugar” {ibidem). Pareceria, portanto, que Mill
tenta escapar da questão da intervenção do Estado na vida econômica por um
deslizamento de um para outro dos dois níveis de análise distintos.
Além disso, ascoisas talvez sejam um pouco mais complexas, na medida
em que Mill tenta ultrapassar a rígida oposição do indivíduo e do Estado,
considerando a possibilidade de uma auto-organização do corpo social. Com
efeito, diz ele, “a liberdade do indivíduo para o que concerne àquilo em que só
ele está em questão implica uma liberdade que lhe corresponde, para qualquer
número que seja de indivíduos, regular por uma convenção mútua das coisas
que lhes dizem respeito a todos conjuntamente e não dizem respeito a outros"
(Mill, 1975, pág. 125). Pode-se ir mais longe ainda e interrogar não mais sobre
a capacidade do Estado de intervir pela coação, mas sobre seu papel para
eventualmente ajudar os indivíduos. A questão é, então, a de saber se é bom
que essa ajuda venha do Estado ou da própria sociedade por sua própria
organização. A resposta de Mill é claramente a favor do segundo termo da
alternativa. O argumento que ele adianta em favor dessa tese, importante e de
alcance mais geral, repousa sobre o que se poderia chamar de a virtude
educativa do auxílio mútuo entre cidadãos, de maneira privada ou por meio de
associações. Mill não aborda de frente a questão dos direitos sociais, mas
coloca sobre o mesmo plano a gestão pelos cidadãos das instituições locais e
sua participação em associações, filantrópicas, por exemplo, e isso que ele
chama uma “questão de desenvolvimento”: esses assuntos, efetivamente,
“tiram os homens para fora do círculo estreito de egoísmo deles próprios e de
suas famílias e os acostumam à compreensão dos interesses coletivos, habi-
tuando-os a agirem por motivos públicos ou semipúblicos e a se comportar em
função das metas que os unem mais do que os isolam uns dos outros” {ibidem,
pág. 134). Em outros termos, para evitar a intervenção do Estado, que julga

819
nefasto, Mill visa a uma educação moral da sociedade por ela mesma que
levaria os homens a se associarem e a se ajudar mutuamente. Portanto, não se
trata aqui de “direitos de crédito”, de direitos que o indivíduo poderia
reivindicar em direção ao Estado; a função deste último se limita à proteção
dos “direitos de liberdade” pois ela própria traça a fronteira das esferas de ação
do indivíduo e de intervenção da autoridade (cf. sobre esse ponto Manin, 1984,
pág. 12, e Ferry, Renault, 1985, pág. 134).
Assim, como acontece em matéria econômica e social, Mill tenta ultrapas­
sar a rígida oposição entre os indivíduos e o Estado, pela tomada em conside­
ração de uma autonomização da sociedade. De maneira mais geral, pode-se
pensar que o que o preocupa principalmente é a oposição da unidade e da
diversidade. Quando crítica a tirania das maiorias, o conformismo moral, a
religião ou o Estado, Mill teme no fundo a mesma coisa, uma redução da
diversidade ao único. A consciência que tem do progresso que representa a
época da democracia com relação àquela do obscurantismo e do despotismo
se faz acompanhar do temor ao retorno, sob certas condições, de uma forma
nova de integração que reduziria ainda mais o indivíduo a um modelo. Sua
reflexão a esse respeito está no mesmo passo da de Tocqueville.
Ao contrário da tendência à uniformidade, John Stuart Mill valoriza, de
acordo com sua concepção da natureza humana, a diferença. Sua posição é
particularmente clara naquilo que concerne à liberdade de opinião. E, na
verdade, porque a espécie humana não é "infalível” que a "unidade de opinião
não é desejável” (Mill, 1975, pág. 70) e isso a respeito de duas coisas. Por um
lado, a liberdade de professar qualquer opinião que seja está de acordo com o
princípio geral de liberdade, exatamente como o está a de dirigir toda “experiên­
cia de vida” (ibidem). Por outro lado, a diversidade e, mesmo indo mais longe, a
confrontação das opiniões são fatores de progresso. O que é tido como verdade,
diz realmente Mill, é só na realidade e na maioria das vezes uma meia-verdade,
e o conformismo com esse ponto de vista só pode conduzir à perpetuação do
erro. Ao contrário, a verdade quanto a ela só pode surgir da confrontação, da
discussão, da prova de refutação. “Há, diz Mill, a maior diferença entre presumir
uma opinião como verdadeira porque, tendo tido todas as oportunidades de ser
contestada, ela não foi refutada, e afirmar sua veracidade a fim de não permitir
sua refutação” (Mill, 1975, págs. 26-27). Existe aqui, sobre uma concepção iógica
da verdade, uma teoria da razão da qual Karl Popper ampliará o alcance, em que
se baseia Mill para defender a liberdade de pensamento e de discussão e, dentro
do mesmo movimento, assentar sua valorização da diversidade face à uniformi­
dade. Porque não se pode dizer nunca, com certeza, que mesmo o indivíduo
isolado que se oporia a todos os outros estaria absolutamente errado, é necessá­
rio deixá-lo defender sua opinião dissidente. Porque, por outro lado, a história
mostra que a opinião é relativa às épocas e aos lugares (Mill, 1975, pág. 27), a
tradição, o costume e o conformismo a que elas conduzem são contrários aos
progressos do homem. E, se os séculos passados impunham pela coação a
conformidade das maneiras de viver e de pensar, o perigo da época moderna,
como era das multidões, poderia ser o de reinventar sob o reinado da opinião

820
pública, pela mediocridade, uma nova redução da diversidade humana à unidade
(ibidem, págs. 75, 76 e 81). Da mesma maneira que Tocqueville temia que se
inventasse pela apatia, fruto da “igualdade de condições”, uma forma insidiosa
de despotismo, Mill, por sua teorização do papel positivo do antagonismo, tenta
repensar sobre as condições modernas da política sob a exigência de liberdade.
“Quero imaginar sob que feições novas o despotismo poderia ser produzido
no mundo: vejo uma multidão inumerável de homens parecidos e iguais, que
giram sem descanso sobre si mesmos para conseguir pequenos e vulgares
prazeres, com os quais eles preenchem suais almas. Cada um deles, isoladamente,
é como um estranho na existência de todos os outros, seus filhos e amigos
particulares formam para ele a espécie humana [...] Acima disso, se eleva um
poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de assegurar seus prazeres e
de zelar por sua sorte. Ele é absoluto, detalhado, regular, previdente e terno. [...]
Ele trabalha de boa vontade para suas felicidades; mas será que ele não quer ser
o único agente e o único árbitro, [...] que pode lhes tirar inteiramente a
perturbação de pensar e a dificuldade de viver?” (Tocqueville, 1951, II, págs.
432-433). Pode-se adiantar que Mill, admirador, correspondente e um dos mais
finos leitores de Tocqueville, quando tenta basear as formas e as condições
modernas da liberdade, pensa a partir das análises do autor de A democracia na
América. E justamente porque ele teme o despotismo das maiorias em nome da
felicidade comum que reforça o direito das minorias no da liberdade, porque vê
no conformismo a fonte de uma passividade, que ele valoriza “a excentricidade”
(Mill, 1975, pág. 83). É também porque vê na não-divisão da sociedade a fonte de
desvios despóticos que enfatiza a positívidade dos antagonismos. Em On Liberty,
como se viu, Mill coloca na frente o antagonismo das opiniões ao mesmo tempo
do ponto de vista de uma visão aberta da natureza humana (que esclarece sobre
o direito deixado a cada um'de realizar ou mesmo de experimentar sua vida como
pretende) e do ponto de vista de uma concepção da verdade como descoberta
que só pode vir da confrontação, do debate, da refutação progressiva do erro.
Toda verdade revelada, todo dogma, todo preconceito são então contrários ao
desenvolvimento humano. Nas Considerações sobre o governo representativo,
que lhe são imediatamente posteriores (1861), Mill leva em conta a idéia de
antagonismo dos interesses e da necessidade de suas representações. Parece que
para ele a diversidade das situações dos indivíduos ou das classes não é
condenável, mas, presa a um outro nível que não o do julgamento de valor, ela
pode ser concebida como um fermento de atividade da sociedade. Com efeito,
Mill escreve, "ali onde existe um desejo de vantagens nâo-possuídas, o espírito
que não dispõe de meios de os adquirir por seus próprios esforços é levado a
olhar com raiva e malícia aqueles que as possuem. O homem que, quanto a si
mesmo, se movimenta dentro da esperança de melhorar sua situação, se sente
levado à benevolência para com aqueles que estão empenhados em direção à
mesma meta ou que já a atingiram” (Mill, 1975, pág. 192). Mill, nesse caso, coloca
à frente duas idéias importantes: de um lado, de maneira certamente indireta, a
idéia de uma positívidade da diversidade das situações; do outro, a necessidade
de uma atitude ativa do povo. Sobre o primeiro ponto, convém notar que essa

821
positividade do antagonismo dos interesses só pode ser efetiva se todos eles
forem representados e defendidos. Em outras palavras, quando trata, por
exemplo, da questão operária, Mill insiste sobre a necessidade para essa classe
de ser representada, por um lado, e de sê-lo por ela mesma, de outro lado, na
falta do que os parlamentares não poderiam “observar as questões com os olhos
dos operários” (ibidem, pág. 188). No que concerne ao segundo ponto, Mill
transpõe em política a oposição da unidade e da diversidade, que se torna então
a da passividade e da atividade. Realmente, já que, mesmo sob um governo
despótico, o povo é passivo e já que o perigo de uma democracia mal compreen­
dida seria o de recriar pela apatia uma outra forma de passividade, o princípio
essencial do bom governo é favorecer a atividade do povo. Mill mostra isso
criticando as concepções morais que valorizam a passividade e indicando que “a
inércia, a falta de aspiração, a ausência de desejo são um obstáculo mais fatal ao
progresso do que toda energia mal dirigida” (ibidem, pág. 195), já que "as
qualidades benéficas estão do lado do caráter ativo e enérgico” (ibidem, pág.
191). Mas, principalmente, quando ele define no início da obra as condições do
bom governo, faz tudo repousar sobre a atividade do povo. Essas condições são
em número de três: “O povo a quem se destina a forma de governo deve querer
aceitá-lo [...]; deve ter a vontade e a capacidade de fazer de tal maneira que
mantenha sua existência; deve ter a vontade e a capacidade de fazer o que for
necessário para que ele possa atingir seus fins” (ibidem, pág. 148). E o autor
acrescenta que “o verbo ‘fazer’ deve ser entendido como significando tanto
abstenção quanto ação”. Portanto, está claro que o âmago da noção de repre­
sentação defendida aqui por esse autor está na idéia de atividade, de uma vontade
efetiva e eficaz, de uma participação. Essa tese chama várias observações. Antes
de tudo e de maneira geral, é preciso notar que “representação” não implica
necessariamente participação ativa do povo. Como Hannah Pitkin o indica, esse
conceito comporta uma ambigüidade ligada ao fato de “tornar presente em certo
sentido alguma coisa que, no entanto, não está presente, literalmente ou de fato”
(Pitkin, 1967, págs. 8-9). E a ambigüidade etimológica se transpõe para o que
concerne à atividade política que recobre o conceito, e é por isso que ele coloca
em uso dois tipos de atores: representante e representado. Quanto ao primeiro,
deve "agir de maneira independente; sua ação requer liberdade de ação e de
julgamento; deve ser o único que age”. No entanto, o representado deve também
“ser concebido como capaz de ações e de julgamentos independentes e não,
somente, como alguém de quem se toma conta” (ibidem, pág. 209).
A atividade de representação se desenvolve, portanto, sob tensão entre
dois princípios: o de participação do povo e o de competência das elites, as
teorias da representação podendo ir de uma concepção totalmente fideísta (que
prefere a fé à razão) dela (os representantes agem, então, guiados por seu
julgamento apenas, o povo confiando neles) a aquelas em que diversos
procedimentos são utilizados para assegurar o controle permanente dos
mandatários sobre os eleitos. É claro que a teoria da representação que Mill
defende em 1861 e que está inteiramente baseada sobre os princípios cons­
truídos em On Liberty está mais do lado das segundas, em todo o caso, em

822
ruptura com o princípio exclusivo da competência das elites. Entretanto, é
interessante notar que se trata aí de uma ruptura dentro da obra de Juhn
Stuart Mill e de uma nítida distância tomada face a um Tocqueville que
inspirava seus primeiros escritos.
Os primeiros textos políticos de Mill marcavam realmente uma recusa
muito nítida da democracia de massa em nome da preservação da autonomia
das elites. Num texto de 1835, consagrado a A Democracia na América, onde
resenha o livro de Tocqueville, ele desenvolveu uma idéia simples: “O bom
governo deve ser aquele dos mais sábios” (Mill, 1973, pág. 195). A diferença
entre tirania e democracia, dizia ele então essencialmente, é que na segunda o
povo deve ter a segurança de um bom governo e o controle último desse, seu
único poder, devendo ser a possibilidade de demitir seus governantes, “quando
sua devoção aos interesses do povo for questionável ”(ibidem). Essa forma de
controle, acrescentava ele, não é mais inútil do que aquela da qual dispõe o
doente face a seu médico, em quem confia e do qual está livre para se separar
se não estiver mais satisfeito. O princípio político, então, era simples: “O
interesse do povo é de escolher para seus governantes os seres mais instruídos
e mais capazes que se possa encontrar, e, tendo-o feito, permitir-lhes exercer
sua instrução e capacidade livremente para o bem do povo com o menor
controle possível —por todo o tempo em que for o bem do povo e não algum
fim privado que eles persigam” (ibidem, págs. 195-196). Essa tese de Mill
inspirada em Tocqueville devia, aliás, receber o consentimento deste último
que afirmava, em uma carta ao autor, se reconhecer na distinção operada entre
representação e delegação (a concepção imperativa do mandato defendida
pelos radicais). Tocqueville esclarecia, então, essa tese da maneira seguinte:
“Trata-se bem menos, para os amigos da Democracia, de encontrar os meios
para fazer governar o povo do que fazer o povo escolher os mais capazes de
governar e de lhes dar, então, um império suficientemente grande para que
possa dirigir o conjunto de suas condutas e não o detalhe dos atos nem os
meios de execução” (Tocqueville, 1954, págs. 303-304).
Em um texto de alguns anos antes (The Spirit o f the Age, 1831 — O
Espirito da Época) e dessa vez com certeza inspirado por Augusto Comte, Mill
tinha desenvolvido a idéia da necessidade de um poder espiritual próprio aos
“estados naturais” opostos aos “estados de transição”. Mesmo quando a
desordem caracteriza os primeiros (“período de transição moral e social”), nos
segundos “existe um grande corpo de doutrinas recebidas, que cobre quase
todo o campo das relações morais do homem e que ninguém sonha pôr em
questão, pelo fato de estar baseado sobre a autoridade de todos aqueles ou de
quase todos aqueles que supostamente dispõem de conhecimentos suficientes
para dar uma opinião sobre esse assunto” (J. S. Mill, 1973, págs. 15-16). E
interessante notar que para Mill, nesse estado das sociedades, o povo aceita as
leis e instituições, as quais enquadram perfeitamente o conflito das ambições
individuais, governantes e governados deixando, então, a sociedade estável ou
em marcha harmoniosa para um progresso que respeita “a ordem estabelecida
das coisas” (ibidem, pág. 17).

823
Nos anos trinta, o jovem Mill estava, portanto, nitidamente do lado da
valorização das elites contra a participação das massas e se inscrevia dentro
de uma crítica conservadora dà representação tal como a definiam Bentham e
James Mill, como devendo “minimizar a confiança”. Era em ruptura completa,
senão com os princípios de base do utilitarismo, pelo menos com o radicalismo
democrático que lhe estava associado, que Mill fazia referência ao necessário
juramento de fé do povo a seus governantes, como testemunha uma carta de
novembro de 1829 a Gustave d’Eichthal, na qual ele escrevia: “O povo, isto é,
aqueles que não são instruídos, deve manter o mesmo sentimento de deferên­
cia e de submissão à autoridade daqueles que o são, em moral e em política, o
que faz presentemente naquilo que concerne às ciências físicas” (Mill, 1963,
pág. 40). No entanto, desde 1835, ele começou a revisar sua concepção política
e, mediante a exposição a evidências, orientou-se para a formulação de um
problema que iria ocupar o resto de seus trabalhos. “A grande dificuldade em
política, escreveu então, vai ser, por muito tempo ainda, saber como conciliar
os dois grandes elementos dos quais depende um bom governo; combinar o
máximo possível das vantagens que derivam do julgamento independente de
um pequeno número particularmente instruído com o grau mais elevado de
segurança para esse desígnio que consiste em tornar esse pequeno número
responsável diante de todos” (Mill, 1977, pág. 24).
É tendo em vista essa questão que Mill chega a ponto reformular a questão
da liberdade. Pode-se, então, colocar a hipótese de que, com On Liberty, ele tenta
precisamente fundar uma síntese das duas exigências, e isso deslocando a
problemática da finalidade e da função do político tal como a haviam deixado os
utilitaristas. James Mill definia realmente a motivação da seguinte maneira: “toda
a difícil questão do governo resume-se na dos meios de impedir aqueles nas mãos
de. quem estão colocados os poderes necessários à proteção de todos de fazer
mau uso deles” (An Essay on Gouvernement, em James Mill, 1976, pág. 5).
Enquanto toda a técnica utilitarista repousava sobre uma função de proteção do
povo e de seus interesses (sua felicidade sendo realizada pela maximização dessa
proteção com o menor custo da participação), John Stuart Mill tranpõe a
problemática desenvolvendo sua idéia de uma função educativa da democracia
representativa. Na medida em que as instituições só podem ser consideradas
como a obra dos homens e o objeto da sua vontade e da sua ação (Mill o lembra
com força em todo o primeiro capítulo das Considérations), a questão do bom
governo não pode ser tratada de maneira estática. Se está claro que só a
representação pode respeitar os princípios colocados na partida, uma vez essa
admitida, é um processo que se abre, em que participação política e liberdade se
reforçam reciprocamente. Nessa medida, pode-se dizer que a liberdade é ao
mesmo tempo para Mill condição e conseqüência da participação. Entendida
como liberdade de opinião e de ação, é necessária para fundar e tornar efetivo o
exercício da cidadania. Existe aqui uma noção de igualdade cívica de partida
entre os indivíduos que é postulada. Mas essa não pode bastar para realizar uma
igualdade pelo fato de só poder vir a termo numa prática. É nesse sentido que
Mill acentua o valor educativo da democracia. O voto, diz ele, é “um meio de

824
cultivar o espírito público e a inteligência política” (Mill, 1975, pág. 299), o que
lhe permite justificar a eleição direta contra a eleição em dois níveis (indireta),
que não reforça em nada essa função. Mais significativa ainda é a maneira pela
qual Mill justifica, pelo mesmo meio, o voto das mulheres: “Dêem à mulher uma
cédula de voto, diz ele [...] e ela aprenderá a olhar a política como uma coisa sobre
a qual lhe é permitido ter uma opinião e, tendo uma opinião, o dever de agir
segundo essa opinião; ela adquirirá nesta matéria um sentido de responsa­
bilidade pessoal [...]” (ibidem, págs. 292-293).
A virtude do voto, independentemente mesmo de toda questão de princípio,
é, portanto, a de dar àquele que dispõe dele o sentido de sua responsabilidade
face aos outros, face à sociedade. É por esse procedimento e só por ele que o
indivíduo aprende a sobrepujar seu interesse privado para considerar o interesse
geral. O pensamento de Mill é, nesse caso, perfeitamente coerente: o indivíduo
egoísta pode perfeitamente se contentar em esperar de um Estado tutelar a
satisfação de sua própria proteção, e aí jaz sem dúvida o risco enfatizado por
Tocqueville de um despotismo moderado. Ao contrário, a participação (pelo voto,
o exercício de responsabilidades políticas em qualquer nível que seja ou a
associação) faz o idivíduo sair de si mesmo e do círculo de seus interesses
privados para colocá-lo em relação ativa com os outros. 0 antagonismo dos
interesses deixa de ser, então, um limite, um problema da democracia e passa a
ser o que a faz viver pelo muito que esclarece sobre a organização da própria
sociedade. A liberdade colocada no começo (sob sua forma mínima) torna-se,
então, uma espécie de termo para um processo cujo motor é a participação de
todos na cidadania, a experimentação individual da própria existência. O Estado
vê, desde então, sua função consideravelmente reduzida. Quanto à forma mínima
de liberdade, ele serve de garantia, vigia para que cada um possa exercer sem
restrições seu direito à opinião e à realização do plano que concebe para sua vida.
Por outro lado, ele serve para colocar em comum a riqueza que acarreta a
diversidade deis experiências. Do ponto de vista da relação da sociedade com o
poder, o ideal é, daí para a frente, bem claro: “A maior disseminação possível do
poder compatível com sua eficácia; mas a maior centralização possível de
informação e sua difusão a partir do centro” (Mill, 1975, pág. 139).
Entre a liberdade, como condição da cidadania, e a liberdade, como
processo, a mediação para Mill é clara; é a idéia de progresso. A liberdade é, então,
ao mesmo tempo o sinal e o sentido do progresso, sua finalidade. Coloca-se,
então, a questão da posição dessa noção de progresso na obra de Mill (seria
preciso nesse caso levar em conta não somente a obra política, mas também o
pensamento econômico e o epistemológico da lógica). Seria para ele um processo
que tem um término (e nesse caso o pensamento de Mill poderia bem ser, como
o enfatiza Karl Popper, finalmente historicista - Popper, 1956, pág. 150), ou, ao
contrário, uma espécie de movimento sem fim? A dupla posição da liberdade, mas
também sua instalação como valor central do último pensamento de John Stuart
Mill, permitem colocar hipóteses. Pode-se pensar na verdade que, em matéria
política ao menos, como Tocqueville, Mill concebe tendências pesadas da história
das sociedades humanas. E, desse ponto de vista, a diferença entre a versão de

825
Tocqueville de uma marcha para a igualdade, como fato da Providência, e a de
Mill, completamente secularizada, para o progresso, importa muito pouco.
Depois, em um segundo nível, o progresso significa para Mill, de maneira
tangível, a difusão para todo o corpo social das benfeitorias da liberdade, pela
educação em geral e por esta educação particular realizada pela participação
política. Na verdade, é essa aliança que permite a cada um dispor de luzes
suficientes para se realizar, ao mesmo tempo, como homem e como cidadão.
Então deveriam restar apenas, no final, indivíduos iguais, tanto de direito quanto
de fato, livres para agir e para pensar, livres para viver conforme suas próprias
vontades. Pode-se adiantar que, aos olhos de Mill, o homem estaria, então, de
acordo com sua natureza, assumindo dentro de uma sociedade sossegada o que
Tocqueville chamava “a perturbação de pensar e a preocupação de viver”.
Quando, redigindo sua autobiografia, Mill se interrogava, ao mesmo
tempo, sobre a relação que ele havia mantido com o pensamento de seu pai e
dos utilitaristas e sobre a evolução de suas próprias concepções, escreveu: “Em
política, [...] não aceitava mais a doutrina do Ensaio sobre o governo como
uma teoria científica. [...] Daí em diante passei a olhar a escolha de instituições
políticas como uma questão de moral e de educação mais do que como uma
questão de interesses materiais (...)” (Mill, 1960, pág. 120). O par proteção de
interesses/felicidade da maioria foi substituído por Mill pelo auto-realização/li-
berdade. A felicidade na matéria não está expulsa nem mesmo concentrada
sobre a estrita fruição dos bens privados; é a ficção da felicidade coletiva
decretada que é recusada, em proveito da que nasce para cada um da liberdade
de poder organizar sua vida e participar da cidadania, dentro de uma relação
sempre aberta ao outro. É, daí em diante, a liberdade que é o valor último,
afirmado pelo indivíduo e pela sociedade contra os poderes do conformismo e
do Estado, motor de um progresso que marca a realização do homem em
conformidade com sua natureza. O otimismo racionalista de Mill concebe a
política como o meio sem violência desse progresso. Surge, então, a questão
de saber se basta considerar todas as respostas a todos os problemas coloca­
dos. Aliás, é preciso e pode-se? A riqueza do pensamento de Mill é a de deixar
o campo mais vasto possível aberto à experiência, é a de não dizer nada além
da possibilidade de soluções a partir de princípios simples e claros.
Contra todo voluntarismo político que tenderia a pretender impor ao
povo sua própria felicidade, o pensamento político de John Stuart Mill coloca
à frente o exercício individual da própria autonomia e pela sociedade de seu
governo. Nessa dupla condição, a felicidade ganha contra as crenças avança
no mesmo passo que a liberdade, essa liberdade faz o homem sair da solidão
de seus interesses privados para encontrar na sociedade os meios para dar
sentido à sua vida.•

• On liberly, ( 1 8 5 9 ) , e m Three Essays: On Liberty, Representative Government, The


Subjection o f IVomen, e d i ç ã o e i n t r o d u ç ã o p o r R i c h a r d W o l l h e i m , L o n d r e s , O x f o r d U n iv e r s ity
P r e s s , 1 9 7 5 ; Considerations on Representative Government ( 1 8 6 1 ) , m e s m a e d i ç ã o ; e s s e s d o i s

826
textos, como a maioria dos textos de John Stuart Mill, foram traduzidos no século XIX por
Dupont-White: La liberté, Guillaumin <£ Cie editora, 1864, e Considérations sur le gouvemement
représentatif, mesmo editor, 1862. Não foi realizada nenhuma tradução completa mais recente­
mente; portanto, citarei os textos em minhas próprias traduções, em referência à edição inglesa.
The Sprint of the age, Tocqueville on Democracy in America i, Tocqueville on Democracy ín
America II, em Essays on politics and Culture, edição e introdução de Certrude Himmelfarb,
Gloucester, Mass., Peter Smith edit, 1973; Autobiography, Nova York, Columbia University
Press, 1960; The Collected Works of John Stuart Mill, Essays on Politics and Society, volume
XVIII eXIX, ed. por J. M. Robson, Toronto, University of Toronto Press, 1977; The Earlier Letters
of John Stuart Mill, em Collected Works, vol. XII, ed. P. E. Mineka, Toronto, University of
Toronto Press, 1963.

► James Mill, An Essay on Covernment, em Essays on Government, Jurisprudence, Law of


Nations, Nova York, Augustus M. Kelley ed., 1976; John Locke, Lettre sur la tolérance (1689),
Paris, Genebra, Slatkine, apresentação de Paul Vernière, 1980. Elie Halévy, La formation du
radicalisme philosophique, tomo III: Le radicalisme philosophique, Paris, Félix Alcan, 1904;
Alexis de Tocqueville, De la démocracie en Amérique, edição e notas de André Cain, 2 vols..
Paris, Editions M.-Th. Génin, Librairie de Médicis, 1951; Idem, Correspondance anglaise, em
Oeuvres complètes, edição e introdução de J.-P. Mayer, Paris, Gallimard, 1954; Bernard Manin,
Les deux liberalismes: marché ou contre-pouvoirs, Intervention, nç 9, maio, junho e julho de
1984, págs. 10-24; Luc Ferry et Alain Renaut, Philosophie politique, t. 3: Des droits delhom m e
à l'idée républicaine, Paris, PUF, 1985; Hannah Fenichel Pitkin, The Concept o f Repre­
sentado», Berkeley, Los Angeles, Londres, University of Califórnia Press, 1967; Karl Popper,
Misère de Vhistorictsme, tradução de H. Rousseau, Paris, Plon, 1956.

Pierre BOURETZ.

MOISÉS (Moshé ben Amram), século XV - XIV a.C. (?)


Pentateuco (Cinco primeiros livros da Bíblia)

Moshé ben Amram: personagem legendário ao qual se atribui, nas tradições


judia, cristã e muçulmana, a redação dos cinco primeiros livros da Bíblia —a
Gênese, o Êxodo, o Levítico, os Números e o Deuteronômio - que constituem
o Pentateuco, na Bíblia cristã, a Tora dos judeus e dos muçulmanos.
Enquanto o primeiro desses livros, a Gênese, conta a história da criação
do mundo e a genealogia das famílias humanas desde Adão e Eva até a chegada
dos filhos de Jacó ao Egito, os outros quatro livros do Pentateuco relatam a
atividade política de Moisés como profeta: organizador de um movimento de
emigração do Egito faraônico, legislador de inspiração divina - gerando o
“campo” dos Israelitas no decorrer dos quarenta anos da travessia do deserto
lançando as bases da Cidade de Deus, na terra prometida à conquista que o
próprio Moisés, conforme a profecia, não verá.

827
A cronologia desses acontecimentos é um assunto de debate entre aqueles
historiadores que não contestam sua realidade. Distingue-se, geralmente, uma
“cronologia longa”, que situa o nascimento de Moisés por volta de 1525 antes
de Cristo, e em uma “curta”, que coloca o nascimento daquele ao qual a tradição
atribui cento e vinte anos por volta de 1305 antes da era cristã.
O Pentateuco e a história que aí está depositada constituem, portanto, a
referência maior e essencial de três universos espirituais — o judaísmo, o
cristianismo e o islamismo. As leis de Moisés, que aí se encontram enunciadas,
constituíram a base dos diversos sistemas políticos que delas se valeram, para
começar pelo estado de Moisés no deserto e prosseguindo pelos diversos
regimes, reinados e protetorados, tendo feito dessas leis o fundamento de seus
governos: governo “militar" de Josué Ben-Noun durante a conquista do país de
Canal depois da morte de Moisés; regime dos juizes sob a direção do profeta
Samuel; reinados de Saul e de Davi, que passa como herança a seu filho Salomão
antes de se dividir; depois o Reino de Judá até a queda de Jerusalém diante dos
exércitos de Nabucodonosor. No interior mesmo do Reino de Judá, assim como
no seio do reino “pagão” de Israel que se separou, a lei de Moisés serve de
referência à denúncia profética do poder dos reis, dos príncipes e dos padres
corrompidos. Ela constitui igualmente a base do empreendimento da volta dos
exilados judeus a Sion (Jerusalém) conduzida pelo escriba Esdras e pelo profeta
Neemias, no século VI antes da era cristã, setenta anos após a queda de Jerusalém
com o encorajamento das conquistas persas da Babilônia, ela alcança a recons­
trução do templo e a restauração do sacrifico e dos privilégios sacerdotais. Ela
inspira a tentativa dos Macabeus (Judas Macabeu e seus cinco filhos) que
restauram um reino judeu independente no norte da Palestina —em contracor-
rente à helenização acelerada da região —, assim como as diversas tentativas
“messiânicas” de restauração do reino judeu; no momento da guerra civil em
Jerusalém (66-70 da era cristã) e também no momento da revolta nacionalista do
“messias” Bar-Cochba (135-136 da era cristã).

A constituição da Cidade de Deus ou os estágios sucessivos da lei

E igualmente a lei de Moisés, a Torá, que constitui o maior assunto da


exegese dos sábios, doutores da lei, depois rabinos, cujo ensinamento é deposi­
tado dentro da imensa literatura legal dos Talmudes de Jerusalém e da Babilônia
- a base do judaísmo ortodoxo tal como ele se conservou até este dia. Foi essa
mesma Torá que serviu igualmente de bandeira, durante várias gerações, a todas
as contestações sectárias, cismáticas ou heréticas do poder dos rabinos; em
particular o cisma dito “caraíta” que se tornou uma corrente importante entre
os judeus do Oriente às vésperas do aparecimento do Islã e que floresceu no
curso dos primeiros séculos do califado antes de desaparecer com a repressão
que aflige indistintamente os cismáticos muçulmanos e judeus.
Assim, ao longo de leituras sucessivas e de estágios de interpretação, a
lei de Moisés, considerada a palavra divina que utiliza Moisés como porta-voz,

828
é o fundamento ideal ao qual se referem tanto os defensores das três religiões
reveladas, ditas “monoteístas”, quanto os contestadores da autoridade tempo­
ral ou espiritual dos clérigos no âmbito de cada uma das três famílias
(religiões). A esse respeito, é significativa a nova importância concedida pela
Reforma e pelas diversas igrejas protestantes ao estudo do "Antigo Tes­
tamento”, assim como, sem dúvida, a importância do modelo de Moisés nas
utopias coloniais: as múltiplas “novas Jerusaléns" apareciam de tempos em
tempos na expansão européia na América ou na África, encontrando, sob esse
aspecto, eco aparentemente paradoxal na identificação dos escravos africanos
cristianizados com os Hebreus no Egito e com o próprio Moisés. Ou, melhor,
as próprias correntes do pensamento leigo que eclodiram, essencialmente no
Ocidente e sob a influência ocidental, desde o fim do século XVIII, não
cessaram de se entregar a diversas imitações, reformulações e demarcações
dessa mesma lei (o exemplo mais surpreendente desse mimetismo não-assumi-
do, sendo talvez o “culto do Ser Supremo” que havia querido instaurar
Maximilien Robespierre para fundar a ordem social revolucionária), nem de
redescobrir os próprios termos do debate bíblico dentro das questões contem­
porâneas. Se bem que se possa afirmar que a posteridade da obra política de
Moisés, isto é, sua obra política póstuma, se fez uma das maiores e mais
duráveis obras que algum dia existiram na história da humanidade.

As regras da leitura: grandeza e limites da crítica

Convém sem dúvida formular um certo número de resevas quanto à


autenticidade histórica dos fatos relatados no Pentateuco, assim como sobre a
identidade de seu autor. Pode-se mesmo (e alguns o fizeram) defender a tese
segundo a qual o próprio Moisés não teria existido jamais, os cinco livros da
Torá sendo o fruto de múltiplas redações posteriormente fundidas em um texto
único. Enfim, o texto hebráico mais antigo desses livros é posterior, em vários
séculos, aos acontecimentos relatados e redigido em língua que utiliza um
alfabeto diferente (o alfabeto aramaico, aprendido na Babilônia pelos exilados
do reino vencido de Judá) daquele que era utilizado na época de Moisés. O
último desses livros contém uma descrição da morte de Moisés; livro “desco­
nhecido” até sua descoberta oportuna várias centenas de anos após sua
suposta redação, não poderia ter sido obra de seu “autor”; e o conjunto do
Pentateuco deve ser lido à luz dessas reescrituras sucessivas em que os textos
antigos sutilmente reesclarecidos são colocados a serviço de projetos político-
teológicos novos. Porém, quer Moisés tenha existido ou não, a obra que lhe é
atribuída permanece a referência dos sistemas religiosos e políticos que a
sucederam e dela se valeram.
Da mesma maneira, diversas hipóteses foram formuladas concernentes à
identidade de Moisés, admitindo a realidade histórica do personagem e contes­
tando a versão tradicional dos fatos. A mais excitante dessas hipóteses é, sem
dúvida, a que constitui a proposta da última obra de Sigmund Freud, Moisés
e o monoteísmo: segundo o fundador da psicanálise, a lenda do nascimento de

829
Moisés, escravo hebreu abandonado em seu berço e recolhido por uma
princesa egípcia, deve ser invertida: Moisés teria sido um príncipe egípcio,
implicado nas lutas dinásticas do Império faraônico, e a lenda serviria para lhe
criar um vínculo de paternidade fictício com o grupo de escravos hebreus sobre
o qual ele havia lançado sua escolha, procurando um assunto coletivo para a
realização da utopia social que uma contra-revolução do palácio no Egito tinha
condenado ao exílio. Essa hipótese, que inspirou o romance de Howard Fast
Moisés, príncipe do Egito, não diminui em nada a necessidade de avaliar a
obra que lhe é atribuída.

A saída do Egito

A atividade de Moisés se decompõe em vários tempos: no Egito, onde


após sua educação principesca e uma carreira militar que se anunciava
promissora (teria, segundo parece, dirigido um expedição punitiva contra as
marchas meridionais do Império), ele “caminha em direção a seus irmãos”, isto
é, se liga à população dos “Hebreus” - migrantes vindos de Canaà, do Hauran
sírio, até mesmo da Mesopotâmia caldeiana, e com certeza mais simplesmente
da periferia desértica do Egito, Sinai, Transjordânia e Hejaz - recentemente
sujeitados a dias de trabalho gratuitos para grandes obras do Estado e do clero;
o que o texto chama de escravidão. Essa primeira fase de sua atividade entre
os Hebreus, marcada pela morte de um contramestre egípcio culpado de
brutalidades, vai conduzi-lo ao exílio: seu ato de rebelião, vivido pelos escravos
entre os quais ele quer se fazer aceitar como uma provocação, é denunciado à
polícia faraônica, e Moisés foge pela primeira vez do país do Nilo.
O período do exílio de Moisés no deserto (quarenta anos, segundo a
tradição) constitui sua segunda escola: já tendo sido instruído “sobre as coisas
do Egito”, tornou-se o aluno e o iniciado do grande sacerdote dos Madians do
Sinai, Jetro, do qual ele esposa a filha Séfora. É aí que se situam também sua
primeira experiência mística (o espinheiro ardente) e a revelação de sua missão
divina.
De volta ao Egito, ele se dedica à tarefa que lhe foi confiada: salvar os filhos
de Israel (as tribos hebréias subjugadas reconheciam um ancestral comum em
Jacó - ele próprio apelidado de Israel), filhos de Isaac e netos de Abraão, o
patriarca comum do conjunto de tribos dessa região. 0 projeto consistia em obter
do soberano egípcio a autorização para os hebreus deixarem o reino, a fim de
conquistar pela força a “terra prometida” de Canaã e fazer reinar, aí, a lei e a
justiça do Deus único que se revelou a Moisés no Sinai. Ele vai se revelar
organizador de homens e diplomata, conspirador e negociador, advogado da
justiça e combatente, psicólogo e mágico, homem de ciência tanto quanto de
ação. A tradição bíblica, é claro, atribui ao “milagre” divino a maioria dos efeitos
físicos que acompanham essa ação: milagrosas as dez “pragas” prometidas ao
Egito por Moisés, milagrosa a maré de equinócio que permite ao bando dos
fugitivos passar a seco por entre as águas do lago Amer que a tradição confunde
com o mar Vermelho, e que devolve as águas a tempo de engolir as hordas do

830
Faraó, lançadas em sua perseguição. Mais tarde, no deserto, é igualmente ao
milagre, na ocasião chamado "fogo de Deus”, que a tradição atribui as purgas
mortíferas e a repressão sangrenta dos “dissidentes" que contestam a autoridade
de “Moisés, nosso mestre”, como o designa a expressão hebraica.

O deserto e o Decálogo

O segundo livro do Pentateuco, o Êxodo, relata a saída do Egito e a


entrada dos israelitas no deserto sob a direção de Moisés. Aí, o povo inteiro,
diz o texto, será testemunha de fenômenos sobrenaturais numerosos que
manifestarão a presença divina na montanha de fogo, mas só Moisés é enviado
ao encontro de Deus “face a face” para receber a lei: dez mandamentos, que
fundam a cidade da vontade divina e subentendem a herança de Moisés nas
três religiões que a reivindicam.
Decálogo: proibição da idolatria, interdição de “pronunciar em vão o
nome de Deus”, instauração do Sabá (dia de repouso semanal obrigatório e
total), obrigação de respeito para com os pais, interdição do assassinato, do
adultério, do roubo, do falso testemunho, da cobiça material e sexual (“não
desejarás a mulher de teu próximo”).
Os dois livros seguintes do Pentateuco, o Levitico e os Números, enunciam
em todos os detalhes as leis e os regulamentos, os mandamentos e as observân-
cias revelados pela intervenção de Moisés entre os israelitas. O último livro,
Deuteronômio, recapitula, de seu lado, o conjunto dos acontecimentos e parti­
cularmente a história, paralela à revelação, da rebelião permanente do povo
contra a lei, desde a construção de um “bezerro de ouro”, quando Moisés estava
ocupado em receber as tábuas da lei, até as tentativas de motins, golpes de estado
e secessões que permeiam a estada dos fugitivos no deserto. É, aliás, em seguida
às primeiras revoltas que Deus-pela-boca-de-Moisés decide que os hebreus ficarão
quarenta anos no deserto, até que desapareça a geração dos escravos e até que
emerja uma geração formada sob a lei do deserto.
Do conjunto dessas informações, sobressai a descrição de um sistema de
governo e de organização social complexo e coerente, em que se vê a utilização
dos elementos de um Estado de tipo relativamente único na região nessa
época: crescimento do Estado sacerdotal e militar dentro dos poros de uma
ordem tribal que subsiste. A vingança do sangue permanece o mecanismo
oficial de dissuasão da violência intertribal, mas o Estado embrionário traz
restrições e condições. O Estado-lei legisla e proíbe, mas oculta seu monopólio
da violência: é Deus quem pune e extermina os rebeldes, enquanto é a própria
comunidade quem toma a cargo, pela lapidação coletiva, a pena de morte dos
delinqüentes. Essa tomada a cargo coletiva constitui a originalidade desse
sistema e o contraponto dos “direitos do cidadão” implicados em um sistema
legal, afirmando a igualdade de todos mediante julgamento. A base dessa
cidadania, entretanto, que não abole as barreiras de raça e de casta (a
escravidão doméstica é coisa corrente, e a legislação distingue entre o escravo
hebreu e o escravo estrangeiro), é a submissão à lei e a participação no

831
consenso: o estado de Moisés do deserto, se se acreditar em sua descrição pelo
Pentateuco, é o primeiro modelo verificado de poder que integra a seu
funcionamento o controle ideológico e a manipulação do consenso.
Entre as linhas desse sistema, parece que esse poder da lei não repousa
somente sobre o sistema de ordenação militar-policial (“dos chefes de mil e dos
chefes de cem, e dos chefes de dez”) que Moisés instaurou sobre os conselhos
de seu cunhado Jetro. Ele repousa primeiro sobre a existência de uma tribo-casta
(a tribo de Levi, talvez integralmente de origem egípcia) “consagrada ao serviço
da tenda” (aquela em que as tábuas da lei são guardadas, essa "arca da aliança”
que constitui a versão primeira e nômade do templo). Pois, segundo a lei, a de
Levi é uma tribo santa, exclusivamente sacerdotal. O sacrifício obrigatório, que
exige uma oferenda de carne ou de cereais em toda ocasião, consiste em uma
parte que se consome “para as narinas de Deus”, enquanto o resto vai “para o
sacerdote, para seus filhos e filhas”. Na partilha antecipada das terras de Canaã
entre as tribos de Israel, foi claramente dito que cada uma das onze entre as doze
tribos teria um território de herança, mas que a tribo de Levi não teria “nada”:
somente quatro cidades dentro de cada um dos diversos territórios, que seriam
cidades de refúgio, onde os assassinos fugindo da vingança de sangue poderiam
ser levados ao julgamento dos sacerdotes. Por meio do sacrifício (controle das
carnes) e da administração da justiça é realmente um “regime" particular,
fundado sobre a dominação de uma espécie de burocracia sagrada, que os livros
do deserto descrevem e que Moisés ordena para o futuro.

A obra com ação retardada

“Nunca mais apareceu em Israel um profeta como Moisés, que Deus


elegera com amor, face a face”, conclui o Deuteronômio, que acrescenta “quer
se tratasse de todos os sinais e prodígios que Deus o havia enviado para fazer
no país do Egito, com respeito ao faraó, a todos seus servidores, a todo seu
país, ou quer se tratasse de toda mão forte e de todo o grande terror do qual
Moisés usou aos olhos de toda Israel.” E o Talmude (Michna Abot) resume a
cadeia de transmissão da lei: “Moisés foi iniciado na Torá desde o Sinai. Ele a
transmitiu a Josué, Josué aos antigos. Os antigos a transmitiram aos profetas,
e os profetas a transmitiram aos homens da grande sinagoga.”
Quando o ciclo dos reinos israelitas foi extinto e os descendentes dos
sacerdotes de Judá decidiram restaurar sua dominação sobre os hebreus
graças à dupla derrota dos príncipes israelitas face ao conquistador babilônico
e dos babilônios face ao invasor persa, foi para a lei de Moisés que eles se
voltaram: reescrevendo-a, eles encontraram a predição da queda do reino,
inscrita em sua vocação profana e a teoria do poder sacerdotal como contra-
modelo da monarquia e da dominação das aristocracias militares.
Mais tarde, será essa mesma lei que irá servir de objeto de interpretação
e de exegese aos diversos estágios do judaísmo, até que os cristãos façam dela
e das profecias de Israel seu “antigo testamento”.
Será em seguida o Islã que acrescentará um elo novo à cadeia de

832
profecias que, segundo o Corão, vai de Moisés a Jesus e de Jesus a Maomé,
reafirmando bem aito a autenticidade e a validade dos mandamentos trazidos
por Moisés. E será preciso atingir o século XVII e o tratado teológico político
de Baruch Spinoza, para se ver escrever o que não foi sempre, mais de três
séculos depois, uma evidência: “Compreendi que as leis reveladas por Deus a
Moisés não eram outra coisa senão o direito próprio ao Estado dos hebreus e
que, conseqüentemente, ninguém fora eles era obrigado a admiti-las. Mais
ainda, que eles mesmos só foram obrigados a obedecê-las durante a duração
de seu Estado.”

• A Bíblia, tradução francesa publicada sob a direção de Edouard Dhorme e abundantemente


anotada, 2 volumes, Paris, Gallimard, La Pléiade, 1956 e 1959.

► Sigmund Freud, Moise et le monothéisme, Paris, Gallimard; Martin Buber, Moise, Paris,
PUF, 1957; Howard Fast, Moise prince d'Eggpte; Thomas Mann, Lex dix commandements,
Paris, Albin Michel, 1946; Scholem Asch, Moise, Paris, Calmann-Lévy, 1954; André Néher, Moise
et la vocationjuive, Paris, Seuil, 1956; Flavius Josèphe, La guerre desJuifs, prefácio de Pierre
Vidal-Naquet, Paris, Minuit, 1977; Rachi, Commentaire sur le Pentateuque, Paris, Keren
Hasefer, 1957; Maxime Rodinson, Peuple ju if ou problème juif, Paris, Maspero, 1982; llan
Halévy, Question juive, la tribu, la loi, 1’espace, Paris, Minuit, 1981; Maxime Rodinson,
Mahomet, Paris, Seuil, 1961; Mohammed Essad Bey, Mahomet, Paris, Payot, 1956; Barukli
Spinoza, Traité théologico-politigue, La Haye, 1655.

Ilan HALÉV1.

MONTAIGNE, Michel Eyquem de, 1533-1592


Ensaios, 1588

Os Essais (Ensaios) parecem indissociáveis da vida de Montaigne. Nas­


cido em 1533, no castelo de Montaigne (Périgord), tendo mãe de origem
espanhola, dentro de uma família de mercadores enobrecidos, Michel Eyquem
foi tanto um filósofo quanto um homem político de primeiro plano. Conse­
lheiro na Corte dos Aides de Périguewc (1557), conselheiro no parlamento de
Bordeaux (1557-1570), torna-se amigo de La Boétie. Seu casamento com
Françoise de Chassaigne em 1565 manifesta sua ancoragem sobre a sociedade
bordelesa. Em 1572 ele começa os Ensaios. Dois anos mais tarde ele ingressa
no exército real. Redigiu, então, o essencial do Livro I e seis capítulos do Livro
II. Entre 1574 e 1578 escreveu a Apologie de Raymond Sebond; foi também
a época (1576) em que ele escolheu por divisa: “Que sei eu?”. De 1578 a 1580

833
compõe o resto do Livro II. É a primeira edição. Parte em seguida numa longa
viagem de um ano, deixando os seus sozinhos. Percorrendo a Suíça, depois a
Alemanha, chega à Itália. Aí tem notícia de que, em virtude de seu co­
nhecimento de política e de suas qualidades de conciliador, Henrique III o
havia eleito prefeito de Bordeaux. Ele tenta recusar, atitude que irá abandonar
ao seu retorno, pois será até mesmo reeleito, em 1583. Reinstalado em seu
castelo (ele foge quando a peste abate seus concidadãos), prossegue sua obra
e escreve de 1586 a 1588 o Livro III. Suas qualidades políticas sendo de novo
requisitadas, ele segue Henrique III. Durante esse período de graves pertur­
bações, esse compromisso o fará até ser preso por algumas horas em julho de
1588. Por um tempo membro da Corte, ele acaba por retornar a Montaigne.
Representante do rei na província de Guyenne, sua carreira política é acelerada
graças a Matignon. Conselheiro (muito ouvido) para os Negócios de Aquitânia,
sua saúde não lhe permite prestar serviços a Henrique IV. Ele aproveita seus
últimos anos de vida, de 1588 a 1592, para fazer adições e correções nos
Ensaios. Morre em 13 de setembro de 1592.

A crítica cética e a visão oblíqua

A longa constituição histórica dos Ensaios e um estilo adaptado à


rejeição de um discurso dogmático e fixo explicam em parte a variedade das
interpretações contraditórias dadas ao pensamento de Montaigne. A vontade,
divulgada pelo filósofo, de viver seu tempo e sua atividade política redobram
o problema.
Todavia, o conjunto da obra, em particular o pensamento político, não
pode ser compreendido sem se levar em conta a existência de um método que
é uma propedêutica (ensino preparatório) inacabada e sempre recomeçada,
indissociável de uma arte de viver o presente.
Seu primeiro momento é aquele da crítica cética. Ela atravessa toda sua
obra e a suporta, assim como suporta a vida de Montaigne. Momento de
distanciação que não se faz sem prudência.
Montaigne deve, na verdade, enfrentar duas ameaças. A primeira con­
cerne à posição de seu próprio discurso. Por coerência, tanto quanto por
convicção, o filósofo não o pode considerar de maneira distinta daquela pela
qual concebe os demais fenômenos. Pois, se bem sabe que deve ao que o cerca,
não sabe exatamente o que lhe deve.
A segunda ameaça relaciona-se com terceiros. Montaigne teme a adver­
sidade. Uma adversidade que ele tem tanto menos desejo de atacar frontal-
mente que seu prórpio discurso não tem a posição dogmática que lhe permiti­
ria legitimar uma luta política ou teórica no curso dá qual ele se arriscaria a
perder inutilmente não somente certos prazeres, mas também a liberdade, até
mesmo a vida.
Para ir contra tais riscos, em face a si mesmo, ele avança a questão “Que
sei eu?”. Face aos outros, ele escolhe uma tática de contornamento, mas

834
também de evitação: “Minhas fantasias se seguem, mas às vezes de longe, e se
olham, mas com uma visão oblíqua.”
Essa visão oblíqua regula um estilo que o leitor deve aceitar, pelo menos
se quer mesmo penetrar os Ensaios. Aceitar uma escrita retumbante, uma
escrita na primeira pessoa em que dizer não é feito nunca a não ser por rodeios,
uma escrita que visa mais a seduzir do que a convencer, e que apela sempre
para o espírito crítico do leitor. Pois dez vezes Montaigne nos previne:
“Junte-se que ao acaso tenho certa obrigação particular em dizer apenas pela
metade, em dizer confusamente, em dizer discordantemente”, até em não dizer
“para mim que não quero exprimir mais”.
A análise que produz a crítica cética é colocada dessa maneira paradoxal­
mente —daí a modernidade —sobre um fundo de pura forma que visa ao desejo
do leitor.
Ela é divulgada culturalmente dentro de uma independência crítica, face
a entraves ideológicos, baseando-se sobre uma dúvida substancial e primeira.
Assim como Montaigne nos convida a pôr de lado as inclinações, as amizades,
as fidelidades, os compromissos, mas também os conhecimentos por boatos e
as sistematizações.
O paradoxo nesse caso, sendo sem dúvida o ponto de partida, a dúvida,
é um ato do entendimento e não da vontade. Há a esse respeito um erro
comumente feito a propósito da posição da razão. Montaigne o negaria. Na
verdade, Montaigne só rejeita a Razão orgulhosa, aquela das causas primeiras
em busca das quais somos espontaneamente atraídos. Essa amarra o espírito
de "religiões, de leis, de costumes, de ciência, de preceitos, de penas e de
recompensas mortais e imortais”, de leis naturais. Ela procura essências a
partir de conceitos sem experiência. Ela monta hipóteses científicas que toma
pela verdade.
Procede diferentemente do entendimento, esse também chamado razão,
que apenas é capaz de colocar a questão “Que sei eu?” (revelada por escrito
na edição de 1588) e que não se deixa tomar pela dogmática. Um entendimento
que é aquiescência pirrônica (cética) nas aparências por trás das quais não há
nada (aqui Montaigne afasta-se de Sextus Empiricus), sob reserva da posição
de Montaigne com relação à existência de Deus, aquiescência que arruina toda
ontologia.
O entendimento tem um duplo uso: negativo e positivo. Em seu papel
negativo, ele é destruição das coisificações. Em seu papel positivo, ele é um
guia para a vida e permite reatar com os filósofos da Antigüidade, para os quais
a filosofia era também uma arte de viver. Pois “a razão única deve ter a conduta
de nossas inclinações” de cuja tendência a fazer metafísica faz parte. Como tal
ela é, portanto, um instrumento indissociavelmente teórico e prático.
O ato primeiro do entendimento, assim concebido, é um ato de dúvida.
Um ato crítico do qual nenhuma circunstância justifica a interrupção. Nem
mesmo o compromisso político mais arrojado: “Quando minha vontade me dá
a um partido, não é com uma obrigação tão violenta que meu entendimento
seja infectado por ela.” O processo de distanciação da consciência é colocado

835
assim para todo compromisso e para a política em geral. Essa atitude anti-
fetichista antes da carta invalida, portanto, definitivamente, todo pensamento
terrorista e se apoia sobre uma análise da experiência, notadamente das
pertubações que a época de Montaigne conhece. Ela nos convida à tolerância.
Os próprios “adversários” se vêem conceder a priori “qualidades louváveis”.
A dúvida inscreve, portanto, toda política em sua temporalidade de emergência
e, diferentemente do que será o historicismo, a reduz a essa temporalidade. Ela
convida o homem político a ficar distante de si mesmo a fim de não se erigir
em juiz de outros lugares e de outros tempos.
Esse pensamento político crítico não perde nunca sua dúvida inicial. Ele
não a “ultrapassa” em direção à descoberta de um solo mais estável, como se
verá em Descartes. Não se sai da dúvida. Isso porque a dúvida não saiu de um
ato de vontade, mas pertence consubstancialmente ao entendimento. Nenhuma
necessidade de inventar aqui a ficção do “gênio maligno”. Nenhuma necessidade
de mediação para sair "dela”. É sempre após, para encobrir a primeira dúvida,
que se vem enxertar o pensamento dogmático. Estamos igualmente longe da
colocação entre parênteses de Husserl. A radicalidade nada tem de efêmero. E,
se os comentadores não o viram, foi sem dúvida porque eles também vivem a
dúvida como uma “prova”. Quando a verdadeira prova é a certeza.
Fundado dessa maneira, o pensamento político de Montaigne está à
escuta da experiência. Ele descobre que os costumes, as instituições políticas
e os usos variam conforme os lugares e as épocas. As leis perdem sua mística.
Produzidas por “autores vãos e irresolutos”, elas só têm valor relativo e em
razão de seu uso. Vãs também são as tentativas que gostariam de opor-se a
uma lei ou ao “corpo” social. Vã ainda a vontade de conceder qualquer validade
universal a nossas instituições e a nossos costumes. Sempre vã a pesquisa
comparativa em busca de uma superioridade lisonjeira.
Desde então, ele descobre que, do Estado ao indivíduo, todos se dotam
de boas razões para cobrir o que lhes convém e justificá-lo sob os falsos brilhos
da natureza, do saber ou combatê-lo da mesma forma. Assim fazem os homens
que só procuram “dar cara a suas opiniões” e a suas posições sociais.
Essa escuta permite ainda ao entendimento perceber que, pelo uso, uma
ordem política é instaurada. Ordem necessária que permite viver, até mesmo
viver bem. Ordem que se deve a causas desconhecidas e ao acaso. Ordem aceita
por um povo supersticioso e ignorante que acredita em quimeras religiosas e
políticas pelas quais o poder se dá a ver e que acredita nisso bem mais do que
quer acreditar (influência de Maquiavel e de La Boétie).
A verdade cabe inteira dentro desta fórmula: “É o homem que dá e o
homem que recebe”, incluindo esses “milagres” cujo “principal crédito” se
deve à “imaginação”. O homem está no centro.
Nenhuma admiração, no entanto, por aqueles que detêm o poder. O povo
que acredita não sabe. E fácil manobrá-lo. E, se os homens do poder utilizarem
os meios menos sutis, não será por serem eles os mais eficazes, mas sim porque
são incapazes de usar outros. O gosto pelo segredo de governantes esconde
bem pouca coisa; ele é sobretudo o estilo do poder. Além disso, a prática

836
política é apenas uma “rotina política” que não tem necessidade nem de gênios,
nem de razões.
Há certamente contestações, até mesmo veleidades de revolução. A
experiência o mostra. Mas ela ensina também que abater uma ordem em nome
de uma desordem cria uma desordem maior ainda. A sanção da guerra civil
revela que toda revolução quer “curar a doença pela morte”. As “tentaivas para
deserdar alguém” e seu culto não levam a nada que valha a pena. Está aí a
ilusão daqueles que Pascal chamará breve de "meio-hábeis” e que Montaigne
acha que são movidos, como todos os homens,pela “avareza” (busca de bens
próprios ou de territórios) e pela ambição (desejo de impor seu nome, sua raça
ou sua marca sobre a história).
Os contestatários enfeitam, é claro, esses dois motores com outros
adornos. Eles apelam para uma utopia que permitiria guiar os homens em sua
crítica presente ou ainda para que escolhessem um outro lugar como modelo.
Mais precisamente, outros lugares e outros tempos, outros costumes e outras
instituições. Alguns vão ainda além e reclamam uma transcedência e leis da
consciência supostamente colocadas em nós pela natureza ou Deus. Porém,
“as leis da consciência que dizemos nascerem da natureza nascem do cos­
tume”. Desconfiemos, portanto, dos discursos que os homens decepcionados
com o teatro político, ávidos de poder, pronunciam para encobrir a realidade
de sua busca.
Mas a experiência mostra também que sob pretexto de ordem alguns
convidam para o fanatismo, até mesmo para o culto do Estado e do chefe. A razão
retém desse fato que é o reino da confusão entre o respeito que se deve aos
dirigentes e a estima que eles devem merecer, entre as obrigações do cidadão e
as exigências da consciência (ver adiante). Idéias que serão reencontradas ainda
em Pascal. O que a crítica mostrou anteriormente foi o caráter arriscado dos
poderes. Se "o Bem público requer que se traia, que se minta e que se massacre”,
ele requer da mesma forma que isso seja justificado por falsos brilhos ideológicos
reconhecidos e legítimos. A livre consciência não é enganada pela “razão de
Estado” ou pela “justiça especial, nacional, forçada pelas necessidades de nossas
polícias”, mas ela só a chama e a aprova pelo que ela é: uma prática de ordem,
uma prática útil para a manutenção em vida da comunidade.
A visão oblíqua não é, dessa maneira, redutível ao simples efeito de uma
prudência política. Ela se torna a única visão que evita o embarque de nossa
consciência. Por esse distanciamento, o homem sábio não confunde mais
verdade e utilidade. Ele não corre mais atrás das quimeras. Ele é deste mundo.
Mundo ao qual, segundo o princípio de utilidade que é o verdadeiro critério
da legitimidade escondida, ela aquiesce.

Os limites da aquiescência ao mundo

Uma vez o distanciamento realizado e a certeza de que nenhuma linha de


fuga está autorizada nem no tempo —sonho com um futura utopia permitindo

837
um projeto crítico -,nem no espaço - sonho com um modelo de outro lugar do
projeto crítico —, nem na transcendência, a aquiescência se impõe. Mas é
precisamente uma aquiescência. Seus limites são intrínsecos: diferentemente
daquele que adere ou que acredita, ela significa sempre a existência de uma
consciência que aquiesce e que só o faz para achar seu próprio repouso.
Dentro dessa separação básica, e nunca presente, entre a consciência que
satisfaz e o mundo, o repouso ideal visado só traz na verdade uma indiferença
tendencial aos valores e aos seres. Não uma indiferença total. Da mesma maneira,
a recusa de comparar o presente com um futuro ou com um outro lugar não
significa um não-julgamento. Montaigne prefere convidar à suspensão de julga­
mento, o épochè, que figurava principalmente nas paredes de sua Biblioteca,
noção sobre a qual se deve constatar que ela não se encontra dentro do primeiro
ceticismo; Pirro preferia sempre o não-julgamento. Deve-se acrescentar ainda que
essa suspensão é ela mesma apenas uma indicação quanto à atitude geral a
adotar. Atitude geral, tudo está aí. A consciência só trata com o particular.
O homem gostaria sem dúvida de ir mais longe no distanciamento, para
evitar confronto com a experiência, mas o caminho é impraticável. A grande
admiração de Montaigne pêlos céticos e os estóicos não o faz por isso acreditar
que o ideal deles é realizável. A serenidade da alma seria sem dúvida um estado
agradável, mas os homens não estão disponíveis para ela. Nem anjos, nem
feras, é preciso propor-lhes uma filosofia que lhes seja adaptada.
A metodologia de Montaigne pode e deve chamar um segundo momento.
Visto que a consciência cética em alerta não postula essa conciliação entre o que
aparece e o que deveria aparecer, sob pena de tornar-se outra vez dogmática. Se
a recusa das essências escondidas ao propor uma filosofia da pura aparência e
do útil deslocou existencialmente o problema ser/dever-ser para aparecer/dever-
aparecer, ele não afirma também regulá-lo. Pois uma vez as quimeras destruídas
pela crítica cética, o útil que se deveria conciliar com o “honesto” e permitir
aquiescer ao mundo, mais particularmente ao poder, não o pode.
A evolução dos Ensaios impõe ainda mais radicalmente que essa cisão
potencial, inscrita pelo processo reflexivo fundador, seja examinada e que seja
baseada em razão a atitude a adotar. O princípio afirmativo da vida tem com
efeito um papel cada vez mais central. Se Montaigne parecia, no Livro 1,
preparar-se para a morte, e se criticava a representação e a glória em benefício
de um “saber estar consigo”, sua reflexão torna-se em seguida não mais
reflexão sobre a morte, mas atenção à vida: “Se tivermos sabido viver constante
e tranqüilamente, saberemos morrer da mesma forma.” Sua recusa primeira
de tudo o que é sobre-humano (ascetismo, liberdade do Sábio, angelismo...)
amplia-se em benefício de um deslocamento em direção à condição humana e
a amá-la sob essa condição.
Dentro do quadro desse apego crescente às alegrias da vida, o critério da
condenação possível é facilmente encontrado. Ele é paradoxalmente aquele da
aquiescência: o útil. O que vai contra o útil e a eficácia para essa fruição
não-epicurista da existência pode ser condenado. O estilo é a primeira possibi­
lidade de uma condenação do real. Por sua própria forma, ele cassa, deses-

838
trutura, seduz e incita, assim, à tomada de distância e à recusa, sobretudo
política. Verdadeira encenação, ele é afirmação, contra a escrita filosófica
legítima e os mundos do encerramento, dos princípios de eficácia e de
utilidade. Nesse sentido, o estilo contém a filosofia de Montaigne.
Diferentemente desses filósofos da liberdade que encerram o pensamento
em ruinosa demonstração para “provar” a liberdade da consciência, o estilo é,
nesse caso, em termos pascalianos, essa espécie de “ponto alto", condição de
possibilidade da leitura dos Ensaios. O estilo? No dizer do próprio Montaigne
que instala um jogo de espelhos em que se recambiam o narrador, o autor e o
conceito para falar da humanidade e desenvolver as teses sobre o "honesto”;
verdadeiro projeto de sedução segundo figuras de retórica que impõe a
prudência cética, uma prudência que prefere a lítotes à hipérbole; verdadeiro
projeto de subversão também em que o estilo desvia o sentido e destrói as
figuras da legitimidade. Pascal, aliás, não será enganado: ele descobrirá as
defesas e finalidades do projeto de sedução e as subverterá por sua vez para
descentrar o homem e colocar Jesus Cristo no "ponto alto”.
Quanto ao conteúdo, Montaigne só consente nos usos e costumes, na moral
estabelecida, a partir do útil. Ora, o útil não é a legitimidade. E Montaigne o sabe.
Que credo conceder a Leis que só devem ser respeitadas porque são leis, isto é,
forças que se fizeram leis? Visto que ele acrescenta mesmo que importa pouco
saber quem as fez. E quando ele justifica as crenças sobre o tom pelo qual aprova
o catolicismo: “Nós somos cristãos da mesma forma que somos perigordianos ou
alemães” (adendo de 1588), não será isso um ataque “indireto” contra a
legitimidade das crenças? Os Ensaios serão, além disso, vistos como perigosos
em 1676. Ou então ainda quando ele louva os Grandes não porque eles são
Grandes, mas porque são o poder e por ser preciso Ordem, aquele que luta contra
os Gostos Individuais não quebra o selo da legitimidade política?
E preciso constatar que a questão de saber se Montaigne é ou não é
conservador não tem mesmo sentido. Importa primeiro o presente, eis por que,
longe de estar ligado ao passado, ele sustenta as revoluções e as mudanças
vitoriosas. Conservadorismo do presente imediato? É esquecer que a eficácia
pode gerar reformas. Por exemplo, aquelas que permitiriam racionalizar o
Estado. Enfim e sobretudo, Montaigne convida a sair da suspensão de julga­
mento quando se trata do homem enquanto homem, questionado por procedi­
mentos inúteis, tanto e tão bem que nos possamos perguntar em que medida
todo atentado à humanidade como tal não é, sempre, ao menos em perspectiva,
inútil e, portanto, condenável.
É em nome do útil que são realmente condenados as torturas e os
tratamentos bárbaros. Assim, a crueldade é denunciada como “o extremo de
todos os vícios”. E já é sem dúvida de generosidade que seria preciso falar
quando ele convida os pais a terem afeição por seus filhos.
Em nome do útil, ainda, ele privilegia a humanidade dentro do homem
mais do que a nacionalidade, a cor da pele ou qualquer outra diferença. Pois
“estimo todos os homens meus compatriotas”, colocando uma “ligação" com
a natureza humana (“o universal e o comum”).

839
0 que esconde a referência ao útil é que ele é um critério autorizando
melhor do que qualquer ilha utópica um ataque moral a partir do terreno
adverso. Agora sempre é possível à consciência, aproveitando de seu dis­
tanciamento substancial, abandonar a suspensão do julgamento para produzir
críticas que se baseiam sobre a tomada em conta do interesse real que move a
ação.
Ainda assim, essa saída é apenas possível. O princípio de utilidade vale
também para a efetividade do ataque: é ou não é a ocasião? Vale ainda para a
busca dos meios: ele apela para o cálculo sobre a obliqüidade a fim de obter a
melhor eficácia possível, como fez o próprio Montaigne, ao escrever os Ensaios.
Mas Montaigne não pára no ponto em que espreita o cinismo (no sentido
moderno). O método leva a um terceiro momento. Pois existe uma “justiça
universal em si” a partir da qual a consciência cética pode fazer julgamento
ultrapassando o útil. O homem abre-se então para uma outra dimensão: a da
consciência que reclama direitos.
Dessa maneira, o homem que comete faltas para com um outro homem por
motivos de eficácia política não é condenável do ponto de vista do útil. E,
entretanto, Montaigne diz não aceitar que, se dentro de sua interioridade aquele
que cometeu tal ação tem má consciência, se ele a fez contra sua vontade (no
sentido forte). Pois acontece um momento em que Pascal se endereça "a vossa
virtude e a vossa consciência” que "não são partes para colocar sob máscara”.
Esse prolongamento da reflexão de Montaigne pode ser entendido?
Como conseqüências de princípios a priori ou como lições tiradas a partir de
experiências do mundo, certamente não. O homem não é angélico e dificil­
mente aceita regular sua conduta pela razão, fora do cálculo de interesse.
Montaigne escolhe, então, nesses momentos valorizar sua experiência
própria e suas fraquezas. Ele afirma compreender que se possa não respeitar
o homem nos outros e tratá-los como meios; a política tem suas regras. Mas
ele se recusa a isso por ser incapaz: se for preciso uma “conduta direta e curta”
em que “haja necessidade do vigor e da liberdade”, ei-lo encantado, prestes a
se comprometer, se não o Grande “fará melhor endereçando-se a algum outro”.
Mais ainda: ele compreende aqueles que repelem tais compromissos e
justifica a atitude deles. Da mesma forma ele confessa que sempre cultivou a
verdade a ponto de não a esconder dos Grandes, mesmo arriscando-se a perder
seu papel de conselheiro. Admitindo que a traição pode ser uma “virtude” política
(no sentido de Maquiavel), ela a rejeita para si mesmo. E aquele que parecia ser
o apóstolo da eficácia afirma que é preciso sempre respeitar as promessas, pois
essas comprometem nossa consciência. Mais globalmente: a honestidade diante
dos outros é necessária porque ela é também honestidade diante de si mesmo.
A figura do homem honesto se desprende, assim, para além do consenti­
mento global no mundo. O último momento do ensino preparatório é atingido
quando o sentimento moral experimentado pelo narrador seduz o leitor que,
por identificação, ultrapassa o ponto de vista do útil. Por esse caminho indireto
é dito o que nenhum outro estilo poderia dizer. O “ego” (Eu encarnado
segundo o cálculo), o Estilo e o honesto formam um triângulo que encerra o

840
conjunto do pensamento dando-lhe seu sentido humanista e colocando o
Homem, sozinho, no centro.
Desde então parece que não só é necessário dentro do mundo social e
político armar-se do útil para impedir os atos bábaros, como também é
desejável recusar o que transgride a humanidade que está em nós. Recusa
tornada possível pela existência, acima ou ao lado das instituições políticas e
dos usos que variam, de uma moral do homem honesto chamada apenas pelo
livre pensamento; Montaigne vai, assim, mais longe em direção ao antropocen-
trismo do que Pic de La Mirandole ou Erasmo. Ele leva realmente para além
da reflexão de La Boétie.
O “honesto” domina o útil.
Mas a recusa é a atitude-limite de um filósofo que deseja antes de tudo
viver bem e que, consciente do tempo e da futilidade dos jogos humanos,
procura a alegria. Resta que esse amor razoável pela música da vida não pode
fazer aceitar atitudes imorais. É exatamente porque, para terminar seus
Ensaios, Montaigne não apela a Dionísio, mas a Apoio. Apoio ao qual ele pede
com humildade, retomando Horácio —o modelo humanista do equilíbrio e da
virtude —para lhe conceder uma velhice que não seja “nem vergonhosa, nem
privada de lira”.

• Existe um grande número de edições dos E n sa io s. Há editores que privilegiam o texto de


1588, que corresponde à última versão publicada quando Montaigne era vivo. Outros preferem
recorrer ao “exemplar de Bordeaux", isto é, o texto de 1588 com as adições e correções feitas
pelo autor até sua morte; é esse o que parece ter mais legitimamente sustentado a maioria das
edições contemporâneas (como a da P le ia d e ou de Gallimard). Outros, enfim, preferem retomar
a edição póstuma de Mlle de Goumay, discípula do mestre, que compreende também numerosas
edições das quais não se pode ser totalmente persuadido de que venham mesmo de Montaigne.

► Pode-se consultar sobre Montaigne duas revistas especializadas: o B u llelin d e la S o c ié té d e s


a m is d e M o n ta ig n e e a B ib lio th è q u e d 'H u m a n ism e e t R e n a issa n c e . Entre as muito munerosas
obras notar-se-ão: R. Aulotte, Ê tu d e s s u r le s “E ssa is" d e M o n ta ig n e , Paris, 1973; M. Baraz,
L ’ê tr e e t la c o n n a is s a n c e se lo n M o n ta ig n e, Paris, 1968; L. Brunschvicg, D e sc a rte s e t P a sca l,
le c te u rs d e M o n ta ig n e , Neuchâtel, 1945; M. Butor, E ss a is s u r le s “E s s a ls ”, Paris, Gallimard,
1968; M. Conche, M o n ta ig n e ou la c o n s c ie n c e h e u reu se , Paris, 1964 (assim como seus artigos
em BSAM); M. Dreano, L a re lig io n d e M o n ta ig n e, Paris, Nizet, 1969; H. Ehrlich, M o n ta ig n e: la
c ritiq u e e t le la n g a g e , Paris, 1972; D. Frame, M o n ta ig n e's D is c o v e r y o f M an, N.-Y., 1955; A
Glauser, M o n ta ig n e p a ra d o x a l, Paris, 1972; H. Friedrich, M o n ta ig n e, Paris, Gallimard, 1968
(tradução de um texto de 1949, publicado em Berna); P. Hallie, The s c a r o f M o n ta ig n e,
Middletown, Conn., 1966; M. Horkheimer, M o n ta ig n e u n d d ie F u n k tio n d e r S k e p s is , Frankfurt-
sur-Main, 1968; F. Joukovsky, M o n ta ig n e e t le p r o b lè m e d u te m p s. Paris, Nizet, 1972; E. Marcu,
R é p e r to ir e d e s id é e s d e M o n ta ig n e, Paris, Droz, 1965; A Micha, L e s in g u lie r M o n ta ig n e, Paris,
Nizet; 1964; P. Moreau, M o n ta ig n e , 1’h o m m e e t V oeu vre, Paris, Hatier, 1939-1961; P. Michel,
M o n ta ig n e, Ducros, Saint-Médard-en-Jalles, 1970; G. Nakam, M o n ta ig n e en so n te m p s, Paris,
Nizet; Naudeau, L a p e n s é s d e M o n ta ig n e, Paris, Droz, 1972; J.-Y. PoUilloux, L ir e le s “E ssais",
Paris, 1969; J. Starobinski, M o n ta ig n e e n m o u v e m e n t, Paris, Gallimard, 1982; A Thibaudet,
M o n ta ig n e, Paris, Gallimard, 1963; W. Traeger, A u fb a u u n d G e d a n k e n fü h ru n g in M o n ta ig n e s
E ssa ys, Heildelberg, 1961; R. Trinquet, L a je u n e s s e d e M o n ta ig n e, Paris, Nizet, 1972; P. Villey,

841
L e s s o u r c e s e t V évo lu tio n d e s “E ssais", Paris, Hachette (1908 e 1933); M. Weiler, P o u r
c o n n a itre la p e n s é e d e M o n ta ig n e, Paris, 1948; Zweig, M on taign e, 1982.

Yves ROUCAUTE.

MONTESQUIEU, Charles-Louis de SECONDAT, barão de, 1689-1755


O Espírito das Leis, 1748

Montesquieu deixou a imagem contraditória de um grande magistrado


liberal, de um cavalheiro latifundiário visando a aumentar ainda mais seus
domínios, a de um homem do mundo, brilhante proseador e libertino. As
representações que se fizeram de sua maior obra, L 'esprit des lois (O espírito
das leis), não são menos contraditórias, pelo menos no que concerne à
ideologia que a impregna: liberal, reformadora, conservadora, até mesmo
reacionária. O estranho é-que tudo isso é igualmente verdadeiro.
Charles-Louis de Secondat, futuro barão de La Brède et de Montesquieu,
nasceu em 1689 em uma família pertencente há muito tempo à nobreza de
beca: o cargo de presidente de barrete do Parlamento de Guyenne* havia
pertencido a seu avô, depois a seu tio e lhe estava destinado. Recebeu,
portanto, uma educação destinada a prepará-lo para suas atividades de magis­
trado. Foi pensionista no Colégio de Juilly, perto de Paris, mantido pelos
membros da congregação do oratório que passavam por liberais, freqüentou
depois sem grande entusiasmo a Faculdade de Direito.
Voltando a Breda por ocasião da morte de seu pai, em 1713, se preocupa
em restabelecer a situação material de sua família. Consegue isso perfeita-
mente, em parte graças a seu casamento que lhe valeu um dote importante.
Alguns anos mais tarde, entra para o Parlamento de Guyenne e começa uma
vida de notável provincial, freqüenta os salões, gere seu domínio, se faz eleger
na Academia das Ciências de Bordeaux. Escreve também as Lettres persanes
{Cartas persas). Elas são publicadas em Cologne em 1771 sem o nome do
autor. Quando o livro alcança sucesso, quer dizer, muito depressa, o anonima­
to é retirado. Nesse momento, começa “a época mundana de Montesquieu” (P.
Vernière, pág. 15). Ele passa a metade do ano em Paris, nos salões, nos círculos
literários, e só escreve obras sem grande interesse, em gêneros muito dife­
rentes: político, como o Dialogue de Sylla et d ’Eucrate, em 1724, jurídico,
como as Réflexions sur la Monarchie Universelle, em 1727, ou libertino, como
Le Temple de Gnide, em 1725.

* Guyenne - antiga província francesa que se confundia com a Aquitânia.

842
Em 1728, nova mudança, preparada com cuidado: vendeu seu cargo de
presidente, deu procuração à sua mulher para a gestão do domínio e partiu. Sua
viagem durou mais de quatro anos e o conduziu à Alemanha, à Áustria, à Itália
e, principalmente, à Inglaterra. Os motivos dessa viagem foram discutidos. Para
alguns, tratava-se de um ferimento de amor-próprio. O Senhor Presidente de
barrete do Parlamento de Bordeaux havia sido censurado por ter escrito Le
Temple de Gnide. Havia então bravamente pretendido não ser seu autor, depois
aceitou alguns comprometimentos para entrar na Academia onde seu aco­
lhimento fora frio. Mas, para a maioria dos comentadores, segundo uma tradição
que remonta ao Elogio de d’Alembert e que o próprio Montesquieu contribuiu
para estabelecer, “sentia que existiam objetos dignos de ocupar seus talentos;
que um cidadão é devedor à sua nação e à humanidade de todo o bem que ele
pode lhes fazer (e que) para se tornar útil por suas obras às diferentes nações,
era necessário que ele as conhecesse" (d’Alembert). Ele teria tido, portanto, desde
essa época, o projeto de O Espírito das leis e teria empreendido uma viagem de
estudos para colher o material de sua grande obra. Segundo outros, ainda, teria
cobiçado um posto diplomático que lhe mostraram para seduzi-lo e teria procu­
rado fazer valer seus talentos (Vernière, pág. 17).
O essencial é que essa viagem teve, senão como meta, pelo menos como
resultado, uma soma considerável de informações sobre todos os assuntos
possíveis: geologia, técnicas de engenharia, música, pintura, economia e, é claro,
política. Entrou em contato com alguns dos homens - e das obras - mais
marcantes da época e com a vida política dos países onde esteve. Quando deixou
Paris foi na compania de Lord Waldegrave, futuro embaixador da Inglaterra em
Paris. Em Veneza, ele examina e critica o funcionamento de uma república
aristocrática, como mais tarde, na Holanda, o de uma república democrática. Em
Nápoles, leu Vico. A estada na Inglaterra foi particularmente marcante. Cultivou
amizades com vários homens políticos, foi introduzido na corte e tornou-se
franco-maçom. Assistiu a sessões do Parlamento e leu a imprensa que conhecia
nesse momento seu verdadeiro início com o Craftsman de Lord Bolingbroke.
Quando voltou para a França, em 1731, teve de renunciar, após uma
última tentativa, a suas ambições diplomáticas e instalou-se em La Brède.
Publicou, em 1734, as Considerations sur les Romains (Considerações sobre
os romanos), que é não uma história de Roma, mas sim uma tentativa de
descobrir as leis dessa história. Enfim, em 1734, começa a obra monumental,
aquela que a posteridade reteve ou, melhor, da qual ela reteve o título e um
de seus capítulos: 1 ’E sprit des lois (O espírito das leis).
O trabalho lhe tomou quatorze anos. Durante esse período permaneceu
em La Brède, onde possuía 3.000 volumes, mas também em Paris, onde
conservava uma segunda biblioteca e onde continuou a freqüentar os salões,
a academia e sua loja maçônica. Quando a obra apareceu em Genebra, em
1748, como sempre sem o nome do autor, foi “o maior acontecimento literário
europeu do séculos das Luzes” (Vernière). Após um curto período de inter­
dição na França, foi autorizada por Malesherbes, traduzida em inglês e em
italiano. Em menos de dois anos apareceram vinte e duas edições. Certamente,

843
Montesquieu sofreu nesse momento alguns ataques muito duros, principal­
mente da parte do partido clerical, que o acusou de “spinozismo”. Mas, no
conjunto, o trabalho foi aclamado como obra-prima. Diz-se que Montesquieu
descobriu as leis do mundo intelectual, como Newton descobriu as do mundo
físico. Tornou-se, então, o objeto de uma verdadeira moda. Para os ingleses,
políticos ou filósofos, a visita a Montesquieu tornou-se uma etapa obrigatória
de toda viagem à Europa, e o elogio de L ’E spritdes lois, seu comentário ou
sua paráfrase, um verdadeiro gênero literário. Foi assim que o tomo V de
L ‘Encyclopédie (A Enciclopédia) se inicia com o elogio de Montesquieu e de
d’Alembert A própria Enciclopédia traz sua marca. Se não teve coragem para
redigi-la ele mesmo, como lhe foi pedido - ele se limitará ao artigo “gosto" - ,
foi um de seus discípulos quem foi encarregado dos artigos políticos. Isso é
apenas um exemplo. Na realidade, todos os escritores políticos do século se
referem a ele. Foi, portanto, como escreve Paul Vernière, "o primeiro dos
filósofos, do mesmo nível de Voltaire”, que faleceu em 1755 em Paris (pág. 25).
Essa glória, que persistiu, tem, tratando-se de um filósofo político, algo
de estranho e só pode ser comparada à de Marx. É que se considerou e se
considera ainda Montesquieu não somente um teórico que teria lançado sobre
a política ou sobre a sociedade um novo modo de olhar, mas um verdadeiro
sábio, um descobridor e um inventor. Não é a Aristóteles que seus contempo­
râneos ou os nossos o comparam; nem a Rousseau, nem a Voltaire, mas a Lineu
ou a Newton. Pouco importa que as descobertas a ele creditadas não sejam
sempre as mesmas: no século XVIII a teoria dos climas ou a teoria das leis,
mais tarde a separação dos poderes ou a sociologia; pois, antes de ser inovador
por sua teoria, ele o foi por seu método e por seu objeto.

O método e o objeto

Montesquieu foi considerado não apenas jurista e teórico do direito, mas


também precursor da sociologia (Augusto Comte e Durkheim), até mesmo, por
Raymond Aron, o primeiro dos sociólogos (pág. 66), mesmo se ele o considera,
ao mesmo tempo, o último dos filósofos clássicos, como um pioneiro da
sociologia e do direito (Gurvitch), o inventor da sociologia do conhecimento
(W. Stark) ou do método dos tipos ideais.
Ele próprio estava consciente da novidade de sua metodologia, como
testemunha sua epígrafe: Prolem sine matre creatam. A novidade é antes de
tudo a do objeto de O espírito das leis. “Esta obra, escreve Montesquieu, tem
como objetos as leis, os costumes e os diversos usos de todos os povos da terra.
Pode-se dizer que seu assunto é imenso, já que ele abraça todas as instituições
que são recebidas entre os homens.” Sobre esse ponto, a originalidade é dupla:
em primeiro lugar, ela reside no caráter enciclopédico do projeto. Houve,
certamente, antes de Montesquieu descrições de tal ou tal direito mais ou menos
exótico, histórias de certas instituições jurídicas particulares, reflexões filosóficas
apoiadas sobre exemplos, mas nunca uma tomada em conta da totalidade dos
fenômenos jurídicos conhecidos, dentro da meta de fazer dela teoria. O segundo

844
aspecto foi, como o primeiro, bem percebido pelos contemporâneos. D’AIembert
observai, assim, que "a maioria dos outros escritores desse gênero são quase
sempre ou simples moralistas, ou simples jurisconsultos, ou mesmo, algumas
vezes, simples teólogos” (Êloge de Montesquieu). Realmente, as obras políticas
e jurídicas «interiores se conformam sempre, sob uma forma ou outra, à tradição
jusnaturalista. O ponto comum a todas ais escolas do direito natural é que elas
professam a existência, além, acima do direito em vigor, dito direito positivo, de
um outro direito que se trata de descobrir seja na palavra divina, seja na natureza
das coisas ou na do homem. Esses dois direitos, o natural e o positivo, se
distinguem como o absoluto e o relativo, o universal e o particular, o necessário
e o contingente. Ora, pela primeira vez, Montesquieu se dá como objeto exclusivo
o estudo do direito positivo, ao qual ele se aterá somente a descrever e ao qual
ele se interdirá - em princípio —de julgar: "Não escrevo para censurar o que está
estabelecido em qualquer país que seja” (Prefácio). Aliás, ele será censurado por
isso. Rousseau, por exemplo, escreve: "O direito político está ainda por nascer, e
presume-se que não nascerá nunca... 0 único moderno em estado de criar essa
grande e útil ciência foi o ilustre Montesquieu. Mas ele não teve nenhuma
intenção de tratar dos princípios do direito político; contentou-se em tratar do
direito positivo dos governos estabelecidos, e nada no mundo é mais diferente
do que esses dois estudos. No entanto aquele que quer julgar de maneira sã os
governos tal como existem é obrigado a reunir os dois: é preciso saber o que deve
ser para bem julgar o que é” (Émile, Paris, Garnier, 1961, pág. 584).
A audácia de Montesquieu em empreender um estudo das leis positivas
de todos os países e de todos os tempos foi considerável. A filosofia tradicional
enfatizava a grande diversidade das leis positivas segundo os povos que eram
submetidos a elas. Essas leis eram na verdade colocadas por vontades humanas
e pareciam arbitrárias e irracionais. Aliás, essa era uma das razões que levavam
ao estudo de um direito natural, estável e racional. A verdadeira revolução de
Montesquieu foi de postular que há uma razão no direito positivo, de supor,
como está escrito no Prefácio, que os homens “dentro dessa infinita diversida­
de de leis e costumes não eram unicamente conduzidos por suas fantasias”,
em outras palavras, que se pode encontrar, nesse conjunto das regularidades,
“princípios”, assim como o direito positivo e as sociedades humanas podem ser
objetos de ciência, porque são submetidos à necessidade (cf. Althusser, págs.
9 e 10).
A novidade do objeto implicava uma revolução metodológica: a filosofia
do direito racional, até Spinoza, raciocina sobre essências e procede por
dedução. Ao contrário, como Newton para a natureza, Montesquieu parte não
dos princípios, mas dos fatos e é a partir dos fatos que procura descobrir os
“princípios” que os explicam (cf. S. Goyard-Fabre, pág. 54 e segs.). Esses
“princípios”, dos quais Montesquieu fala constantemente, são para o direito o
que as leis são para o mundo físico. A palavra “lei” é, aliás, o objeto, desde as
primeiras linhas de L ’E sprit des.lois, de uma definição que deu lugar a uma
certa confusão: “As leis, dentro de sua significação mais ampla, são as relações
necessárias que derivam da natureza das coisas.” Freqüentemente acreditou-se

845
que essa definição não dizia respeito às leis positivas, mas somente às leis
físicas, às leis causais, por exemplo, e que Montesquieu pretendia procurar as
“leis das leis” (cf. Althusser).
Essa interpretação só é exata parcialmente. Ela pressupõe, na verdade, que
Montesquieu teria professado um dualismo muito nítido entre as leis da natureza
e as leis colocadas pelo poder político. Ora, ele procurou, ao contrário, mostrar
que ali onde se acreditava ver a fantasia e os caprichos dos homens, havia uma
necessidade, e que as leis positivas derivavam, elas também, da natureza das
coisas. Algumas derivam da natureza do governo - como é precisamente o título
do livro II de O Espírito das leis-, outras derivam do clima, dos costumes, etc.
Dessa maneira, as leis positivas são, elas também, “relações”. O que não impede,
bem entendido, que elas sejam suscetíveis de serem ordenadas e explicadas. Se
se quiser conservar a expressão “leis das leis”, é preciso considerar, conseqüen­
temente, que a palavra “lei” conserva o mesmo sentido dentro de seus dois
empregos, mas que ela designa somente dois graus de generalidade das propo­
sições que descrevem “relações”. É por isso que Montesquieu prefere, para
designar as leis das leis, utilizar a palavra “princípio”, mesmo se essa palavra tem,
desde essa época, dentro da língua jurídica, uma conotação prescritiva. Ele
escreve em sua Advertência-. “Tive idéias novas; foi preciso encontrar novas
palavras ou dar às antigas novas acepções.” Seus princípios são, portanto,
princípios explicativos. O método é claro: é o das ciências da natureza. Montes­
quieu observa a infinita diversidade das leis e dos costumes, depois formula
hipóteses explicativas que serão verificadas pela análise das instituições antigas
ou estrangeiras: “Coloquei os princípios e vi os casos particulares se submeterem
a eles, assim como eles próprios” (Prefácio). É nesse sentido que ele pode ser
visto como o fundador do direito comparado: ele não se limita a descrever regras
mais ou menos pitorescas, mas pretende utilizar esse estudo como um substituto
da experimentação.
Eis sua primeira inovação epistemológica. A segunda foi de ter procurado
a explicação das leis não dentro de um fator único (a vontade do soberano, a
religião, etc.), mas dentro de uma combinação de fatores: “Várias coisas gover­
nam os homens: o clima, a religião, as leis, as máximas de governo, os exemplos
das coisas passadas, os costumes, as maneiras; daí se forma um espírito geral que
resulta disso tudo” (XIX, 4). Há aí, duas idéias: de um lado a da sociedade
considerada enquanto totalidade, de onde decorre que classificar os princípios
das leis é classificar as próprias sociedades. Como Durkheim mostrou, quando
Montesquieu classifica as formas de governo são as formas de sociedade que ele
classifica (III, 55). Aliás, isso não tem nada de surpreendente, já que os homens
do século XVIII não fazem distinção entre o Estado e a sociedade. De outro lado,
a idéia de sistema: o espírito geral depende de várias coisas que, por sua vez,
dependem do espírito geral e cada uma das outras, as leis dependem dos
costumes ou do clima, os costumes dependem das leis, das máximas do governo
ou da religião. Não de trata, portanto, dentro de L'Esprit des lois, somente de
sociologia jurídica, mas de sociologia simplesmente.
Em compensação, deve-se constatar que Montesquieu não é inovador em

846
tudo e que ele o é sobre certos pontos bem menos do que se imaginava. Foi
observado que a classificação das formas de governo não tinha por objetivo
Estados reais e que ela terminava na formação de tipos ideais. É verdade que
o despotismo do qual ele fala não é o de Pedro, o Grande e que sua república
não era a Holanda, e que há no enunciado de seus caracteres a dimensão do
mito, o do Oriente para o despotismo, o da Antigüidade para a República. É
igualmente verdade que os governos são caracterizados por traços que Mon-
tesquieu introduziu para que juntos formem sistemas coerentes e que pouco
lhe importa que eles não correspondam a nenhuma realidade histórica. Assim,
o princípio da República é a virtude, e o do despotismo, o temor, “o que não
significa que, dentro de uma certa república, se seja virtuoso... e que em um
Estado despótico particular se tenha temor, porémque seria preciso tê-los; sem
isso o governo será imperfeito” (III, 11). Da mesma maneira, a constituição
inglesa tem por objeto a liberdade política, mas “não me cabe examinar se os
ingleses gozam atualmente dessa liberdade” (XI, 6). Portanto, Montesquieu se
limitou a apenas enunciar definições. Se “é preciso” ter medo em um Estado
despótico, não é porque exista nesse Estado um perigo real de opressão -
Montesquieu não faz psicologia - , mas porque, sem o medo, esse caráter
constitutivo do despotismo, um Estado particular não poderia ser classificado
sob essa etiqueta, da mesma maneira que é preciso que um triângulo tenha
dois ângulos iguais para que se o possa chamar de isóscele.
Entretanto, se se considerar o uso que esse autor faz de suas categorias,
deve-se constatar que seu método está mais próximo do racionalismo cartesiano
do que dos tipos ideais. Realmente, a partir das definições dos governos, ele tira
as "conseqüências” de cada um dos três sistemas. Dessa maneira, o livro VI se
intitula: “Conseqüências dos princípios dos diversos governos, com relação à
simplicidade das leis civis e criminais, a forma dos julgamentos e o estabe­
lecimento das penas”; da mesma maneira, o livro VII tira as "Conseqüências dos
diferentes princípios dos três governos com relação às leis suntuárias, ao luxo e
à condição das mulheres”. Além disso, ele não examina, salvo alguns exemplos,
se essas “conseqüências” se verificam, de tal modo que os modelos que ele
elaborou não possam ser destinados a procurar hipóteses relativas a uma
causalidade real. Portanto, é errado fazer-se dele um precursor e até mesmo o
inventor do método dos tipos ideais. Esse conduz igualmente à determinação de
modelos abstratos, mas com a meta de descrever sistemas concretos e medir
numa continuidade social sua proximidade ou afastamento do tipo.
E preciso sublinhar por outro lado que as preocupações de Montesquieu
não são exclusivamente descritivas e que a ruptura com a escola de direito
natural não é completa. Aliás, esse ponto é controvertido: segundo uma inter­
pretação de origem positivista, a de Durkheim, apesar de certas reservas, a de J.
Dedieu ou a de Althusser, Montesquieu seria o fundador de um método
sociológico baseado sobre a observação e a experiência. Ao contrário, outros
autores, R. Aron, J. Ehrard e, mais recentemente, Waddicor, notam a persistência
de preocupações morais, de vontade de reformas e alguns vão até o ponto de
fazê-lo herdeiro de Pufendorf (Waddicor, conclusão). Essas duas teses repousam

847
sobre argumentos sólidos, mas não parecem inconciliáveis. Durkheim parece ter
tido a intuição disso. Depois de ter notado que Montesquieu “está longe de
considerar as coisas humanas de maneira tão tranqüila” [como se pretendeu] e
que ele não se desinteressou da política, escreve: "As regras que ele enuncia não
são na maioria das vezes nada mais do que verdades, traduzidas em outra língua,
que a ciência já demonstrou anteriormente com a ajuda de seu método próprio.”
Em outras palavras, é verdade que Montesquieu enuncia regras, mas são apenas
regras técnicas e não regras morais ou jurídicas. Sabendo, por exemplo, que tal
causa leva a tal conseqüência, pode colocar tal fim como desejável na ordem da
legislação ou dos costumes e procurar o meio técnico que permite atingi-lo. Ele
se liga, portanto, à corrente jusnaturalista, já que determina os fins. Rompe com
ela quando procura utilizar, para chegar ao fim desejado, a causalidade natural.
A melhor ilustração desse modo de agir se encontra no famoso capítulo sobre a
constituição da Inglaterra.

A doutrina

Se os contemporâneos de Montesquieu ficaram impressionados princi­


palmente pela teoria dos climas, pode-se dizer, sem esquematismo excessivo,
que a posteridade reteve de O Espírito das leis duas teorias: as formas de
governo e a separação dos poderes.

As formas de governo. —Há três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o


despótico. Para descobrir sua natureza basta a idéia que têm dela os homens menos
instruídos. Suponho três definições ou, melhor, três fatos: um, que “o governo republi­
cano é aquele em que o povo em conjunto ou somente uma parte do povo tem o poder
soberano; o monárquico, aquele em que um só governa, mas por ieis fixas e estabelecidas;
enquanto, no despotismo, um só, sem lei e sem regras, conduz tudo por sua vontade e
seus caprichos” (II, 1).

A maioria dos comentadores enfatizou que Montesquieu, mesmo dis­


tinguindo, como todos os seus predecessores, três formas de governo, rompe,
entretanto, com a tradição de duas maneiras: de um lado, substitui o critério
habitual de classificação, baseado sobre o número dos governantes (um,
alguns, todos), por um outro critério mais complexo, tirado da “natureza” dos
governos, isto é, ao mesmo tempo o número de governantes e a sua maneira
de governar (com ou sem leis). De outro lado, a classificação só é seletiva na
aparência. Na realidade, Montesquieu determina duas classes, os governos em
que só um detém a soberania, que se dividem em "monarquia” e “despotismo”,
e aqueles em que o poder pertence ao povo todo ou a uma parte do povo, que
se subdividem igualmente em república aristocrática e república democrática.
Cada espécie de governo se caracteriza não somente por sua natureza, mas
também por seu “princípio”. O do despotismo é o medo, o da República, a virtude,
o da monarquia, a honra. Os dois conceitos são cuidadosamente distinguidos. A
natureza do governo é “o que faz ser tal... sua estrutura particular” (III, 1), seu
princípio é “o que o faz agir... são as paixões humanas que o fazem mover-se”

848
(ibidem). Essa única citação mostra a que ponto é temerária a interpretação
dialética de Althusser, segundo a qual Montesquieu teria concebido o governo
como uma totalidade definida pela relação natureza-princípio. Essa totalidade só
se manteria se a relação natureza-princípio fosse não-contraditória. Bastaria
aparecer uma contradição, e o governo pereceria (Althusser, págs. 4045). Na
realidade, os dois conceitos são perfeitamente hierarquizados, e o princípio não
pode entrar em contradição com a natureza do governo. Compreender-se-ia mal,
aliás, em que poderia consistir a contradição entre o governo de um só sem lei,
que é a natureza do despotismo, e seu princípio ou seu contrário, a ausência de
medo, por exemplo. Segundo Montesquieu, decorre simplesmente da natureza
do governo que ele aja de preferência com a ajuda de tal ou qual “energia”: o
despotismo, pelo medo, ou a monarquia, pelo sentimento de honra.
A propósito da “natureza” do governo monárquico, ainda é preciso notar
que ela não reside, como às vezes se escreveu, na submissão do monarca às
leis, mas na forma do exercício do poder. O monarca não governa “segundo”
as leis, mas sim "pelas” leis. Aliás, Montesquieu insiste muito sobre esse ponto:
“Os poderes intermediários, subordinados e dependentes constituem a nature­
za do governo monárquico, isto é, daquele em que um só governa por leis
fundamentais” (II, 4). Portanto, existe um vínculo entre os corpos inter­
mediários e as leis fundamentais. Com efeito, se o príncipe não exprime uma
“vontade momentânea e caprichosa” e exerce seu poder editando as leis fixas
e estabelecidas, será preciso poderes intermediários, "canais médios por onde
passar o poder”, que farão sua aplicação. Esses poderes intermediários podem
ser, por exemplo, as justiças senhoriais ou eclesiásticas, mas trata-se fundamen­
talmente de órgãos da ordem jurídica. O que Montesquieu descreve, sob o
nome de monarquia, nada mais é do que o Estado de direito, se se entender
por isso não um Estado submetido ao direito —nesse sentido, Montesquieu
não é um constitucionalista —, mas um estado estruturado como o direito.
Existe também, ao lado da natureza e do princípio dos governos, um
terceiro termo ao qual não deu suficientemente atenção, sem dúvida porque
Montesquieu não lhe consagra o título de um dos livros de L ’E spritdes lois,
é o termo "Objeto”. O objeto de um Estado é aquilo para o qual ele tende, o
que ele produz necessariamente em razão de sua natureza. Todo Estado, bem
entendido, tende à sua própria conservação, mas, além disso, cada Estado
particular tem um objetivo próprio, que depende da sua história ou da classe
à qual pertence. Assim, "a ampliação era o objeto de Roma; a guerra, o de
Esparta; a religião, o das leis judaicas” (XI, 5). Pode-se, portanto, estabelecer
uma correspondência entre as formas dos governos e seus respectivos objetos:
o governo despótico tem como objeto as delícias do príncipe, a monarquia “sua
glória e a do Estado”. Aliás, ele não indica qual é o objeto da república. Mas
essa correspondência entre natureza e objeto do governo lhe permite abordar
de uma maneira bem nova a questão da liberdade política.
Não se trata, para ele, como já se viu, de preconizar a liberdade política,
mas de procurar regras técnicas baseadas sobre a constatação de relações
causais. Ora, se a natureza e o objeto de um governo estão ligados e se nenhum

849
dos três governos tem por objeto a liberdade, é possível inverter os termos do
problema e examinar qual poderia ser a natureza de um governo que teria esse
objeto. Por hipótese, esse governo não entrará em nenhuma das três classes.
Esse governo é o da Inglaterra. Mas, como para os três governos simples,
não se trata do sistema político inglês real, mas sim de um modelo. Portanto,
é inútil discutir, como se faz às vezes, a exatidão da descrição de Montesquieu.
Alguns o censuram, por exemplo, por ter negligenciado o papel do gabinete e
ignorado as primeiras manifestações do regime parlamentar, enquanto outros
tendem a demonstrar seja que ele não podia perceber esses fenômenos - ainda
existentes ou imperceptíveis na época em que ele esteve na Inglaterra - , seja
que ele os percebeu muito bem. Mas o que ele descreve é “a constituição da
Inglaterra”, isto é, dentro do vocabulário da época, não o conjunto das regras
de direito positivo que regem a organização e o funcionamento dos poderes
públicos nem as práticas políticas, mas, muito mais genericamente, uma forma
de governo. Os dois termos, “constituição” e “forma de governo” são nos
séculos XVII e XVIII perfeitamente sinônimos. O governo da Inglaterra é,
portanto, a quarta forma de governo. Sabendo que ela tem como objeto a
liberdade política, é preciso descobrir sua natureza, quer dizer, é preciso
pesquisar a quem pertence o poder. É aqui que intervém o que se chama
conseqüentemente de a teoria da separação dos poderes.
A separação dos poderes. - Segundo uma interpretação tradicional, devida
aos juristas do fim do século XIX e sempre aceita por muitos entre eles,
Montesquieu seria o inventor da teoria da separação dos poderes, que ele teria
exposto no capítulo sobre a constituição da Inglaterra. Para esses juristas, a
teoria da separação —ou a doutrina da separação dos poderes - é analisada em
dois princípios simples: um princípio de especialização e um princípio de
independência. O primeiro, chamado às vezes de “separação das funções”,
prescreve que as três grandes funções do Estado, legislativa, executiva e judiciá­
ria, sejam exercidas por três autoridades ou órgãos distintos, sem nenhuma
colaboração entre eles nem invasão de um sobre a função de um dos outros. De
acordo com o segundo princípio, dito "separação dos órgãos”, cada uma dessas
autoridades deve ser totalmente independente das outras duas, o que implica que
os membros que a compõem não possam ser destituídos por uma outra
autoridade, nem mesmo nomeados por ela. Em uma versão extrema, os órgãos
devem ser isolados uns dos outros. Desse modo, os membros da autoridade
executiva não poderiam nem mesmo penetrar os locais ocupados pelo órgão
legislativo; cada um deveria dispor de recursos financeiros próprios e até mesmo
de uma guarda armada. Dessa dupla separação, deveria resultar um equilíbrio
dos poderes, pois cada um dos órgãos estaria apto a se opor aos eventuais
atentados despóticos dos outros. A liberdade seria preservada, portanto.
Existe uma versão moderada dessa interpretação, segundo a qual Mon­
tesquieu não teria sido partidário de uma separação tão rígida, mas de uma
separação moderada ou branda dos poderes. Segundo a doutrina da separação
branda dos poderes, exceções poderiam ser aceitas e seriam mesmo recomen­
dadas, ou seja, no princípio de especialização - o poder executivo poderia ter

850
reconhecido uma participação sua na função legislativa, por exemplo pelo
direito de iniciativa; o poder legislativo poderia controlar a execução das leis
—, ou seja, pelo princípio de independência: a doutrina exigiria, então, apenas
que os órgãos fossem mutuamente dependentes.
Em uma ou outra versão, a separação dos poderes ocupou e ocupa ainda
um lugar central dentro da doutrina do direito público. Ela foi criticada ou
defendida e serve principalmente de critério para a classificação mais difundida
dos regimes políticos e de fundamento para a teoria dominante do direito
administrativo francês.
Ora, deveria ser perfeitamente claro, desde que Charles Eisenmann fez
sua demonstração, que Montesquieu não poderia endossar a paternidade nem
contribuir com a responsabilidade dessa doutrina verdadeiramente absurda.
Carré de Malberg já havia feito notar que a separação dos poderes é não
somente incapaz de provocar esse resultado antecipado, como também produz
necessariamente o resultado inverso. Efetivamente, as funções jurídicas do
Estado não são outra coisa senão classes de atos jurídicos, definidos pelo valor
deles, isto é, por seus lugares dentro da hierarquia. Assim, a lei é dotada de
um valor superior àquele dos atos de execução. As funções jurídicas são,
portanto, por definição, hierarquizadas, de modo que se se especializarem os
órgãos, a hierarquia das funções conduzirá à hierarquia dos órgãos. Portanto,
é verdadeiramente absurdo pretender realizar, assim, qualquer equilíbrio.
Porém, Montesquieu nunca preconizou nem a especialização, nem a
independência dos órgãos. Para se convencer disso basta reler com Eisenmann
o capítulo 6 do livro XI. A função executiva é confiada ao rei, mas esse participa
da função legislativa por meio de sua “faculdade de impedir”, isto é, por seu
direito de veto. Ao contrário, o corpo legislativo ou uma parte dele controla a
execução das leis e participa da função jurídica quando se trata de julgar os
crimes políticos ou, qualquer que seja a natureza da incriminação, de julgar os
“grandes” ou, ainda, quando a câmara dos nobres desempenha o papel de uma
corte suprema. Seria essa a especialização. Quanto à independência, ela não é
mais encontrada aí: é o poder executivo que regula o tempo e a duração das
assembléias legislativas; de seu lado, o poder legislativo pode investigar e
punir, e, portanto, destituir os ministros; é ele quem “ordena sobre o levanta­
mento do dinheiro público” e sobre “as forças de terra e de mar que deve
confiar ao poder executivo”; ele o faz de ano em ano e não para sempre, sem
o que é evidente que “o poder executivo não dependeria mais dele”.
A crítica de Eisenmann, aliás, vale não somente contra a interpretação
rígida da separação dos poderes, mas igualmente contra a idéia de que
Montesquieu teria simplesmente preconizado uma separação branda. Primeiro
por causa do número e da importância das exceções; daí resultaria que os
pretensos princípios estariam vazios de todo conteúdo. De outro lado, pelo fato
de que uma versão moderada da doutrina poderia implicar exceções a um ou
a outro dos princípios, mas não aos dois ao mesmo tempo.
E preciso acrescentar que a interpretação tradicional repousa sobre uma
concepção moderna da liberdade, como autonomia dos cidadãos frente ao poder.

851
Essa liberdade é preservada desde que o Estado se abstenha de intervir na esfera
privada, e os liberais modernos sempre procuraram garantias contra essas
intervenções. Mas essa concepção não é nem a de Montesquieu, nem a do século
XVIII. A liberdade que ele procura estabelecer é “a liberdade política em sua
relação com a constituição” (título do livro XI). Ela não consiste em se fazer o
que se quer... (mas em) fazer tudo o que as leis permitem" (XI, 3). Portanto, ela
é assegurada desde que o cidadão obedeça às leis e só obedeça a elas, qualquer
que seja o conteúdo delas. Ele é livre porque as leis são gerais e fixas e porque
ele sabe precisamente o que pode fazer. A liberdade política é, portanto, da
mesma ordem daquela que acarreta o conhecimento das leis da natureza. Ela se
confunde com a segurança jurídica - e é preciso conseqüentemente que toda
ordem, seja de que autoridade emane, seja tão somente uma aplicação da lei, de
modo que, obedecendo a ela, o cidadão obedeça, ainda que indiretamente, à lei
e só a ela. Pouco importa, então, que a lei se imiscua na esfera individual; a
liberdade política, apesar de tudo, está assegurada, e, no capítulo sobre a
constituição da Inglaterra, o autor não apregoa outra preocupação. Seu sistema
não visa a garantir a liberdade-autonimia, mas somente a liberdade política, e a
finalidade da doutrina da separação dos poderes lhe é totalmente estranha.
Na realidade, como ainda o mostrou Eisenmann, no capítulo 6 do livro
XI, não há a exposição de uma doutrina, mas de dois princípios, que devem ser
cuidadosamente distinguidos e que são, aliás, no século XVIII, de grande
banalidade. O primeiro é que um mesmo órgão, indivíduo ou colégio, não deve
acumular o exercício de duas das funções jurídicas do Estado. Esse princípio
que na época era chamado de “separação dos poderes” ou “distribuição dos
poderes” não se confunde em nada com a doutrina do mesmo nome, segundo
a qual os órgãos devem ser especializados e independentes. Trata-se de uma
regra essencialmente negativa, que não prescreve um modo particular de
repartição das funções, mas que se limita a proibir seu acúmulo. Portanto, ela
permite tanto a especialização quanto o exercício por um órgão de uma função
inteira, ao mesmo tempo que a participação no exercício de uma outra. Nesse
sentido, separação dos poderes é sinônimo de constituição, já que uma cons­
tituição não é outra coisa senão uma repartição das competências. É por isso
que todos os autores hostis ao despotismo, quaisquer que sejam, admitem essa
separação dos poderes. Ela é preconizada desde o século XVII por escritores
tão variados quanto Merchamont Nedham, Locke ou Rousseau. O despotismo
é com efeito a concentração dos poderes entre as mãos de um só, que governa
sem leis, de modo que os homens ficam submetidos a seus caprichos - e é isso,
bem mais do que seu caráter opressivo, que choca, pois é nisso que ele é a
negação da liberdade política.
O segundo princípio de Montesquieu é positivo. Dentro dos diversos
modos de repartição de competências que podem ser concebidos, existe um
que ele preconiza: a função legislativa será atribuída a um órgão complexo,
formado por duas assembléias e pelo rei, enquanto a função executiva será
exercida somente pelo rei. Esse é o sistema da Inglaterra, tal como ele é
descrito correntemente desde o século XVII. Ele apresenta do ponto de vista

852
da liberdade política, no sentido de Montesquieu, duas vantagens considerá­
veis: primeiro, que a regra da separação dos poderes será necessariamente
respeitada, pois, por causa da presença do rei no poder legislativo, as assem­
bléias não poderão se apoderar da função executiva e acumular as duas
funções; depois, que os atos de execução estarão de acordo com a lei, já que
esta só poderá ser feita com o consentimento do rei.
Esse segundo princípio se opõe, portanto, ao princípio democrático, que
implica uma especialização rigorosa, de maneira a assegurar a dominação do
poder legislativo, que nada mais é do que o representante do povo ou, como
em Rousseau, o próprio povo. Essa é a razão pela qual, na interpretação que
se dava desses autores no século XVIII, não era Montesquieu, mas Rousseau,
quem era considerado como o defensor da “separação absoluta dos poderes”
(Louis-Sébastien Mercier, De J.-J. Rousseau considere comme 1'un des pre-
miers auteurs de la Révolution, Paris, 1791,t l , pág. 48).
Montesquieu não é, aliás, quer o primeiro, quer o único a expor esse
segundo princípio, freqüentemente preconizado sob o nome de balança dos
poderes ou de governo misto. Se foi possível enganar-se sobre isso, foi porque
ele não emprega a expressão governo misto no capítulo VI do livro XI e porque
a constituição da Inglaterra não é descrita em seguida aos três governos como
uma quarta forma, porém mais adiante dentro da obra. É preciso, no entanto,
assinalar que ele caracterizou noutro lugar a constituição inglesa como uma
“monarquia misturada” (Pensée, n2 744). Principalmente, os outros autores,
antes ou depois dele, descrevem a constituição da Inglaterra com a ajuda da
tipologia habitual e a fazem aparecer como um misto de monarquia, aristocracia
e democracia, já que o poder supremo, o poder legislativo, é exercido por um rei,
uma câmara de nobres e uma câmara popular ou presumivelmente popular. Em
compensação, é certo que essa constituição não podia ser apresentada como
mista com relação às três formas simples de Montesquieu e, como ela não podia
ser colocada sob um dos três tipos, ele se absteve de qualificá-la. Mas é
exatamente a mesma constituição mista cuja estrutura ele expõe. A única forma
de governo da qual ela se aproxima é a monarquia: todas duas são “moderadas”;
isso quer dizer que o poder é exercido nos dois casos “por" leis. Mas trata-se
apenas de um caráter pertencente ao modo de funcionamento dos governos e
não a suas naturezas que permanecem distintas.
A doutrina da balança dos poderes ou do governo misto não é, aliás,
somente um belo mecanismo constitucional, que garante a liberdade política, no
sentido restrito desse termo, tornando impossível a violação da regra negativa da
separação dos poderes. Tem também um alcance político considerável, perfeita-
mente manifestado por Louis Aithusser. Realmente, os três órgãos parciais da
função legislativa que, conseqüentemente, partilham entre si o poder supremo,
correspondem a forças políticas e sociais reais: o rei, a nobreza e o povo, mas, na
verdade, por “povo” é preciso entendes-se, levando em conta o sistema eleitoral
em vigor na Inglaterra nessa época, uma fração da burguesia. Ora, essa partilha
do poder é operada de uma maneira totalmente particular: cada uma das forças
não recebe uma parte dele, mas devia exercê-lo juntamente com as outras.

853
Nenhuma lei pode ser adotada sem o consentimento de cada uma delas, de modo
que cada uma dispõe de um verdadeiro direito de veto - Montesquieu dizia “uma
faculdade de impedir" todo projeto de reforma, notadamente social. O sistema
apresenta, portanto, uma dupla significação. Em primeiro lugar, permite conser­
var o equilíbrio social e garantir o direito natural. Realmente, qualquer outro
sistema constitucional poderia conduzir à dominação de um grupo sobre outro
e à destruição dos direitos naturais, especialmente da propriedade, que será
proclamada “imprescindível e sagrada" pela declaração dos Direitos do Homem.
Como Barnave escreverá em 1791, “todo ataque ao equilíbrio dos poderes é um
ataque à propriedade”. Ele manifesta, por outro lado, a natureza da constituição
dentro da doutrina de Montesquieu e, mais genericamente, dentro do pensamen­
to do século XVIII. Ela não é apenas um instrumento jurídico de regulação do
Estado ou da sociedade. Ela é a própria organização social. Conceder a uma
classe uma parte do poder legislativo não é lhe permitir defender seus interesses,
é instituí-la enquanto classe. Eis por que, em 1789, escrever-se-á a propósito da
separação dos poderes, entendida, é claro, como regra negativa: “Toda sociedade
- e não todo Estado —, na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a
separação dos poderes, determinada, não tem mais constituição."

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Paris, Seuil, 1957,2- edição, 1979; Paul Vernière, M o n te sq u ieu e t L E s p r i t d e s lo is o u la ra ison
im p u re , Paris, Societé d’Edition d'enseignement supérieur, 1977; Mark H. Waddicor, M o n tes­
q u ie u a n d lh e p h ilo s o p h y o f n a tu ra l law , La llaye, M. Nijhoff, 1970.

Michel TROPER.

854
MORUS, Thomas, 1478-1535
A Utopia, 1516

Nossos contemporâneos ainda sabem ler as utopias e em particular a


obra fundadora, a de Thomas Morus*. A questão pode parecer insolente, até
mesmo temerária, mas merece ser colocada, para percorrer a literatura anti-
utópica que, sem outra forma de processo, remete A Utopia para dentro da
genealogia do totalitarismo.
Aqueles que estão tão prontos a denunciar a tirania - disso, só se pode
zombar - praticam com relação às utopias um modo de leitura não somente
"bárbaro”, mas, mais precisamente, tirânico, à semelhança do tirano que Platão
denuncia na Carta VII, (Platão, CEuvres completes, La Pléiade, t. II). Este
último, quando de sua terceira estada em Siracusa, quis se assegurar de que a
filosofia havia realmente acendido o coração de Dionísio. Constatou, horrori­
zado, que esse tirano havia composto uma espécie de "piatonismo” cheio de
idéias mal compreendidas. “Percebo que, sobre o que ele ouviu de minha boca,
Dionísio compôs, ele próprio, um escrito” (Carta VII, 341 b). Contestando a
própria legitimidade dessa operação que repousa sobre uma confusão entre o
ato de filosofar e conteúdos considerados filosóficos, Platão, lembra, a propó­
sito de seu ensinamento, que não se trata "de um saber que, a exemplo dos
outros, possa de alguma maneira ser formulado em proposições”.
A referência à Carta VII se impõe mais ainda para abordar A Utopia, já
que sua lembranaça talvez seja para prevenir contra os modos de leitura
grosseiramente inadequados. Melhor, ela nos permite circunscrever o espaço
do pensamento ao qual pertence A Utopia: as relações tão complexas do tirano
com o filósofo, mistura instável de atração e de rivalidade, de rogo e de ameaça
(cf. o diálogo de Conselho no livro 1 de A Utopia), a relação diferencial entre
A Utopia e a cidade de Platão, a questão, enfim, da comunicação da filosofia
na situação totalmente particular de filósofo conselheiro do príncipe. Os
procuradores de A Utopia tão apressados em concluir, não puderam prestar
atenção à prudência de Platão, que sabia quanto os rogos do tirano são
acompanhados por opressões. “Nós não tínhamos com ele, bem entendido,
uma linguagem tão explícita, nossa segurança teria sido comprometida, mas
sob uma forma disfarçada e nos atendo em nossas conversas com ele a fazê-lo
compreender que em tal maneira de se comportar reside para todo homem o
futuro de sua própria salvação” (Carta VII, 332 e).
Se A Utopia de T. Morus participa da idéia moderna de método, ela não
deixa de estabelecer relações com a tradição da filosofia política, de tal modo
que possa elaborar de maneira inédita a relação do ato de escrever com a
prudência. Coloquemos de imediato que a questão da tirania, a do príncipe ou
a da opinião, da recepção ou da leitura tirânica se inscreve no próprio centro

* A edição citada como referência é T. Morus, LVtopie, Bruxelas, La Renaissance du Livre, s.d.
[1966]. Faltam nessa edição os “paratextos” que enquadram A Utopia-, eles são encontrados,
em compensação, na edição tão preciosa de A. Prévost, Paris, Mame, 1978.

855
da invenção da Utopia ou, melhor, da invenção escrita indireta que constitui
A Utopia.
Tudo se passa como se, em seu conjunto, a crítica moderna, tão impa­
ciente quanto o tirano de Siracusa, percebesse A Utopia como um projeto de
sociedade, como um plano de constituição, em resumo, como um modelo. Ora,
em sua própria textura, por mais que se consinta em seguir os mistérios do
encaminhamento de T. Morus, A Utopia não cessa de trabalhar persuadindo o
leitor de que ele, “o verdadeiro livro de ouro”, não é nem um plano nem um
modelo. Daí vem um equívoco no início: o crítico se precipita sobre teses ou
proposições doutrinais que quer extrair diretamente do texto - seja o cris­
tianismo social, seja o planejacionismo, seja o comunismo — sem mesmo
perceber que A Utopia é o fruto de um dispositivo textual, complexo à porfia,
armado, que brinca com o desejo do leitor, expodo-o permanentemente a um
engodo. Jogo sábio, sutil, erudito, jogo aéreo de humanista simples como uma
pomba, mas inteligente como uma serpente, perto do qual a pretensão de
compreender T. Morus, melhor do que ele mesmo se compreendeu, parece
orgulhosa estupidez.
Também, toda leitura que não leva em consideração esse dispositivo
textual, essa arte cinergética (da caça), verdadeiro “exercício de paciência" está
imediatamente condenada a ficar aquém de A Utopia, quer seja para condená-
la ou para fazer-lhe o elogio, por falta de haver consentido no desvio que exige
a obliqüidade de seu modo de andar.

A crise da interpretação

Desse mal-entendido inicial são testemunhas a crise da interpretação e as


incertezas da crítica que parece oscilar de maneira recorrente entre dois tipos
de leitura, as leituras realistas e as leituras alegóricas.
As leituras realistas se dividem doutrinalmente em dois campos, os
católicos de um lado e os socialistas ou os comunistas do outro. Duas tradições,
na verdade, disputam o autor de A Utopia. Os soviéticos reservaram um lugar
para T. Morus no panteão revolucionário, seu nome está escrito sobre uma
coluna da Praça Vermelha, em Moscou. Os católicos beatificaram Morus em
1886 e o canonizaram em 1935. Além dessas divergências, as leituras realistas
têm em comum uma dupla característica: a insistência sobre a dimensão
política da obra —a página de título indicava bem, De optimo Rei publicae
statu, a melhor forma de comunidade política mas na ignorância total da
questão da escrita. Nessa perspectiva, a Utopia é levada de volta à configuração
de um programa político ou de um modelo de sociedade.
Dessa maneira, K. Kautsky, em Thomas Morus et son Utopie (1888),
apresenta Morus com um precursor excepcional do socialismo moderno. Se o
autor de A Utopia é filho de seu tempo e reproduz seus limites, sua qualidade
de humanista, seu conhecimento prático do direito e da economia, o nas­
cimento do capitalismo mercantil lhe permitiram não somente criticar o novo
modo de produção, mas também desenhar as grandes linhas de um modo de

856
produção superior, destinado a suplantar o capitalismo. Conforme a lógica de
uma nova leitura historicista, a própria utopia é remetida à vontade de
encontrar uma solução fantástica para contradições que a imaturidade do
tempo não permitia resolver. Nesse sentido, Morus seria o verdadeiro pai dtf
“socialismo utópico”, a utopia designando os meios inadequados — o des­
potismo esclarecido de Utopus —e não a meta.
Para R. W. Chambers, crítico “católico romano”, Thomas Morus (1935),
a leitura socialista de A Utopia é simplesmente um contra-senso histórico e
uma apropriação abusiva. Longe de anunciar o comunismo moderno, T. Morus
seria o defensor de uma forma de sociedade declinante e o restaurador dos
valores de solidariedade próprios à cristandade medieval. Aliás, não se tratava
da pintura de um Estado ideal, mas muito mais, pela apresentação de uma
cidade pagã virtuosa, de suscitar um movimento de vergonha nos leitores
cristãos que não conseguiram instaurar a perfeição muito relativa de uma
cidade fundada unicamente sobre a razão humana.
T. Morus, sob a influência dessa vontade de restauração, se oporia ao que
constitui o mundo moderno: oposição ao novo Estado e à nova arte de
governar (o maquiavelismo), oposição à nova economia mercantil. Mais preci­
samente, na presença do conflito entre o capitalismo e os valores comunitários
cristãos, T. Morus optaria de maneira reacionária, por um retorno à idéia de
comunidade tal qual foi praticada no monarquismo medieval. Assim, o modelo
que proporia A Utopia seria o monastério, bastante próximo da instituição
beneditina, valorizando a disciplina, a autoridade, opondo-se ao máximo à
liberdade moderna. Curiosamente, R. W. Chamber, tão preocupado em recolo­
car Morus em sua época, deixa passarem em silêncio as controvérsias em torno
da retórica das quais participa o autor de A Utopia e abandona a questão de
uma arte de escrever tão presente em Morus e em seus contemporâneos,
Erasmo e Maquiavel.
Não existe ligação necessária entre a interpretação católica e as leituras
realistas. É a um crítico católico, A. Prévost, responsável por uma notável
edição sobre certos aspectos de A Utopia em francês, LVtopie de Thomas
More (Mame, 1978), que se deve a escolha, a exigência reiterada de uma leitura
alegórica. Por leituras alegóricas, entendemos aquelas que colocam em priori­
dade a questão da escrita deA Utopia ou da utopia como escrita, mas que, em
compensação, procedem do mesmo movimento a favor da supressão da
questão política, da procura do melhor regime, transformando-a em experiên­
cia espiritual. Leitura alegórica de fato, já que se trata exatamente de desven­
dar, para além do sentido literal, histórico-político, uma significação moral. Daí
decorrem nessa perspectiva, uma atenção extrema dada à escrita, os dis­
positivos textuais, os vocábulos utópicos, os jogos de humor ou irônicos do
autor, simbolizando as muitas portas estreitas pelas quais o espírito deve
passar para entender e ter êxito um movimento ascensional, uma nova subida
do sentido histórico para o sentido espiritual. A. Prévost, invocando a distinção
entre a narração e o discurso, jogando com o conflito entre essas duas
dimensões do texto, denuncia as interpretações que “hipostaziam” as ins-

857
tituições utópicas, reconhecendo na cidade assim descrita uma existência
objetiva e lhe emprestando o valor de modelo (pág. CXXIII). “Para Morus, A
Utopia é essencialmente um órgão de descoberta, uma heurística. Ver nela um
modelo exterior sobre o qual reconstruir o social e o político é um contra-sen-
so” (pág. CVX). Esse é, segundo o editor de A Utopia, o próprio princípio das
leituras delirantes que pretendem fazer passar o modelo utópico para a
efetividade da história. Espelho de uma comunidade política bem organizada,
A Utopia por seu movimento interno, por sua maiêutica própria, convidaria a
um “arrombamento de espelho” que abriria uma passagem para a dimensão
transcedente da “utopia interior”. “A dialética da mensagem conduz a uma
catarse, momento em que, recusando a se prender a um modelo concreto do
qual se negariam os limites e a caduquice, o espírito desemboca em LAilleurs
(Algures), a utopia transcedente” (pág. CXXV, n. 3). Em resumo, tratar-se-ia não
de anular o texto, mas de sublimá-lo, submetendo-se a uma prática do tipo
iniciática que engendraria uma metanóia, uma mudança total da vida interior.
“Uma vez ainda, a construção de Morus se revela ser não um exemplo
paradigmático para se imitar de maneira literal, mas sim um instrumento de
renascimento interior. O movimento dialético que ela segue conduz menos a
reformas ou a revoluções do que a uma conversão, a um retorno, a uma
comunhão de natureza com os outros homens, a aceitação de princípios
fundamentais que colocam em primeiro plano a responsabilidade em face de
Deus” (pág. CXXVIII).
Preocupação com a escrita preciosa em tudo que ele esclarece no texto,
mas a posição tomada - evicção* da dimensão política - é dificilmente defensá­
vel. Também a crítica se vê forçada a acabar, consentindo em um retorno ou em
um “refluxo” do político sob a forma de uma microutopia, próxima ainda da
instituição monacal, recaída modesta no procedimento humano da utopia trans­
cendente, destinada à caduquice e testemunhando a finitude.
Mas será que estamos condenados a esta alternativa pouco satisfatória: ou
a tomada em consideração da questão política com a negação da escrita, ou a
valorização da escrita utópica, porém ao preço - e que preço - da supressão da
dimensão política? Não deveríamos tentar pensar juntas a questão da escrita e a
do político? Em vez de dissociá-las, entrecruzá-las para, ao mesmo tempo, pôr em
curto-circuito os embaraços das leituras realistas e os das leituras alegóricas.
Quer dizer que a invenção da escrita utópica seria a escolha de uma
forma de intervenção singular no campo político; quer dizer que o projeto
político, a procura do melhor regime, passa necessariamente pelo recurso a
uma forma nova de escrita. A Utopia seria política não porque ela diz - suas
proposições, suas teses ou seus temas —, mas dentro da própria efetuação de
seu dizer.
Para tornar acessível esse caminho, convém retornar à bela descoberta
de Leo Strauss, em Persecution and the art o f writing (Perseguição e a arte

* E v ic ç ã o - a t o ju d ic ia l p e l o q u a l o d o n o d e u m a c o i s a , a l h e a d a p o r o u t r e m ile g a l m e n t e , a r e iv in d ic a
e r e c u p e r a . ( N o ta d a t r a d u t o r a . )

858
de escrever), a de uma arte de escrever esquecida. Resultaria que A Utopia
teria o status de obra política, mas não teria por isso o valor de modelo;
pareceria que a escrita de T. Morus é alegórica, em um novo sentido, sem
incluir necessariamente uma depreciação do político levando a uma conversão
espiritual. A Utopia seria uma complicação do político?

Uma arte de escrever esquecida: a Utopia e o caminho indireto

Para seguir da melhor maneira possível Raphael Hytlodée em seu périplo


marinho ou mesmo na narração de sua viagem, em sua "odisséia”, seria
conveniente pedir a ajuda da bússola que Leo Strauss nos oferece.
Lembremos as teses deste último. A condenação de Sócrates - por
ocasião de sua intervenção inédita na cidade, ele deu prova de imprudência —
chama a atenção sobre o fenômeno da perseguição que ameaça a pesquisa
filosófica. Como conviria comunicar um pensamento independente e por isso
mesmo suscetível de transtornar a ortodoxia de uma dada sociedade, sem
conhecer o fim trágico de Sócrates? O movimento próprio da filosofia é operar
uma passagem da opinião em curso dentro da cidade para o conhecimento de
"todas as coisas”, em resumo, substituir a opinião pelo conhecimento. É
reconhecer que a filosofia é de tal natureza que prejudica o que Leo Strauss
chama de “o elemento da sociedade”, seu tecido —a saber, a opinião. “Portanto,
a filosofia ou a ciência é a tentativa de dissolver o elemento no qual a sociedade
respira, e, assim, ela coloca a sociedade em perigo” {Un art d’écrire oublié, trad.
de N. Ruwet, Poétique, 1979, na38, pág. 244). Se o filósofo pode escolher
respeitar as opiniões de uma dada sociedade, ele não é por isso obrigado a
considerá-las verdadeiras. O próprio de um pensamento livre é só ter exigên­
cias com relação a si mesmo; ele não poderia tolerar nenhum limite externo.
Como satisfazer essa exigência de um pensamento independente sem incorrer
em perseguição?
A partir de obras filosóficas do período medieval judaico-árabe, Leo
Strauss redescobriu uma técnica de escrever particular que consiste em
escrever “entre as linhas”. Arte de escrever secreta de tal modo que um
pensamento livre se possa entregar à busca da verdade sem ferir abertamente
a opinião e, portanto, sem sofrer com isso. Múltiplos são os procedimentos
desse tipo de escrita: obscuridade do plano, falsas citações, pseudônimos,
expressões estranhas, repetições inexatas de afirmações anteriores. A contra­
dição intencional é o procedimento mais marcante; ela funciona como um sinal
de alerta para o leitor atento imediatamente estimulado a descobrir o desígnio
enigmático do autor. O escritor que recorre a essa técnica de escrever visa a
tocar leitores capazes de pensar e dignos de confiança, apostando que o desejo
de verdade vem acompanhado do desejo de liberdade. Mais exatamente, essa
arte de escrever procura se endereçar a vários tipos de leitores, como se
reunisse as vantagens da comunicação pública sem se expor ao risco da
perseguição e aos da comunicação privada, sem conhecer o inconveniente do
pequeno número. Pois essa forma de escrever tende a instituir uma pluralidade

859
de espaços de comunicação, um espaço público onde o objeto em questão pode
ser tratado segundo as exigências da cidade, e um espaço filosófico onde o
objeto é considerado do ponto de vista da verdade. Com efeito, não se trata
somente de escapar à censura das autoridades religiosas ou políticas que se
estimam ameaçadas por verdades heterodoxas, mas convém também se preve­
nir das apropriações doutrinárias abusivas. Em resumo, prevenir a degradação
de um pensamento filosófico em proposição ideológica, mantendo, graças a um
conjunto de artifícios textuais, um afastamento problemático entre o autor e o
personagem fictício exprimindo tal ou qual doutrina. Assim, Leo Strauss
prescreve esta regra de leitura: “As idéias do autor de um drama ou de um
diálogo não devem, sem provas anteriores, ser identificadas com idéias expri­
midas por um ou por vários de seus personagens, ou com as idéias sobre as
quais estão de acordo todos os seus personagens, ou seus personagens
simpáticos” (op. cit., pág.239).
A hipótese de Leo Strauss, como M. P. Edmond sublinhou justamente, é
suscetível de receber uma interpretação “fraca”: a arte de escrever consistindo
em um conjunto de precauções permitindo não prejudicar diretamente a
opinião e escapar a uma eventual censura; mas também uma interpretação
"forte” segundo a qual a desconfiança se exerceria com respeito à opinião
interna do próprio discurso filosófico que não escapa da relação com a opinião.
“A incidência da perseguição, ponto extremo da presença da opinião, sobre a
busca da verdade impõe a essa não somente uma arte de escrever, mas também
uma arte de descoberta de seus próprios objetos” (M. P. Edmond, “Persécution
et politique de la philosophie”, Libre, 6, 1979, págs. 71-72).
Ora, ,4 Utopia, de Thomas Morus, sob esse ponto de vista, usufrui de uma
situação excepcional: é um texto privilegiado da tradição para uma colocação
à prova das teses straussianas. Leo Strauss, em seu artigo pioneiro, ele próprio
reconhece em Thomas Morus um dos inventores dessa arte de escrever secreta,
designada, em A Utopia, sob o nome de ductus obliquus. Com efeito, quase no
final do que J. Hexter descreve como um diálogo de conselho, é enunciado o
próprio princípio dessa técnica de escrever, a obliqüidade. Mas essa confissão
será que ela não abole da mesma forma o texto se construindo como via
oblíqua? Além de se poder responder que a melhor dissimulação pode ser a de
não ocultar a verdade, convém também ser sensível ao movimento do texto no
curso do qual essa estratégia (ductus obliquus) será anteriormente renegada
por aquele que terá como função empregá-la. Astúcia redobrada. Ou, melhor,
além da enunciação da via oblíqua dentro do próprio texto, pode-se observar
uma verdadeira “encenação” desse desvio, seria apenas na pluralidade de
presenças de Thomas Morus, ao mesmo tempo escritor-autor de A Utopia
(“cidadão e xerife da ilustre cidade de Londres”), pajem adolescente na corte
do Cardeal Morton, interlocutor privilegiado de Raphael Hytlodée no jardim
de Pierre Gilles. Como, em presença dessa tripla aparência, arranjar-se para
penetrar a intenção do autor? Melhor ainda, a obra se constrói a partir de um
emprego patente e velado da estratégia que aí está enunciada.
Pode-se, então, arriscar uma hipótese de leitura fundamental e propor

860
um itinerário a seguir necessariamente sob pena de confusão, se não se quiser
se perder no labirinto. Contrariamente à maioria dos leitores ou dos intér­
pretes, que se precipita sobre o livro II como se ele contivesse a “medula
substancial” da obra, é preciso passar obrigatoriamente pelo livro I que, longe
de ser um acessório superficial, uma incitação aperitiva, tem valor de um
verdadeiro estágio inicial. Ultrapassar esse desafio incontornável, mais ainda,
parar nele, ficar nele, flanar dentro dele, principalmente soltar dentro dele o
espírito para, talvez, apreender aí o fio ou os fios que permitem seguir Raphael
dentro da narrativa de seu périplo; ou, talvez, ainda aprender a se deslocar
dentro de um espaço instável, semeado de armadilhas, por momentos vertigi­
nosos. Não se pode, realmente, ler A Utopia sem se interrogar sobre a
articulação singular entre o livro I e o livro II. O acesso ao livro II - a Utopia
propriamente dita, relativa à melhor forma de governo, a parte do texto de
onde os intérpretes tiram as proposições confirmando suas ideologias res­
pectivas —só se pode efetuar no final de uma decifração escrupulosa, ponti-
lhista do livro I, de tal modo que essa operação tenha como efeito converter o
olhar daquele que a ela procede. Não se ganha com isso a perda da ingenui­
dade, um exercício da suspeita e uma desconfiança com respeito aos arrebata-
mentos ideológicos?
É nesse ponto de nosso percurso que estamos em estado de apreciar
como a hipótese de Leo Strauss é preciosa para tentar uma leitura política,
tomando o encargo da dimensão "alegórica” sem dissolver imediatamente a
procura do melhor regime dentro de uma interpretação espiritualista e, no
limite, apologética. Leitura política de uma qualidade nova —ela nos convida
a desviar nossa atenção dos conteúdos doutrinais ou ideológicos e voltá-la para
A Utopia enquanto forma, entre a filosofia política e a retórica. Graças à
valorização do fenômeno da perseguição e além da questão fundamental da
opinião - ao mesmo tempo ponto de partida, solo nutridor da filosofia e
resistência à filosofia - , essa leitura consegue fazer o problema da comunica­
ção ter acesso à dignidade do político. Longe de repousar sobre uma aproxi­
mação literária clássica da utopia, trata-se bem mais de recuperar a significação
política da questão literária. “Não se pode compreender o ensinamento de
Platão como ele próprio o entendia se não se souber o que é um diálogo
platônico. Não se pode separar a interpretação do ensinamento de Platão de
uma compreenção da forma dentro da qual ele é distribuído” (Leo Strauss, City
and Man, Chicago, 1978, pág. 52). A lição de Leo Strauss relativa aos diálogos
de Platão dentro dessa obra vale integralmente para A Utopia. O que é uma
outra maneira de colocar a questão do “platonismo” de Thomas Morus. No
começo, realmente, convém prestar mais atenção à forma do que à substância;
"já que a significação da “substância” depende da “forma” (op. cit., pág. 52).
Ligação da questão literária e da questão política: dentro de sua forma mais
nobre, a comunicação é instauração de um viver junto. "A questão literária, a
questão da apresentação se preocupa com um modo de comunicação (...).
Também o estudo da questão literária constitui uma parte importante do
estudo da sociedade (...). Da mesma maneira, o estudo da questão literária

861
constitui uma parte importante do que é a filosofia. A questão literáira
corretamente compreendida é a questão da relação entre sociedade e filosofia
(op. cit., pág 52).
Daí, dentro de nossa interpretação de A Utopia, o privilégio concedido
ao livro I, a anterioridade de jure à qual ele acede: a questão da comunicação
da utopia sendo aí, de maneira muito precisa, o objeto de um debate político
clássico (o diálogo de conselho) no final do qual nos são trazidos “os óculos”
com os quais poderemos, daí em diante, ler o livro II. Daí o freio levado à
impaciência dos leitores tirânicos.
A Utopia é uma jóia da arte de escrever esquecida, tanto mais preciosa
por estar encaixada na forma da sátira romana, que renova sua forma mis­
turando aí a questão do melhor regime. (Sobre esse ponto, o notável artigo de
Robert C. Elliott, “The Shape of Utopia” (A Forma da Utopia) que, por outros
caminhos, se reúne a Leo Strauss e nos ajuda a apreciar as diferentes
intervenções do personagem Thomas Morus, em T. Morus, Utopia, por R. M.
Adams, Norton criticai edition, Nova York, 1975, págs. 177-192).
Dessa arte de escrever os sinais são múltiplos; reteremos apenas três.
Obra de ficção dissimulada sob uma narração de viagem, A Utopia
escolhe pelo próprio neologismo do título o caminho da ambigüidade: Utopia,
lugar de nenhuma parte ou, então, Udetopia, lugar de algum tempo, ou, ainda,
Eutopia, lugar de felicidade onde tudo está bem. Pluralidade de sentidos,
pluralidade de inspirações, pluralidade de formas, como se, por meio do jogo
introduzido por essa pluralidade, A Utopia conseguisse conquistar sua unici-
dade, e o autor, preservar sua liberdade. Inventor de um novo modelo narrativo
- a narração de viagem imaginária em torno da qual o narrador descreve as
instituições, o modo de vida de uma sociedade ideal - , Thomas Morus faz
trabalharem vários registros ao mesmo tempo: a sotia (espécie de sátira
alegórica dialogada), a sátira (o tratado do melhor regime político), a comédia
(o projeto de legislação ideal), a fim de melhor misturar as pistas. Nietzche diz
dos inovadores que, para quebrar o jugo de uma moralidade qualquer, se
devem fazer de dementes ou serem dados como tais. Não é sob o signo da
loucura que se coloca desde o início A Utopia? Se o rumo do mundo é sem
razão, o recurso à loucura torna-se sabedoria ou “morosofia”. Vínculos com­
plexos entre utopia e loucura se tornam patentes dentro da obra de Thomas,
o morósofo: vínculo contingente (ou fruto do acaso objetivo) entre o nome de
família do autor e a Moria grega que designa a loucura. Foi sobre Thomas
Morus e seus conselhos que Erasmo escreveu O elogio da loucura. A acreditar
no retrato que este último traça, na carta de 1519 a Ulrich von Hutter, o gênio
da sátira foi o “demônio” de Thomas Morus. “Desde a infância, ele produziu
sempre suas delícias das palavras de espírito, a ponto de se ter podido acreditar
que se dedicar à zombaria foi o principal objetivo de sua existência. (...) Todo
gracejo, mesmo se o alvo fosse ele, o agradava; de tal maneira ele se deleitava
com todo traço de humor, que tinha um aroma de sutileza ou de espírito” (em
T. Morus, Utopia, A Norton criticai edition, pág. 130). Vínculo deliberado no
próprio nome do narrador, Raphael Hytlodée ou o contador de frivolidades.

862
Recurso à sátira erudita em que se pode perceber o afloramento do gênio de
Thomas Morus, porém mais ainda uma atitude existencial própria de muitos
humanistas que, no meio de um pequeno círculo de amigos esclarecidos, certos
e bem escolhidos, conseguiam, graças à sutileza desse "Alegre saber”, se
comunicar por palavras veladas, se entreconhecerem, apesar das instituições e
das religiões estabelecidas.
Foi, realmente, sob o signo da astúcia que A Utopia foi escrita. A primeira
edição, como insiste A. Prévost, justamente, designava a capital da utopia sob
o nome de mentira-ae e fazia menção a um senado, insenatu mentirano a
partir do verbo mentiri (fingir) (Ed. A. Prévost, CII-CX e pág. 94, na 2).
Presença da mentira reforçada ainda pela distinção que Thomas More propõe
em sua carta-prefácio a Pierre Gilles entre dicere mendacium, que remete a
um procedimento retórico irônico, e mentiri, que designa uma falta moral. “A
Utopia é um imenso mendacium... A arte sutil de Morus procura multiplicar
as ‘mentiras’ sem jamais mentir. Ao leitor avisado para fazer face a todos os
fingimentos e a todas as armadilhas do jogo do escritor”, escreve A. Prévost
(op. cit., pág. 20). A Utopia aparece como uma máscara com a qual se cobre
um pensamento novo de natureza a abalar a ortodoxia, a prejudicar as crenças
e as instituições sobre as quais repousa a sociedade civil de sua época. As
“loucuras” de Raphael, a utopia como dispositivo narrativo, funcionam como
tantos artifícios de uma razão política aos quais um filósofo prudente recorre
para poder se fazer entender sem conhecer o fim dramático de Savonarola (+
1498) ou de Thomas Münzer (+1525). Raphael Hytlodée, que volta do país da
utopia, é apresentado desde o início como um ser misto: ele se parece ao
mesmo tempo com o anjo Rafael, que cura da cegueira, com Platão (o logos)
e com Ulysses (o mestiço), que, por meio de estratagemas, consegue recuperar
seu reino. A meio caminho da busca da verdade e do aproveitamento da
oportunidade. Aliás, no caso dos utópicos que detestam a guerra e todos os
valores que a ela se ligam - a glória, a honra, virtudes quase animais - a astúcia
é o valor suçremo. Obra do espírito, ela é o sinal, a própria manifestação do
humanitas. É por meio de “astúcia e artifícios” (arte do loque) que os utópicos
conseguem pegar seus inimigos. Eles tanto desdenham os jogos de sorte,
quanto manifestam predileção por aqueles que revelam por quais astúcias as
virtudes podem pegar de través "os vícios para melhor vencê-los”.
Enfim, salvo no caso das duas edições eruditas, o texto que é proposto
ao leitor é truncado; é amputado e separado dos “paratextos” que enquadram
a utopia (carta-prefácio, correspondências, carta, alfabeto utópico, poemas,
etc.). Ao mesmo tempo em que o leitor é impedido de circular do texto aos
paratextos, é destruída a estratégia do dispositivo textual de conjunto, como
se os editores modernos em seu desejo de dogmatizar essa obra houvessem
cedido à vontade de dissimular seu caráter lúdico e de iniciação. Só é possível
uma verdadeira leitura de A Utopia tomada na totalidade do tecido textual que
a encerra. Poder-se-ia conceber uma edição da Encilcopédia que suprimisse o
sistema de remeter de um artigo a outro, que anularia o procedimento do texto
sob o texto?

863
A articulação do livro I com o livro II

Face ao enigma que representa para a maioria dos intérpretes a dis­


cordância do livro I com o livro II - alguns chegam mesmo a propor uma
dualidade de autores, Erasmo teria escrito o primeiro livro, e Morus, somente
o segundo - nossa hipótese seria de que, se seguirmos os meandros do livro
I, seremos levados progressivamente a encontrar ou, melhor, a pôr no devido
ponto, como quando se trata de corrigir uma ilusão, o modo de leitura, de
apreensão que convém ao livro II.
Para não nos perdermos nesse labirinto, tratemos primeiro de descrever
a progressão que nos é proposta ao longo de diferentes lugares. É graças à
interrupção provisória de uma missão diplomática em Flandres, em Bruges
exatamente, que Morus vái poder aproveitar os lazeres filosóficos e fazer
conhecimento, graças ao intermédio de Erasmo, com Pierre Gilles, humanista,
membro da República das Letras e, ao mesmo tempo, praticador de negócios
de Estado. Este último pratica às mil maravilhas o culto e a arte da amizade.
“Ele é realmente cheio de bondade e de erudição, acolhendo cada um
liberalmente, mas, quando se trata de seus amigos, com tanto ardor, tanta
afeição, fidelidade e dedicação sincera, que se encontram poucos homens
comparáveis a ele quanto às coisas da amizade” (LVtopie, pág. 8, trad. Marie
Delcourt).
Primeira cena - Pierre Gilles apresenta Rafael Hytlodée a Thomas
Morus, uma manhã ao sair da missa, em Anvers, depois de lhe ter feito de modo
resumido a narração das aventuras desse marinheiro-filósofo na comitiva de
Américo Vespúcio.
Segunda cena —Primeira seqüência da conversa entre Thomas Morus,
Pierre Gilles e Rafael Hytlodée na casa de Morus, mais precisamente no jardim,
sobre um banco de relva. O começo da narração da viagem de Rafael segue o
eixo que vai da natureza à cultura: não se trata de uma narrativa de viagem
por um país fantástico habitado por monstros ou por quimeras, não se trata
tampouco de uma pintura primitivista da idade de ouro. Tanto o interesse de
Rafael no decorrer de suas peregrinações quanto o de seus interlocutores se
referem em primeiro lugar às “sábias instituições de povos vivendo em
sociedades civilizadas”.
Conforme a função do narrador, tal como a descreve Walter Benjamim,
Rafael, correspondente ao protótipo do navegador, transmite uma mensa­
gem vinda de países longínquos. “E o que ele narra se torna experiência para
quem o escuta” (W. Benjamim, Le Narrateur, Poésie et Révolution, Denoèl,
1971, pág. 144). Homem prudente, ele suscita a reflexão e engendra a
comparação. “Certamente, levantou entre esses povos desconhecidos muitos
costumes absurdos, mas também outros bastante numerosos que se pode­
riam tomar como modelos para corrigir erros cometidos em nossas cidades,
nossos países, nossos reinos” (LVtopie, pág. 13, trad. Marie Delcourt). Uma
primeira contradição-recusa é de notar: Thomas Morus dá como programa
exatamente o contrário do que ele vai fazer. Anuncia que vai dar prioridade

864
aos utópicos em detrimento dos outros povos estrangeiros, enquanto sua
descrição vai se deslocar, ao invés, dos outros povos para os utópicos.
Terceira cena — Observa-se aqui um primeiro deslocamento; no curso
dessa conversa inaugura-se um verdadeiro diálogo de conselho entre Pierre
Gilles, Rafael Hytlodée e Thomas Morus. Rafael, marinheiro-filósofo deveria
fazer um rei tirar proveito de seu saber e de sua experiência, deveria refazer
as viagens de Platão a Siracusa? Uma controvérsia se segue, Pierre Gilles e
Thomas Morus defendem essa idéia - tendo recorrido a argumentos de
qualidades diferentes, com tendência utilitarista da parte de Pierre Gilles,
nobres e filosóficos da parte de Morus - , Rafael se opõe ferozmente.
Quarta cena - Um segundo deslocamento intervém, sob a forma de peça
dentro da peça. Em apoio à sua oposição, Rafael relembra um episódio,
remontando a quase uns vinte anos atrás, na comitiva do Cardeal John Morton,
então Chanceler da Inglaterra e junto ao qual o jovem Morus era pajem. A corte
do Chanceler da Inglaterra foi nesse dia palco de uma discussão extremamente
violenta entre, de um lado, Rafael, que, sustentando que era preciso, mais do
que reprimir o roubo, esgotar suas causas, denunciava as injustiças sociais que
oprimiam a Inglaterra, e, do outro lado, um jurista inglês e um irmão,
partidários da mais brutal repressão.
Quinta cena - Primeira seqüência: retomada do diálogo de conselho
entre Rafael Hytlodée, Thomas Morus e Pierre Gilles. Para sustentar sua
posição, Rafael evoca duas hipóteses de deliberação da corte: no palácio do rei
da França, a respeito da guerra, tendo como contraste a apresentação do povo
dos açorianos; palácio de um rei indeterminado a respeito do tesouro, tendo
em contraste a apresentação do povo dos macarianos.
- Segunda seqüência: a controvérsia de desloca. Thomas Morus, para ir
contra Rafael, distingue entre duas concepções da filosofia e dois modos de
comunicação possíveis: a via direta e a via indireta (por meio de desvio). Rafael
persiste em sua recusa com extrema veemência porque suspeita de que a via
indireta conduz a reformas parciais e não à transformação radical que o
comunismo utópico propõe.
- Terceira seqüência: para acabar, o debate muda de terreno, e os
protagonistas, de posição; na verdade, Thomas Morus e Pierre Gilles vêm a
ocupar por sua vez a posição da opinião, a dos surdos surdíssimos que não
querem mais escutar a verdade do comunismo. “Thomas Morus: mas, digo eu,
me perece, ao contrário, impossível imaginar uma vida satisfatória ali onde os
bens seriam postos em comum” (LVtopie, pág. 53, tradf. Marie Delcourt). A
isso, Rafael replica pelo quadro de Utopia que vai ser a colocação à prova da
idéia comunista, mas também de seu modo de comunicação. Em resumo, a
questão não é tanto a do melhor regime, porém mais precisamente a da melhor
forma de persuasão para fazer chegar à ordem política justa e boa.
No centro do debate que atravessa o livro I jaz a famosa hipótese
platônica exprimida em A República e retomada posteriormente na Carta VIL
“Se não acontece, retomo, ou que os filósofos se tornem reis dentro dos
Estados, ou que aqueles aos quais se dá agora o nome de reis ou príncipes não

865
se tornem filósofos, autenticamente como deve ser; e que este conjunto, poder
político e filosofia, se encontre sobre a mesma cabeça... então, meu caro
Glaucon, não haverá trégua para os males dos quais sofrem os Estados, nunca
mais, penso, para aqueles do gênero humano” (La République, V, 473 c-de V],
499Ó; igualmente Lettre VII, 326 b e 328 a). Thomas Morus a retoma por sua
conta, em meio ao diálogo de conselho, retendo o que constitui sua versão
atenuada, mais moderada, a do filósofo conselheiro do príncipe. ‘‘Quanto se
afasta essa felicidade se os filósofos não se dignam a dar sua opinião aos reis?”
(LVtopie, op. cit., pág. 39). Não mais a reunião em uma só cabeça da filosofia
e da política, mas somente a presença da cabeça filosófica perto do príncipe; a
tarefa é menos elevada; não se trata mais de converter o príncipe à filosofia,
de convencê-lo a levar uma vida filosófica, porém somente de lhe aconselhar
medidas “de acordo com a honra e a justiça”.
Rafael, de sua parte, guarda o caráter aporético e paradoxal da hipótese
de Platão - seu enunciado deve provocar uma onda de riso —; enfim, ele
conserva toda sua parte de casualidade improvável e pelo menos incontrolável,
mais próxima do que Platão sublinha no livro VI: “Não há jamais perfeição
possível, dizíamos, nem para o Estado, nem para um regime político... até que
os filósofos... se encontrem, em virtude de um feliz acaso, tomados pela
necessidade, quer queiram ou não, de se ocupar dos interesses do Estado, e
esse, pela necessidade de lhes ser dócil; até que, sejam os filhos dos príncipes
ou reis atuais, sejam eles mesmos, recebam de repente de uma inspiração
divina um autêntico amor por uma filosofia autêntica” (499 b). Salvo um "feliz
acaso", salvo uma “inspiração divina” transformando os reis em filósofos, é
impossível abrir uma via de acesso para a filosofia próximo ao poder. Também
Rafael denuncia como impraticável a versão de Thomas Morus, que vale como
solução lenitiva da aporia platônica, pois entre o filósofo e o rei, permanecendo
o que ele é, se ergue o obstáculo intransponível da opinião pública. Invocando
o fracasso de Platão na corte de Dionísio, Rafael conclui: “Se os reis em pessoa
não são filósofos, jamais se curvarão às lições dos filósofos, imbuídos, como
estão desde a infância, de idéias falsas e por elas profundamente envenenados”
(LVtopie, op. cit, pág. 39).
Convém notar que, com relação a seu interlocutor Thomas Morus, Rafael
retém uma dupla lição de Platão: a salvação do gênero humano está subordi­
nada à hipótese da reunião da filosofia com a política e à do comunismo. “Esse
grande sábio havia visto muito bem antecipadamente que um só e único
caminho conduz à salvação pública, a saber a igual repartição dos recursos”
(LVtopie, op. cit., pág. 52). Como se a dificuldade se deslocasse da comunica­
ção da filosofia para a da novidade do comunismo.
Mas, em vez de retomar a argumentação de cada uma das duas partes,
vemos mais como cada uma das duas posições faz referência a dois espaços
nitidamente diferenciados, o espaço do jardim e o espaço da corte, e como o
espaço literário —a escrita da utopia ou a aproximação utópica - se dá como
lugar de uma passagem possível ou, ao menos para sustentá-la, das verdades
ditas no jardim para a opinião que reina na corte.

866
O livro I, efetivamente, construído em torno de um contraste recorrente
entre o espaço do jardim, espaço da conversa intra muros ao abrigo dos
olhares e dos ouvidos indiscretos, e o espaço da corte, seja na recordação da
cena em casa do Cardeal Morton, seja nas duas hipóteses de Rafael. Ora, esses
dois espaços designam dois modos de sociabilidade, dos quais um permite a
comunicação e a instauração de um viver-junto, e o outro barra essa possibili­
dade. Pierre Gilles pratica a arte da amizade, como percebemos. O espaço do
jardim é colocado sob o signo da amizade, lugar luminoso onde se podem
deslocar livremente o amor à virtude, a estima recíproca, o diálogo. Mais ainda,
o jardim representa esse espaço protegido onde se pode mostrar o vínculo
originário do homem ao homem, na troca dos olhares, “a fim de que cada um
possa se mirar e quase se reconhecer no outro”, a circulação das palavras
graças a “esse grande presente da voz e da palavra para nos familiarizar e
fraternizar mais e fazer pela declaração comum e mútua de nossos pensamen­
tos uma comunhão de nossas vontades” (La Boétie, Discours de la servitude
volontaire, Payot, pág. 119).
Dentro desse espaço em que somos "todos uns”, mais do que “todos
unidos”, que repousa não sobre um atrativo sensível, porém sobre a partilha de
uma mesma cultura liberal, sobre uma experiência partilhada de belas coisas, a
filosofia pode se comunicar dentro de seu movimento de questionamento radical,
paradoxal, sem se expor a uma sanção, senão à censura leve do riso, mesmo no
caso de ela se chocar com uma opinião contrária; assim como as objeções dos
ouvintes de Rafael, contra o comunismo. Thomas Morus, interlocutor de Rafael,
reconhece que, nesse lugar excêntrico, a conversa filosófica pode brincar com as
idéias mais heterodoxas, não perdendo de vista a preocupação com o mundo
comum. “Essas considerações teóricas são muito agradáveis na conversa familiar
entre alguns amigos” (LVtopie, pág. 48).
Ocorre de maneira totalmente diferente na corte, confessa Thomas
Morus: “Mas (as considerações teóricas) não poderiam ter nenhum lugar nos
conselhos dos príncipes, onde grandes negócios são tratados com uma autori­
dade soberana... Como uma linguagem tão nova, endereçada a homens cuja
convicção totalmente oposta tem previamente marcado o espírito e o ocupa
inteiramente, acharia o caminho para seus corações?” (LVtopie, págs. 4748).
O espaço da corte é um campo fechado em que prevalecem as relações
de dominação e de servidão, o confronto dos fortes com os fracos. Construído
em torno de uma economia da dominação, esse espaço está, além disso, sob o
domínio da opinião pública e de seus três componentes, o orgulho, a tolice e
a obstinação. Rafael baseia sua recusa em aconselhar um príncipe sobre a
inadequação de sua palavra, palavra de paz, em um universo dominado pela
guerra e sobre a resistência singular que a opinião pública opõe a toda
proposição de uma medida nova, vinda seja da leitura, seja da viagem.
Invocação ao mau conhecimento da tradição, narcisismo de grupo, tropismo
para com o poder, outros tantos núcleos em que se alimenta o despotismo da
opinião pública."... Entre os membros dos conselhos reais, todos têm bastante
bom senso para não ter nenhuma necessidade de uma opinião estranha ou,

867
pelo menos, para se imaginar serem bastante sensatos para poder estar surdos
às opiniões dos outros. São as opiniões mais tolas que recebem sua aquies­
cência, suas lisonjas, desde que aquele que as apresenta tenha o máximo de
crédito junto ao príncipe, o qual esperam se tornar favorável (a eles) por sua
aquiescência. Cada um se compraz com suas próprias idéias, foi a natureza que
assim decidiu. O corvo acha seus filhotes encantadores, e a visão do jovem
macaquinho enleva seus pais” (L Vtopie, pág. 16).
A opinião pública, de par com sua relação com a soberba - essa serpente
do inferno que se enrola em torno do coração dos homens para desviá-los do
caminho certo age da mesma maneira que a rémora, o peixe-ventosa ao qual
os antigos atribuíam o poder de atrasar o ritmo dos navios, prendendo-se à sua
quilha —ela impede a filosofia de tomar seu curso e de fazer ouvir sua voz.
Pareceria, portanto, que Thomas Morus e Rafael estão de acordo em
distinguir esses dois espaços, para constatar a resistência da opinião pública,
e em concluir pela inutilidade de uma intervenção da filosofia. Acordo apenas
provisório, pois, imediatamente, a divergência renasce. Aí se escava uma
ruptura essencial na conversa que marca uma verdadeira introdução ao livro
II; a identidade já opaca de Rafael se torna ainda mais enigmática.
Na verdade, Thomas Morus, interlocutor de Rafael, reafirma que é dever
deste último enquanto filósofo fazer ouvir sua voz num conselho real e trabalhar
para a salvação da coisa pública Novo início do diálogo de conselho, pois Thomas
Morus, como um personagem de Maquiavel em A Mandrágora, que opõe um
saber de gabinete a uma ciência instruída das “coisas do mundo”, marca uma
diferença entre duas concepções da filosofia e, portanto, entre dois tipos de
intervenção possível da filosofia no campo político. Essa nova distinção que
Morus propõe e o deslocamento que ele efetua visam a reaproximar o combate
que ele acaba de travar na Lettre à Dorp, do lado de Erasmo, em nome dos
“gramáticos e dos poetas” contra os dialéticos.
A recusa de Rafael só vale desde que se aceite uma certa definição da
filosofia, a que predomina dentro da escolástica, sob o título de lógica ou
dialética. “Essa filosofia de escola que imagina ter soluções aplicáveis em todo
lugar” (L Vtopie, pág. 48). Mas a objeção de Rafael desaba se se volta para uma
outra prática da filosofia. “Mas existe uma outra, instruída pela vida, que
conhece seu teatro, que se adapta a ela e que, dentro da peça que se encena,
sabe exatamente seu papel e a ele se atém convenientemente. É dela que se
deve fazer uso” (ibidem, pág. 48). Thomas More, o humanista cristão animado
por um projeto de reforma radical, ao mesmo tempo que afirma a tarefa do
filósofo, a preocupação incontornável com a coisa pública, separa e entrega o
novum instrumentum graças ao qual (se poderá) estabelecer uma relação
nova com a doxa, o ductus obliquus.
Não se trata, portanto, de ignorar a opinião pública, de negar a existência
desse elemento e da força de inércia que ele endereça contra as idéias novas.
Não se trata também de impor - o que seria sinal de soberba da parte do
filósofo - “um discurso insólito e desorientador do qual se sabe antecipada­
mente que não penetrará suas convicções” (LVtopie, pág. 49).

868
Mas, daquilo de que a opinião pública, por sua duplicidade e seu peso,
se faz obstáculo ao caminho direto, não se segue que se deva capitular diante
de seu reinado nem renunciar a surpreendê-la. Convém saber se adaptar à cena
do mundo não para consentir em sua loucura, mas para lhe estender um
espelho, de tal modo que, pelo jogo complexo das ilusões e do engodo, possam
surgir inéditas e imprevisíveis metamorfoses. “Se vós não podeis extirpar
radicalmente opiniões errôneas, isso não é razão para vos afastardes da coisa
pública” (pág. 49). O novo método nos é proposto, e da mesma maneira nos é
indicado o fio diretor para percorrer como convém o livro II. "Mais vale
proceder obliquamente e vos esforçar, tanto quanto possais, para recorrer à
habilidade, de maneira que, se não chegardes a obter uma boa solução,
tenhais ao menos encaminhado a menos desfavorável possível. Pois, como
todas coisas poderiam ser perfeitas se todos os homens tabém não o são, o que
não espero ver acontecer amanhã?” (pág. 49).
Paradoxo da utopia: graças à exterioridade - Utopus, o fundador,
separou deliberadamente a utopia do continente graças a esta separação que
é ausência de relações, colocada entre parênteses da opinião, é que o autor
de A Utopia poderá instaurar uma relação inédita entre a luminosidade da
utopia e a opacidade de nosso mundo. A insularidade, esse passo fora do
continente, a escolha do não-lugar (musquama-nowhere) é o que permite
lançar uma frágil passarela. O que nos orienta em direção à palavra do poeta
Paul Celan, a propósito da utopia: “Dentro de uma esfera dirigida para o
humano, porém excêntrico”, comentada por P. Ricoeur (A imaginação dentro
do discurso e da ação, Savoir, faire, espérer. Les Imites de la raison, Bruxelas,
1976, págs. 227-228).
O que será, portanto, do espaço literário, a fabulação utópica, se o
caminho não for desviado, mesmo in actu, destinado a surpreender os pre­
conceitos, a contorná-los indiretamente para abrir os caminhos dos corações
endurecidos, suscitar o despertar de espíritos entorpecidos. Nova aproxima­
ção, ou nova marcha, de natureza a permitir às verdades filosóficas, procu­
radas e ditas dentro do segredo do jardim - ali onde se pode livremente
desenvolver entre os homens a preocupação do mundo orientado pela idéia
do bem - , abrir um caminho certamente tortuoso, indireto, no mundo
não-filosófico, pior, prevenido contra a filosofia. Espaço literário duplo, o do
texto do livro II, mas também o dos paratextos, espécie de jardim protetor,
onde a presença sabiamente organizada de amigos, no limiar da obra,
acompanha e sustenta Thomas Morus no momento de dizer a mais perigosa
palavra entre todas: “Vai, meu livro!”.
Para quem acolhe nosso modo de leitura, A Utopia adquire a posição de
uma verdadeira invenção retórica: graças ao diálogo de conselho do livro 1 e
às questões que aí são debatidas, percebe-se que para o “poeta’ Thomas Morus,
autor de A Utopia, e não mais interlocutor dentro do diálogo, o personagem
de Rafael parece essa máscara e esse operador, que, ao longo de suas
peregrinações pré-utópicas e utópicas, seus múltiplos desvios, elabora um novo
dispositivo textual suscetível de forçar as resistências da doxa, nossas próprias

869
resistências, as dos ouvintes contra o comunismo e de nos ajudar a recuperar
o reinado.
Mas, objetará imediatamente o leitor atento, como sustentar que a
narração de Rafael de tarde no jardim possa ser utilizada pela via indireta
descrita de manhã, já que Rafael no final do livro I recusa com veemência
servir-se do caminho que lhe designou seu interlocutor Thomas Morus? "Seria
me aconselhar nesse caso, sob a opinião de querer remediar a loucura dos
outros, de delirar na companhia deles. Pois, se quero fazer prevalecer a
verdade, não posso dizer o que é seu contrário. Seria negócio para um filósofo
debitar mentiras? Não sei, mas, em todo caso, não é o meu” (LVtopie, pág. 49
e págs. 50-51). Rafael, aliás, toma o cuidado de distinguir entre vários casos:
de uma lado, a proposição de resoluções de acordo com a justiça dentro das
deliberações de um conselho real - o que corresponde exatamente aos três
problemas reencontrados anteriormente, cada um deles suscitando, de cada
vez, da parte de Rafael a evocação de um povo estranho e instituições sensatas:
a repressão do vôo e os Polyleritos, a questão da guerra e da paz e o povo
açoriano a sudeste da ilha de Utopia, a questão do tesouro real e o povo
macariano igualmente próximo da Utopia; do outro lado, o anúncio de uma
novidade ou, melhor, de três novidades igualmente inéditas para os ouvidos
do mundo, a República imaginária de Platão, a prática dos utópicos e a palavra
do Cristo. Tanto em um quanto no outro caso, o desvio não vale; na hipótese
de uma reforma, nenhum melhoramento pode sair, pois, para querer usar de
argúcia, arrisca-se a cair, sem seu conhecimento, sob sua dominação; quanto
à luta contra o “misoneísmo” do mundo, bastará Rafael recordar os ensinamen­
tos de Cristo, mais a sua proibição: “Ele interditou tão bem não divulgá-lo que
ordenou a seus discípulos irem pregar sobre os telhados o que ele havia
murmurado em seus ouvidos” (L 'Utopie, pág. 50).
A objeção do leitor avisado parece, portanto, legítima: convém, todavia,
perceber a exata medida da oposição de Rafael.
- Deve-se primeiro notar uma contradição significativa entre a recusa de
princípio de Rafael, exprimida no final do livro I, e o que foi sua própria prática
dentro de um conselho. Não recorreu ele próprio à via indireta antigamente,
na corte do Chanceler da Inglaterra, em presença do adolescente Thomas
Morus? Para abalar as opiniões dominantes a propósito da repressão do roubo
e para pegá-las de través (indiretamente), evocou Polyritos que, por meio de
instituições sabiamente combinadas, conseguiu chegar a uma solução melhor,
prevenindo mais o roubo do que o punindo. Nesse sentido, Thomas Morus,
teórico da via oblíqua (indireta), seria apenas o discípulo da prática de Rafael
da qual ele fora, há não muito tempo, testemunha.
- A contradição cresce quando se observa que o estratagema de Rafael
foi coroado de um sucesso relativo, já que, imediatamente, o Cardeal Morton
propôs uma reforma consistindo em adiar a execução da pena de morte,
submetendo os delinqüentes a um trabalho obrigatório. A narração de Rafael
e dos efeitos a que conduzirá na corte sua descrição dos costumes de um povo
longínquo não deixa de enfraquecer seu próprio diagnóstico sobre a ineficiên-

870
cia da via indireta. Certamente, no caso das duas outras hipóteses, a dos
açorianos e a dos macarianos, não é preciso, segundo Rafael, esperar nada.
Ainda aqui, é preciso discernir entre duas formas de recepção, a que Rafael
invoca em sua hipótese, a recusa da corte, e a própria, que se efetua na
conversa. A referência a esses três povos longínquos, dos quais os dois últimos
são vizinhos de Utopia, não terá o valor de um crescendo utópico, de um
processo de iniciação, preparando assim seus ouvintes, apesar de suas reticên­
cias, para entender não mais reformas, mas a suprema novidade, a que tem
curso em Utopia, a saber a abolição da propriedade privada?
Enfim, se se admite, como M. P. Edmond nos incita a fazê-lo, a “falsidade”
da escrita esotérica, “um diálogo platônico construindo a teoria do diálogo
platônico se aboliria ao mesmo tempo como diálogo” (art cit., pág. 72), é
melhor discernir, como já sugerimos, a função estratégica da oposição nítida
de Rafael à via indireta, na economia do dispositivo textual construído por
Thomas Morus, essa própria oposição sendo tomada na problemática da
obliqüidade. Da parte de Rafael, a enunciação dessa recusa é essencial, ela é
condição da possibilidade de recepção de sua narrativa; para o sucesso do
intento de Thomas Morus, para que o jogo com as resistências do leitor se
possa efetuar, é determinante que em nenhum momento este último possa
suspeitar da ligação de Rafael com a via indireta nem, portanto, de sua
narração ser a sua execução.
Ninguém duvida de que essa invenção de A Utopia, paradigma de uma
nova aproximação entre sociedade e filosofia, seja para ser pensada em relação
com a reabilitação da retórica à qual procedeu Thomas Morus pouco antes da
redação da obra (Lettre à Dorp, 1515). A Utopia é um dos mais belos frutos
da tradição para a qual se voltou Thomas Morus por ocasião de seu conflito
com os dialéticos, tão bem bem ressaltada na notável obra de Martin Fleisher,
Radical Reform and Political Persuasion in the Life and Writings o f Thomas
More, Genebra, Droz, 1973. “Dentro dessa perspectiva, assim como na prefe­
rência que ele concede à retórica em detrimento da dialética, Morus está
próximo da tradição retórica de Isócrattes, de Cícero e de Quintiliano. Ele
partilha da preocupação deles com o estilo e a eloqüência, tão importantes para
a retórica. A comunicação humana exige o emprego das palavras apropriadas
à ocasião e ao objeto... O fato de que um discurso bem colocado ocasiona tanto
prazer constitui seu mérito próprio e o ajuda a cumprir suas outras funções.
Desde suas origens, essa tradição julgou a eloqüência de maneira ‘substantiva’
e não somente como decorativa ou ornamental. Isócrates casa a retórica com
a sabedoria: a retórica é ampliada a ponto de induzir questões filosóficas" (op.
cit., pág. 98). O que, no caso de Thomas Morus, vai de par com um privilégio
concedido à razão prática sobre a razão teórica. A Utopia seria uma contribui­
ção exemplar ao que M. Fleisher, insistindo sobre o contexto cristão, chama de
uma dinâmica da comunicação.
Nesse ponto de nosso percurso, o que reter do livro 11? Ao ler A Utopia,
pode-se, primeiro, julgar que não é a pintura de uma época de ouro. A Utopia
se mantém à parte do que Kant descreve, em Conjeturas sobre o começo da

871
história humana (1786), como essa “vã nostalgia” que suscita o fantasma da
época de ouro, isto é, de um estado em que, libertos do luxo, os homens são
considerados em estado de satisfazer a simples necessidade da natureza e viver
dentro em perfeita igualdade e paz perpétua, “onde fruiremos plenamente de
uma vida isenta de preocupações, passada na preguiça e na fantasia ou passada
a divertir-se entre os jogos infantis” (Kant, Oeuvres philosophiques, La
Pléiade, 1985, t. II, pág. 519).
A felicidade que os utópicos conhecem é a de um estado de sociedade
civilizada que já se confrontou com o trabalho e a guerra. A Utopia, visão
moderna nesse sentido, descreve uma comunidade de trabalho mobilizada,pela
luta contra a natureza exterior e a penúria, repousando sobre uma repartição
igual do trabalho entre todos seus membros, de tal forma que se possa proceder
a uma redução da jornada de trabalho para seis horas e liberar simultaneamente
esse tempo para a aquisição ou a busca de uma cultura liberal.
Dessa característica que mantém A Utopia à distância da literatura de
evasão, pode-se, portanto, concluir a existência de um programa de organiza­
ção do trabalho? Ora, nós já havíamos afirmado de imediato que isso não é
nem um programa, nem um painel de sinalização de estrada. Seria isso o sinal
de uma fraqueza da análise ou do índice de uma qualidade própria de A
Utopia? Mas será que podemos nos satisfazer com uma sucessão de determi­
nações negativas? Nossa atenção deve ser atraída pela escolha freqüente da
parte de Thomas Morus de vocábulos negativos que têm como efeito conduzir
o leitor a perceber mais de um lado da questão (Elizabeth McCutcheon,
Denying the Contrary: More's Use o f Litotes in the Utopia, em Utopia, a
Norton criticai edition, Nova York, 1975, págs. 224-230). Pode-se também, a
partir dessa ambigüidade sabiamente mantida por um conjunto de procedimen­
tos retóricos complexos, ver em A Utopia a força e a novidade de uma utopia
negativa (que não deve ser confundida com uma antiutopia), utopia que
esposa o movimento de destruição própria da sátira, mas que se afasta de toda
positividade em sua parte “construtiva", que não se fecha jamais sobre boas
soluções nem sobre teses. J. H. Hexter, graças a preciosas pesquisas eruditas,
conseguiu desvendar a estrutura complexa de A Utopia e a data de cada uma
das partes que a compõem (J. H. Hexter, More’s Utopia, The Biography o f an
Idea, Princepton University Press, 1952, igualmente Utopia, Yale University
Press, 1965, J. H. Hexter, The Composition o f Utopia, págs. XV-CXXIV,
notadamente, págs. XIX-XXIII). Não se pode por isso reduzir a introdução
tardia do diálogo de conselho, posterior à redação do livro II, à simples
encenação de um debate interior de Thomas Morus quanto à oportunidade de
se tornar conselheiro de Henrique VIII. O autor de A Utopia, por esse
suplemento “genial” que, segundo Hexter, transforma radicalmente sua obra,
procede, efetivamente, a uma colocação em perspectiva que tem como efeito
desdogmatizar os efeitos de produtos reais pela narrativa de Rafael. Para
apreciar o alcance dessa mudança, é preciso que o leitor imagine um instante
o que teriam sido A Utopia e sua característica unidimensional, se ela tivesse
comportado somente o início do livro I, amputado do diálogo de concelho (até

872
a página 13 da edição de M. Delcourt), e o livro II, amputado da peroração de
Rafael (até a pág. 147 da mesma edição). A via indireta não é somente luta
contra a opinião feita, a que resiste à novidade, ela é igualmente luta contra
a opinião se fazendo, se enrijecendo, a que degrada uma idéia ou princípio
em ideologia. A face da soberba é polimorfa; se ela se manifesta nos partidários
da ordem estabelecida, o orgulho, a tolice e a obstinação também não poupam
os partidários da novidade. Se a utopia propriamente dita, o corpo do livro II,
é a utilização da via oblíqua para lembrar ao mundo que se afasta dela, no
momento do nascimento do capitalismo, a lição de Platão, a saber que a
repartição igual dos recursos é o único caminho suscetível de conduzir à
salvação pública, não se pode, todavia, rebater essa abolição da propriedade
privada sobre a expressão de um programa comunista. O privilégio concedido
ao dispositivo textual tem como efeito comprometer o leitor em praticar um
ou outro modo de leitura, à parte da indicação ideológica tão estéril. A Utopia,
de Thomas Morus, como uma grande parte da produção utópica, só pode ser
lida cum grano salis, em uma postura tal que o leitor aceite acolher o texto
com toda sua ambigüidade e se submeter à prova maiêutica da abertura
utópica. Quer dizer que não se trata de descrever o artifício para obter, além
da fabulação utópica, uma ou mais soluções unívocas, de desmascarar a ou as
armadilhas para encerrar imediatamente o texto dentro dos limites tanto mais
constrangedores por se enfeitarem com as certezas da interpretação. Além
disso, o domínio da arte de escrever, por maior que seja, não vai até o ponto
de pretender controlar seus efeitos, indomáveis para o próprio autor. Testemu­
nha isso de melhor maneira o estranho sonho de Thomas Morus, transformado
em rei na Utopia, e que ele relata em uma carta privada a Erasmo, em dezembro
de 1516. Um adágio jurídico diz: fraus omnia corrumpit, procede da ambigüi­
dade, assim como da fraude, afeta com incerteza tudo o que toca, particular­
mente, na circunstância, a lição de Rafael. Se é verdade que A Utopia, na
medida em que opera uma curvatura sobre o Estado - participa da “grande
revolução estatal” do século XVI - , tende a se reaproximar do modelo
jurídico-político, mais democrático do que autoritário, não se pode por isso
perceber aí um projeto de constituição ou um plano dogmático para a futura
sociedade. Como se o projeto de Morus não fosse, como parece indicar o título,
tanto trazer uma resposta quanto “a melhor forma de governo” quanto
convidar os leitores a pesquisar por eles mesmos (daí a importância do diálogo)
o que se poderia tornar uma humanidade vivendo no âmbito das cidades
sabiamente reguladas, para colocar a questão política por excelência, a da
natureza de uma ordem política justa e boa. Tratar-se-ia de alguma forma de
fazer os leitores tornarem-se utópicos cujo espírito, segundo Thomas Morus,
aguçado pelas letras, está “eminentemente preparado para inventar procedi­
mentos capazes de melhorar as condições de vida" (LVtopie, op. cit., pág.
107). A distanciação própria à conduta utópica opera, por assim dizer, nos dois
sentidos: colocada à distância da ordem existente, ela é igualmente tomada de
distância com respeito à “positividade” da qual desenha utopicamente os
contornos. O que Ernst Bloch chama de excedente utópico - esse núcleo

873
irredutível à falsa consciência, à ideologia que gira em torno do "Acima de
tudo”, do Essencial —escava por sob a figura “construtiva” para devolver à
obra sua força plena de indeterminação. Encontra-se aí um outro efeito da via
indireta, o jogo com o secreto se desloca sem que se lhe possam prescrever
limites; o enigma não é mais somente o da relação que convém estabelecer com
o texto, ele ganha o próprio objeto do texto. A questão da ordem política justa
e boa está contaminada por ele, torna-se, por sua vez, enigmática.
O que é da idéia comunista? Ou, melhor, ficando mais perto do jogo do
texto, o autor de A Utopia conseguiu, por intermédio de Rafael e de sua
narrativa de brilhos dourados, convencer o interlocutor Thomas Morus da
conformidade e da legitimidade da repartição igual dos recursos, para
reduzir as objeções que esse interlocutor exprimiu no final do livro I?
(LVtopie, págs. 53-54). A narração de Rafael no livro II visa, na verdade, a
vencer a oposição de Thomas Morus ao comunismo, tomando-a índireta-
mente: para este último, a comunidade dos bens engendraria preguiça e
penúria, sedição e mortes dentro do Estado, supressão da autoridade e
indistinção dos homens. Ora, se no final do livro II, no momento mesmo da
“queda”, Thomas Morus formula de novo uma posição crítica com relação a
esse princípio fundamental da constituição dos utópicos, a comunidade dos
recursos e da vida, “das mais absurdas”, como ele diz, não retoma nenhum
dos argumentos do fim do livro I, como se a persuasão de Rafael levasse
vantagem sobre esses pontos, mas invoca bem mais o tribunal da “opinião
pública”, o que não deixa de surpreender e de alertar o leitor quando ele se
reporta à maneira pela qual Thomas Morus, no livro I, convida Rafael a tratar
a resistência da opinião pública. A comunidade conduziria ao desmorona­
mento de tudo o que é brilhante, magnífico, grandioso, majestoso, tudo o
que, segundo a “opinião pública”, constitui os adereços de um Estado. Em
resumo, a destruição de tudo o que brilha diante dos olhos deslumbrados da
opinião. Se se presta atenção, além disso, à forma da sátira tão impregnante
em A Utopia, observa-se aqui, como R. C. Elliott justamente mostrou, a
retomada de um procedimento clássico que consiste, da parte do autor, em
se entregar ele próprio aos efeitos destruidores da ironia satírica (art cit.,
págs. 186-192) e, portanto, em invalidar seu próprio julgamento. É muito
mais a última palavra de Morus que é mesmo de nos fazer medir o caminho
percorrido, à escuta de Rafael, por um outro Thomas Morus que se mantém
afastado da opinião (pública), de seu gosto por tudo o que brilha e reconhece
em seu próprio nome, retendo alguma coisa de sua reticência do começo
“que existe na república utópica muitas coisas que desejaria ver em nossas
cidades. Eu o desejo mais do que o espero” (LVtopie, pág. 152).
Essa reticência figura como o resíduo das primeiras objeções e marca a
distância que depende de Thomas Morus manter. Para apreciar melhor essa
distância e o que é o objeto dela, sem subscrever a tese de Eva Brann, que
“coisifica” o distanciamento utópico em recusa do comunismo (An Exquisite
Platform, Utopia, Itnterpretation, outono de 1972, págs. 1-26), ouçamos a
peroração de Rafael, verdadeira pausa no livro 11, em que este último abandona

874
a descrição das instituições utópicas para conceder de repente a uma palavra
profética —mudança de nível —proclamar uma exigência de ordem ética, o que
E. Levinas chama de “a nostalgia do justo”. Desse modo, pode-se limitar melhor
o efeito da persuasão de Rafael sobre seu interlocutor: Thomas Morus não está
convencido da conformidade da solução comunista tanto quanto da excelência
de dois princípios. Se o pensamento da utopia, além de tal ou qual projeto, é
essencialmente um pensamento da diferença com relação ao que existe, um
movimento incoercível e incessante renascendo em direção à alteridade,
convém, mais do que rebater a utopia sobre um programa, pesquisar os
princípios que a levantam e conduzem para o “todo outro social”. Com a
condição de entender "princípio” em seu sentimento forte, o de Ernest Bloch:
princípio designa, primeiro, a idéia de um começo em toda sua força, de um
começo diferente, e o princípio tem poder de orientar para diante, trata-se de
uma categoria que mostra a direção a seguir (Experimentum Mundi, Paris,
1981, págs. 171-174). Além da instituição da comunidade dos bens, uma
exigência mais originária e mais violenta manifesta-se; o princípio da esperança
de Thomas Morus é que “a ninguém falte nunca o necessário”. Adorno escreve:
“A verdadeira ternura estaria na mais brutal das respostas: que ninguém tenha
fome nunca mais” (Minima Moralia, Paris, 1980, pág. 147). Como Hegel, mais
tarde, Thomas Morus reconhece a veracidade da sentença bíblica e faz dela sua
estrela guia: “Procurai primeiro de tudo a alimentação e as vestimentas e,
assim, o reino de Deus vos caberá por si só” (Carta ao Major Knebel, de 30 de
agosto de 1807). O que é pensar sobre a utopia em função da fome, visando à
supressão dela mesma?
A utopia excessiva sobre todo projeto conduz à questão essencial: é
preciso pensar sobre a sociedade humana, o vínculo social segundo o modelo
de Hobbes, a partir da guerra contra todos? A instituição do social tem como
único fim limitar os efeitos dessa guerra que traz virtualmente nela a autodes-
truição da espécie humana ou, então, pode-se pensar de outra maneira sobre
o social, a partir da "lei de comunhão” (lex comunionis), como nos convida
Guillaume Budé, leitor de Thomas Morus, em sua carta a T. Lupset, de 31 de
julho de 1517, que serve de prefácio para a segunda edição de A Utopia (1518)?
A referência ao Leviatã é legítima nesse caso; a pintura moriana da soberba
não cede em nada ao desejo de dominar, ao desejo sem fim de poderio que
define o conatus humano segundo Hobbes. A soberba, “rainha e mãe de todos
os males” é a primeira força de resistência à amizade entre os homens: “A
prosperidade a seus olhos não se mede em função da felicidade de cada um,
mas em função da infelicidade dos outros. Ela recusaria mesmo tornar-se deus
se não pudesse guardar em torno de si, para insultar, para tratar como
escravos, miseráveis cuja aflição serve de contraste para sua resplandecente
felicidade, se não pudesse torturar, irritar em sua miséria pela exposição de
suas riquezas” (LVtopie, pág. 151).
Esta é a questão diante da qual nos coloca A Utopia. é preciso pensar
sobre a paz —Rafael se define como um especialista das “artes benfazejas da
paz” — como somente uma suspensão, uma limitação da guerra, ou como

875
aparecimento de um outro princípio —uma saída lógica da autoconservação -
o aparecimento da responsabilidade para com o outro? Daí o recurso de Rafael,
no final de sua peroração, à hipótese da fome: momento de crise excepcional
que pode ser exasperação da autoconservação, da conspiração dos bem-alimen-
tados ou, então, repentinamente experiência de humanidade. A utopia em sua
própria existência não é o afloramento desse princípio de responsabilidade
pelos outros?
Para quem aceita a hipótese da articulação que propomos entre o livro 1
e o livro II, A Utopia aparece como uma invenção retórica, renovando-se,
desempenhando a arte da persuasão. Mas essa invenção retórica não é também
política desconhecida, intervenção inédita no campo das coisas humanas? Em
vez de opor, como o faz uma tradição multissecular, Thomas More a Maquiavel,
este que dispensaria no famoso capítulo XV de O Príncipe (1513) as repúblicas
imaginárias, aquele que reativaria no mundo moderno a tradição platônica da
questão do melhor regime, não seria mais conveniente associá-los por contras­
te a uma terceira figura, a de Savonarola? Não é, na verdade, uma reflexão
crítica sobre o profeta desarmado que, em um suscita uma crítica da utopia e
de seu desarmamento e em outro suscita a invenção de um outro caminho,
afastado do profetismo, precisamente o da Utopia? A Utopia de Thomas Morus
não é tomada a distância com relação ao milenarismo critão, à consciência
quiliasta* e a sua ignorância da temporalidade e, num mesmo movimento,
vontade de inscrever a verdade dessa tradição, a lei de comunhão, a procura
da humanitas, em resumo, a dimensão ética, dentro de um novo espaço
político que, graças ao ductus obliquus, saiba fazer justiça à existência do
outro - a persuasão implica esse reconhecimento aos constrangimentos da
efetuação no tempo, à paciência que exige um querer não-resignado?

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* Q uiliasta - n o m e d os m em bros de um a seita cristã, tam bém ch am ad a dos m ilenários, q u e


atrib u íam um rein ad o de mil anos, n a terra, ao s sa n to s e a Je su s C risto. (Nota da trad u to ra.)

876
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Miguel ABEN SO U R .

877
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a <>ÃjGb6ií ,9 ?íWn<* M »ew 't ite «U ab ivio» 9inaí>'b JiA'l )a n«<;.-jk>.iacl úJ ,*>uí>i!3 .1 ;8£\*m01
.■l'?.S-VSS ,CT€I' ab litste ,8£ !ti <iawuH ./. ab ocjfeiíssiatqii

.«UOP./.30A biUjiiK

TT8
NIETZSCHE, Friedrich, 1844-1900
A lé m d o B e m e d o M a l, 1 8 8 6

No mês de agosto de 1886 vem a lume em Leipzig, onde foi publicado


por conta do autor, o sétimo livro de Friedrich Nietzsche: Jeinseits von Gut
und Bõse (Além do Bem e do Mal, com o subtítulo Prelúdio de uma filosofia
do futuro). A chave do título é fornecida desde as primeiras páginas: o autor
aborda o problema da origem e do valor do querer de verdade (der Wille zur
Wahrheit), problema que afirma ser o primeiro a se colocar (2, pág. 22) e que
o conduz a considerar a falta de probidade dos filósofos que se fazem, sem
saber, advogados de seus preconceitos (die Vorurteile), que batizam de
“verdade”. Acreditando na antinomia dos valores, o pesquisador de verdade,
tanto quanto o homem da rua, é vítima das aparências, pois o que constitui o
valor das coisas declaradas boas e veneradas —o ser, o imperecível, o segredo
de Deus, a coisa em si - se liga, talvez, ao fato de elas se aparentarem, se
misturarem, se confundirem com coisas consideradas habitualmente más —a
aparência, a vontade de enganar, o egoísmo, os desejos —de tal modo que o
que se parece mais oposto é, decididamente, da mesma natureza (ibidem). No
plano de fundo da antinomia radical entre o falso e o verdadeiro intervém, na
verdade, avaliações ou exigências fisiológicas que visam a conservar um certo
modo de vida, e a maior parte do pensamento consciente deve ser imputada às
atividades instintivas, “mesmo quando se trata do pensamento filosófico" (3,
pág. 23). Portanto, a proposta é menos de “superar” dois valores opostos do
que de negar - como o indica o emprego do nominativo Gut und Bõse - essa
mesma oposição e, mais radicalmente, explorando as raízes das avaliações que
presidem sua elaboração, de se opor ao “sentido dos valores" (Wertgefühl) que
geralmente tem curso.
Não mais do que as outras obras do autor, esse livro não é exclusiva­
mente consagrado às questões políticas, mas marca, na vida e no trabalho do
filósofo, a entrada em cena de um conceito que ele não abandonará mais: o

879
conceito de vontade de poder, fruto de longas meditações “no fundo de todos
os abismos da suspeita” e que possui, desconfia-se, implicações políticas
múltiplas tanto no plano da antropologia política quanto na esperança política
prática. Simultaneamente, o convite a ultrapassar a moral comum conduz a
abrir o debate sobre os preconceitos morais que se tornam obstáculos para a
compreensão dos fenômenos políticos e impedem o acesso a um suposto
“mundo de conhecimentos” mais “profundos”, a ponto de talvez impedir a
antecipação política e de requerer, a partir desse fato, “uma nova espécie de
filósofos e de chefes”. Não só deram lugar a numerosas interpretações, ligadas
notadamente às ideologias políticas do entreguerra, como também as intuições
da obra esclarecem sobre questões centrais da ciência política contemporânea.

Do fundo de todos os abismos da suspeita

Nietzsche só se aventura “além” da moral após ter aprendido, longa­


mente, a desconfiar, a lançar sobre o mundo um “olhar mal-intencionado”,
depois de se ter arriscado nas profundezas. Desde Humano por demais, em
1876, seu projeto era contribuir para uma “química”, para uma “fisiologia e
uma história dos sentimentos e das idéias”. No fio das meditações do Alegre
Saber, em 1882, no instante em que formula a hipótese do eterno retorno
(aforismo 841), a questão da gênese da história do pensamento é de novo
retomada. Deseja estudar na Universidade de Viena (cartas a P. Gast, t. 2,
pág. 99; Lou Andreas-Salomé, pág. 260) e escrever um ensaio científico
(cartas a P. Gast, t. 2, pág. 107). No ano seguinte, mesmo tratando-se apenas
de uma noção de caráter exploratório, o conceito de vontade de poder se
impõe como tema organizador de seu pensamento. Uma frase dos fragmen­
tos póstumos do outono de 1885 resume a intuição em que se apóia Além
do Bem e do Mal. “Nossa inteligência, nossa vontade, assim como nossas
sensações, dependem de nossos julgamentos de valor: esses, por sua vez,
respondem a nossos instintos e a suas condições de existência. Nossos
instintos são redutíveis à vontade de poder” (401611, pág. 398); a psicologia
que o autor pretende praticar daí em diante se descreve como exploração do
mundo "visto do interior”, “morfologia e teoria genética da vontade de
poder” (23, pág. 41). De um aforismo a outro, o conceito se precisa em
compreensão e em extensão, em oposto a termos conexos com os quais
poderia —e pôde mesmo - ser confundido.
A vontade de poder não é a vontade tal como a psicologia a compreendeu
até agora, como faculdade própria do sujeito que conheça e reflita a unidade
de sua personalidade. Não se pode separar o querer daquele que quer nem
daquilo que ele quer; não se pode isolar a meta, a intenção ou o fim da situação
particular na qual o ator está inserido. Nesse sentido, não existe querer, mas
somente um “querer alguma coisa”. Do fato de a intenção preceder a ação,
não se está autorizado em maior grau a concluir que ela é a causa da ação. A
ordem das representações, a sucessão dos pensamentos, sentimentos e cobiças
dentro da consciência, não poderia ser confundida com a ordem das determi-

880
nações objetivas, o encadeamento causai verdadeiro, a causa final com a causa
eficiente ou, ainda, como diz o manuscrito preparatório, “o piloto com o vapor”
(21 8 3 1, pág. 109). A intenção exprimida, exprimível, é sempre uma explicação,
isto é, uma interpretação, uma simplificação e até mesmo uma falsificação
(Fâbchung), conseqüentemente um fenômeno final, uma conclusão que só
tem valor de sintoma, já que o ato voluntário não se reduz a um fenômeno
consciente. Esse ato também não pode ser reconduzido ao conceito sintético
do “ego” escolhendo-se dentro de sua personalidade a crença na unidade do
sujeito, reforçada pela estrutura da linguagem —a unidade da palavra cria a
ilusão da unidade da coisa - é uma ficção. O “ego” deve muito mais ser
considerado um fenômeno plural; o impulso que triunfa em um momento, dado
como o resultante de vários impulsos, conciliando-se mais ou menos entre si
(19, pág. 37); e esses diferentes impulsos, como outras tantas manifestações de
um impulso fundamental: a vontade de dominar. Daí segue que os instintos do
ódio, de cupidez, de dominação são “instintos vitais que pertencem essencial­
mente à administração da vida” (23, pág. 41).
A vontade de poder não é o poder no sentido de um estado ou poder de
fato, de uma superioridade da qual uma pessoa ou um grupo se beneficiariam
de maneira privilegiada. Por um lado, a preposição zur, tão importante na
fórmula alemã e que só traduz de maneira muito imperfeita o “de” francês (ou
português), indica uma auto-superação permanente dessa vontade em direção
a mais poder, já que isso se efetua na oposição entre duas forças ou no interior
de uma mesma força (J. Granier, pág. 415). Por outro lado, se - como escreve
G. Deleuze - "o poder é o que quer dentro da vontade”, o elemento genético
e diferenciar em seu bojo (págs. 96-97), o esforço para conseguir mais poder
não é apanágio de alguns: oprimidos e opressores manifestam igualmente sua
vontade de poder. Os termos da expressão Willie zur Macht perdem cada um
deles seu sentido habitual e definem um novo conceito: nada de querer que
não seja vontade de poder, nada de poder que não deva ser relacionado à busca
incessante e infinita de um querer.
Reduzir-se-ia o conceito, então, à tendência de Spinoza a perseverar
dentro do ser? De maneira nenhuma. Um ser vivo quer, antes de tudo,
desenvolver (aus-lassen) sua força (Krafí). O instinto de conservação não é,
portanto, o primeiro princípio, mas uma exceção, uma restrição provisória da
vontade de viver. Fiel à exigência do método que consiste em não admitir
vários princípios ou tipos de causalidade de tal maneira que um só não seja
levado às suas últimas conseqüências, Nietzsche o coloca entre os princípios
teleológicos supérfluos (13, pág. 32).
Se a vida é vontade de crescimento e de dominação e, portanto, não
apenas de conservação, o que se revela nas funções orgânicas elementares, que
são a nutrição e a procriação, a vontade de poder, conseqüentemente, excede
em muito os fenômenos vitais. Em vez de reduzir os fenômenos vivos aos
processos físico-químicos — e dentro da linha de energetismo da época —,
Nietzsche se esforça para compreender os fenômenos físicos a partir das
formações próprias à vida. A diferenciação que o mecanismo estabelece entre

881
uma força, causa do movimento, e o próprio movimento deve ser tida como
um preconceito dos sentidos. Na medida em que manifesta uma energia {eine
Kraft), o movimento mecânico pode ser considerado muito mais um “aconte­
cimento interior”, um efeito da vontade. Dessa maneira, o mundo físico aparece
como a “forma mais primitiva do mundo das paixões”, uma “pré-forma da vida”
(36, pág. 55), e a vontade de poder, o núcleo íntimo do conceito de energia:
desejo insaciável de demonstração do poder ou força criadora. É preciso notar
que nessa interpretação global da matéria e da energia, a teoria física do eterno
retorno e a problematização da vontade de poder partiram unidas. Nietzsche
se faz aqui o discípulo aplicado de W. Thomson, de F. G. Vogt, de A. Blanqui:
num tempo indefinido, uma força constantemente igual, infinitamente grande,
eternamente ativa se transforma, provocando a volta de configurações idênti­
cas. Retorno que escapa à previsibilidade, não à regularidade (W. Jankélévitch,
pág. 83); daí, a necessidade de repensar de maneira nova o princípio deter­
minista que reina sobre o pensamento científico; a regra designada habitual­
mente de “causa e efeito” não é original, imutável, é um “movimento de humor
provisoriamente prolongado” (21, pág. 39). Uma vez eliminados os acréscimos
da imaginação, a relação entre os elementos aparece então: não mais átomos
nem coisas, nada senão quanta dinâmicos * numa relação de tensão com
todos os outros. “E sabem vocês exatamente o que é o mundo para mim?(...)
Uma força presente em toda parte, una e múltipla, como um jogo de forças e
de ondas de forças acumulando-se sobre um ponto quando diminuem sobre
outro; um mar de forças em tempestade e em fluxo perpétuo, eternamente
mudando, eternamente refluindo, a longos intervalos que regularmente se
sucedem(...). Eis meu para-além do bem e do mal, sem meta, a não ser que a
felicidade de ter realizado o ciclo seja sua meta, seu querer, a menos que um
anel tenha a boa vontade de girar eternamente sobre si mesmo(...). O mundo
é o mundo da vontade de poder e nenhum outro! E vocês mesmos são também
essa vontade de poder e nada mais” (Póstumos, outono de 1885 - outono de
1886,38 1121, págs. 343-344).
Princípio de todos os fenômenos observados, observáveis, qualquer que
seja sua natureza, física, biológica ou psíquica, o conceito de vontade de poder
recebe, assim, a título de designação a priori de objeto para estudar, uma
extensão máxima. É preciso ainda levar em conta que Nietzsche não pretende
propor, por aí, uma nova "coisa em si”, um incondicionado que, por ser
incondicionado, não poderia ser conhecido nem derrubar a metafísica por meio
de uma simples substituição do imediato sensível pelo além supra-sensível,
como pensa M. Heidegger (1954, pág. 91; e 1961, t l , cap. 3). Por se referir ao
ser, seu texto pode ser lido, é claro, na linha reta da filosofia clássica —
Nietzsche não ignora a dificuldade que existe em pensar de outra maneira, fora
das sugestões que certas funções gramaticais fazem (20, pág. 38) - mas
também contra ela, já que ele indica, pela aposição de aspas à palavra ser, que

* Quantum, a: em física, é unidade indivisível de energia; generalizando, diz-se da porção específica


de alguma coisa ou algo que pode ser quantificado ou medido. (N. da T.)

882
essa escapa à determinação clássica (B. Pautrat, pág. 259), aos preconceitos da
moral e da teologia (J. Garnier, pág. 629).
Pensando bem, a construção do conceito de vontade de poder conduz
relativamente à ciência mecanicista e coisicista a uma tripla reorganização. Ela
implica, primeiro, a dupla dispensa da noção de indivíduo e do esquema
substancíalista no qual esse é concebido. A introdução do conceito coincide, na
verdade, com o abandono das noções de sujeito e de agente, sem que apareça
de nenhuma outra maneira um ser novo subjacente: “um pensamento se
apresenta quando ele quer e não quando eu quero; de modo que seria falsificar
(falschen) a realidade dizer que o sujeito eu é a condição do predicado penso”
(17, pág. 35). Portanto, tudo se resolve na construção pertinente do conceito de
ação: o sujeito, indivíduo encarnado na fisiologia, e o eiementoátomo essencial
da física são erros ao menos enquanto suas denominações hasteiam a idéia de
que eles são elementos irredutíveis e realidades primeiras. A elaboração do
conceito de vontade de poder obriga, em seguida, a centrar a análise sobre a
importância das situações e circunstâncias e sobre a sua interação. Pois uma
força não existe fora das situações nas quais ela se manifesta, não que essas a
determinem de maneira mecânica, mas porque ela própria é o resultado de uma
interação. “É a luta incessante contra as condições sempre semelhantes e sempre
desfavoráveis que faz o tipo se fortificar e se endurecer” (262, pág. 187);
conseqüentemente, a vontade de poder supõe sempre, onde quer que se aplique,
uma construção racional. O trabalho de reflexão teórica se inscreve, enfim,
dentro de um pensamento da causalidade preocupada em colocar em evidência
as diferentes formas de necessidade, esta última sendo entendida como uma
necessidade intrínseca aos fenômenos, resultado de uma dinâmica endógena de
sua própria ordem (22, pág. 41). O conceito de vontade de poder é, portanto, a
designação sintética de resultados de funcionamentos próprios das ordens
autônomas ou, ainda, uma teoria das formas de objetivação do poder. É porque
ele não é primeira e exclusivamente, ter-se-ia compreendido, um conceito político
mesmo, porque existe uma ordem autônoma dos fenômenos políticos, tão
devedor como tal dessa construção geral, que esse tem implicações sobre o plano
da análise política.

Um mundo de conhecimentos mais profundos

No que se refere à construção do político, a conceitualização da vontade


de poder se realiza segundo uma dupla estratégia da qua! se podem ver os
efeitos na análise proposta da situação européia. Essa conceituação conduz
primeiro a que se interrogue não mais sobre as justificações, mas sobre as
condições de aparecimento das avaliações morais e políticas tornadas reali­
dades em si quando são estreitamente dependentes das situações reais, das
condições de existência e das relações de dominação. Encontra-se assim
recusada toda visão idealista da evolução histórica que faz dos acontecimentos
o resultado de intenções individuais ou, ainda, toda história das idéias conce­
bida, à maneira hegeliana, como simples desenvolvimento autônomo, realiza-

883
ção do Espírito dentro dos processos históricos. Trata-se, aqui, de relacionar
as opiniões com a razão prática, com a phusis de cada um, “a autoridade dos
valores com a autoridade das forças agentes” (224, pág. 141). As manifestações
da vontade de poder são analisadas, além disso, dentro da ordem autônoma da
política, seguindo uma dupla lógica: da força e da dominação, de um lado; do
número e da eufemização, do outro.
A gênese das sociedades aristocráticas, como empresa de dominação de
uma casta de "bárbaros” sobre raças mais fracas, fornece um exemplo da
primeira lógica. Contra todos os teóricos do contrato, Nietzsche sustenta que
convém não se ter ilusões “humanitárias” sobre o nascimento de uma sociedade
aristocrática: homens de rapina, próximos da natureza se jogando sobre raças
mais civilizadas, mais pacíficas ou velhas civilizações: assim começa o processo
de civilização (Kultur) sob a égide da vontade de poder. “Viver é essencialmente
despojar, ferir, dominar o que é estranho e mais fraco, oprimi-lo, impor-lhe
duramente sua própria forma, englobá-lo e, ao menos na melhor hipótese,
explorá-lo” (259, pág. 182). Sem dúvida, o filósofo toma o cuidado de precisar
que essa força é indistintamente física e espiritual (257, pág. 181), que a exaltação
das virtudes de dureza e de intolerância participa dessa dominação; mas, para
sublinhar melhor o caráter constrangedor da competição que opõe, a cada
instante, um grupo social a seus inimigos potenciais, torna necessárias essas
próprias virtudes. Uma “espécie” nasce, um “tipo” aumenta sua força “na luta
perpétua que o opõe ao vizinho, assim como ao oprimido sedicioso ou revoltado”
(262, pág. 187). A presença de inimigos, a penúria de recursos concorrem para
a fixação do tipo; a superabundância, as proteções favorecem seu declínio.
A lógica da eufemização no sentido quase etimológico do termo - que
faz intervir a "palavra”, a força própria das crenças - se enraíza no duplo
sentido, a dupla pré-história do binômio bem e mal, sem a qual não se pode
compreender as metamorfoses da vontade de poder, do judaísmo ao cris­
tianismo, por exemplo e, na época contemporânea, do aristocratismo político
à democracia. Sobre o caminho da preparação de uma tipologia da moral (eine
Typenlehre), Nietzsche distingue dois tipos fundamentais (Grundttypen): a
moral dos amos (Herren Moral) e a moral dos escravos (Sklaven Moral). A
palavra “tipo” deve ser compreendida no sentido que lhe dará mais tarde Max
Weber na expressão tipo ideal, o texto esclarecendo que essas morais coexis­
tem mais freqüentemente sem se conciliar nas civilizações superiores e com­
postas ou no interior de um mesmo indivíduo (260, pág. 183). Os critérios da
primeira moral nasceram da maneira de ser dos dominantes (eine herrschende
Art) "conscientes e satisfeitos daquilo que os distinguia da classe dominada”,
a segunda entre “os súditos, os escravos e os subalternos de toda categoria”.
Simultaneamente, o filósofo mostra que há passagem da categoria social para
a categoria moral e que o sentido e o valor das palavras variam segundo o fato
de eles emanarem de forças sociais diferentes. O que é “bom” para os amos
exprime sua altivez, sua superioridade, seu sentimento da distância (der
Pathos der Distam), o “ruim” (schlecht) pode ser identificado, ao contrário,
ao que não é "nobre”, o que caracteriza o “vulgar”: covardia, medo, mesqui-

884
nharia, desconfiança, humildade, mentira. A moral dos senhores (ou amos) é,
portanto, uma glorificação do que eles são, e cada um só tem dever para com
seus pares (iguais). A moral dos escravos procede, quanto a ela, de uma reação
à dominação dos poderosos e, portanto, de uma desconfiança com respeito ao
bem que eles honram. No caso em que o senhor dizia “eu sou bom, portanto,
você é malvado”, o escravo retrucava “você é malvado, portanto, eu sou bom”
(G. Deleuze, pág. 138). O "malvado” do senhor é o "bom” do escravo, e o
“malvado” desse é o "bom” do senhor (260, pág. 185).
Nietzsche afirma que foi graças ao povo judeu que se estimulou pela
primeira vez a revolta dos escravos e que ela se impôs em seguida dentro do
cristianismo e da democracia. Daí sua interpretação da história da Europa ao
longo de dezoito séculos: uma inversão de valores que contribuiu para a
"deterioração da raça européia"; “Frear os fortes, debilitar as elevadas es­
peranças, vilipendiar a felicidade que vem da beleza, perverter tudo o que é
orgulhoso, viril, conquistador, dominante... Eis a tarefa que a Igreja se impôs
e que se deve impor até que fosse consolidada, enfim, uma ordem de valores
em que as idéias de ‘renúncia ao mundo’, de ‘mortificação dos sentidos’ e de
‘homem superior' se confundissem numa só noção” (62, pág. 77). Como pôde
o homem europeu ser assim transformado em “aborto sublime”? A resposta é
tripla: porque as religiões existentes, as religiões soberanas, asseguraram a
supremacia de conceitos que contribuíram para manter o homem-tipo em seu
nível inferior e, conseqüentemente, conservar seres que deviam perecer;
porque eles tiveram o número com eles (203, pág. 116); finalmente, porque um
processo crescente de unificação e de assimilação conduziu a mistura das
classes e das raças (224, pág. 141). Inútil dissimulá-lo, o problema da articula­
ção dos processos de dominação e de eufemização não é, nessa obra, nem nas
que a ela se seguiram, um problema perfeitamente resolvido. O filósofo dá
ênfase às transformações correlativas dos modos de relação entre os homens,
das estruturas físico-sociais e das formas de organização política, mas parece
hesitar sobre a importância a atribuir a cada um deles (222, pág. 140). —“O
desprezo por si mesmo acompanha o sombreamento e o enfeamento da Europa
que não cessa de crescer há um século, escreve, se é que não seja a sua causa”
(222, pág. 140). E as hesitações também se encontram na designação dos
mecanismos de dominação que supunha em utilização na Europa da época.
Ela exige que se ponham em dia as relações existentes entre diferentes cadeias
de processo: a progressão das idéias democráticas, a modificação das inter-re-
lações entre os homens, as transformações fisiológicas subseqüentes.
Na ocasião em que formula seu diagnóstico, Nietzsche destaca que a
Europa e os países onde a influência européia domina se conciliaram sobre os
julgamentos morais: “As coisas chegaram a ponto de as instituições políticas e
sociais exprimirem elas mesmas essa moral de uma maneira sempre mais
evidente: o movimento democrático é o herdeiro do movimento cristão” (202,
pág. 115). Anarquistas, democratas, ideólogos da revolução, profetas da frater­
nidade socialista são todos, apesar de sua oposição aparente, favoráveis à
“moral do rebanho”, da piedade, da coletividade redentora e hostis a todo

885
privilégio. O triunfo dessa moral aparece particularmente bem, em políüca, nos
regimes representativos, encarnação do desaparecimento, ao menos aparente,
da desigualdade entre aqueles que comandam e aqueles que obedecem. A má
consciência dos homens no poder se traduz, assim, pelo esforço que fazem
para dissimular sua capacidade de comando, utilizando o título modesto de
“servidores de seu povo”, “instrumentos do bem público” ou, ainda, afirman­
do-se como “executores de prescrições mais antigas ou mais elevadas (a dos
ancestrais, da constituição, do direito, das ieis, até mesmo de Deus)”. Para fazer
com que aceitem sua dominação, dentro do quadro da moral gregária, os
mandatários são obrigados dessa maneira a recorrer à estratégia hipócrita do
devotamento impessoal.
O sucesso das idéias democráticas ligado ao avanço do instinto gregário
é, ele mesmo, o efeito de uma modificação das relações recíprocas entre os
homens. No começo nasce o medo e, em conseqüência, a exaltação de instintos
poderosos e perigosos, tais como o gosto pelo risco, a coragem temerária, a
astúcia, a avidez, a paixão de dominar, que, relativamente, são fontes de
proteção nas sociedades em que o corpo social ainda não está constituído e
defendido contra os perigos externos. A maior liberdade instintiva e a ameaça
física mais imediata são, então, fenômenos complementares. Em conseqüência,
desde que reine uma paz durável, a dureza e o rigor têm menos oportunidade
de se manifestar, é de seus semelhantes que os homens procuram se proteger.
A moral torna-se um “compromisso com o perigo que ameaça a pessoa em seu
interior” (198, pág.109): a eqüidade, a modéstia, tudo o que inclina os homens
a entrarem na linha, a se colocar no nível dos outros, é favorecido. Paixão pela
igualdade e procura de segurança andam juntas. Simultaneamente, o aumento
das interrelações entre os homens tende a descartar-se dos sentimentos
individuais em proveito das experiências coletivas. O fato de viver junto em
condições análogas (clima, habitat, perigo, necessidade, trabalho) contribui
para arruinar a exceção em benefício da regra, a elite em proveito do comum,
o instinto de comandar dando vantagem ao de obedecer. Não é que essa longa
servidão do espírito seja sem interesse, ela contribuiu muito para conferir ao
espírito europeu “sua força, sua curiosidade sem escrúpulos; sua mobilidade"
(188, pág. 101). Mas essa submissão a “leis arbitrárias" também não acontece
sem perdas irremediáveis de força. De modo que o movimento civilizador é,
como o explicará N. Elias, em lógica totalmente nietzschiana (pág. 258), uma
“arma de dois gumes”, mesmo se a “natureza”, em sua prodigalidade e
indiferença, não presta nenhuma conta dos efeitos que dela podem resultar
para os grupos ou as unidades que atinge. No total, temos não somente de
tratar, nesse caso, das mudanças ao nível da consciência moral e política como
também das mudanças práticas ao nível dos costumes, dos sentimentos, das
maneiras de viver dentro dos quadros dos quais a razão, os hábitos do
pensamento são apenas instrumentos (191, pág. 104). Nietzsche chega a ir
mesmo mais longe e afirma, dentro da linha das reflexões biológicas da época,
que se trata de um imenso processo fisiológico que atinge menos os indivíduos
do que os povos, as raças, as épocas e as classes (188, pág. 102).

886
Para o autor, com efeito, a herança social se inscreve dentro do hexis
corporal; cada homem traz em si os gostos e as preferências de seus pais e de
seus avós, as particularidades de sua raça. Precisemos: o conceito de raça
apresenta em seu pensamento, como W. Kaufman mostrou (pág. 295), um
sentido menos biológico do que cultural. Os traços raciais não são, para ele,
invariantes que bastaria conhecer para se descrever as características dessa ou
daquela cultura; eles próprios são os produtos de uma cultura. Aderindo à tese
neolamarquista da hereditariedade dos caracteres adquiridos (Ch. Andler, t 3,
pág. 20), o filósofo faz da classe (Stand), dessa maneira, juntamente com outros
elementos ligados a um meio determinado, como o clima (242, pág. 161), uma
das condições de aparecimento das raças. A mistura radica! das classes e
“conseqüentemente das raças” na Europa contemporânea constitui um dos
fatores do que ele chama de a doença européia da vontade..-. Não que ele seja,
a exemplo de Gobineau, o defensor de uma espécie de pureza racial e cultural,
mas porque vê, nessa mistura de raças, a explicação das inibições e das
contradições que certas culturas sofrem. Preocupado com o futuro da Europa,
examina, em cada Estado, a interação entre as modificações de sua complexão
fisiológica e o futuro de suas especificidades culturais antes de apreciar os
deslocamentos de equilíbrio que dela podem resultar no sistema global das
relações entre os Estados. Primeira observação: o progresso das “Idéias moder­
nas” herdadas do século XVIII inglês foi desigualmente repartido na Europa; elas
produziram tão maiores estragos quanto mais antiga era a civilização. Assim
aconteceu na França, onde a força do querer foi gravemente atingida, a ponto de
fazer esquecer que ela foi o país inventor da nobreza européia. É verdade que se
pode invocar ainda hoje em dia sua capacidade de se apaixonar pela arte, sua
sensibilidade e sua curiosidade psicológica herdadas de uma velha e diversificada
cultura de moralistas ou, ainda, a síntese harmoniosa que ela realiza entre o
Norte e o Sul, porém, o fato de ela se ter tornado a terra de eleição do ceticismo
não permite que se tenha em vista, para ela, um papel de futuro na cultura
européia. A energia da vontade parece, em compensação, se manifestar com
particular vigor nos judeus e nos russos. Pouco contaminados pelas idéias
modernas, os primeiros formam a raça mais pura e mais forte que existe na
Europa; e os segundos acumularam e entesouraram recursos de energia que
apenas aguardam a oportunidade de se liberar. A repartição e as modificações
do equilíbrio de forças —quer se tratasse de uma atitude a se impor cultural ou
fisicamente - entre os Estados conduziram-se de tal modo a se interrogar sobre
a evolução provável do sistema das tensões: “Um pensador que se preocupe com
o futuro da Europa deverá levar em conta tanto os judeus quanto os russos, que,
daqui em diante, serão, ao que tudo indica, os dois fatores que mais certamente
entrarão em jogo no grande conflito de forças” (251, pág. 170). Em conformidade
com o princípio de competição que regula a articulação das diferentes vontades
de poder, Nietzsche sugere que as novas condições que conduzem à aparição de
homens gregários são também próprias para dar nascimento a homens de
exceção (242, pág. 161), que o enfraquecimento espiritual de um povo pode ter
como compensação o progresso espiritual de um outro (241, pág. 160), que as

887
oposições e conflitos podem suscitar a aspiração ao repouso ou, ao contrário, ser
uma incitação a viver mais (200, pág. 111) e que, definitivamente, a democratiza­
ção da Europa poderia bem ser, sem que se quisesse, uma “escola de tiranos”
(242, pág. 162). Vê-se que as análises históricas e previsivas estão longe de ter,
quanto aos resultados, um conteúdo transparente. Os princípios sobre os quais
elas se apoiam reúnem, em compensação, preocupações e debates ainda atuais.
As doutrinas políticas são inseparáveis das avaliações morais e, em última análise,
condições históricas particulares nas quais foram elaboradas e eventualmente
modificadas; não se poderia subestimar, sobre esse ponto, a contribuição de
Nietzsche a uma teoria das ideologias, entendidas como a tradução, em termos
conceituais, de exigências, de necessidades, de conflitos na maioria das vezes
inconscientes. As rivalidades e combates políticos entre Estados levantam vôo
sobre o fundo de uma multiplicidade de recursos anteriores - exército, territó­
rios, mas também cultura, heranças diversas - que entram em combinações
complexas, elas mesmas funções das diferentes interações; o filósofo se faz nesse
caso o precursor de certos aspectos de teorias modernas, “realistas" das relações
internacionais. Enfim, se não se encontram mais traços na obra de análises
psicológicas centradas sobre “a procura do sentimento de poder”, como em
Humano por demais humano, se as ilusões do moralismo se encontram
suplantadas até nos estudos científicos, não se pode dizer, como Henri Albert,
que, com a elaboração do conceito de vontade de poder, Nietzsche se tenha
destacado do "período positivista" para galgar as “alturas ilusórias de Para além
do Bem e do Mal" (pág. 172) ou para desembocar no irracionalismo, como certos
comentaristas pretendem (Lukács, t 1). Partindo do sentido que ele próprio dá
à palavra positivismo - ilusão de que poderia existir alguma coisa de estável
dentro do domínio do conhecimento —é fácil mostrar, ao contrário, que ele é,
desde Humano por demais humano, antipositivista e que o aparecimento
posterior de avaliações da obra dentro da ciência não consiste de maneira
nenhuma em abandono do determinismo ou do racionalismo, mas em aprofun­
damento desses últimos. Antes de Max Weber, Nietzsche insiste, portanto, sobre
a necessidade de as ciências sociais se armarem da ciência de suas próprias
condições sociais de possibilidade.

Uma nova espécie de filósofos e de chefes

Se se procura determinar na obra as relações estabelecidas entre as


características do conceito de vontade de poder e a maneira pela qual ele se
traduz no plano de uma política nietzschiana, se está condenado a ver - depois
de K. Jaspers (pág. 254) e de D. Halévy (pág. 429) - que, se essas relações
existem, numa certa medida, elas exprimem mais uma forma de esperança do
que um programa político propriamente dito. Como “imaginação do futuro”,
a filosofia política de Nietzsche se inscreve dentro de uma tripla recusa: a
recusa do positivismo naturalista que reduz as ações humanas a causas
externas e conduz ao fòtalismo; a recusa do historicismo entendido como o
abandono em proveito do curso histórico das coisas, de toda reflexão sobre os

888
valores e ações a privilegiar; a recusa do idealismo e do dogmatismo uni-
versalista que negligencia a hierarquia das morais e a hierarquia dos homens.
Nenhuma dessas recusas é evidente.
A crítica do positivismo torna a denunciar, como sugerimos, uma concep­
ção errônea da causalidade que tende a fazer da ação o resultado de seus
condicionamentos. Reduzindo-a a seus antecedentes, relaciona-se um “efeito” a
uma “causa” indevidamente coisifícada sem esclarecer a própria ação. O que se
chama de coação, pressão, necessidade ou conseqüência obrigatória é, na
verdade, quase sempre sintoma de deficiência. Ver, por exemplo, nas formas da
sociedade existente a causa mais ou menos única da infelicidade e do fracasso
humanos é conceder demais às circunstâncias, submeter o mundo à igualdade
universal diante da lei e, como indica o texto, “colocar a verdade sobre a cabeça
e os pés para o ar” (44, pág. 60). A distinção entre vontades fortes e vontades
fracas obriga, em compensação, a renunciar a se considerar o indivíduo como
uma mônada* para levar em conta a totalidade das relações que ele tem com o
meio ambiente e com seus semelhantes. A originalidade dessa análise é a de
estabelecer, contra “a estupidez mecânica” reinante, que o "servo-arbítrio” (der
“unirei Wille”) é um mito da mesma maneira que o livre-arbítrio, que essas
noções remetem, uma e outra, a tipos de homens que precisam delas (21, pág.
39). Todavia, se o naturalismo está errado em reduzir de maneira simplista
estados interiores a fatores psicofísicos elementares, será que não existe, no
pensador da vontade de poder, uma invocação da idéia de natureza que lhe
permite passar do indicativo ao imperativo para fundar a superação da moral
reinante? Tendo descoberto o “primeiro fato” (Urfaktum) de toda a história,
Nietzsche almeja, em verdade, “mergulhar o homem de novo na natureza,
mostrar tais como são as numerosas interpretações orgulhosas, aberrantes e
sentimentais que se rabiscaram sobre o texto primitivo” (230, pág. 151) e fazer
justiça a outras morais que não a do “bem comum”, da “felicidade da maioria"
(228, pág. 146) que condena o homem superior. É, portanto, em nome da
hierarquia - é preciso que se diga natural - entre os homens em conformidade
com “o imperativo moral da natureza" e contra a mentira da igualdade de direitos
que ele pretende operar uma inversão dos valores e justificar a escravidão: “Até
aqui toda elevação do tipo humano foi obra de uma sociedade aristocrática e será
sempre assim; dizendo de outra maneira, ela foi a obra de uma sociedade
hierárquica que acredita na existência de fortes diferenças entre os homens e que
tem necessidade de uma forma qualquer de escravidão” (257, pág. 180).
Podemos perguntar-nos, então, se não existe aí - a despeito das tomadas
de posições metodológicas contra o naturalismo - o retorno a uma filosofia
política em que o normativo é o natural. Essa procura de uma adequação entre
dever-ser e ser da natureza pode, todavia, ser entendida num sentido bem
particular. Se se trata de visar à coincidência do eu quero com o é assim e será
sempre assim na representação do eterno retorno concebida dessa vez como
máxima moral (56, pág. 71), esse pensamento dos pensamentos ordena não

Mônada - substância simples, ativa, indivisível, incorruptível. (N. da T.)

889
“suportar” a necessidade, sofrê-la, mas sim “querê-la" de acordo com o circulus
vitiosus deus (56, pág. 71). O ideal afirmador da adequação à realidade supõe,
portanto, a transformação dessa última, uma transformação tão profunda quanto
a operada pela opressão milenar do cristianismo. Portanto, não se pode fazer do
filósofo um positivista, já que a inteligência da necessidade permite resgatar um
leque de possibilidades das quais nada garante a realização. Sua filosofia crítica
que coloca a relatividade de todas as visões do mundo não as reconduz, no
entanto, a se sacrificarem ao deus história, inaugurando o que Leo Strauss
chama de “o historicismo radical” de nossa modernidade?
Nietzsche rejeita, como se sabe, o bem-fundado de uma análise trans-his-
tórica das diferentes representações. Elas são sempre relativas à ótica da vida
que se exprime nelas, à sua “perspectiva” (34, pág. 59). Não pretende que a
análise do movimento da história que ele propõe possa escapar a essa coação:
“Admitindo que isso também seja apenas uma interpretação, diz ele a propósi­
to de sua especificação da vontade de poder, e não seria isso que vocês se
esforçam para me responder? Pois bem, tanto melhor” (22, pág. 41). Contra
todo dogmatismo, o filósofo prefere, dessa forma, a noção de interpretação à
de explicação e não concede uma posição privilegiada, sobre esse ponto, às
ciências da natureza com relação às ciências da cultura. Porém ele não afunda
no niilismo ou no ceticismo impotente. Se questiona o valor de verdade para
a vida a ponto de reconhecer na “negação da verdade” a “condição da vida”
(4, pág. 24); se o conceito de verdade é para ele ambivalente, como mostrou J.
Garnier, já que ele designa ora os “preconceitos" da ontologia metafísica, ora
a interpretação que ele lhes opõe, não renuncia nem ao conhecimento, nem ao
princípio de razão. Nega simplesmente que uma interpretação da história
possa anunciar o futuro ou ditar atitudes. Ele é completamente dependente,
desse ponto de vista, como observou justamente Leo Strauss (1975, pág. 95),
do pensamento pós-hegeliano que rejeita a idéia de um fim da história e afirma,
entretanto, o caráter racional do processo histórico; os homens fazem sua
própria história mesmo quando a fazem dentro de condições herdadas do
passado e, freqüentemente, não sabem a história que fazem. Várias linhas de
desenvolvimento histórico, todas igualmente compreensíveis ex-post, foram
possíveis; várias outras serão igualmente possíveis no futuro (203, pág. 117).
Nessas condições e após a reflexão crítica aberta por L. Ferry sobre as
interpretações da modernidade (1984, L 1), é bem difícil fazer de Nietzsche um
adepto do historicismo, pois ele preconiza precisamente colocar fim ao reinado
do “acaso”, do “sem sentido” do grande número que dominou até então o
desenvolvimento histórico, para introduzir uma verdadeira mudança de senti­
do, uma inversão dos valores. O conhecimento da história não dispensa de
maneira nenhuma, dentro dessa perspectiva, a obrigação de escolher. Nas
civilizações do passado, essa tarefa era confiada aos padres, aos filósofos e aos
políticos. E a novos filósofos que não procurarão refúgio na metafísica, na
religião ou na ciência e consentirão em se aproximar de certas verdades
desagradáveis (210, pág. 129) que incumbe, hoje em dia, a responsabilidade de
forjar valores novos para milênios. Eles se distinguirão, nisso, dos “operários”

890
historiadores da filosofia e dos homens de ciência: sua tarefa requer outra coisa
além de críticas e instrumentos, ela exige que "comandem” e "legislem” (211,
pág. 131). Esse projeto de restaurar, contra o ceticismo ambiente, a "missão
soberana” e a “primazia” da filosofia está, finalmente, muito afastado, como se
vê, de uma devoção à história. Pretender, como faz Leo Strauss, que os
sucessores de Nietzsche conceberam o pensamento como essencialmente
dominado ou dependente da vida ou do destino não parece um argumento
contra sua filosofia.
Salvaguardar a dimensão própria da ação contra a ilusão prospectiva da
fatalidade ou a retrospectiva da necessidade não significa também que os fatos
novos introduzidos na história escapem às malhas do determinismo. Não mais
se situar na órbita da moral e de sua ilusão implica, ao contrário, partir em
guerra contra todas as formas insidiosas de idealismo. Recusando a supers­
tição que faz a origem e o valor de uma ação residir na intenção que a precede,
o texto se dedica a mostrar, notadamente, o interesse de uma reflexão sobre
as condições, mas igualmente sobre os meios e as conseqüências da ação. Pois
não basta saber para querer nem querer para que as conseqüências da ação
correspondam ao que delas se esperava (19, pág. 37).
Torna-se urgente pensar e agir "além” de um ideal que nega a vida —para
além do bem e do mal —a partir de uma reflexão sobre a historicidade que se
quer ao mesmo tempo positiva e normativa, e evita o duplo obstáculo positivis­
ta e historicista sem cair no idealismo (M. Guérin, pág. 228). Esse é o sentido
desse pensamento aristocrático que Nietzsche deseja que substitua o movimen­
to democrático de seu tempo. Análise dos processos históricos e doutrina
prática se reúnem nesse caso, mesmo se o autor não ignora que uma fé
racionalizada atravessa a nova moral proposta. A descoberta e a análise das
contradições existenciais não retiram seu caráter prático insolúvel; é nisso, e
porque ele reivindica a dupla atividade de sábio e de filósofo —que ainda era
possível no fim do século XIX - que Nietzsche representa talvez hoje em dia
um marco desaparecido, apesar de intransponível.
À imagem dos filósofos do futuro, que têm como preocupação principal
a elevação do tipo humano, a “ultrapassagem contínua do homem pelo
homem” a que consagra seus votos, ele exerce primeiro sua aguda crítica sobre
os traços dominantes da política moderna. Acreditando na idéia de uma
equivalência e de uma intermutabilidade dos indivíduos, a democracia justifica
que eles disponham de chances iguais. Isso é contraditório com as dinâmicas
de instabilidade que deixam perceber o jogo da vontade de poder nas diferentes
ordens da vida, ela deve, portanto, ser tida como um "estágio decadente" (eine
Verfalls-Form) da organização política, um estágio em que o homem se diminui
e se deprecia (203, pág. 116). O socialismo, que impulsiona um movimento de
iguaiitarização oposto à ordem hierárquica necessária ao desenvolvimento da
cultura, trabalha da mesma maneira para a “bestialização dos homens rebaixa­
dos ao nível de gnomos, tendo todos os mesmos direitos e as mesmas
necessidades” (203, pág. 117); ora, “a prosperidade” geral não é nem um ideal,
nem um fim. Não há formas de afirmação nacional que não sejam, enquanto

891
tentativas de salvaguarda de pequenas ilhas de especificidade, empreendimen­
tos de antemão condenados pela própria instabilidade das relações de força
que, incessantemente, compõem as unidades maiores. “O tempo da pequena
política acabou” (die Zeit für kleine Politik ist vorbei). A divisão da Europa em
pequenos Estados será sucedida de uma luta pela dominação universal, “a
obrigação de uma grande política” (die grosse Politik). A palavra obrigação
deve ser entendida aqui em seu sentido positivo, já que os pródromos dessa
unificação já estão presentes (842, pág. 161), porém é também muito oportuno
querer esse processo de europeização anunciador de novos senhores (S.
Goyard-Fàbre, pág. 158).
Como “imaginação do futuro”, a terceira política de Nietzsche, que está
ligada à construção do conceito de vontade de poder, rompe com a utopia
racional, a confiança colocada anteriormente, para reformar a sociedade,
dentro de uma educação científica generalizada. O filósofo insiste daí em
diante sobre o “abismo” que separa saber e poder, as diferenças de disposições
às quais a ciência e a política fazem apelo: “Pode ser que o homem de grande
poder e de grande estilo, o criador, deva ser um ignorante” (253, pág. 173).
Essa orientação supõe que uma nova espécie de filósofos e de chefes possa
atrair a vinda de valores opostos àqueles que triunfaram na Europa, por uma
“grandiosa empresa de educação e de seleção” (203, pág. 116). O projeto é
formulado em termos bastante vagos e deu lugar a interpretações contraditó­
rias. Ele levanta em particular duas questões: pressupondo a vinda de novos
filósofos, precursores e homens do futuro, não renova Nietzsche o tema
platônico do filósofo-rei, do filósofo-homem de Estado? A educação da futura
elite não estará aberta a todos?
A resposta à primeira questão é fornecida desde as primeiras reflexões do
filósofo sobre a organização das sociedades. Artistas e filósofos não devem
principalmente pretender se misturar com política, já que são, por seu co­
nhecimento e sua criação, a própria justificação das “enormes despesas do
Estado e da sociedade” (1875,7, págs. 264-265). Em Para além do bem e do mal,
a exigência permanece. Homens da mais alta responsabilidade abrem caminho
para uma raça preparada e predestinada ao comando; mas, se a prática política
deve ser dependente de sua criação e de seu querer, ela não deve ser feita por
eles como era o caso dos brâmanes, que nomeavam reis para o povo “enquanto
eles próprios se contentavam e se sentiam fora dos contingentes como homens
dedicados a tarefas mais altas e mais do que nobres” (61, pág. 75).
A questão de saber se a obra de educação e de seleção concerne a todos os
homens conduz a apreciar o alcance elitista do pensamento nietzschiano. G.
Morei tem razão em precisar, contra certas interpretações errôneas, que não
existe “seleção anterior entre senhores e escravos”, que “a triagem não se opera
segundo normas sociológicas" (L 3, pág. 240), mas parece também importante
mostrar que as condições de utilização e o resultado dessa seleção dependem
diretamente de condições prévias. Assinalemos primeiro que, para que cheguem
filósofos novos, artesãos dessa seleção, Nietzsche tem em vista que sejam criadas
ou utilizadas as circunstâncias favoráveis. Ora, elas não dependem de uma

892
instrução rapidamente administrada, mas de uma educação ancestral (264, pág.
191). Ele também sugere aliar, para favorecer a vinda da “casta” nova chamada
para dominar a Europa, o vigor militar dos oficiais de Marcha e a brilhante
intelectualidade do Judeus (251, pág. 171). Aliás, a espécie superior não tem por
tarefa, como lembra oportunamente O. Reboul (pág. 151), educar a inferior,
elevá-la, porém, muito mais, vencer suas resistências e estar em condições de
dominar. O texto esclarece que ela se deverá servir, para esse fim, das “condições
políticas e econômicas existentes” e também das religiões consoladoras; os
homens comuns só vivendo e devendo viver para servir e se tornar úteis ao
“interesse geral”. Portanto, não será mais tão fácil admitir, como certos comen­
tadores (G. Morei, t 3, pág. 240), que Nietzsche tenha realmente desejado que
todos pudessem um dia chegar ao domínio.
Será que a realização das maiores potencialidades humanas exige tal
desprezo pelo homem comum? Não se pode, como escreve O. Reboul, conceber
uma igualdade que não nivele, uma cultura que não selecione? Não se pode
“democratizar a nobreza”? Essas questões não podem ser elucidadas por quem
leva a sério a análise política do filósofo e se interesse pelo futuro do que se
chama democracia. Visto que a interpretação de seu pensamento foi, como se
sabe, prejudicada pela má utilização que os nazistas fizeram dele, e visto que
é importante se perguntar hoje em dia, a exemplo de J. Derrida, para além de
todas as “reparações” a Nietzsche (G. Bianquis, Anon, H. Lefebvre, W. Kauf-
mann...), "como e por que o que se chama ingenuamente de falsificação foi
possível?” (pág. 830). É importante também não se deixar abusar pelas
propostas do filósofo. As hipóteses científicas sobre as quais ele apóia suas
argumentações são limitadas pelo saber de seu tempo ou por sua própria
documentação. A teoria da entropia prevaleceu sobre a imaginação do eterno
retorno, não se encontram mais biólogos para defender a tese da hereditarie­
dade dos caracteres adquiridos; e certas tomadas de posição - sua anglofobia,
sua misogenia —aparecem, com o recuo do tempo, como dificilmente com­
preensíveis.
Mas existe outro interesse na leitura da obra: ela mostra que não
acabamos jamais com as ideologias, que será sempre preciso - ao risco da
própia existência (39, pág. 56) - forçá-las a “tirarem a máscara” (M. Guérrin,
pág. 21). Ele dá a entender que o pesquisador não pode pretender a objetivi­
dade sem ter previamente elucidado a relação que mantém com o objeto de
sua pesquisa, sem dar prova de uma certa prudência que conduz o pensamento
à suposição, ao talvez... (J. Delhomme, pág. 64). Ele faz principalmente pensar
que o poder político não é antes de tudo um conjunto de instituições e de
aparelhos, mas o resultado, o efeito de conjunto, de uma multiplicidade de
relações de forças inerentes à sociedade, e que é preciso, portanto, abandonar
a cena política para perceber o jogo das relações desiguais que regula as trocas
e confrontos, habita os discursos e modela os corpos. É nesse sentido que se
pode compreender o antipolitismo de Nietzsche, e por essa razão que o
pensamento político do filósofo não é uma espécie de apêndice de sua obra,
sendo, ao contrário, sua “pedra de toque” (O. Reboul, pág. 81).

893
Pensamento moral que se desenvolve numa das mais corrosivas críticas
da moral, esse panfleto é, em suma, um antídoto maior para o contrasenso
perpetuamente renascente que enfrentou toda a vida: o idealismo. Inter­
rogação sobre o declínio e o destino da Europa, fonte e ponto de apoio dos
empreendimentos de poder que se conhece, ele poderá merecer, com o retorno
do tema da decadência, um novo futuro. Porém, será principalmente como
reflexão sobre as condições de possibilidade de um pensamento político, nos
termos de tudo aquilo que esmiuçamos, que Para além do Bem e do Mal nos
parece constituir símbolo de coragem e de liberdade.

• Nossa edição de referência é a edição crítica estabelecida por G. Colli e M Montinari, segundo
os manuscritos originais do autor, e compreendendo uma parte de textos inéditos: Walter de
Gruyter & Cia., Berlim, para a língua alemã; Gallimard, Paris, para a língua francesa.
Foram consultados mais especificamente para este artigo; Par-delà bien et mal (1886), Paris,
Gallimard, traduzido do alemão por C. Heim, J. Hildenbrand e J. Gratien, 1971; Fragments
posthumes, outono de 1884 - outono de 1885, Paris, Gallimard, traduzidos do alemão por M.
Haar e M. B. de Launay, 1982; Ecce Homo (redigido em 1888, publicado em 1908), Paris,
Gallimard, traduzido do alemão por J. C. Hémery, 1974; Lettres à P. Gast, Mônaco, Editions du
Rocher, 2 vols., tradução do alemão por L. Servicen, introdução e notas de A. Schaeffner, 1957.

► Henri Albert, Frédéric Nietzsche, Mercure de France, Paris, janeiro de 1883; Charles Andler,
Nletzsche, sa vie et sa pensée, 3 vols., Paris, Gallimard, 1958; Lou Andréas-Salomé, Frédéric
Nietzsche (1894), traduzido do alemão por J. Benoist-Méchin, Paris, Grasset, 1932; Anon,
Nietzsche el les fascistes; une réparation, Acéphale, Paris, janeiro de 1937; Geneviève Bianquis,
Nietzsche, Paris, Rieder, 1933; Gilles Deleuze, Nietzsche etla philosophie (1962), Paris, PUF,
1977; Jeanne Delhomme, Nietzsche ou le voyageur et son ombre (1969), Paris, Seghers, 1972;
Jacques Derrida, Otobiographies, Paris, Calilée, 1984: Norbert Elias, La civilisation des moeurs
(1939), traduzido do alemão por P. Kamnitzer, Paris, Calmann-Lèvy, 1973; Luc Ferry, Philoso­
phie politique, tomos 1 e 2, Paris, PUF, 1984; Simone Goyard-Fabre, Nietzsche e tla question
politique, Paris, Sirey, 1977; Jean Cranier, Le problème de la verité dans la philosophie de
Nietzsche, Paris, Seuil, 1966; Michel Guérin, Nletzsche, Socrate héroique, Paris, Grasset, 1975;
Daniel Halévy, Nietzsche (1944), Paris, Pluriel, 1977; Martin lleidegger, Essais et conférences
(1954), traduzido do alemão por A. Preau, Paris, Gallimard, 1958; Idem, Nietzsche, 2 volumes
(1961), traduzido do alemão por P. Klossowski, Paris, Gallimard, 1971; Vladimir Jankélévitch,
Uirréversible et la nostalgie, Paris, Flammarion, 1974; Karl Jasper, Nietzsche, introduction à
sa philosophie (1950), traduzido do alemão por H. Niel, Paris, Gallimard, 1978; Walter
Kaufman, Nietzche, Philosopher, Psychologist, Antichrist (1950), Princepton, Princepton
University Press, 4! edição, 1974; Henri Lefebvre, Nietzsche, Paris, Editions Sociales, 1939; G.
Lukács, La destruction de la ralson, traduzido do alemão por S. George, A. Gisselbrecht e E.
Pfrimmer, L 1, Paris, Editions de L’Arche, 1958; Georges Morei, Nietzsche, 3 vols., Paris,
Aubier-Montaigne, 1971;Bernard Pautrat, Versionsdu soleil. Figures et système de Nietzsche,
Paris, Seuil, 1971; Olivier Reboul, Nietzsche critique de Kant, Paris, PUF, 1974; Leo Strauss,
The Three Waves of Modernity in Political Philosophy, em Political Philosophy, Nova York,
Hilail Gildin Pegasus Indianopolis, 1975.

Jaqueline BLONDEL.

894
0

ORTEGA Y GASSET, José, 1883-1955


A re v o lta d a s m a ssa s, 1 9 3 0

Uma obra fílosófíca

0 célebre ensaio A rebelião das massas foi saudado pelo Atlantic


Monthly1, por ocasião de sua publicação em língua inglesa, como o equivalente
contemporâneo de O Contrato social, de Rousseau, e de O Capital, de Karl
Marx. Nesse trabalho, em gestação há vários anos, o “metafísico da vida”
desenvolve, por um lado, uma reflexão filosófica sobre o poder, a mudança e
a ordem social, e, enfim, o Estado e, por outro, uma argumentação apologética
de um liberalismo individualista e desigual. Essa aproximação cética da
história e da vida social desemboca na formulação de uma utopia européia.
Doutrina filosófica, formação utópica, desencantamento construtivo, essas
dimensões remetem à biografia intelectual2 do pensador do “raciovitalismo”
baseado num diálogo com seus parceiros letrados.
Todas as páginas de A rebelião das massas refletem o intelectualismo
existencial de Ortega que procurou desesperadamente conciliar uma delimita­
ção vital do racional e um confronto racional com o real, onde está imerso o
“eu”. O autor, que se quer pedagogo, comunica, num estilo brilhante, semeado
de metáforas, mas sem verbosidade, sua proposta, que se apóia sobre conexões
entre os fatos, tende a decodificar as significações, tarefa complicada pela
cesura introduzida entre o autor-emissor e o leitor-receptor pela polissemia da
linguagem.

A razão vital

Ortega sempre quis formular idéias significativas, isto é, formulações


necessariamente individuais que se opõem às opiniões não-racionais e às
crenças. Esse pensamento, que dialogou sucessivamente com o neokantismo,

895
depois com Einstein, Husserl e Heiddeger3, não hipostasia o racional, mas se
opõe ao racionalismo e à rigidez racionalista. O conceito não é um reflexo do
real ou mesmo uma organização do real, ele é um plano estratégico de
confronto com o real. O sujeito, pensante ou não, o eu, coexiste com seu
ambiente sensu lato (sentido amplo): Eu sou eu e minha constância, diz o
famoso ditado de Ortega. Esse pensamento “contraditorial”, denominado
raciovitalismo, não se reduz a uma fenomenologia existencial, a uma ontologia
realista ou a um idealismo subjetivista. A realidade radical da vida representa
para a formação do conhecimento, para o agir racional, um dado, mais do que
um determinismo. O universo, o mundo, a radicalidade da vida, só podem ser
confrontados conceitualmente dentro da perspectiva do limitado, da relativi­
dade, da lógica de um ponto de vista. Se a verdade existe, ninguém a pode
apreender direta, completa, substancialmente. O conhecimento do indivíduo,
a existência do indivíduo são variáveis segundo as circunstâncias e os co­
nhecimentos das circunstâncias. A dificuldade existencial do conhecimento
exige uma ascese intelectual difícil4

A razão histórica

Os limites da vida e do conhecimento humanos, afetados pela radicali­


dade da vida, constituem uma tragédia. Essa pode ser superada pela tentati­
va racional, pelo emprego da razão, que é também um emprego da cultura,
diante dos dados do mundo natural. A vida só se torna significativamente
humana pelo confrontamento da natureza pela razão, por sua superação em
cultura. A cultura é o resultado de diversos empreendimentos que fornecem
um conjunto de técnicas, de artifícios, cuja utilização permite solucionar os
problemas da vida num dado momento. A vida é mudança, temporalidade,
pela irrupção da cultura que a confronta. O homem, diante do conjunto das
circunstâncias da vida, é sempre existencialmente livre, suas decisões de
homem livre podem ser tanto a submissão ou o confronto, quanto o recuo
da vida. O dado natural, naquilo que concerne aos homens, deve ser tomado
dentro de uma acepção ampla: é estado natural, organização primitiva,
existência animal, toda comunicação homogênea, massificada, não orientada
signifícativamente por um projeto de razão, preocupado com o passado e o
presente para superá-los num fazer, isto é, num projeto de futuro. A cultura,
em outras palavras, o progresso da civilização é assegurado por uma cisão
das massas naturais, de indivíduos, ou de minorias escolhidas motivadas por
uma idealização comum, o projeto comum sendo impossível de ser parti­
lhado no nível racional por grupos grandes demais. Massas e minorias
estando em situação de relações necessárias, relações de cooperação e de
luta, no âmago da sociedade.
O sucesso da empreitada idealista verifica-se pela emergência de formas
abstratas superiores de organização social que fazem convergir várias coletivi­
dades e as transcendem. O sucesso da empreitada minoratária corre sempre o
risco da racionalização, da institucionalização, isto é, da emergência de uma

896
nova comunalização dos modos de vida no âmago das novas formas de
organização. A continuidade da vida social elimina as significações racionais
do fazer, do confronto da vida, em proveito de uma generalização, de uma
consolidação dos usos, das crenças, da língua. Com o aparecimento desse novo
estado natural, a temporalidade pisoteia sobre si mesma, as massas rotineiras
opõem-se à diferença, o poder esclerosa-se por falta de idéias do fazer. Só o
cisma permanente de indivíduos, de minorias separando-se dessa organização
fatalmente votada ao fracasso pelas circunstâncias variáveis e radicais da vida,
é capaz de fissurar essa existência coletiva, não informada, bárbara. Entretanto,
não é preciso atribuir a Ortega uma espécie de lei mecânica da mudança
elitista. A mudança, que não é unilinear nem sinônimo do progresso, é tanto
causada pelo voluntarismo quanto pela ação radical da vida. O progresso, ao
contrário, é uma orientação nova, significativamente humana da vida; ele
decorre da ação individual. Essa deve ser informada racionalmente dos custos
e da complexidade da história humana. O raciovitalismo tornou-se razão
histórica. Essa conhece seus limites em relação a uma história variável; ela os
pode esquecer dentro dos avatares da razão estatal.

A razão estatal

A razão histórica é ao mesmo tempo processo de conhecimento e causa-


efeito da evolução política. Esta última coloca em jogo o confronto das massas
com minorias no processo recorrente de culturalização e de naturalização. A
empreitada estatal constitui um exemplo interessante dessa dialética complexa
em que uma forma abstrata permite superar o estado natural, mas cuja
consolidação cultural naturaliza de novo as relações sociais.
1) A cidade-Estado mediterrânea, da Grécia Antiga à Itália da Idade Média,
é um dos exemplos que Ortega utiliza para ilustrar o papel do Estado. O
tratamento mais breve dessa forma de dominação dentro de A rebelião das
massas coloca em perspectiva a ação civilizadora de uma forma artificial de
estruturação do social. A ação de minorias mercantis, guerreiras, letradas,
estabelece a coexistência de diferentes categorias mais ou menos naturais. As
diferentes comunidades naturais subjugadas pelo poder da polis são muito
diversas, podendo-se tratar de comunidades rurais, comunidades domésticas ou
ainda de grupos étnicos. Essa coexistência ou até mesmo a mestiçagem não é o
produto de um puro diálogo, mas resulta mais freqüentemente de uma ação de
conquista. A conquista não é condenável em si; ela é uma das formas da luta que
faz parte da vida e deve, portanto, ser avaliada tanto em função das circunstâncias
quanto de sua contribuição para a humanização qualitativa. Ora, a cidade-Estado
substitui progressivamente a violência como Prima ratio por elementos culturais
como a jurisprudência, os usos e as crenças. Evidentemente, a esclerose dessa
cultura e a indocilidade das massas diante das elites esclerosadas figuram entre
as diversas circunstâncias que dão conta da crise e do desaparecimento dessa
forma significativa da dominação minoratária, aristocrática.
2) O Estado contemporâneo é o objeto de uma investigação mais longa,

897
da razão histórica armada, das analogias tiradas da desintegração da polis e
da Roma Imperial. O Estado, em seu funcionamento, é apenas uma técnica de
direito público e de administração. Paralelo ao desenvolvimento da ciência, ele
é antes o produto de minorias nobres, sobretudo depois do Renascimento, e,
no fim do século XVIII, é relativamente limitado com relação às extensas
dimensões de sociedades dinâmicas. Desde o século XVIII, simultaneamente
ao capitalismo industrial, as minorias burguesas desenvolverão uma ordem
estatal extensa e eficaz. As realizações do indivíduo burguês liberal são
impressionantes na promoção da vida. A abundância numérica pode ser
verificada no crescimento exponencial da população e na saturação material
de necessidades humanas. Do ponto de vista qualitativo, a violência torna-se,
pelo menos no nível interno, ultima ratio e é substituída pelo sufrágio. Na
mesma perspectiva de qualidade, é preciso restabelecer o surto fabuloso do
conhecimento, assim como técnicas, frutos do encontro entre a ciência e o
capitalismo.
3) A exemplo do Império Romano, o sucesso da empreitada elitista, a
saber, o caráter maciço do poder, das populações urbanas, dos bens materiais,
dos artifícios culturais, conduz a uma aculturação coletiva, a uma desmorali­
zação social, a uma renaturalização da ordem social, a uma indisciplina
"hiperdemocrática" dos governados. A explosão dos conhecimentos torna
difícil a aquisição de informações necessárias para a ação no nível das elites;
essa acumulação do saber, que eleva historicamente as competências das
massas, torna-as simultaneamente mais ignorantes do que as gerações ante­
riores com relação ao saber disponível e com relação à complexidade dos
problemas. Os derivados técnicos da ciência experimental estão na base de uma
especialização exagerada que reforça os efeitos de ignorância relativa e recalca
as idéias gerais face ao problema da organização da vida humana. O especialis­
ta completa seu saber parcial e real por opiniões, fruto de crenças, e não por
idéias, fruto do exercício da razão vital e da razão histórica; ele se tornou um
novo bárbaro, um especialista bárbaro.
A explosão demográfica, a aglomeração maciça nas cidades, assim como
a acumulação capitalista, conduzem ao nivelamento material e cultural; esse
igualamento, lembremos, representa um acréscimo da oferta material e do
estoque cultural à disposição do homem comum. A obesidade do Estado,
edificada e desertada pelas minorias burguesas, esmaga a espontaneidade
social, torna anêmica a vida social. A ação estatal constrói um conjunto
indefinível e homogêneo, a nação, agregação antipluralista, em que a comuni­
dade dos usos, da língua, das fronteiras, reforça o caráter indiferenciado,
natural, bárbaro das massas, dos especialistas e dos dirigentes. Dentro desse
Estado de massa, “o homem-massa”, sem idéias, sem projeto racional do fazer,
é um tipo construído que não se refere a categorias sociais específicas, mas ao
conjunto de uma população que, além disso, não tolera minorias seletas e
expressões diferentes. O Estado-de-massas-contemporâneo tornou-se, assim,
um perigo maior para a civilização. Os governantes no regime hiperdemocrá-
tico não são mais minorias aristocráticas. Tornados “homens-massa”, eles

898
abandonaram o liberalismo do século XVIII em prol do liberalismo coletivista
e de seu par, o nacionalismo, ideologia bárbara que exalta o produto estatal, a
nação, a massa natural. Os dirigentes não têm mais projeto interno, pers­
pectivas para o futuro, a não ser a reprodução da modernidade, isto é, a
reprodução de um tempo acabado sem temporalidade. Como projeto, exterior,
o nacionalismo, quer dizer, a guerra, torna-se o único projeto, já que ele não é
substituído pela democratização pacifista, isto é, a capitulação diante do
nacionalismo de outros. Os governados são necessariamente indisciplinados;
caprichosos na exigência imediata de satisfação de seus desejos ou desres­
peitosos diante de elites sem autoridade moral escondidas atrás de um Estado
anônimo. A explicação conjuntural da indisciplina das massas junta-se à
explicação filosófica da ação das comunidades primitivas. O vazio da razão é
completado pela violência que emana do chefe de bárbaros incultos, exacerba­
dos, além disso, pelo nacionalismo. Bolchevismo e fascismo constituem mode­
los do Estado violento de massas. Se bem que inferiores ao Estado liberal em
suas capacidades administrativas e necessariamente votados ao fracasso no
domínio econômico, esses Estados coletivistas são animados por projetos, por
mais irracionais que sejam, que obtêm a adesão das massas desmoralizadas ou
das jovens gerações em busca do que fazer.
4) As alternativas para o Estado liberal, coletivizado e nacionalista, são
reduzidas. Trata-se, em primeiro lugar, da saída catastrófica - a guerra, a fome
- que reduzirá quantitativamente, mas reforçará qualitativamente a vida
humana. A segunda solução de tipo voluntarista consiste na emergência de
uma geração que superará a forma obsoleta do Estado-nação para construir
uma nova organização abstrata, a Europa, que garantirá ao mesmo tempo a
pluralidade dos usos coletivos e a liberdade necessariamente individual. Den­
tro dessa nova organização política, será preciso reter lições da razão vital e
da razão histórica confrontadas na época contemporânea: o enfraquecimento
das hierarquias aristocráticas de poder não desenvolve a democracia, mas a
barbariza. O Estado, quando não é limitado, tem o mesmo efeito. Nessa
democracia liberal, individualista e não-igualitária, o problema da justiça social
deveria ser resolvido não por uma igualação estatal das condições, mas por
uma solidariedade social, a se imaginar sem seus referentes filantrópicos. Além
das regras da organização política, será preciso lembrar-se de que as massas
são um fato recorrente de sociedade, isto é, um fato natural; só o indivíduo é
agente artificial de civilização por se fazer racional, baseado sobre o único
lugar de autenticidade, de criatividade, sua meditação interna oposta à verdade
limitada do político.

• L a re b e lió tt d e la s m a sa s foi publicada no jornal E l Sol, de Madri, a partir de 24 de outubro


de 1929, depois foi impresso como livro, em 1930. Utilizamos a edição publicada na série
S e le c c io rte s A u s tr a l pela Espasa-Calpe, SA, Madri, 1976, que compreende uma introdução de
Julian Marias, o prefácio à edição francesa de 1937, o posfácio da edição inglesa de 1938, assim
como um ensaio sobre o pacifismo, publicado em junho de 1936, pela revista londrina The
N in e te e n th C e n tu r y e vários artigos de E l S o l de 1926 e 1927. Cf. também E sp a n â in v e r te b ra d a

899
(1921), E l te m a d e n u e s tr o tie m p o (1923), H is to r ia c o m o s is te m a y D e l im p é r io R o m a n o
(1941), E l h o m b re y la g e n te , (póstumo, 1957), nos vols. 111, VI, Vil de O b ra s C o m p le ta s, vol.
I-Xl, Madri, Revista de Occidente, 1949-1969, vol. XII, Madri, Alianza Editorial - Revista de
Occidente, 1983. Essa série, não estando completa, deve-se transportar também às coleções
O b ra s d e J o sé O rte g a y G a sset (editadas por P. Garragorri), revista de Occidente en Allianza
Editorial, Madri, e à coleção El Arquero, R e v ista d e O c cid e n te, Madri, assim como a vários
inéditos publicados na R e v ista d e O c cid e n te, da segunda época, Madri. Em francês, L a ré v o lte
d e s m a s s e s (trad. de L. Parrot), Paris, Stock, 1937 diversas reedições em Stock e Gallimard;
L 'é v o lu tio n d e la th é o r ie d é d u c tiv e : l ’id é e d e p r ín c ip e c h e z L e ib n iz , Paris, Gallimard, 1970; L e
th è m e d e n o tre te m p s, Sainte-Foy, Québec, Le griffon d’argile, 1986.

► Na abundante literatura versando sobre a obra de Ortega, assinalamos J. Bayon: R a zó n Vital


y D ia lé c tic a e n O rtega, Madri, Revista de Occidente, 1972; Ch. Cascales: L ’h u m a n ism e d'O rtega
y G a sset (prefácio de P. Mesnard), Paris, PUF, 1957; P. Garagorri, In tr o d u c tio n a O rtega, Madri,
Alianza Editorial, ns 231, 1970; Alain Guy, O rtega y G asset, c ritiq u e d ’A risto te , Paris, PUF,
1963; O rte g a y G a sse t o u la ra iso n v ita le e t h isto riq u e. Paris, Ed. Seghers, 1969: J. Hierro S.
Pescador, E l d e re c h o e n O rtega y G a sset. R e v ista d e O c cid e n te, Madri, 1966; F. Lopez Frias,
E tic a y P o lítica : en to rn o a l p e n s a m e n to d e J. O rtega y G asset, Barcelona, PPU, 1985; N. R.
Orringer, O rteg a y s u s fu e n te s g e r m â n ic a s , Madri, B. H. F. Gredòs, 1979; H. C. Raley: J o sé
O rte g a y G asset, p h ilo s o p h e r o f E u ro p ea n U n ity, The University of Alabama Press, 1971; F.
Vela, O rteg a y lo s e x is te n c ia lism o s, Madri, Revista de Occidente, 1961; A. J. Weigert, L ife a n d
S o c ie ty : a m e d ita tio n o f th e s o c ia l th o u g h t o f J o s e O rteg a y G asset, Nova Yorque, Irvington,
1983.
Entre os numerosos trabalhos tratando das mesmas teses que L a re b e lió n d e la s m a sa s, H.
Arendt, The o r ig in s o f to ta lita r ia n ism e , Nova Yorque, Harcourt, Brace & CO?, 1951; E. Canetti,
M a sse e t p u is s a n c e (1960), Paris, Gallimard, 1981; J. Ellul, L e s y s tè m e te c h n ic ie n , Paris,
Calmann-Lévy, 1977; M. Horkheimer, T h éorie c ritiq u e, e ssa is, Paris, Payot, 1978; W. Kor-
nhauser, T he p o litic s o f m a ss s o c ie ty , Nova Yorque, Free Press of Glencoe, 1959; E. Lederer,
S ta te o f th e m a sse s, Nova Yorque, W. W. Norton, 1940; J.-L. Talmon, L e s o r ig in e s d e la
d é m o c r a tie to ta lita ire , Paris, Calmann-Lévy, 1966; J. Zylberbeg (dir.), M a sse s e t p o s tm o d e r n ité ,
Paris, Méridiens Klincksieck, 1986.

Jacques ZILBERBERC

NOTAS
1. Citado por J. Marias, pág. 9, “Introdução", em José Ortega Y Gasset, L a re b e lió n d e
Madri, 1976.
la s m a sa s,
2. Intelectual antes de tudo, Ortega Y Gasset, após estudos de filosofia na Espanha,
residiu e estudou na Alemanha de 1904 a 1907 e foi nomeado, em 1910, professor de metafísica
na Universidade de Madri. Além de sua obra pessoal, seja como diretor de publicação, da editora
Espasa Calpe, ou como fundador da R e v ista d e O c cid e n te - ao mesmo tempo revista e editora
- , ele editou Spengler, Rickert, Born, Husserl, etc. Desde 1908 ele intervém, entretanto, no
debate público, defendendo contra Unamuno a idéia européia, preconizando o ensino leigo e se
opondo à monarquia. Suspenso da Universidade em 1929 por Primo de Rivera, ele será
deputado nas Cortes constituintes da República, experiência que reforça sua desconfiança dos
políticos. A partir de 1936, ele se exila da Espanha até 1945 e não interferirá mais nas fileiras
da política.
3. N. R. Orringer, O rteg a y s u s fu e n te s g e rm â n ic a s , Madri, 1979.
4 .0 raciovitalismo é: “A filosofia que não aceita outros conhecimentos teóricos diferentes

900
do método racionai, mas que acredita ser necessário situar no centro do sistema ideológico o
próprio problema do sujeito que pensa esse sistema. As questões concernentes à relação entre
a razão e a vida que aparecem com toda clareza nas fronteiras do racional (essa pequena ilha
cercada de irracional por todos os lados) vão, portanto, ocupar o primeiro plano. Assim
precisada, a oposição entre teoria e vida aparece, portanto, como um caso particular da oposição
fundamental entre o racional e o irracional” (pág. 124, J. Ortega y Gasset, Le thème de notre
temps, Sainte —Foy, 1986).

ORWELL, Eric BLA1R, mais conhecido como George, 1903-1950


1984 (Mil novecentos e oitenta e quatro), 1949

Será mesmo 1984 uma “obra política”? Em todo caso, foi como terrível
sátira política que a leram desde os anos 50 os leitores daquela Europa do
Leste onde, segundo a frase de Czeslaw Milosz, o pensamento estava “cativo”.
Mas George Orwell, que já havia escrito ensaios políticos (por exemplo, O cais
de Wigan, Homenagem à Catalunha), concebeu 1984 como um romance; da
mesma maneira, quando quis manifestar sua cólera contra as revoluções
traídas, ele o fez sob a forma de uma fábula swiftiana: A fazenda dos animais.
Winston e Júlia são funcionários bem subalternos de um partido que
governa com poderes absolutos a Oceania, um Estado que vive em guerra
crônica ora com a Estásia, ora com a Eurásia. Como todos os membros do
partido, Winston e Júlia podem ser espionados dia e noite pelas teletelas
instaladas em toda parte, denunciados pelas brigadas de jovens olheiros do
partido. São obrigados a reprimir seus crimes-pensados, a vociferar em coro
contra o renegado-traidor Goldstein, a expandir os slogans do partido: “A
guerra é a paz”. “A liberdade é a escravidão”. “A ignorância é a força”. Eles
se encontram, se tornam amantes, e esse é o início de uma longa cadeia de
transgressões, pois o partido não permite que se estabeleçam entre homens
e mulheres lealdades que ele não controlaria. Ora, seus encontros são
clandestinos, eles abrigam seu amor dentro de um quarto que parece uma
ilhota esquecida de um passado em que o regime atual não existia. Acabam
entrando em contato com 0 ’Brien, um alto dirigente do partido, que os leva
a entender que uma organização secreta procura derrubar o regime. Aceitam
aderir a ela e consentem até mesmo no sacrifício de suas vidas. Presos,
interminavelmente interrogados e torturados pelo próprio 0 ’Brien, eles se
liquidarão diante da ameaça de uma última e atroz tortura: eles suplicarão
a seu carrasco para que a inflija ao outro. Liberados, seus caminhos se
cruzam uma última vez, indiferentes, vencidos, eles se perdem na multidão.
O partido ganhou, pois Winston, que se obstinara em se tornar de novo um
homem, “alcançou a vitória sobre si mesmo”: "Agora, ele amava o Grande
Irmão”, o ditador de Oceania.

901
Desde sua publicação em 19491, a obra prestou-se a interpretações
diversas (e o próprio Orwell hesitou sobre o sentido que lhe quisera dar). Nada
há de surpreendente nisso, tanto o autor a sobrecarregou de intenções, nela
entrelaçando temas e acumulando reminiscências. “Utopia sob a forma de
romance”, “sátira”, “paródia das conseqüências intelectuais do totalitarismo”:
assim o próprio Orwell caracterizou seu romance. No entanto, quando alguns
leitores quiseram ver nele não somente uma crítica do comunismo soviético
mas também dos socialistas ingleses (ele chegara a batizar de Angsoc o regime
de Oceânia), Orwell ditou a seu editor uma rota categórica: o que ele escrevera
não se referia a um país preciso, “é a direção que o mundo toma atualmente”
e “alguma coisa como 1984 poderá acontecer (...) A moral a tirar dessa situação
perigosa e de pesadelo é simples: não permitam que isso lhes aconteça. Só
dependerá de vocês”2.
Romance de antecipação, 1984 o é sobretudo por seu título (de fato,
simples anagrama de 1948, data da conclusão do manuscrito)3, mas muito
menos do que A guerra dos mundos, de H. G. Wells (1898), Nós outros, de
Evgueni Zamiatin4, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932). A
ação de 1984 se desenrola certamente num tempo futuro, mas não em algum
lugar utópico: dentro de uma Londres bem real, onde Orwell descreve de
maneira muito realista os pubs dos bairros populares, as ruínas dos bombar­
deios recentes e as privações dos tempos de guerra.
Romance descrevendo a realidade do totalitarismo da URSS stalinista ou
da Alemanha nazista? Sim, parcial mente5, mas não é tanto isso que dá força à
obra. Mesmo em 1948, Orwell não era o primeiro a fazê-lo e, nessa pintura do
real totalitário, ele nem sempre ultrapassou seus antecessores5: o Nós outros, de
Zamiatin, é também comovente e mais despojado. O Zero e o Infinito (Darkness
at noon), de Arthur Koestler, primeiro romance que tentou explicar o mecanismo
psicológico das confissões, fora publicado em 1941. E por que, hoje em dia, ainda
leríamos 1984 com a mesma vibração se seu “realismo” se revela ora fraco, ora
forçado, se já lemos os romances de Soljenitsin e, sobretudo, o extraordinário
Vida e destino, de Vassili Grossman7?
Então, o que é que ainda hoje traz força e unicidade de 1984? O que nos
permite, além da intensidade dramática da intriga romanesca, reconhecer nele
uma obra política maior? As insistentes semelhanças que Orwell apontou entre
a Oceânia de 1984 e a URSS stalinista8 mascararam a intenção política muito
mais profunda e a generosidade da denúncia que Mil novecentos e oitenta e
quatro exprime. Orwell —que não era de maneira nenhuma um teórico, e cujas
convicções políticas, se bem que fortes, independiam de qualquer doutrina,
pressentiu intuitivamente que os totalitarismos reais podiam ser diversos e ter
graus variáveis de violência; porém, ele havia compreendido também, por sua
experiência pessoal (e principalmente depois de ter testemunhado em Barcelo­
na a caça impiedosa que os comunistas moveram contra os anarquistas e os
Poumistas) que o totalitarismo absoluto — qualquer que seja sua forma
concreta - podia nascer por toda parte e mesmo na velha Inglaterra suave­
mente mergulhada “em seu sono profundo”9. E que isso podia acontecer por

902
indiferença, pequenas covardias, frouxo abandono de fealdades elementares e
de verdades simples ou complacência com a primeira falsificação.
O que 1984 destaca, portanto, é a própria radicalidade de todos os
totalitarismos possíveis, seu projeto fundamental, sua ubris: uma empreitada
detalhada e metódica de destruição de tudo o que, nos sentimentos humanos,
assim como nas artes, na linguagem e mesmo na natureza, poderia testemu­
nhar que o mundo e a humanidade preexistiram ao partido, que tudo isso tem
uma longa história multissecular que constituiu a humanidade, mas que ela
também escreveu. Por ocasião das sessões de tortura em que 0 ’Brien se
esforça por extirpar de Winston a louca pretensão de reencontrar sua “huma­
nidade”, ele lhe martela os princípios de base: “O indivíduo só tem poder na
medida em que cessa de ser indivíduo” (372). “É preciso desobstruir seus
espíritos das idéias do século XIX sobre as leis da natureza. Nós fazemos as
leis da natureza” (373). “Mais tarde, não haverá nem mulher nem amigo (...) O
instinto sexual será extinto. Não haverá mais riso, a não ser o riso de triunfo
provocado pela derrota de um inimigo. Não haverá nem arte, nem literatura,
nem ciência” (376-377). "Nós criamos a natureza humana” (379).
Pintando esse quadro, Orwell sabia, pertinentemente, que ele repre­
sentava um pesadelo sem relação com um real totalitário (mesmo quando, de
uma outra maneira, o real de Auschwitz e dos campos de Kolima é ainda mais
atroz). Esse pesadelo está para o real como o modelo está para a historicidade
dos acontecimentos: ele simboliza, extremiza e deforma (nem sempre, aliás)
para tentar plantar a ponta do pensamento crítico no coração do mal. Contra-
ríamente a uma idéia por demais divulgada, 1984 não é o testamento derrotista
de um vencido que se via morrer. Certamente Júlia e Winston perdem, e o
Grande Irmão triunfa, mas Orwell, o antigo voluntário da Guerra Civil Espa­
nhola, somente quis dizer com isso que o totalitarismo poderia conquistar o
mundo inteiro, tanto suas raízes mergulham na vaidade do mundo moderno e
na nossa indiferença moral.
A mensagem mais importante que passa por intermédio de 1984 (mensa­
gem um pouco trêmula de furor e de cansaço, convenhamos) está contida na
luta hesitante de Winston e nos vários temas, às vezes secundários, onde seu
autor mostra por quais caminhos transgressivos, por quais retomadas de
objetos, de lembranças e de palavras antigas, o herói desperta de seu torpor e
reassume a condição de homem “natural” com a ajuda de Júlia. Se se lê 1984
assim, compreende-se então que se trata menos de uma paródia do totalitaris­
mo do que de um romance da resistência ao totalitarismo e também ao
esquecimento, a toda violência contra a liberdade e contra a moral mais
simples. Orwell considera os instrumentos dessa resistência com seus meios,
que não eram nem aqueles de um filósofo, nem os de um teórico, nem de um
político profundo, mas sim de um escritor pertencente à tradição dos grandes
panfletários ingleses, de um moralista sempre motivado contra a mentira, a
injustiça e o saber ávido de poder, de um defensor das "alegrias simples” e das
lealdades indestrutíveis10.
Se Winston conseguiu pouco a pouco evadir-se do domínio do partido

903
sobre sua existência, foi primeiro por “desvios” quase subreptícios: ele reen­
contra por acaso uma lembrança de infância (uma obscenidade contra sua mãe
e sua irmã), toma repentinamente consciência do gosto nauseabundo dos
sucedâneos entregues ao consumo pelas lojas do partido. Ele se põe a lançar
um olhar novo sobre um mundo ao qual, como todo membro do partido, ele
era até então desatento: o gesto de uma mãe protegendo seu filho por ocasião
de um bombardeio, a leveza das folhagens no campo inglês, o canto de um
tordo, a desordem viva dos bairros proletários que os membros do partido
nunca freqüentam. Ele começa, repentinamente, a perceber dentro das propo­
sições de seus colegas o funcionamento do “pensamento-duplo”, ele sur­
preende seu pavor quando eles deixaram escapar de seus lábios um “crime-
pensado”. Mas principalmente, a resistência de Winston - com a ajuda de Júlia
e pelo amor deles vivido contra o partido - vai passar pela reconquista de uma
memória e por uma “re-aspiração” de todo o passado que o partido se obstina
em destruir, fazendo desaparecerem todos os seus traços nos “buracos da
memória” do Ministério da Verdade e forjando uma Novalíngua que tornará
daí em diante incompreensíveis todas as obras escritas no passado e impedirá
aos futuros Winston confrontarem os comunicados do partido com esses
textos sagrados ou com arquivos que demonstrariam sua falsidade.
Os escritórios do partido que pacientemente trabalham para substituir a
Antigalíngua pela Novalíngua no vocabulário cada ano mais reduzido, perse­
guem uma meta precisa: uma vez tornada obrigatória a Novalíngua “haveria
muitos crimes e erros que estariam fora do poder (de um indivíduo) de serem
cometidos, simplesmente porque não teriam nomes e seriam, em conseqüência,
inimagináveis” (436437). Os famosos postulados de Thomas Jefferson na
Declaração da Independêncian, só poderiam ser expressos na Novalíngua
“por uma única palavra: crime-pensado” (438).
Há evidentemente outras linhas de defesa e de resistência à tentação
totalitária, mais políticas, mais institucionais, mais teóricas. Em 1984, George
Orwell ateve-se à linha mais elementar, ao alcance de cada um (Winston e Júlia
são seres médios): ousar cometer crimes-pensados, ater-se às verdades de base,
não fechar os olhos diante das falsificações, permanecer fiel às lealdades. A
lição política de 1984 é simplesmente esta: a política começa no núcleo mais
elementar da consciência moral. É o pilar sobre o qual começa a construção
difícil, paciente, frágil do político.

• As referências das citações de 1984 remetem à tradução francesa editada por Gallimard na
coleção “Folio”. Todas as outras obras de G. Orwell traduzidas em francês (e sobretudo para
aquelas que têm um interesse político imediato, Le quai de Wigan, Hommage à la Catalogne,
La ferme des animaux) foram editadas ou reeditadas pelas Editions Champ Libre. Os ensaios,
artigos e cartas de Orwell foram reunidos em uma coletânea: George Orwell, The collecled
Essays, Journalism and Letters, 4 vols., Secker and Warburg, 1968. Reeditado por Penguin
Books.

904
► Biografia: Bemard Crick, G eorge O rw ell, u n e vie. Paris, Balland, 1982. Estudos: Irving
Howe, editor, 1 9 8 4 R e v is ite d (essa coletânea contém principalmente ensaios interessantes de I.
Howe, M. C. Miller, Michael Walser e L. Kolakowski), Nova York, 1984, Harper and Row. Revista
E sp rit, janeiro de 1984 (artigos de J. Darras, C. Delannoi, J.-Y. Guérin, C. Lavau).

G eorges LAVAU.

NOTAS
1. Depauperado pela tuberculose (que o matou, em 21 de janeiro de 1950, aos 47 anos),
Orwell terminou seu manuscrito em novembro de 1948. O livro foi editado por Secker &
Warburg, em 1949.
2. Citado por Bemard Crick em sua bela biografia: George Orwell, Paris, 1982, pág. 484.
3. Orwell havia imaginado um outro título, muito mais significativo: “O último homem na
Europa.”
4. Escrito em Moscou em 1920 (o que testemunha uma lucidez estupefaciente, pois todos
os anos da tirania stalinista estão previstos aí), esse romance não foi jamais, que eu saiba,
publicado na URSS. Orwell inspirou-se muito nele para escrever 1984.
5. Não se observou bastante que, em 1984, os três superimpérios que partilham o planeta
têm todos mais ou menos o mesmo regime, que suas guerras e suas alianças não obedecem a
nenhum conflito de valores: a empresa totalitária encobriu (ou poderia encobrir) a terra inteira,
esmagando por toda parte o passado, a história e as culturas.
6. Obra de um quase-agonizante, 1984 ressente-se da pressa e do esgotamento, é
formalmente menos acabada do que A fa z e n d a d o s a n im a is . Descobrem-se aí defeitos. A longa
passagem consagrada ao L iv ro d e G o ld stein , didática e polêmica, é quase ilegível; o Apêndice
sobre a N o v a lin g u a , muito interessante em si, está mal integrado ao romance; a posição
estranha dos “prolos” (ao mesmo tempo massa animal inconsciente e esperança de uma
libertação possível) permanece indeterminada e testemunha uma indecisão que caracteriza,
aliás, todo o pensamento de Orwell desde suas primeiras obras: ele as conheceu, partilhou de
suas lutas da maneira mais concreta, mas julgou-as sempre manipuláveis demais.
7. Anuncia-se que Vida e destino poderia ser publicada na URSS (mas provavelmente não
integralmente...).
8. Semelhanças que não eram involuntárias: Orwell nunca foi um “companheiro de
estrada” do comunismo, seus amigos mais próximos eram anarquistas ou socialistas de esquerda
(mais raramente trotskistas), ele sabia reconhecer os méritos dos comunistas, mas detestava
radicalmente o regime comunista da URSS, os partidos da IIP Internacional e os “companheiros
de estrada" complacentes demais. Mas a URSS stalinista era, para ele, o paradigma de um mal
universal, com ou sem vínculos com o marxismo (do qual ele não gostava também).
9. Em Homenagem a Catalunha, pág. 237.
10. De maneira bastante justa, Bemard Crick diz que havia em Orwell um “velho
republicano romano”.
11. “Temos por naturalmente evidentes as seguintes verdades: todos os homens nascem
iguais. Eles recebem do Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais estão o direito à vida,
o direito à liberdade, o direito à busca da felicidade (...) Quando uma forma de governo se opõe
a esses fins, o povo tem o direito de mudar esse governo ou de aboli-lo e instituir um novo (...).”

905
OWEN, Robert, 1771-1858
A New View of Sodety (Uma nova visão de sociedade), 1813-1814

Lendo Owen

Da tríade dos grandes utopistas do século XIX, Robert Owen é certa­


mente o mais desconhecido, o que é menos suscetível de exercer sobre nós a
fascinação de uma vida e de um pensamento fora de série. Não tem a liberdade
de comportamento nem o gênio arrebatado de Saint-Simon, esse grão-senhor
revolucionário republicano que abriu a era utópica com as Lettres d ’un
habitant de Genève à ses contemporains (Cartas de um habitante de Genebra
a seus contemporâneos); também não tem o gênio extravagante de Fourier,
“o grande poeta da vida harmoniosa” que, conjugando a dúvida e o desvario
absolutos, se dedicava à invenção de combinações passionais que não existiam
mais. O que inicialmente nos impressiona, no caso do benevolente Sr. Owen,
é seu prosaísmo, até mesmo seu realismo. A esse self-made man, um dos
primeiros empresários da Inglaterra industrial, pode-se, quando muito, atri­
buir, além de uma bela obstinação, um certo gênio para a propaganda
moderna. Seus escritos, fundados na maioria das vezes sobre o materialismo
do século XVIII, não o resgatam. Repetitivos, pesados, nenhuma espon­
taneidade os percorre, a não ser o anúncio do Milênio. Segundo Engels, que
se conhecia bem, “o fundador dos socialistas, Owen, escreve em seus numero­
sos opúsculos como se fosse um filósofo alemão, isto é, muito mal” (Lettre de
Londres III, junho de 1843, em H. Desroche, Socialisme et sociologie
religieuse, Paris, 1965, pág. 256).
Mas não seria talvez um erro querer classificar Owen como um utopista?
Uma história social mais sóbria não nos convidará a dissociar Owen da utopia
social e associá-la ao que sua evolução histórica reteve? (J. F. C. Harrisson, Robert
Owen and the Owenites in Britain and America, Londres, 1969). Dessa maneira
seria, ao mesmo tempo, mais proveitoso e mais legítimo apresentar Owen como
o pioneiro do sindicalismo ou da legislação do trabalho, o apóstolo da cooperação
ou, então, com um dos primeiros inventores das cidades-jardim.
Porém, ao eliminar Owen da utopia em nome do método histórico, não
se estaria paradoxalmente dando provas de cegueira histórica, não se estaria
da mesma forma deixando de perceber o projeto global de uma sociedade
diferente e de entender o anúncio de uma nova era para a espécie humana?
Como compreender, então, a importância do owenismo dentro da constituição
da classe operária inglesa e de seu acesso à consciência de classe? Segundo E.
P. Thompson, a prédica de Owen deu nascimento a “uma dessas impulsões
gigantescas, mas efêmeras, que se apossavam do entusiasmo das massas
apresentando-lhes a visão de uma estrutura completamente diferente daquela
do capitalismo industrial, suscetível de ser edificada em alguns anos ou em
alguns meses, bastando que as pessoas estivessem suficientemente decididas
e unidas" (The Making o f the English Working Class, pág. 803).

906
Nossa atenção, para estarmos em posição de ler A New View o f Society
(1813-1814, primeira publicação em volume em 1816, cf. A. Bestor, Ba-
ckwoodss Utopias, University of Pennsylvania Press, 1950, pág. 68, n. 23), deve
voltar-se mais para a desses intérpretes que souberam superar a insipidez
aparente do personagem e a banalidade enganadora de seus escritos. Aqueles
que, sob a máscara do industrial paternalista, souberam distinguir o “sonhador
da Inglaterra”, aqueles que perceberam o caráter extraordinário da carreira de
Owen e da aventura oweniana, tanto na Europa quanto no Estados Unidos, ou
aqueles que acreditaram poder designá-lo como um dos instigadores de uma
grande política moderna. Primeiro Marx e Engels, cujo interesse por Owen
jamais foi desmentido. Menos conhecido nessa qualidade, Pierre Leroux,
Arthur Bestor, Karl Polanyi, principalmente, E. P. Thompson e, mais próximo
a nós, Mareei Gauchet e Gladys Swain que pedem emprestado explicitamente
o título de seu estudo La Pratique de Vesprit humain (A prática do espirito
humano) (Gallimard, 1980) a uma obra de Owen, The Revolution in the mind
and practice o f human race (A Revolução no espírito e na prática da raça
humana) (1849). Ao ler esses analistas, desvendam-se repentinamente a ampli­
dão, senão a grandeza do projeto de Owen, assim como a irredutível ambigüi­
dade de sua obra. Melhor ainda, poder-se-ia dizer que foi por ter sabido fazer
jus, sob vários aspectos, a essa ambigüidade, que esses intérpretes consegui­
ram evitar a insipidez e a banalização do pensamento de Owen.
Levando a sério o título da obra de Owen, A New View o f Society (Uma
nova visão da sociedade), eles têm em comum, além de suas diferenças, o fato
de enunciarem uma mesma questão: trata-se realmente de uma nova concepção
da sociedade? Entendamos bem: os quatros ensaios de Owen, reunidos em A New
View o f Society, não trazem uma descoberta do social, enquanto realidade sui
generis, que conviria ser pensado como diferente do político e do econômico?
Esse pensamento do social não mereceria o título de inovação por se ter
conseguido manter à igual distância de uma regressão a representações pré-mo-
dernas (organicistas) e de uma adesão às representações que, ao mesmo tempo,
abrem caminho no liberalismo econômico, o do credo manchesteriano?
Para julgar a novidade desse pensamento, não basta apenas lhe dar
crédito provisoriamente, é preciso também retirar os obstáculos que lhe
barram o acesso. Primeiro, refutar a tese do simpiismo de Owen, que pesa
muito sobre sua crítica, segundo o julgamento polêmico de Hazlitt; Owen seria
o homem de uma idéia só, que não teria cessado de repetir imutavelmente até
o fim de sua carreira. Insistindo sobre a dimensão “ética” do projeto de Owen
- a criação de um novo mundo moral — A. L. Bestor percebe em seu
comunitarismo três fases nitidamente diferenciadas: uma primeira fase, de
1817 a 1824, ou a proposição da aldeia experimental com tendências somente
igualitárias; de 1825 a 1835, a relação entre a experiência americana (New
Harmony) e o owenismo, a expressão de uma doutrina abertamente comuni­
tária, senão revolucionária; e, enfim, de 1836 até sua morte, a inflexão da
doutrina para um sentido mais nitidamente reformista (A. Bestor, op. cit., págs.
78-79 e 90-92).

907
Em sua interrogação sobre a essência do século XIX, Pierre Leroux, ao
mesmo tempo que associa Owen a Saint-Simon e a Fourier, os inovadores à
procura de um novo caminho para a espécie humana - a Aurora do Socialismo
convida a distinguir na obra de Owen três elementos de valor desigual: a
prédica, o sistema, e a revelação.
- A prédica está contida nesta proposição: “O erro, o mal e a miséria
existem em toda parte; os meios de estabelecer a verdade, a riqueza e a
felicidade abundam por toda parte. E não se poderia fazer a troca” (La greve
de Samarez, 11, pág. 324).
- O sistema consiste na solução à qual está ligada classicamente o nome
de Owen: “Ele imaginou que o gênero humano se agruparia em pequenas
sociedades de 500 a 3.000 pessoas; organizou de uma certa forma seu
estabelecimento em New Lanark, ao fundar New Harmony, quer dizer que,
tendo comprado terras, ele as distribuiu por diversas Comunidades que foram
bem ou malsucedidas.” Para Leroux, isso pouco importa, é a comunidade, o
convento, o monastério moderno (apenas).
- A revelação ou o essencial da doutrina de Owen, o que fez dele um
homo novus: “A sociedade humana, liberta das forças fatais da natureza, se
tornará um mecanismo; e o homem, ele próprio tornado livre, será uma peça
importante desse mecanismo.” Robert Owen, verdadeiro revelador, trouxe
para o mundo a Boa Nova de uma comunidade em que as máquinas desempe­
nhariam o papel do trabalhador, em que o homem estaria livre da alienação no
trabalho. E Pierre Leroux, mesmo censurando o autor por não ter sabido
descobrir como o homem seria ligado ao homem, vê nele, contrariamente a
todos aqueles que o acusam de simplismo, um filósofo e um legislador que
revelou a seu país pensamentos novos, quanto ao social. “Não existe nada de
mais moderno e, nesse sentido, de mais original do que sua concepção da
sociedade humana servida por máquinas, os homens se tendo tornado, por
isso, iguais e livres, a máquina a vapor substituindo o escravo” (La greve de
Samarez, pág. 322).
Enfim, o último obstáculo, a tese do conservadorismo de Owen. Um
apresentador, contando com a ambigüidade da obra de Owen para cultivar o
paradoxo e renovar aparentemente a interpretação, sustenta que conviria
retirar Owen da tradição socialista em que, erradamente, se pretendeu encer­
rá-lo. Ele apareceria, então, como o autor de um conservantismo inédito,
decididamente oposto à sociedade industrial e desejoso de restabelecer os
vínculos comunitários da Inglaterra pré-industrial. Nada menos novo do que
essa representação da sociedade: Owen seria no máximo um dos inventores da
crítica romântica da sociedade burguesa, aquela que foi desenvolvida pouco
depois, em sentido reacionário, por Carlyle e, depois, por Ruskin. Predecessor
dos moralistas vitorianos, ele teria exigido, contra a atomização social, a
destruição de todos os vínculos e a redução das relações humanas à lei do
valor, o ideal de uma sociedade “orgânica” fundada sobre uma hierarquia
funcional e terminando numa integração autoritária dos diferentes grupos
sociais que a constituem. Owen teria retirado sua inspiração crítica de uma

9 08
imagem idealizada das relações sociais e notadamente do trabalho na Inglater­
ra de antes da revolução industrial.
Essa tese, que retém apenas uma das vertentes da doutrina de Owen para
absolutizá-la de pronto, é dificilmente sustentável. Como manter a qualificação
de conservadorismo em relação à crítica do casamento, da propriedade e da
religião que, segundo Owen, são as três instituições que devem ser destruídas
para abrir para a humanidade o caminho da emancipação? Como concluir pelo
conservadorismo quando Owen foi um dos primeiros a ter percebido na
transformação tecnológica o que iria permitir à raça humana romper para
sempre a estabilidade opressiva das sociedades tradicionais? Essa interpreta­
ção, que não soube compreender que podem existir pontos de contato entre
uma crítica tradicionalista da nova economia de mercado e uma nova forma da
crítica “se fazendo”, aproveita-se disso para minimizar a visão de Owen sobre
o que pode ter sido um ponto de partida e transformá-lo falsamente em ponto
de chegada. Surpreendente confusão entre a crítica de uma sociedade domina­
da pela economia (Owen) e a crítica da sociedade industrial (a crítica românti­
ca), quando, para Owen, a indústria representa a atividade que vai permitir à
nova sociedade recriar um novo tecido social —em termos owenianos, fundar
um novo mundo moral - , de tal modo que a economia esteja subordinada a
uma finalidade metaeconômica de um tipo novo.
Enfim, como ousar tal simplismo depois dos trabalhos de Karl Polanyi e
de sua surpreendente reavaliação de Owen, de onde este último sobressai
como o grande espírito profético do século XIX, o primeiro que soube entrever
as linhas diretrizes de um socialismo ético, capaz de responder às exigências
de uma sociedade moderna complexa.

A New view o f society (Uma nova visão de sociedade) (1813-1814)

Em sua Autobiografia, texto serôdio, Owen definiu com bastante exati­


dão o sentido de sua primeira doutrina, “Nessa época, publiquei uma brochura
destinada à circulação privada onde descrevia as disposições que havia tomado
para a direção de New Lanark, isto é, os princípios por meio dos quais contava,
por um lado, melhorar a condição dos trabalhadores e, por outro, assegurar
um lucro razoável aos investidores e à direção da empresa. Essa brochura
circulou entre os círculos mais seletos de personagens ricos e caridosos e entre
aqueles que tinham autenticamente manifestado a intenção de tomar medidas
eficazes para a melhora das condições dos pobres e das classes trabalhadoras.
Eu tinha em vista encontrar entre eles associados que, longe de frear,
sustentariam meus projetos e que teriam a preocupação de não extorquir
trabalho demais de seus trabalhadores em troca de salários baixos demais”
(The Life o f Robert Owen by himself, t. I, pág. 89). Da mesma forma são
descritos os quadros sociais da doutrina de Owen que correspondem ao
terceiro grupo que ele constituiu em New Lanark a partir de 1813. Desanimado
por parceiros que só pensavam “em comprar a baixos preços e vender caro” e
que, portanto, se opunham à sua vontade de construir escolas em New Lanark,

909
Owen formou nessa época uma nova associação cujos membros eram sus­
cetíveis de conciliar a busca de lucro e a tentativa de uma experiência social.
A composição desse terceiro grupo foi particularmente significativa: uma
maioria de quakers filantrópicos, um Tory, Mr. Gibbs e o teórico do utilitaris-
mo, Jeremy Bentham. Owen rompeu, então, com a ortodoxia de Manchester
para se reaproximar de homens dispostos, por motivos diversos, a temperar a
busca do lucro com a melhora da condição social das “classes inferiores”.
Nada menos sonhador, entretanto, do que os fundamentos do projeto
oweniano. Ele não foi elaborado no céu etéreo da imaginação de um jovem
intelectual em luta contra o curso do mundo, mas em contato com a
realidade capitalista. E, não contra ela, mas sim com ela, mais precisamente
à frente das usinas de New Lanark de que Owen retoma a direção em janeiro
de 1800. Ele foi, na verdade, um dos pioneiros da organização industrial
(scientifíc management).
Convém reconhecer o paradoxo: a empresa capitalista é a matriz de onde
saiu a utopia oweniana. Também, mais do que saudar em Robert Owen aquele
que teria conseguido instaurar uma comunidade falansteriana * em seu país
natal, é preciso reconhecer nele o “empresário” benevolente de uma empresa-
modelo. Mesmo se os métodos aos quais ele recorreu em sua prática diretorial
diferissem daqueles dos “Lycurgos de fábrica” (Marx), seus trabalhadores
assalariados de New Lanark não deixavam de estar inteiramente submissos ao
poder autocrático do bom Sr. Owen que, pela colocação progressiva de
condições superiores, visava a produzir modos de comportamento igualmente
superiores. A criação dessas condições encontrava muito rápido um limite
intransponível: o poder do capital e a separação entre os trabalhadores e os
meios de produção.
Uma questão se coloca: será que o trabalho de escrever, assim como a
vontade de levar sua experiência ao nível da sociedade global, de universalizá-
la, não irão conduzir Owen a se desviar, a ultrapassar sua prática de diretor de
fábrica, em resumo, a mudar de terreno? Será que se trata, como o título indica,
de uma nova concepção da sociedade ou de uma simples racionalização
produzida pela injeção de utilitarismo na tradição filantrópica?
Não há nada de utópico nem de revolucionário nesses quatro Ensaios.
Obra fundamentalmente ambígua, essa “nova concepção da sociedade” se
apresenta sob uma fachada modesta e tranqüilizadora para a ordem existente.
E preciso tomar cuidado, ainda, em distinguir o que se entende por “nova
concepção da sociedade”; trata-se de um projeto prático-utópico de sociedade
ou, a rigor, de um novo pensamento social? Trata-se primeiro de um ensaio de
resposta ao problema do pauperismo contemporâneo da revolução industrial.
Owen se conscientiza de um estado de crise que afeta perigosamente a
sociedade global. No âmago dessa crise, o crescimento extremamente rápido
da classe trabalhadora e de sua proletarização. A equação classe Irabalhadora-

* De Falanstério, habitação de falange no sistema de Fourier, por conseqüência, edifício onde se


localizam numerosas moradas. (N. da T.)

910
classe perigosa é nitidamente colocada. A sociedade presente fabrica crimino­
sos. Que fazer para que ela produza proletários laboriosos, moderados e
submissos à ordem existente? Essa é a problemática específica de Owen.
Tentando uma extrapolação de sua experiência de industrial para a sociedade
global, propõe uma estratégia de submissão das classes trabalhadoras, sob a
forma de um sistema nacional de formação e de instrução para os pobres. Para
prevenir a criminalidade das classes inferiores e evitar os sofrimentos humanos
a que conduz sua repressão, convém formar, moldar uma “personalidade de
base” adaptada às novas normas do sistema manufatureiro. Trata-se, portanto,
de social-engineering, de uma obra de socionomia.
“Os Ensaios aqui reunidos não são propostos como simples objeto de
especulação destinado a passatempo de visionários ociosos que se dedicam a
reflexões em seu gabinete de trabalho, mas jamais agem no mundo. Eles visam
a criar uma atividade industrial, expandir na sociedade o reconhecimento de
seus interesses autênticos e dirigir o espírito público para um tema que é, de
longe, o mais importante: um método nacional tendo por meta formar racio­
nalmente o caráter dessa imensa massa de população que, no momento, é
formada de tal modo que perturba o mundo com seus crimes” (A New View o f
Society, Everyman’s, pág. 21).
Portanto, formação, moralização, domesticação das classes inferiores.
Em apoio à sua empresa, Owen desenvolve as três teses que constituem o
essencial de sua doutrina: I) a crítica do livre-arbítrio; 2) a influência onipotente
da geração presente sobre a formação das gerações seguintes; 3) a ciência das
circunstâncias. Em nenhum momento coloca em questão a estrutura social
existente nem coloca a questão de uma relação possível entre a proletarização
das classes inferiores e a apropriação privada dos meios de produção. Ne­
nhuma projeção de uma sociedade nova aparece. Esse escrito tende em parte
a uma maior racionalização da ordem existente. Sedução ou convicção real,
Owen fala a linguagem da rentabilidade e da ordem. Para tranqüilizar melhor
os leitores, dá como exemplo New Lanark e as colônias de pobres de Munique
e de Fredericks-oord. Além disso, toma extremo cuidado em marcar a diferença
entre sua nova concepção da sociedade e um projeto de estilo revolucionário.
- Convida as classes privilegiadas a se associarem a seu plano de reforma,
afirmando que seus privilégios não serão prejudicados. Nenhuma espoliação,
nenhuma violência devem ser temidas na realização do projeto de Owen.
Melhor, sua utilização tem precisamente como objeto prevenir os riscos de
guerra civil. Essa reforma concerne à felicidade social de todos e deve conduzir
a uma reconciliação das classes (A New View o f Society, op.cit., pág. 19).
- Owen se dirige aos governantes e se indica uma inclinação desejável da
política no sentido da maior felicidade para o maior número de pessoas; essa
orientação conserva intata a divisão entre governante e governados.
A constituição inglesa lhe parece, aliás, admiravelmente adaptada à
utilização dessas medidas de reforma. Quanto à Igreja da Inglaterra ele lhe
pede somente para abandonar aqueles de seus dogmas que desunem para
poder participar no plano de formação dos deserdados.

911
A ambigüidade de A New View o f Society provém da presença de uma
dupla mediação. Owen, realmente, opera um desvio por meio de duas ideologias
particulares, a ideologia filantrópica paternalista e a ideologia utilitarista. Dessa
combinação em que se percebem o peso da tradição e as exigências do presente
são testemunhas as dedicatórias da obra endereçadas a William Wilberforce, à
opinião pública britânica, aos industriais e também aos manufatureiros, e, enfim,
ao príncipe regente. Owen se perde em seus desvios ou se trata apenas de desvios
destinados a lhe permitir atingir mais seguramente sua meta?
O desvio por meio de uma ideologia paternalista e pré-manchesteriana
parece evidente ao exame da terminologia de Owen. Ele emprega, nos escritos
de seu primeiro período, termos que pertencem ao período pré-industrial. Em
1817, almeja moralizar as ordens inferiores (to remoralize the lower orders)
ou, então, the poor, ou ainda the people, ou uma vez ainda the poor and the
working classes. Em 1820, no Report to the country o f Lanark, as duas
terminologias coexistem, the poor e the working class. A considerar essa
terminologia, Owen parece permanecer atado a uma concepção antiga da
sociedade e parece trazer uma resposta para o pauperismo bastante vizinha da
do século XVIII, precisamente por suas ênfases humanitárias, como se ele
estivesse ainda convencido de que os ricos estavam encarregados pela “provi­
dência natural” de tomar conta dos pobres (Asa Briggs, The Age oflmprove-
ment, Londres, 1959, pág. 68). Essa relação com o tradicionalismo parece
confirmada pelos pesares que ele transmite a propósito dos vínculos recíprocos
que uniam anteriormente senhores e servidores (Observations on the Effect o f
the Manufacturing System, Everyman’s Library, 1815, pág. 123). Interro­
gando-se sobre a qualidade das relações humanas no novo sistema industrial,
deplora sua instabilidade e sua precariedade.
A mesma orientação se observa na posição de Owen com relação ao
tratamento da indigência. Ele, realmente, não pertence à “linha dura”, que, em
favor da criação de um mercado livre de trabalho, militava pela supressão da
assistência aos pobres e pela criação de um sistema de recolhimento coercitivo,
sob a forma de WorkHouses, o que a lei de 1834 realizou. Ele pertenceu bem
mais à ala tradicionalista, preocupada, ao mesmo tempo, em manter um certo
sentido de comunidade entre empregadores e empregados e em não prejudicar
as normas da economia política. Harrisson coloca Owen ao lado dos filantropos
esclarecidos como P. Colquhoun e J. Kennedy, que procuraram remediar,
senão a “pobreza”, pelo menos a “indigência” e tomar a seu cargo a população
trabalhadora durante os períodos de depressão (J. F. C. Harrisson, Robert
Owen and the Owenites in Britain and America, págs. 11-25). Em A New View
of Society, Owen critica muito severamente essa lei sobre os pobres, que ele
considera um sistema irracional, um encorajamento à ociosidade e ao vício,
gerador de criminalidade e produtor, além disso, de uma perda considerável
de força de trabalho. Levantando-se contra uma supressão pura e simples,
propõe um contra-sistema progressivo que tenha um duplo efeito: preventivo
e regenerador —(A System for the Prevention o f Crime and the Formation o f
Human Character). Ao contrário das doutrinas liberais, Owen apresenta um

912
sistema nacional de formação dos pobres e das classes trabalhadoras (.A
national system for the training and education o f the laboring classes) que
exige uma intervenção do Estado em vários níveis:
—criação de um ministério ou de um gabinete nacional encarregado da
educação das novas gerações;
—criação de seminários de formação para a instrução dos instrutores;
—controle estatístico do mercado de trabalho com o fim de utilizar da
melhor maneira possível a força de trabalho nacional.
Esse plano tem dois estágios: em período normal, o sistema de formação
e de educação das classes inferiores deve permitir uma melhor regulação do
mercado de trabalho; em período de crise e de depressão, esse plano se deve
transformar em uma política de pleno emprego em meio a um programa de
trabalhos públicos (A New View o f Society, Fourth Essay, págs. 65-87).
O conjunto dessas medidas funciona no sentido da economia social que,
para remediar o problema do pauperismo, propõe a solução das colônias
agrícolas. Trata-se essencialmente de uma estratégia de regeneração e de
integração das classes trabalhadoras que, em Owen, toma o nome de aldeias
cooperativas (Villages o f Unity and Mutual Cooperatiori).
Junto com essas medidas, situando o projeto de Owen dentro de uma
relação com a filantropia esclarecida, outras tendências já despontam, tais como,
na economia social, pode-se observar a passagem para a economia cooperativa.
Desde 1918, Owen reedita os planos do quaker John Bellers para estabelecer
Colleges o f lndustry (1695), repousando sobre a auto-suficiência econômica das
classes trabalhadoras, idéias que está no centro do projeto socialista.
Também, melhor do que declarar que Owen foi tanto conservador quanto
socialista, vale mais a pena se interrogar sobre as origens conservadoras do
socialismo e voltar à questão já enunciada por K. Mannheim em seu estudo
sobre o pensamento conservador, a saber, como uma crítica da sociedade
burguesa de inspiração tradicionalista se pôde transformar em crítica, sob
muitos aspectos, revolucionária? (Essays on Sociology and Social Psycholo-
gy, Londres, 1953, págs. 90-91).
A tese do conservadorismo de Owen parece tanto menos aceitável, pois,
no momento de sua associação com Francis Place e Bentham, havia se tornado
um adepto do radicalismo filosófico. Percebem-se, realmente, na nova concep­
ção da sociedade de Owen, as características essenciais do utilitarismo: o
positivismo - a tendência à tecnologia social - o intervencionismo estatal - o
recurso à educação.
O positivismo aparece em Owen sob duas formas: como manifestação do
Iluminismo e como antiidealismo.
Antes de tudo, o positivismo oweniano está intimamente ligado ao
Iluminismo no sentido de Kant, a luta da humanidade contra os preconceitos
para sair da minoridade e ter acesso a um estado de autonomia intelectual,
moral e político. Para Owen, e isso desde 1813, a humanidade chegou a uma
fase de sua história em que está destinada a operar efetivamente e sem
reincidência possível uma saída da minoridade e a passar progressivamente de

913
um estado de ignorância para um estado de inteligência coletiva do qual não
é possível antecipadamente fixar os limites. É por isso que se encontra em
1813, sob a pena de Owen, súdito britânico, um elogio confuso, mas um elogio
real, a Napoleão, campeão do Iluminismo. Se Napoleão mostrou o que não
devia ser feito, ele teve o mérito histórico de proceder às destruições necessá­
rias, de subverter, até seus fundamentos, as bases ideológicas do mundo
feudal, destruições sem as quais todo progresso posterior permaneceria ilusó­
rio. Uma vez reconhecidos, os princípios da ciência do caráter conhecerão um
surto e uma eficiência prática sem limites. A inteligência humana maltratada
durante séculos retomará seus direitos e se desenvolverá de maneira surpreen­
dente. O vocabulário do Iluminismo aflora sem cessar: trata-se de um combate
entre mental darkness e intelectual lights. Owen pretende participar plena­
mente do movimento de emancipação humana generalizado que, segundo ele,
caracteriza seu tempo (A New View o f Society, pág. 44). Sobre esse efeito,
enuncia o axioma fundamental da ciência das circunstâncias destinada a
fundar uma nova ciência social: “Tornar-se-á cada dia mais evidente que o
homem, sem nenhuma exceção, recebe sempre seu caráter já todo formado;
que são essencialmente seus predecessores que o formaram; que eles lhe dão
ou arriscam dar-lhe suas idéias e seus hábitos, esses poderes que governam e
dirigem sua conduta. O homem, portanto, nunca formou ele próprio seu
caráter e não é possível que possa algum dia vir a formá-lo sozinho.” (A New
View o f Society), pág. 45).
A seus olhos, trata-se da revolução copernicana. O ponto de ataque
fundamental para essa ofensiva iluminista é derrubar a doutrina da res­
ponsabilidade e lançar por terra o que Nietzche chama “o instinto de punir e
de julgar”. O erro do livre-arbítrio é a fundação mais sólida do sistema de
dominação multissecular. Esse erro destruído, uma era nova começará para a
humanidade: a era da maioridade e da felicidade universal (A New View o f
Society, pág. 45).
Esse positivismo é um antiidealismo. Em nenhum momento Owen invoca
a hipótese filosófica dos direitos do homem. Eie se vale da experiência, e
principalmente da experiência fundamental de New Lanark. Praticante da
administração, ele cultua de fato reformas práticas, à parte de toda es­
peculação. Como Bentham, ele projeta fundar a moral e a legislação sobre uma
ciência objetiva dos costumes. Para esse efeito, ele retoma o princípio simples
da utilidade e designa como meta para os governos trazer a maior felicidade
para o maior número possível de pessoas. Mas é em seu modo de proceder
reformador que se vê aparecer mais claramente a filiação ao utilitarismo: ele
leva o determinismo moral de Helvetius a uma maior intensidade ao afirmar
que a descoberta das leis da natureza humana confere ao homem o poder de
imprimir, em qualquer conjunto humano e mesmo no universo inteiro, o tipo
de personalidade que se escolheu como objetivo. Esse positivismo toma em
Owen uma nuance muito tecnicista. Comparando a nova ciência moral, a
ciência do mundo moral, à medicina ou, melhor, à mecânica, Owen tende a
uma verdadeira tecnologia social, destinada a se aplicar aos seres humanos “às

914
máquinas animadas”. O “novo poder intelectual” deve transformar do começo
ao fim a maneira de conceber a regulação das relações humanas. Trata-se de
colocar a tecnologia social à altura da tecnologia industrial (Report to the
County o f Lanark, 1820, em A New View o f Society, págs. 270-271 e 279).
Em 1813, o Panopticon, o plano de prisão-modelo segundo Bentham, é
a instituição latente que inflama a nova concepção da sociedade de Owen.
Tratava-se para Bentham de encontrar “um meio de se tornar senhor de tudo
o que pode acontecer a um certo número de homens, de dispor de tudo o que
os cerca de maneira a operar sobre eles a impressão que se quer produzir, de
se assegurar de suas ações, de suas ligações, de todas as circunstâncias de suas
vidas, de maneira que nada possa escapar nem contrariar o efeito desejado”
(Elie Halévy, La formation du radicalisme philosophique, Paris, 1901, L I,
pág. 147; igualmente M. Foucault, Surveiller et punir, Gallimard, 1975). Todas
as reformas de Owen, das mais simples até as mais ambiciosas, monitor
silencioso, instituto para a formação do caráter, aldeias cooperativas, etc.,
respondem à mesma vontade de ter o controle da situação, tanto para
determinar as condições externas quanto controlar seus efeitos. Owen sonha
com uma sociedade em que o legislador seria senhor para criar, à sua vontade,
a personalidade dos cidadãos e sua forma de sociabilidade. Sabe-se, além disso,
que Bentham entusiasmado por seu próprio plano projetava estender sua
aplicação às manufaturas, às casas de saúde, aos hospitais, às escolas e, em
suma, a todas as situações de confinamento. E exatamente na mesma linha da
tentativa de Bentham que Owen formula seu projeto: a mesma inclinação para
a aplicação prática, a mesma vontade de criar uma nova máquina de ambiente
social total, anunciando o que Lewis Mumford chama de a “megamáquina”, a
mesma vontade de criar um mundo moral. O conceito de “mundo moral” já
está presente em Bentham; em Deontologia, ele escreve: “Dê-me a matéria e o
movimento, dizia Descartes, e eu farei um mundo físico. Dê-me, pode dizer por
sua vez o moralista utilitário, dê-me as afeições humanas, a alegria e a dor, a
pena e o prazer, e eu criarei um mundo moral. Produzirei não somente a
justiça, mas também a generosidade, o patriotismo, a filantropia e todas as
virtudes amáveis e sublimes em sua pureza e exaltação” (sobre Bentham, além
das obras de Halévy, ver Pierre Leroux, art. “Bentham”, Encyclopédie nou-
velle, e M. Gryau, La Morale anglaise contemporaine, Paris, 1890).
Esse projeto de tecnologia social situa Owen como antípoda do liberalis­
mo político. Ou, melhor, curiosamente, a liberdade não constitui para ele um
problema, já que o fim da dominação está no âmago de sua visão reformadora.
Desde o começo, ele é partidário da identificação artificial dos interesses: é ao
legislador que cabe, no interesse dos indivíduos, identificar seu interesse com
o interesse geral. Daí os apelos constantes de Owen, durante a primeira parte
de sua carreira de reformador, aos governos. O mecanismo social destinado a
realizar essa identificação em profundidade, desde a mais tenra infância e no
conjunto das circunstâncias da vida, é a educação entendida em seu sentido
mais amplo possível e continuada ao longo de toda a existência pela organiza­
ção do meio ambiente. A educação segundo a acepção dada por James Mill em

915
1818 na Encyclopedia britannica: “Tudo o que, desde o primeiro germe da
existência até a extinção final da vida, opera de maneira a efetuar as qualidades
do espírito do qual a felicidade depende em algum grau” (citado por Elie
Halévy, op. cit., t 1, pág. 259).
Mas se Owen faz apelo aos legisladores, desde 1813 designa um novo
objeto para sua atenção; não mais os problemas políticos clássicos, mas a
formação do caráter no interesse da comunidade. Da mesma forma, efetua uma
descentralização da questão política.
Nem simples retomada do utilitarismo, nem simples justaposição da
filantropia e do utilitarismo. A New View o Society deixa aflorar um ponto de
ruptura. Se o intérprete, quando considera o projeto prático-utópico, só pode
observar um fraco afastamento com relação à ordem existente, talvez não
pense da mesma maneira quando se volta para o pensamento social que
sustenta as análises de Owen. Trata-se de uma conjunção entre a filantropia e
o utilitarismo, cujo encontro produz efeitos inovadores, a orientação filantró­
pica sendo o que permite estabelecer uma ponte entre o individual e o coletivo,
problema deixado insolúvel por Bentham. Mas existe mais, como se, além dessa
conjunção, além do projeto de criação de escolas, despontasse uma intenção
ainda velada.

Uma nova concepção do social?

Voltemos à nossa questão inicial: trata-se de uma nova concepção da


sociedade, é legítimo falar-se de “pensamentos novos”? Digamos de imediato
que a obra de Owen não se reduz a seus componentes ideológicos e que é
preciso evitar confundir os elementos desse pensamento com sua intencio-
nalidade.
Para M. Gauchet e G. Swain, ninguém duvida de que estejamos em
presença de um pensamento novo do social, até mesmo da humanidade, nem
mais, nem menos. O pensamento de Owen está relacionado a esse novo
nascimento de uma prática do espírito humano que aconteceu nos anos
1800, nesse momento de articulação em que, segundo os autores, o espírito
humano se tornou o objeto de uma prática especial se propondo expressa­
mente como meta penetrar as energias a fim de dirigir sua marcha e seu
conteúdo (La Pratique de Vesprit humain, pág. 18). Insistindo sobre essa
nova ciência das circunstâncias tantas vezes invocada por Owen e segundo
a qual “pode-se inculcar na humanidade quaisquer atitudes e quaisquer
sentimentos”, M. Gauchet e G. Swain reconhecem nos dispositivos espaciais
e organizacionais de Owen um novo modelo político que apareceu com a
instituição da sociedade democrática que, como sociedade referida a ela
mesma, tem como efeito paradoxal deixar desprender-se um ponto de vista
de poder depois do qual a sociedade aparece por inteiro para gerir, para
constituir, para organizar como se ela fosse um material amorfo. Assim,
pode-se dar livre curso ao ideal moderno da organização que se marca logo
por uma nova divisão entre dirigentes e executantes, tanto mais perniciosa

916
por tender a ser interiorizada pelos executantes se identificando com a
função que lhes foi designada do alto e do exterior. Owen, longe do projeto
filantrópico, figuraria de maneira justa entre os profetas da nova época, entre
aqueles que procuraram e teorizaram sobre o poder extraordinário de mudar
o homem, de produzir, com a ajuda de um conjunto de dispositivos,
“personalidades superiores”. Ao lado de Fabre d’Eglantine, de Bentham,
Owen teria contribuído para definir o projeto da grande política dos Tempos
Modernos, a saber, “apoderar-se das almas, reformar seu conteúdo, determi­
nar sobre novas bases sua organização e seu resultado” (op. cit., pág. 123).
Daí o surgimento de um novo poder inédito, poder psicológico e poder
sociocrático, que substitui a dupla clássica regressão-obediência por uma nova
disposição, controle dos motivos e aceitação, inaugurando ao mesmo tempo
uma reinvenção das formas da autoridade, mais uma nova fase da dominação,
a que se exerce sobre as consciências e que tendem a cercar o indivíduo em
sua totalidade.
Nenhuma dúvida de que reencontraríamos aqui, no desenvolvimento
da lógica democrática e de seus paradoxos, um aspecto do superpoder se
dando à tarefa desmedida de uma racionalização integral da vida. Sob esse
aspecto, Owen pertenceria ao grupo dos aprendizes de feiticeiro da moder­
nidade que, alimentando a ilusão da reconciliação e do domínio do social,
engendraram o movimento de reviravolta pelo qual a emancipação se
inverteu em seu contrário.
Essa leitura possui ao mesmo tempo o mérito incontestável de desbana-
lizar Owen e de iniciar os pontos cegos de seu pensamento: a ficção da
organização do social, a procura de uma sociedade Una que teria suplantado
definitivamente seus conflitos. Mas, por mais vigorosa que ela seja, não está
errada em fragmentar de maneira ilegítima e nociva o projeto global de Owen
e de apagar da mesma forma as irredutíveis tensões internas que constituem
precisamente seu interesse?
Sem nenhuma dúvida, Owen tem a estatura de um profeta da nova era.
Mas, profeta, ele o é duplamente: profeta do superpoder se exercendo sobre os
homens, não deixa de ser o profeta das possibilidades emancípadoras que deixa
surgir a nova sociedade industrial. Concordar-se-á sem reservas que Owen não
soube pensar sobre a especificidade do vínculo social enquanto vínculo
humano. Já em seu tempo, Pierre Leroux havia denunciado essa tendência dos
utopistas a pensarem sobre a atração entre os homens a partir de modelos
mecânicos ou, ainda pior, de modelos biológicos, a tratar o vínculo humano
como matéria. Porém, pensador da Associação, filósofo da humanidade, Pierre
Leroux reconhecia todavia que foi dos utopistas a descoberta de duas intuições
fundamentais, a saber, que a indústria, força nova, estava prenha da instituição
de um novo vínculo social entre os homens e que a atração que era projetada,
sob os diferentes nomes próprios a cada escola utópica, visava ao desapareci­
mento da dominação, a abolição da divisão senhor-escravo, superior-inferior.
“Não haverá mais reino sobre a terra, mas sim a Associação”, conclui Leroux.
No centro da sociedade, nova saída da revolução democrática e da revolução

917
industrial virá se entrecruzar o novo dogma da igualdade, o reconhecimento
do homem pelo homem e, sob o choque de uma experiência inédita de
dominação da natureza, a perspectiva de uma nova relação possível entre os
homens.
Se Owen esqueceu a especificidade humana desse novo vínculo, se
fracassou ao pensá-lo não levando em consideração o que C. Lefort chama de
“elemento humano”, ele não deixou de colocar a questão fundamental do
vínculo social. Isso quer dizer que não se pode simplesmente relacionar a
utopia oweniana com um único foco de inteligibilidade, a lógica paradoxal da
sociedade democrática. Convém bem mais fazer participar junto com ela a
pluralidade das lógicas não necessariamente totalizáveis, que constituem o
século XIX em sua irredutível novidade: a sociedade democrática, mas também
o mercado auto-regulador, a indústria e o que é distinto, o capitalismo. Em
relação a essa pluralidade de lógicas que transtornaram os dados tradicionais
da condição humana, deslocando seus limites, não nos satisfaz rebater a
novidade da concepção de Owen sobre o único sonho de superpoder que
assusta a sociedade moderna, mas não se pode igualmente descobrir aí a busca
ao mesmo tempo prática e espiritual de um novo poder de agir entre os
homens e não sobre os homens. Por esse caminho, o da complexidade, o
intérprete poderá, então, poupar-se de um acesso a outra dimensão profética
de Owen, como revelador de um “novo mundo moral", de um novo habitat
humano, o que K. Polanyi lhe reconhece em sua obra-prima, La Grande
Transformation (1944, trad. franc., Gallimard, 1983).
R. Owen se reveste, realmente, de uma surpreendente estatura: invocan­
do três fatos constitutivos da consciência do homem ocidental, o conhecimento
da morte (Moisés no Antigo Testamento), o conhecimento da liberdade (Jesus),
o conhecimento da sociedade, K. Polanyi está a ponto de atribuir ao autor de
A New View o f Society a terceira revelação, em relação com a vida da
humanidade em uma sociedade daí em diante industrial. “Nenhum grande
nome tem conexão com isso; talvez Robert Owen tenha sido o que esteve mais
próximo de se tornar seu porta-voz. É o que constitui a consciência do homem
moderno” (op. cit., pág. 333).
Uma outra resposta à nossa indagação inicial parece, portanto, possível.
Owen teria trazido uma nova concepção do social sob a forma de uma
descoberta ou redescoberta da sociedade, em um triplo sentido.
- Antes de tudo, não seria tanto o caso para Owen de “fabricar” o social
a partir de zero —a sociedade sendo representada como um material amorfo
e maleável à vontade —do que o de recriar um tecido social depois de uma
experiência de dissolução da sociedade inaudita e sem precedentes na história
humana. Nas circunstâncias, o tema da tábula rasa não pertence à ordem do
fantasma utópico, mas depende bem mais da experiência concreta da revolução
industrial em que se tratou de modelar o homem proletário a partir de
populações heterogêneas e não habituadas à nova disciplina do trabalho. Ora,
é precisamente contra essa experiência catastrófica de deslocaçâo da vida do
povo que se seguiu, segundo K. Polanyi, a instituição nova de um mercado

918
auto-regulador, que Owen foi um dos primeiros a se levantar para a reafirma­
ção do social ou de um ponto de vista social, sem, por isso, regressar a uma
concepção tradicional da sociedade, como corpo orgânico e hierarquizado.
- Porém, e aí está a originalidade de Owen, ele não se contentou quer com
um ponto de vista defensivo, quer com o de reagir; não se tratava somente,
segundo ele, de proteger a sociedade contra os danos da economia de mercado
pelo retorno ao modelo de subsistência anterior a essa forma de economia. Face
ao surgimento do sistema industrial, reconhecido enquanto sistema social por
Owen nas notáveis Observations de 1815, uma verdadeira descoberta da socie­
dade estava em questão. Daí o nascimento de um novo olhar para o ser coletivo
dos homens. “Um mundo foi descoberto do qual não se suspeitava nem ao menos
a existência: o das leis que governam uma sociedade complexa” (K. Polanyi, op.
cit, pág. 121). A particularidade de Owen foi procurar noutro lugar diferente da
economia, diferente do funcionamento do mercado a origem dessas leis. Longe
de erigir a economia ou o comércio, em instância determinante, ele reinsere o
nível econômico no social, quer dizer, julgou-o apreciando seus efeitos sociais,
do ponto de vista da qualidade do social, e, da mesma maneira, descobriu nessa
realidade, tornada invisível para muitos de seus contemporâneos, a sociedade
enquanto fenômeno total, irredutível tanto ao econômico quanto ao político, o
verdadeiro lugar da complexidade. “Nenhum pensador jamais foi tão longe em
seus avanços quanto Robert Owen sobre o território da sociedade industrial” (K.
Polankyi, op. cit., pág. 174).
Se Owen chegou a conceber uma forma de sociedade capaz de contornar
o capitalismo e de transcender a economia de mercado, ele o deve à força de
sua visão que lhe desvendou dentro da sociedade industrial um novo mundo
suscetível de engendrar outro tipo de sociabilidade, de troca e de comunicação
entre os homens, por mais que se oriente esse vínculo social para a cooperação
e que se pratique uma disjunção entre indústria e economia de mercado, por
mais que a humanidade consiga se livrar dos preconceitos economistas
ocultando-lhe as possibilidades de regenerar as células do tecido social altera­
das pela economia de mercado e, principalmente, impedindo-o de deixar
desenvolverem-se as malhas relacionadas incluídas virtualmente na manifes­
tação da indústria.
- Enfim, descoberta da sociedade no sentido de uma experiência da
finitude. Com efeito, antes de acusar R. Owen de ter partilhado o sonho de
superpoderio próprio da sociedade moderna, convém confrontar esse julga­
mento com a crítica que ele propôs do individualismo cristão, segundo a qual
seria possível para o indivíduo formar ele próprio seu caráter. Pensador
pós-cristão, ele descobriu, ao mesmo tempo, a realidade da sociedade e, mais
do que um poderio ilimitado, os limites que essa realidade é suscetível de impor
à liberdade e ao querer humanos. “Se uma qualquer das causas de infelicidade
não pode ser suprimida pelos novos poderes que os homens estão prestes a
adquirir, eles saberão que são males necessários e inevitáveis e cessarão de se
lamuriar inutilmente como crianças” (citado por K. Polanyi, pág. 175).
Se se acrescenta a isso que o novo fenômeno da indústria e a máquina

919
pareciam, para Owen, ser de tal natureza que liberariam a humanidade inteira
da antiga maldição do trabalho e, portanto, da divisão trabalhadores/ociosos,
se está mais bem colocado para perceber as harmônicas utópicas dessa nova
concepção da sociedade: não mais um mundo capitalista sob domínio prático
e espiritual da economia, mas um mundo industrial dando nascimento a um
novo mundo moral, entendamos, um novo ambiente civilizador, cuja experiên­
cia ainda não foi feita.
Nesse escrito de 1813, a despeito de todas suas ambigüidades, Robert
Owen inaugura a tradição desconhecida e principalmente mal compreendida de
um socialismo ético que não visa a uma nova educação moral da humanidade
sob a forma de uma repressão das paixões, mas, sim, que procura inventar,
imaginar, elaborar “bons encontros”, isto é, outras relações entre os homens que,
graças ao reinado das paixões alegres, aumentarão seu poder de agir.

• Textes choisis, A new view o f society and other writings,


P a ris , E d itio n s S o c ia le s , 1 9 6 3 ;
Reporl to the county o f
i n t r o d u ç ã o p o r C . D . H . C o le , L o n d r e s , E v e r y m a n ’s L i b r a r y , 1 9 6 3 ;
Lanark. A new view o f society, e d i t a d o p o r V . A. C . G a t r e l l , P e n g u i n B o o k s , 1 9 7 0 ; Six lectures
delivered in Manchesler, M a n c h e s t e r , 1 8 3 7 ; Lectures on the marriages o f the priesthood o f
the old immoral world, L e e d s , 1 8 4 0 ; The book o f new moral world, L o n d r e s , 1 8 3 6 - 1 8 4 4 ; The
life o f Robert Owen, written by himself, v o l. 1 , l A , 1 8 5 7 - 1 8 5 8 , 2 ! e d i ç ã o , N o v a Y o r k , 1 9 6 7 .

► H . L. B e a l e s , The early English socialists, L o n d r e s , 1 9 3 3 ; A . E . B e s t o r J r ., Backwoods


Utopias, P h i l a d e l p h i a , 1 9 5 0 ; M . B u b e r , Utopie etsocialisme, p r e f á c i o d e E . L é v i n a s , A u b ie r - M o n -
t a i g n e , 1 9 7 7 ; G . D . H . C o le , The Life o f Robert Owen, L o n d r e s , 1 9 6 5 ; M . C o le , Robert Owen o f
New Lanark, L o n d r e s , 1 9 5 3 ; P . D o l l é a n s , Robert Owen, P a r i s , F . A lc a n , 1 9 0 7 ; M . C a u c h e t e G .
S w a i n , La pratique de Vesprit humain, G a l l i m a r d , 1 9 8 0 ; J. P . C . H a r r i s s o n , Robert Owen and
the owenites in Britain and America, L o n d r e s , 1 9 6 9 , ( o b r a b á s i c a , b i b l i o g r a f i a i n d i s p e n s á v e l à
c o n s u l t a ) ; P . L e r o u x , Lagrève de Samarez, poèmephilosophique, L 1, § II, e d . J .-P . L a c a s s a g n e ,
P a r i s , K l i n c k s í e c k , 1 9 7 9 ; F . P o d m o r e , Robert Owen, A biography, 2 v o l u m e s , L o n d r e s , 1 9 0 6 ; E .
P . T h o m p s o n , The making o f the English working class, L o n d r e s , V . G o l l a n c z , 1 9 6 4 .
A r t i g o s - Robert Owen prince o f Cotton Spinners, S y m p o s i u m e d i t a d o p o r J o h n B u t t , L o n d r e s ,
1 9 7 1 ; Robert Owen, prophet o f the poor, e n s a i o s e d i t a d o s p o r S . P o l l a r d & J. S a lt, L o n d r e s , 1 9 7 1 ;
H . D e s r o c h e , O w é n i s m e e t u t o p i e s f r a n ç a i s e s , Archives internaiionales de sociologie de la
coopération, j u l h c x i e z e m b r o d e 1 9 7 1 , n - 3 0 ; W . H . O liv e r , R o b e r t O w e n & t h e E n g l i s h W o r k i n g
C la s s M o v e m e n t s , History to-day, n o v e m b r o d e 1 9 5 8 ; J. G a n s , R o b e r t O w e n e m P a r i s e m 1 8 3 7 ,
C o u p d ’o e i l s u r le g r o u p e d e s O w é n i s t e s p a r i s i e n s , Le Mouvement social, o u t u b r o - d e z e m b r o d e
1 9 6 2 , n - 4 1 ; M . R u b e l , R o b e r t O w e n e m P a r i s e m 1 8 4 8 , Actualité de l'Histoire, 1 9 6 0 , n 9 3 0 .

M ig u e l A BEN SO U R.
PAINE, Thomas, 1737-1809
Direitos do Homem, 1791-1792

As duas partes de Direitos do Homem, que Thomas Paine publicou em


1791 e 1792, constituem impressionante exposição dos principais postulados
do “radicalismo inglês”, tal como ele se apresentava ao final do século XVIII.
Nessa resposta ao livro Reflexões sobre a Revolução Francesa, de Edmund
Burke, que se revela dominada por uma eloqüência arrebatadora e por um
desprezo zombeteiro pelo oponente, o grande “revolucionário profissional” do
liberalismo leva a seus limites máximos os princípios de John Locke e de Adam
Smith, desmascara a lenda dourada em que os Whigs envolveram a realidade
cruel e humilhante da história inglesa, proclama sua convicção da inevitabili­
dade e da iminência da “era da razão”.
A refutação direta dos argumentos de Burke ocupa a menor parte da obra:
Paine, é óbvio, não os leva realmente a sério. Se deixa de lado uma apreciação
histórica dos acontecimentos nos primeiros meses da Revolução Francesa e, em
particular, as circunstâncias da tomada da Bastilha e os incidentes dos dias 5 e
6 de outubro, em Versalhes, ela se detém, a fundo, na análise da doutrina de
Burke a respeito da “prescrição”, que absurdamente coloca os vivos sob o poder
absoluto dos mortos. Como poderia um ser pensante recusar à geração contem­
porânea o direito de organizar sua estrutura social e política da forma que lhe
pareça mais justa e funcional, e atribuir esse mesmo direito a uma geração já de
há muito sepulta, que jamais cogitara sobre a situação e as necessidades
fundamentais das que a ela se seguiram? De resto, se é antigüidade o que confere
legitimidade, por que estacar arbitrariamente na Glorious Revolution ou no Act
o f SettlemenR É indispensável ir bem mais ao fundo, até ao começo da história,
ao momento em que o homem escapou das mãos do seu Criador: a verdadeira
Antigüidade é a natureza.
Paine reformula, portanto, sem originalidade, mas com grande clareza, a
doutrina básica da necessidade de um contrato. Todas as gerações e, em cada

921
uma delas, os indivíduos que as compõem, têm direitos naturais iguais. Esses
direitos se dividem em duas classes: os que são “mantidos” tais quais após o
ingresso na sociedade, e os que são devolvidos a ela. O indivíduo conserva os
primeiros porque “o poder de executá-los é tão completo no indivíduo quanto
o próprio direito” (o grifo é de Paine). Ele menciona então os "direitos
intelectuais”, particularmente o de rogar ao Criador segundo a sua capacidade
e o de procurar livremente os meios para a obtenção de seu conforto e de sua
felicidade, no respeito a iguais direitos de terceiros. Mas o indivíduo não pode
“manter” os que integram a segunda classe porque não tem poderes para
tanto. Por exemplo: todo indivíduo tem o direito natural de julgar em causa
própria, mas não tem meios para impor a aceitação ampla dos resultados desse
julgamento. Ele transfere essa faculdade, então, a um mecanismo coletivo, o
chamado common stock da sociedade, obtendo em troca, para garanti-lo, toda
a força que ele possa exercer.
No sentido amplo, tal concepção pode ser considerada lockeana. No
sentido amplo, repita-se, porque, antes de tudo, Paine asseverava jamais ter
lido Locke (e não temos por que duvidar disso), tanto assim que sua teoria é
incomparavelmente menos elaborada do que a dele. Paine perdeu de vista as
sérias dificuldades que a distinção entre estado natural e estado civil implica,
indispensável a qualquer teoria de contrato social. De fato, essa distinção perde
com ele bastante do seu rigor: não apenas uma grande parte das prerrogativas
do estado natural se conserva inalterada no estado de sociedade, mas, ainda,
o estado natural se apresenta como estado de quase-sociedade, tão forte é,
entre os homens, a propensão à vida social. Com Paine, o estado natural deixa
de ser o que representava para seus primeiros teóricos, como Hobbes e,
particularmente Locke, um estado de guerra real ou potencial. Estado natural
e estado civil tendem a intercambiar e até confundir seus atributos. Alijada de
suas dificuldades filosóficas, a teoria do contrato oferece a Paine suas con­
clusões, imediatamente mobilizáveis para a ação.
O que Paine conserva de Locke ou do lockeanismo ambiente é a noção
de que um governo não sera legítimo se não estiver lastreado na vontade
popular, se não for representativo. E será tão mais representativo quanto mais
ampla e igualitária for a representatividade. Em suma: os direitos e a felicidade
do povo somente serão assegurados se uma assembléia legislativa reúna e
exprima a vontade do mais amplo colégio eleitoral possível, como foi o caso da
Assembléia Nacional Francesa.
Paine não se interessa muito pela organização efetiva dos poderes. O
exemplo americano lhe demonstrou que se pode deixar isso aos cuidados da
prudência de um povo esclarecido. Diferentemente de Locke, ele passa de
relance sobre o problema do Executivo, cuja própria denominação lhe parece
desagradável. A “prerrogativa” específica que se atribui a esse poder é, a seus
olhos, o pretexto de todas as usurpações monárquicas. Na realidade, encontra
dificuldade em conceber função legítima para ele. Governar, a rigor, é simples­
mente estabelecer, leis, e a execução dessas leis é apenas aquela garantida pelo
Judiciário. Os atos que não podem ser referendados pela lei e cuja importância

922
para o bem-estar do povo legitimava, segundo Locke, uma ampla prerrogativa
do Executivo, desaparecem da paisagem política no entender ou no remaneja-
mento de Paine. O centro exclusivo do poder, para ele, deve situar-se no âmago
da assembléia representativa.
Recusando-se a reconhecer que o Executivo tenha papel específico a
desempenhar, Paine não teme muito, e pelas mesmas razões, que o corpo
legislativo assuma grande poder. O poder legítimo está bem “concentrado” no
corpo representativo, ainda mais porque ele é legítimo por si mesmo e não
pode ser perigoso. Numa república representativa bem constituída, o povo
esclarecido, ativo e decidido, escolherá bem seus representantes. E por que
motivo, sob que pretexto, esses delegados da vontade popular quereriam
arrogar-se poderes excessivos, se numa tal república sua área de atuação seria
necessariamente limitada? Todas as discussões sobre a divisão e a delimitação
do poder se ligam a uma imagem fomentada ao longo de séculos de opressão
e de superstição: a maior parte dos efeitos negativos que se atribui aos
governos é, na realidade, produzida por ações da própria sociedade.
A ordem social depende, para o que realmente conta, da própria condição
humana, isto é, ela se liga ao mesmo tempo às mazelas da coletividade, aos
interesses comuns de seus membros e à interdependência que entre eles de
estabelece. Os interesses de cada um se acomodam naturalmente com os
interesses de terceiros e os interesses do todo social. As leis que realmente
importam não serão aquelas que os governos promulguem, mas as que emanem
naturalmente da vida social, que resultem do contraponto de legítimos interesses
do cidadão com os do interesses coletivo. Paine chega até a comparar a força
dessa interdependência à da gravitação. No entanto, por que será que não
considerava o governo como uma instituição que, no fundo, fosse exorbitante?
Essa auto-suficiência da sociedade se tornará cada vez mais sensível, passará de
alguma forma do implícito ao explícito com o continuado progresso da “civiliza­
ção”. Se Paine pode relevar os problemas do poder político é porque adotou a
doutrina smithiana da harmonia natural dos interesses. Seu entusiasmo no
tocante a esse capítulo é de tal ordem que ele nos dá a impressão de alguém que
tenha visto e tocado a "mão invisível”.
A própria Inglaterra de seu tempo, por mais sufocada que estivesse pela
impostura secular de instituições ruinosas como a monarquia e a aristocracia,
dava prova dessa verdade. Sua sociedade civil se governava, a rigor, por si
própria, republicanamente à sua custa, vale dizer a baixo custo. Por que, então,
o rei lhe custava tão caro?
Em seu estudo da história e da natureza do regime inglês, Paine, que
era um Whig de quatro costados, devolve como uma luva essa história da
Inglaterra que os Whigs escreveram e contaram, sendo que mais contaram do
que escreveram. As razões do orgulho que ostentavam são equivalentes a libelos:
a “constituição”, de que Burke nos fala com tão untuosa reverência? - Não há
constituição inglesa: um povo só a tem, efetivamente, se, como o francês, ele
próprio estabelece o seu governo. O governo inglês se fundamenta num processo
de conquista, a partir de Guilherme, o Conquistador. Fala-se da Revolução

923
Gloriosa? - Gloriosa, uma ova, pois foi buscar primeiro na Holanda, e depois na
sinistra Hanover, reis que não falavam inglês, que nada tinham em comum com
um povo que desprezavam e do qual cobravam, por tal desprezo, um milhão de
libras por ano! Governo representativo? - Tratava-se da célebre impostura dos
“burgos corruptos”, que elegiam “fantasmas" como membros do Parlamento.
Distribuição e equilíbrio dos poderes? - Trata-se de uma ficção, pois a monarquia
sempre dispunha de meios para comprar o Parlamento e este, para poder
participar dos despojos, sempre estava disposto a ser comprado. A prosperidade
inglesa? - Era miséria e a classe média era escorchada pelo fisco, o país como
um todo sempre estando a um passo da ruína pelo peso crescente da dívida
pública. Pelo que revela de chocante, essa análise acusatória contém sem dúvida
boa dose de exagero, talvez até mesmo mais injusta do que a contida nas críticas
que, ao longo do século XVIII, foram feitas à monarquia francesa. Mas estava no
plano oposto da complacência revelada por Burke, que, por assim dizer, bem
merecia essa contestação.
Um tema domina a diatribe: o custo exorbitante da monarquia e da
aristocracia, bem como o peso esmagador dos impostos. A indignação moral usa
linguagem de balcão comercial: o contribuinte é o herói infeliz dessa contra-epo-
péia. Curiosamente, embora produza por vezes efeito cômico, essa fixação nada
tem de vulgar, nem de banal. E não são apenas marcantes a sinceridade, o
desapego, a generosidade de Paine. Fica logo bem claro que sua indignação
emana igualmente de uma perplexidade intelectual. Assim como ocorreu duas
gerações antes com os adversários de Walpole, ele compreendia mal os mecanis­
mos do crédito; com eles, mesmo que tivesse palavras entusiastas para o
desenvolvimento do comércio e da indústria, Paine subestimava os recursos da
economia inglesa, característica de um tempo em que as esperanças mais
otimistas ficavam aquém das capacidades do real. Ele se espantava com o fato de
que o povo inglês, talvez o único da Europa que, antes de 1789, pudesse aspirar
a ter um governo representativo, fosse aquele que, proporcionalmente, pagasse
a maior taxa de impostos. Paine se gabava de não ser um erudito, mas Maquiavel
bem que poderia tê-lo esclarecido sobre esse ponto: “Sente-se menos, ou não se
sente de todo, o mal que fazemos a nós mesmos”.
Convencido que estava de que a sociedade era bem capaz de administrar
seus próprios interesses com os menores custos, as razões para o aumento de
impostos lhe pareciam absolutamente exteriores à vida do corpo social. Em
verdade, duplamente exteriores, em primeiro lugar porque os impostos lhe
pareciam uma exorbitância herdada de épocas sombrias em que a honra e a
glória de um povo se ligavam aos faustos de seu monarca e da nobreza que o
cercava; em segundo, e principalmente, porque os beneficiários dessas larguezas
irrefletidas do povo justificavam-nas com o elevado custo das guerras externas.
Paine estava convencido de que precisamente nisso se encontrava o segredo da
cabal: bastaria estabelecer uma justa ordem entre causa e efeito para que todos
pudessem perceber que as guerras entre povos modernos, como os da Inglaterra
e da França, por exemplo, não passavam de pretextos para que um punhado de
privilegiados viesse a aumentar ainda mais o fundo comum de suas vantagens e

924
prerrogativas. A interdependência que cria a amizade social não é limitada, pela
sua própria natureza, aos membros de um determinado corpo político que as
fronteiras demarquem, mas ao conjunto de toda a humanidade. O intercâmbio
comercial que "afeiçoa os homens uns aos outros” é a relação humana mais
natural. A guerra, por conseguinte, não pode ser senão o artifício astucioso de
um punhado de cortesãos que, em seus próprios países, buscam locupletar-se às
custas de populações espoliadas. A indignação de Paine quanto aos impostos
chegava ao cúmulo quando afirmava que eles não passavam de uma invenção
monstruosa levando o povo a pagar para ser liqüidado. Recolocar a tributação
em seu nível adequado eqüivaleria a acabar com as guerras.
Paine tinha a impressão de que vivia na fronteira de duas épocas: ao
“sistema de guerra” deveria suceder agora o “sistema do comércio”, pois que esse
desenvolvimento se inscreve na própria constituição do mundo e na condição
humana: "... (a natureza) espalhou por toda parte elementos para a indústria e
para o comércio, seja no interior de cada país, seja entre as diversas nações; como
a guerra não pode promover sua distribuição com tanta facilidade e a preços tão
acessíveis como os praticados pelo comércio, torna-se evidente que o intercâmbio
entre indivíduos e nações é o melhor meio de extirpá-la”. Essa frase de Paine foi
escrita antes das guerras napoleônicas. Benjamin Constant dirá o mesmo, quase
que nessas próprias palavras, em 1813; "o liberalismo da harmonia natural dos
interesses não pode admitir a guerra, nem mesmo concebê-la”.
É sem dúvida esse sentimento de ser portado pela vaga irresistível da
história, que é também a da natureza, e de integrar “a era das revoluções”, o que
dá cor própria a Direitos do Homem. Cândido, generoso, solidário, esse homem
para o qual nos voltamos nada encontra que valha a pena conservar dos tempos
já vividos, pois eles geraram guerras, miséria, impostura, superstição e animali­
dade. Já que a monarquia confia o governo dos homens aos azares da heredita­
riedade, ela não passa de um sistema animalesco. Nada melhor do que essa
expressão para marcar a distância que separa Paine de Burke. Os dois nem
mesmo poderão reencontrar-se no sentimento comum de sua humanidade em
comum: o que para o primeiro é a incerteza vergonhosa da animalidade, para o
segundo é majestade sacrossanta da paternidade.
Paine foi um liberal radical, extremado: ele ia até à última fronteira da lógica
democrática implícita nos princípios de Locke e Smith, mas jamais ultrapassava
o círculo por eles delimitado. A despeito de seu entusiasmo “revolucionário”, de
seu pressentimento de uma nova era para o mundo, ele jamais pretendeu
construir o novo homem. Os pobres, cujo infortúnio tanto o tocava, eram os
pobres verdadeiros, os que queriam ser ricos, ou menos pobres, e somente
poderiam realizar tal projeto quando finalmente pudessem recompor o governo
segundo seus interesses e suas luzes. O povo que ele sonhava ver “representado”
não era uma entidade mística, visível apenas pelos elitos, era a miscelânea dos
camponeses, artesãos, comerciantes, manufatureiros, pobre e ricos que carregava
nas costas os reis e a nobreza, que em breve iria depor. O sistema de impostos
progressivos e a redistribuição que ele preconiza não se lastreia em qualquer
“projeto socialista”. Falou-se de seu propósito de antecipação do Estado-provi-

925
dência, e essa aproximação foi estabelecida, Mas consideremos o motivo adian­
tado por Paine para justificar o quase-confisco, por meio dos impostos, das
rendas que ultrapassassem certos limites, que não foram definidos pela inveja.
As acumulações excessivas de riqueza, na Inglaterra, privilegiam a primogenitu-
ra: aplicar impostos confiscatórios seria obrigar os chefes de família a dis­
tribuírem seu patrimônio entre todos os filhos e a pôr fim, desse modo, a um
sistema atroz que separa irmão de irmão, e os pais de todos os filhos, salvo um,
corrompendo a humanidade na própria raiz, que é a família. Mesmo em seus
momentos de intemperança revolucionária mais acentuada, Thomas Paine per­
manece inspirado por sentimentos humanos e delicados.

• Droits de l'Homme, B e l in , c o ll. “ L i t t é r a t u r e e t P o l i t i q u e ”, 1 9 8 7

► The Life o f Thomas Paine, M . D . C o n w a y , 2 v o l., L o n d r e s , 1 8 9 2 ; R . R . F e n n e s s y , Burke,


Paine and the Rights ofMan, H a ia , 1 9 6 3 ; E r i c F o n e r , Tom Paine and Revolutionary America,
N o v a Y o rk , 19 7 6 .

P i e r r e MANENT.

PARETO, Vilfredo, 1848-1923


Tratado de sociologia geral, 1916

“Um livro do qual ninguém sabe realmente o que fazer”. Essa apreciação
de B. Berger traduz bem o embaraço que a leitura do Tratado de sociologia
geral de Vilfredo Pareto faz nascer. As relações que ele suscitou descrevem,
da mesma forma, um largo espectro que vai da difamação à apologia com igual
intensidade na expressão, se bem que essa amplitude force a exigência de uma
pluralidade de leituras como requisito da paretologia.
Se existe um ponto, entretanto, onde se estabelece acordo, mesmo entre
detratores e epígonos, é aquele da monstruosidade do Tratado, enfatizada por
todos os comentadores e verificável por todo leitor cuja curiosidade intelectual
não seja repelida pela sucessão de 2.612 parágrafos estendidos sobre mais de
1.800 páginas, na edição francesa de 1968. “Monumental ou monstruoso -
talvez monumental e monstruoso” - nos previne R. Aron no prefácio que
escreveu para essa edição. “Um caso de teratologia científica”, afirma Benedet-
to Croce, “um magma monstruoso”, segundo G.-H. Bousquet, discípulo do
mestre de Céligny. “Obra densa e desequilibrada, às vezes indigesta, muitas
vezes prolixa: um monstro”, acrescenta Julien Freund. A monstruosidade das

926
proporções junta-se aquela da forma muito digressiva, marcada pela super-
abundância da ilustração empírica das proposições teóricas e do ecletismo das
fontes. Estranha, a obra o é, enfim, por seu conteúdo, que a faz eqüivaler a
tratado das paixões, tão bela é a parte dedicada à análise das condutas
humanas e de suas motivações. A monstruosidade tornou-se, portanto, uma
metáfora consensual que muitos colocam na mesa, mas que não lhes impede
considerar esse livro, “anormal” no sentido de Kuhn, uma etapa do pensamen­
to sociológico, da mesma forma que a obra de Montesquieu, de Comte, de
Tocqueville, de Marx, de Durkheim e de Weber.
Duas dificuldades suplementares vêm juntar-se às turbulências em torno
da obra e à sua monstruosidade reconhecida. Trata-se, antes de tudo, do
problema da originalidade do Tratado no conjunto dos trabalhos de Pareto.
Alguns, como Schumpeter, consideram que Pareto escreveu as mesmas coisas,
melhor e de maneira mais breve, em Les systèmes socialistes (1903) e no Manuel
d ’économie politique (1907). A originalidade do Tratado, publicado em 1916,
consistiria, então, em consolidar proposições avançadas anteriormente e, para
algumas delas, separadamente. “Pareto colocou, no Tratado, numa única obra,
todos os elementos de seu pensamento, toda a aquisição de uma vida de sábio,
de político frustrado, de aristocrata amargo, de observador lúcido, de misantropo
e de epicurista”, adverte o prefaciador. A segunda dificuldade se deve à identi­
dade, à história desse livro algo fora de rumo. Seu objetivo inicial era o de
proceder a uma análise do equilíbrio social prolongando a do equilíbrio econô­
mico e completando-a. A essência de seu desenvolvimento aborda, na realidade,
outra coisa, as formas da conduta humana. A posteridade só retém principal­
mente um terceiro aspecto particular, a teoria das elites e de sua circulação.
Curiosa obra, que não funciona onde melhor se podia esperar que o fizesse.
Na medida em que isso nos seja possível neste estudo, convém tentar
apresentar sucintamente o conteúdo do Tratado de sociologia geral começando
por sua estrutura. O Tratado pode ser dividido em duas grandes massas de
proporções desiguais. De um lado temos, segundo a ênfase colocada neste ou
naquele aspecto, o estudo da natureza do homem social com a teoria das ações
não-lógicas, dos resíduos e derivações, isto é, a análise da conduta humana em
sociedade e de suas motivações. Esse conjunto representa a maior parte do
Tratado. De outro lado, apenas um quarto da obra é consagrado à análise do
funcionamento da sociedade tomada em seu conjunto ou como sistema, cujas
organização e, em particular, mudança é preciso considerar por meio da circula­
ção da elites e dos movimentos ondulatórios comuns aos fenômenos econômicos,
sociais e políticos. O acordo global sobre essa estrutura dicotômica deve ser
completado pelo corte mais fino, ao qual procede G.-H. Bousquet, retirando seis
etapas da progressão lógica do Tratado. Passando de duas massas para seis
etapas, o processo de apresentação respeita um princípio de progressão caro a
Pareto e depois a Piaget, o das aproximações sucessivas.
Pareto consagra um primeiro capítulo de preliminares à exposição de suas
concepções epistemológicas caracterizadas pela superioridade absoluta das ciên­
cias lógico-experimentais. Sua primeira etapa sociológica consiste em seguida na

927
distinção das ações lógicas das ações não-lógicas e em constatar a predominância
das últimas nas condutas humanas. Em uma segunda etapa, ele critica e rejeita
as teorias não-lógico-experimentais e as teorias pseudocientíficas (Caps. IV e V).
Na terceira fase, penetramos o âmago da obra que constitui também a parte mais
desenvolvida. Não menos de cinco capítulos são, efetivamente, consagrados à
análise dos resíduos e derivações. Sua combinação permite encaminhar a uma
representação do sistema social na quarta etapa do raciocínio (Cap. XI). A forma
geral da sociedade elabora a síntese sociológica em torno do estado de equilíbrio,
privilegiando a dimensão política da heterogeneidade social, isto é, a existência
das elites e de sua circulação. No último capítulo, ele procura a verificação
empírica de sua síntese, isto é, das condições de equilíbrio na história.
A armação lógica posta em evidência permite abordar o conteúdo do
Tratado pelo exame sucessivo de três conjuntos de problemas. Antes de tudo,
convém expor as concepções de Pareto sobre o conhecimento e sobre a ação
humana que sugerem uma homologia de estruturas entre a ciência lógico-
experimental e a ação lógica. Em seguida, a análise dos resíduos e derivações
lhe permite dar um quadro teórico à crítica da ideologia. Enfim, a análise do
sistema social revela que a oposição elite/massa é o motor de uma história
cíclica da humanidade.
“Eu desejo construir a sociologia sobre o modelo da mecânica celeste, da
física e da química...” (20). As ciências da natureza mostram a superioridade do
método lógicoexperimental. A observação dos fenômenos e de suas relações
permite pôr em evidência uniformidades experimentais, regularidades. "Nós
acolhemos todos os fatos, quaisquer que sejam, contanto que, direta ou indireta­
mente, eles nos possam conduzir à descoberta de uma uniformidade. Mesmo um
raciocínio absurdo e estúpido é um fato e, se ele é admitido por um grande
número de pessoas, torna-se um fato importante para a sociologia. As crenças,
quaisquer que sejam, são também fatos, e sua importância está em relação não
com seu mérito intrínseco, mas exatamente com o número maior ou menor de
pessoas que as professam” (81). Sobre a vertente dedutiva pode-se verificar a
validade das leis fundadas sobre o ajuste das uniformidades, dar-lhes uma forma
mais teórica, integrando suas conseqüências para a sociedade global. O co­
nhecimento científico só pode ser aproximativo, entretanto, e é preciso dissociar
a questão da utilidade social de uma teoria daquela de sua verdade empírica.
Rejeitada do primeiro ponto de vista, ela pode ser admitida do segundo e
inversamente. O positivismo paretiano não conduz, portanto, ao cientificismo,
pois expressa a convicção de que não há solução científica para o problema da
ação do homem na sociedade, porque a determinação de seus fins últimos não
pode depender de um pensamento lógico-experimental. Em oposição, as teorias
que transcendem a experiência e as teorias pseudocientíficas organizam uma
subordinação dos fatos aos princípios. Dentro desse contexto epistemológico, a
sociologia “tem como tarefa fazer-nos conhecer a síntese dos fatos, uni-los em
uma teoria e compreendê-los. As teorias, seus princípios e suas deduções estão
inteiramente subordinados aos fatos e não têm outros critérios de verdade senão
o de bem representar esses fatos”.

928
Como a economia é a ciência lógico-experimental das ações lógicas, a
sociologia é a das ações não-lógicas, pois a conduta humana caracteriza-se por
essa dualidade nas relações entre os meios e os fins. As ações lógicas corres­
pondem às operações que estão logicamente unidas à sua meta de maneira
subjetiva e de maneira objetiva. O critério essencial da distinção entre as duas
formas de ação residiria, segundo R. Aron, na alternativa da determinação da
conduta pelo raciocínio ou de sua motivação pelo sentimento. Para Pareto, não
há dúvida de que o que domina a vida social são as formas não-lógicas da ação.
Ele está, por outro lado, convencido de que os homens têm tendência a querer
dar um "verniz lógico” a suas ações não-lógicas graças, por exemplo, às doutrinas
morais ou religiosas e às construções filosóficas. Esse processo faz intervirem
dois tipos de elementos. Os resíduos exprimem, por meio dos comportamentos,
constantes humanas instintivas. As derivações representam as justificações
variáveis de pretensão racional que são dados da ação. Em outros termos, os
resíduos constituem as manifestações observáveis dos sfentimentos mediante as
condutas, enquanto as derivações correspondem ao trabalho de racionalização
que se opera a partir dos sentimentos. Seis classes de resíduo são identificadas:
o instinto das combinações, a persistência das agregações, a necessidade de
manifestar seus sentimentos por atos exteriores, os resíduos em relação à
sociabilidade, a integridade do indivíduo e de suas dependências, e os resíduos
sexuais. As derivações são agrupadas em quatro classes: as afirmações, a
autoridade, o acordo com sentimentos ou princípios e as provas verbais. Trata-se
de diferentes tipos de argumentos não-lógicos para justificar as conclusões
tiradas tomando os resíduos como premissas. Não há, portanto, lugar para
interrogar sobre seu valor de verdade, mas bem mais sobre sua força persuasiva
e sobre sua utilidade social.
Resíduos e derivações interagem, reforçam-se ou se compensam. Eles
contribuem para o equilíbrio social, combinando-se com duas outras variáveis, o
interesse e a heterogeneidade social. O aspecto estático desse equilíbrio é
descrito pela dependência mútua de todas essas variáveis, enquanto sua dinâmica
é revelada pelo movimento ondulatório dos fenômenos sociais. No materialismo
histórico “o erro consiste em querer separar o estado econômico dos outros
fenômenos com os quais ele está, ao contrário, em relação de dependência mútua
e, além disso, em substituir por uma única relação de causa e efeito as numerosas
relações análogas que se entrelaçam” (§ 1.727). Marx aproximou-se da ciência
lógico-experimental, mas se enganou, privilegiando as relações entre interesses
e resíduos e analisando-as como relações de causalidade em um sentido único.
A distribuição dos resíduos, derivações e interesses permite observar que
as sociedades humanas são heterogêneas. Assim, distingue-se uma camada
superior na população constituída pelas elites. A elite é o nome dado à “classe
daqueles que têm os índices mais elevados dentro do ramo em que eles
desenvolvem suas atividades.” Da elite não-governamental, distingue-se a elite
governamental que é, ela mesma, heterogênea. Há aqueles que visam a fins ideais
e são dominados pelos resíduos da segunda classe, a persistência das agregações.
Há, igualmente, “aqueles que têm como meta trabalhar em seu interesse e no de

929
seus clientes” e que são dominados pelos resíduos da primeira classe, o instinto
das combinações. A oposição de Maquiavel entre leões e raposas é retomada para
simbolizar essa repartição desigual dos resíduos, no caso dos governantes, que
explica a escolha do recurso à força ou à astúcia como meio de governo. A
utilização da força é inevitável. “Todos os governos fazem uso da força e todos
afirmam estar apoiados na razão” (§ 2.183). A utilização da força pela classe
governante pode verificar-se socialmente útil como preservação do equilíbrio. “Se
se nota que os governos que não sabem ou não podem servir-se da força caem,
nota-se também que nenhum governo dura fazendo uso exclusivamente da força”
(§ 2.202). É por isso que os governantes procuram o consentimento dos
governados, explorando os resíduos e manipulando as derivações. Se, contudo,
a estrutura hierárquica da sociedade for permanente, a existência das elites, as
aristocracias guerreiras, religiosas, comerciais, as plutocracias serão suas mani­
festações cambiantes. As aristocracias não duram, pois elas estão submetidas ao
movimento contínuo da circulação das elites. “A história é um cemitério de
aristocracias” (§ 2.053). É esse, provavelmente, o enunciado mais citado do
Tratado. As elites são mortais em nome de sua função militar, em nome da
ocupação do poder onde se embota sua capacidade de utilizar a força e em razão
da não-transmissão hereditária das qualidades e talentos. A hierarquia social não
é, portanto, estável, e a classe superior regenera-se absorvendo os “candidatos à
elite” provindos da classe inferior. Se esse movimento é impedido por um
princípio de seleção de tipo aristocrático que não leva em conta capacidades reais
dos indivíduos, a elite torna-se fechada e degenerada. A revolução é, então, esse
mecanismo de ajustamento pelo qual os candidatos à elite não-satisfeitos derru­
bam a elite declinante. “Pelo efeito da circulação das elites, a elite governamental
está em estado de transformação lenta e contínua. Ela flui como um rio; a de hoje
é outra, diferente da de ontem. De tempos em tempos, observam-se bruscas e
violentas perturbações, semelhantes às inundações de um rio. Em seguida, a
nova elite governamental recomeça a se modificar lentamente: o rio, que voltou
a seu leito, torna a fluir regularmente” (§ 2.056).
O movimento de circulação das elites respeita ciclos de mútua dependência
comandados pela oscilação .dos resíduos que afetam tanto os pólos elite/massa
quanto os pólos especuladores/pessoas que vivem de renda da sociedade. A
predominância dos especuladores, caracterizados pelo instinto das combinações,
reduz a estabilidade de uma sociedade assim como a predominância das pessoas
que vivem de renda faz pesar a ameaça de imobilismo e de cristalização. Dessa
maneira explica-se a oscilação entre a iniciativa e a burocratização. Os Estados
modernos empenharam-se nesse segundo caminho sob a direção de elites
plutocráticas. Fazendo jus às reivindicações de igualdade, de solidariedade, o
Estado torna-se ético, e a democracia degenera em plutocracia demagógica. A
concentração do poder nas mãos de alguns apóia-se sobre a manipulação do
sentimento público. A França, a Itália, a Inglaterra e os Estados Unidos evoluem
em direção à plutocracia demagógica: “Uma feudalidade em grande parte
econômica em que o principal meio de governar em uso é o jogo das clientelas”
(§ 2.259). A questão do melhor regime político induziu respostas míticas que são

930
igualmente derivações: a fé monárquica, a fé republicana, a fé democrática, por
exemplo.
No entanto, a forma do regime é apenas secundária, pois o essencial reside
numa uniformidade experimental: “Os homens que governam têm em média uma
certa tendência a usar seu poder para se manter no lugar e a abusar dele tendo
em vista obter vantagens e ganhos particulares”, mal distinguidos daqueles do
partido ou da nação. Em conseqüência, as diferenças são devidas à variação dos
sentimentos da população e ao grau de intervencionismo dos governantes nos
negócios privados. Além disso, os governantes sabem tirar proveito dos bens dos
quais eles se apropriam em sua defesa e de seus clientes. Esse mecanismo pode
desenrolar-se em plena inconsciência ou apoiar-se sobre o mito do bem público.
Se o Tratado de sociologia geral é uma obra de síntese, resta que, sobre
numerosos pontos do pensamento de Pareto, as obras anteriores são mais
explícitas ou aprofundadas, principalmente no que concerne à heterogeneidade
social, à análise do equilíbrio e à crítica aplicada das ideologias. Esse argumento
milita contra a representação dominante do encaminhamento intelectual de
Pareto, posto em dúvida por B. Valade: "Renunciar-se-á (...) ao impecável
encadeamento de figuras fundidas, no entanto incertas, que todos os paretólogos
puseram em cena: o físico matemático, que se torna economista, que se torna
sociólogo, que transforma em politicólogo para acabar filósofo contra a própria
vontade.” Com efeito, Pareto publica numerosos artigos de observação política
entre 1889 e 1893, principalmente. Ele solicita, mesmo sem sucesso, um mandato
parlamentar em 1882 como partidário do comércio-livre. Seu interesse pela
questão política afirma-se muito cedo, e suas concepções são mais progressistas
do que se pensa geralmente, em particular sobre o aspecto mais bem conhecido,
isto é, as elites e suas mudanças. O que é apresentado como sua primeira obra
de sociologia, Un applicazione di Teorie Sociologiche, publicada em 1901, é
traduzida para o inglês em 1968 com um título mais eloqüente, Rise and Fali o f
the Elites (Ascensão e Queda das Elites). O essencial de sua teoria das elites
encontra-se exposto nela, mas também seu programa de pesquisa sociológica
futuro. Esse texto está disponível nas Obras Completas, no volume intitulado
Écrits sociologiques mineurs (Escritos sociológicos menores).
Vinte anos mais tarde, Pareto consagra sua última obra à La transforma-
tion de la démocratie. O enfoque muito psicológico da circulação das elites
proposto em 1901 e no Tratado dá lugar a um enfoque mais estrutural do
poder. Conservando sua visão ondulatória dos fenômenos sociais, ele conside­
ra, agora, central o problema da organização política. Ele descreve ciclos de
oscilação entre centralização e descentralização comandados pela tendência à
consolidação ou à erosão do poder. A força e a cooptação permanecem as duas
técnicas primordiais do governo que se deve combinar não mais em relação
com temperamentos, mas em função das forças centrípetas que afetam a
distribuição da autoridade. A posteridade reteve a primeira teoria das elites, a
dos leões e das raposas, e negligenciou suas últimas modificações.
Será que é preciso se espantar de que um projeto sociológico de tal
ambição e um trajeto intelectual tão marcado por um “pessimismo polêmico”,

931
segundo a expressão de Giovanni Sartori, tenham suscitado tantas leituras e
tantas críticas? Quando se tenta reatar o pensamento de Pareto a doutrinas
políticas constituídas, duas interpretações competem. Antes de tudo, ele foi
considerado próximo do fascismo. Seu antiparlamentarismo, a zombaria do
humanitarismo, do pacifismo, a denúncia da burguesia decadente, a preferência
concedida à utilidade da coletividade, isto é, sua potência, com relação à utilidade
para a coletividade são alguns dos muitos argumentos que podem ser mobiliza­
dos nesse sentido. Eles são compatíveis com a legitimação do recurso à força. Os
fascistas citaram muitas vezes o parágrafo 2.480 do Tratado como fonte possível
de sua doutrina: “Pode-se afirmar que a resistência da classe dirigente somente
é eficaz quando está pronta para ser extrema, sem outra consideração, para
utilizar, quando for necessário, a força e as armas sob pena de ineficácia e de
ajuda aos adversários." Seu biógrafo, G.-H. Bousquet, considera Pareto um
“profeta e não um apóstolo do fascismo”, e F. Borkenau considera-o um
“precursor do fascismo, mas não um fascista nem agente do fascismo”.
A segunda interpretação articula-se em torno do liberalismo. Assim, para
Maurice Aliais, Pareto é o teórico do liberalismo econômico, político e moral.
Nesse sentido vão sua rejeição do determinismo, sua recusa de um domínio do
Estado sobre a sociedade e sua crítica do socialismo em geral. Mas pode ser
que a qualificação de liberal decepcionado, proposta por Samuel Finer, esteja
mais de acordo com a evolução das idéias de Pareto. Hostil ao protecionismo,
seu credo livre-cambista transforma-se em uma crítica da fraqueza do liberalis­
mo como utopia. Ele permanece, entretanto, um ardente defensor da liberdade
de pensamento. Desprezador do rigorismo moral, ele está também convencido
da necessidade da crítica como o exige a atividade científica: “A liberdade de
exprimir seu pensamento, mesmo quando ele é contrário à opinião do maior
número ou de todos, mesmo quando contraria os sentimentos de alguns ou de
muitos, mesmo quando é tido de modo geral como absurdo ou criminoso,
resulta sempre vantajosa na busca da verdade objetiva (concordância da teoria
com os fatos)” (§ 568).
Quanto a regime político, aquele que, de acordo com Raymond Aron,
teria seu apoio, é de tipo autoritário e moderado. “Pareto teria sido favorável
a um governo forte e liberal.”
A essa oscilação das interpretações entre fascismo e liberalismo, acrescenta-
se uma outra fonte de incerteza onde Norberto Bobbio localiza a ambigüidade
do pensamento político de Pareto. Como acontece com Maquiavel, ele fornece
respostas diferentes segundo seja entendido como lição de realismo político, cuja
utilidade é independente do conteúdo, ou, então, como um sistema de princípios
partidários. A receptividade a Pareto, principalmente na Itália, mostra que sua
posteridade ideológica é menos unívoca do que se crê.
Quanto à sua recepção na comunidade científica, ela é muito variável
segundo os domínios. Se é reconhecido hoje como o pai da economia matemá­
tica, sua posição é muito mais contestada no campo dos sociólogos. Após
Bouglé e Halbwachs, por exemplo, Georges Gurvitch critica sua sociologia,
considerada nominalista, mecanicista e individualista. Não fica menos patente

932
que sua influência foi concreta, mesmo que Parsons lamentasse ter ela sido
insuficiente, pois isso revelava mais os limites dos sociólogos posteriores do
que a falta de pertinência dos trabalhos de Pareto. Essa influência manifestou-
se no desenvolvimento das análises de equilíbrio e do sistema social, assim
como na pesquisa sobre a análise da alternância do poder ou a análise
econômica da vida política. Com sua teoria das elites, Pareto constrói com os
outros “maquiavélicos”, Mosca e Michels, as bases da teoria pluralista.
Mas existe um aspecto menos comentado da obra de Pareto, em geral, e do
Tratado, em particular, que provavelmente merece mais atenção: a teoria e a
crítica da ideologia. Ocupando, efetivamente, dez capítulos em treze, foi, no
entanto, menos considerado do que, nos dois últimos, a forma geral da sociedade
e o equilíbrio social dentro da história, onde se encontra descrita a circulação das
elites. O homem como animal ideológico: eis o âmago do Tratado, pois a análise
dos resíduos e derivações é, dentro dele, ao mesmo tempo, quantitativamente, a
mais desenvolvida e, qualitativamente, a mais original, mesmo que Lessystèmes
socialistes e o Manuel d ’économie politique já tivessem formulado uma crítica
das ideologias ou esboçado sua teoria. Pareto é, dessa maneira, o sociólogo
não-marxista que mais trabalhou a questão da ideologia. Ele está próximo de
Marx quando considera a ideologia falsa representação (consciência ilusória) e
falsa consciência. Ele se separa de Marx na análise de sua gênese. Quando Marx
procede a uma análise histórica dos interesses de classe, Pareto personaliza a
natureza humana e desenvolve a análise de uma necessidade individual. Ali onde
Marx vê um processo de falsa universalização, Pareto vê um processo de falsa
racionalização, chamado derivação. Quando Marx faz uma crítica política das
ideologias, Pareto não procura influir sobre o curso das coisas, que ele crê
imutável. Norberto Bobbio resume essa oposição: “O pensamento revolucionário
de Marx opõe uma sociedade liberada da falsa consciência à sociedade histórica
onde a falsa consciência de uma classe no poder continua a engendrar ins­
trumentos ideológicos que servem para a obtenção do poder. O pensamento
conservador de Pareto vê desenrolar-se a grande história monótona das paixões
humanas, da qual faz parte integrante a falsa consciência, e a pequena história
individual, sem finalização e sem efeito benéfico, de alguns sábios impotentes que
conhecem a verdade, mas não estão em condições de fazê-la triunfar. O marxismo
pertence à grande história já que ele é, do ponto de vista da pequena história,
uma ideologia.”
A função da ideologia é o objeto da teoria das derivações, conceito do
qual se pôde sublinhar a conexidade com os conceitos de mito, em Sorel; de
teodicéia, em Weber; e de racionalização, em Freud. A análise dos raciocínios
pseudológicos e de sua eficácia persuasiva apresenta um interesse evidente
pelas pesquisas atuais sobre a lógica natural do discurso, sobre os modos de
construção da realidade e, de uma maneira mais geral, sobre as condições de
aceitabilidade da comunicação social e política.
Pareto seria, então, o Darwin das ciências sociais, o Karl Marx da
burguesia, o profeta do fascismo, o liberal decepcionado, o filósofo voltairiano,
o maquiavélico defensor da liberdade. Talvez seja preciso admitir que ainda

933
não foram esgotados todos os caminhos de interpretação de sua obra se nos
dispusermos a considerar que seu projeto central era precisamente o de
compreender esses julgamentos como derivações e de avaliar seu alcance
tomando muito cuidado em distinguir a utilidade, a eficácia e a verdade.

• Vilfredo Pareto, T ra lté d e so c ío lo g ie g é n é r a le , em O e u vres c o m p lè le s, vol. XII, Droz, 1968.

► Raymond Aron, L es é ta p e s de la p e n sé e sociologiqu e, 1967; Norberto Bobbio, O n M osca a n d


P a reto , Droz, 1972; G.-H. Bousquet, P a reto (1848-1923). L e S a v a n t e t 1’H om m e, James Bumham,
L es M achiavéllen s. D éfen seu rs d e la L iberté, 1949; Giovanni Busino, In trodu ction ú u n e “H istoire
d e la S o cío lo g ie" d e P areto, 1967; C ah iers Vilfredo P areto, Archives européennes de Sciences
sociales (desde 1963), Droz; Julien Freund, Pareto. La T héorie d e 1’É quilibre, 1974; C. H. Powers,
Vilfredo P areto, 1987; Bemard Valade, C ritiqu e d e s S c ien ce s e t T héorie d e TH istoire d a n s
V oeuvre d e P areto. Tese de doutorado de Estado, Université de Paris, 1987.

Jacques CERSTLÉ.

PASCAL, Blaise, 1623-1662


P en sam entos, póstumo

Incluir Pensamentos entre obras políticas é arriscar mais do que um


paradoxo: uma aposta. Se acontece a Pascal inclinar-se sobre a escrita política,
ele só lhe reconhece um valor irônico, pois seu objeto escapa às tomadas da
razão: quando Platão e Aristóteles “divertiram-se em fazer suas leis e suas
políticas, eles o fizeram brincando. (...) Se escreveram sobre política, foi como se
quisessem botar ordem num hospital de loucos. E, se pareceram falar dela como
de uma grande coisa, foi porque sabiam que os loucos a quem se dirigiam
pensavam ser reis e imperadores” (Pensamentos, fragmento 533/457)1. Da
loucura, a cidade humana tem a inconsciência sem ter a irresponsabilidade: aos
olhos de um jansenista, será que ela pode aparecer de outra maneira senão como
a contrapartida perversa da Cidade de Deus? Em uma primeira aproximação, a
relação de Pascal com a política deve ser uma relação pura de exclusão. A política
representa a ordem do relativo, do contingente, do maléfico; a salvação não pode
ser encontrada fora do absoluto, do retiro, da fuga. Assim se fixou a imagem de
um jansenista como homo absconditus sobre o modelo de um Deus afastado do
comércio de suas criaturas. Visão mítica tanto quanto pertinente: Pascal, ao
deixar de ser mundano, não cessou jamais de viver no mundo. O agostinianismo
jansenista sabe muito bem que a fronteira entre a civitas terrena e a Civitas Dei
passa pelo interior mesmo da cidade terrestre, as duas civitates não formando

934
duas instituições concretas (por exemplo o Império e a Igreja), mas duas
entidades místicas. Por outro lado, quando houver relação de exclusão, não se
poderá concluir, por definição, pela exclusão de relações. De fato, o jansenista é
duplamente político: contra sua vontade, pela perseguição perseverante que sofre
do poder civil; positivamente, pelo dever proclamado de tomar posição dentro de
um domínio em que se jogam a recepção da Verdade (o princípio de catolicidade
é garantido por lei fundamental do reino) e a dimensão coletiva da moralidade:
“Jamais os santos se calaram’’ (fr. 916/746).
A política, nos Pensamentos, não se reduzirá, portanto, à recusa da política;
ela não se manifestará mais no âmbito de uma apologética fragmentária, em
tratado acabado: ela se organiza segundo uma tipologia dialética das atitudes
possíveis diante do político. "O povo honra as pessoas bem-nascidas; os semicons­
cientes as desprezam, dizendo que o nascimento não é uma vantagem pessoal,
mas do acaso. Os conscientes honram-nas, não pelo pensamento do povo, mas
pelo pensamento que está por trás” (fr. 90/124). O primeiro sentimento do
homem diante da ordem política é de respeito, qualquer que seja o superior
hierárquico - na França, cavalheiro; na Suíça, plebeu: a diferença dos regimes é
indiferente —, ele será considerado por princípio superior absolutamente. A
fortiori o soberano, do qual a simples visão faz dizer que “o caráter da divindade
está marcado sobre seu rosto” (fr. 25/59). Quando se trata dos grandes, do rei
ou dos magistrados, as aparências do poder irradiam-se de uma legitimidade
intrínseca; a força manifesta um direito que exprime ele próprio a justiça. Sob o
olhar não-crítico do povo, a ordem estabelecida enfeita-se infalivelmente com os
prestígios da ordem natural. É no âmbito dessa coincidência feliz que desperta,
com a desmistificação semi-hábil, a consciência política. Também não é preciso
uma perspicácia excepcional para perceber que a hierarquia social não corres­
ponde à hierarquia dos méritos. A propósito mesmo do monarca hereditário,
Pascal não teme evocar, no fragmento 94/128, a possibilidade dp “um tolo que
suceda por direito de nascimento”. Quanto às leis, o povo que acredita subme­
ter-se a elas porque são justas, na realidade só as acha justas por estar há muito
tempo submetido a elas. É preciso, assegura o semiconsciente que toma aqui a
voz do Censor, “recorrer às leis fundamentais e primitivas do Estado que um
costume injusto aboliu” (fr. 60/94). Mas nesse ponto, o desmistificador se deixa
tomar pelo mito de uma justiça original - pois no princípio reina a força. A crítica
conduzida pelo semiconsciente volta-se contra ele, radicalizando-se: se nenhuma
ordem política tem como princípio a justiça, toda revolução é um logro sangren­
to. Ao inverso do semiconsciente, que incita o povo à rebelião, desacreditando
de seus governantes e de suas leis, o consciente vai confortar o povo em sua
crença nativa na superioridade dos primeiros e na eqüidade dos segundos, a fim
de evitar - ilusão salutar contra ilusão trágica - uma guerra civil que causa
destruição certa em vista de uma perfeição inacessível.
Porém o movimento que inverte o pró em contra e o contra em pró não
pára aí. À perspectiva natural junta-se dialeticamente a perspectiva cristã. O
devoto, cristão zeloso, embora pouco esclarecido, critica por sua vez o ponto de
vista do consciente, cujo realismo resignado ou cínico parece fazer bom negócio

935
com os valores religiosos. Por trás do momento da “devoção” esconde-se o
ultramontanismo hispanófilo de ascendência da Liga (contra o protestantismo)
que almeja a rendição do absolutismo, sustentado pelos libertinos acólitos da
razão de Estado, às leis de um sistema teocrático. Ora, se Pascal não pode aprovar
o maquiavelismo dos “políticos”, não se alinha também com o clericalismo do
partido devoto. A política, para ele, emana essencialmente da ordem da carne (“os
carnais são os ricos, os reis. Eles têm como objeto o corpo”, fr. 933/761) e a
tirania começa no desejo de confundir ordens heterogêneas por natureza: essa
era a falta do semiconsciente, que pretendia identificar a ordem dos corpos com
a dos espíritos, reclamando uma hierarquia que era a do talento; essa é também
a falta do devoto, esse semiconsciente transcendente, que confunde a ordem dos
corpos com a da caridade, preconizando uma hierarquia que seria a da piedade.
Reclamar de só obedecer a um mais inteligente ou um mais santo é abandonar
o vínculo social à anarquia dos amores-próprios: as guerras civis “são certas se
se quer recompensar os méritos, pois todos dirão que merecem" (fr. 94/128).
Como o ponto de vista do semiconsciente, o do devoto deve ser ultrapassado pelo
ponto de vista intransponível do cristão perfeito. A sociedade política apresenta­
ria o aspecto de um hospital de loucos, “os verdadeiros cristãos - diz Pascal no
fragmento 1448 —obedecem às loucuras (...); não porque respeitem as loucuras,
mas a ordem de Deus que, para a punição dos homens, os submeteu a essas
loucuras". A ordem política é uma ordem penal, isto é, humilhante e redentora.
Por não ter aceito, na origem, obedecer a seu Senhor, o homem deve agora
obedecer a seu igual e cumprir leis arbitrárias. Mas obedecer às loucuras não
significa de maneira nenhuma consentir na injustiça. Uma lei arbitrária, no voca­
bulário jurídico do século XVII, não é uma lei iníqua, mas uma lei “cujas dis­
posições são tais que só se poderia dizer que uma lei diferente seria contrária
aos princípios da eqüidade”2. Face ao comando injusto, Pascal (que foi também
o autor clandestino e perseguido dos Provinciales) aplica a máxima apostólica:
“É melhor obedecer a Deus do que aos homens” (fr. citado 916/746), pois a
vontade do legislador pode bem tornar justo o que era indiferente, mas não po­
deria tornar justo o que é injusto. O Estado, por mais cristão que seja, não
encarna mais a Jerusalém celeste, e o reconhecimento de seu soberano como
imagem de Deus é exatamente o que deve impedir de tomá-lo por Deus. Em
compensação, todo Estado —mesmo pagão - deve ser visto como uma figura da
Cidade de Deus, separada de seu modelo pela distância infinita entre a natureza e
o sobrenatural, mas tendendo a reproduzir no universo da cupidez ao menos os
gestos que a caridade inspira na âmbito da mística “República cristã” (fr.
376/408).
O caráter paradoxal da reflexão pascaliana sobre a política, alternando
desmistificação e a desmistificaçâo da desmistificação, o expõe a interpretações
contraditórias. Um conservador, como Maurras, fixa Pascal no estágio da se­
miconsciência e vê nele um anarquista potencial (Pascal puni, 1953); um
revolucionário, como H. Lefebvre, faz o contrário, alia-o a um absolutismo
explorador e repressivo (Pascal, 1949). Pascal escandaliza tanto os tomistas,
porque parece recolocar em causa a existência das leis naturais, quanto os

936
marxistas, porque sua dialética termina na aquiescência à desordem estabelecida.
Essas estranhezas simétricas desconheceriam, então, que as leis de Estado,
mesmo não sendo naturais, mas positivas, também não são necessariamente
contra a natureza - salvo para justificar, então, a desobediência passiva? Mais
estimulante é o enfoque de L. Goldmann em Le Dieu cachê (1955), que define
o jansenismo como a expressão ideológica do descontentamento dos funcioná­
rios públicos entravados em sua ascensão social pela constituição de uma
burocracia de comissários. Essa tese, no entanto, não poderia dar conta da
“conversão”, em 1646, da florescente família do comissário Etienne Pascal; nem
da confirmada oposição de seu filho Blaise à revolução reacionária da França.
Sobretudo, ela conduz a interpretar a política, aos olhos de Pascal, como uma
ausência de valor. Ora, a política constitui o lugar, perfeitamente assinalável nos
Pensamentos (bloco V: “Razões dos efeitos”), onde a miséria do homem se
transforma em grandeza. A simples existência da cidade é realmente para Pascal
um milagre natural: se os homens nascem, a partir do pecado original, com um
amor-próprio dominante que deveria tornar impossível a organização de comuni­
dades duráveis, eles souberam unir a força anárquica do desejo à conservação
do corpo social. Cada um, em nome da repartição das honras e sanções, deve
encontrar seu interesse para satisfazer o dos outros. E mais, a justiça não é a
grande ausente da polis, já que o legislador dispôs sobre a cupidez de seus mem­
bros “regras admiráveis de policiamento, de moral e de justiça” (fr. 211/244).
Em suma: mesmo se a cidade humana só fosse composta de reprovados, ela
manifestaria sempre a “grandeza do homem, dentro de sua própria concupis-
cência, de ter sabido tirar daí um regulamento admirável e de ter feito um quadro
de caridade” (fr. 118/150).

• O e u v re s c o m p lètes: éd. Lafuma, col. “L’lntégrale”, Paris, Seuil, 1963; éd. Mesnard, Paris,
Desclée de Brouwer, 2 vols. até este dia, 1964 e 1970. A perspectiva dos P en sé es, sobre o plano
político deve ser completada notadamente pela L e ltr e à la S é r é n is s im e R e in e d e S u è d e (junho
de 1652), pela X V I P r o v in c ia le (outubro de 1656) e os T roís d isc o u rs s u r la c o n d itio n d e s
g r a n d s ( 1660).

► G. Ferreyrolles, P a sc a l e t la ra iso n du p o litiq u e , col. “Epiméthée”, Paris, PUF, 1984; L.


Goldmann, L e D ie u c a ch ê, col. “Tel”, Paris, Gallimard, 1976; A. Lanavère, P a sc a l (coletânea de
artigos de Maritain, Auerbach, etc.), col. “Miroir de la critique”, Paris, Firmin-Didot, 1969; R.
Taveneaux, J a n s é n is m e e t p o litiq u e , col. “U”, Paris, A. Colin, 1965.

Gérard FERREYROLLES.

NOTAS
1. O primeiro número remete à edição Lafuma de P en sées, Paris, Ed. du Luxemburgo,
1952; o segundo à edição Ph. Sellier, Paris, Mercure de France, 1976.

937
2. Domat, Traité des lois (cap. XI) à frente das Lois civiles dans leur ordre naturel, t. /,
1689.

PAULO de Tarso (Sâo), por volta de 5, por volta de 65 d.C.


Epístolas

“Que cada um se submeta às autoridades competentes. Pois, decerto, não


há autoridade que não venha de Deus, e todas as que existem são constituídas
por Deus. De modo que aquele que resiste à autoridade se rebela contra a
ordem estabelecida por Deus” (Romanos, 13,1-2).
Obedecer às autoridades, fazer o bem, pagar os impostos: dar a cada um
o que lhe é devido. É inútil se revoltar: seria ir contra a vontade de Deus. Essa
ilustração, a mais célebre da concepção política de São Paulo, evoca, es­
pontaneamente, uma representação fatalista e fixa da ordem social. As coisas
seriam tais como o Criador as quis e não haveria mais nada a ser feito além de
se submeter. De fato, parece necessário ultrapassar uma interpretação que
eqüivaleria a um pensamento de alguma forma unidimensional, usando nota-
damente critérios habituais, como conservadorismo ou progressismo. A com­
preensão da análise de São Paulo deve ser feita a partir da dupla dimensão que
a atravessa: toda realidade humana remete a uma realidade espiritual que lhe
dá sentido e deve inspirar seu-vir-a ser. Assim, o poder político não é uma
instância autônoma, mas subordinada a uma vontade que a ultrapassa, a de
Deus. Por conseguinte, a questão do respeito que lhe é devido deve ser
colocada em relação a essa vontade: existe uma reversão de perspectiva. Essa
reversão confere ao pensamento político de São Paulo uma visão particular,
que é preciso distinguir das concepções puramente temporais. É preciso, sem
dúvida, colocar o problema da instituição política e da relação que cada
cidadão entretém com ela, pois ela existe e é preciso que preencha as funções
que lhe são próprias para permitir à sociedade humana subsistir. Daí o dever
de obedecer. Mas esse dever não encontra seu sentido apenas nele mesmo; ele
remete a outra coisa, ele é ato a ser realizado, mas também símbolo. Por outro
lado, e mais ainda, a questão da relação com o poder não é a condição central
da organização do mundo e de sua metamorfose. Importam muito mais a
prática efetiva dos homens, seus gestos cotidianos, as relações que estabelecem
entre si. Pois é aí que se fazem as escolhas e que se realizam os atos,
permitindo ou não ao fermento fazer crescer a massa e ao fermento evangélico
transformar o mundo. O pensamento político do Apóstolo é, portanto, cons­
tituído também pela representação que ele se faz da vida social e das
prescrições que daí decorrem. Essa representação se apoia numa visão es­
piritual reveladora da finalidade que Deus atribui à vida humana, isto é, a '
edificação de um mundo novo.

938
0 simbolismo da obediência

Sem dúvida, a obediência permite fazer o bem e evita que se cometa o


mal, na medida em que a autoridade é efetivamente o instrumento de Deus
(Romanos 13, 4). Em tais condições ela não seria problema. Mas a questão é
saber se esse estatuto de instrumentalidade é bem assegurado. Se o príncipe
se comporta como ministro de Deus, ele não pode determinar algo que seja
injusto. Obedecer-lhe é, ao mesmo tempo, permitir um bom funcionamento da
sociedade e encontrar aí a oportunidade de se aperfeiçoar. Mas que fazer se
ele fizer mau uso de sua autoridade? São Paulo descarta a hipótese da
resistência. Essa só é considerada nos Atos dos Apóstolos (IV, 9) em que Pedro
e João declaram aos membros do Conselho “julgai vós mesmos se é justo diante
de Deus obedecerdes mais a vós do que a Deus”. O dever de obediência
proclamado por Paulo expõe a incertezas e a injustiças (Hebreus 10, 11-36).
Se é preciso enfrentá-las e aceitá-las, será sempre porque esse dever se articula
com a fonte divina da autoridade: obedece-se a Deus, acima dos homens.
No cerne desse dever de submissão não há um sentido, de certa forma
simbólico, que emane do espiritual? Esse dever pode ser interpretado antes de
tudo como simbolizando o abandono de si, o despojamento do velho conceito
de homem, necessário para revestir o novo, o que vai seguir o exemplo de
Cristo, fazer o bem, mostrar-se benevolente, prestar socorro aos aflitos. Dizen­
do de outra forma, por trás do dever de obediência, há a submissão à vontade
de Deus, submissão necessária para superar a fraqueza da carne do homem,
deixar-se tomar pela graça e ter acesso à nova vida. Dessa forma, não se trata
de uma atitude passiva e resignada, mas sim de entrada ativa na vida espiritual.
Na Epístola a Tito (3, I), São Paulo coloca no mesmo plano a obediência às
autoridades, a prática de boas ações e a caridade.
Entretanto, tal justaposição não se deve confundir com identidade, a
questão do poder não sendo da mesma natureza que a questão da caridade.
Se é preciso dar a cada um o que lhe é devido, a dívida do imposto não é o
equivalente da dívida para com Deus. A primeira, dependente de um poder
humano, é relativizada. Dessa maneira pode-se suportar desagregações pelas
quais a autoridade é responsável, pois sabe-se que o essencial está noutro
lugar. Os hebreus agüentam “opróbrios e adversidades”, aceitam “com alegria
a espoliação” de seus bens, pois sabem estar “de posse de uma riqueza melhor
e estável” (Hebreus, 10, 32-36) Neste mundo, o cristão é apenas um viajante:
sua verdadeira pátria é noutro lugar, ele espera uma cidade melhor, uma
cidade celeste. Começa a realizar outra coisa: a finalidade da vida humana é a
edificação de um mundo novo.

A edificação de um mundo novo

A ordem desejada por Deus não é a ordem existente, mas um mundo novo,
que implica a passagem do reino carnal para o da graça e da caridade, que requer,
portanto, a reversão da lógica humana. Toda a pregação de São Paulo é colocada

939
numa perspectiva teleológica que lhe confere a dinâmica do dever-ser. Se o poder
político deve ser obedecido, é porque ele procede de Deus que o instituiu em
vista de uma certa meta. Dizendo de outra forma, sua ação é finalizada, ordenada
para a edificação de um mundo que se aparta pouco a pouco do domínio do mal.
Da mesma forma ocorrerá com os homens, que, quaisquer que sejam, se vêem
fixar uma responsabilidade precisa dentro da obra comum.
São Paulo precisa antes de tudo o fundamento teológico que ao mesmo
tempo presta contas da natureza desse novo mundo e explica como e por que
cada um deve participar de sua construção. Esse fundamento é o mesmo
pertencimento ao corpo de Cristo. “Tudo pertence a vocês, diz ele (querendo
dizer o mundo, a vida, a morte, o presente, o futuro), mas vocês pertencem a
Cristo, e Cristo pertence a Deus” (I Corintios 1, 22-23). Isso vale para todos,
judeus ou pagãos, circuncisados ou não-circuncisados. Esse pertencimento
permite ter acesso a uma fonte de vida nova, à graça, pela qual será inaugurado
um mundo novo. Assim vai-se encontrar em São Paulo um apelo à criação e à
novidade que coloca sua problemática política numa dimensão renovadora.
Em nossas sociedades secularizadas, sem dúvida, o poder não é mais o
instrumento de uma vontade divina, de maneira que a concepção do Apóstolo
sobre esse ponto não pode esclarecer nossos próprios problemas. Em compen­
sação, por meio dessa perspectiva de recriação e colocando a ênfase sobre a
própria prática dos indivíduos, ela pode ajudar a pensar sobre a questão
decisiva da reconstituição de uma ética de vida coletiva. Essa ética pode ser
decifrada pelas prescrições que formulam primeiro as condições da santifica­
ção e da salvação individuais. Realmente, há inseparabilidade entre a vida
interior de cada um e a questão política. A chegada de um mundo novo só
sobrevirá na medida em que ele for a obra de novos homens, de modo que não
pode depender apenas da natureza da instituição. O que importa é que os
homens sejam capazes de depositar na massa do mundo o fermento evangélico:
esse fará pouco a pouco seu serviço, e, ao término, as mudanças se produzirão.
Assim, comenta Jacques Maritain, São Paulo fez mais para abolir a escravidão
ensinando aos homens que eles eram iguais diante de Deus "do que se tivesse
atacado de frente as instituições jurídicas de seu tempo” (La pensée de Saint
Paul, textos apresentados por J. Maritain, Corrêa, 1947, pág. 205).
Antes de tudo, de que é feito esse pertencimento ao corpo de Cristo? De
diversidade e de unidade (cf. I Corintios, 12, 4-30; Idem, Romanos, 12, 13 e
Efésios, 4, II). A cada um é dado um dom próprio: um sabe curar, outro assistir,
outro governar; um tem o dom da ciência, outro o da sabedoria, outro ainda
o da profecia. Essa diversidade é a condição da existência do todo. Cada um,
mesmo o mais fraco, é necessário. São Paulo faz a comparação com o corpo:
se não houvesse a particularidade de cada membro, o corpo não existiria (“ Se
o todo fosse um só membro, onde estaria o corpo?”, 1 Corintios, 12, 19).
Mas, simultaneamente, a especificidade de cada um implica a existência
do todo: “Portanto, o olho não pode dizer à mão: não preciso de você” (ibidem,
21). Há diversidade dos dons, “mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos”
(ibidem, 6). É a mesma força que age e para a mesma meta, a utilidade comum.

940
A unidade é inseparável da diversidade e reciprocamente: não há oposição, mas
movimento incessante de uma para outra.
É desse mesmo pertencimento ao corpo de Cristo que resultam os
princípios fundamentais de uma vida comum e de uma prática coletiva.
O ponto de partida, poder-se-ia dizer, é a liberdade não dada, mas
entendida como uma convocação, uma exigência (“vocês foram conclamados
à liberdade”, Gálatas, 5, 13). Isso significa, primeiro, que depende de cada um
aceitar ou recusar esse apelo. Porém, isso quer dizer principalmente liberdade
diante daquilo que São Paulo designa pelo termo genérico de carne, isto é, o
conjunto das determinações da ordem temporal, tudo aquilo que o ser humano
ainda não renovado pela força do espírito faz. Essa liberdade é precisamente
necessária para a construção de um mundo novo que pretende superar as
resistências e os limites inerentes “ ao mundo antigo”.
Em outras palavras, trata-se de uma liberdade finalizada: ela não é feita
para o culto do narcisismo (“ que essa liberdade não se torne pretexto para a
carne", Gálatas 5, 13), mas para o serviço mútuo submetido a essa lei que
resume as outras e se fortalece de sua verdade e de seu caráter inesgotável,
“Tu amarás teu próximo como a ti mesmo” (Romanos 13,9). A liberdade, longe
de se deixar reduzir à satisfação do desejo imediato, implica uma ruptura, uma
reviravolta do ser interior que deve encontrar seu centro fora de si mesmo.
Isso significa a superação da cobiça pessoal, do interesse próprio, para só ter
no coração o bem de todos (Filisteus, 2, 4). De fato, o cristão não age para si
mesmo, mas para um outro e é dele que ele deve tirar sua força: empunhem
“armas de luz" e “protejam-se com o Senhor Jesus Cristo” (Romanos, 13,
12-14). Mais precisamente, esse combate pela luz, destinado a fazer reinar a
caridade pela caridade, significa três coisas: a ruptura com a violência, o
socorro aos fracos e o anúncio da paz.
Há o mal: perseguição, injustiça, orgulho... Se se responder com um outro
mal, permanece-se prisioneiro dentro do círculo vicioso da mesma lógica. Há,
então, o risco de a sociedade se decompor: “Mas, se vocês se morderem e se
devorarem uns aos outros, de certo irão se entredestruir” (Gálatas, 5,15). Mas é
principalmente perder o sentido do combate: combater o mal com o mal é ser
sempre vencido pelo mal. É preciso vencê-lo pelo bem (Romanos, 12, 21). É
preciso, portanto, recusar a determinação do mal e escolher atitudes que
remetam a valores procedentes de uma outra lógica, a da caridade, e que podem,
seja instituir uma realidade nova por sua força de ruptura, seja dizer pelo menos
que uma outra realidade é possível por aquilo que elas simbolizam. Primeiro a
compaixão, que exprime uma proximidade, uma presença em face daquele que
sofre, e atenua sua parte de solidão (“chorem com quem chora”, Romanos, 12,
15). Em seguida, a humildade, que ensina, evitando se comprazer com sua
própria sabedoria, a evitar a armadilha da vingança e a ter “no coração o que fica
bem diante de todos os homens” (ibidem, 16-17). Mais profundamente, a
humildade significa que não compete aos homens fazerem justiça a si próprios,
pois, essencialmente, isso não depende deles, mas de Deus (ibidem, 19), O
perdão, enfim, com relação ao inimigo: não somente deve perdoar, mas também

941
abençoar (ibidem, 14), dar de comer e de beber (ibidem, 20). Aqui, o círculo da
violência é quebrado, a lógica do mal é revertida, tornada impotente para um
comportamento sobre o qual perde todo o domínio inaugura uma outra lógica.
Qualquer outra coisa se torna então possível, tudo pode começar de novo.
O socorro a ser dado aos fracos procede, ele também, do mesmo pertenci-
mento de cada um ao corpo de Cristo e da regra do serviço mútuo. Desde que
cada um proceda do mesmo todo, há igualdade de condição e troca para que
tudo seja partilhado. Quando São Paulo fala de “a colocação em comum dos
recursos (Hebreus, 13, 16), visa a uma realidade ao mesmo tempo material e
espiritual. Há primeiro aqueles que estão na miséria. Para aliviá-los, não se trata
de cair na penúria, mas sim de usar o que se tem de supérfluo, de maneira que,
mais tarde, ele possa, se necessário, havendo inversão dos papéis, tornar-se um
dos beneficiários do supérfluo, socorrendo as novas vítimas da miséria (II
Coríntios, 8, 13-14). Troca incessante, solidariedade sempre aberta e recíproca.
Porém, não existe só a miséria material: há os que vivem no temor, os que não
trabalham, os que estão na aflição ou aqueles que sofrem de outra fraqueza
qualquer. Então, nesses casos, que aqueles que têm força carreguem os fardos
daqueles que não a têm (Romanos, 15, I). Se se for rico de qualquer bem que
seja, não é para torná-lo excessivo e acumulá-lo, mas para usá-lo a fim de
transformar a pobreza dos outros em uma nova riqueza. Recusa de todo
fechamento em qualquer categoria, apelo à renovação que supera os pesares do
mundo.
O anúncio de paz enfim se enraíza igualmente em uma unidade, que, ela
também, é mais uma vocação do que uma realidade adquirida.. É em nome de
uma mesma unidade que é preciso ultrapassar divisões, facções, “espírito de
partido”, não sacrificar à competição, ao jogo da vaidade (Filipenses 2, 2-3).
Importa mais penetrar-se de humildade, estar convencido da superioridade dos
outros. Desse modo, pode-se conseguir chegar à uma unidade de sentimentos
e preparar a paz. Uma paz que Cristo veio proclamar para todos, quer estejam
próximos ou longe, estrangeiros ou não. Esse anúncio é também uma promes­
sa de renovação face aos dilaceramentos do ódio. Ele se enraíza, além das
aparências, em uma vocação para o universal.
Com efeito, além das oposíções que procedem de todas as formas da
fraqueza humana, há as diferenças inerentes das categorias que comporta toda
vida social: homem e mulher, escravo e homem livre, judeu e grego, circunci-
sados e não-circuncisados...Elas separam os seres uns dos outros, mantêm-nos
a distância, ao mesmo tempo que os encerram nas particularidades que são
limites à sua experiência do mundo e aparecem como uma outra causa de
incompreensão e de divisão. Essas particularidades são necessárias, como já
vimos, mas não devem ser fechadas, destinadas, como estão a serem ultrapas­
sadas. São Paulo formula em várias passagens um apelo ao universal, vocação
requerida para o próprio pertencimento a Cristo, que concerne a todo homem,
quer ele seja fiel ou pagão (Gálatas, 3, 27; 5, 6; Efésios, 3, 6). Esse esti-
lhaçamento das categorias não deve ser perturbador para nós, que vivemos
primeiro de diferenças.

942
Ele é a expressão, material e simbólica, dessa nova criação que São Paulo
apresenta ao mesmo tempo como certeza prometida e como realidade a ser
edificada desde agora, mesmo se, e sem dúvida porque, ela ultrapassa o
entendimento.

• Epístolas: aos Romanos, aos Coríntios I, aos Corfntios II, aos Gúlatas, aos Efésios, aos
Filipenses, aos Colossenses, a o s Tessalonicenses I, aos Tessalorticenses II, a Timóteo I, a
Timóteo II, a Tito, a Filémon, e aos Mebreus.

► K. B a rth , L ‘építre aux Romains, P a ris, L a b o r & F ides, 1972; P. G ilbert, Apprendre à lire
saint Paul: le Christ au fondement de tout, de la loi à Evangile de Ia liberíé, P aris-L a h aye,
D esclée d e B ro u w e r, 1981; B. H o lm b erg , Paul and Power: the structure o f authority in the
primitive epistles, Filadélfia, F o rtre s s P ress, 1978; L ag ran g e , Saint Paul Êpitre aux Romains,
P a ris, L ecoffre-G abralda, 1931; J. M aritain, La pensóe de Saint Paul, tex to s e s c o lh id o s e
a p r e s e n ta d o s p o r J.M., P aris, C o rrêa, 1947; B. D. Rey, La création nouvelle selon saint Paul,
E tio lles, Le S a u lc h o ir, 1964, 2 volum es; A. T h o m a s B res, La vie chrétienne victorieuse selon
VEpitre aux Romains, P aris, C ré z ie u La V aren n e, 1982.

F r a n ç o i s MONCONDUIT.

PLATÃO, 427-347 a.C.


A República

A República, de Platão, tem lugar indiscutível num dicionário das grandes


obras políticas, Mas não o deixa de ter também nos dicionários das grandes obras
filosóficas, metafísicas, morais, pedagógicas, estéticas, religiosas; teria também
seu lugar num dicionário das grandes obras literárias; ela o teria, ainda, num
dicionário das grandes obras, simplesmente. Esse diálogo em dez tomos, cuja
releitura revela contínua riqueza, é o mais longo que Platão escreveu (com
exceção das Leis, obra da velhice, que ele não teve tempo de acabar, nem,
portanto, de abreviar); um daqueles que ele mais estimava, se se acreditar na
inverificável anedota segundo a qual, em seu leito de morte, ele ainda retraba-
lhava a primeira frase; e aquele ao qual se é conduzido a se referir, qualquer que
seja ou por menor que seja o aspecto do pensamento platônico que se queira
conhecer. Prodigiosa máquina de fazer pensar, A República está longe de ter
esgotado seus poderes depois de tantos séculos: basta ver a onda inesgotável, e
sempre crescente, dos comentários que suscita e das discussões que levanta. Ao
mesmo tempo próxima e distante, luminosa e tortuosa, ela não atrai jamais um

943
sem o outro o respeito que se tem diante de um monumento clássico e a
inquietude de que se experimenta diante de um inalcançável Proteu.
Saber até que ponto e em que sentido exato A República é uma “obra
política” talvez seja a questão central de sua interpretação, é d a que será o fio
condutor deste breve artigo de apresentação. No momento em que Platão a
acabou (provavelmente por volta de 370 a.C.), chegara à idade em que se
encontrou como filósofo consumado; já atravessara as experiências e os
trabalhos que a obra exigira dele. A palavra ambivalência poderia ter sido
inventada para definir sua relação com a política. A se acreditar na autobiogra­
fia da Carta VII (deve-se convir, porém, que sua autenticidade é ainda um
problema), ele primeiro sonhou com uma carreira política, para a qual o
chamavam seus gostos e suas ligações familiares; mas os dramas da vida
política ateniense, na virada dos dois séculos, o desviaram. Julga com severi­
dade os crimes dos Trinta Tiranos (alguns dos quais eram seus parentes
próximos); vê com horror a democracia restaurada conduzir à justiça seu
mestre Sócrates e condená-lo à morte. Desde antes de sua primeira viagem à
Sicília (por volta de 387), que só fará reforçar tal estado de espírito, ele já
chegara a um pessimismo total sobre as perspectivas de melhora imediata da
vida política na Grécia e à convicção de que lhe era necessário dar uma longa
volta pela filosofia antes de retornar eficazmente à política. Fundando a
Academia, centro comunitário amical, local de ensino e de pesquisa, instituto
de altos estudos teóricos e viveiro de futuros intelectuais marcantes, Platão
recua (e se diz que ele o fez para tomar maior impulso). Ao que parece, foi
durante esse período de recolhimento e ao mesmo tempo de contenção, repleto
de delícias intelectuais, de esperanças adiadas com boa ou má consciência para
mais tarde, que ele concebe e redige A República. Ainda não estamos no
momento em que a evolução dos eventos na Sicília virá duas vezes (367 e 361)
colocar o velho filósofo diante do desafio de unir a ação à palavra - com
resultados desastrosos, contudo.
O próprio diálogo, em seu invólucro literário, nos afasta ainda mais desses
tempos conturbados, dos quais ele substitui a lembrança por uma ameaça
imprecisa. Sócrates, que o narra depois de tê-lo entabulado, aparece aí no vigor
dos anos; ignora ainda que será (como alguns de seus interlocutores) a vítima do
mal político. Platão o faz desempenhar o papel de um legislador em palavras,
relembrando que ele se manteve afastado dos assuntos públicos (VI 496 c). O
cenário do diálogo (uma casa do Pireu, porto de Atenas, centro econômico
distinto do centro político, mas não sem influência sobre ele), seus interlocutores
(estrangeiros domiciliados sem direitos políticos, como Céfalo, dono da casa, e
seu filho Polemarco, estrangeiros de passagem, como o sofista Trasimaco; mas
também jovens atenienses, como Adimante e Glauco, irmãos do próprio Platão),
tudo parece feito para que o leitor não saiba se a política estará no centro ou na
periferia do diálogo. Até seu duplo título, “A República ou o que é justo" (o título
tendo vindo certamente de Platão; talvez o subtítulo se deva apenas à tradição),
é perturbador, já que só reflete o conteúdo da obra, invertendo-o: o objeto
próprio da investigação é a virtude individual de justiça, sua natureza e seu valor;

944
e é só a título de instrumento servindo a essa investigação que será descrita a
Politeia (regime, constituição, modo de governo) de uma cidade ideal.
Não se resumirá aqui A República; não se tentará também julgar a política
platônica, saber se ela merece ou não os epítetos infamantes ou laudatórios, ou,
ainda, equívocos, com os quais foi coberta no decorrer dos séculos. Ater-nos-emos
principalmente a observações de estrutura, as únicas que podem ser conservadas
um pouco; seja como for, a compreensão das teses passa pela decifração das
estruturas que as carregam. A estrutura de conjunto dessa enorme obra, bastante
flexível para que se pudesse duvidar da unidade de sua concepção, bastante firme
para que essas dúvidas não sejam unanimente partilhadas, parece-se com a de
uma abóbada complexa, na qual cada arco suportaria, depois de se ter lançado
até certa altura, um outro arco menor encravado; cada um desses arcos menores,
depois de ter contribuído para colocar no lugar a chave da abóbada, termina sua
trajetória um após o outro, criando, assim, uma sucessão de falsos finais. A
abóbada maior, que se estende do “prelúdio” que constitui o livro 1 até o mito
do julgamento das almas que conclui o livro X, não tem significação política; ela
concerne ao problema de moral individual. 0 que é, para um homem, ser justo?
A justiça é um bem, e que espécie de bem? É preciso ser justo, e por quê? Essas
são as questões que o “prelúdio” lança, que se parecem sob muitos aspectos com
os "diálogos socráticos” anteriormente compostos por Platão. Mesma decolagem
a partir de uma conversação familiar (aqui entre Sócrates e o velho rico Céfalo,
ela gira naturalmente sobre o valor da velhice e da riqueza). Mesma passagem à
questão de saber qual é a natureza de uma virtude moral particular (aqui a
justiça, a qual Sócrates finge acreditar que Céfalo pretendeu definir 331 c).
Mesma empresa de refutação dialética de diversas opiniões correntes (convencio­
nais e tradicionais, como as de Céfalo e de Polemarco ou, ao contrário, chocantes
e provocadoras, como a de Trasimaco). Mesma conclusão “aporética”, confissão
de fracasso que Sócrates atribui a um erro clássico de método (perguntou-se
rápido demais sobre o valor da justiça, sobre suas vantagens ou inconvenientes
comparados àqueles da injustiça, sem se perguntar qual é sua natureza). Os
interlocutores divergem profundamente na apreciação que fazem da justiça:
Céfalo e Polemarco ratificam a aprovação social que dela se infere; Trasimaco a
rejeita com violência e quer mostrar que a justiça é apenas uma coação
mistificada, exercida pelos detentores do poder, em seu interesse, sobre seus
súditos, contra os interesses destes. A despeito da dimensão política que intro­
duz, dessa maneira na discussão, a noção de justiça, no curso dessas primeiras
aproximações, permanece a disposta pelo indivíduo para se comportar de uma
determinada maneira (seja ela julgada louvável ou estúpida) em suas relações
com terceiros.
Para responder ao desafio de Trasimaco, ainda mais aguçado por Glauco
e Adimante no começo do livro II, vai ser preciso mostrar que a justiça é um
bem para aquele que é justo, tanto em si mesma (se ela só fosse boa por suas
conseqüências, poder-se-ia tentar atingi-la somente fingindo ser justo) quanto
por suas conseqüências (se ela só fosse boa em si, suas vantagens intrínsecas
seriam talvez pagas caro demais de outra forma); e vai ser preciso dizer, antes

945
de tudo, o que ela é. A virada que vai transformar o diálogo sobre a justiça em
uma Politeia é dada por Sócrates em resposta a esse terrível desafio (II 368 c).
A justiça, observa ele, pode ser, uma propriedade individual mas, da mesma
forma, de uma cidade inteira. Assim como um texto em letras grandes é mais
legível do que um texto em letras pequenas, a natureza da justiça tem
oportunidade de ser apreendida mais facilmente na escala da cidade. Exami-
nar-se-á, portanto, em que consiste a justiça de uma cidade, para relacionar em
seguida os resultados dessa investigação com a escala individual. Essa virada
capital pressupõe, ao menos sob reserva de verificação (IV 434 d), quão justo
e injusto se pode dizer no mesmo sentido, a respeito de um indivíduo e de uma
cidade; pressupõe também que esse sentido é mais fácil de ser descoberto no
nível da cidade do que no do indivíduo. As conseqüências são consideráveis.
Quando se fala de uma justiça da cidade, pensa-se antes de tudo em uma justiça
dentro da cidade: em sua organização interna, na maneira pela qual os
poderes, os bens, as tarefas, as responsabilidades são distribuídos entre seus
membros; pensa-se secundariamente, no máximo, na maneira pela qual ela se
comporta com relação às outras cidades. Repensada segundo esse modelo, a
justiça individual vai deixar de ser essencialmente uma disposição para se
comportar de uma certa maneira com relação aos outros, para tornar-se
essencialmente uma certa maneira de ser interiormente estruturada; Platão e
seus comentadores terão de se perguntar se um indivíduo “platonicamente
justo” é por isso mesmo “ordinariamente justo” e inversamente. As conseqüên­
cias não são menores no plano da investigação política. Imaginemos um
instante que Platão tenha feito funcionar seu modelo no outro sentido (teria
sido fácil inventar algum argumento para obter esse efeito, como dizer que a
justiça individual, estando em nossa escala, é mais fácil de definir do que a
justiça da cidade, que não está): apoiando-se sobre a concepção ordinária da
justiça individual, teria sido levado a reformar a concepção ordinária da justiça
da cidade e a localizá-la nas suas relações com as outras cidades; então teria
sido preciso considerar uma cidade toda constituída, em seu ambiente his­
tórico e na rede de suas relações concretas. Por sua escolha inversa, Platão se
encontra conduzido a ressaltar, em sua pureza essencial, os elementos em
equilíbrio nos quais residirá a justiça interna da cidade; obter-se-á uma cidade
que servirá de modelo construindo-se uma cidade-modelo.
Entendamos. Diz-se com freqüência que A República apresenta uma
“cidade ideal”, perfeita e completamente justa. As coisas são um pouco mais
complicadas. Neste longo giro por grandes linhas, trata-se, fundamentalmente,
de procurar o que é a justiça na cidade; mas duas exatidões se impõem. Por
um lado, essa procura se decompõe em dois momentos; primeiro, vai-se
“considerar em teoria a gênese de uma cidade” (II 369 a), levando em conta
os homens como eles são, com suas necessidades e desejos; ver-se-á, então,
porém muito posteriormente (IV 427 d), quando, onde e como a justiça se
forma e reside, nesse caso. Por outro lado, o estudo da cidade justa chama,
como seu complemento necessário, o das diversas formas de cidades injustas.
Digamos, portanto, em termos anacrônicos, que o autor de A República, no

946
plano político, não é somente o autor de uma utopia (o termo, às vezes
discutido, parece legítimo por passagens como V 472 c-e e IX 592 a-b), mas
também um sociólogo da formação e do desenvolvimento das entidades
políticas e um teórico da patologia das constituições políticas.
Nada menos "idealistas” do que a gênese inicial da cidade, tal como
Platão começa a descrevê-la (II 369 b). Os homens se associam porque têm
necessidades materiais (alimentação, alojamento, agasalho) que não podem
satisfazer individualmente. Associando-se, eles se especializam, segundo as
diferenças de suas aptidões naturais; a divisão do trabalho aumenta a eficiên­
cia. Uma cidade mínima se desenha, feita de camponeses, de artesãos, de
comerciantes, cada um ocupando-se com seu ofício e somente com ele, todos
satisfazendo suas necessidades elementares e levando uma vida simples e feliz.
Nenhuma função que não seja econômica aparece ali; nem governantes, nem
legisladores, nem juizes são mencionados. Platão parece pensar que, sob a
pressão da necessidade, um equilíbrio se estabelece espontaneamente, tanto
na repartição das tarefas em função das aptidões individuais e das necessidades
coletivas quanto na troca dos bens e serviços. Será preciso se perguntar, a
partir desse nível, onde podem residir justiça e injustiça? Adimante sugere que
é nessa troca mesmo (372 a); mas Sócrates deixa polidamente essa sugestão
de lado. Não se pode dizer que Platão esteja inconsciente daquilo que descarta.
Ver-se-ão mais adiante algumas conseqüências dessa recusa.
Uma virada é marcada pela intervenção de Glauco (372 c-d): essa cidade
primitiva é “uma cidade de porcos”; tanto quanto do necessário, os homens têm
necessidade de supérfluo; falta-lhes “a sobremesa”. Sócrates, nesse ponto, aceita
o convite: seguindo com o desenvolvimento de uma cidade de luxo, “inchada de
humores”, tem-se a oportunidade de ver onde começam a se bifurcar justiça e
injustiça; estávamos, anteriormente, abaixo desse ponto. Com o luxo, funções
novas aparecem na cidade: algumas são produtoras, como as anteriores, mas
produzem objetos e serviços supérfluos; outra é de um tipo inteiramente novo,
é a dos guerreiros. Enquanto a cidade primitiva comerciava sem problemas com
seus vizinhos, a cidade do luxo, mais gulosa, vai ter de lhes fazer guerra, anexar
terras, repelir as tentativas de anexação. O princípio da divisão do trabalho
implica que a função guerreira seja assumida por um corpo especializado.
Esse exército de profissionais, destinado no começo a entreter guerras
de agressão imperialista, vai monopolizar a atenção durante longas páginas (II
374 e - IV 427 d); seu papel vai ser ampliado, diversificar-se e nos fazer passar,
quase de surpresa, da cidade “inchada de humores” para a cidade perfeita (III
399-e/ Como se efetua essa surpreendente evolução, que vai conferir à cidade
platônica seus traços mais francamente autoritários? Garantindo a própria
existência da cidade, à qual devem estar inteiramente devotados, os guerreiros
são rapidamente condecorados com o título de guardiães: guardiães da cidade,
certamente, mas também de seu regime e da conduta de seus membros
(aprendemos na passagem III 414 b e na 415 e que a força deles pode ser
utilizada para a manutenção da ordem interna). Comparados com insistência
aos cães de guarda, os guerreiros têm funções importantes demais, difíceis

947
demais e potencial mente perigosas demais para que a atribuição de um
cidadão ao corpo dos guardiães seja deixada ao acaso ou a essa regulação
espontânea que asseguraria a diversificação das tarefas produtivas. As quali­
dades naturais que lhes são necessárias são excepcionais e raramente conju­
gadas; é preciso que elas sejam reconhecidas cedo, sustentadas e desenvolvidas
pela melhor educação possível. A preocupação de legislação, de organização
institucional, passa nitidamente para segundo plano com relação à preocupa­
ção educativa (IV 423 e —427 a).
Do longo programa pedagógico que Platão descreve então, na intenção de
educar os futuros guardiães, só se pode dizer aqui algumas palavras que
desfiguram seu peso e sua minúcia. Relativamente pouco profissional, menos
intelectual ainda, esse roteiro visa essencialmente a formar as crenças, os
caracteres e os costumes. Explicitamente emprestado à tradição educativa (II376
e), ele repousa sobre dois pilares, a “música” (educação artística em geral,
incluindo poesia) e a ginástica; mas é, ao mesmo tempo, profundamente “re­
formista”, na medida em que comporta uma crítica aprofundada da mitologia
tradicional, veiculada por Homero e seus semelhantes, e tida como mentirosa,
imoral e corruptora; vários aspectos da dietética e da medicina contemporâneas
são igualmente criticados. A importância política desse programa se atém ao fato
de ele tornar necessária uma autoridade político-educativa, dotada de poderes de
censura, de regulamentação, de sanção. Esse papel, exercido “em palavras” por
Sócrates e seus interlocutores, deverá ser exercido, na cidade que eles cons­
truíram, por um ou vários governantes (pouco concernente ao aspecto ins­
titucional de sua cidade, Platão é indiferente à forma monárquica ou aristocrática
de seu regime, cf IV 445 d-e, VII 540 d); os cuidados que a formação dos
guerreiros necessita deram, dessa forma, nascimento a uma função propriamente
política. Ela só pode ser confiada aos melhores daqueles que receberam a melhor
educação; a classe dos guardiães se subdivide em dois grupos, os “guardiães
perfeitos” ou “chefes” e os outros guardiães que passam ao nível de “auxiliares”,
cães de fila, desses cães tornados pastores...
A cidade acabada comporta, portanto, três classes, produtores econômicos,
auxiliares armados e governantes-guardiães. Essa divisão não estará cheia de
conflitos? Velar-se-á sobre esse aspecto de diversas maneiras. De um lado, se
difundirão dentro da cidade “boas mentiras”: todos os cidadãos são irmãos, filhos
da mesma terra; sua posição social é determinada pelo “meta!” do qual é feito
sua alma, normalmente idêntica à de seus pais, mas excepcionalmente diferente
deles (o que legitima ao mesmo tempo a estabilidade das classes e a mobilidade
eventual dos indivíduos, sob o controle dos governantes-educadores). Por outro
lado, se imporá aos guardiães e a seus auxiliares um modo de vida comunitário,
sem propriedade nem vidas privadas, que os libertará de todo interesse, indivi­
dual ou de classe, distinto do interesse da cidade, e que os impedirá de
explorarem aqueles que os alimentam, que eles protegem, e governam. A unidade
da cidade, longe de ser ameaçada pela divisão em classes, é por ela mesma
assegurada; apoiando-se (no caso em que isso lhe convém) na idéia de que tal
atributo pertence à cidade quando ele pertence a cada um de seus membros,

948
Platão pensa que, “se cada um, ocupado com o único emprego que lhe é próprio,
fica unido, em vez de se dividir em vários, assim, a cidade inteira permanece
também unida, em vez de se tornar múltipla” (IV 423 d). E é nisso mesmo que a
cidade perfeitamente boa se descobrirá como justa (IV 423 d-e): ainda que, de
todas suas virtudes, umas resultem da de uma de suas classes (ela é sabia porque
seus governantes o são) e outras do conteúdo das relações entre suas classes (ela
é moderada porque os melhores governam os menos bons, com o consentimento
de uns e de outros), sua justiça resulta apenas da existência dessas classes e da
separação de suas funções: que cada um faça respectivamente seu ofício com a
perfeição que lhe é própria, sem se imiscuir com o dos outros (IV 434 c), é nisso
que a cidade será justa. Platão toca apenas de leve na questão do saber se cada
uma recebe em justa proporção aquilo que ela dá (III 416 e, VIII 543 b - c); o
essencial não está no equilíbrio das trocas dos bens e serviços entre as diversas
classes, mas na produção por cada uma, sem interferência das outras (cf.
entretanto IV 421 e), dos bens e serviços do tipo especifico de sua competência.
O giro pelas grandes linhas termina em IV 434 d. Volta-se à psicologia e à
ética individuais e coloca-se em correspondência, com as três classes da cidade,
três partes da alma (racional, irascível e desejosa), cujo equilíbrio hierarquizado
definirá a justiça como saúde (e, portanto, como bem em si mesmo) da alma. O
único ponto que podemos ressaltar aqui é a ausência de rigor que Sócrates
enfatiza em seu próprio método (IV 435 d, cf. 437 a, VI504 b, X 611 b - 612 a);
o que não somente prepara uma retomada da questão em um nível mais
profundo, como ainda enfatiza as diferenças entre a construção de um modelo
“em palavras” e sua aplicação ao conhecimento de uma realidade.
A República poderia terminar aqui (cf. IV 444 a), sob a reserva de um
exame das formas da injustiça, que Sócrates começa, retomando apoio sobre
o paralelo indivíduo-cidade. Mas um incidente dialético, no começo do livro V,
vai fazer tudo saltar e comprometer desenvolvimentos de uma importância
nova e imprevista. No decorrer de sua descrição da condição dos guardiães,
Sócrates havia indicado, de passagem e sem insistência, que deixava de lado
“a posse das mulheres, o casamento, a procriação dos filhos, todas essas coisas
que, segundo o provérbio (pitagórico) devem ser comuns o máximo possível
entre amigos”. Seus interlocutores exigem agora explicações sobre esses
pontos (aos quais eles juntam, de seu próprio chefe, a educação da primeira
infância). Sócrates se faz de rogado: suas concepções nessas matérias arriscam-
se a levantar mais dúvidas ainda do que o que foi dito até o presente; “não se
acreditará que minhas idéias sejam realizáveis e, admitindo-se que o sejam,
duvidar-se-á ainda de que elas sejam as melhores” (450 c-d). Não se poderia
marcar melhor o contraste entre um programa “reformista” (do qual nunca se
provou a necessidade de se perguntar se era “realizável”) e um programa
“revolucionário”, que choca profundamente os usos e as crenças comuns e
cuja ousadia parecia condenar a permanecer “um voto”.
Essa nova etapa política da discussão se desenvolve em três “ondas” de
violência crescente na proporção de seu paradoxo; em cada nível, verificar-se-á
que as disposições previstas são, ao mesmo tempo, possíveis e úteis. Primeira

949
onda: as mulheres poderão ser guardiãs, receber a mesma educação e as
mesmas funções que os guerreiros e os governantes, se tiverem as aptidões
(não nos apressemos, no entanto, em falar de feminismo: para Platão, as
mulheres têm qualitativamente as mesmas aptidões que os homens, mas em
um grau inferior). Segunda onda, mais temível: o comunismo dos guardiães
dirá respeito não somente a seus bens, mas também a suas mulheres e a seus
filhos (abstenhamo-nos ainda de pensar em uma comunidade sexualmente
livre: trata-se de um rigoroso eugenismo de Estado, que implica uniões
dirigidas - com sorteios falsificados, 460 a —, infanticídios, abortos, separação
das crianças de seu pais naturais, impossibilidade para uns e outros de se
reconhecerem entre si). Dentro de tal comunidade, cada indivíduo considerará
aqueles de sua geração seus irmãos e irmãs, aqueles da geração precedente
seus pais e mães e os da geração seguinte seus filhos e filhas; o corpo dos
guardiães torna-se, assim, uma grande família pública, em que os prazeres e os
pesares de cada um afetam igualmente todos. O que será do resto da cidade,
que não vive do mesmo modo? Platão é incrivelmente discreto sobre esse
ponto: “Se os guardiães não conhecem a discórdia entre eles, não se deve
temer que o resto da cidade esteja em dissensão com eles ou consigo mesma"
(V 465 b). Será preciso lamentar não compreender o bastante ou temer não ter
compreendido muito bem? A classe dos produtores é decididamente o “ponto
cego" de A República..
Descrevendo as vantagens dessa comunidade de mulheres e filhos, tornou-
se apenas mais temível a “terceira onda": uma constituição que transtorna tantos
hábitos e sentimentos tidos como naturais será ainda realizável, e como? Questão
sob certo sentido secundária, observa Sócrates: um modelo ideal não perde nada
de seu valor se não se pode demonstrar que é realizável (V 472 d-e). Sócrates
responde a isso, entretanto, pela famosa declaração que é preciso citar in extenso
(V 473 d): “A menos que os filósofos não reinem nas cidades ou que os que
chamamos hoje em dia de reis e soberanos não filosofem de maneira autêntica e
suficiente, e que não coincidam no mesmo homem poder político e filosofia; a
menos que a multidão daqueles cuja natureza se dirige separadamente para um
ou para outro não seja rigorosamente excluída, não haverá trégua, meu caro
Glauco, para os males que afligem as cidades e mesmo, creio, o gênero humano;
e essa constituição que descrevemos em palavras, jamais nascerá na medida do
possível antes disso nem verá a luz do sol. ” Não se destaca amiúde que Platão
aqui inverteu a questão: ele não se pergunta se e como a cidade ideal poderia
realizar-se, mas se e como uma cidade real poderia “ser idealizada” (cf. 473 a);
ele não procede do alto para baixo (sobre o modelo, por exemplo, da fundação
de uma colônia nova, construída com todas as peças), mas sim de baixo para
cima, pela metamorfose de uma cidade existente. A unidade do poder e da
filosofia é a condição sine qua non, improvável, mas não impossível, para sair do
ciclo infernal da corrupção política. Certamente, uma vez essa condição satisfeita,
o rei-filósofo se dedicará a realizar o programa platônico; porém, ele tem mais de
um meio à sua disposição. Aquilo que Platão descreve em VI 541 a (expulsar
para o campo todos os habitantes com mais de dez anos e tomar seus filhos para

950
educá-los dentro dos princípios da nova cidade) só é apresentado como “o mais
rápido e o mais fácil”. Para traçar uma cópia humana do modelo ideal, ele diz
noutro lugar que, na verdade, é preciso começar por “limpar a tela” (VI 501 a),
mas que isso “não é nada fácil”, e o trabalho do pintor político é descrito mais
em termos de precaução do que de decisão (501 tx). Não tendo procurado
dissimular o que pode chocar o leitor de hoje no conteúdo de A República,
devíamos também restabelecer esse ponto, que só aparece bem se se reparam
nos textos as marcas de uma distinção entre a condição e os meios de realização
da cidade ideal.
Platão, para dizer a verdade, preocupa-se menos em mostrar o rei-filósofo
em ação do que em justificar seu paradoxo, mostrando o que é o filósofo, por
que tem ele tão reduzida a reputação de estar habilitado para reinar, e por que,
na realidade, é o único a estar habilitado plenamente. A empreitada não
funciona sem alguma ambigüidade. Às vezes a idéia de que só o filósofo pode
possuir uma técnica científica (e não somente empírica e demagógica) do
governo no dia-a-dia se patenteia: ele é comparado a um piloto que, na
condução da nau do Estado, conheceria “os tempos, as estações, o céu, os
astros, os ventos e tudo o mais que se relaciona com sua arte" (VI488 d). Mas
o tema dominante é sensivelmente diferente. O que caracteriza o filósofo é o
tipo de realidade de que ele gosta e que ele conhece: não as realidades
mundanas, sensíveis e particulares, porém as formas inteligíveis, eternas e
imutáveis, como o Belo, em si distinto das coisas belas, e outras normas
transcendentes. Se esse conhecimento de tipo contemplativo o qualifica para
reinar, é porque atinge o modelo ideal do qual se trata de estabelecer e de
conservar neste mundo a cópia (VI 484 c-d)\ habilita-o, portanto, a um papel
de legislador e mantenedor da constituição, mais do que a um papel de
governante no dia-a*dia; para que ele possa acumular as duas funções, Platão
deverá tomar cuidado em conjugar nele o conhecimento teórico e a experiência
prática, em fórmulas que pressupõem que uma não implica a outra (por
exemplo, VI484 d). Mediante tais precauções, pode-se, em princípio, remediar
o mal-entendido trágico que desacredita o filósofo na opinião pública comum
das cidades de fato (VI 487 b): porque são corrompidas é que elas tomam o
filósofo por um sonhador incapaz; conseguem até mesmo corromper aqueles
que são naturalmente dotados para a filosofia, a tal ponto que o aparecimento
e a sobrevivência de um verdadeiro filósofo nas cidades são tidos como milagre
improvável (VI 496 b), e que o nome da filosofia se vê comprometido nesses
lugares por usurpadores indignos de portá-lo. O movimento próprio da cidade,
de fato, não a utiliza, portanto, para a sua própria cura; mas o acaso providen­
cial que a colocará entre as mãos do médico competente não será necessaria­
mente seguido de um fenômeno de rejeição. Fica, assim, provado que “nosso
projeto é o melhor se for realizável” e que “sua execução é difícil, mas não
impossível (VI502 c).
Poder-se-ia, uma vez mais, parar por aí. Mas Sócrates toma a iniciativa de
um novo sobressalto: já que lhe fora pedido um programa de educação para
os filhos de pouca idade dos guardiães (V 449 d, 450 c), vai traçar um amplo

951
programa de educação superior, destinado a formar guardiães perfeitos, agora
que se sabe que eles devem ser filósofos também. Nesse programa marcada-
mente intelectual, que toma o lugar do programa acentuadamente moral que
tinha formado os guardiães de modo geral, a função política destinada ao
filósofo foi perdida de vista ou mantida em foco? É somente sob esse ângulo
que se dirão aqui algumas palavras desse trecho capital em todos os aspectos;
e será sugerido que Platão se colocou numa situação tal que só poderá manter
a diretriz política de sua trajetória dentro da exata medida em que ele a
ultrapassa: o que simbolizará com fragor o fato de que, uma vez formado pela
cidade para reinar sobre ela, o filósofo terá esquecido completamente que está
lá para fazê-lo e será preciso que um outro filósofo o relembre disso, sem que
nada seja dito que possa basear teoricamente a diferença entre o ponto de vista
daquele que mantém esse discurso e o de seu destinatário (VIÍ 520 a-d). Mas
estamos nos antecipando.
O termo final desse “longo circuito” é o conhecimento ao mesmo tempo
mais elevado, dentro da ordem absoluta dos objetos do conhecimento, e mais
apropriado à função real (VI 504 d)\ é o conhecimento do Bem em si; e essa
coincidência entre seus dois atributos alicerça pelo alto, se é que se pode dizer
assim, a unidade da figura do filósofo-rei. Não se pode insistir aqui sobre as
nuvens deslumbrantes com as quais Platão envolve esse objeto supremo: as três
imagens famosas do Sol, da Linha e da Caverna (trechos tão célebres que se
experimenta sempre alguma surpresa ao relê-los) só são dadas como substitutos
à exposição direta que Sócrates explicitamente sonega a seus ouvintes (VI 506
e; VII 533 a). Limitemo-nos a observar que uma espécie de deslocamento se
esboça, na articulação recíproca dessas imagens, entre a dimensão filosófica e a
política da exposição: o Sol e a Linha, onde são simbolizadas a ontologia e a
epistemologia platônicas, poderiam figurar; sem que fosse mudada sequer uma
vírgula, dentro de um diálogo que não teria nenhuma relação com a política; a
Caverna, ao contrário, representa a ascensão filosófica a partir da cidade comum,
onde reina a ilusão, mas também os valores usurpados (VII517 d). A razão desse
deslocamento parece se ater à posição do bem, que é ao mesmo tempo uma
Forma entre as Formas e a Forma do bem. Enquanto Forma do bem, seu
conhecimento é o de uma norma; enquanto Forma do bem, o de um objeto
inteligível. Sob esse último aspecto, a formação do filósofo é uma ascensão do
visível em geral, no “lugar inteligível” (VI 509 d, VII 526 e).
Dentro dessa ascensão, as disciplinas matemáticas (aritmética e geome­
tria, mas também astronomia e acústica matemáticas) desempenham, para
Platão, um papel ao mesmo tempo propedêutico (por utilizar ainda figurações
sensíveis e por se apoiar nelas para assumir, sem fundamento racional, seus
princípios de base) e essencial (porque visam, por meio dessas figurações
sensíveis, a chegar as realidades inteligíveis que são seus modelos, não
possuindo sua contrapartida para encaminhar a alma em direção ao inteligível,
por pouco que se depurem seus aspectos mecânicos ou empíricos que lhe
alteram a pureza na prática contemporãnea).No entanto, não se pode ler a
longa passagem que lhes é consagrada (VII 521 c — 531 a) sem se ficar

952
espantado com as numerosas observações, aparentemente intempestivas, que
sublinham a utilidade pelo menos secundária dessas disciplinas para os
homens de guerra (que os futuros filósofos começarão por ser); ora apresenta­
das pelo próprio Sócrates, ora por Glauco e acolhidas, então, segundo o caso,
com aprovação ou com ironia, essas observações têm uma qualidade incerta.
Sublinhando-a ironicamente, não teriam como função mascarar o afastamento
que se cava irresistivelmente, apesar de se ter Platão, entre o filósofo e o
homem de ação?
O que acontecerá, então, quando o futuro rei se tiver tornado dialético,
isto é, conhecedor e contemplador encantado das Formas puras, de suas
relações inteligíveis, de sua ordem divina, de sua eterna perfeição? Isso já foi
dito: eles não sonharão mais em descer outra vez às Cavernas, e será preciso
que outro filósofo os relembre de que é para eles um dever de justiça fazer sua
parte (ao menos em turnos) do trabalho político. Como todos os filósofos, por
definição, viram “a verdade nas coisas belas, justas e boas” (VII 520 c), é
surpreendente, para não dizer mais, que alguns entre eles tenham alguma
coisa a ensinar aos outros sobre uma questão dessa ordem; e nada indica em
quais fontes os primeiros consultam as verdades que comunicam aos segun­
dos. Esse era, por assim dizer, o preço a pagar para chegar a uma conclusão
que é muito importante para Platão (a julgar pelo tom solene de Sócrates em
520 d —521 b): é que o poder político só é bem exercido por aqueles que não
gostam dele, que o ocupam pelo dever e não por gosto e que até mesmo o “
desprezam” ou o “olham de cima” (o mesmo verbo grego diz as duas coisas ao
mesmo tempo, 521 b). Cabe a cada leitor decidir por sua própria conta se esse
preço é elevado demais ou não. Se é tão difícil saber em que sentido e até que
ponto A República é uma obra política, talvez seja por isto, em definitivo: sua
lição é que a política é uma coisa importante demais para ser confiada àqueles
que ignoram haver coisas bem mais importantes.
Depois de ter tocado a chave da abóbada do Bem, a arquitetura de A
República cai outra vez lentamente, com a majestade do carvalho de La
Fontaine (Aquele cuja cabeça estava próxima do céu E cujos pés tocavam
o império dos mortos). Diremos que a arte de Platão talvez não brilhasse em
qualquer outra parte com mais forte brilho, à custa de um pouco de
densidade teórica, do que nesses livros VIII-X nos quais, no entanto, retoma,
agravando-a, sua condenação da poesia (595 a —608 b)l Isso seria um pouco
severo para a descrição geminada das diversas formas da injustiça na cidade
e no indivíduo, que ocupa a totalidade do livro VIII e uma parte do livro IX,
e que é a última seção por meio da qual A República toca, ainda que
indiretamente, a política. Trata-se, em princípio, de uma gênese às avessas
da cidade perfeitamente injusta, mediante uma descrição da degenerescência
progressiva das constituições. A aristocracia filosófica, suposta realizada,
deve corromper-se como tudo o que nasceu (o que enfatiza de novo o
afastamento estatutário que a separa de seu modelo ideal); Platão a faz
tropeçar inicialmente num erro de cálculo na planificação do eugenismo, o
que confirma que a questão não tem, em seu espírito, a mínima importância.

953
Esse ponto de partida lhe permite apresentar as etapas sucessivas da
deterioração dos regimes em paralelo com uma galeria de retratos que são
os muitos filhos degenerados com relação a seus pais; e o movimento que
leva cada etapa para a seguinte corresponde à gênese ético-psicológica de
um novo tipo de homem por ações e reações geracionais umas sobre as
outras. Para esse duplo ponto de vista estático e dinâmico, Platão caracteriza
sucessivamente quatro constituições e os quatro perfis individuais que lhes
correspondem: a “timocracia”, dominada pelo amor das honras e pela
precedência confiada à parte “irascível” da alma; a oligarquia, governo dos
ricos em que o desejo por dinheiro tem preferência sobre todos os outros; a
democracia, em que a liberdade se confunde com a licença e em que todas
as concupiscências se divertem anarquicamente; a tirania, enfim, onde a
anarquia democrática se converte em seu contrário e produz, na pessoa do
tirano, a antítese absoluta do rei-filósofo. Explicitamente ou não, todas essas
descrições, que falam sobre cidades, indivíduos, processos de evolução ou
de revolução política, se referem mais ou menos diretamente a modelos
históricos reais. Uma faceta do pensamento político de Platão se manifesta
nesse ponto e fixa um modelo que não será menos influente do que aquele
da construção ideal do melhor regime, a- saber, o de uma tipologia que
permite compreender e dominar intelectualmente a diversidade do real, em
suas formas e mudanças. O fato de essa tipologia ter aqui um caráter
ético-psicológico e de se dispor ao longo de uma escala de valores claramente
assumida, e também o fato de ela não comportar nenhuma tentativa para
determinar quais são as instituições características de cada regime não
impedem A República de desenhar em pontilhado (“Como que brincando”,
para retomar as palavras de Pascal) os delineamentos de uma ciência
política, assim como o modelo, mais espetacular seguramente, de uma
política normativa.
O que se pode chamar de a fortuna crítica de A República começa com
o próprio Platão: ele não confiou a ninguém mais o cuidado de inaugurar a
interpretação desse diálogo, que praticamente não cessou desde então, e cuja
história posterior, de Aristóteles até nossos dias, não está longe de se confundir
com a própria história da filosofia política. Por motivos em que se podem
misturar o aumento de sua experiência pessoal (as desventuras sicilianas?) e
as exigências internas de seu pensamento (que se desenvolve, aqui como em
outros textos, esforçando-se por lançar passarelas sobre as fossas que ele
mesmo cavou), está fora de cogitação que com A República ele tenha dito sua
última palavra em matéria política; disso dão testemunho, cada um à sua
maneira, o Timeus, o Político e as Leis. O complemento capital é sem dúvida
o seguinte: se o saber absoluto legitima o poder absoluto, esse só pode ser
colocado nas mãos de um homem com o risco de uma corrupção absoluta. A
Callipolis de A República é uma cidade boa “para os Deuses e os filhos do
Deuses" (Leis V, 739 d); para integrá-la à fatalidade da natureza humana,
Platão tenta justapor a ela uma “segunda cidade”, que não será mais aquela
em que o filósofo reina como autocrata onisciente, mas aquela em que a lei

954
impessoal se impõe a todos, até mesmo aos governantes (cf. Politique 294 a —
301 e, Leis III 691 c, IV 713 c, IV 713 c, IX 875 a-d).
A coexistência de A República e das Leis no legado de Platão à posteridade
tem sem dúvida contribuído fortemente para empurrar a primeira dessas duas
obras para o pólo daquilo que se chamou, bem mais tarde, de utopia-, antes que
a palavra tivesse sido inventada, Cícero dizia sobre a cidade de ,4 República, não
sem sutileza, que ela era optanda magis quam speranda, mais para ser desejada
do que esperada; o próprio Platão parece ter dito o que era preciso para
desencorajar os amadores a tentarem realizá-la. É preciso dizer que A República
marcou mais o pensamento político do que a ação política; teve mais leitores do
que construtores. Alguns discípulos de Platão exerceram bem o poder, com
sortes diversas; a um certo Quéron de Pelenas, aluno da Academia e campeão de
luta, Alexandre confiou o governo de sua pequena província, onde ele parece ter
aplicado os preceitos platônicos com a máxima energia; mais cheio de veleidades
ainda parece ter sido o projeto de uma Platonópolis, em terras da Campânia (na
Itália), que Plotino cultivou por algum tempo (para o espanto, certamente, de
mais de um leitor das Enéadas)-, e até mesmo em nossos dias tem sido possível
encontrar entusiastas que se disponham a ir fundar, em lugares remotos, novas
colônias platônicas. Sobressaem também na história, é claro, vários imperadores
mais ou menos filósofos, déspotas mais ou menos esclarecidos, que se tomaram
(ou que seus cortesãos tentaram fazer tomar) por encarnações do tal monarca
platônico. Porém, pensando bem, parece bastante rara a espécie de governantes
ou de políticos cujo livro de cabeceira tenha sido A República-, não é por acaso
que a exceção que confirma a regra sem dúvida seja a de David Ben Gurion, o
fundador do mais improvável dos Estados atuais. Autor de um artigo intitulado
Platão e a escravidão (o único provavelmente, na bibliografia sobre A República,
que traz a assinatura de um chefe de Estado), ele não deixa de sublinhar ali que
o exército israelense, ao recrutar mulheres, foi o primeiro da história a seguir
nesse ponto o conselho de Platão, embora omitindo que não foi certamente
porque Platão o disse que Israel o fez.
A leitura utópica de A República, quer seja ou não justificada, tem
ajudado poderosamente a obra a sobreviver ao longo dos séculos sua contri­
buição propriamente filosófica se encontrava desligada, em grande medida, das
proposições especificamente políticas que as acompanhavam no texto; estas
últimas não beneficiavam automaticamente Platão com um imenso prestígio,
mas também não corriam o risco de lhe trazer sombras. Podiam-se colocar por
conta da fantasia ou do espírito de sistema (e até mesmo de aberração), os
aspectos da cidade ideal mais decididamente indigestos para a moralidade
corrente, ainda mais quando essa foi marcada pelo cristianismo: por exemplo,
a comunidade das mulheres. No limite, podia-se chegar, como Pascal, a privar
a própria política de Platão, enquanto tal, de toda significação profunda,
dcscrevendo-a como "a parte menos filosófica e menos séria” de sua vida: não
se escreve política apenas para “regular um hospital de loucos”. Foi finalmente
nossa época (digamos, depois de Nietzsche) que foi preciso esperar para ver
essa política levada mais do que a sério: tragicamente. Platão encontrou-se

955
misturado, sob as formas mais contraditórias e, às vezes, mais inesperadas,
com querelas ideológicas e políticas de nosso século.
Para esse fenômeno puderam contribuir múltiplos fatores, entre os quais
podem ser sugeridos os seguintes, a) Nosso tempo viu se instaurarem, mais ou
menos duravelmente, regimes políticos de uma novidade tão formidável que
pareceu intectualmente necessário, para defendê-los, combatê-los ou simples­
mente compreendê-los, religá-los, tanto ou mais do que a suas causas próximas
e a suas motivações confessas, a arquétipos vindos do começo dos tempos; para
prestar contas de uma realidade que ultrapassava a ficção, foram os sonhos os
mitos, as utopias que se convocavam, perguntando se eles não estavam
fazendo sua irrupção na história. Os totalitarismos fizeram nascer a questão
retrospectiva: Platão era totalitário? b) Se se admite que o totalitarismo, sob
diversas formas, visa a suprimir os conflitos internos de uma sociedade em vez
de negociar suas soluções, não é surpreendente que se tenham podido
estabelecer múltiplas coincidências, superficiais ou profundas, entre, de um
lado, as estruturas e os atos de tal regime e, de outro, a descrição platônica de
uma cidade que ignora os conflitos e tem como função expressa prevenir seu
aparecimento; a panóplia das medidas disponíveis não é ilimitada, afinal de
contas. Concentração do poder, seja nas mãos de uma elite que se suponha
deter a ciência das leis da história, seja nas de um dirigente com a reputação
de dispor de uma intuição infalível, subordinação absoluta do indivíduo ao
Estado, supressão da barreira entre vida privada e vida pública, racismo e
eugenismo, dirigismo educativo, doutrinação e militarização da juventude,
censura e dependência da produção intelectual e artística, repressão da
inovação e da crítica, recurso à violência policial contra os oponentes e
refratários, tendências à autarquia e à supressão dos contratos, de qualquer
natureza que fossem, com o estrangeiro, eis alguns dos traços comuns que, às
vezes para se regozijar e mais freqüentemente para se indignar, se acreditou
poder determinar entrç^ República platônica e os Estados totalitários moder­
nos. c) Se se negligencia alguns propagandistas sem grande importância,
pode-se constatar que Platão só é questionado pelos adversários dos regimes
aos quais sua política é suspeita de se assemelhar; isto tanto é verdadeiro nas
críticas marxistas, que o classificam como ideólogo reacionário, quanto nas
críticas liberais, que vêem nele um dos inimigos mais influentes da “sociedade
aberta" (K. Popper); sua hostilidade à democracia de seu tempo não encorajou
os democratas do nosso tempo, quer fossem liberais ou socialistas, a valer-se
dele. Ele não teria sido sem dúvida tão freqüente, nem tão facilmente colocado
em postura de acusado, no plano político, se seu prestígio filosófico tivesse
permanecido intacto e, de certa forma, fora de debate. O fato de lhe terem
imputado erros filosóficqs bastante fundamentais para que o pensamento
moderno adote de boa vontade palavras de ordem como as de derrubada do
platonismo ou de ultrapassagem do platonismo, ou de nova subida aquém do
platonismo não deixa de ter evidentemente relação com essa situação. Uma vez
levantado esse tabu, como tantos outros, Platão tornou-se outra vez um
“contemporâneo”, que se podia tratar, segundo palavras de Russell, com tão

956
pouca “reverência” quanto qualquer pessoa. Simultaneamente, aliás, o que
Popper chamou de “charme” de Platão guardava ainda bastante poder para
aqueles que, afirmando-se libertos, se pudessem beneficiar do efeito gratifi-
cante de sua ousadia “parricida", d) A situação moral dos “defensores” de
Platão apresentava, por seu lado, vantagens que não eram também negligen-
ciáveis. Não só trabalhando para salvar “a honra de Platão” (V. Goldsmidt), mas
também, de bom ou mau grado, para aquele da corporação à qual pertencia,
que podia igualmente mostrar, denunciando os anacronismos sobre os quais
repousava o processo intentado a Platão, que tinha um sentido histórico mais
refinado do que seus adversários; discutindo as interpretações tendenciosas
que davam dos textos muitas vezes ambíguos, que se tinha por si da ciência
filológíca; desculpando Platão da falta grave de totalitarismo, sem contestar
sua gravidade no caso em que ele teria sido fundado, que não se estava menos
ligado do que seus acusadores aos valores da democracia.
Descrevendo, assim, algumas das motivações, poderosas e misturadas,
que alimentam a querela do “totalitarismo" de Platão, procurou-se simples­
mente fazer compreender que ela pôde mobilizar, de um lado e do outro,
combatentes numerosos e munições inesgotáveis. Não é aqui o lugar para
arbitrar o debate, quer seja para vir em socorro de uma das partes ou para
declarar a querela inútil e a questão mal colocada: em cada leitor moderno de
Platão agitam-se fibras demais para que ele possa ajustar suas contas com o
autor de A República por meio de pessoa interposta. Limitar-se-á a apresentar
uma observação, que não está destinada a dar comodamente razão nem a uns,
nem a outros, porém mais para indicar um dos benefícios que se pode tirar
desse trabalho, qualquer que seja a conclusão à qual se chegue.
Quando se examinam os argumentos dos acusadores de Platão, não se
pode deixar de ficar impressionado com a necessidade que esses últimos
encontram de combater ao mesmo tempo em duas frentes. De um lado, lhes é
preciso impedir que a política platônica se refugie na inocência da teoria pura,
e, portanto, demonstrar que Platão, longe de sonhador inofensivo, foi um
verdadeiro político, munido de programa preciso, preocupado em intervir
numa situação historicamente determinada. Porém, por outro lado, para que
possa imputar-lhe alguma parte de responsabilidade nas faltas e crimes dos
totalitarismos modernos, lhes é preciso sustentar que esse programa é em
substância idêntico àqueles que foram realizados vinte e quatro séculos mais
tarde, por homens que se preocupavam com Platão o mínimo possível, e em
Estados que, por sua extensão, população, nível técnico, instrumentos de poder
e circunstâncias de aparecimento, não se pareciam com nada que Platão tenha
jamais podido imaginar. Observa-se também, correlatamente, que os defen­
sores de Platão são obrigados a montar sobre essas mesmas duas ameias. São
vistos a passar boa parte de seu tempo convencendo de seu anacronismo os
adversários, mostrando que se não se levam em conta as raízes do pensamento
platônico dentro de seu ambiente específico, expõe-se a interpretá-lo de través
e a apreciá-lo por uma porta falsa. Mas pode-se da mesma forma observar que
de boa vontade colocam a ênfase sobre o caráter especulativo e “falado” de um

957
modelo teórico que não se poderia em princípio tomar como falho, tirando
argumentos dos efeitos nefastos ou condenáveis de suas supostas realizações,
já que as cópias de um modelo colocado sob o signo do "próprio” Bem só
podem ser elas mesmas boas ou, então, infiéis por definição a tal modelo. Entre
a Grécia do século IV e a idealidade intemporal, amigos e inimigos de Platão
se perseguem assim dentro de um círculo sem fim, que só pode ser nada mais
nada menos do que a armadilha em que Platão não cessa de pegá-los.
O benefício do qual falávamos pouco antes seria então o seguinte: a
querela do "totalitarismo” platônico poderia nos incitar a reler Platão com
outros olhos, menos para julgar a cidade que ele descreve do que para observar
de perto as energias de um texto tão bem feito para desafiar o julgamento, para
obrigá-lo a se confessar provisório e suscetível de apelo. Que se reflita bem
sobre este simples exemplo: depois que se lê A Republica, não se sabe ainda
verdadeiramente, com conhecimento indubitável e indiscutível, se existem ou
não escravos na cidade platônica. Isso pode servir para convencer de que,
afinal de contas, A Republica não é uma república, mas um texto. Colocamos
no começo a questão de saber em que medida ela é um texto político (mais,
por exemplo, do que um texto moral ou metafísico, ou ainda outra coisa
qualquer). Talvez seja conveniente terminar dizendo que ela convida também
a se perguntar o que é (diferentemente de um ato político ou de uma
instituição política, e assim por diante) um texto político.

• Oeuvres complètes, t V I e V II ( e m d u a s p a r t e s ) , P a r i s , L e s B e l l e s - L e t t r e s , t e x t o e s t a b e l e c i d o
e t r a d u z i d o p o r E m ile C h a m b r y , i n t r o d u ç ã o d e A u g u s t e D iè s , 1 9 3 2 - 1 9 3 4 ; Oeuvres complètes. L
I, P a r i s , G a l l í m a r d , L a P l é i a d e , t r a d u ç ã o n o v a e n o t a s e s t a b e l e c i d a s p o r L é o n R o b in , 1 9 4 0 , p á g s .
8 5 7 -1 2 4 1 .

► Répertoires bibliographiques. Lustrum, C õ t t i n -


— H a r o l d C h e r n i s s , “ P l a t o ”, 1 9 5 0 - 1 9 5 7 , e m
ibidem, 1 9 7 7
g e n , V a n d e h o e c k u n d R u p r e c h t, 1 9 5 9 e 1 9 6 0 ; L u c B ris s o n , “ P la to n " , 1 9 5 8 -1 9 7 5 ,
( v o l u m e s p o s t e r i o r e s a s e r e m p u b l i c a d o s ) ; M a r e e i D e s c h o u x , Comprendre Platon. Un siècle de
biblioghraphie platonicienne de langue írançaise, 1880-1980, P a r i s , L e s B e l l e s - L e t t r e s , 1 9 8 1 ,
Alguns estudos e comentários. - R i c h a r d L e w is N e t t l e s h i p , Lectures on lhe Republic o f Plato,
L o n d r e s , M a c m i l l a n , 1 8 9 8 ; E r n e s t B a r k e r , The political thought of Plato and Aristotle, L o n d r e s ,
M e t h u e n , 1 9 0 6 ; I d e m , Greek political theory, Plato and his predecessors, L o n d r e s , M e t h u e n ,
1 9 1 8 ; G e o r g e H . S a b i n e , A history of political theory, L o n d r e s , H a r r a p , 1 9 3 7 , 3 ! e d . r e v . e
a u m e n t a d a , 1 9 5 1 ; P i e r r e L a c h i è z e - R e y , Les idées morales, sociales et poliliques de Platon,
P a r i s , B o iv in , 1 9 3 8 ; K a r l R a i m u n d P o p p e r , The open society and its enemies, 1, The spell of
Plato, L o n d r e s , R o u t l e d g e & K e g a n P a u l , 1 9 4 5 ( n u m e r o s a s r e e d i ç õ e s ) , t r a d u ç ã o f r a n c e s a
( r e s u m i d a ) p o r J a c q u e l i n e B e r n a r d e P h i l i p p e M o n o d , La societé ouverte et ses ennemies, i:
L ’ascendant de Platon, P a r i s , S e u i l , 1 9 7 9 ; T h o m a s A l a n S i n c l a i r , A history of Greek political
thought, L o n d r e s , R o u t l e d g e & K e g a n P a u l , 1 9 5 1 , t r a d u ç ã o f r a n c e s a , Histoire de la pensée
politique greeque, P a r i s , P a y o t , 1 9 5 3 ; R o n a l d B . L e v i n s o n , / n defense o f Plato, H a r v a r d ,
C a m b r i d g e U n i v e r s i t y P r e s s , 1 9 5 3 ; J e a n L u c c i o n i , La pensée politique de Platon, P a r i s , P U F ,
1 9 5 8 ; R o b e r t G r a i g i e C r o s s , A n t h o n y D o u g l a s W o o z l e y , Plato 's Republic, A philosophical
Commentary, L o n d r e s , M a c m illa n , 1 9 6 4 ; L é o S t r a u s s , The City and man, C h i c a g o , R a n d M a c
N a lly , 1 9 6 4 ; R e n f o r d B a m b r o u g h , e d ., Plato, Popper and polilies, Some contributions to a
modem controversy, C a m b r i d g e , l l e f f e r , N o v a Y o r k , B a r n e s & N o b le , 1 9 6 7 ; V i c t o r C o l d s m i d t ,

958
Platonisme et pensée contemporaine, P a r i s , A u b i e r - M o n t a i g n e , 1 9 7 0 ; G r e g o r y V l a s t o s , e d ,
Plato, A collection o f criticai essays, II, Elhics, politics, and philosophy o f art and religion,
G a r d e n C ity , N o v a Y o r k , D o u b l e d a y , 1 9 7 1 ; H e n r i J o ly , Le renversement platonicien, Logos,
Episteme, Polis, P a r i s , V r in , 1 9 7 4 ; W . K . C . G u t h r i e , A history of Greek philosophy, IV: Plato,
the man and his dialogues, Earlier period, C a m b r i d g e U n i v e r s i t y P r e s s , 1 9 7 5 ; O l o f C i g o n ,
Gegewârtigkeit undUtopie, Eine Interpretation von Platons “Staat”, v o l. 1, Z u r i q u e / M u n i q u e ,
A r t e m i s , 1 9 7 6 ; F r a n t i s e k N o v o t n y , The posthumous life o f Plato, L a H a y e , N ijh o f f , p r e f á c i o d e
L u d v i k S v o b o d a , 1 9 7 7 ; N i c h o l a s P . W h ite , A Companlon to Plalo's Republic, O x f o r d , B la c k w e ll,
1 9 7 9 ; J u lia A n n a s, O x fo rd , C la re n d o n P r e s s , 1 9 8 1 .

Jacques B R U N S C H W JG .

PROUDHON, Pierre-Joseph, 1809-1865


Da capacidade política das classes operárias, 1865

A última obra de P.-J. Proudhon, De la capacité politique des classes


ouvrières (Da capacidade política das classes operárias), pode ser considera­
da a síntese de seus trabalhos anteriores e a última formulação de seu
pensamento político. Se esse livro não reproduz nem o detalhe das análises
econômicas desenvolvidas em Système des contradictions économiques (Sis­
tema das contradições econômicas) (1846), nem o conjunto da argumentação
antiestatal contida em Idée générale de la Révolution au XIXe siècle (Idéia
geral da revolução no século XIX) (1851) ou em Confessions d'un révolution-
naire (Confissões de um revolucionário) (1849), encontram-se nele, em ter­
mos condensados, as conclusões dessas análises críticas. Além disso, Proudhon
nele formula, com excepcional precisão, o modelo social que não parou de
elaborar e que passou a chamar, então, de “democracia socialista", “mutualis-
mo” ou, ainda, “democracia operária".
As condições históricas nas quais esse livro foi redigido explicam, em
parte, seu objeto. Em 1863-1864, depois de longo período de refluxo do
movimento operário, consecutivo ao esmagamento da insurreição de junho de
1948 e à instauração do Segundo Império, vários indícios davam margem a
pensar que se operava, clandestina e, em parte, oficialmente, uma retomada do
movimento. Entre esses indícios, Proudhon ressalta a publicação de um
manifesto (Manifeste dessoixante ouvriers de la Seine) na época das eleições
legislativas de 1864. Esse manifesto, assinado por operários-artesãos pari­
sienses, vários dos quais serão membros da 1® Internacional e, depois, mili­
tantes na Comuna de Paris, reivindicava para os operários o direito de serem
candidatos às eleições para sustentar um programa de inspiração operária, um
programa de "reformas econômicas”. A publicação desse manifesto (em feve­
reiro de 1864) tinha despertado vigorosa polêmica e a redação de um

959
contramanifesto conclamando os eleitores operários a confiarem antes nos
candidatos democratas da “oposição” burguesa.
Essas polêmicas incitaram Proudhon a reformular uma questão que
não cessara de encontrar sem nunca a exprimir tão claramente: como uma
classe social, e, particularmente, a classe operária, pode ter acesso a uma
ação política, tomar a direção de um movimento coletivo e impor à totalidade
social suas próprias concepções políticas? Proudhon nunca cessou, desde
sua primeira obra (Qu'est-ce que la propriété?, em 1840) de se interrogar
sobre esse problema, mas a Revolução de 1848 lhe havia trazido um
conjunto de respostas ambíguas. Ao mesmo tempo, as jornadas de fevereiro
e junho, expressão de reivindicações autenticamente operárias, haviam-no
assegurado de sua teoria concernente ao papel histórico da classe operária,
mas o esmagamento de junho, assim como seus próprios fracassos na
Assembléia, lhe haviam demonstrado suficientemente a enormidade dos
obstáculos a serem transpostos. Ele estava consciente do poder das classes
burguesas e muito convencido das fraquezas e das divisões das classes
operárias.
Retomando, então, essa questão da “entrada” de uma classe social na
vida política ou, em outras palavras, da mutação de uma classe econômica em
classe politicamente ativa, condensa sua resposta em três pontos que concer­
nem sucessivamente à consciência de classe, à idéia e enfim à prática coletiva
da classe.
- Uma classe social só teria acesso à “capacidade política” com a condição
de ter, antes de tudo, chegado a uma certa consciência de si, consciência de
seu lugar e de seu papel na sociedade, dos interesses que ela representa e de
seu próprio “valor”. A essa primeira condição, o autor responde que as classes
operárias, com efeito, “haviam adquirido consciência delas mesmas" e que o
ano de 1848 simbolizava claramente a formação e a manifestação dessa
consciência de classe.
- Em segundo lugar, uma classe social teria acesso à capacidade política
quando estivesse na medida de formular, conforme sua consciência, a teoria
de sua situação histórica, de suas relações com a totalidade social, e a “idéia”,
o projeto central de sua ação. Proudhon insiste no fato de que uma grande
teoria política mantém continuidade com uma situação objetiva e dá como
exemplo o liberalismo: em sua luta contra o feudalismo e a monarquia
absoluta, a classe burguesa soube formular um projeto político simples e
coerente, correspondendo adequadamente a seu conflito de interesses com a
nobreza. Uma teoria política só é eficaz e conseqüente quando uma classe
social consegue exprimir “a lei de sua razão de ser”. E, à questão de saber se
as classes operárias conseguiram, por volta de 1865, a formulação desse
projeto político que seria próprio delas, Proudhon responde afirmativamente:
“Sim, as classes operárias possuem uma idéia que corresponde à consciência
que têm si mesmas e que está em perfeito contraste com a idéia burguesa”;
acrescenta, todavia, que essa teoria operária não foi suficientemente sis­
tematizada nem suficientemente desenvolvida em todas as suas conseqüências.

960
A terceira questão concerne à prática política: a classe operária teria, em
1865, uma prática em todos os pontos de acordo com seu projeto e seria capaz,
em caso de situação revolucionária, "de criar e de desenvolver uma nova ordem
política”? A essa terceira e última questão, Proudhon responde negativamente:
"Não, as classes operárias,seguras de si mesmas, e já meio esclarecidas sobre
os princípios que compõem sua nova fé, ainda não conseguiram deduzir desses
princípios uma prática geral coerente, uma política apropriada...”; dá como
prova os comportamentos eleitorais em que se vêem operários votar em
candidatos de origem burguesa resoi vidos a defender uma política anti-socialis­
ta. Desse ponto de vista, os comportamentos operários estão em atraso com
relação à consciência operária.
A partir desse diagnóstico, retoma um problema que não cessou de
encontrar em seus trabalhos anteriores: o do papel do intelectual revolucioná­
rio, e cita, em particular, Saint-Simon, Fourier, Pierre Leroux, Louis Blanc,
Flora Tristan. Sem negar totalmente a influência desses escritores sobre o
movimento operário, sublinha que o movimento social não é de maneira
nenhuma obra de teóricos. Se bem que o “socialismo moderno” tenha nume­
rosas escolas, “as classes operárias não se subordinaram a mestre algum... Elas
seguiram sua inspiração própria... Aí está a garantia de seu sucesso”. A
verdadeira tarefa do intelectual operário seria, portanto, a de participar desse
movimento, dessa “revolução social", não trazendo sua solução, mas somente
sistematizando o que pode parecer disperso, resgatando a unidade dos proje­
tos, fornecendo os conceitos sintéticos, que permitirão pensar melhor e
coordenar melhor a prática. O intelectual é tanto mais qualificado para
enunciar essa teoria quanto mais o movimento social corresponda exatamente
a um projeto central, a uma “idéia” da qual possa resgatar a unidade e as
significações. Proudhon, portanto, ambiciona inscrever seu livro no âmbito
desse movimento, condensar nele sua análise da sociedade francesa sob o
Segundo Império e suas teorias políticas que se confundem, pensa ele, com as
exigências essenciais do movimento social.
À tripla análise da economia capitalista, das relações de classe, da política
centralizadora do Segundo Império, vai opor, ponto por ponto, a economia
mutualista, o modelo de uma sociedade igualitária e, enfim, o projeto de uma
sociedade federal e descentralizada.
1) Proudhon retoma, resumindo-a, sua análise crítica do capitalismo e a
denúncia que havia feito, desde 1840, do “roubo” que assegura a renovação
do capital. Relembra aqui que o capitalismo, sustentado pelo direito de usar e
de abusar, instaura, nos próprios fundamentos da sociedade, uma “guerra”
entre o capital e o trabalho, uma violência na qual se opõem duas classes, as
dos “trabalhadores assalariados” e a dos “propietários-capitalistas-empresá-
rios”. Todas as conseqüências socialmente destruidoras que haviam sido
longamente analisadas em Système des contradictions économiques decor­
rem dessa relação essencial de conflito que faz da classe operária a verdadeira
produtora da riqueza e a vítima permanente do sistema.
O projeto comunista, o de Babeuf ou de Cabet, responde, não sem lógica,

961
a essa apropriação capitalista. À centralização capitalista e imperial, esses
comunistas opõem uma outra centralização que seria operada pelo Estado e
acabaria, assim, com a privação de posse dos trabalhadores. Proudhon toma
aqui por alvo de seus ataques o Système du Luxembourg tal como havia sido
utilizado por Louis Blanc, em 1848, e no qual percebe a organização de um
capitalismo Estatal, não menos afastado da "democracia operária” do que o
capitalismo privado. Proudhon situa esse comunismo numa longa tradição
intelectual vinda de Platão a Campanella, de Thomas Morus a Cabet e que não
cessa de pregar a comunidade dos bens sob a ditadura de um Estado com
poderes ilimitados. Esse sistema comunista “governamental, ditatorial, autori­
tário”, exigindo do indivíduo uma completa subordinação à coletividade,
recolocando a propriedade e a gestão econômica nas mãos de uma burocracia
centralizada, só faria reconstituir os despotismos do passado nos quais o
Estado ou o monarca absoluto era detentor de todos os bens e, dessa forma,
o senhor absoluto de seus súditos.
Ora, segundo Proudhon, as práticas espontâneas dos operários, por mais
limitadas e reprimidas que sejam, não se orientam de maneira nenhuma no
sentido de uma demissão em proveito da seita ou da comunidade.
Depois de ter hesitado, em suas obras anteriores, sobre o sentido a dar
às múltiplas associações operárias que se constituíam nessa época e que
suscitavam periodicamente a inquietude dos poderes públicos, sublinha, então,
o caráter exemplar da revolução social. Os autores do Manifeste des soixante
(.Manifesto dos sessenta) lembravam na verdade as práticas de organização dos
operários, em particular suas sociedades de “crédito mútuo”, funcionando
clandestinamente nas grandes cidades. Proudhon amplia esse propósito e
sublinha que as “associações operárias", sociedades de socorros mútuos, de
crédito recíproco, sociedades operárias de produção, longe de se orientarem
em direção a formuleis comunistas e autoritárias, fundam-se sobre princípios
totalmente opostos: princípios mutualistas e de reciprocidade, pelos quais os
indivíduos e os grupos produtores, sem abandonarem suas iniciativas e
responsabilidades, constroem relações de troca, de contrato, fundando, dessa
forma, o modelo de novas relações econômicas: a mutualidade.
Essas novas práticas sociais, práticas operárias de associação, constituem
a verdadeira inspiração revolucionária, e Proudhon se propõe a desenvolver
todas as implicações e conseqüências econômicas, sociais e políticas.
No plano econômico, esse mutualismo conduz a invalidar simultanea­
mente o capitalismo, que faz do produtor um instrumento da propriedade, e o
comunismo estatal, que faz dele o subordinado de um regime despótico. O
mutualismo impõe, ao contrário, a reorganização do regime de propriedade a
fim de que os trabalhadores retomem posse, individual ou coletivamente, de
seus instrumentos de trabalho e de suas responsabilidades.
Proudhon retoma nesse ponto as teses que lhe são caras, temas já
desenvolvidos, em 1851, em Idée générale de la révolution au XIX siècle e
que traçam seu grande projeto de uma economia socialista e mutualista desde
a agricultura familiar até as grandes “companhias operárias”.

962
Como ele repete aqui, a estatização da agricultura provocaria a ruína do
campesinato e a diminuição brutal da produção agrícola. Seria conveniente, ao
contrário, numa economia mutualista, dar a cada família camponesa o direito à
posse de suas terras na medida de suas possibilidades de exploração. Seria
conveniente instaurar um regime fundiário e um regime de segurança tais que
os agricultores sejam incitados a produzir, para o mercado, estando, tudo
protegido contra os riscos da superprodução e contra as eventualidades naturais.
Seria importante socializar a propriedade camponesa e não a destruir.
E, da mesma maneira, esse socialismo mutualista não se imporia des­
truindo a independência das pequenas empresas e dos pequenos comércios.
Proudhon mantém, ao contrário, sua iniciativa e concorrência para uma
condição de dinamismo econômico, para uma condição do estabelecimento dos
preços justos, contanto que as relações dos preços, as estatísticas de produção
e de preço sejam estabelecidas e difundidas claramente.
Somente para as grandes empresas é que um regime de propriedade
coletiva deveria ser instituído: ali onde se afirma, como nas minas ou na
construção naval, não mais a iniciativa individual, mas sim o trabalhador
coletivo, “a força coletiva". E é sobre o modelo das sociedades operárias de
produção que Proudhon propõe construir essas novas relações sociais.
A propriedade, longe se ser açambarcada por um capitalismo exterior à
empresa, deveria estar entre as mãos dos próprios operários, sem divisão.
Como nas sociedades operárias de produção, porém sobre uma escala total­
mente diferente, os operários deveriam encontrar na empresa o lugar de sua
aprendizagem e de sua formação. Deveriam participar da gestão empresarial
por meio de um conselho eleito, deveriam poder ter acesso a todos os postos
de trabalho segundo a competência de cada um e segundo as possibilidades
da organização do trabalho.
0 termo “democracia mutualista”, que Proudhon emprega para designar
esse amplo sistema econômico, dá ênfase ao mesmo tempo ao pluralismo das
unidades de produção, à reciprocidade de suas trocas, ao estabelecimento
concorrencial dos preços justos e ao desaparecimento do salário. Ele espera
desse sistema econômico pluralizado e autogerido um dinamismo que nem o
capitalismo, nem o comunismo poderiam realizar e uma igualação, um "nive­
lamento” das condições sociais que esses regimes de centralização tornam
irrealizável.
2) Essa revolução econômica seria, portanto, simultaneamente uma
“revolução social”, pondo fim a uma longa história de guerras entre as classes.
Proudhon retraça em grandes linhas a história da Europa, enfatizando que as
revoluções do fim do século XVIII, liberando o “capitalismo burguês” dos
últimos entraves feudais, provocaram a instauração de uma sociedade essen­
cialmente dividida entre o capital e o trabalho. Sem abandonar sua reflexão
sobre a importância da classe média, ele sublinha a cisão, evidente a seus olhos,
entre as duas classes decisivas da sociedade: “ a classe dos patrões, detentores
dos instrumentos de trabalho, capitalistas e grandes proprietários”, de um
lado, e a “classe dos simples operários assalariados", de outro.

963
Dessas três classes, classe de proprietários de bens de produção, classe
média e classe operária, só a classe operária traz em si, segundo essa análise,
o modelo social da futura democracia. Resguardando-se de polemizar contra
pessoas, Proudhon atribui ao funcionamento do sistema capitalista a necessi­
dade, para a burguesia industrial, de só perseguir o aumento do lucro sob a
capa de uma ideologia da liberdade. Se a burguesia teve realmente um projeto
social quando lutava contra os senhores feudais, ela só tem como objetivo, no
regime capitalista, a procura dos meios de defender seus interesses de classe
em meio à “anarquia econômica".
Sobre as classes médias, Proudhon prossegue com a reflexão começada
em 1840. Continua a pensar que os membros da classe média, ameaçados como
estão em seu patamar pelo desenvolvimento do capitalismo, trarão seu sus-
tentáculo e suas competências à democracia operária. Porém, mais nitida­
mente do que em seus escritos anteriores, nega que essa classe média possa
constituir a força maior da revolução social.
É, portanto, apenas no seio da classe operária que percebe a formação
desse processo histórico que leva à revolução social. É a significação mesma
do título escolhido para essa obra e que sugere que a "capacidade política”,
situada antigamente na classe burguesa, é, em 1865, um dado apenas da classe
operária. Proudhon não insiste sobre a definição precisa nem sobre os limites
dessa classe: distingue-a, sem ambigüidade, do campesinato e da burguesia
industrial, mas está consciente da mobilidade existente entre as classes médias
e a classe operária; da mesma maneira, nos exemplos que dá, distingue-se que
reúne, sob o termo classe operária, os operários das grandes empresas, os
artesãos e os operários-artesãos das cidades, não sem um interesse marcado
por estes últimos.
Essa classe operária é uma classe produzida pelo desenvolvimento
econômico, pela ampliação do assalariado à custa do campesinato e das classes
médias. Entretanto, esse reforço quantitativo não é suficiente para fazer da
classe operária o agente da revolução. Na verdade, é menos decisiva a força
numérica do que o conjunto das práticas e dos projetos dos operários. Dessa
forma, o Manifeste des soixante ouvriers (Manifesto dos 60 operários) é
significativo sob vários aspectos: nesse texto, os operários relembram suas
práticas autônomas de organização, evocam os princípios mutualistas de suas
associações e, por outro lado, proclamam sua separação completa em face das
burguesias, grande e pequena. Essas iniciativas operárias, econômicas e sociais
é que são decisivas para o futuro e lhe definem a estrutura.
O mutualismo seria, portanto, dentro do prolongamento de uma situação
de fato, a ampliação do assalariado e a dependência operária, mas principal­
mente dentro do prolongamento das iniciativas operárias de associação, de
resistência e de mutualidade. Nessas práticas operárias, não se desenha o
modelo de uma sociedade submissa a um novo poder autoritário mas, muito
pelo contrário, o modelo de uma sociedade pluralista e igualitária, em que a
vitalidade social seria indefinidamente renovada pela realização das reciproci-
dades econômicas e sociais. Sociedade na qual os vínculos sociais seriam não

964
mais do tipo autoritário e hierárquico, como no capitalismo ou no comunismo,
mas do tipo igualitário, contratual e associativo.
3) Uma reflexão tão geral sobre a organização das relações sociais
impunha responder ao problema político da democracia. E, se Proudhon tinha
negligenciado o problema político antes de 1848, havia amplamente refletido,
a partir dessa experiência da revolução, sobre as condições propriamente
políticas da democracia operária. Depois de ter publicado La guerre et la paix,
em 1861, depois Du príncipe fédératif, em 1863, sintetiza ali suas análises e
suas inquietudes quanto ao poder político e à centralização estatal.
E no processo da revolução de 1848 e, depois, a favor de estabelecimento
do Segundo Império que Proudhon descobre a amplitude da centralização
estatal, particularmente na França, e alerta contra esse perigo. No decorrer
desses acontecimentos, tinha ficado impressionado com o fortalecimento
progressivo da empresa estatal e com a transferência de múltiplas iniciativas
sociais ao campo da burocracia estatal. Introduz, então, em sua análise, uma
nova dimensão e se dedica a demonstrar que o Estado centralizado obedece a
uma verdadeira lei interna de ampliação e de invasão. O Estado não é mais, a
seus olhos, o árbitro dos conflitos sociais nem mesmo somente o órgão político
da dominação da classe possessora, mas sim uma força específica, opondo-se
ao dinamismo da sociedade civil e continuamente levado a ampliar sua
opressão. A centralização estatal é, diz ele, “expansiva e invasora” por nature­
za, “as atribuições do Estado aumentam continuamente, à custa da iniciativa
individual, corporativa, comunitária e social”. Essa centralização destruidora é
ianto mais perigosa por ser sustentada por forças que se opõem em outros
planos; a burguesia sustenta um Estado autoritário que protege seus privilé­
gios, mas, mesmo no seio do movimento popular, existem tentações de se
louvar em um novo “cesarismo”, para trazer, autoritariamente, uma solução
despótica ao problema social.
No debate a propósito das candidaturas operárias, Proudhon observa
uma contradição radical, uma “incompatibilidade” entre os programas dos
candidatos de origem burguesa e o que seria o programa de candidatos
realmente operários. Apesar de suas declarações, os candidatos burgueses se
acomodam com um Estado centralizado do qual esperam ordem, proteção e
privilégios em suas instituições. Ora, os estados centralizados, quer sejam
monárquicos, republicanos ou comunistas, comportam os mesmos dinamismos
destruidores das liberdades, as mesmas tendências ao reforço das burocracias,
das polícias e dos exércitos, a mesma tendência aos confrontos militares.
Desse modo, o mutualismo econômico deveria ter seu complemento e sua
confirmação em um regime político resolutamente anticentralizador e confede­
rai. Proudhon constrói nesse ponto, não sem fervor, o modelo de uma
sociedade plural de que a Comuna seria o fundamento, e a Confederação, o
ponto culminante. As comunas deveriam ter uma ampla autonomia, o poder
de organizar sua vida cotidiana, suas escolas e sua polícia. As províncias
deveriam constituir zonas de autonomia, possuindo seu modo de repre­
sentação e gerindo o intercâmbio com outras províncias, confederadas ou

965
externas. Os antigos Estados desapareceriam para deixar lugar a um escalão
nacional de consulta e de informação. As províncias conservariam o direito de
se retirar da Confederação segundo sua própria vontade. Tal sistema realizaria
o que Proudhon chama de uma “democracia operária, mutualista e federativa”
destinada não somente a liberar as classes operárias da alienação capitalista, a
multiplicar as trocas e as relações sociais, mas também a conjurar as ameaças
das guerras internacionais.
Após a morte de Proudhon, sobrevinda ao momento em que acabava o
manuscrito, De la capacité politique des classes ouvrières passou a constituir
a obra essencial para os operários franceses da 1* Internacional (Tolain,
Camélinat, Murat..) e, depois, uma das grandes obras de referência para os
teóricos anarquistas. Além das discussões inconclusas sobre o lugar dessa obra
e, mais genericamente, sobre as reverberâncias do pensamento proudhoniano
no movimento socialista, desde a Comuna de Paris até os movimentos revolu­
cionários do século XX, não se pode deixar de ficar impressionado com a
permanência dos problemas e das teses ali formuladas: crítica do capitalismo
e de suas conseqüências sobre os vínculos sociais, crítica dos Estados centra­
lizadores, quer sejam capitalistas ou comunistas, invocação de uma sociedade
mutualista (ou, poder-se-ia dizer, autogestora), procura de uma sociedade em
que socialismo e liberdade não seriam incompatíveis.

• Q u ’e s t< e la p r o p r íe té ? ou R e c h e r c h e s s u r le p r ín c ip e du d r o it e t d u g o u u ern e m e n t, 1840;


L e ttr e à M. B la n q u i s u r la p ro p r íe té . D e u x ié m e m é m o ire , 1841; S y s tè m e d e s c o n tr a d ic tio n s
é c o n o m lq u e s, o u P h ilo s o p h ie d e la m is è r e , 1846; L e s c o n fe ssio n s d ‘u n ré v o lu tlo n n a ire, p o u r
s e r v ir à V h isto ire d e la R é v o lu tio n d e février, 1849; Id é e g é n é r a le d e la ré v o lu tio n a u X IX e
siè c le , 1851; D e la j u s t i c e d a n s la R é vo lu tio n e t d a n s l'E glise. N o u v e a u x p r ín c ip e s d e
p h ilo so p h ie p ra tiq u e , 1858; L a g u e rr e e t la paix, R e ch erch es s u r le p r ín c ip e e t la c o n s titu tio n
d u d r o it d e s g e n s, 1861; D u p r ín c ip e fé d é r a tif e t d e la n é c e s sité d e re c o n stitu e r le p a r ti d e la
révo lu tio n , 1863; D e la c a p a c ité p o litiq u e d e s cla sse s o u v riè re s, 1865; T h éo rie d e la p r o p r íe té ,
póstuma, 1865; O e u v re s d e P.-J. P ro u d h o n , nouv. éd., M. Rivière.

► Pierre Ansart, N a iss a n c e d e V an arch ism e, E sq u ise d 'u n e e x p lic a tio n so c io lo g iq u e du


p ro u d h o n is m e , Paris, PUF, 1970; Jean Bancai, P ro u d h o n p lu r a lis m e et a u to g e slio n , Paris,
Aubier-Montaigne, 1970,2 vols.; Jacques Chabrier, L 'idée d e la R é vo lu tio n d ’a p r è s P ro u d h o n ,
Paris, F. Loviton, 1935; Karl Diehl, P.-J P rou dh on , s e in e L eh re u n d s e in L eb e n , léna, G. Fisher,
1888-1896; Edouard Dolléans, P ro u d h o n , Paris, Callimard, 1948; Ceorges Curvitch, P ro u d h o n ,
Paris, PUF, 1965; Pierre Haubtmann, P ro u d h o n M a rx e t la p e n s é e a lle m a n d e , Grenoble,
Presses Universitaires de Crenoble, 1981; Peter Heintz, D ie A u to r ítü tsp r o b le m a tik b e i P ro u ­
d h o n , Kõln, Verlag für Politik und Wirtschaft, 1956; Charles A. Sainte-Beuve, P .-J.Proudhon,
s a v ie e t s a c o rre sp o n d a n c e , 1 8 3 8 -1 8 4 8 , Paris, Michel-Lévy, 1872; Bernard Voyenne, L e
fé d é ra lísm e d e P.-J P ro u d h o n , Paris-Nice, Presses d’Europe, 1973; George Woodcock, P ie rre
J o se p h P ro u d h o n , a b io g ra p h y , Londres, Routledge & Kegan Paul, 1956.

Pierre ANSART

966
PUFENDO RF, Samuel, 1632-1694
Direito da natureza e das pessoas, 1672

Simples continuador de Grotius ou “pensador de gênio" (Gierke, Althu-


sius, pág. 192) e verdadeiro “pai do direito natural” moderno (Treitschke,
Samuel Pufendorf, pág. 252)? Em qualquer um desses casos, ninguém contes­
ta que Pufendorf tenha exercido excepcional influência sobre a história das
teorias do Estado ao publicar um Jus naturae etgentium (Direito da natureza
e das pessoas) que "resumia toda a ciência política da época”: traduzido para
numerosas línguas, lido desde 1750 por Rousseau, que lhe aconselhou o
estudo a Diderot, exercendo desde então influência muito profunda sobre a
Encyclopédie por intermédio da versão francesa de Barbeyrac, a obra ia
estabelecer uma verdadeira “hegemonia” (Treischke) de certas teses pufendor-
fianas sobre a reflexão jurídica e política alemãs durante mais de um século —
até Kant e o idealismo alemão.
O Jus naturae et gentium é, com efeito, a realização de um projeto
formulado desde 1660, em Eléments de jurisprudence universelle, onde
Pufendorf sugeria uma renovação do pensamento jurídico mediante a super­
ação dos trabalhos circunstanciais, caóticos e sem substância, resultantes de
mera acumulação de jurisprudência, propondo a fundação de uma ciência
sistemática do direito e da moral ou, dito em outras palavras (Barbeyrac), de
uma “ciência dos costumes”. Em 1663, a Lettre à Boinebourg havia es­
clarecido que, metodologicamente, essa aproximação sistemática deveria fun­
damentar-se mais no procedimento matemático do que na observação empí­
rica, o que suporia um trabalho de recenseamento infinito, eternamente
inacabado: seria preciso na verdade, a partir de um princípio indiscutível,
deduzir todo o conteúdo do direito e engendrar, dessa forma, um direito
natural universal (já que partindo de um princípio absoluto); para esse fim,
colocar-se-iam, antes de tudo, os fundamentos do direito natural pela definição
do ser humano, pela elaboração das noções gerais de pessoa, de obrigações,
de lei —de onde se deduziriam a seguir as diversas partes do sistema do direito,
no interior das quais somente a contribuição de observações concretas poderia
encontrar lugar.
E esse programa que completa, nove anos depois, a obra maior de
Pufendorf. O livro I, que “contém as preliminares do direito natural"
(Barbeyrac), funciona como alicerce: nela, Pufendorf examina o que é o
homem enquanto ser inteligente, isto é, um ser que, diferentemente dos
"seres físicos" e mesmo dos animais, age em função de certos princípios que
dirigem os atos de vontade e que serão chamados de “seres morais”, “porque
eles regem os costumes e as ações do homem” (pág. 3). É, portanto, a partir
desses “seres morais” criados pelo homem (falaríamos hoje em dia de
“valores”) que se deve deixar construir o sistema jurídico que vai reger a
existência social humana. Portanto, é preciso pesquisar - é este o objeto do
Livro II - o princípio da criação dòs seres morais (princípio de todo sistema

967
de valores); Pufendorf o designa como princípio de sociabilidade: ao mesmo
tempo porque o ser humano é racional e a razão é uma só é idêntica nos
diferentes seres inteligentes e porque um ser inteligente tem a preocupação
de se conservar e de desenvolver seu ser (o que ele não poderia no
isolamento e na miséria que caracterizam o estado natural), é preciso que
ele “forme e conserve, tanto quanto dependa dele, uma sociedade pacífica
com todos os outros”. A sociabilidade resulta, portanto, de uma dupla
tomada de consciência, da essência racional do homem e das condições
precárias da vida. O fundamento de todo direito natural, que nesse sentido
“sai da própria constituição do homem” (pág. 192), será conseqüentemente
a necessidade de se unir para tornar possível uma associação e uma paz
proveitosas para todos (pág. 195): essa é "a lei fundamental do direito
natural", do qual Pufendorf confessa retomar o teor em Cumberland (pág.
197). Resulta disso (Livro II, cap.III, § XV) que “tudo o que contribui
necessariamente para essa sociabilidade universal deve ser tido como pres­
crito pelo direito natural, e tudo o que, ao contrário, a pertuba deve ser
olhado como proibido pelo mesmo direito” (pág. 195). Pufendorf também
vai, a partir do Livro III, centrar todo o seu sistema do direito sobre o tema
do contrato, como compromisso de cada um dentro de um pacto que deve
ao mesmo tempo respeitar a liberdade individual e realizar a felicidade de
todos: a sociedade civil será construída sobre a base desse compromisso do
qual “depende toda a ordem, toda a beleza e todas a satisfação da vida
humana” (Pág. 348 e segs.). E é a partir da mais célebre teoria geral dos
contratos e de sua inviolabilidade (Livro III, cap.IV e Livro IV, caps. I-II) que
Pufendorf examinará a seguir as questões da propriedade (Livro IV e V), do
direito doméstico (Livro VI: o casamento como contrato), das relações entre
a autoridade do poder e a liberdade dos cidadãos (Livros VII e VIII, caps.I-V),
para concluir por algumas indicações sobre o direito internacional (Livro
VIII, cap. VI- XII: “Os contratos entre Estados”).
A importância propriamente política dessa fundação do direito natural se
situa, portanto, na aplicação, nos Livros VII e VIII, da teoria geral dos contratos
na questão do corpo político. O que resulta disso é tão conhecido quanto a seu
conteúdo que nos limitaremos aqui a relembrá-lo em grandes linhas mais para
tentar resgatar em seguida sua significação política, a qual oferece efetiva­
mente matéria para interpretação. Portanto, se é a partir da lei fundamental
do direito natural que é preciso compreender que os homens saíram do estado
natural e estabeleceram as sociedades civis, isso “para se colocar ao abrigo dos
males que se têm para temer uns aos outros”, antes do nascimento do estado
civil (Livro II, cap. I, § VII), convém considerar que a constituição dos Estados
procede da união contratada por vários indivíduos “para sua defesa mútua”
(Livro I, cap, II, § 2). Essa união supõe uma “primeira convenção”, origem da
sociedade civil, pela qual “cada um se compromete com todos os outros a se
unir em conjunto para sempre em um só corpo, e a ser capaz de um
consentimento comum para sua segurança mútua” (§ VII). Mas essa primeira
convenção, dita “pacto de união", só forma o "esboço de um Estado” - a

968
originalidade da teoria pufendorfiana do direito público, notadamente com
relação à de Hobbes, sendo precisamente a de enfatizar a necessidade de uma
segunda convenção pela qual, sobre a base de um “decreto” ou de uma
“ordem” fixando {por maioria de votos) a forma do governo (liv. VII, cap. II, §
VIII), é decidida por aquele "a quem se confere o poder de governar a
sociedade": é preciso, portanto, um segundo pacto pelo qual “aqueles que
estão investidos dessa autoridade suprema se comprometam a vigiar com
carinho o Bem público, e os outros, ao mesmo tempo, lhe prometem obediência
fiel” (ibidem); desse “pacto de submissão" (que será chamado desde então de
contrato político), “resultam plenamente essa união e essa submissão das
vontades, que acabam de formar o Estado e fazem dele um corpo, que é
considerado uma só pessoa”.
Essa distinção dos dois contratos iria ser retomada tanto por Locke (cf.
R. Polin, La politique morale de J. Locke, págs, 208-209), quanto por toda
a Escola do direito natural (cf., por exemplo, sua finalização em Wolff,
Institutiones juris naturae et gentium, § 873-876), do qual, a esse respeito,
Pufendorf iria permanecer o mestre incontestado durante mais de um século
- até que Rousseau (Contraísocial, III, cap. XVI) e, depois, sobre esse ponto,
Kant (Doctrine du Droit, § 20, § 45) viessem abalar o que se havia tornado
um dogma. Dito isso, se a idéia foi sucesso, sua significação política não era,
no entanto, desprovida de equívocos, a ponto de a teoria pufendorfiana dos
dois contratos chegar a alimentar duas tradições políticas bem distintas. Na
primeira abordagem, realmente, ela parece poder ser interpretada como uma
teoria liberal da autoridade política, já que, distinguindo pacto de associação
e pacto de submissão, Pudendorf acreditava na tese, retomada por Locke
(Second Traité, § 211), de que a "dissolução do governo” não conduz à
“dissolução da sociedade”, de que o acordo entre os cidadãos (a sociedade
civil) não procede unicamente (como em Hobbes) de sua submissão a um
chefe e, portanto, que o povo preexiste e sobrevive à utilização e ao
desaparecimento do chefe (cf. contra Hobbes, Livro VII, cap. II, § 12): se,
“quando o rei for coroado” e o poder soberano não estiver mais “nas mãos
da Assembléia-Geral composta de todo o povo”, este último permanece pelo
menos “sempre um só corpo” (em virtude do pacto de união), é claro que a
sociedade civil não está inteiramente, até dentro de sua própria existência,
subordinada ao Estado —autonomia da sociedade com relação ao Estado que
constitui o embrião possível de um dualismo político ou de uma partilha da
soberania entre o rei e o povo (Gierke). Entretanto, naquilo que lhe
concerne, Pufendorf sempre condena a idéia de uma partilha da soberania
(Derathé, Rousseau et la Science politique de son temps, pág. 212, pág. 218
e segs.), e seus discípulos alemães exploraram sua teoria do duplo contrato
dentro de uma perspectiva nada menos do que liberal: em toda escola
wolfiana, mesmo quando o pensamento de Wolf alimentava (por outras
razões) os temas do absolutismo esclarecido, a noção do contrato de submis­
são foi utilizada para legitimar a ordem e os privilégios estabelecidos (já que
se os podia apresentar como procedentes do contrato de submissão) (cf., por

969
exemplo, o caso de Th. Schmalz, analisado por G. Vlachos, La pensée
politique de Kant, 1962, pág. 322 segs.)
Quer dizer que o fato de existir esse ponto equívoco na teoria pufen-
dorfiana deve levar a se concluir que existe “inconsistência de seu sistema
político” (Derathé, pág. 212)? Com efeito, no próprio Pufendorf, apesar de
algumas fórmulas exploráveis pelos defensores da monarquia limitada, uma
tesé essencial permitia manter, apesar de tudo, uma opção francamente
absolutista. Para Pufendorf, que retoma e esclarece nisso uma argumenta­
ção desenvolvida por certos comentadores de Grotius (Boede), o verdadeiro
fundamento do contrato é, realmente, a vontade divina (Livro II, cap. III):
pois, se a vontade humana fosse o princípio último do compromisso, esse
não teria nenhum “caráter sagrado” nem verdadeiramente forte, sendo dado
que a vontade humana pode sempre desfazer o que fez; para que um ato
jurídico tenha, portanto, valor autêntico de obrigação, é preciso considerar
que está apoiado na vontade de Deus e que, se a vontade humana é a fonte
de fato do contrato, esse só é concluído porque Deus quis (“com a aprovação
e pela vontade de Deus”) - a vontade divina é que constitui, portanto,a fonte
de direito. Em conseqüência dessa tese, que Kant retomará, o contrato social
é irrevogável: se a soberania dos Príncipes é não somente de “direito
humano”, mas também de “direito divino", o contrato deve ser mantido por
uma “ordem divina” e não pode, portanto, ser rompido pela vontade humana
- mesmo quando um dos contratantes, na ocorrência, o Príncipe, parecesse
não respeitar os termos do contrato, quer dizer, não governar tendo em vista
o "Bem Público”: “Quando se assume algum compromisso entre uns e
outros, é preciso cumpri-lo religiosamente”, cada um devendo, portanto,
“manter de maneira inviolável sua promessa” (Livro III, cap. IV, § 2). Vê-se
facilmente o que se deduz dessa inviolabilidade do contrato social: os
cidadãos, que deram sua palavra quando do contrato de submissão, não
poderiam jamais ter o direito de não se submeter e, portanto, de resistir ao
Príncipe, quaisquer que possam ser as circunstâncias. Tal conclusão ainda
está implícita parcialmente em Pufendorf (cf. Derathé, pág. 322), mas ela é
deduzida, no entanto, muito logicamente da sacralização do contrato de
submissão, como se pode ver por meio da condenação do direito de revolu­
ção: “Alguns dizem que, como uma pessoa que é despojada da liberdade
retém sempre o direito de sair da escravidão, o mesmo acontece como o
povo... Mas era preciso acrescentar: bem entendido que se o senhor ou o rei
consentissem nisso e renunciassem a seus direitos” (Livro VII, cap. VI, § 6).
O alcance politicamente absolutista do contratualismo pufendorfíano está
transparente neste caso: sustentar que o povo não tem o direito, após o
contrato de submissão, de sair de sua sujeição a não ser que o rei consinta,
isso eqüivale, na verdade, a enfatizar que, após o contrato, todo direito
emana do Estado, portanto, que o pactum subjectionis se traduz por uma
transferência total ou absoluta dos direitos do indivíduo e do povo para o
Estado, do qual dependerá daí frente toda atribuição de qualquer direito.
Também a verdadeira viravolta, na utilização do tema do duplo contrato

970
pela tradição alemã, só acontecerá quando Achenwall (cujo Jus naturae, de
1755, não desdenhava referir-se a Locke e a seus discípulos ingleses) readmi-
nistrará o dogma pufendorfiano: além das modificações simplesmente formais
(Achenwall desenvolve uma teoria dos três contratos, fazendo da ordem
pufendorfiana sobre a forma do regime um pactum ordinationis sive lex
fundamentalis, intermediário entre o pactum unionis e o pactum subjectio-
nis), a reinterpretação de Achenwall consistirá em estimar que em conseqüên­
cia do pacto de submissão, que obriga o soberano a promover o bem público,
o povo possui um direito de resistência à opressão e pode, portanto, denunciar
o pacto de submissão se o Estado não cumprir seus compromissos (§ 88); esse
retorno a Locke num quadro formalmente pufendorfiano só será possível,
todavia, sobre a base da recusa da tese decisiva de Pufendorf sobre a base
divina do contrato (§ 92: “O governo civil tira seu poder e sua majestade do
contrato concluído com o povo e não imediatamente de Deus”): com esse fato,
tornava-se possível para Achenwall dessacralizar o contrato e considerar uma
retomada da palavra pelos cidadãos nos casos em que o Príncipe só teria
manifestamente comprometido sua própria palavra de maneira ardilosa. (§ 92:
“A mentira e a restrição mental são absolutamente proibidas pelo direito
natural”).
A interpretação propriamente pufendorfiana da teoria dos dois contra­
tos não estava morta, entretanto, por isso, já que Th. Schmalz iria, ainda em
1792 (Das reine Naturrecht); condenar o direito de resistência em nome do
caráter sagrado da palavra dada (cf. Fichte, em as Contributions, de 1793,
resumindo, assim, a argumentação de Schmalz: “Tu me dizes: mesmo se ele
mente, não quero ser, eu também, um mentiroso; sua lealdade não deve
suprimir minha lealdade.”). Em uma época em que o próprio Kant, apesar de
suas reticências quanto à teoria dos dois contratos, retomava sobre esse
ponto, no entanto, as conclusões de Pufendorf e condenava Achenwall (no
opúsculo de 1793 Théorie et pratique, em Doctrine du droit e também em
seu comentário inédito do tratado de Achenwall, AK.,t. XIX), só Fichte ia,
nesse ponto, se opor verdadeiramente a Pufendorf e defender a interpretação
de Achenwall, tentando encontrar uma argumentação mais convincente a
favor da dedução do direito de resistência (Contributions, Ed. Payot, pág.
134). Foi assim que até no seio do idealismo alemão, as teses pufendorfianas
foram, antes de conhecer um real declínio, uma motivação de debate,
testemunhando com isso sua excepcional fecundidade.

• D e j u r e n a tu ra e e t g e n tiu m lib r i o c to (1672), Lund, Ed. A. Junghauss, reeditado e aumentado


em um quarto em 1684, Frankfurt, Ed, F. Knockius; traduzido por J. Barbeyrac, L e D r o it d e la
n a tu re e t d e s g e n s, 1706, Amsterdam, Ed. H. Schelte et J. Kuyper, 2 vol. com notas e prefácio
do tradutor (reed. em 1712, segundo um texto revisto e aumentado, Amsterdam, P. de Coup).
Outros textos jurídicos de Pufendorf. — E le m e n lo ru m ju r is p r u d e n tia e u n iv e rsa lis lib r i I I
(1660), Haia, repr. fot, Oxford, 1931, com uma introdução de H. Wehberg, The Classics of
Internacional Law, ns 15 (ti: texto latino; T.1I: tradução inglesa de W.A. Oldfather); D e o fficio
h o m in ls e t c iv ilis ju x ta le g e m n a tu ra lem lib r i d u o (1673), Lund, reed. e tradução inglesa (F.G.

971
More), Nova York, 1927, 2 t; trad. franc. de Barbeyrac, L es d e v o ir s d e i h o m m e e t d u c ilo y e n
Amsterdam, H. Schelte, 1707.
te ls q u ’ils lu i s o n t p r e s c r its p a r la lo i n a tu relle,

► Horst Denzer, M o ra lp h llo so p h le u n d N a lu rre ch t b e i S a m u e l P u fen dorf, Müchen, Beck,


1972; Robert Derathé, J. -J. R o u sse a u e t la Science p o litiq u e d e so n tem p s, Paris, Vrin, 2 - ed..,
1970, principalmente pág. 78 e segs., 209 e segs.; Pierre Laurent, P u fe n d o r f e t la lo i n a tu relle,
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Alain RENAUT.
R

RAYNAL, abade Guillaume Thomas, 1713-1796


História filosófica e política dos estabelecimentos e do comércio dos
E u r o p e u s n a s d u a s ín d ia s , 1 7 7 0 - 1 7 8 0

Publicada primeiro sem o nome de seu autor em 1972 (edição datada de


1770), depois, em uma segunda versão revista e aumentada, sempre sem nome
do autor, mas com um retrato de Raynal, em, 1774 e depois em 1781, numa
edição datada de 1780, de novo aumentada, mas já com o nome de Raynal, a
História... nas duas índias (Historie philosophique et politique des établisse-
ments et du commerce des Européens dans les deux Indes) era sem dúvida,
em seu projeto inicial, por volta de 1763, uma história crítica da colonização
européia, da qual seria possível tirar algumas lições para colonizar melhor.
Lições particularmente úteis para os franceses, depois de seus fracassos na
Guerra dos Sete Anos. Ela foi ampliada, entretanto, desde sua primeira edição,
transformando-se numa espécie de segunda Encyclopédie, muito mais nitida­
mente política do que a primeira, de modo que suas conclusões, múltiplas,
aliás, não dizem mais respeito somente à colonização, mas também ao destino,
às condições das vidas social e política dos países europeus colonizadores.
Ignoramos como essa ampliação foi decidida no espírito do responsável por
ela, o Abade Raynal, mas sabemos que, para realizá-la, ele reuniu vários
colaboradores, convocando em primeiro lugar, Diderot, cuja parte será consi­
derável na versão final de 1781. Sem entrar aqui no estudo da redação por
vários autores dessa grandiosa obra - 2.500 páginas in-quarto*, mais o atlas
—, pode-se indicar de imediato que há vários níveis nessa construção coletiva.
Primeiro, encontrar-se-á uma teoria da colonização que se codifica numa
espécie de manual do bom colonizador; mas a teoria e o manual apresentam
certas contradições, a mais notável sendo os comentários que colocam em

* ln-quarto: Diz-se do formato do livro cujo papel de impressão se dobrou em 4 folhas, formando
8 páginas (N. de T.)

973
questão o próprio princípio da colonização. Num segundo nível, destaca-se do
conjunto do livro um programa político imediato de reformas da França
especialmente, mas do qual a maior parte é também aplicável a outros países
europeus, com medidas tomáveis em médio ou longo prazo; um resumo dele
foi feito por Diderot numa apelação encaminhada a Luís XVI (livro IV, capítulo
XVIII). Mas, sob esse aspecto, já que reitera reivindicações correntes do partido
das Luzes, o que a História... traz de mais original são as reflexões ou
intervenções esparsas sobre os meios necessários para impor a realização do
programa; dito de outra maneira, a alternativa reforma ou revolução é
colocada aqui. Mais profundamente, em seu último nível, a História... contém
uma - ou talvez duas? —teoria da história, da sociedade, da política e da moral,
unificando os pontos de vistas de Diderot e dos outros. Logicamente, é por aí
que se deveria começar.
Mas o método de Raynal nos obriga a uma prévia colocação em guarda.
É claro que seu livro obedece, ao menos em aparência, a um plano, histórico
e geográfico mais do que filosófico, oferecendo-nos uma Introdução para
mostrar como se formou a Europa do século XV e da Renascença antes de
abordar a conquista do mundo e depois a exploração e a dominação das índias
Ocidentais, isto é, parte das costas da África, Ásia e Indonésia. Em seguida, as
índias Orientais, isto é, América do Sul e Central sob denominação espanhola
e portuguesa, as Antilhas do açúcar, que exigem uma volta à África para
estudar o tráfico dos negros, enfim a América do Norte, em 1781, com a
independência dos Estados Unidos. Restará, para concluir, fazer um quadro da
Europa do fim do século XVIII tal como se tornou após três séculos de
progresso da colonização e de avanço do Iluminismo. Mas, bem em vez de
guardar sua conclusões para o fim, a História... as dissemina ao longo de suas
dezoito partes precedentes, interrompendo sua narrativa com uma série de
pedaços mais ou menos longos que se podem ler, isoladamente. Para destacar
apenas os pontos mais marcantes, é preciso reter, desde a primeira parte, a
crítica ao despotismo chinês (portanto, a todo despotismo), a Apóstrofe
(censura) aos Hotentotes; na segunda, a prosopopéia sobre a decadência
holandesa; também nela, a apelação a Luís XVI, já mencionada; na parte IV, a
apóstrofe a Frederico II e o hino ao comércio; na parte V, a crítica aos jesuítas
no Paraguai; na VIII, a denúncia do tráfico e da escravidão dos negros, na XI,
as reflexões sobre os Selvagens que estão nas XV e VXII, as reflexões sobre as
revoluções da América; na XVIII, esses trechos, em sua maioria redigidos por
Diderot, dão por assim dizer o tom dominante da História..., e é a partir desses
textos-chave e de alguns outros, mais curtos, porém não menos impressio­
nantes, que se pode compreender seu imenso sucesso no século XVIII, pois lhe
conferem ainda hoje um grande interesse. No que concerne a Diderot, esse
conjunto de textos políticos constitui, se bem que anônimo, a única expressão
de suas concepções, publicada em vida; além disso, pela força das coisas, é um
texto definitivo, enquanto suas obras póstumas permaneceram suscetíveis de
modificações. Parece-nos legítimo confrontar esse conjunto com outro, inte­
grando também um texto definitivo: as Mémoires pour Cathérine II (Memó-

974
rias para Catarina II), coligidas e enviadas à Imperatriz em 1774, antes de ele
deixar a Rússia. De um modo geral, há plena concordância entre a obra
confidencial e a obra pública.
Partindo outra vez do último nível, o da teoria, constata-se, primeiro, que,
para Diderot, uma história "filosófica” ainda não existe e que é dentro dessa
"trilha” que se devem realizar os progressos do conhecimento. Porém, a
seqüência nos mostra que “filosófico”, aqui, tem dois sentidos que Diderot
parece misturar constantemente. De um lado, o termo desconsidera a história,
reduzida aos Anais dos reis e das guerras, para reivindicar, de uma só vez, o
estudo “do clima, do solo, daquilo que é produzido, dos quadrúpedes, dos
pássaros, dos peixes, das plantas, dos frutos, dos minerais, dos costumes, dos
usos, das superstições, dos preconceitos, das ciências, das artes, do comércio,
do governo e das leis"(liv. XI, cap.X). Essa enumeração permite compreender
por que a história se torna aqui enciclopédia e não uma "ciência humana”,
como se diria hoje em dia, por oposição às ciências da natureza; ela deve ser
englobante e concreta. Assim se afirmará também a recusa, enunciada por
Diderot noutro lugar, de todo corte entre o “físico”e o "moral”, não somente
no caso dos homens, mas dentro do conjunto do mundo real. A enumeração
dos diversos setores do real basta para marcar a fundo a exigência de imensa
coleta de fatos, de observações, de relações, permitindo elaborar o que Diderot,
como Galiani, chama de “visões particulares”: falta muito para ser feito a esse
respeito de modo que, em muitos casos, a História..., menos contundente do
que as Memórias..., deverá se contentar em apresentar os prós e os contras
sem nada concluir. Mas, enfim, a investigação se impõe sempre e por toda
parte. Um pouco mais distante, no entanto, “filosófico” toma um outro aspecto
totalmente diferente, quando Diderot anuncia àqueles que “sustentam os
homens com mentiras” (compreenda-se: os padres) e àqueles que os fazem
"gemer sob a opressão”: “Vocês vão ser julgados. ” A história julga - e condena
—os reis e os padres, ela é, como diz também Diderot, “O livro que faz nascer
Brutus”(Verniére, 1956, pág. 640). Portanto, ela é filosófica, não mais, dessa
vez, por sua cientificidade, mas pelas sentenças e normas (baseadas na razão,
é evidente) que edita. Dessa maneira, pode manter esse papel atribuído ao
filósofo num texto enviado a Catarina II: “Prepara para as revoluções, que
advêm sempre ao ápice da infelicidade, seqüências que compensam o
sangue derramado"(Verniére, 1966, pág. 235). A História... retoma esse tema
em tom mais solene numa espécie de manifesto do partido mundial dos
filósofos, num apelo aos “Sábios da terra, filósofos de todas as nações"
(primeira parte, cap. VIII). Portanto, o programa que dará sentido ao período
posterior. Poder-se-ia, então, perguntar se, no próprio título, política e filosófica
não seriam palavras quase sinônimas.
Mas a política "filosófica” deve repousar sobre uma teoria, como se fosse
uma antecipação do estudo dos fatos. Sob certos aspectos, parece que o trecho
sobre as revoluções da América contém o essencial. No ponto de partida, uma
distinção entre sociedades e governos que permite a Diderot lançar, evidente­
mente criticando Rousseau, que “a sociedade tende sempre para o bem ”

975
porque resulta da única necessidade para o homem, fraco demais individual­
mente, que é a de enfrentar seu inimigo, a natureza: “A luta do homem contra
a natureza é o primeiro princípio da sociedade" (Vernière, 1966, pág. 174).
Em compensação, ‘‘o governo” ou, em outras palavras, o Estado é muitas vezes
mau, mesmo quando “deve seu nascimento à necessidade de prevenir e
reprimir os agravos que os associados tinham a temer uns dos outros ”(parte
XVIII). Sucede que existem desigualdades - físicas principalmente - entre os
homens, e os governantes, sem dúvida em conseqüência de uma natureza
humana apenas de vícios, facilmente se transformam de defensores da lei
comum em tiranos. Então, a sociedade, boa por natureza, torna-se, devido aos
governantes, o próprio sítio desse conflito permanente entre as “condições”
sociais que devoram e as que são devoradas. Para dizer a verdade, a passagem
da sociedade “boa” para a sociedade sob o jugo desse governo que "pode ser,
e é freqüentemente mau" é de difícil compreensão, nesse capítulo em que o
raciocínio parece celebrar-se a ponto de queimar estágios intermediários. O
que se deve notar é que, por direito, a sociedade é a base, e o Estado só é justo
se existe para servi-la. Portanto, resulta desse fato, o que sem dúvida era uma
conclusão previamente fixada, que as “formas de governo" não têm por si
mesmas nada que as transforme num imperativo categórico; que o fato de
poderem ter sido boas numa época e terem deixado de sê-lo não implica o
direito de uma geração, que as admitiu, impô-las a seus descendentes. A partir
disso, chega-se à justificação das revoluções já implícita no texto para Catarina
II: “Se os povos estão felizes sob uma forma de governo, eles a manterão; Se
estão infelizes, não serão nem as vossas opiniões (aqui, as dos ingleses face
à sublevação das colônias da América), nem as minhas, será a impossibilidade
de sofrer mais e por mais tempo que os levará a mudá-la, movimento salutar
que o opressor chamará de revolta, por mais que seja apenas o exercício
legítimo de um direito inalienável e natural do homem que é oprimido e
mesmo do homem que não é oprimido”(parte XVIII, cap.XLII). A partir, dessa
conclusão —que ecoa em muitas outras passagens, às vezes lembrando gritos
- , a concepção de Diderot pode ser reconstituída de outra maneira.
Primeiro de tudo, ele se ocupa, nesse caso, do que chama de o “homem
civilizado", pois deixa de lado as sociedades sem Estado dos índios da América
do Norte, das quais traçou anteriormente um quadro entusiasta —além disso,
não consegue estabelecer como, em virtude de que leis, se realizaram as
transformações das primeiras nas segundas. Transformação, entretanto, pos­
tulada: “Todos os povos selvagens, mesmo se submetidos a seus instintos
naturais, estavam destinados a tornar-se civilizados" (parte XIX, cap.II), se
bem que muitas outras passagens sublinhem que os “selvagens” reais não
manifestem nenhum desejo disso. Em todo caso, as “sociedades”- que se
podem identificar aqui com a nação - são verdadeiros organismos vivos,
obedecendo a certas leis ou destinos (as duas palavras sendo freqüentemente
empregadas no mesmo sentido); atravessam, portanto, períodos de juventude,
de desenvolvimento, de declínio também, com crises mais ou menos violentas.
Dessa visão cíclica, poder-se-ia sem dúvida tirar uma visão fatalista da história,

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em que nem as intervenções do filósofo, nem as dos povos poderiam agir e
modificar o que quer que seja: visão que é a de Galiani e de alguns outros aos
quais Guibert responde no prefácio de seu Essai sur la tactique (Ensaio sobre
a tática) em 1772. Na última parte da História..., ela é exposta em um resumo
convincente de onde resulta que um estado de felicidade, que é o da democra­
cia, não será algo mais do que momentâneo nesse "movimento periódico”
(parte XIX. cap. II). Porém, pode-se também fazer dessa visão geral uma arma
contra os apologistas da ordem estabelecida, contra toda a teoria que vise a
eternizar a organização política existente, que pretende estar fundada em
direito e em razão fora do tempo; é precisamente esse o sentido que Diderot
confere a essas idéias mais ou menos retomadas de Vico. Elas cedem de novo
seu lugar à mudança, quer seja pacífica, progressiva ou violenta, permitem
colocar-se-a questão de saber como “regenerar uma nação" (parte XI, cap. IV):
"Dentro de um banho de sangue", responde Diderot, em Raynal e em outros
lugares. Ele não é sempre tão categórico; pode considerar noutro lugar a
diferença que existe entre transformar uma “nação que nasce", onde não há
nada de fato, e que é mais fácil de “civilizar”, e transformar uma “Nação
formada”ou uma “nação que decai”(Vernière, 1966, pág. 21 e passim); mas
o importante é que, em todos os casos, o risco das revoluções, das crises, dos
grandes males, das insurreições mesmo desordenadas, deve ser admitido e
levado em conta pelo filósofo. Da mesma forma, descobre-se um diálogo
significativo entre dois textos diferentes. Na Réfutation d'Helvétius, provavel­
mente em 1773, Diderot retoma uma questão herdade de Galiani e muitas
vezes exposta depois: “Ê preciso sacrificar aos azares de uma revolução a
felicidade da geração presente em busca de felicidade da geração futuras?"
(Vernière, 1956, pág. 596) Diante de Catarina II, ele responde algumas
semanas mais tarde: “Acho que é melhor fazer um grande mal momentâneo
para alcançar, um grande bem que dure "(Vernière, 1966, pág. 3).
Mas mesmo esses termos bem e mal assinalam aqui uma outra fonte
totalmente diversa da política filosófica e que se poderia qualificar de axiomá-
tica. No capítulo Moral, da-última parte da História..., Diderot proclama, como
já havia feito diante de Catarina II e o fará em Eléments de physiologie: “Só
há propriamente uma virtude, que é a justiça, e um só dever, que é o de
tomar-se feliz. ”0 diabo é que, se há uma justiça de alguma maneira concedida
pela natureza, se há uma felicidade reconhecida por cada unidade do todo, a
justiça e o dever das leis entram muitas vezes em contradição com os da
natureza; e, ainda por cima a eles se acrescentam os da religião. Desse modo,
as más leis, como a que “prescreve ao homem uma coisa contrária à sua
felicidade” (Vernière, 1966, pág. 235), não poderão durar. De toda maneira,
se, hoje em dia, “vivemos sob três códigos, o código natural, o código civil e
o código religioso”, suas contradições são tais, que não pode existir uma moral
pública —portanto, de boa política —enquanto elas durarem, mas também será
preciso que ao menos um dos três, seja descartado, e a História... por meio da
voz de Diderot, mas também da de muitos outros autores, já concentrou a
pontaria sobre o código religioso. Estado, política e moral devem ser leigos.

977
Quanto aos outros dois códigos, uma outra definição do dever, que “pode,
portanto, ser definido como a obrigação rigorosa de fazer o que convém à
sociedade" (que talvez não seja de Diderot, mas que ele, em todo caso,
avalizou), bastaria para retirar a contradição, ao mesmo tempo que para
explicar as variações da noção do Bem ao longo do tempo e do espaço. Mas,
de imediato, o que se tornaria a noção de felicidade, ou ainda a idéia, em parte
do texto provavelmente de Deleyre, de que a procura de uma moral justa visa
a “aumentar a soma de nossos prazeres’? E como é possível que o dever, a
justiça, a virtude, tais como as leis os definem e os ditam, sejam tão criticáveis
que toda a História... tende a transtorná-los?
Neste ponto, por mais longe que a moral esteja dessa ciência que Deleyre
anuncia, outros axiomas ambíguos intervém. Ambíguos no sentido de que eles
se apresentam de um lado como normas da razão e de outro como um
resultado da observação e da experiência. O primeiro desses axiomas - depois
daquele que afasta a religião da sociedade política - é a condenação do poder
absoluto, do déspota, mesmo sendo "justo, firme, esclarecido" (XIX, II). O
princípio está aí: “Algum dia será permitido a um homem, qualquer que seja,
tratar seus comitentes (palavra que significa eleitores em 1789) como uma
tropa de bestas?” Os comitentes são os “povos”aos quais o texto se endereça
um pouco mais adiante, portanto as nações em oposição aos monarcas e
déspotas que os governam. Precisamente, são eles que, por seu poder arbitrá­
rio ou por seus favoritos, impõem esse código civil contrário à natureza. Este
protesto contra todo despotismo, mesmo esclarecido, Diderot já o havia
formulado diante de Catarina II (Vernière, 1966, pág. 118) e repetiu-o nas
obras póstumas. Já, a propósito da China e contra e elogio então freqüente do
"despotismo chinês”, Diderot havia lançado esta questão grave (parte I, cap.
XXI): “Houve um grande número de tiranos depostos, aprisionados, julgados,
condenados à morte? Vê-se na praça pública um patíbulo gotejando sem
parar o sangue dos soberanos?”0 direito dos povos vai necessariamente até
a condenação à morte do soberano, porque ele é soberano, fora do justo por
isso mesmo.
No entanto, se a experiência permite, certamente, trazer à luz os crimes
e malfeitos dos homens no poder, a história, passada e presente, oferece
também o quadro da passividade dos povos, da renovação dos crimes de
Estado, das Revoluções abortadas. Uma visão pessimista das sociedades
humanas, de seus conflitos internos e externos, atravessa a História... assim
como ela atravessa a obra de Diderot ao menos dentro de seus últimos vinte
anos. Visão cuja filiação à de Hobbes é abertamente declarada por Diderot No
ponto em que passa do México ao Peru, a História... anuncia: “Veremos por
uma ordem da providência que não mudarão jamais os mesmos efeitos
produzidos pelas mesmas causas, os mesmos ódios suscitados pela mesma
ferocidade”, etc.; em resumo, “Uma perseverança estúpida dentro do mal e
da lição da experiência inútil.” E, mais adiante (parte VI, cap. I): “As
sociedades devorarão, portanto, as sociedades, o homem será mais malvado
do que o tigre. ”Não estão apenas em causa os conflitos entre sociedades. As

978
próprias sociedades obedecem a essa mesma lei —é uma só para Diderot —,
dispondo que grupos humanos constantemente “devorem e sejam devorados”,
como foi dito, aproximadamente, em Le Neveu de Rameau. Tem-se a impres­
são, diante de passagens desse gênero, de que a idéia de uma natureza humana
quase imutável psicologicamente persiste aqui, em contradição com a do
movimento da história das sociedades e, mais ainda, em contradição com os
esforços renovados do filósofo para traçar um outro futuro e conclamar a que
seja realizado, até mesmo pela força. Em todo caso, entre a socialização
imposta pela luta contra a natureza e os inevitáveis conflitos entre os associa­
dos, permanece sempre um hiato. É forçoso que se reconheça que há, por isso,
vários elos ausentes na argumentação e também que ela se orienta para
conclusões divergentes. Viu-se que as revoluções só podem ser obra dos
“povos” —diríamos das massas —, mesmo se isso requer que o filósofo os guie.
Porém, os povos são, na verdade, de uma paciência infinita; a propósito do
estabelecimento do poder absoluto na Dinamarca, Diderot exclama: “O que é
essa tropa imbecil que se chama de nação?’’, ao constatar que “de um a outro
pólo" reinam a mesma covardia e a mesma estupidez (parte XIII, cap. XXIX).
Ao longo de toda a História... alternam-se os gritos de indignação diante dessa
passividade das massas e os apelos inflamados à revolta dessas mesmas massas,
duas vozes que não cessam aqui de se responder e de se esforçar mutuamente.
Dessa maneira se adicionam —sem se articular verdadeiramente —o nível da
observação empírica e o da norma filosófica.
A este último convém acrescentar dois princípios democráticos vigorosa­
mente enunciados diante de Catarina II: o que é chamado de Comissão, isto é,
um Parlamento representativo da nação, que só "assegura às leis e às
instituições toda a duração que podem ter’’. O que vem a dizer que, apesar de
sua passividade ou de seus erros, os povos sozinhos podem, por intermédio da
representação nacional, fundar um poder justo e durável. O outro princípio,
no qual é supérfluo insistir hoje em dia, sendo o “concurso que assegura ao
mérito sua recompensa" (Vernière, 1966, pág. 60).
Com esses axiomas, penetra-se o programa político imediato da His­
tória..., se bem que, precisamente, a obra não insiste mais nesses dois pontos,
evocados alusivamente. Ele está, certamente, condensado na apelação de
Diderot a Luís XVI, que retoma aí (parte IV, cap. XVIII) temas anteriormente
expostos diante de Catarina II (Vernière, 1966, págs. 149-157). Porém, tal
programa se apóia numa exigência que atravessa todo o livro: a da abolição de
todos os “exclusivos”, isto é, dos privilégios e monopólios econômico-financei-
ros concedidos a seu gosto pelo poder a tal ou qual companhia. O que se
reivindica fundamentalmente é o pleno reconhecimento do direito à livre
empresa, a garantia das propriedades - contra o arbítrio real ou senhorial - ,
das leis “iguais", em particular para garantir os direitos e os interesses dos
credores. Portanto, a liberdade de empreender tanto o comércio colonial
quanto o comércio interior. Tratando-se mais precisamente das reformas
necessárias na França, Diderot pede naturalmente que o clero, os grandes, os
magistrados, “todos os homens poderosos ou protegidos de teu império"hão

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escapem mais ao imposto, que ele seja, portanto, igualmente repartido; ele
traça todo um programa de economia sobre as pensões reais, os castelos e os
domínios inúteis, as estrebarias do rei e o luxo da Corte. Somente no fim surge
a exigência da “Assembléia dos Estados... " do “retorno à liberdade primitiva”
que nos leva outra vez ao princípio da “Comissão”. Em resumo, o programa
inicial da Constituinte de 89 em suas linhas gerais e em seu espírito. Da mesma
forma, poder-se-ia perguntar o que são justamente esses povos dos quais se
trata com tanta freqüência. Trata-se sim, e com vigor, dos vexames que sofrem
os camponeses (parte IV, cap. XVII, por exemplo), as plebes estão implicita­
mente presentes em numerosos apelos à insurreição, mas, enfim, o povo - ou
a nação —são primeiro os empreendedores, agrícolas ou industriais, aqueles
que aumentam riquezas e prazeres, em resumo, que são plenamente úteis à
sociedade, o oposto dos cortesãos, dos privilegiados improdutivos, dos agentes
do fisco, dos monges, etc. Portanto, para simplificar, a burguesia da véspera
da revolução.
A História... anuncia em seu título que ela será a do comércio dos
Europeus. Entendam-se por esse termo não só as trocas internacionais, mas
também as produções que alimentam. Desse ponto de vista, ela é habitada por
uma visão histórica que difere da de Diderot, se bem que ele não permaneça
totalmente estranho a ela: a do progresso contínuo engrendrado pelo comércio
e a indústria (isto é, toda atividade produtora). O próprio Diderot fez um hino
ao comércio (parte V, cap. XXXIII), que responde a Rousseau por meio de uma
apologia do crescimento: "Exigir que a razão nos persuada a rejeitar o que
poderíamos acrescentar ao que possuímos é contradizer a natureza"-, e dos
prazeres: “Desejo de ter prazer, liberdade de ter prazer, só há essas duas
causas de atividades..." Hino ao comércio que se completará mais adiante em
hino faustino à humanidade, mais exatamente às “nações ativas e laboriosas”.
Todo o período histórico coberto pela História... do começo do século XV ao
fim do século XVIII não é aquele em que se desenvolve toda a atividade
industriosa das nações européias? Ele não foi, a despeito de todos os horrores
vigorosamente denunciados das conquistas, da Inquisição, das guerras de
religião, marcado pelo progresso do Iluminismo por aquele das riquezas e dos
prazeres? Não é preciso simplesmente levá-lo a seu término pelas reformas
propostas (que comportam também a abolição dos impostos indiretos)? Essa é
a outra filosofia da história presente aqui —como em todo o movimento do
Iluminismo e que era a do último livro, o Tableau de VEurope (Quadro da
Europa), em sua versão de 1774. Esse evolucionismo foi suficientemente
divulgado na filosofia iluminista para que seja necessário insistir nele. Bastará
dar um exemplo significativo disso. A História... que ilustrou tão bem o quadro
dos massacres e injustiças cometidos pelos europeus na América não deixa de
descobrir que esses acontecimentos atrozes contribuíram finalmente para o
progresso geral: “É em parte à descoberta do Novo Mundo que se deverá a
tolerância religiosa que se irá implantar, no Antigo... As depredações
promovidas pelos espanhóis em toda a América esclareceram o mundo sobre
os excessos do fanatismo. ” Toda essa passagem, provavelmente de Deleyre,

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traça a perspectiva de uma progressão, relativamente lenta, mas certa, do
espírito de tolerância, pelo menos na Europa, e, portanto, se opõe, sem que
isso seja dito ou conscientizado, à visão trágica trazida por Diderot A
divergência tem menos implicações sobre o programa imediato de reformas do
que sobre os caminhos e meios; revoluções violentas quase inevitáveis e para
uma, transformações graduais para outra. A História... é, dessa forma, uma
obra “estilhaçada”, comprometendo o leitor em direções opostas, e ainda seria
preciso acrescentar-lhe uma terceira visão, que surge por momentos: a analogia
dos povos ditos “selvagens” (leia-se sem Estado) em oposição aos vícios dos
povos “civilizados”. Essas três visões não podem, aliás, ser identificadas, com
todo rigor, com este ou aquele autor.
Naturalmente, elas vão se traduzir também por concepções divergentes
sobre o futuro da colonização. Muito logicamente, a visão primitivista implica
condenação sem apelo de todas as conquistas, do tráfico e da escravidão dos
negros. A concepção de Diderot, mais articulada apesar de sueis lacunas, chega
à mesma conclusão, mas enriquece-a com a antecipação grandiosa da revolta dos
escravos com um Spartacus negro à sua frente, segundo a versão de 1774, o
"herói que virá restabelecer os direitos da espécie humana", na de 1781 (parte
XI, cap. XXIV). Mais ainda, a política normativa de Diderot vai condenar toda a
colonização, como já o tinha feito no Supplément au Voyage de Bouganville:
"Uma região deserta e inabitada é a única de que se pode apropriar" (parte
VIII, cap. I) e, além disso, “conquistar ou espoliar com violência, é a mesma
coisa” (parte IV, cap. XXXIII). Enfim, o balanço que Diderot introduz em 1781
como conclusão geral (parte XIX, cap. XV) opõe às vantagens materiais e morais,
que a descoberta do Novo Mundo trouxe para a Europa, as desordens que dela
resultaram na própria Europa: a sede de ouro, o horror do tráfico humano, o
reforço da opressão e as guerras pela divisão do mundo; de tal modo que, nessa
recapitulação, o mal leva vantagens sobre o bem.
Mas nem toda a obra se reveste desse tom propriamente “filosófico”. Ela
é naturalmente lógica quanto a si mesma, reclamando o fim das companhias
com privilégios, mas, fazendo isso, se compromete com a procura dos me­
lhoramentos a aplicar do sistema colonial a fim de que ele funcione melhor.
Talvez mais humanamente também; e, por exemplo, ao lado do apelo ao
Spartacus negro, a História... esboça programas de humanização e de extinção
gradual - de fato lenta —da escravidão. Mas dentro da perspectiva de uma
rentabilidade superior do trabalho dos negros livres. É que se trata de evitar,
do ponto de vista mesmo do poder na França, que as colônias custem caro
demais e sejam fonte de desperdício sem grandes benefícios. Mesmo crítico, o
estudo dos métodos de colonização inglesa e holandesa visa a tirar deles lições
úteis, para o caso, por exemplo, de a França retomar pé na índia. Desse modo,
encontram-se nesse nível também, duas perspectivas divergentes. Ou bem uma
transformação da política colonial, assegurando-lhe maior eficácia com me­
nores custos e, além disso, com menos crimes; em número de páginas, é ela
que ocupa nesse caso o maior espaço. Ou, então, os protestos de Diderot (ou
de Pechméja) contra a iniqüidade colonial, duplicada com o anúncio da

981
inevitável cisão, mais dia, menos dia entre a “metrópole” e as colônias. Tal
previsão pode igualmente ser interpretada, na parte XIII, consagrada em
particular às possessões francesas nas Antilhas, como apoio às reivindicações
dos colonos brancos contra o poder real. Essa ambigüidade talvez não fosse
tão inconsciente da parte de Diderot
Concêbe-se que uma obra a tal ponto múltipla suscita hoje em dia leituras
profundamente opostas, leituras não menos opostas, igualmente, quando se
trata de julgar as posições políticas do próprio Diderot É possível colocar a
ênfase sobre o que há de reformismo na História... e nas obras políticas de
Diderot, como faz Vernière, às vezes para se divertir (Vernière, 1963, págs.
XLI-XLII). E verdade que o programa de uma e de outras é o dos Constituintes
de 89 e não o do Comitê de Salvação Pública do ano II, ainda menos o de
Jacques Roux ou de Babeuf; e é verdade que um certo número de grandes
tiradas da História... é logo seguido ao longo do texto de passagens reformistas
que mostram não ser ainda necessário chegar a extremos ou, ainda, que
medidas radicais — a abolição dos negros, por exemplo — não podem, na
prática, realizar-se senão após toda uma série de etapas. Tratando-se es­
pecialmente do problema colonial, Michèle Duchet sublinha não somente o
reformismo da História..., mas também seu eurocentrismo, em suma, para
marcar mais brutalmente do que ela, seu racismo inconsciente. Outros,
entretanto, mostram-se mais impressionados pelo vigor argumentativo dessa
verdadeira “máquina de guerra” (Wolpe, 1957). Associando-se no fundo com
diferentes nuances e tendências do pensamento iluminista, a História..., por
seu enciclopedismo, se presta indiscutivelmente a essas diferentes leituras.
Pelo menos hoje em dia. Pois, de 1972 até o fim do século XVIII, isso não
era assim. É a violência do ataque contra todo o Antigo Regime que prende os
leitores, para exasperá-los ou para entusiasmá-los, segundo a própria posição
política de cada um deles; mas tanto a uns quanto a outros, trata-se de uma
obra revolucionária em todos os sentidos do adjetivo. Bem entendido, revolu­
cionária na Europa antes de tudo, suas teorias e programas coloniais vindo
somente no segundo plano das preocupações dos leitores. O sopro oratório
dos discursos de Diderot opera uma espécie de transformação, pelo fato de
serem seus textos aqueles que se retêm, e porque a violência dos mesmos
mascara as dificuldades de raciocínio para esclarecer completamente sobre os
objetivos visados, os alvos a serem atingidos.
E bem verdade que Diderot, intervindo maciçamente na terceira edição,
procurou unificar um pouco a História.... Se conseguiu impor-se como voz
dominante, não pôde dar à obra uma unidade de tendências à qual seu próprio
sistema de composição por edição de contribuições evidentemente se opunha.
Mas não foi apenas por essa razão que ele não conseguiu tal unidade. Foi
também porque, se existia nele uma vontade de construir uma teoria mate­
rialista da história e da política, essa vontade se chocou não tanto com as
insuficiências da documentação ou da experiência, mas muito mais, como se
viu, com a dificuldade de simultaneamente consolidar a própria teoria e com
o sentimento profundo da necessidade de responder desde logo às questões

982
ardentes do momento. Desse modo, o vigor das certezas e exigências propria­
mente políticas salva a teorias, sendo ela mesma frágil. E o vigor do texto é o
corolário dessas certezas. Esse conjunto publicado sob o nome de Raynal é o
verdadeiro testamento de Diderot

• H tsto ire p h ilo so p h iq u e e t p o litiq u e d e s é ta b lísse m e n ts e t d u c o m m e rc e d e s E u r o p é e n s d a n s


le s d e u x In d e s , em Genebra, em casa de Jean-Léonard Pellet, 1780, 4 volumes em 4S ou 10
volumes em 8S. A única escolha de extratos disponível hoje em dia: H isto rie p h ilo s o p h iq u e e t
p o litiq u e d e s d e u x In d es, Paris, Maspero/La Découverte, advertência de Yves Bénot, 1981.

► A única biografia do Abade Raynal: Anatole Feugère, Un p r é c u r s e u r d e Ia R évo lu tio n , Vabbé


R a y n a l, Angoulême, Imprimerie ouvrière, 1922. Três livros importantes: Hans Wolpe, R a y n a l
e t s a m a c h in e d e g u e rre , Paris, M.-T. Génin, 1957; Michèle Duchet, A n tr o p o lo g ie e th ls to i r e a u
s iè c le d e s L u m iè re s, 1! edição, Paris, Maspero, 1971, 2! edição resumida, Flammarion, 1978;
Idem, D id e r o t e t V H lsorle d e s d e u x I n d e s ou V êcrilu re fragmentarie, Paris, Nizet, 1978.
Encontram-se os principais textos políticos de Diderot em Paul Vernière (ed.), D id e ro t: O e u v re s
p o litiq u e s, Paris, Gamier, 1963; Idem, D id e r o t M é m o tr e s p o u r C a th e rin e II, Paris, Gamier,
1966; Idem, D id e ro t: O e u v re s p h ilo so p h iq u e s . Paris, Garnier, 1956.

Y v e s BÉNOT

REHBERG, Augusto Wilhelm, 1757-1836


Pesquisas sobre a Revolução Francesa, 1793

Diferentemente de Burke ou de outros contemporâneos alemães que


desenvolveram críticas a respeito da Revolução, Rehberg é praticamente
desconhecido e esquecido em nossos dias, Erradamente, J. Godechot, em seu
livro La contre-révolution (A contra-revolução), consagra-lhe algumas pági­
nas1, desqualifica-o e fá-lo recair no esquecimento. Rehberg, nascido em
Hanover, em 1757, permanecerá nessa cidade durante quase toda sua vida e
aí morrerá, em 1836. Basta relembrar aqui dois elementos de sua biografia: de
um lado, seus estudos na Universidade de Gottingen nos anos 70 do século
XVIII, onde se uniu por laços de amizade ao barão von Stetn, o grande
reformador da Prússia do início do século XIX, e, do outro, sua atividade de
alto funcionário, que se desenvolve desde sua chegada à maturidade até ao fim
de sua vida, a serviço do Estado de Hanover, ligado à coroa inglesa, desde
1714, quando George de Brunswick se tornou rei da Inglaterra.

983
Secretário da chancelaria de Hanover, Rehberg seguiu também uma
atividade de publicista. Graças a seu conhecimento do francês - sua mãe era
proveniente de uma família huguenote ele foi encarregado, em 1789, por
uma revista de Jena, a Allgemeine Litteraturzeitung, de escrever resenhas de
obras publicadas na França a propósito dos acontecimentos que, daí em diante,
se passava a designar pelo nome de “Revolução”. Entre 1790 e 1793, Rehberg
publicou mais de 165 resumos de obras francesas, algo como um por semana,
e isso durante mais de três anos, o que faz dele, com certeza, o melhor
conhecedor alemão contemporâneo da época da Assembléia Constituinte e do
início da Legislativa. Ora, foi a partir dessas obras resenhadas que Rehberg fez
publicar os dois tomos de suas Pesquisas sobre a Revolução Francesa com
anotações críticas sobre os escritos mais notáveis sobre ela publicados na
França (RRF). Essa obra, jamais reeditada nem traduzida e da qual Michaud
não faz sequer menção na curta notícia que lhe é consagrada2, provocou, na
entanto, na Alemanha a dura reação de Fichte, que publicou, no mesmo ano,
contra Rehberg sua Considérations destinées a rectifier les jugements du
public sur la Révolution Française (Considerações destinadas a retificar os
julgamentos do público sobre a Revolução Francesa). O livro de Rehberg não
foi certamente o primeiro nem o mais importante publicado na Alemanha sobre
a Revolução. Ernst Brandes, amigo de Rehberg e também funcionário na
Chancelaria de Hanover, tinha publicado em 1790 um livro que chegou mesmo
a ser traduzido para o francês sob o título de Considérations politiques sur la
Révolution Française (Paris, 1791); sem falar das numerosas tomadas de
posição publicada nas revistas - que se pense simplesmente nas de Schlòzer
nas Staats-Anzeigen ou de W. von Humboldt na Berlinische Monatschrift - ,
não é preciso esquecer O movimento social da França, o grande livro de L.
von Stein3, publicado pouco antes de LAncien Régime et la Révolution (O
antigo regime e a Revolução), de Tocqueville.
A obra de Rehberg guarda, todavia, sua importância por duas razões:
primeiro, por conter uma crítica sistemática e de tipo jurídico da Constituição
de 1791, crítica realizada em 1792, portanto, bem antes da experiência do
Terror; segundo, porque, além da execração que veicula, seu autor fez uma
obra de historiador.
A crítica de Rehberg da primeira constituição revolucionária pode ser
vista de três planos diferentes:
1) a crítica dos “princípios”, que o conduz a opor a história à razão;
2) a crítica da constituição ou do mal-entendido em torno desse termo;
3) a análise da dissolução da monarquia pela constituição ou, ainda, das
desditas produzidas pela “metafísica”.

1. Razão e “história" - Na primeira parte de seu livro, Rehberg tenta


reconstituir os princípios a partir dos quais a Assembléia Nacional foi levada a
instalar seu sistema de direito público, a saber, a Declaração e o ato cons­
titucional. Dentro dessa meta, ele propõe um modelo tripartido das fontes do
direito que, de acordo com as teorias jurídicas, podem ser a violência ou a

984
força, a razão e o Verstand, que pode ser traduzido por “discernimento”. Ora,
Rehberg pretende que todo o direito público revolucionário seja construído
somente sobre o princípio da razão, equivalente, nesse caso, ao “direito
natural”. O que, segundo ele, é praticamente subversivo, mas, além disso,
anárquico e teoricamente falso. Pois é de fato o caráter abstrato da “razão”
que produz para ele essas “monstruosidades” que são a Declaração de 1789 e
a idéia da igualdade absoluta. Proposta reacionária, logo objetar-se-á. É preciso
ainda perguntar-se de que maneira suas críticas são fundadas; elas se apoiam
sobre um pilar de conhecimento e de reflexão teórica que não se pode permitir
ignorar.
No fim do século XVIII, a razão foi o alvo polêmico, principalmente na
Alemanha, de toda uma série de correntes, do romantismo político à escola
histórica de direito. Ora, em Rehberg, mesmo encontrando-se fragmentos desse
Zeitgeist (espírito da época), o essencial não está aí, mas bem mais na oposição
entre Vernunft (razão) e Verstand (discernimento), como fontes do direito que
levam, segundo ele, a duas formas de conhecimento: de um lado, a “política
espetaculativa", que pretende deduzir da razão, entendida como princípio
abstrato e universal, as leis que devem governar a sociedade civil ou Estado
(os dois termos são sinônimos para ele); do outro, um saber politico-histórico,
onde o último adjetivo ainda não adquiriu o sentido “historicista”, ligado à
idéia de desenvolvimento ou de progresso, mas faz referência a um co­
nhecimento empírico, do concreto ou do particular, a alguma coisa que será
preciso classificar ao lado da cppo vr|aiÇ(fronésis), da pudentia mais do que da
scientia ou do ejrioTqpq (epistémé).
Não é da razão —como princípio de ordem e de inteligibilidade universais
- escreve Rehberg (RRF,I, pág. 12), mas da observação do mundo que se
podem deduzir as leis de um Estado, observação que nos força a levar em
consideração o momento e as circunstâncias, para examinar a situação, as
necessidades e as relações próprias a cada povo individualmente.
Esse tipo de discurso e essa oposição, que se encontram em todos os seus
escritos4, entre uma “política especulativa” deduzida da razão, forma epis-
temológica da metafísica, e um conhecimento histórico fundado sobre a
experiência, não têm nada de surpreendente, se nos lembrarmos de que
Rehberg fizera seus estudos na Universidade de Gõttingen. Essa se havia
tornado, na segunda metade do século XVIII, o centro intelectual mais
importante de um tipo de saber: a historische Staaslehre (o conhecimento
empírico dos Estados)5, tendo suas raízes na grande tradição do aristotelismo
protestante e cuja figura principal havia sido, no século anterior, H. Conring,
professor na Universidade de Helmsted de prudentia civilis —expressão que
será traduzida no alemão do século XVIII com os termos de Sattistik ou
Staasbeschreibung (conhecimento concreto do estado ou, melhor dos Estados,
no plural —do sistema europeu dos Estados).
Se se abre um livro de 1761, que esteve com certeza nas mãos de
Rehberg, estudante, o Staatsklugheit {Da arte de governar um Estado), de
G.Achenwall, professor em Gõttingen, de 1748 até a metade dos anos 1770,

985
constata-se que o programa dessa obra consiste em identificar as regras de arte
do governo tal como existem ou pelo menos tal como se as pode deduzir da
vida dos Estados, isto é, as regras reais e não aquelas que poderiam ser
aplicadas a uma "república platônica". Aqui, é o conhecimento concreto,
empírico, nessa linguagem histórica de um Estado e de sua constituição
material, que se torna o princípio a partir do qual se podem estabelecer as
regras de seu bom governo. À razão universal e abstrata, opõe-se o princípio
da “razão de estado” que não conhece nem “regras universais, nem máximas
gerais". Compreende-se melhor, a partir daí, a assimilação à primeira vista
estranha que se encontra em Rehberg entre a filosofia política de Rousseau
(autor que ele conhece bem e aprecia muito do ponto de vista teórico,
diferentemente de Burke) e o sistema dos fisiocratas, que, por sua doutrina da
razão e da evidência, “declarou a inutilidade de levar em consideração as
circunstâncias, as determinações espaciais, as relações concretas, a história, e,
em uma palavra, os costumes de um povo”(RRF, I, pág.23).
Eis, portanto, o primeiro objeto ou o primeiro nível de sua crítica e a
tradição cultural na qual ela se inscreve e que a torna possível, porque rejeita
o racionalismo e o universalismo iluministas.

2. Constituição —O conhecimento histórico, acabamos de vê-lo, é, para


o antigo aluno da Universidade de Gõttingen, história, empiria, conhe­
cimento do particular, um saber cujo objeto é o mundo da contingência para
retomar um conceito escoiástico, utilizado a esse próposito por Otto Brun-
ner em seu estudo sobre o nascimento do saber histórico na Europa
moderna E, no entanto, esse conhecimento remete também a uma reali­
dade que se começa a chamar nessa época, na Alemanha, a dimensão do
desenvolvimento. Além mesmo da abstração da razão e ao lado dela, aparece,
como objeto da crítica, a idéia atribuída à Constituinte da ruptura e da
inovação. Brandes já escrevia em seu livro de 1790 (trad. franc., pág. 93): “A
idéia principal... (partilhada por todos os constituintes), que se tornou a fonte
de tantos males, é a de edificar para a França uma constituição que fosse
absolutamente nova a começar pelos fundamentos.” E Rehberg (RRF, I, pág.
53): “Toda constituição de um Estado, mesmo a mais perfeita, tem seu ponto
de apoio no desenvolvimento gradual de certas relações sociais e instituições
que é em parte o produto da natureza, em parte o do discernimento
(Verstand/prudentia) e da vontade humana.”
Estamos, portanto, na presença de uma idéia de legislação em geral e de
legislação constitucional, que se encontra sob formas bem diferentes de
Humboldt a Savigny, mas também em Guizot e até em C.Menger, em suas
Pesquisas sobre o método das ciências sociais (1883), até mesmo em Fr. von
Hayek. Quanto a W. von Humboldt, ele escrevia, numa carta a Genz, em agosto
de 1791: “A Assembléia Nacional Constituinte resolveu construir uma es­
trutura do Estado inteiramente nova a partir de simples princípios da razão
[...]. Ora, nenhuma constituição de um Estado pode vingar se estiver situada
num plano puramente racional”7. Poderíamos, portanto, simplesmente ater-nos

986
a isso e inscrever a crítica histórica de Rehberg da atividade da Constituinte
(histórica, aqui, no sentido de evolucionista) no âmago de uma tradição cuja
expressão mais notável se encontra em um texto de Hegel, no § 273 de sua
Filosofia do direito8:

Uma outra questão apresenta-se facilmente ao espírito: Quem deve fazer a constituição?
Essa questão parece clara, mas, a um exame mais sério, revela-se desprovida de sentido.
[...] De uma maneira geral, é absolutamente essencial que a constituição, ainda que tenha
surgido ao correr do tempo, não seja considerada algo fabricado, pois, em verdade, ela
é um todo absoluto em si e para si e que, por essa razão, deve ser considerado divino e
durável, alguma coisa que está acima da esfera das coisas fabricadas.

É preciso ir mais longe ainda, porém, e acrescentar às questões da razão


e da história a da constituição. O que se deve entender por essa palavra na
linguagem de Rehberg, de um lado, e dos homens de 1789, do outro? Na
verdade, basta ler o artigo 16 da Declaração dos Direitos para se dar conta de
uma equívoco que falseia os debates. Na Declaração, lê-se: “Toda sociedade na
qual a separação dos poderes não tenha sido determinada não tem mais
constituição.” Aqui, o sentido da palavra é evidentemente distinto daquele mais
geral de constituição como “sistema ou corpo de princípios fundamentais
segundo o qual uma nação-Estado ou um corpo político são constituídos e
governados”9, definição que Lemaire em seu estudo sobre o direito público do
Antigo Regime formula da seguinte maneira: “Os princípios tradicionais, as
regras costumeiras segundo as quais o governo da França está organizado
desde séculos e se justifica precisamente por essas tradições e costumes”10. C.
Schmitt escreve que a constituição, nesse sentido muito geral, “é a condição
global concreta da unidade política e da ordem social de um dado Estado”11.
Desse ponto de vista, todo corpo político tem uma constituição. A Staarsver-
fassung (a constituição do Estado) existe, ela não precisa ser instituída, e isto
não somente para Rehberg ou Hegel, mas, para ficar na Alemanha, em toda a
tradição do aristotelismo protestante. Ela existe, portanto, e pode, quando
muito, ser restabelecida ou, no limite, evoluir. Para a Assembléia nacional de
1789, a teoria da constituição apresenta-se de uma maneira totalmente diversa.
As formulações mais claras sobre essa questão são, é claro, aquelas de E.
Sieyès. Em sua obra Préliminaire de la constitution (Preliminar da cons­
tituição), texto capital da história do pensamento político e da teoria cons­
titucional, ele escreve: “Não é mais nação que se constitui, é seu estabe­
lecimento político. A nação é o conjunto dos associados, todos governados,
todos submissos à lei, obra da vontade deles, todos iguais em direitos [...] Os
governantes, ao contrário, formam sob essa única relação um corpo político de
criação social” que "tem necessidade de ser organizado, limitado, etc. e,
conseqüentemente, de ser constituído”12. A constituição aparece, portanto,
nesse caso, como uma decisão política cujo sujeito é o “poder constituinte”,
exercido pelos representantes da nação, e o objeto, a estruturação de seu
governo: o estabelecimento dos poderes constituídos. Pode-se ainda citar um
texto importante tirado da intervenção de Mounier na Assembléia em nome do

987
primeiro comitê encarregado de preparar o ato constitucional, em 9 de julho
de 1789:

Foi preciso termos uma idéia precisa do sentido da palavra constituição 1...) Pensávamos
que uma constituição não era outra coisa senão uma ordem fixa e estabelecida dentro da
maneira de governar; que essa ordem não pode existir se não estiver apoiada em regras
fundamentais, seladas pelo consentimento livre e formal de uma nação ou daqueles que
ela escolheu para representá-la. Assim, uma constituição é uma forma precisa e constante
de governo ou, se se quiser, é a expressão dos direitos e obrigações dos diferentes
poderes que a compõem. Quando a maneira de governar não deriva da vontade do povo
claramente expressa, ele não tem mais constituição13.

Ora, por trás do mal-entendido em torno do conceito, percebe-se a


oposição da doutrina alemã à teoria francesa da soberania e da constituição -
essa “coisa inaudita”, como dirá Rehberg; oposição que atravessa todo o século
XIX, caracterizada, na Alemanha, tanto na teoria quanto na prática, pelo
"princípio monárquico” que só terá sua solução em 1919, com a Constituição
de Weimar.

3. Da dissolução da monarquia - “A metafísica - escreve Rehberg,


retomando uma palavra de Burke e de Bentham - destruiu a monarquia
francesa” (RRF,I, pág.5). O que se deve entender por metafísica'? Exatamente
essa igualdade dos direitos, esse conceito abstrato de cidadãos, essa soberania
nacional representativa, que são os próprios pilares do trabalho da Assembléia.
Tudo aquilo que nem a crítica conservadora, nem Marx jamais puderam
aceitar de 1789. Mas em qual sentido se pode seguir o autor de Pesquisas
quando ele diz que a metafísica, portanto a constituição, destruiu a monarquia?
E aí que sua análise se faz mais sutil e, ao mesmo tempo, mais cerrada, no
momento em que, por trás de numerosas fórmulas da Constituição de 1791,
tais como “os representantes da nação são o corpo legislativo e o rei”, “o
governo é monárquico”, a “a realeza é indivisível e delegada hereditariamente
à linhagem reinante”, etc., ele evidencia a decadência da antiga soberania e da
majestade reais. Aqui Rehberg faz, por maior que seja seu ódio pela igualdade
- o único artigo da Declaração que ele aceita é o 17, sobre a defesa da
propriedade - , um verdadeiro trabalho de historiador.
Três pontos de sua análise da função da monarquia dfentro da cons­
tituição merecem ser sublinhados:
A) Sua denúncia do princípio da separação absoluta dos poderes, na qual
dá provas de um bom conhecimento de Montesquieu; B) sua crítica da subordi­
nação do executivo ao legislativo, devendo conduzir inevitavelmente ao todo-po-
derio da Assembléia. Essa crítica sem dúvida se louva na obra de Necker, de 1792,
O poder executivo nos grandes Estados, mas, sobretudo, em sua própria
experiência de funcionário público numa Alemanha cuja história moderna vê a
instalação dessa extraordinária máquina que foi o Estado territorial adminis­
trativo e onde a ciência do Estado foi sobretudo Kameralistik, ciência da
administração; C) sua análise da figura do rei dentro da constituição.

988
Por um lado ele repete que, "mesmo que se diga que o rei deve ser o
chefe do poder executivo, ele é de fato absolutamente impotente” (RRF, I, pág.
150) ou que, mesmo se ele for o chefe das forças armadas, há em cada comuna
guardas nacionais inteiramente independentes dele; por outro, ele faz uma
série de observações sobre a questão do veto e da prerrogativa real que se
situam em completo reverso do discurso de Sieyès de 7 de setembro de 1789.
E, de fato, para Rehberg, o poder de veto absoluto representa a própria
essência da monarquia como forma de soberania e princípio de unidade políti­
ca. Uma vez que esse direito lhe é negado, o rei não é mais rei, mas uma
mistura, metade rei, metade cônsul - a fórmula é de Rehberg. Ora, esse
rei-funcionário é exatamente o contrário de um rei ou, melhor, um rei
“paralisado”. Ele ainda tem, sem dúvida um poder (eine Macht), uma função,
mas não tem mais Wilrder, ou seja, dignidade, majestade, caráter sagrado. Ele
se tornou nem mais, nem menos do que um “orçamento"(Verzierung) (RRF,I,
pág. 152). Não foram, portanto, as jornadas de outubro nem as multidões
parisienses de Burke ou fantasias populistas que liquidaram a realeza, foi a
constituição. Eis seu balanço e sua constatação. E, se não há soberania real,
diz Rehberg, tudo está perdido: as ordens, a nobreza, o clero, toda a sociedade
do Antigo Regime. Essa soberania real que a Europa conhecia desde os confins
da Idade Média foi dissolvida em dois anos!
Uns vinte anos antes da revolução, podia-se ler na França:

O m ais b elo p re s e n te q u e os D e u se s p o ssam d a r a o s h o m e n s é o d e um rei q u e a m e se u


po v o (...) O s o u v id o s d e ta l rei abrem -se à s lam en taçõ es. E le d etém o b ra ç o do o p re ss o r,
e le d e r ru b a a tira n ia . Ja m a is s e eleva c o n tra ele um só m u rm ú rio ; e, q u a n d o o s inim igos
se ap ro x im am , o p e rig o n ão se a p ro x im a m ais. S e u s sú d ito s form am u m a m u ra lh a de
b ro n z e em to rn o d e s u a p essoa; e o ex ército de um tira n o foge d ia n te d e le s c o m o u m a
p lu m a leve a o s a b o r d o v e n to q u e agita.[...l E le o deve g o v e rn a r ( - o povo) se g u n d o a s
leis d o e sta d o , co m o D e u s g o v e rn a o m u n d o se g u n d o a s leis d a n a tu re z a . R a ra m e n te ele
e m p re g a se u to d o -p o d erio p a ra in te rro m p e r-lh e s o u e m u d ar-lh es o c u rso , isto é, as
m o d ifica çõ es e a s n o v id ad es se rã o com o m ilag re s d e n tro d a o rd e m da bo a política.

Trata-se do artigo "Rei”do tomo 14 da Encyclopédiex\ Quer se pense no


tom do discurso de Sieyès, de Roederer ou de Thouret, o rei tornou-se em suas
bocas o primeiro cidadão!15. O próprio Luís XVI escrevia em uma carta: “O rei
é o primeiro dos funcionários; isso é a Revolução Francesa!”16 Essa cons­
tituição - esse é o balanço de Rehberg - é um sistema perfeito de insubordi­
nação e de anarquia (RRF, I, pág. 162). De maneira bem diferente, 1791
permanece para nós europeus, o palimpsesto de nossos Estados de direito.
O que se deve pensar de Rehberg? Konservative Kritik (Crítico conser­
vador), como se disse? Esse julgamento parece um pouco curto. Rehberg tem
pelo sistema inglês a mesma admiração que Burke, que, em seu Discours sur
la situation de la France (Discurso sobre a situação da França), de 9 de
fevereiro de 1790 (págs. 24-25), escrevia: em 1688 “o príncipe de Orange foi
chamado pela flor da aristocracia inglesa para defender nossa constituição e
não para reduzir ao mesmo nível todas as categorias e todas as condições. (...)

989
0 que nós fizemos foi, dentro da realidade, uma revolução ‘constitucional’,
previmos, mais do que fizemos, uma revolução”. Mas Burke - objetar-se-á -
integra também a Konservative Kritik (Crítica conservadora)\ Entretanto, se
se lê Locke e, principalmente, o Capítulo 14 de seu Segundo tratado sobre o
governo, consagrado à prerrogativa real, compreende-se que a antiga cons­
tituição inglesa foi estruturada em torno de dois pólos: o Parlamento e o rei,
os poderes constituídos e a prerrogativa. Ela representa uma das formas de
organização do poder que os historiadores da Europa moderna descreveram
como elipse de dois focos. Se a revolução inglesa fizera cair a cabeça de um
rei, ela não havia por isso abalado quer a instituição da monarquia, quer a
prerrogativa real. Por esta última é preciso entender um poder extralegal e
autônomo, que não tem sua origem nem seu princípio de legitimação no
contrato. A Encyclopédie também é aí muito clara, ao resumir o Segundo
tratado; no artigo "Prerrogativa”, lê-se: “Nomeia-se dessa maneira dentro do
governo da Inglaterra um poder arbitrário concedido ao príncipe, para fazer o
bem e não o mal; ou, para dizê-lo em menos palavras, o poder de proporcionar
o bem público sem regulamentos e sem leis”17.
ocqueville nos mostrou bem como a monarquia francesa formou o vazio
em torno de si própria durante séculos. A sede do poder, ou melhor, da
soberania, tornou-se única. Em 17 de junho de 1789, a assembléia dos
representantes, por seu golpe de Estado, ocupou esse mesmo lugar. Ela
reivindicava para si um princípio de legitimidade, a soberania da nação, que
tem dessa vez a forma geométrica da esfera da lei. O rei não poderá mais
ocupar o outro foco da elipse. A estrutura sobre a longa duração mudou. Só
há, doravante, um único centro. A majestade nada mais é do que um orçamen­
to, a prerrogativa está destruída. Porém, há mais: o inaudito produziu-se e
tomou a figura da assembléia soberana, que deu uma constituição nova à
França, ela lhe deu um “estabelecimento político". Anarquia, diz Rehberg! pois
ele não sabe pensar sobre uma outra forma de poder, de ordem, uma outra
soberania diferente daquela dualista, inglesa, stãndisch, do Parlamento e do
rei. Mas, pelo menos, ele sabe, sendo mais jurista do que Burke, dar conta dos
mecanismos constitucionais instalados pela Revolução, assim como de sua
significação histórica.
Dessa maneira, pode-se apreender ao mesmo tempo a extraordinária
lucidez do historiador e a de seu próprio limite: sua análise da Constituição de
1791 comparada com a tradição constitucional da Inglaterra lhe permite
entrever o fim de um mundo sem que, para isso, ele saiba imaginar a invenção
nova do governo representativo e da instituição republicana.

• Untèrsuchungen über die Franzôsische Revolution, 2 v o lu m es (7 0 8 págs), H an o v er u n d


O s n a b rü c k , 17 9 3 (o p refá cio é d a ta d o d e 4 d e s e te m b ro de 1792).

► K. L essing, Rehberg und die Franzôsische Revolution, F rib u rg o , 1910; U. Vogel, Konser-

990
uative K ritik an d e r bürgerlichen Revolution. A. W. Rehberg, D a r m s t a d t - N e u w i e d , 1 9 7 2 ; c f.
t a m b é m A . P h i l o n e n k o , Théorie e t praxis dan s la pen sée m orale et p olitiqu e d e K a n t e Fichte
en 1793, 2* é d ., P a r i s , 1 9 7 6 .

P a s q u a l e PASQülNO.

NOTAS
1. La contre-révolution. Doctrine etaclion, 1789-1804, P aris, 1961, pág. 113 e segs.
2. Biographie uniuerselle, P aris, sem d ata, pág. 350.
3. Die Geschichte der sozialen Bewegung in Frankreich (1789-1848), trê s v o lu m es,
L eipzig, 1850.
4. Cf. p o r ex. Uber die Ataatsverwaltung deutscher Lander, H anover, 1807.
5. S o b re isso, cf. P. P asquino, P olitisches u n d h istorisches Interesse. “S taü stik " u n d
h isto risch e S ta a tsle h re bei G. Achenw all, em Auíklarung und Geschichte, C õttingen, 1986, págs.
144-168.
6. Abendlandisches Geschichtsdenken, em Neue Wege der Veríassung und Sozialges-
chlchte, 2! ed., C õ ttin g e n , 1968, p á g s .2 6 4 4 .
7. Id e e n u b e r S ta a tsv e rfa ss u n g , d u rc h d ie n e u e F ra n z o sis c h e K o n s titu tio n v e ra n la b t, em
Berlinische Monatschrifí, 19 (1792), pág. 85.
8. Philosophie du droit, § 2 7 3 (1821), tra d . franc. d e R. D e ra th é , P a ris, 1975, p ág . 2 8 6 .
9. The Oxford English Dictlonary, v o l .2 ,1933, p ág . 8 7 6 .
10. A. L em aire, Les lois fondamentales de la monarchie française d ‘après les théori-
ciens de 1’Ancien Regime, P aris, 1907, pág. 11.
11. C. S c h m itt, Verfassungslenre, M unique-L eipzig, 1928, pág. 4 T rata-se da d e fin iç ã o d a
c o n s titu iç ã o “a b s o lu ta ” q u e S c h m itt d istin g u e d a c o n s titu iç ã o “p o sitiv a” q u e se a p re s e n ta c o m o
“d e c is ã o ” d o p o d e r c o n s titu in te .
12. P a ris, 1 7 8 9 , p ág . 19.
13. R e im p re ssã o d o Ancien Moniteur, 1.1, P aris, 1847, pág. 141.
14. N eu fch âtel, 1 765, pág. 321.
15. S o b re T h o u ret, guilh o tin ad o pelos jaco b in o s e q u e teve um papael decisivo n a red ação
d a C onstituição, a Biographie uniuerselle de M ichaud ( t 41, pág. 4 4 6 ) relata isto: “Em 3 de
se tem b ro (1791), T h o u re t foi escolhido p ara a p re se n ta r a o rei o a to constitucional; e, n o m ead o
p re sid e n te n o d ia 12, pela q u a rta vez, ele receb eu o m o n arca q u a n d o L uís XVI se re n d eu à
A ssem bléia p ara d eclarar q u e aceitava a constituição. S en tad o em um a p o ltro n a q u ase igual à do
p ríncipe, o p resid en te m anteve as p e m a s cru zad as contin u am en te; e, sem sair d essa posição, lo u v o u
lo n g a m e n te a o rei as v an tag en s d e um a constituição q u e ele m esm o havia feito na m aio r p a rte ”.
16. C itad o p o r P. D uelos, La notlon de constitution dans Toeuvre de TAssemblóe
constituante de 1789, P aris, 1932, pág. 152.
17. N eu fch âtel, 1765, t. 13, pág. 3 0 7

991
REICH, Wilhelm, 1897-1957
A psicologia de massa do fascismo, 1933

Elaborada e redigida essencialmente na Alemanha, mas publicada em sua


primeira edição, em setembro de 1933, na Dinamarca, A psicologia de massa
do fascismo, de Wilhelm Reich, apresenta-se primeiro como uma reflexão
imediata e passionalmente polêmica sobre os acontecimentos históricos: cons­
tatando com estupefação que, “em trinta e um milhões de eleitores, dezessete
milhões jubilosamente levaram Hitler ao poder em março de 1933”, Reich se
coloca a questão: “Como Hitler pôde se impor? Como foi possível que um povo
de setenta milhões de indivíduos cultos e trabalhadores se tenha podido deixar
seduzir por um psicopata manifesto?”- interrogação que ele não cessará de
fazer e que também preocupa todo o pensamento político contemporâneo.
O horizonte próximo de A psicologia de massa do fascismo é, portanto,
antes de tudo, “a estrutura econômica e ideológica da sociedade alemã de 1928
a 1933”, que permite a Reich distinguir a função psicológica original das
classes médias e da pequena burguesia num contexto histórico e cultural
determinado. É o nazismo que oferece o modelo e as ilustrações daquilo que
Reich chama de “fascismo”: repressão sexual, família autoritária, culto ao
chefe, teoria racial como formação condensada e moderna do irracional e do
misticismo etc. O simbolismo da cruz gamada, enquanto evoca o fantasma da
cena originária, das relações sexuais paternas idealizadas pela criança, tes­
temunha de maneira espetacular o papel dominante do inconsciente.
Reich não se contenta, em Psicologia de massa, em propor a inter­
pretação psicanalítica dos acontecimentos decisivos dos quais ele é a testemu­
nha lúcida e também um dos atores reduzidos à impotência e à fuga; ele faz
convergirem nessa obra, desde então colocada em posição central, ao mesmo
tempo sua experiência clínica, sua concepção pessoal da psicanálise, sua
atividade de militante comprometido com lutas sociais e sua reflexão propria­
mente política e antropológica. Ele já havia tentado, em 1929, num texto curto
intitulado Materialismo dialético e psicanálise, publicado em uma revista de
Moscou, combinar o marxismo, considerado prestador de contas da dimensão
econômica e social, externa, do homem, e a psicanálise, que, por seu lado, se
propunha elucidar os aspectos internos, psicológicos, subjetivos. A essa aliança
teórica e prática tantas vezes procurada, deu-se às vezes o nome de “freudo-
marxismo”; mas Reich, situando-se cada vez mais a distância e além tanto de
Freud quanto de Marx, virá a definir seu pensamento como uma Economia
sexual: sobre a sexualidade, estrutura complexa conflituai, fundamental, se
constituem todas as formações características da realidade humana (ins­
tituições, poderes, culturas, modos de relações, etc.)
Aderindo cedo à psicanálise (foi admitido em 1919 na Sociedade Psica­
nalítica de Viena, quando tinha a idade de vinte e três anos e recém-retornara
da guerra, prosseguindo ainda seus estudos de Medicina), Reich, embora
manifestando vivo e constante interesse pelos problemas de filosofia biológica,

992
mostrava-se, antes de tudo, preocupado com a técnica terapêutica; animou com
brio uma seminário de técnica psicanalítica, e suas observações e pesquisas
sobre o orgasmo (A função do orgasmo, 1927), a genialidade, as resistências,
o masoquismo, a constituição e a função do caráter receberão comentários
sistemáticos, e sempre eficazes em sua grande obra, Análise caracterial,
publicada algumas semanas antes de A psicologia de massa e que convém, sem
dúvida nenhuma, utilizar como sua base analítica indispensável e escla­
recedora.
Rapidamente, Reich toma consciência deste fato perturbador: enquan­
to o terapeuta consegue penosamente aliviar, no melhor dos casos, o
sofrimento psíquico de um paciente, a sociedade fabrica, maciçamente,
sofrimentos; mediante o jogo da repressão, das proibições de todas as
espécies, dos diversos modos de exploração e de dominação, ela não cessa
de produzir e de manter a aflição humana e, notadamente, essa “miséria
sexual” que Reich situa na origem da maioria das perturbações e desordens
que abalam uma existência. Sem abandonar por isso os tratamentos indivi­
duais, Reich estima que é preciso, antes de tudo, agir na fonte - social - dos
males psíquicos. Ei-lo, portanto, engajado no campo dos socialistas e depois
dos comunistas austríacos, em Viena e, mais tarde, dos comunistas alemães,
em Berlim, onde se instala a partir de 1930. Abre dispensários* de higiene
sexual destinados aos trabalhadores e, principalmente, cria a Associação
alemã para uma política sexual proletária, abreviada Sexpol, que reúne em
pouco tempo vários milhares de adeptos. Mas, paradoxalmente, à medida que
a ameaça nazista se define e depois se torna triunfante, Reich se vê
surpreendido por uma dupla excomunhão, rejeitado pelos “marxistas” e
pelos psicanalistas: os comunistas lançam contra ele uma campanha furiosa
de difamação (“Avisaram-me, escreve Reich em seu prefácio a Psicologia de
massa, que eu seria fuzilado quando os marxistas tomassem o poder na
Alemanha”), e um pouco mais tarde, em Lucerna, no ano de 1934, ele é
excluído da Associação Psicanalítica Internacional.
Essas dramáticas experiências, das quais Reich prestará contas na obra
autobiográfica Os homens dentro do Estado, publicada em 1953, desempe­
nharam um papel determinante na elaboração de seu pensamento político: ele
repassa, direta e concretamente, os processos e mecanismos pelos quais as
instituições, oficiais ou não, hegemônicas ou minoritárias, impõem sua autori­
dade e seus dogmas, eliminando contestadores e oponentes, e tendendo a se
constituir em massa homogênea, compacta, sectária e autárquica. Os comple­
mentos que ele juntará posteriormente à primeira edição de A psicologia de
massa mostram evidentemente que sua concepção do fascismo ultrapassa
consideravelmente os fatores históricos, sociológicos e ideológicos, dos quais
reconhece o papel incontestável. É preciso remontar, estima ele, mais longe no
tempo, é preciso penetrar mais profundamente as estruturas humanas —pois

* D isp en sário s ■ estab elecim entos de beneficência o n d e se cuida g ratu ita m e n te d o s d o e n te s


pobres, d a n d o lh e s rem édios, alim entos, roupas, etc.

993
é nelas, no íntimo essencial do homem —em sua posição ontológica, poder-se-ia
dizer - que residiria, para ele, o germe primordial do fenômeno fascista.
A temática nazista, tal como é notadamente exposta em Mein Kampf, de
Hitler, que Reich analisa cuidadosamente, se endereça com predileção às mais
profundas emoções humanas: o Sangue, a Terra, a Raça, a Pureza, a Comuni­
dade, o Chefe, a Força, eis as linhas, imaginárias e concretas ao mesmo tempo,
que tocam diretamente o coração do homem e o fazem vibrar. Foi esse o golpe
de mestre de Hitler: derramar no corpo exangue de uma sociedade embotada,
esfriada pelas frustrações, pelo ressentimento e pela desesperança, uma quente
e forte substância emocional - enquanto as organizações tradicionais só
ofereciam frios e verbosos raciocínios. (Reich cita, em Os homens dentro do
Estado, este exemplo: “Lembro-me de um imenso encontro no Palácio dos
Esportes, em que Thãlmann [o líder do partido comunista alemão] falou diante
de cerca de mil operários da indústria e trabalhadores de colarinho branco.
Pouco antes, houvera mortes no decorrer de uma manifestação. O clima estava
explosivo. O ‘desfile das bandeiras’ teve sucesso. Todo mundo esperava
impacientemente o discurso. Thãlmann gelou a atmosfera em meia hora,
reduziu-a a nada. Entregou-se a uma análise complexa do orçamento da
burguesia alemã. Foi horrível.”).
As emoções mobilizadas pelo discurso e as dramaturgias fascistas são
consideradas profundas porque têm suas raízes e sugam suas energias no
inconsciente, na administração libidinosa e instintiva da psique humana. São
todas as descobertas revolucionárias de Freud no domínio da sexualidade que
Reich convoca em apoio à sua demonstração - insistindo, entretanto, sobre
certos mecanismos ou modos de relações que julga mais determinantes. Em
primeiro lugar, é dentro de um quadro sexofóbico global que o fascismo é
exercido de maneira privilegiada: a condenação de Eros, o desprezo, o ódio e
a fobia da sexualidade, considerada o mal e o pecado, mácula e bestialidade,
segundo as afirmações secularmente repetidas das morais repressivas, dos
puritanismos e catecismos religiosos. A sexofobia implica uma repressão
libidinal: o indivíduo é bloqueado em sua evolução normal para a genitalidade
(que significa, para Reich, realização sexual e potência orgástica) e permanece
fixado em estágios pré-genitais ou pré-edipianos; que o mantêm em um estado
de infantilismo sexual propício à ressurgência ou à exaltação de certas formas
e figuras arcaicas. Entre as mais típicas, citar-se-á a imagem de Mãe primitiva,
ainda superabrangente, fortemente ambígua, naquilo que é ao mesmo tempo
envelope protetor, refúgio paradisíaco, mas também potência medusante,
demoníaca, devoradora; ela servirá de base ao culto de Mãe-Terra, da Grande
Alemanha — o “mal” de que é portadora sendo rejeitado, projetado sobre
outros, os estrangeiros, os parasitas, os judeus; a imagem do Pai despótico e
castrador, que exige dos filhos uma submissão - homossexual - total, que
monopoliza não somente o poder, mas o próprio ser, em torno do qual gravita,
massa turbulenta, anônima e homogênea, uma comunidade que se diz frater­
nal, fraternidade de Sangue mítico e de Raça pura; a imagem dos pais
combinados, unidos, fundidos, numa relação sexual de que o filho se vê

994
alucinado pelo fantasma da cena originária e que é de natureza, por seus
aspectos confusionais e agressivos, a alimentar o horror à sexualidade, assim
como uma certa disposição profunda para a fascinação, por exemplo, a que a
cruz gamada exerce, que Reich define como “um símbolo sexual”, “a união
sexual da Mãe-Terra com Deus o Pai”, “dois personagens enlaçados”. Em vez
de chegar a uma verdadeira genitalidade (ou seja, uma relação igualitária,
plena, confiante, terna e valorizadora com um parceiro), o indivíduo exposto
ao fascismo deixa dominarem nele as dimensões oral, anal e sadomasoquista
do erotismo: função de sedução carismático do Chefe que fala e arenga
(característica trazida à luz por Walter C. Langer, em Psicanálise de Adolf
Hitler), culto da disciplina e das cerimônias obsessivas, submissão masoquista
aos superiores, levada até ao sacrifício, e, corolariamente, atitude sádica com
relação aos “inferiores” de toda natureza, indo até ao extermínio. No interior
desse quadro muito sumário, poder-se-ia, para cada situação concreta, introdu­
zir uma infinidade de nuances, que levariam em consideração a incrível
complexidade dos conflitos psíquicos, da interpenetração enlouquecedora das
imagens e figuras do inconsciente, do jogo às vezes impensável das ambivalên-
cias. Reich chama a atenção principalmente para o fato de que o fascismo, se
exacerba muitas proibições e sujeições e leva ao extremo as formas de
autoridade e de opressão, não deixa de trazer certas gratificações libidinais
(erotismos pré-genitais, fantasma arcaicos, instintos de dominação, de des­
truição, etc.) e suscitar certo sentimento de liberação relativamente às formas
sociais hegemônicas tradicionais (religião, família, Estado, cultura, etc). Porém,
o que domina em todo caso, dentro desse confronto eterno entre Eros e
Tanatos, que Freud evoca em sua conclusão de O mal-estar da civilização, é
a vocação jamais desmentida nesses dias do fascismo de fazer triunfar o
instinto de morte.
Assim, em vez de contribuir para o movimento da vida e de sustentar
os processos de criação, as emoções fundamentais, no fascismo, pactuam
com a morte, se dedicam à degradação e à destruição do homem e da
humanidade. É “irracional” - e esse qualificativo revém sem cessar sob a
pena de Reich para caracterizar toda atitude ou toda tendência fascista. À
inclinação e à perversão das emoções, em sua disposição mortífera, ele dá o
nome de "peste emocional”, que define, nas últimas páginas de Psicologia
de massa, “como a soma de todas as funções vitais irracionais do animal
hum ano”. E, no prefácio da obra, avança esta proposição, onde sublinha o
termo essencial, como o fez anteriormente: “Em sua forma pura, o fascismo
é a soma de todas as reações caracteriológicas irracionais do homem
médio.”
A noção do irracional é uma peça maior do edifício reichiano. Ela cobre,
certamente, o vasto domínio das emoções enquanto são desviadas de suas
funções vitais, de sua razão de ser ou de seu ser de razão, assim como as
lógicas —ou ilógicas - dos fantasmas do inconsciente, tais como os concebe a
racionalidade tradicional. Mas ela leva muito mais longe: reúne e condensa em
si os traços mais típicos da civilização moderna. Essa, centrada sobre a

995
máquina e o maquinismo, se caracteriza por uma ideologia “mecanicista”, que
se torna ilustre sobretudo dentro desse uso instrumental da razão tão bem
esclarecida pelos filósofos da Escola de Frankfurt, Horkheimer e Adorno (A
dialética da razão). Recalcando as emoções e a subjetividade em proveito de
uma sacrossanta “objetividade" e de uma estrita e fria neutralidade diante do
mundo, o exercício mecânico dessa razão utilitária submissa ao reino da
quantidade provoca uma espécie de choque em contrapartida, uma contrapar­
tida do recalcado emocional, sob o aspecto de efusões místicas de toda
natureza. Mecanismo e mística exprimem, dessa forma, segundo Reich, as duas
faces, antagonistas e complementares, conflituais e cúmplices, de um ser
humano dividido, esquartejado, alienado de si mesmo - sujeito ao fascismo e
sujeito do fascismo. O que Reich exprime nestes termos, em seu prefácio da
Psicologia, sublinhando: “0 fascismo é a atitude emocional fundamental do
homem oprimido pela civilização maquinista autoritária e sua ideologia meca-
nicista-mística. É o caráter mecanicista-místico dos homens de nosso tempo
que suscita os partidos fascistas e não o inverso."
Por mais decisivo que seja o papel desempenhado pela estrutura
caracterológica no aparecimento do fascismo, Reich evita o impasse de um
psicologismo sumário, preservando uma circularidade ou uma dialética de
determinações entre elementos psíquicos e fatores sócio-históricos: a es­
trutura caracterológica “reproduz sob a forma de ideologias a estrutura
social da sociedade", a qual por sua vez reproduz nos sujeitos, com a ajuda
das instituições (família, escola, trabalho, etc.), costumes e leis, a estrutura
caracterial que a sustentará. É um processo de duração muito longa, e Reich,
censurando aos "partidos marxistas” o fato de só terem levado em conside­
ração “um espaço de duzentos anos mais ou menos, que correspondia quase
à expansão do maquinismo do século XVII ao XIX”, enfatiza, ao contrário,
que o fascismo do século XX “levantou o problema fundamental dos atribu­
tos caracteriais do homem, da mística e da necessidade de autoridade, que
correspondem a um espaço de 4.000 a 6.000 anos aproximadamente”.
Trata-se menos aí, parece, de designar acontecimentos históricos ou pré-his­
tóricos determinados do que de marcar momentos-limiares (revolução técni­
ca do Neolítico? organização das cidades? triunfo do patriarcado?) sus­
cetíveis de terem modificado a estrutura caracterológica do homem. Mas
Reich vai ainda mais longe e, em uma de suas últimas obras, A superposição
cósmica (1951), evoca como um traumatismo originário do animal humano:
“O maior enigma da vida, a função da autopercepção e da consciência de si
mesmo [sublinhado por W.R.]... enigma envolvido de pavor.” Esse terror
seria primordial do homem apoderando-se do mundo, mas apoderado por
ele, que colocaria de imediato seu selo sobre a própria razão humana e
serviria de matriz para ressurgências catastróficas do irracional, tais como o
fascismo?
Objetivo permanente de Reich, a luta contra o fascismo considerado
nessa perspectiva antropológica não poderia ser unicamente política ou ideo­
lógica - ela é um esforço verdadeiramente vital para restabelecer no homem

996
o próprio movimento da Vida, segundo essas três “fontes” que servem de
exergo (espaço para colocar data, inscrição, etc) para toda a obra de Reich: o
amor, o trabalho, o acontecimento. Amor, nesse caso, quer dizer expansão de
uma sexualidade “natural”, definida como potência orgástica. Trabalho quer
dizer relação racional e criadora com o mundo, com os objetos, num sistema
de organização social baseado sobre a autogestão e a “democracia do trabalho”
libertário. Conhecimento quer dizer triunfo de uma racionalidade liberada de
seus medos originários e de suas couraças históricas, e capaz de esclarecer o
caminho que leva o homem, segundo uma citação de Nietzsche tão cara a
Reich, para uma “alegria mais profunda do que o desgosto”.

• Obras traduzidas em francês: La psychologie de masse du fascime, Payot, 1972: L \analyse


caracteríelle, Payot, 1973\ Les hommes dans VÊtal, Payot, 1978; La superposition cosmique,
Payot, 1974; L ’éther, dieu et le diable, Payot, 1973; Le meurtre du Christ, Champ libre, 1971;
La révolution sexuelle, C. Bourgois, 1982.

► Roger Dadoun, Cent tleurs pour W. Reich, Payot, 1975; revista L ’Arc, Wilhelm Reich, ns
83,1983.

Roger DADOUN.

RENAN, Ernest, 1823-1892


A reforma intelectual e moral, 1871

0 historiador e filólogo Ernest Renan (1823-1892) foi toda sua vida um


“liberal” no sentido que esse termo tinha na sua época, isto é, ele queria um
Estado de direito; era, portanto, oposto ao bonapartismo encarnado por
Napoleão III e se aferrava sobretudo às liberdades de pensamento e de
expressão. Ele próprio havia sofrido com a intolerância religiosa após a
publicação de sua Vie de Jésus (1863) e sua destituição do Collège de France.
Na época de A reforma intelectual e moral, Luís Filipe e seu regime repre­
sentavam bastante bem seu ideal político para a França.
Esse livro, escrito logo após a derrota, o desabamento do Império, a
Comuna, o apogeu de Bismarque, é ao mesmo tempo uma obra circunstancial
e um texto em que se reencontram certas idéias políticas permanentes do
autor, assim como o eco das hesitações ou das controvérsias dos meios
intelectuais parisienses da época. De modo geral, pode-se dizer que Renan
toma posição aí contra o projeto republicano e se apóia para fazer isso sobre
o exemplo de duas repúblicas anteriores conhecidas na França; a primeira, que

997
expirou em 1799, e a segunda, liquidada em 1851. Ninguém, além disso,
suspeitava, mesmo na noite de 4 de setembro, de que uma república pudesse
nesse país durar mais do que sessenta anos.
Entre as idéias de La réforme que se reencontram em outros escritos
políticos de Renan, a mais ativa e a mais constante parece ser a do elitismo: o
da inteligência e do saber, antes de tudo. Intelectual, historiador e filólogo das
línguas semíticas, Renan estava convencido, desde sua saída do seminário, em
1848, de que a sociedade seria salva e deve, portanto, ser gerada por aqueles
cujo saber os faz emergir da massa inculta (o que era, aliás, seu caso pessoal).
Em L ’avenirde laScience, escrito em 1848, mas publicado somente em 1890,
essa idéia é esclarecida pelo sonho da revolução de 48 de uma sociedade
fraterna e harmoniosa: não se pode esperar nada de muito grande dos
progressos do espírito, diz esse admirador da Alemanha de Hegel.
Após o estupefaciente sucesso dos plebiscitos do Segundo Império, a
"massa” lhe parece pronta a perder-se nas paixões, não-educável, perigosa. O
gosto pela elite se muda em desconfiança com relação à democracia. Porém,
ao lado disso, A reforma intelectual e moral torna responsáveis pelas catás­
trofes nacionais tanto o exército, que corre atrás de medalhas, quanto a
impotente oposição republicana a Badinguet e a Igreja Católica, agarrada ao
passado.
Renan não tem palavras suficientes para execrar a Comuna, ainda que
torne parcialmente responsáveis por ela a cegueira e o cinismo da burguesia
rica. Estranhamente, esse pensador, embora atento ao que se pensava e se
publicava além-Reno, parece ter sempre ignorado até mesmo o nome de Karl
Marx - é verdade que, então, apenas modèradamente conhecido na própria
Alemanha.
Gambetta continua, segundo Renan, os erros da Revolução, e lhe parece,
em 1871, um iluminado, uma espécie de plagiador de 1792, o que, seja dito de
passagem, é totalmente inexato. Em resumo, o que inquieta Renan na demo­
cracia é a maioria aritmética dos incultos, mais ligados a suas vidas materiais
do que à salvação da coletividade; porém, o sentimento nacional é ignorado
tanto pelos operários, trabalhados pelo internacionalismo, quanto pelos cam­
poneses, facilmente regionalistas.
O lindo sonho de 1848 de uma escola que esclareceria as massas se
desvaneceu, e uma terceira república não lhe parece, pelo menos então, capaz
de realizar tal esperança. Nesse sentido, quando os partidários da laicidade
(secularidade) fizeram de Renan seu avalista teórico e político, eles não
estavam errados: Renan, candidato infeliz às eleições legislativas de 1869 no
distrito de Seine-ex-Marne, já preconizava “a separação da Igreja e do Estado”.
E preciso notar que à semelhança de vários de seus contemporâneos,
Renan leu Tocqueville e não ignorava a experiência política dos Estados
Unidos da América. É um país que representa um Estado de direito; não está
ameaçado por nenhum golpe de Estado; garante as liberdades públicas. Mas
esse regime republicano estável e eficaz resulta finalmente numa sociedade
“medíocre” da qual Renan não vê quer o projeto coletivo, quer a missão

998
civilizadora, quer a emergência dessas “elites” que condicionam profunda­
mente seus julgamentos.
O Renan de A reforma intelectual e moral se aproxima, nessa época, de
um Rémusat ou de um Thiers, ainda que seu pensamento político seja mais
equilibrado do que o deles. O livro de Renan não teve, apesar disso, mais
repercussão do que muitas outras publicações desse gênero no pós-guerra de
1870-1871. Porém, apresentar o livro de Renan fora de seu tempo, como o faz
Alain de Benoist, que era um homem muito bem informado, privilegiando e
absolutizando as afirmações mais suspeitas ou mais hostis com relação à
república, realça mais a polêmica do que a verdade histórica.
Seria preciso, enfim, seguir o itinerário político de Renan até sua morte
vinte anos mais tarde. Trata-se de um religamento à república, tardio, mas
racional. Se as honras com as quais o regime republicano o cobriu não servem
para nada dentro desse reatamento, fatos tão importantes quanto o reergui-
mento da França depois da derrota, a lei sobre a imprensa, a política escolar,
a promoção real das “elites”, a paz social, certamente precária, mas a grosso
modo assegurada, conduziram o autor a rever a maioria dos temas de A
reforma intelectual e moral.

• Oeuvres complêtes, U, Paris, Calmann-Lévy, 1947.

► La réforme intellectuelle et morale et autres écrits, textos escolhidos e comentados por


Alain de Benoist, Paris, Albatros-Valmonde, 1982.
Henriette Psichari, Renan et la guerre de 70, Paris, Albin Michel, 1947.

Olivier REVAULT D’ALLONNES.

RENOUVIER, Charles, 1815-1903


Manual republicano do homem e do cidadão, 1848

O Manual do filósofo Charles Renouvier, publicado em março de 1848,


merece figurar na história das obras políticas como o fruto do reencontro entre
um projeto político bem preciso - a difusão do ideal da revolução de 1848 que
se desenvolve na França após as jornadas de fevereiro - e uma ambição
filosófica — formular os princípios de uma “democracia social”, exemplar da
ambição reformista do século XIX. É, nessa qualidade, uma das versões desse
socialismo humanista, ao qual o Manifesto comunista, de Marx, se apresenta
como crítica e alternativa.

999
Apesar disso, a articulação entre o nível político (conjuntural) e o nível
filosófico (principal) é produzida por uma ambição pedagógica. Efetivamente,
foi a pedido do Ministro da Instrução Pública do primeiro governo da Segunda
República, Hippolyte Carnot, feito aos diretores de escolas no sentido de
estimularem os professores a redigirem “curtos manuais de perguntas e
respostas sobre os direitos e os deveres dos cidadãos"(Moniteur, 7 de março
de 1848), que Renouvier se pós a trabalhar. Esses manuais, destinados aos
educadores, tinham como meta sensibilizá-los com suas tarefas, visto que o
governo havia decidido "oferecer instrução primária a todos e torná-la obriga­
tória para todos”. Renouvier, “antigo aluno da Escola Politécnica” e irmão do
Ministro Jules Renouvier, era, além disso, membro da Alta Comissão dos
Estudos Científicos e Literários instituída para conduzir bem essa tarefa de
formação.
Sendo, nesse sentido, uma obra de encomenda, o Manual, de Renouvier,
é, portanto, típico de um gênero militante (15.000 exemplares de amostra
foram enviados aos reitores antes de reaparecer, como obra testada e ampliada,
em dezembro de 1848). Porém, além desse contexto, é um documento sobre
um projeto de pedagogia política de “instituição”, representativo desse momen­
to do pensamento político, alguma coisa como um “Catecismo do Cidadão” da
Segunda República. É como encontro entre os princípios e a prática política
que é preciso relê-lo.

Um projeto de pedagogia política

Escrito sob a forma de diálogo entre dois personagens, “o docente” e “o


alyno” (desempenhando o papel de dócil "discente”), o Manual representa na
verdade uma espécie de "Catecismo do Cidadão" (cf. o artigo consagrado à
obra de Volney que traz esse título). A analogia com o manual de instituição
religiosa se impõe, contudo, desde o início do diálogo. Paralelamente à religião
que ensina o acesso à “felicidade eterna", o Manual ensina “em nome da
República” os “meios de ser feliz na terra”. Sem dificuldade, o projeto de
instituição política é, portanto, acoplado ao de instituição moral. Seu tema
imperativo é: “Aperfeiçoai-vos”, pelo qual é preciso entender que o homem “se
aproxima o mais que pode de ser completo segundo sua natureza”.
A “justiça” funciona assim como regra para julgar individualmente as
ações. Ela se exprime, portanto, dentro de um fórmula demarcada por Kant
“Não faça aos outros o que não julgaria lhe devesse ser feito.” Ou, mais
positivamente: “Faça pelos outros o que julga que os outros devem fazer por
vocêv (pág.72). Por aí, “a justiça é uma espécie de igualdade”, fórmula que
esclarece a natureza ética do gênero de socialismo que é professado aqui. A
sociedade materializa a exigência ética, a igualdade é a tradução social da
justiça, assim como a fraternidade se verifica necessária, como segundo grau
da justiça - o conjunto sendo subordinado ao ideal antropológico de “aperfei­
çoamento”.
Isso permite colocar uma correlação radical entre o “fim moral do

1000
homem” e o “fim moral da sociedade”(títulos respectivos dos capítulos I e II).
Dizendo de outra maneira: “Não há duas morais, uma para o homem tomado
à parte, outra para a Sociedade de todos os homens tomados em conjunto.”
Postulado ou “constatação” a tomar nos dois sentido: pois, se a moral
individual só pode encontrar seu destino dentro da moral social, esta não tem
raízes qualitativamente diferentes daquela. Daí a enunciação de uma espécie
de imperativo social, correlato do imperativo individual: “Trabalhai e governai
de maneira a se tornarem melhores uns e outros"(pág. 77). O ideal de
Renouvier é o de uma espécie de otimização antropológica em duas faces: a
individual e a social.
Nada de extraordinário, já que esse Manual, que tem como finalidade
fornecer “os elementos políticos e não os da religião” (pág. 74), tem necessi­
dade de postular uma “ordem eterna”, “ordem de perfeição”- de obrigações e
de sanções - que se confunde com o programa de aperfeiçoamento. O amor
ao próximo e o ideal de uma vida melhor, em resumo, o ideal evangélico
fundando o ideal político. É em nome de Jesus Cristo que os homens devem
"facilitar seu aperfeiçoamento”(pág.78). Mas o essencial da mensagem de
Renouvier é que o ideal político se veja designado como tal sem que o ideal
evangélico permaneça carta fora do baralho.

O ideal republicano

Desse ideal de “religião política” exposto nos dois primeiros capítulos


dialogados, Renouvier vai deduzir de certa forma a definição da república e de
sua autoridade (cap.III), depois os “deveres do homem e do cidadão”(cap.IV),
mas também seus “direitos”(cap.V), especificando “a liberdade”(cap. VI), “a
segurança e a propriedade” (cap. VII), a “a liberdade e a indústria”(cap.VIII), a
igualdade e a fraternidade (cap. IX), antes de enunciar “os deveres e direitos
da República”(cap.X). É, portanto, de certa forma, o conteúdo constitucional
que é deduzido do ideal filosófico enunciado.
Enfim, em um terceiro tempo, Renouvier volta ao plano da experiência
histórica, para sondar o “passado da França”(cap.XI) e determinar os “meios
imediatos da salvação do povo e do estabelecimento da República”(cap. XII e
último). A estrutura da argumentação manifesta o motivo do Manual, colocar
os elementos de uma filosofia social (tempo I), deduzir dela uma teoria do
poder e do direito (tempo II) e inferir uma espécie de pragmática histórica
(tempo III).
A instância que permite a articulação entre esses três níveis é a “Repú­
blica”. Essa tem como vocação filosófica reunir os homens de maneira a que
“marchem juntos rumo ao seu aperfeiçoamento e praticando a fraternidade”
(pág. 79). Isso só é possível por meio de um ato político: a instituição de uma
“autoridade”, a do governo, ela mesma supervisionada pela autoridade que
“faz as leis”: uma e outra, dependentes do “Povo”. Essa é a República, que ela
institui “o governo pelo Povo” com a ajuda de “representantes”. Dizendo de
outra maneira: “A República é o estado de um Povo que só obedece a homens

1001
por ele próprio escolhidos”(pág. 80). O princípio é a “soberania”, da qual
Renouvier dá uma espantosa definição: “O comando absoluto, isto é, que só
presta contas a Deus”, o "único soberano” sendo “a nação em seu conjunto e
sua unidade, O Povo", exercendo “o poder por meio de seus represen-
tantes”(pág. 81), cada cidadão tendo “sua parte”. Em resumo, “a soberania do
Povo deve ser, na realidade, o exercício da força de todos dentro dos limites
da justiça e seguindo um espírito de fraternidade".
Vê-se que a soberania, segundo a concebe Renouvier - exprimindo o
desejo de uma refundamentação da República - , articula a idéia de poder
(contida no conceito clássico de soberania) com a de “deveres a preencher” e
de “deveres a respeitar”.
Não é por acaso que Renouvier considera antes de tudo os “deveres”,
que constituem a confirmação do conteúdo ético de sua problemática - tal
qual seu artigo “Filosofia”, na Encyclopédie nouvelle, havia definido (em
1847). Tanto mais que ele entende por “dever”: “Um ato ou uma regra de agir
aos quais nos sentimos obrigados pela consciência ou pelo coração” (pág. 83).
Exatamente após “o dever de viver”, justiça e fraternidade aparecem como os
dois componentes do dever assim definido, aos quais se acrescenta “o dever
de tolerância”. O dever do cidadão é “obedecer à lei” (pág. 84), com suas
conseqüências (defesa, contribuições jurídicas), em resumo, ele se deve à
Pátria. Assim, “a vida de um bom cidadão não passa de um longo dever” (pág.
87) . O direito é apenas “a contrapartida de um dever”: é nesse nível
circunstância notável - que aparece a idéia de "contrato social": em Renouvier
ela está estreitamente ligada à do “sacrifício" de “certas ações naturais”(pág.
88) (o que confirma o matiz religioso desse ato político de base).
Porém, impõe-se aí a idéia de “direitos naturais”, isto é, inalienáveis,
como a liberdade e a igualdade. Renouvier as apresenta curiosamente como o
que não pode ser sacrificado, tanto quanto o sacrifício saído do contrato social
permite garantir (este último ponto estando mais de acordo como o modelo de
Rousseau, cuja presença se faz sentir ali, livremente transposto). Aí começa a
dedução dos “direitos e deveres do homem e do cidadão” versão contemporâ­
nea que se encontra reproduzida ao fim do Manual e é, por conseguinte seu
comentário temático.
A liberdade é definida como uma espécie de postulado da ética política:
“A liberdade é o poder de fazer tudo o que não prejudique os outros, tudo que
não invada os direitos dos outros” (pág. 88), o que determina a lei. É sobre
esse fundamento que se desenvolvem as liberdades —de consciência, de falar,
de escrever e de imprimir, liberdade individual, liberdade política e de associa­
ção —, somente limitadas pelo uso de meios ilegítimos, como a fraude e a
violência. A “segurança” constitui menos um direito particular do que “a forma
de todas as liberdades"(pág. 95).
Aí aparece a dimensão econômica e social da República de Renouvier:
compete à República efetivamente garantir a seus membros a propriedade,
“fruto do trabalho do homem”: está aí mesmo o que impede o cidadão de ser
“o escravo da república”(pág. 96), o homem podendo e devendo “gozá-la e dela

1002
dispor segundo a lei”. É preciso ainda encontrar “meios para impedir os ricos
de serem ociosos e os pobres de serem engolidos pelos ricos”(pág. 97). É essa
passagem do capítulo VII, o mais radical do Manual, que transformou a obra
numa espécie de bomba política, por ocasião de uma grave crise ministerial
(ver infra). Para dissimular os efeitos desse canibalismo social, flagelo da
República mais do que efeito da luta de classes, trata-se de recorrer às
instituições sociais de crédito, assegurar a associação dos trabalhadores e
dividir mais a propriedade, sem que para tanto se chegue a uma total
“comunidade da terra”. Tanto mais que a República tem o dever de intervir
nas condições de trabalho e na “regulagem dos preços e dos salários” (pág.
104) e de promover uma "organização do trabalho", sem que isso a leve a
entravar a liberdade da indústria - simplesmente para prevenir seus efeitos
lastimáveis.
É pelo direito ao trabalho e à instrução que a República realiza seu
princípio de igualdade, condição concreta da fraternidade. Em troca desses
deveres da República - que são igualmente direitos exigíveis pelos cidadãos -
a República pode exigir por seu lado a realização de um certo número de
obrigações: serviço militar, imposto, fidelidade dentro das funções e sacrifícios
necessários —termo decididamente recorrente no Manual.

A legitimação da República

Resta o último tempo: o recurso à história. Esse —“o passado da França”


—se apóia, aliás, sobre uma exigência: a de legitimar o presente projeto político,
colocando-o em perspectiva na história, sobretudo com relação a seu prece­
dente, o aparecimento da “primeira república”. Trata-se, por isso mesmo, de
dissipar o mal-entendido, mostrando tudo o que a República —batizada “nossa
velha mãe”(pág. 116), como que para ancorar o imaginário da pedagogia
política - fez pelo povo, e de suprimir a aura de “pavor” que permanecia
associada ao uso da violência revolucionária. A nova República, trazida pelo
vento da história, será, portantp, “humana”, no sentido literal.
Graças ao "sufrágio universal”, “instrumento de todas as reformas so-
ciais”(pág, 127), a “República política” realizará sua “verdadeira meta”: “a
República social", isto é, “a Coisa de todos, por todos e para todos", por uma
série de reformas sociais, econômicas e jurídicas. Existe aí a ambição de fazer
a Revolução Francesa ter sucesso radicalizando-a —por onde se revela o plano
de fundo de Saint-Simon da reforma política pregada pelo Manual. Porém, isso
é apenas o prolongamento da exigência ética, segundo o princípio formulado:
“A verdadeira política vem da moral”, se bem que “quem conhece a moral
conhece também a política”(pág. 115).

Os atrativos do Manual republicano

O Manual é um modelo exemplar da obra política militante que se esforça


por dotar uma experiência histórica de princípios —na ocorrência da Segunda

1003
República - em vez de formular princípios a realizar - como a obra política
clássica.
Enquanto obra de conjuntura, o Manual esteve implicado na própria
história da Segunda República: em julho de 1848, o deputado Bonjean, em
nome dos conservadores da Assembléia, ao pedir destaque para o projeto de
decreto de reorganização do ensino primário, refere-se justamente ao Manual
de Renouvier, como claro exemplo de uma formulação detestável - a passagem
citada acima, sobre a situação dos pobres engolidos pelos ricos", alimentou
principalmente o debate. Interpelado, o Ministro Hippolyte Carnot se defendeu
de maneira embaraçada, sugerindo que ele havia tolerado, mais do que
aprovado, o Manual, enquanto Jules Renouvier tentava sua apologia, apresen­
tando-o como a obra de um homem ‘‘de gabinete”, tendo enunciado “verdades
sociais”. Foi em conseqüência disso que o ministro Carnot foi derrubado, o
que constitui uma das primeiras crises do regime. Dessa forma, o Manual, obra
de teórico, tornou-se uma arma e um atrativo políticos.
Mas o próprio Renouvier estava consciente de que essa justificação da
nova República, por mais comprometida que estivesse na experiência histórica,
aproximava-se muito da utopia: o Manual terminava na verdade com a
evocação da “terra prometida”(pág. 142), característica “dessa Utopia, essa
terra" de Lugar Nenhum que fascina... os amigos da humanidade em todos os
séculos”. Mas essa versão moderna da Utopia está destinada a suscitar um
reencontro entre os princípio e a realidade: vale, portanto, como imperativo. A
República de Renouvier não é, portanto, nem uma descrição da República
existente nem uma utopia desencarnada: é a vontade de realizar os princípios
dentro de uma realidade determinada, se bem que Renouvier enuncie um
imperativo que é também uma “palavra de ordem”: “Fundaremos a Esparta
cristã, a Jerusalém cristã, essa República verdadeira em que o espírito da
Grécia e a força de Israel se unirão no coração da França, e da qual o Cristo,
se reaparecesse aqui embaixo, não desdenharia de se dizer cidadão” (pág. 143).
Esse ideal de "cristianismo social” procura se “encarnar” na nova República
para nela tomar corpo de alguma maneira.
Renouvier pode ser considerado, nesse sentido, um dos primeiros exem­
plos do intelectual francês moderno: originalmente pouco inclinado para a
política, inspirado pelas correntes do século XVIII - de Rousseau a Condorcet,
passando por Helvetius — impregnado de exigências éticas, encontra a saída
para suas idéias dentro do ideal generoso da transformação social de 1848. A
pedagogia política, portanto, nesse caso, é menos a expressão da justificação
de um regime do que a vontade de encontrar, no destino desse regime, a
realização de seu ideal. A dimensão saint-simoniana (tradição de família no lar
dos Renouvier) e o socialismo só fazem, nesse caso, realizar, no plano social,
essa exigência ética: por onde se reencontra uma dimensão característica do
socialismo francês, até Jaurès, pelos menos. Nesse sentido, o Manual, qualifi­
cado mais tarde, pelo próprio Renouvier, de “pecado da juventude”, escrito
rapidamente sob a pressão das circunstâncias, permanece um testemunho:
cristalização de uma filosofia social, que encontrará seu desenvolvimento em

1004
Organisation communale etcentrale de la République (1851), onde Renou-
vier exprime a concepção do Estado descentralizado, síntese do indivíduo e da
comunidade do Partido Democrático, por um governo direto (por uma influên­
cia mais sensível de Proudhon).
Talvez a idéia mais original do Manual seja a de procurar nessa concep­
ção ético-política “contratual” a relação de uma instância, a República, com
outra, os cidadãos Renouvier procura determinar em que condições uma e
outra podem exercer seus respectivos poderes. Essa combinação de neokantis-
mo e de neo-rousseaunismo, ligada a uma teoria do progresso, mais tarde
relativizada e especificada em “personalismo”, merece ser redescoberta pela
releitura do Manual, na qualidade de componente da filosofia social e figura
do vir-a-ser histórico do socialismo francês. Apreende-se aí, ao mesmo tempo,
a realidade política, tomada pela teoria, e um ente de razão, tentando abraçar
um momento da realidade histórica.

• Manuel républicain de 1’homme et du citoyen, por Charles Renouvier, antigo aluno da


Escola Politécnica, publicado sob os auspício do ministro provisório da Instrução Pública, Paris,
Pagnerre, 1848 (março de 1848); 2! edição revista e consideravelmente aumentada (dezembro
de 1848); reedição apresentada por Maurice Agulhon, Ed. Carnier, 1981.
Cf. igualmente \’Organisation de la République, projeto apresentado à nação para a organiza­
ção da comuna, do ensino e da Força Pública, da Justiça, das Finanças, do Estado, Librairie
républicaine de la liberté de penser, 1851 (assinado por vários pessoas, mas redigido por
Renouvier sozinho).

► Abbé Louis Foucher, Lajeunesse de Renouvier et sa première philosophie (1815-1854), Vrin,


1927; G. Richard, La question sociale et le mouvement philosophique au X IX e siècle, Paris, Colin,
1914 (2! parte, capít IV: “Charles Renouvier et la philosophie sociale du néo-criticisme français");
I. Comwell, Les príncipes du droit dans la philosophie de Charles Renouvier. Le droit inter-
national, Les Presses Universitaires, sem data.

Paul-Laurent ASSOUN

RICHELIEU, Armand-Jean Du Plessis, cardeal de, 1585-1642


Testamento político, em tomo de 1632-1639

De todo os textos publicados sob o nome de Cardeal de Richelieu


(Mémoires, Maximes d ’État), o Testament politique é o que dá mais lugar à
reflexão política, que expõe, se não uma verdadeira doutrina, pelo menos as
idéias mais elaboradas sobre o governo do Estado.

1005
A autenticidade dessa obra, da qual há vários manuscritos diferentes,
nenhum dos quais parecendo ser o original, foi muito controvertida. Já no dia
seguinte à primeira edição, publicada em Amsterdam, em 1688, o advogado e
historiador Aubéry, um dos primeiros biógrafos de Richelieu, colocou-a em
dúvida. Ela foi negada mais vigorosamente ainda por Voltaire. Ninguém mais,
hoje em dia, pensa ver no Testamento um apócrifo inteiramente forjado por
um falsário. Mas a parte que coube ao cardeal em sua elaboração permanece
discutida: trata-se de uma obra pessoal ou de uma coletânea de documentos
compilados por seus secretários, talvez mesmo após sua morte, como acontece
com suas próprias Mémoires: É certo que ele não redigiu seu Testamento
político, que recorreu a colaboradores (entre os quais talvez o célebre padre
Joseph, mas isso não passa de uma hipótese) que utilizaram diversas fontes,
entre as quais escritos anteriores do ministro, seus papéis de Estado e obras
políticas antigas ou contemporâneas. Esses elementos disparatados nem sem­
pre foram bem harmonizados, e o Testamento permaneceu inacabado: se
alguns capítulos foram objeto de cuidada redação, que parece definitiva, outros
foram compostos apressadamente, de um só jato, e justapõem desenvolvimen­
tos às vezes contraditórios. A influência de Richelieu parece ser, no entanto,
indubitável. Encontram-se no Testamento numerosos estudos e reflexões que
trazem a marca de sua personalidade, exprimem-lhe os sentimentos íntimos ou
se referem a acontecimentos vividos (como as observações amargas sobre a
pobreza dos cavalheiros provinciais e de certos bispos, lembranças de sua
juventude com pouco dinheiro), assim como idéias rigorosamente conformes
à sua política, para que a redação possa ter sido efetuada sem a presença dele.
Não há dúvida, portanto, de que o trabalho dos secretários foi dirigido por
Richelieu e que o Testamento político constitui a expressão fiel de seu
pensamento.
Numa dedicatória ao rei, Richelieu expos as intenções que determinaram
a confecção dessa obra, provavelmente entre 1632 e 1639, em vista dos
acontecimentos relatados e dos documentos ali transcritos. Seu projeto inicial
era escrever uma história do reinado de Luís XIII, e uma abundante documen­
tação havia sido reunida para isso por seus colaboradores (ela será utilizada
mais tarde nas Memórias, de Richelieu). Mas o peso das obrigações públicas e
a precariedade de sua saúde tinham-no forçado a renunciar a ele. Em seu lugar
ele fez redigir o Testamento, que parece, entretanto, bem diferente dessa
história inacabada a que nos estamos referindo, não somente porque ele traz
bem mais do que ela o traço da influência do cardeal, mas, principalmente,
porque ele responde a fins específicos, que não são os de uma obra histórica.
Esse doente crônico, que temia próxima a vinda da morte para interromper
sua obra governamental, pensava assegurar a perenidade de sua política
deixando para Luís XIII uma coletânea de conselhos práticos nos quais se
pudesse inspirar. Por esse fato, mesmo que o ponto seja questionado, não me
parece que o tenha destinado à publicação, pelo menos de imediato: seu único
destinatário era o rei.
O Testamento político apresenta-se sob uma forma muito estruturada:

1006
duas partes compreendendo oito e dez capítulos, respectivamente, eles pró­
prios subdivididos, muitas vezes, em seções. De modo geral, o plano foi julgado
artificial, mas, a despeito de uma certa falta de rigor e de múltiplas digressões,
responde a uma lógica própria, apoiada inteiramente na noção de Estado, tema
básico do Testamento. A primeira parte, se se colocar à parte uma “sucinta
narração das grandes ações do rei” (cap. 1), que aparece mais como introdução
histórica ao conjunto da obra e, sob o pretexto de retraçar as grandes ações
do rei, dedica-se sobretudo a louvar os méritos de seu ministro e a excelência
de sua política, tem como assunto a estrutura do Estado. Aborda inicialmente
cada uma das ordens que o compõem e do conjunto harmonioso que devem
formar (“o Estado em si mesmo”), depois os órgãos dirigentes do estado que
são o rei, sua Casa e seu Conselho, termo que, para Richelieu, encobre a
totalidade do governo central. A segunda parte consagra-se à maneira de dirigir
o Estado e enumera os princípios fundamentais que o rei deve observar no
exercício de seu governo. Ela constitui, assim, um verdadeiro manual de arte
política que se pode comparar, apesar de incontestáveis divergências de ponto
de vista, a O Príncipe, de Maquiavel.

A estrutura do Estado

O estado é composto das três ordens entre as quais, tradicionalmente, se


repartem os súditos do rei: clero, nobreza e terceiro estado; e a condição
primeira da firmeza de sua constituição reside na boa organização de cada uma
delas. Richelieu, fiel à concepção tripartite da sociedade herdade da época
feudal e sistematizada no início do século pelo jurista Charles Loyseau (o
tradicionalismo é um dos traços maiores de suas idéias sociais), consagra a
cada ordem desenvolvimentos de amplitude desigual, desproporção plena­
mente reveladora da desigual importância política que ele lhes reconhece. O
clero, primeira ordem do reino, vem à frente, em capítulo seis vezes maior do
que aquele que tratará da nobreza. 0 homem da Igreja, que o cardeal
permaneceu sendo apesar de suas responsabilidades políticas, preocupa-se no
mais alto grau com a regeneração do estado eclesiástico preconizada pela
Contra-Reforma católica. De todas as medidas propostas, as mais importantes
visam a defender e restaurar a autoridade episcopal: reforçar a disciplina e
melhorar a moralidade dos prelados de um lado, mas, do outro, combater as
práticas que minam o poder episcopal, constituem as maiores preocupações
dessa parte do Testamento político, que insiste longamente sobre a necessi­
dade de limitar as ingerências dos assessores reais nos assuntos eclesiásticos,
de pôr um freio na multiplicação das isenções, nos abusos das regalias e do
patronato, nos diversos privilégios que entravavam a faculdade dos bispos de
atribuir benefícios eclesiásticos. Programa dentro da tradição de um galicanis-
mo * moderado, que compartilha os interesses do estado (o episcopado era

* Doutrina político-religiosa que, em França, contestava o poder absoluto dos papas e favorecia
mais liberdade, tanto para os conselhos eclesiásticos quanto para os soberanos, nos assuntos

1007
firme sustentáculo da monarquia), mas recusa a estrita sujeição da Igreja ao
poderio público que os parlamentos e os conselhos reais pretendiam impor em
nome dos princípios galicanos.
A nobreza, honrada de qualificativos aduladores que a designavam
como “um dos principais centros nervosos do Estado, capaz de contribuir
muito para sua conservação e para seu restabelecimento”, é, no entanto,
examinada, de maneira mais reassumida, num capítulo que traduz os senti­
mentos mesclados de Richelieu, cheios de louvores, mas também dé des­
confiança, a respeito de uma ordem da qual se originava, da qual comparti­
lhava amplamente as idéias, mas que destilava também (e isso era verdade
sobretudo no caso da Alta Nobreza) perigosos adversários da autoridade
estatal. É a favor, baseado em sua própria experiência de fidalgote necessi­
tado, de proposições ambiciosas e, sem, dúvida utópicas, dado o estado das
finanças reais (ele próprio o reconhece em algumas frases desabusadas),
objetivando sustentar uma nobreza provinciana que muitas vezes “só é rica
em coragem” e que é humilhada ainda pela opulência ostentatória dos
oficiais enriquecidos, em contraste perturbador da ordem social. 0 rei
deveria prover as necessidades de sua nobreza desvalida, proporcionando-
lhe cargos militares ou civis, o que supõe a abolição da venalidade na sua
atribuição, criando novos quadros de oficialato recrutados exclusivamente
no âmbito da nobreza provinciana, reservando-lhe também um certo número
de benefícios eclesiásticos. Mas a contrapartida reside na estreita submissão
da'segunda ordem ao Estado: é preciso forçar seus membros a servirem ao
rei de acordo com suas condições, isto é, pelas armas, e Richelieu chega até
a propor privar de sua nobreza aqueles que se subtraírem e esse serviço,
retirar-lhes a honra “à qual se apegam mais do que à vida”; é preciso
impedi-los de oprimir o povo, conter sua propensão à independência; é
preciso, sobretudo, combater o hábito nefasto dos duelos e reprimi-lo
severamente. Se Richelieu defende a nobreza, é sob a forma de uma ordem
disciplinada, que coloca suas virtudes guerreiras a serviço exclusivo do
Estado.
O breve capítulo reservado ao terceiro estado trata essencialmente dos
oficiais de justiça e de finanças, que representavam os estratos superiores da
terceira ordem e procuravam mesmo constituir um quarto estado, pretensão
que Richelieu rejeita. Visivelmente, o cardeal não chega a ter simpatia maior
pelos titulares de posições burocráticas, mesmo quando dá provas de certa
moderação a respeito dos oficiais de justiça. O Testamento repete muitas das
queixas habituais sobre os desregramentos da justiça, mas não descobre
remédio para eles nem mesmo na supressão da venalidade e da hereditariedade
dos ofícios de judicatura: os inconvenientes do sistema são passados em
revista, mas no fim do exame a conclusão pende em favor de sua conservação,
testemunhando o pragmatismo do ministro e também sua impotência para
reformar uma prática daí em diante muito bem estabelecida. Ele manifesta o

de interesse imediato. (N. da T.)

1008
mesmo realismo ou a mesma resignação, tomando o partido das advertências
e das pretensões políticas dos parlamentos, apesar de uma hostilidade de
princípio a respeito das intervenções da magistratura nos assuntos de Estado.
É aos financistas que ele reserva a maior parte de sua severidade. Pois, à
denúncia de suas malversações, de seus enriquecimentos rápidos em detrimen­
tos do rei, responde com um programa preciso de reformas que passa pela
supressão da venalidade dos cargos de finanças e o exercício desses por
comissão, meio radical, mas, sem dúvida, irrealizável, de pôr fim à dependência
tão nociva do Estado quanto aos financistas.
No que toca ao povo, elemento residual do terceiro estado, Richelieu só
lhe concede algumas observações marcadas por uma certo desprezo. Não
afirma ele que, se as massas estivessem demais à vontade, seria impossível
mantê-las dentro dos limites de seus deveres, pois sua ignorância às torna
incapazes de se submeter espontaneamente à razão e às leis? E ele não as
compara a mulas, que se desgastam mais por um longo repouso do que pelo
trabalho? Ele só as considera sob o ângulo das isenções fiscais que o Estado
concede àqueles cuja condição só lhes permite a produção de bens materiais.
Mas Richelieu dá importância demais às questões econômicas para subestimar
essas funções e aqueles que as assumem. O Testamento político pleiteia a
moderação dos impostos que pesam sobre as camadas populares tanto em
nome da justiça quanto, naturalmente, do interesse do Estado. Ele se pronun­
cia a favor do aumento da taxação indireta, que atinge aqueles que consomem
mais, portanto, os ricos.
O conservadorismo social de Richelieu o conduz a partilhar das con­
cepções organicistas do estado, muito difundidas em seu tempo. Não basta,
para assegurar a prosperidade do “Estado em si mesmo”, reformar separa­
damente cada uma das ordens; é preciso conservar o equilíbrio que deve
existir entre elas e que se baseia numa hierarquia “natural” dos direitos e
das honras entre seus membros respectivos, hierarquia que reproduz fiel­
mente o plano do Testamento: "... assim como um todo só subsiste pela união
de suas partes em sua ordem e em seu lugar natural, assim também este
grande Reino só pode ser florescente se V.M. fizer subsistirem os corpos dos
quais ele é composto, em sua ordem: a Igreja mantendo o primeiro lugar, a
nobreza, o segundo, e os funcionários públicos que marcham à frente do
povo, o terceiro” Se os membros de uma ordem procurarem usurpar um
lugar distinto daquele que lhes é destinado por sua posição, logo cessarão
de ser úteis ao estado para só ficar dependentes dele. Ora, a hierarquia
tradicional de sociedade parece ameaçada pelas atitudes dos servidores do
Estado, cujos abusos Richelieu denuncia: poderosos com suas riquezas
recentes e com as parcelas de autoridade que seus cargos lhes conferem,
procuram elevar-se à primeira categoria; logo eles, cujo lugar é apenas na
terceira. Pretensão tanto mais escandalosa para Richelieu por estar ele
impregnado das teorias nobiliárias cultivadas desde o século XVI e firme­
mente persuadido das virtudes do “berço”, do “sangue" e da “raça”. Quer
seja na escolha dos bispos ou na dos funcionários da Casa Real, ele

1009
recomenda considerar antes de tudo o fator “berço”. Um de seus agravos
mais sérios contra os financistas é que sua riqueza de aquisição recente lhes
permite aliarem-se às melhores famílias, abastardando-as, fazendo-as perde­
rem sua virtudes ancestrais. Se reconhece pelo menos uma vantagem no
concessionamento de cargos públicos, é a de fechar as portas a homens de
baixa extração social, portanto, de menor virtude. E, se propõe a redução do
número de colégios, é porque demasiados jovens poderiam adquirir maior
instrução e abandonariam em seguida as profissões compatíveis com sua
condição de origem.
A frente do Estado o rei e seus ministros formam um conjunto indisso­
ciável. Pois, quaisquer que sejam as qualidades pessoais do monarca (Richelieu
as enumera, dando ênfase às que mais falta fazem a Luís XIII, desenhando,
assim, um curioso retrato em negativo do Rei), ele não poderia governar
sozinho: “Ser capaz de se deixar servir não é uma das menores qualidades que
um grande Rei possa ter.” A felicidade do Estado resulta mais certamente da
conjunção das capacidades do príncipe e das de seus ministros: "Um príncipe
capaz é um grande tesouro para qualquer Estado. Um Conselho tão hábil
quanto deva ser não o é menos.
Mas a combinação dos dois tem valor inestimável, já que é dela que
depende a felicidade dos Estados." É preciso, portanto, descobrir bons conse­
lheiros. Desses ele não exigiria capacidades enciclopédicas, uma cultura livres-
ca demais; mostra reservas quanto aos grandes espíritos, mais nocivos do que
úteis nos assuntos de Estado. Procuraria antes homens probos, aplicados nos
negócios, sabendo falar-lhe com franqueza, indiferentes às calúnias, afastados
dos interesses, das paixões e, sobretudo, das mulheres, pois, nota o misógino
Richelieu, “como por uma mulher se perdeu o mundo, nada é mais capaz de
prejudicar os Estados do que esse sexo... Ele encontrará Conselheiros ideais
certamente entre os eclesiásticos, que, desprovidos de mulher e filhos, terão
menos do que outros a preocupação de fazer prevalecer seus interesses
particulares.
Não basta escolher conselheiros competentes e devotados; é preciso
garantir-lhes a confiança e o sustentáculo permanentes do rei contra os
invejosos, os mal-intencionados e os descontentes. É preciso também organizar
o Conselho, no sentido institucional, em vista de sua maior eficiência. Richelieu
foi, dessa maneira, levado a esboçar uma teoria do ministeriato, para justificar
o regime que ele próprio havia instalado: o rei devia ter conselheiros pouco
numerosos (não mais do que quatro), cabendo a um deles receber parcela
superior de autoridade: esse seria “como o primeiro móvel, que move todos os
outros lugares sem ser movido a não ser por sua inteligência”. A menos que o
rei se sujeite a exercer ele mesmo a direção do governo, “a ter continuamente
o olho sobre o mapa ou sobre a bússola”, ele deve escolher um primeiro-minis­
tro que gozará de primazia no Conselho, que inspirará e harmonizará a política
dos outros ministros, que assegurará a indispensável unidade do comando,
“pois não há nada mais perigoso para um Estado do que diversas autoridades
do mesmo nível na administração dos negócios”.

1010
A direção do Estado

A arte de conduzir o Estado obedece a regras precisas, longamente


expostas na segunda parte do Testamento, onde se expande a originalidade do
pensamento político de Richelieu. Pois os princípios de governo nela afirmam
bem alto sua autonomia com respeito à moral comum e mesmo, em certa medida,
às lições do cristianismo. Richelieu opera uma distinção radical entre o homem
privado e o homem público: o segundo, em nome de suas funções, não poderia
estar sujeito às mesmas exigências que o primeiro. Ele tem sua própria ética, sob
certos aspectos mais limitadora, sob outros mais leve: essa moral, em nome da
qual se efetua a secularização da política, é a razão de Estado. Se a expressão
não figura no Testamento, sua noção encontra-se bem presente.
Certamente, Richelieu não subestima a religião. O primeiro de todos os
preceitos que se impõem aos reis é o de respeitar a vontade divina, onde se
encontra o fundamento de sua autoridade: “O reino de Deus é o princípio do
governo dos Estados.” Os príncipes têm deveres para com a Igreja: dar a seus
súditos o exemplo da piedade, reprimir as blasfêmias, favorecer as conversões
à verdadeira fé (Richelieu exclui, entretanto, o emprego da força para obter a
abjuração dos protestantes). Mas esses deveres não implicam nem dependên­
cia, nem submissão a esse respeito. Dentro da ordem temporal, e os assuntos
de estado dependem exclusivamente dela, os reis e os ministros agem com toda
liberdade e só prestam contas de seus atos a Deus. Devem submissão e respeito
ao papa apenas no plano espiritual, mas, mesmo em seu foro íntimo, é preciso
eles se guardarem dos escrúpulos excessivos, com respeito à religião, que são
a marca do espírito devoto, tão difundido no início do século XVII e tão
estranho a Richelieu. A atitude religiosa do Cardeal é a de um humanista, para
quem “basta dividir sua vida em duas partes muito desiguais e sem comunica­
ção: uma vez prestados a Deus a homenagem e o culto que lhe são devidos, se
está inteiramente livre para não tomar outro guia além da filosofia antiga e do
bom senso para as questões da vida cotidiana” (J. Orcibal). Aplicada ao homem
público, essa posição legitima a razão de Estado. Um rei ou um ministro não
infringirá os mandamentos divinos ao estabelecer como regra de conduta a
salvação de seu Estado. Tanto mais que Richelieu parece ver bem na existência
do Estado um efeito da providência divina, na ordem temporal, da mesma
maneira que na da Igreja, no âmbito da ordem espiritual: "Se os reis são
obrigados a respeitar a tiara dos soberanos pontífices, eles o são também a
conservar o poderio da Coroa.” Agindo em defesa do Estado, não estão
cumprindo o desígnio de Deus?
A razão de Estado consiste primeiro em dirigi-lo pela razão: “A razão deve
ser a regra de conduta de um Estado. ”A razão, disciplina da idade clássica,
impõe aos governantes um perfeito domínio de si mesmos a aptidão para
dominar as paixões e as inclinações individuais, a desconfiança dos arrebata-
mentos. Requer também inabalável firmeza na execução das decisões necessá­
rias para o bem público e exige que, em todas as coisas, o interesse geral seja
preferido ao particular. Exige, enfim, a discrição (outro motivo para excluir as

1011
mulheres dos assuntos públicos), a vigilância, a previdência: os ministros, como
os leões, devem dormir com os olhos abertos e saber prevenir os males mais
do que curá-los.
A dominação do Estado, mesmo se a razão que a inspira não repudia, tanto
faz, preocupação de justiça, de honra, de amor pelos súditos, não se poderia
impor, entretanto, sem a coação, a força e o poder material. Ela deve vencer, ao
mesmo tempo, as resistências que encontra nos franceses, cuja leviandade
natural os leva muitas vezes a só considerarem seus interesses particulares, e a
rivalidade hostil dos Estados estrangeiros. Tratando dessas questões, Richelieu
descobre acentos maquiavélicos, e nenhuma passagem do Testamento os ex­
prime mais cruamente do que os desenvolvimentos sobre a a coação, as
liberdades que a razão de Estado permite aos governantes a respeito da moral
comum, em contrapartida aos grandes deveres que ela lhe impõe. Se a arte de
dirigir os homens repousa sobre as recompensas e sobre as penas, as segundas
revestem-se bem mais de importância do que as primeiras, pois rudes castigos
produzem mais efeito do que benesses rapidamente esquecidas: "Eu faço a pena
marchar adiante da recompensa, porque, se for preciso privar-se de uma das
duas, valeria mais dispensar-se da última do que da primeira.”Portanto, os
assuntos de Estado não podem ceder lugar à piedade ao perdão das ofensas como
a caridade cristã ordena. Pois, nesse domínio, trata-se menos de sancionar as
faltas passadas do que de prevenir a renovação de atos perigosos para o poder
público: “Em matéria de crimes de Estado, é preciso fechar a porta à piedade,
desprezar as lamentações das pessoas interessadas e os discurso da plebe
ignorante.” A mansidão e a compaixão, louváveis no homem privado, só cons­
tituiriam, no caso do homem público, provas de fraqueza prenhes de conseqüên­
cias políticas: "Não se poderia cometer maior crime contra os interesses públicos
do que se tornando indulgente para com aqueles que os violam.” Mesmo as
garantias judiciárias oferecidas comumente aos particulares devem ceder diante
do interesse geral: "É preciso, em tais casos, recorrer logo à execução, ao passo
que, nos demais, convém buscar esclarecimento do direito por meio de testemu­
nhas ou de provas irrecusáveis.” Máximas perigosas, Richelieu admite, que
devem ser aplicadas com moderação, mas por demais necessárias à salvação do
estado para que se possa renunciar a elas sem arrependimento.
O poder é ao mesmo tempo meta e instrumento do Estado: “Assim como
a bondade é o objeto do amor, o poder é a causa do temor.” A importância
capital que Richelieu lhe atribui mede-se pela amplidão do capítulo —o mais
longo do Testamento - que lhe consagra. Ele o faz depender de fatores que
parecem, para alguns, bem tradicionais, até mesmo banais: a reputação do
príncipe e essa preocupação com a opinião pública não surpreendem no caso
do cardeal - que não se constrangia em tomar da pena para redigir nas gazetas
artigos favoráveis a sua política - , bem como o poder das forças armadas e as
fortificações de fronteiras (embora se possa inutilmente procurar o traço da
noção de fronteiras naturais em seus escritos). Outros se revelam mais
inovadores, e Richelieu foi um dos primeiros a ter plena consciência da
importância da economia como fundamento do poderia estatal. O Testamento

1012
político reserva ao comércio longas passagens de inspiração mercantilista.
Assim como ao poder das forças armadas terrestre, é à marinha que também
cabe assegurar o poderio do Estado; embora ela, desconsiderada no correr dos
reinados precedentes, não venha a desempenhar somente um papel militar,
cabendo-lhe a função de instrumento a serviço do grande comércio, asseguran­
do à França o domínio das rotas marítimas. Para conseguir o ouro e a prata,
esses “tiranos do mundo” do qual está naturalmente privado, o reino deve
impor-se nos principais circuitos comerciais, que o Testamento passa longa­
mente em revista, e vender mais, às nações estrangeiras, do que delas compre.
Objetivo de maneira nenhuma irrealizável já que, partilhando uma crença
difundida por autores como Bodin e Montchrestien, Richelieu está persuadido
de que a França pode facilmente passar sem os produtos das outras nações,
enquanto essas não podem, ao contrário, subsistir sem recorrer aos seus. O
inventário detalhado dessas mercadorias exportáveis (sobretudo dos gêneros
agrícolas, pois o mercantilismo de Richelieu permanece essencialmente agrá­
rio) se faz acompanhar de um plano de encorajamento das exportações e de
redução das importações, pela taxação das mercadorias de luxo ou supérfluas,
programa que as guerras impedirão de ser executado, mas que inspirará
Colbert
A publicação tardia do Testamento político limitou bastante sua influência.
Antes de ser impresso, o texto foi certamente conhecido pelos que cercavam Luís
XIV, assim como os outros escritos de Richelieu, de quem Colbert era fervoroso
admirador. Quando pela primeira vez veio à luz, em 1688, o Rei-Sol conduzira a
monarquia absoluta a seu apogeu e já começava um movimento de reação em
favor do liberalismo. Dentro desse contexto pouco favorável, a obra, voluntaria­
mente despojada de toda consideração metafísica, caracterizada antes de tudo
por seu pragmatismo, por sua descrição friamente realista dos mecanismos do
poder monárquico, iria suscitar reações às vezes hostis, como testemunham no
século XVIII as críticas de Voltaire. No entanto, se o pensamento político não é
somente fruto de reflexão teórica, mas também de experiência prática, então o
Testamento político conserva um grande interesse: uma vez dissipadas as
incertezas artificialmente mantidas sobre sua origem, ele traduz fielmente as
idéias daquele que contribuiu de maneira decisiva para conduzir o regime
político da França para o que se convenciona chamar de o absolutismo. Ele
mostra sobre que paixão do Estado se apoiou esse regime: um Estado que
transcende os interesses das diferentes ordens que o compõem, que exprime
apenas, sob uma forma impessoal e abstrata, o interesse superior da nação e se
torna, dentro do quadro de uma política amplamente liberta da religião, o valor
supremo dos governantes, aquele ao qual eles devem sacrificar tudo, a começar
por eles mesmos. Dessa exaltação da idéia de Estado, que até hoje deixou traços
profundos em nosso pensamento político, o Testamento político permanece um
dos exemplos mais eloqüentes.

• 1) Edições do T esta m en t p o litiq u e : Henry Desbordes, Amsterdam, 1688 (Desbordes, refugia-

1013
do protestante originário de Saumur, era provavelmente ligado à família de Richelieu, o que
explica sua posse do manuscrito), reproduzido em fac-símile, Caen, dentro de Filosofia Política
e Jurídica, 1985, (B ib lio th è q u e d e P h ilo s o p h ie p o litiq u e e t ju r id iq u e , tex te s e t d o cu m en ts); F.
Marin, Paris, 1764; R Gaucheron, em O eu vres du c a rd in a l d e R ich elieu , Paris, 1929 (ed.
parcial); L. André, Paris, 1947 (a mais recente e também a melhor edição, mas que não se poderia
ter como definitiva. Cf. o resumo crítico de J. Stengers, Rev. B e lg e P h ilol. H ist., t. 26, n8 3,1948,
págs. 650-660).
2) Outros escritos políticos de Richelieu: M óm oires, ed. Petitot, 10 volumes, 1823; éd. Michaud
e Poujoulat, 3 vols., 1837-1838; éd. Soc. de 1’Histoire de France, 10 vols., 1907-1921 (anos 1600
a 1629 somente); M a x im es d'Ê lat, éd. G. Hanotaux, 1880; Papier d’État: L ettres, in str u c tio n s
d ip lo m a tiq u e s e t p a p ie r s d ‘Ê ta t d u c a rd in a l d e R ich elieu , por G. d'Avenel, 8 vols., 1853-1857;
L e s p a p ie r s d e R ich elieu . S e c tio n p o litiq u e in té rie u re , por P. Grillon, 6 vols. publ. em 1975 e
sq.; S e c tio n p o litiq u e ex térieu re. E m p ir e a lle m a n d , t. I, 1616-1629, por A. Wild, 1982
(publicação em curso).

► 3) Obras sobre o T estam en to e o pensamento político de Richelieu: M. Deloche, A u to u r d e


Ia p lu m e d u c a r d in a l d e R ich elieu , 1920, e L e T esla m e n t p o litiq u e du c a rd in a l d e R ich elieu ,
Rev. hist, t 165 (1930), págs.43-76; H. Hauser, Autour du Testament politique de Richelieu,
B uli. Soc. H ist. m o d ern e , ns 3 (abril de 1935), págs. 74-77, e L a p e n s é e e t T action é c o n o m iq u e
d u c a r d in a l d e R ich elieu , 1944; R. Mousnier, Le Testament politique de Richelieu, R ev. hist.,
t 201 (1949), págs. 55-71 e 137; E. Esmonin, Sur l'authenticité du Testament politique de
Richelieu, B u li Soc. H ist. m o d ern e , n8 26 (dez. 1951-janeiro 1952), págs. 7-14 e discussão págs.
14-21, reimpr. em É tu d e s s u r Ia F ra n ce d e s X V l l f e t X V I I f siè cles, 1964, págs. 219-232; J.-J.
Chevallier, Testament politique ou les Maximes d'État de M. le cardinal de Richelieu, Rev.
in tern a c . H ist. p ol. c o n stit., janeiro-junho de 1951, págs. 77-91; G. Thuillier. Maximes d’État du
cardinal de Richelieu, R ev. a d m in is lr a tiv e , set.-out. 1956, págs. 481-486; E. Thuau, R a iso n
d ' E ta t e t p e n s é e p o litiq u e à 1’é p o q u e d e R ich elieu , 1966, págs. 351-358.
4) Obras gerais sobre Richelieu e a política de seu tempo: G. Avenel, R ich elieu e t la m o n a rc h ie
a b so lu e , 4 vol., 1884-1895; G. Hanotaux et duc de La Force, H isto rie du c a r d in a l d e R ich elieu ,
6 vols. 1893-1947; J. Orcibal, Richelieu, homme d’Ég!ise, homme d’État, R ev. H ist. É g lise d e
F ra n ce, 1948, págs. 94-101; V.-L. Tapie, L a F ra n ce d e L o u is X III e t de R ich elieu , 1967; K.-J.
Burckhardt, R ich elieu , trad. íranç., 3 vols., 1970- 1975; W.-F. Church, R ich elieu a n d R e a so n
o f S ta te, Princeton, 1972; M. Carmona, R ich elieu , 1983 et L a F ra n ce d e R ich elieu , 1984; F.
Hildesheimer, R ich elieu . U ne c e r la in e id é e d ’É tat, 1985; H. Mechoulan (dir.), L 'État ba roqu e.
1 6 1 0 -1 6 5 2 , 1985.

Jean-L ouisT H IR E A U

ROBESPIERRE, Maximilien de, 1758-1794


Sobre as relações das idéias religiosas e morais com os princípios re­
publicanos e sobre as festas nacionais, 1794 (18 floréal ano II)

Sabe-se que retrato Maquiavel traça do príncipe verdadeiro: “Não é


necessário a um príncipe ter todas as boas qualidades que enumerei, mas é
indispensável parecer tê-las; ousaria mesmo dizer que é algumas vezes perigo-

1014
so fazer uso delas, embora seja sempre útil parecer possuí-las” (Maquiavel,
1532, pág. 59). Essas qualidades têm relação com a moral, à qual Maquiavel
estima que a arte política não pode deixar de se referir, embora a “verdade
efetiva”(verità effettualé) do político seja de outra ordem. Ora, é precisamente
a caducidade da concepção maquiavélica que Robespierre pretende energica­
mente sustentar em seu discurso justificativo do decreto que estabelece o culto
ao Ser Supremo, de 18 floréat* do ano II: o “maquiavelismo" é expressamente
denunciado como a arma dos déspotas (pág. 160, edição citada no apêndice
bibliográfico).
O que se reivindica nesse trabalho, portanto, é uma política antimaquia-
vélica (quaisquer que sejam os contra-sensos cometidos noutros textos sobre
o pensamento do florentino): uma política moral, só ela capaz de traçar o curso
da Revolução Francesa, quase dois anos depois do estabelecimento da Repú­
blica, algum tempo depois da eliminação da Gironda e, em seguida, dos
hebertistas e dantonistas. O que se repudia é a idéia de uma moral política
específica, que seria apanágio de dirigentes investidos de responsabilidades
que só eles possuem. O que é preciso definir é, portanto, uma política da
“virtude” inerente ao regime republicano ou, ainda, do “coração” (o termo é
repetido treze vezes) e da “probidade”(seis ocorrências): é preciso e basta que
as consciências sejam transparentes para que a transparência social se es­
tabeleça. Mas, como iremos ver, há sempre patifes.
Vamos, portanto, abordar um discurso sobre princípios, apesar de se
situarem no próprio centro da ação, que, como tal, é um documento excepcio­
nal, pois, chama-nos a uma “meditação”(pág. 155) sobre o processo revolucio­
nário em pleno andamento, revela-nos a idéia que o jacobinismo no poder tem
de si próprio, a percepção que tem do inimigo, as influências variadas e
contraditórias que às vezes traz em seu bojo (racionalismo abstrato, fé
enciclopedista no progresso, rousseaunismo, deísmo, redução do social ao
individual), mas exprime também o impacto determinante de uma certa
estrutura psicológica, de uma personalidade: a do Incorruptível. Aceitar-se-á,
portanto, o princípio de um comentário de texto, relativamente minucioso, de
maneira a realçar os traços que desalinham uma certa visão política; mas se
deixará de lado a questão complexa das origens possíveis desse culto, do qual
Robespierre se quis o instigador.

A teoria da revolução

A “revolução”, termo que toma um novo sentido na época, tem para


Robespierre uma significação múltipla, de um lado, ela é a continuação dos
progressos históricos da humanidade: “O mundo mudou e deve mudar ain-
da”(pág, 156). É um quadro abrangente dos "progresso do espírito humano”
que o orador traça, segundo o mesmo credo de Condorcet, que ele ataca, por

* Oitavo mês do calendário republicano francês, correspondendo ao período entre 21 de abril e


20 de maio. (N. da T.)

1015
outro lado, tão furiosamente (o qual terminava seu Prospectus d ’un tableau
historique des progrès de Vesprit humain, em 4 de outubro de 1793, es­
condido na Rua Servandoni, não longe do patíbulo). Entretanto, a revolução
é também o percurso de um ciclo, como o movimento planetário, no qual o
que estava anteriormente na sombra vem para a luz plena: “A metade da
revolução do mundo já foi feita; a outra metade deve ser realizada” (pág. 156).
E, enfim, a idéia evolucionista e a idéia cíclica se conjugam para dar o novo
sentido de revolução: o que inverte a ordem das coisas, o que troca a base e o
topo da pirâmide social. “Na Europa, um trabalhador, um artesão são animais
tocados para o prazer de um nobre; na França, os nobres procuram se
transformar em trabalhadores e artesãos e não podem nem mesmo obter essa
honra”(pág, 157). Ou ainda: “A revolução [...] é apenas a passagem do reinado
do crime para o da justiça”(pág, 161).
Essa última citação nos leva ao principal efeito da revolução robes-
pierriana: eia é a retirada da moral da esfera da vida privada e sua inserção na
esfera política. A Revolução Francesa é o vir-a-ser-mundo da moral realizando
seu trajeto definitivo: a política se reduz, portanto, a “aplicar à conduta dos
povos as noções triviais de probidade que cada um é forçado a adotar em sua
conduta privada” (pág. 159). Pois, anteriormente, a monarquia relegava a
moralidade às “virtudes domésticas”‘à família, aos amigos (págs. 159-160).
Robespierre enfrenta, porém, a censura que Danton e outros não deixa­
ram de lhe endereçar: não se trata de uma ditadura estatal da moral sobre a
vida privada? Ele se defende: “Não se trata aqui de acusar nenhuma opinião
filosófica nem de contestar se tal filósofo pode ser virtuoso, quaisquer que
sejam suas opiniões e, mesmo, a despeito delas”(pág. 167).
Na verdade, tudo dentro de seu discurso contradiz essa pretensão ao
liberalismo, pois ele é inteiramente organizado por uma lógica dualista: toda
idéia, toda ação que não é produzida para o bem público é emitido contra ele.
Não basta agir conforme o dever cívico, é preciso agir pelo dever cívico:
segundo uma certa analogia com a problemática kantiana da moralidade (da
mesma época), a política robespierriana, é uma política da intenção, da boa
vontade. E, como veremos, isso a leva a ser aplicada como política de denúncia
das intenções, ou, ainda, como arte de desmascarar. Entretanto, antes de
chegar a isso, é preciso assinalar uma referência insistente: a reminiscência de
Rousseau.

Os ecos de Rousseau

Por sua frase de abertura, é de Rousseau que o discurso em estudo


parece invocar o testemunho: trata-se, “no silêncio das paixões”- célebre
fórmula! - , de fazer falar a “voz da sabedoria”. Em seguida, no segundo
parágrafo, é uma vigorosa antítese direito/fato o que se encontra, segundo
uma evidente conotação de Rousseau: “A natureza nos diz que o homem
nasceu para a liberdade, mas a experiência dos séculos nos mostra o homem
como escravo” (pág. 156).

1016
Um ano antes, Robespierre havia, ainda mais abertamente, “flertado”(Ac>-
kettieren, diria Marx) com o primeiro capítulo do Contraio social: “O homem
nasceu para a felicidade e para a liberdade, mas em toda a parte ele é escravo
e infeliz!” (Robespierre, t 2, pág, 141).
Mas não é apenas no andamento que as próprias teses aqui defendidas
impõem a aproximação: se o progresso das ciências e das artes não melhorou
moralmente o ser humano (pág. 157), a república de igualdade e de liberdade,
para se instaurar, necessita uma religião civil. E não será que Robespierre se
compara secretamente a esse "sábio legislador”, cujo Contrato descobre essa
abrupta necessidade por volta do capítulo 7, no livro II?
Aliás, se não havíamos entendido sob qual patronagem se coloca o
orador, ele próprio se dá ao cuidado de designar claramente Jean-Jacques “o
preceptor do gênero humano” (pág. 171) o único representante “probo”
(ibidem) da “seita dos enciclopedistas”...
Como, então, não sonhar com a participação de Rousseau nas festas,
quando Robespierre evoca "a alegria de um grande povo reunido sob os olhos
do Ser supremo”(págs. 175-176)?
Last but not the least, a oposição que ele ergue entre “o instinto moral
do povo”(pág, 179) e a razão pervertida dos filósofos é uma retomada certa do
Discours sur Vorigine de 1'inegalité. Lembremo-nos da famosa passagem sobre
o filósofo: “Pode-se impunemente degolar um semelhante seu sob sua janela;
ele só tem que colocar as mãos nos ouvidos a argumentar consigo próprio para
impedir a natureza, que se revolta nele, de identificá-lo com aquele que se
assassina [...]; é a gentalha, são as mulheres do povo que separam os comba­
tentes, e que impedem as pessoas honestas de se matarem umas às outras”.
Discours, 1964, pág. 156).
Concluamos essa seqüência de aproximações lembrando que, dentro de
seu projeto de “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, Robespierre
enunciava, no artigo 25: “Toda instituição que não supõe o povo bem e o
magistrado corruptível é viciosa” (edição citada, t. 2 pág. 140). Não se poderia
resumir de maneira mais estreita o pressuposto maior do Contrato Social. Mas
a genialidade de Robespierre foi de ter tirado conseqüências práticas, conse­
qüências para a luta política, desses princípios inseridos no espírito da época.

A política de Robespierre: tudo se divide para quem não é divisível,


tudo se desmascara para quem não está mascarado

A VERDADE: esse é o motivo principal da luta que Robespierre conduz


neste mês de floréal do ano II; a verdade: essa é a tocha da qual ele se servirá,
na grande “Festa do Ser Supremo”, para incendiar a estátua do Ateísmo, no
dia 20 de prairial.
E é exatamente em nome desse princípio da verdade em política que o
discurso desenvolve uma problemática do papel e da máscara inscritos no
carnaval trágico da Revolução. De fato, La Fayette, Dumouriez, Brissot,
Hébert, Danton não passariam de manobreiros que exaltavam a legalidade

1017
para secretamente sufocar a legitimidade revolucionária (pág. 162). Axioma:
quanto mais um líder aparece na cena política, mais se torne necessário
perguntar o que se oculta atrás de seu papel por demais visível: "Todos os
velhacos tinham usurpado uma espécie de sacerdócio político” (pág, 163).
Notemos que tal denúncia desse papel sacerdotal, é feita pelo grande padre
do Ser Supremo.
Segundo uma lógica da qual se lembrarão outros dirigentes revolucioná­
rios, Robespierre denuncia aqueles que brandem o símbolo do barrete verme­
lho para derrotar os próprios barretes vermelhos, aqueles que, no coração da
Revolução, sabotam a derrubada revolucionária: “Graças a essa subversão das
idéias revolucionárias [nós sublinhamos], a aristocracia [...] tramava muito
patrioticamente o massacre dos representantes do povo e a ressurreição da
realeza”(pág. 163).
A longa passagem das páginas 101 a 166 desenvolve o seguinte tema: na
Revolução Francesa, cada atitude é suspeita de estar grávida de seu contrário,
cada maneira de aparecer contradiz o ser. Daí a procura da intenção: “Que
querem aqueles que....”, “qual seria o motivo dessa grande operação?”(pág.
165). Mas, em boa teologia e escatologia revolucionária, aquele que dissimula,
na verdade não tem corpo, pois sua máscara só encobre o mal, que não é nada.
Esterilidade do negativo! Os “após tolos impetuosos do nada”, os “missionários
fanáticos do ateísmo"(pág. 165). e os “sofistas” em matéria de revolução
(pág. 167) são aniquilados quando desmascarados. A guilhotina só faz confir­
mar essa operação política fundamental: desmascarar. Retirar o simulacro, e
o simulador não será mais nada; inconsistente, insubstancial, uma depreciação
histórica.
Ao mesmo tempo, efeito inverso da mesma lógica, vem o elogio do
positivo: o político cuja intenção quer o bem. É Stanhope na Inglaterra (pág.
161), são os grandes homens de Plutarco, é, no povo, “o bom senso sem intriga
e o gênio sem instrução”, que fazem corar os homens de letras", esses homens
mesquinhos e vãos" (pág. 172). A Revolução Francesa tem seus heróis
positivos: o “bom artesão” que esmaga o "escrevinhador de livros”, o “bom
trabalhador” que suplanta “o acadêmico Condorcet” (ibidem)
Essa lógica maniqueísta não denota, porém, uma estrutura psicológica?
A psicanálise poderia restabelecer aqui traços de identificação paranóica no
“bom objeto”, diante do cerco dos simuladores-conspiradores. Pode-se enten­
der que Robespierre retrate a si próprio como homem “dotado de sensibilidade
e de gênio”(pág. 167), como “o grande homem, (o) verdadeiro herói [que]
estima demais a si próprio para se comprazer com a idéia de seu aniquilamen­
to” (pág. 169). E que é ainda ele quem se visualiza ao contrário, estigma­
tizando duas vezes Danton (pág. 162 e 173).
Afinal de contas, foi ele próprio quem estabeleceu a teoria dessa afeição
ambígua: “Há duas espécies de egoísmo”, o mau que isola e “o outro,
generosos, benfazejo, que confunde nossa felicidade com a felicidade de todos,
que une nossa glória à da pátria"(pág.. 158). Sem dúvida, efetivamente, o
Incorruptível aspira a fundir sua felicidade na ou com a felicidade dos outros,

1018
tanto mais que, na prática da depuração, via se realizar, aliás, o contrário dessa
benfazeja fusão. "História de uma solidão”, escreve Max Gallo em seu ins-
tigante estudo psicobiográfíco.
Quanto à liquidação desse destino e dessa política, Robespierre não
cessou de a prever durante longo tempo e, até mesmo, em seu último discurso,
o do dia 8 de thermidor*: “Que eles sejam levados ao cadafalso em conseqüên­
cia de seus crimes, e nós, em conseqüência de nossa virtude” (edição citada, t
3, pág. 193).

Algumas contradições perturbadoras

Essa mão que acabará por escrever: “Eu lhes lego a verdade terrível e a
morte” e esse “coração” que não dissimula, não parece no entanto, isentos de
estranhas reviravoltas.
Com efeito, eis que, no que toca à idéia do Ser Supremo, a “ficção”(pág.
167) pode prevalecer sobre a verdade! Parece que estamos aqui — para
parafrasear ainda Kant - diante de um postulado da razão política: "A idéia do
Ser Supremo e da imortalidade da alma é um apelo contínuo à justiça, ela é,
portanto, social e republicana”(pág. 167).
Entretanto, é curioso ver que liberdades o Incorruptível toma agora com
essa Verdade inalterável da qual ele pretende fazer depender o mundo novo:
"Aos olhos do legislador, tudo o que é útil para o mundo, e bom na prática, é
a verdade” (ibidem). Aproximar-se-ia, dessa vez, do príncipe de Maquiavel?
Ou... do utilitarismo de James, para quem Déus é “uma idéia que rende”?
Robespierre não deixa de sentir a ambigüidade de sua posição, e é para
se defender que adianta fórmulas que se parecem muito com a “negação”
freudiana: “Vocês decerto não concluirão disso que seja necessário enganar os
homens para instruí-los"(pág. 168). Vocês não concluirão... e, no entanto!...
A partir daí a ambigüidade não resolvida caminha dentro do texto: se a
revolução, como se viu, era novidade e reviravolta, eis que ele trata de reatar
com o passado: "Tomemos aqui as lições da história”(pág. 169). Ainda que
Robespierre não tenha vacilado em declarar que “Se Deus não existisse, §gria
preciso inventá-lo”( la de frimaire** do ano II, em Aulard, 1892, pág. 215), ele
formula depois a seguinte censura: “Os padres criaram Deus à imagem deles”
(pág. 174). Censura que seus adversários não vão deixar de lhe retribuir.
Além disso, após se ter guardado contra o ateísmo, é preciso agora se
guardar contra o fanatismo: O Deus-ficção por necessidade, torna-se o Deus-
verdade: “Fanáticos, não esperem nada de nós (...) Todas as ficções desapare­
ceram diante da Verdade e todas as loucuras caem diante da Razão” (ibidem).
Pararemos por aqui essa lista: parece bem que se, na ótica de Robes-

* Décimo-primeiro mês do calendário republicano francês, correspondendo ao período entre 18


de julho a 19 de agosto. (N. da T.)
** Terceiro mês do calendário republicano francês, correspondendo ao período entre 21 de
novembro e 20 de dezembro (N. da T.)

1019
pierre, tudo se divide, tudo está grávido de seu contrário, seu pensamento é
também atravessado, na linha de defesa, por essa mesma dialética.

Na historiografia: uma controvérsia permanente

Seria fora de propósito pretender resumir em algumas linhas o debate


multiforme e permanente de que Robespierre é tema para os historiadores.
Como demonstrou F. Furet, renovando nossa análise do jacobinismo, é
principalmente sobre a filiação ou sobre a ruptura afirmada entre 1789 e 1793
que se dividiu a historiografia, o jacobinismo inteiro parecendo ora o que
perverteu, ora o que concluiu o sentido da Revolução. Essa última inter­
pretação pertence à corrente de esquerda dos historiadores e começa desde
1796, com a afirmação de Babeuf: "O robespierrismo é a democracia”(citado
por Mathiez, 1973, pág. 249). F. Furet atribui a Robespierre uma preeminência
de fato: “Ele sozinho reconciliou miticamente a democracia direta e o princípio
representativo [...] Ele é o povo na Assembléia, o povo nos jacobinos, o povo
em sua representação nacional” (Furet, 1978, pág. 86).
A história das representações históricas do robespierrismo ainda está
com certeza por ser escrita, se não levarmos em conta a bibliografia muito
minuciosa de seus admiradores, tais como G. Walter ou J. Masin. No que toca
a Michelet, que não gosta muito dele, mas a reconhece como “um ótimo tático”,
pode-se, em contrapartida, citar Jaurès que, mostrando-se circunspecto, decla­
ra: “Estou com Robespierre e é ao lado dele que me vou sentar na bancada
dos jacobinos”(Jaurès, 1969, t.6, pág. 203)
Mas é preciso citar sobretudo Mathiez, que consagrou numerosos es­
critos à defesa e ilustração do Incorruptível. Sobre a questão principalmente
do Ser Supremo - que tem freqüentemente embaraçado os historiadores -
Mathies conseguiu a admirável proeza que consiste em sustentar que "a
opinião segundo a qual Robespierre seria o criador do culto do Ser Supremo
não resiste a um exame apurado” (op. cit., pág. 161). Sob esse aspecto ele
polemiza com a obra de Aulard, que permanece referência fundamental sobre
“o culto da Razão e o culto ao Ser Supremo”. Aulard, apesar de sua prudência
totalmente positiva, não esconde a aversão pelo Incorruptível, culpado de ter
lesado a secularidade republicana: “Para matar o livre pensamento, esse
homem do Antigo Regime não viu nada de melhor para fazer senão matar os
livres pensadores” (op. cit,, pág. 243)

• Edição mais accessível atualmente de Robespierre: T extes ch oisis, Editions Sociales, prefácio
e notas de J. Poperen, 1974, t. 1: 1 7 8 9 - 1792, t. 3: 1793-1794', o discurso estudado, t. 3 pág.
155, tem como título: S u r les r a p p o r ts d e s idóes re lig ie u se s e t m o ra le s auec les p r ín c ip e s
r é p u b lic a in s et su r le s fêtes n a tio n u le s (18 ílo r é a i ano II)

► Biografias d e R o b e sp ierre . —Marc Bouloiseau, R o b esp ierre, PUP, 5S edição, 1976; Max
Gallo, M a x im ilien R o b e sp ierre , h isto r ie d 'u n e so litu d e , Paris, Librairie Academique Perrin,

1020
1968, reeditado por Le livre de poche, 1974; Jean Massin, Robespierre, Paris, Livre Club
Diderot, 1956, 2®edição em 1970; Gerard Walter, Robespierre, Paris, Gallimard, 1946-1901, t.
I: La vie, t 2: Voeuvre.
Outros autores citados. - Marie Caritat, marquês de Condorcet, Esguisse d'un tableau
historique des progrès de Vesprit humain (ano II póstuma), Paris, Boivin, texto revisto e
prefaciado por O. H. Prior, 1933; Nicolas Maquiavel, Le prince( 1532), Paris, Ed. Pédagogie
Moderne, tradução e comentários de C. Roux-Lehmann, 1980 (preferimos essa tradução à da
Pléiade); Jean-Jacques Rousseau, Discours sur 1’origine et le fondement de Vinegalité parmi
les hommes (1755), e Du contraí social (1762), Paris La Pléiade, Oeuvres complètes d e j. —J.
Rousseau, t. 3, 1964
Controvérsias em tom o de Robespierre. - François-André Aulard, Le culte de la Raison et le
culte de VÊtre suprêmee, Paris Alcan, 1892; François Furet, Penser la Révolution française
Paris, Gallimard, 1978; Jean Jaurès, Historie de la Révolution française( 1901-1903), Paris,
Editions Sociales, edição revista e anotada por A. Soboul, prefácio de E. Labrousse, 1969, 6
vols.; Albert Mathiez, Études sur Robespierre (1973, póstuma). Paris, Editions Sociales, por G.
Lefebvre; Jules Michelet, Historie de la Révolution française (1847-1853), Paris, La Pléiade,
1939, 2 vols.

L u c i e n JAUME.

ROSENBERG, Alfredo, 1893-1946


O Mito do Século XX, 1930

O mito do século XX passa por ser a maior exposição doutrinária do


totalitarismo nazista; o livro valerá, em todo caso, para Rosenberg ser considera­
do o filósofo ou o teórico do nazismo. No entanto, por menos complexa que seja
a relação do nazismo com sua própria ideologia, o caráter inédito dessa e a
mentira pela qual ela concebeu sua própria colocação em prática, tornam
necessário que nos interroguemos sobre o fundamento de tais fórmulas.
Convém antes de tudo reduzir a influência do livro a suas verdadeiras
proporções. Apesar de suas tiragens impressionantes, ele não foi lido nem pelo
grande público, nem pelos principais dignitários do regime. Nenhum dos acusa­
dos de Nuremberg o havia lido. Para Goebbels, Rosenberg não passava de um
“quase-filósofo”. Hitler explicava o relativo sucesso da obra por seus ataques
contra o cristianismo e as violentas réplicas que suscitou dos teólogos (o livro foi
posto no Index). Para ele, não passava de uma cópia piorada de Chamberlain e
de Gobineau, cujo pedantismo não cessava de ridicularizar. (Fest, 1965).
Se, no entanto, era importante para os líderes do nazismo ter encontrado
em Rosenberg aquele que podia exercer o papel do filósofo preferido, apesar
do pouco crédito intelectual que lhe atribuíam, não se pode fazer de O Mito a
idéia de um simples álibi intelectual ou de um "ornamento filosófico” para o
uso das massas.

1021
0 Mito não foi reverenciado pelos principais intérpretes do totalitarismo,
que dele só aproveitam o estilo e o modo de composição, que o tornam
adequado ao doutrinamento: ele é uma acumulação afirmativa de evidências,
de verdades que declara adquiridas e são repetidas incansavelmente, sem
qualquer preocupação de discutí-las. O livro se viu logo reduzido a um
inventário heterogêneo e perturbador dos mitos e das crenças nazistas. Mas a
exaltação de uma tradição cultural alemã, a exumação e a revivência de mitos
reputados germânicos não constituem a especificidade do nazismo nem do
empreendimento de Rosenberg. De certa maneira, é fora mesmo do espaço dos
mitos ou do mitológico que a obra e sua lógica se corporificam.
O que é o mito, efetivamente, para Rosenberg? Não é o que designamos
comumente com esse termo: uma narrativa mais ou menos simbólica, legendá­
ria, representando as origens. “Não se trata de pesquisar o que há de
verdadeiro nas narrativas históricas ou legendárias nem o que se reconheça
de uma afirmação metafísica”(Mío, pág. 61). Tais mitos pertencem à “era
mitológica", época superada que sucumbiu sob os golpes do espírito crítico do
século XIX. Essa época foi primitiva e ingênua, sentencia Rosenberg, criticando
também aqueles que gostariam de voltar às fontes germânicas da mitologia.
O mito é um poder, mais do que uma representação. Não se trata de um
mito entre outros ou de um mito a mais, o último da época. Trata-se do
arquimito, aquele do qual procedem todos os mitos, e cujo único conteúdo é
o princípio ativo de todos os mitos. O mito é a potência de uma identidade
invisível, não-empírica: “A unidade intocável de todas as direções do eu, do
povo e, em geral, de uma comunidade determina um mito” (Mito, pág. 459).
O mito designa uma identidade particular, naquilo em que se opõe à
pretensão universalista dos dogmas e, principalmente, dos dogmas do cris­
tianismo. O mito não pode ser transmitido fora da identidade singular que
designa; ele não pode ser objeto de uma missão, como os dogmas religiosos.
Essa identidade não é imediatamente dada, e terá de ser conquistada. A
identidade dever ser sonhada. E, mais do que os outros, os chefes, os guias
devem sonhar com essa identidade. “O mito é o sonho de uma alma criativa de
realidade; não o simples sonho subjetivo, plácido, mas a força geradora daquilo
que vai ser" (Mito, pág. 68).
O sonho se encarna num tipo (Typus) ou numa figura (Gestalt). Essa figura
realiza a identidade trazida pelo sonho. Ela é, ao mesmo tempo a realidade viva,
efetiva e presente do mito e o modelo da identidade que o sonho deve encarnar.
Mas essa figura, como figura singular a cada vez, e limitada e condicio­
nada pela raça. A raça é a identidade de uma potência formadora singular. É
a raça que traz o mito: “O tipo é a forma plástica ligada ao tempo de um valor
racial e espiritual que é eterno” (Mythe, pág.531).
Para Rosenberg, o judeu não é, sob esse aspecto, simplesmente uma raça
má, um mau tipo (em oposição aos outros). Ele é o homem da universidade
abstrata, oposto ao homem que se efetua num tipo com uma identidade singular
e concreta. O judeu, já que é desprovido da identidade concreta e singular, é a
própria ausência do tipo, o antitipo por excelência (Nancy, 1981, pág. 121).

1022
A raça é determinada pelo sangue não pela língua. A língua não
determina a identidade de um povo ou de uma raça, como rezavam a tradição
romântica e os conceitos posteriores, até Spengler. É porque a língua já
pertence à universalidade que ela não pode assegurar a identidade de um
povo, tal é a base da crítica que Rosenberg formula com relação a Herder.
Dentro dessa construção, em que a história é apenas a história das raças
e de suas lutas, como justifica Rosenberg a preeminência absoluta concedida
à raça ariana? Porque o mito ariano é o mito do sol, oposto aos mitos da noite,
aos mitos dionisíacos. Por que o mito solar? Porque é o sol o que permite aos
tipos surgirem em plena visibilidade, ao mesmo tempo que representa o que,
pela força ou pelo calor irradiante, permite a formação desses tipos: “A
experiência mítica é clara como a luz branca do sol” (Mito, pág. 146).
Poder-se-ia até “dizer sem nenhuma gratuidade que esse mito da clareza
produz a clareza do mito em geral” (Nancy, pág. 124).
A preeminência do ariano é também assegurada pelo fato de que eles é
capaz de fundar ou de criar a civilização. Os outros povos são só “portadores
de civilizações”. Assim tem sido, desde esses grandes arianos da Antigüidade
que eram os gregos. Os gregos produziram seu mito como arte. Fizeram a
experiência em termos de arte e em sua concepção artística da forma, do querer
formar em geral. Os gregos produziram sua arte como a identificação sonhada
e plenamente realizada de seu tipo imaginado.
Compete ao povo alemão despertar as potências do mito, sua própria
potência formadora do tipo: é a tarefa que lhe cabe no século XX. Tem de
responder ao mito, permitir que ele nasça verdadeiramente e depois se
consolide no tipo ariano.
A Primeira Guerra Mundial, que foi a ocasião do desmoronamento dos
grandes dogmas, permitiu ao povo alemão fazer uma primeira experiência do
mito: “Dentro dos clarões dos combates ao povo teve a experiência de que a
velha vontade do sangue (Blutswille) vive ainda” (Mito, pág. 700). O patriotis­
mo deu lugar a uma “experiência vivida, mítica e real (ein mythisches,
wirkliches Erleben)"(Mito, pág. 449).
A relação que se exige como o mito é uma Bekenntnis, um ato de fé.
Esse ato de fé, para o povo alemão deve apoiar-se no mito ariano. Ele
acontece em uma Erlebnis, isto é, dentro de uma experiência vivida do mito,
bem além de uma simples relação de conhecimento, de uma relação intelec­
tual. O que é apenas uma outra maneira de dizer que o mito só existe como
mito vivido: a experiência vivida (Erlebnis) do tipo é a fonte do conhe­
cimento (Erkenntnis) do mito de toda a nossa história, o nascimento da alma
da raça nórdica e o reconhecimento íntimo de seus valores supremos (Mito,
pág. 531).
Esse último ponto é crucial: se o mito só existe verdadeiramente em sua
experiência vivida, se requer estar absolutamente encarnado, para ser presen­
temente seu próprio discurso, ele não é simplesmente a teoria da qual o III
Reich seria a prática. A rigor, Hitler só terá conduzido a seu termo a lógica
louca do mito.

1023
• Rosenberg proibiu qualquer tradução de O M ito d o S écu lo XX. A obra só existe em alemão.
Referência básicas: Wesen, C ru n d s ã tz e u n d Z ie le d e r N SD A P , Munique 1923; D ie P ro to k o lle
d e r W eisen von Z io n , Munique, 1923; D a s W esen sg efü g e d e s N a tio n a lso z ia lism u s, Munique
1934; B lu t u n d E h re, Munique, 1935; G e sta ltu n g d e r Id e e , Munique, 1936; T ra d itio n u n d
G eg en w a rt, Munique, 1941.

► Uma bibliografia completa dos escritos de Rosenberg figura em R. Bollmus, D a s A m t


Stuttgart, 1970.
R o s e n b e r g u n d s e in e G egn er,
Sobre as relações da política moderna com o mito. - H. Arendt, L e s g s tè m e to ta lita ir e Paris,
1972; H. Blumenberg, A r b e it a m M yth o s, Frankfurt sobre-o-Meno, 1979; E. Cassirer, D e r
M y th o s d e s S ta a te s , Zurique, 1949; J.L. Nancy, L e m y lh e n a z i, Atos do colóquio sobre os
“mecanismos do fascimo”, Estrasburgo, 1981.
Sobre Rosenberg como ideólogo e político. - R. Baumgaertner, W elta n sc h a u -u n g sk a m p f im
D r itte n R eich , Mainz, 1977; R. Cecil, The M yth o f th e M a s te r R ace, A lfre d R o se n b e rg a n d N a z i
ld e o lo g y , Londres, 1972; P. Crosclaude, L ee M y lh e d u X)C s iè c le d A lf r e d R o se n b e rg , Paris,
1938; J. Fest, L e s M a itre s d u T ro isièm e R eich , Paris, I9G5.

Claude LUTZ.

ROUSSEAU, Jean-Jacques, 1712-1778


O Contrato social, 1762

Gênese e história de O Contrato social

Antes de apreciar um tratado político, é útil saber como ele foi recebido.
O Contrato social, publicado em 1762 - é a edição que deve servir de
referência - foi reeditado uma única vez de 1763 a 1789, enquanto La
Nouvelle Héloise terá sessenta e cinco reedições no mesmo período. Nas
quinhentas bibliotecas parisienses do fim do século, inventariadas por D.
Mornet, só havia um único exemplar dessa obra. De 1762 a 1789 não se
encontra na França mais de uma quinzena de análises e resumos de O contrato
social. No entanto, de 1769 a 1799, houve nada menos do que trinta e duas
edições dele. Será que a Revolução se convertera às idéias de Jean-Jacques?
Claro que não. Ela admite o sistema representativo rechaçado por Rousseau,
o estatuto de Luís XVI não se encontra em parte alguma no tratado político de
Jean-Jacques, ela rejeita bem depressa o direito de resistência à opressão e,
para terminar, aplica restrições censitárias ao direito de elegibilidade e se
pronuncia pela pena de morte, que o pensador genebriano repudiava. Moral e
financeiramente, a Revolução Francesa criou condições tais que, segundo a
conhecida e chocante frase de Montlosier, “Jean-Jacques sequer poderia ter
sido eleito.” Rousseau tinha uma idéia precisa: o desenvolvimento da democra-

1024
cia direta. Ora, é digno de nota, como sublinha A. Aulard em sua Historie
politique française, que só houve uma única comuna em que um admirador
de Jean-Jacques propôs a aplicação da democracia direta, mas essa moção foi
repelida por unanimidade menos um voto. A Revolução Francesa talvez tenha
dado ensejo à decolagem por demais tardia de O Contrato social como reflexão
política, mas, em realidade, não existe outro regime que, tendo recorrido a
Rousseau, o tenha traído de maneira tão manifesta.
Estamos, portanto, em presença de uma obra singular. Mas existe ainda
algo mais singular. Rousseau, na Advertência, sublinha que “este pequeno
tratado foi extraído de uma obra mais ampla que tentei realizar noutra época,
sem ter consultado minha forças... O restante não existe mais”. Afirmação
surpreendente: Rousseau conservou, apesar do que diz, todos os seus escritos
assim como todo o seu teatro, onde o mau se avizinha do péssimo, e teria
abandonado o resto de seu pensamento político, redigido sem dúvida medio-
cremente, mas não pior do que seu teatro, que ele conservou! Rousseau teria,
enfim, confiado “um manuscrito de trinta e duas páginas, inteiramente escrito
de próprio punho” ao conde de Antraigues.
0 conde, não se sabe por que, destruiu o manuscrito e se limitou a dar
apenas uma idéia dele num texto suspeito. Pode-se sonhar com o texto de
Instituições políticas, que Rousseau menciona, por exemplo, em suas cartas ao
Senhor de Malesherbes. Porém, nada mais. É mais razoável supor que Rousseau,
quando se refere ao "restante que não existe mais”, tenha mentido por uma boa
causa. A hora dos maciços tratados de política - por exemplo as obras in-quarto
de Grotius ou de Pufendorf —havia passado. O autor dos célebres discursos sobre
as ciências e as artes ou sobre a origem da desigualdade convencera-se de que,
reduzindo o formato, aumentar-se-ia a repercussão. Talvez estivesse enganado,
como mostra a história, tão cruel foi ela com O Contrato social Rousseau tinha,
como o atestam La Nouvelle Héloise e Êmile, o potencial de redigir obras tão
importantes quanto Grotius ou Pufendorf; mas O Contrato social foi uma
escolha estratégica: preferir o florete à clava, reservando-se o recurso de apelar,
a esta última, pois “o restante que não existe mais” podia ser reencontrado. Por
esse ponto de vista, O Contrato social é uma obra polêmica.

O sistema de Rousseau e O Contrato social

O sistema de Rousseau, nem sempre reconhecido, é de uma coerência e


de uma complexidade que ultrapassam o simples entendimento. É preciso
concebê-lo, segundo a arquitetônica, como arte de sistema. E é no interior
dessa totalidade sistemática que convém situar O Contrato Social. Numa
reflexão cada vez mais cerrada, Jean-Jacques ia chegar à forte convicção de que
o gênero humano corria para o desastre: em toda parte ele entrevia a
infelicidade1, e muito rapidamente sua reflexão se organizou seguindo esse
tema. Estendendo-se, a civilização tirava do homem sua verdade de existência,
reduzindo-o a ser apenas uma máscara. Face a este movimento insensato,
Rousseau, que fala muitas vezes em remédios, torna-se um médico do corpo

1025
social. Ora, o médico descobre muito rápido que o homem, sustentado pela
perfectibilidade, foi longe demais; ele está em seu último momento de vida,
refugiado sob uma máscara, indício de inexistência. É o resultado global dos
dois primeiro Discursos. Ora, não se faz correr um homem que não existe mais.
Mas, em compensação, pode-se imaginar o que poderia ter sido. O mau uso de
sua liberdade conduziu o homem a se perder. Ainda uma vez é a lição dos
Discursos —mas esse mau uso da liberdade não era necessário, na medida em
que a liberdade poderia ter sido outra de sua escolha. Porém, feita a má
escolha, é preciso resgatar todas as conseqüências, e elas são terrificantes aos
olhos do médico. Os Discursos nos mostram o homem tal como ele se tornou.
O Contrato social nos mostra o homem tal como ele poderia ter sido. Existe
realmente, como queria M. Gueroult, uma oposição intensa entre a filosofia dos
Discursos e O Contrato social, mas, longe de ser ilegítima, ela está perfeita-
mente fundamentada e, em resumo, se concentra na da morte e na da vida
consideradas do ponto de vista médico-filosófico: o homem está morto, poderia
viver. Não se pode nem mesmo dizer que O Contrato social seja o esboço
daquilo que os homens deveriam ser. Não existe mais amanhã; Rousseau vê
crescerem as vagas da revolução em uma página profética do Émile, mas,
desde muito tempo, ele não ousa mais se pronunciar sobre o valor da
Revolução, remédio que poderia ser pior do que o mal.
Nessas condições, O Contrato social só pode ser um tratado do deses­
pero: “O homem nasceu livre, e em toda parte está prisioneiro. Quem se crê o
dono dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles” (I, capítulo 1). Da
liberdade para a prisão existe um passo irreversível: explicar a gênese desse
progresso fatal sobre o plano dos fatos é o objeto dos Discursos; apreender a
idéia do governo, nunca realizada, é o objeto de O Contrato social que no
espaço de um momento cessa de considerar o homem histórico para observar
apenas o homem essencial.
Na mesma medida em que o fato capital da perda de autoridade do
homem era rubricado pela análise implacável do Discurso sobre a origem da
desigualdade entre os homens, O Contrato social não podia sem paralogismos
encontrar uma abertura concreta no sistema de Rousseau. Certamente, encon­
tra-se uma reflexão muito rica no escrito sobre o Governo da Polônia (em
particular no capítulo IV) e no Projeto de constituição para a Córsega. Porém,
essas pesquisas são quase marginais; sem a idéia de que a Polônia e a Córsega
escapam ainda —e por quanto tempo? - à degradação da civilização, elas não
têm nenhum sentido. O horizonte filosófico é extremamente reduzido. Poucas
obras com tanto prestígio encontraram dentro do sistema uma abertura tão
estreita. Isso basta para fundamentar a asserção segundo a qual O Contrato
social é um canto lúgubre voltado para o que o homem poderia ter sido. O
livro foi queimado em Genebra, e Musset-Pathay, em Historie de la vie et des
ouvrages de J. - J. Rousseau (História da vida e das obras de J. - J. Rousseau),
em 1822, se indigna com o tratamento dado à obra. Mais pertinente, D. Mornet
comenta que, até 1789, O Contrato social não pertence à história dos homens.
O próprio Rousseau, escrevendo a Malesherbes, comunica que seu sistema

1026
prevê uma trilogia, da qual “esse primeiro discurso conteria um ensaio sobre
a desigualdade e um tratado da educação”. Pode-se explicar muito facilmente
que La Nouvelle Béloíse não seja mais citado; ele cobre o conjunto. Em
contrapartida, o fato de, nessa carta de 12 de janeiro de 1762, 0 Contrato
social não ter mais ostensiva relevância nos desconcerta —mas, para dizer a
verdade, Rousseau não queria somar desespero a desespero. Mas segue-se um
durável contra-senso; ele foi injuriado a todo instante, e Sénac de Meilhan
encontrou a mais justa expressão desse estado de fato: “O Contrato social”,
escreve esse contemporâneo da emergência da filosofia de Jean-Jacques,
“sendo profundo e abstrato, era pouco lido e ainda menos compreendido”. Não
se viam os vínculos íntimos com a proposta do filósofo, procurava-se esperança
numa melodia dolorosa, acreditava-se ler o amanhã, mesmo quando o texto
fosse desesperante.

Métodos de 0 Contrato social

Vários métodos se entrecruzam em O Contrato social. Primeiro o


jurídico na formulação do problema: “Encontrar uma forma de associação que
defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada
associado, e pela qual cada um, se unido a todos, só obedeça, no entanto, a si
mesmo e permaneça tão livre quanto antes.” Esse é o problema fundamental
para o qual O Contrato social dá a solução (I, cap. IV). Para chegar ao
enunciado do problema o método jurídico examina, por exemplo, os conceitos
de direito do mais forte ou ainda da escravidão. - O método histórico apóia de
imediato o método jurídico e Rousseau se preocupa com as primeira socie­
dades (I, cap. II). Sem poder retomar a história pragmática da sociedade
humana, preocupa-se em estabelecer que se pode ou que se deve sempre
remontar a uma primeira convenção (I, cap. V). Entre o pensamento jurídico e
o pensamento histórico há uma interação que só cessará com a conclusão do
livro. Por aí mesmo se explica a utilização do método político, que, por
exemplo, na teoria dos governos, é a feliz síntese dos momentos precedentes.
Essa síntese se prolonga num quarto elemento de método que se poderia
chamar de ideológico e se manifesta claramente na teoria da religião. Enfim,
dominado o todo, descobrimos o método matemático no cerne da solução do
problema proposto. Estamos, portanto, na presença de uma organização
sistemática dos métodos no quadro de uma perfeita síntese quíntupla.
Entre esses métodos, o encaminhamento matemático deve chamar aten­
ção. O Século das Luzes é o do cálculo infinitesimal. Serve-se da noção de
quantidade negligenciável, às vezes sem ter um conhecimento exato - sabe-se
somente que a margem de erro pode ser sempre diminuída, até não ser mais
um erro. Rousseau, que sempre se vangloriou de seu seguro progresso em
matemática - em oposição ao latim, do qual dizia estar destinado a reaprendê-
lo sem jamais o saber - , encaminhou-se muito nessa direção: deve-se a ele, em
parte, a introdução das ciências exatas no âmago da teoria política. Rousseau
sentiu a novidade metodológica de seu empreendimento e, no capítulo I do

1027
livro 11 de O Contrato social, toma uma certa distância com relação a seus
críticos, sublinhando que não utiliza matemática por mero capricho e indican­
do com precisão que ela só tem ali uma significação reguladora e não
constitutiva, para se servir da terminologia de Kant “Se, querendo ridiculari­
zar esse sistema, se dissesse que, para encontrar essa média proporcional e
formar o corpo do governo, só é preciso, segundo eu, extrair a raiz quadrada
do número do povo, responderia que só tomo aqui esse número como exemplo,
que as relações das quais falo não se medem somente pelo número, mas, sim,
em geral, pela quantidade de ação, a qual se combina por meio de múltiplas
causas. Que, todavia, se, para exprimir-me em menos palavras, peço empres­
tado por um momento termos da geometria, não ignoro, entretanto, que a
precisão geométrica não tem lugar adequado às quantidades morais.”
Encontramos em dois textos importantes de Rousseau a aplicação do
modelo do cálculo infinitesimal no campo político. A obra em que a aplicação
é mais nítida e não sofre nenhuma discussão é a carta a Voltaire, de 1756, a
respeito do desastre de Lisboa: Rousseau, que fala de “a pequenez das causas”,
dos efeitos “quase imperceptíveis”, não hesita em escrever: “Assim, a poeira
que uma carroça levanta pode não causar problema à marcha do veículo, mas
influir sobre a do mundo.” Pensar é, em larga medida, calcular. Se determina­
mos como resultado geral da história a marcha da carroça, os grãos de poeira,
embora sendo valores desprezíveis no sentido do cálculo integral, não devem
de forma alguma escapar ao nosso olhar. O segundo texto importante é a
segunda parte do Discurso sobre a origem da desigualdade. Reencontramos
aí a terminologia infinitesimal. Jean-Jacques fala de progressos insensíveis e,
quando esses se coligam para fundar uma integral social, serve-se da expressão:
“Estado nascente”, “sociedade nascente”. Parece à análise dos textos que,
naquilo que toca às quantidades desprezíveis, muito cedo Rousseau percebeu
a fecundidade da teoria do erro compensado.
Os outros métodos se entredeterminam. Por exemplo, a perspectiva
jurídica existe a priori e se ilustra na perspectiva histórica que existe a
posteriori. Resulta a determinação das condições de possibilidade do método
político que se propõe como o momento concreto em oposição à perspectiva
ideológica que se constata ser a religião limitada pelas exigências indes­
trutíveis da política. O Contrato social aparece, portanto, como uma obra
muito bem composta para a complexidade que revela e de modo algum como
um ensaio desprovido de métodos.

O tempo forte de O Contrato social

Os primeiros momentos de O Contrato social são desenvolvidos seguindo


a perspectiva dominante do método jurídico a priori—com algumas observações
de ordem histórica (I, cap. II). Trata-se de formular o problema geral. O direito
do mais forte, por exemplo, é denunciado a priori (I, cap. III). Rousseau tem em
vista duas coisas: de um lado, quer separar o problema da vontade geral; de
outro, já se assegura da soberania como inalienável. O problema é enunciado

1028
nestes termos: “Encontrar uma força de associação que proteja e defenda de toda
a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um se
unindo a todos só obedece, no entanto, a si mesmo e permanece tão livre quanto
antes? Esse é o problema fundamental para o qual o contrato social dá a
solução’’ (I, cap. VI). Se bem que não estejamos ainda no campo da matemática,
é por meio de uma imagem matemática que Rousseau ilustra sua proposta:
"Reduzamos todo esse balanço a termos fáceis de comparar. O que o homem
perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo
aquilo que o tente e que ele pode atingir; o que ele ganha é a liberdade civil e a
propriedade de tudo o que possui”(I, cap. VIII). Elevar-se da natureza à moral,
da unidade pura da liberdade natural à soberanias pura, esse é o itinerário das
perspectivas jurídicas e históricas que dominam o primeiro livro de Contrato
social. Torna-se oportuno tratar, então, da vontade geral. A esse próposito
impõe-se uma observação: em seu ensaio Direito natural, destinado à Encyclo-
pedie, Diderot tinha proposto uma definição da vontade geral absolutamente
semelhante à que Jean-Jacques propõe, Não somente em seu artigo sobre a
Economia política, mas também na primeira versão de O Contrato social (OC,
t III, pág. 286). Tem-se o direito de pensar que nem Diderot, nem Rousseau foram
os inventores de noção: Hendel a descobriu, com pertinência, em Pufendorf. A
definição da vontade geral proposta era a seguinte: “Entendendo-se que a
vontade geral seja, dentro de cada indivíduo, um ato puro da compreensão que
se elabora no silêncio das paixões sobre o que o homem pode exigir de seu
semelhante e sobre o quê seu semelhante está em direito de exigir dele, ninguém
discordará.” Essa definição, tomada sozinha, só tem dois defeitos. 0 primeiro é
de ser menos política do que ética: essa definição, com efeito, não se distingue
verdadeiramente da análise lógica e moral das máximas de Kant, que espera que,
no do silêncio das paixões, se generalizem, por meio de um ato puro da razão
prática, as máximas de ação; o segundo defeito salta aos olhos: sob a pena de
Diderot e de Rousseau, em seus escritos menores, a vontade geral possui um
sentido psicológico (daí provém a alusão aos-bandos de malfeitores animados por
uma vontade comum) e principalmente não se vê a dimensão operatória da
definição que permanece puramente nominal sem ser jamais genética. Os
momentos éticos nunca são imediatamente operacionais na esfera política. É
preciso uma mediação e é o que procura Rousseau em O Contrato social.
Ele a descobre apoiando-se sobre o cálculo da vontade geral. O texto
fundamental é o seguinte: “Há freqüentemente muita diferença entre a vontade
de todos e a vontade geral; essa só diz respeito ao interesse comum, a outra
diz respeito ao interesse privado e não passa de uma soma de vontades
particulares: mas, retirando dessas mesmas vontades os mais e os menos que
se entredestroem, fica, na soma das diferenças, a vontade geral” (II, cap. III).
A entredestruição dos mais e dos menos é uma expressão que se liga
diretamente ao cálculo infinitesimal. Se, por exemplo, quero obter a equação
de uma curva, o princípio consistirá em concebê-la como composta de uma
quase-infinidade de pequenas retas, e cada erro - em princípio uma reta não
é uma curva —será compensado por outro erro. Da mesma maneira, uma soma

1029
das diferenças não depende da aritmética elementar, e, quando se fala do
“grande número de pequenas diferenças”do qual resultaria sempre a vontade
geral e, em conseqüência, a justeza da deliberação, faz-se intervir ainda uma
vez o método infinitesimal. Isso supõe, do ponto de vista operatório, ao mesmo
tempo que a variável social seja informada e que os cidadãos chamados a emitir
uma opinião não tenham "nenhuma comunicação entre si” (II, cap. III). Pode-se
apreender esse ponto intuitivamente; minha diferença com os outros é infini­
tamente pequena, assimilável a uma reta infinitamente pequena; "Por exemplo,
observando uma curva como um polígono de número infinito de lados, cada
um infinitamente pequeno e cujo prolongamento é a tangente da curva, é claro
que se faz uma suposição errônea; mas o erro se encontra corrigido pela
omissão que se faz das quantidades infinitamente pequenas.” 2 Se a vontade
geral diz respeito ao interesse comum, é precisamente porque ela constitui
uma integração geral de todos os momentos infinitamente pequenos e, se não
pode jamais errar, é porque ela é uma integral que se apoia na entredestruição
dos mais e dos menos. A questão mais moral do que política de saber o que
significa sob a pena de Rousseau a expressão “...quando o povo suficiente­
mente informado delibera...” é extremamente difícil. O que quer dizer “suficien­
temente”? Quem informa? É o povo que se informa ou ele é informado e por
quem? A primeira pergunta, falando sobre o “suficientemente”, é razoável
responder-se que Rousseau, como se viu, não ignora os limites da precisão das
ciências morais. Quanto à segunda, só se pode resolvê-la passando para a teoria
da vontade de todos.

A vontade de todos.

Acabamos de examinar a estrutura da vontade geral que, em sua univer­


salidade reúne todos os momentos e se encontra por isso mesmo no princípio
do pacto social, assegurando a liberdade civil. Suponhamos que os cidadãos
tenham antes da deliberação alguma comunicação entre si. "... Armam-se
enredos, associações parciais à custa da grande associação, a vontade de cada
uma dessas associações torna-se geral com relação a seus membros e particular
com relação ao Estado; pode-se dizer, então, que não existem mais votantes na
mesma proporção que homens, mas somente na mesma proporção que asso­
ciações. As diferenças tornam-se menos numerosas e dão um resultado menos
geral. Enfim, quando uma dessas associações é tão grande que leva vantagem
sobre todas as outras, não teremos mais como resultado uma soma de
pequenas diferenças, mas uma diferença única; então, não há mais vontade
geral, e a opinião que prevalece é apenas uma opinião particular.”
O comentário, nesse caso, deve ser matemático e psicológico. Para um
ponto de vista matemático, é claro que as associações substituem os votantes,
as diferenças serão menos numerosas e mais importantes em razão dos
cidadãos reagrupados. Obter-se-á mais rápido não mais quantidades infinita­
mente pequenas, mas quantidades primitivas sobre as quais o procedimento
de compensação das quantidades infinitamente pequenas não terá mais vez.

1030
Encontramo-nos em presença de grandes massas de opiniões, irredutíveis, e
das quais pode-se dizer que só conta sua diferença puramente aritmética. Em
suma, é o regime dos partidos, e Rousseau indica muito claramente que a
maioria que subsiste, longe de representar a vontade geral, não passa de uma
"opinião particular” e que não há mais vontade geral. O comentador não
deixará de realçar o aspecto psicológico: os enredos, as associações são gerais
com relação a seus membros, e, nesse sentido, Cícero não estava errado ao
dizer que os malfeitores tinham uma noção obscura da vontade geral. Em
compensação, essa generalidade se inscrevendo nos princípios de uma associa­
ção com finalidade particular se suprime logicamente. Degradação da vontade
geral pela mediação das associações, a vontade de todos é também a inversão
já que a generalidade se perde sempre no particular. “Deve-se conceber, por
isso, que o que generaliza a vontade é menos o número dos votos do que o
interesse comum que os une” (II, cap. IV). A vontade de todos saída de uma
opinião particular é apenas o simulacro da vontade geral.
A transcendência da vontade geral e o caráter aparentemente racional
da vontade de todos conduziu os intérpretes a direções pouco fundadas. É
verdade que a vontade geral, soma de pequenas diferenças, transcende,
como integral, as quantidades infinitamente pequenas das quais foi gerada
pelo, procedimento dos erros compensados. Mas essa transcendência não é
mais a de uma substância ou ainda de não importa qual consciência coletiva
e não é de maneira nenhuma, como Gurvitch queria, um princípio puro ideal
metaempírico. Ela transcende as quantidade empíricas no sentido de que as
exprime todas: “Ela deve partir de todos para se aplicar a todos” (II, cap. IV).
É ainda mais perigoso confundir a vontade geral e a vontade de todos numa
filosofia matemática sucinta. Certamente, há cálculo de um e de outro lado.
Mas a vontade geral é, para a vontade de todos, o que o método infinitesimal
é para a aritmética elementar. E por aí se esclarece o sentido que se deve dar
à questão da informação. No nível do método infinitesimal, é o povo que se
informa. Votando, cada um, por egoísmo, votará por todos; mas, seguindo
as possibilidades obtidas pela simples aritmética, será o chefe de uma facção
ou de uma associação que informará o povo e lhe ditará seu voto. É claro
que as reflexões de Rousseau não eram, nesse ponto, desprovidas de uma
preocupação polêmica. Sua definição da vontade geral o autoriza a produzir
uma severa crítica de um mundo do qual o homem essencial estava banido
e, com ele, a vontade geral. A desnudação, a partir dessa bela dialética, da
orientação da vontade de todos, permitia reunir a crítica fundamental
exposta no segundo Discurso. Por aí mesmo se esclarece o sentido preciso
da vontade geral: é menos um princípio de esperança, como pode deixar
supor uma leitura prematura, do que uma função de aflição. No ideal nunca
perdido da vontade geral se enraízam todas as dúvidas sobre os diversos
efeitos da vontade de todos e, por isso, a vontade geral se junta de novo à
teoria geral da infelicidade de Rousseau. Desse a Kant, que vê na vontade
geral uma máxima cujo princípio soberano deve usar como fio condutor da
constituição de suas decisões — “Aja de tal maneira que tua vontade de

1031
príncipe esteja de acordo com a vontade geral do povo”-, volta-se da função
de aflição ao princípio de esperança. Assim, pode-se verificar que Rousseau
foi refutado cedo demais.

Direito e moral

Em seu voto, o cidadão bem informado, vota por aquilo que ele estima
ser sua felicidade e a determinação de sua vontade é essencialmente egoís­
ta: “A vontade particular tende por sua natureza a juntar-se às preferên-
cias”(II,cap. 1). Mas, na operação infinitesimal, o universal se prolonga interior­
mente dentro da possibilidade interna e concreta da consciência moral. A
função regeneradora da vontade geral conduz à reconstituição da consciência
ética. Dessa maneira, vai-se do direito puro à ética pura e, em certo sentido,
poder-se-ia dizer que o bom direito é a base da moral, que nada acrescenta ao
momento jurídico, mas que se encontra, por isso mesmo, restabelecida.
Realçaram-se as identidades singulares na definição da vontade geral e da
consciência moral. Por exemplo, elas se exprimem no “silêncio das paixões".
Foi-se desde então tentado ou bem a confundir vontade geral e consciência
moral, ou bem a mostrar a congruência das noções —o que era mais sensato,
sem deixar de ser perigoso, tanto é verdade que a consciência moral resumia
em seu interior a essência da vontade geral.3 Mas o jurídico (e, com razão mais
forte, o político) não se deixa reduzir assim em Rousseau. A consciência moral,
mesmo muda e danificada dentro da onda de luxo, possui, se quiser —mas será
que ela o quer? —, recursos bastantes para realizar sua regeneração. Temerosa
e tímida, ela é, entretanto, livre e só depende de si mesma. De que agora a
vontade geral possa ser uma potência salvadora e que ela possa também abrir
para a consciência moral sua condição de possibilidade, ninguém duvidará: a
vontade geral é o meio da realização da consciência moral. Seria preciso dizer,
para que se possa exprimir corretamente, que há uma relação de interação
recíproca entre o direito e a moral. Certamente o direito é o veículo da moral,
e Rousseau esboça uma relação que será retomada por Fichte em 1796; mas
seu discurso geral sobre esse ponto permanece bastante decepcionante na
medida mesmo em que muitas passagens permitem assegurar que o direito
político é função da ética, de tal maneira que a articulação aqui esboçada não
pode verdadeiramente se apresentar com vigor pleno. Ninguém contestará,
sem dúvida, que dentro de um corpo político sustentado pela vontade geral a
consciência como voz interior possa se reencontrar e mesmo, graças ao
princípio da autonomia, coincidir estruturalmente com a vontade do corpo
político. Tal afirmativa supõe, porém, a possibilidade real da constituição da
vontade geral. Ora, esse ponto não deixa de ser muito pouco evidente.

“Memento mori”

A vontade geral é, infelizmente, só uma noção pura e lógica, uma Idéia


platônica, se se quiser, ou um princípio de governo, se se preferir escolher a

1032
orientação kantiana. Mas o que dizer do povo constituindo o corpo político? É
preciso prestar a maior atenção ao capítulo XI do livro III de O Contrato social,
intitulado “Da morte do corpo político. Certamente, nesse texto, Rousseau não
fala mais da vontade geral expressamente, mas ele faz intervir a autoridade
soberana que não se distingue mais dela. “Se Esparta e Roma pereceram, que
Estado pode esperar durar sempre?” “0 corpo político, acrescenta Rousseau,
tanto quanto o corpo do homem, começa a morrer desde seu nascimento e traz
em si as causas da sua destruição.” Esse sentimento profundo da morte
repercute ao longo de toda a doutrina de Jean-Jacques. O que decorre da
soberania ou da vontade geral não escapa mais às leis gerais da existência
humana: a fraqueza crescente, logo a paralisia e a imbecilidade, e Rousseau
fica próximo de Montesquieu, escrevendo: “Como todas as coisas humanas têm
um fim, o Estado do qual falamos perderá sua liberdade, parecerá. Roma,
esparta e Cartago também pereceram. ”Esse é um sentimento que, no Século
das Luzes, muitos pensadores profundos experimentaram e, por exemplo,
Gibbon se quis o médico iegista da queda do Império Romano. Todo mundo
sabe interpretar a sentença de Rousseau afirmando que o regime democrático
só convém a um povo de Deus, mas o que falta sempre observar por uma
inexplicável fatalidade é que, se os deuses podem se governar democratica­
mente, é porque, primeiro, eles são imortais! Coisa triste de se constatar, em
O Contrato social, já que os homens, ao contrário dos deuses, só conhecem
uma curta carreira, o palácio que eles erigirão, quer seja aristocrático ou
democrático, encontrará sua fundações somente na areia humana e que o
destino ou, se se preferir, a morte terá bem cedo feito derrubar. Há uma
oposição intensa e dramática entre o audacioso pensamento do homem e sua
frágil existência, em todos os casos, breve demais para se comprometer com o
imenso empreendimento projetado pela razão! Explica-se por esse espantoso
contraste que O Contrato social seja nada mais nada menos do que uma
utopia. Sob o rigor filosófico, não seria insensato falar da contra-utopia e de
sublinhar claramente que, nisso, ele contribui ainda uma vez para a teoria geral
da infelicidade à qual fizemos alusão. Kant diz que “a morte está atrás do
cenário”. Incessantemente o Memento mori plana sobre O Contrato social.
A prudência política consiste apenas em retardar o dia do vencimento.
Sua máxima não consiste de maneira nenhuma em acelerar o curso do destino
e, por exemplo, em preparar uma grande revolução, mas, exatamente ao
contrário, em erguer barreiras contra toda grande desordem, já que ninguém
pode julgar que a revolução entendida como remédio não seria pior do que o
mal que se pretende evitar assim. Retardar é um dos princípios essenciais de
Rousseau; ele se aplica em sua teoria da educação, mas é preciso reconhecer
realmente que a aplicação desse princípio é mais difícil em política do que em
educação. E que o Memento mori tem um peso formidável na política - a
Europa, e com ela o mundo, já não era mais do que um campo de ruínas. E é
porque Rousseau trata de homem tal qual ele poderia ter sido, bem mais do
que daquilo que ele é ou poderia ser.

1033
O esquematismo da vontade geral

Chegamos ao ponto mais difícil de O Contrato social. Num contexto de


morte, Rousseau estabelece uma correlação recíproca entre três noções: o
povo, que não pode querer a escravidão; a vontade geral, resultante desse
povo, e a soberania, que sintetiza as duas primeiras noções e cujo caráter
lógico e essencial consiste, já que exprime a legitimidade do povo, em não
poder ser alienada. Essa correlação tende à unidade monolítica que, no
entanto, nunca é esse terrorismo totalitário tão levemente censurado em
Jean-Jacques. Mas é claro que enormes dificuldades vão se apresentar. Em dois
pontos de vista se vê impelido a incertezas intransponíveis. De um lado, a idéia
de sistema de governo representativo é descartada por Rousseau: um Parla­
mento, por exemplo, seria uma totalidade dentro da totalidade. Sabe-se quanto
Rousseau zombava dos ingleses que se acreditavam livres porque se davam
representantes que nada mais eram do que senhores: “O povo inglês pensa ser
livre; ele se engana muito, ele só o é durante a eleição dos membros do
Parlamento; assim que são eleitos, ele se torna escravo, não é nada. Nos curtos
momentos de sua liberdade, o uso que dela faz merece bem que ele a perca”
(III, cap. XV). Portanto, dentro da série real, entre vontade geral de um lado
me órgãos parlamentares até o governo de outro lado, encontra-se um hiato
inteiramente fundado na recusa do sistema representativo tal como o concebe
Rousseau: o povo elegendo deputados que por sua vez designam um governo.
Isso é a perda do caráter inalienável da soberania e a destruição das noções
correlativas, do povo como vida ética, já que se trata da liberdade e da vontade
geral. Mas a série ideal não é mais encorajante do ponto de vista especulativo
e do ponto de vista pragmático. Encontra-se uma frase terrível no capítulo VI
do livro II: “Por si próprio o povo quer sempre o bem, mas ele não o vê sempre
por si mesmo. A vontade geral é sempre direta, mas o julgamento que a guia
não está sempre esclarecido.” Rousseau nos havia demonstrado matematica­
mente que a vontade geral não podia mais errar. Ele parece agora dizer o
contrário. Não é tanto porque ele não reconhece na vontade geral que o direito
de mandar sobre objetos gerais (II, cap. VI), em que o caráter abstrato do objeto
- isto é, a lei e primeiro o pacto social - pode atrapalhar o julgamento; essa é
uma dificuldade mais psicológica do que transcendental. É porque ele teme
urna interpretação formalista da operação da vontade geral. Se essa última for
sempre reta sem ser sempre bem esclarecida, é evidente que será preciso
distinguir a forma e o objeto da vontade geral. Sempre reta, no sentido da boa
intenção em Pufendorf e em Kant, não alcançará seu objeto sendo mal
esclarecida. Esse formalismo da vontade geral a conduziria finalmente a uma
filosofia do capricho. Mudar de ponto de vista, diz Hegel, não é uma contradi­
ção, e, especulativa (ponto de vista da vontade geral) e pragmaticamente (o
objeto da decisão), alcançar-se-iam veleidades totalitárias. Rousseau escapa às
contradições da série real e da série ideal. Por uma única razão, e é que, se os
homens fossem tais como deveriam ter sido, ele não acredita na eventualidade
do totalitarismo. E os homens não sendo mais aquilo que deveriam ter sido, o

1034
ângulo de visão de O Contrato social só diz respeito a cidades muito pequenas
onde a vontade geral não pode ser subjugada (III, cap. XV). Sob essa ótica vai
realizar-se o esquematismo da vontade geral, que, segundo a série ideal, se
apoiará no legislador, que deve esclarecer o povo, segundo a série real na
fundação do governo, estando entendido que nunca a soberania será alienada
por um lado ou por outro.

Do legislador

Julgou-se obscura, não sem razão, a teoria de Rousseau do legislador sem


a qual, no entanto, na série ideal a teoria da vontade geral não pode ser
esquematizada. Definamos nitidamente os limites no interior dos quais o
legislador se exercitará:
A) em nenhum caso o legislador pode ser um ditador substituindo a
soberania do povo. É útil precisar que o termo ditador vale tanto no sentido latino
quanto no romano e no moderno. Nunca, no espírito de Rousseau, o legislador
terá o poder de última decisão. Ele não detém nada do poder executivo e
legislativo: “Não se trata mais de magistratura”, diz Rousseau, que acrescenta
“nem de soberania.” Jean-Jacques define como toda a nitidez desejável os limites
do legislador. “Aquele que redige leis não tem, portanto, ou não deve ter nenhum
direito legislativo, e o próprio povo não pode, quando quiser, se despojar desse
direito fundamental; porque, segundo o pacto fundamental, só existe a vontade
geral que obriga os particulares.” E, uma vez posto isso, podemos ler claramente
a proposta segundo a qual o emprego do legislador “que constitui a república
não entra mais em sua constituição.” Se bem que necessárias, as funções do
legislador podem ser constitucionalmente recusadas. Nesse sentido, o aspecto
Deus ex machina pode ser diminuído com vigor.
B) A vontade geral, em nome de seu formalismo, é, de um lado, sujeita à
generalidade e, de outro, sobretudo suscetível de ser desviada por um mau
julgamento, mesmo se em si ela é pura como intenção. É, principalmente, a
esse segundo momento que o legislador está, segundo Rousseau, particular­
mente adaptado. Ele propõe leis. Isso significa —se se lembrar da interação da
vontade geral e da consciência moral — que, como consciência ética, o
legislador, pode dentro da pureza de sua intenção, elevar-se à consciência
legisladora. Ele proporá leis; não se imporá jamais. Quando Rousseau escreve:
“Quando Licurgo dá leis a sua pátria”, ele não quer dizer “impor”, mas somente
“apresentar”, “propor”. Tanto mais que, segundo o aspecto, o legislador só
pode “persuadir”, mudar o mau julgamento que orienta a vontade geral. Sua
função é, nesse caso, a de um conselheiro, como também a de um educador.
Pôde-se criticar a concepção da autoridade em La Nouvelle Heloise onde,
detendo todos os poderes, Wolmar dissimula em parte sua autoridade. Tai
embaraços não se apresentam com relação aos legisladores.
C) Rousseau crê na existência histórica real dos legisladores: Licurgo,
Solon, Numa, sem nada dizer de Moisés, por si próprio e naturalmente,
Calvino, citado em nota no capítulo estratégico consagrado ao problema (liv.

1035
II, cap. VII). Uma descrição deles foi dada: são personagens possuindo, de um
lado, genialidade e, de outro, uma consciência moral sem mácula. Porém,
Rousseau escreve esta frase estranha: “Eu observo as nações modernas: vejo
nelas muitos fazedores de leis e nenhum legislador.” Isso é primeiro enfatizar
uma outra vez a orientação trágica de O Contrato social: na época dos
legisladores, o homem caiu na era indefinida dos fazedores de leis. Assim, se
opõe o que poderia ter sido e o que é. Não seria preciso acreditar que o que
opõe o legislador ao fazedor de leis repousa apenas sobre a interioridade
moral. Rousseau concebe o legislador vivendo dentro do contexto da Antigüi­
dade em que os costumes se confundiam com a moral. Rousseau só fala do
legislador no singular: se existem fazedores de leis, só existe um legislador, e
essa afirmação levanta algumas dificuldades. Como compreender que um
homem se faça entender por uma multidão cujo julgamento é falso, mesmo se
a intenção é pura? O ponto é perigoso. Rousseau sabe bem que um legislador
que falasse absolutamente a descoberto seria ameaçado de morte. Que se
observe de perto: o legislador é o homem perfeito, e a sociedade, imperfeita -
já que ela tem necessidade dele —, só o pode condenar à morte ou o expulsar.
O problema de Cristo intervém aqui como um elemento maior, aumentado a
dificuldade. Mas, nesse caso-limite, compreendido como uma dominante trági­
ca, pode-se e deve-se conceber que o legislador saberá persuadir a cidade de
que ele fala em nome dos deuses, e Rousseau esclarece que não compete a
qualquer um fazer falarem os deuses. Mas supõe que o exemplo de Cristo
conseguiu isso, mostrando que o legislador está sempre correndo perigo de
morte; ele está à parte. É evidente que, no contexto do Iluminismo a teoria de
Rousseau é absolutamente inaplicável e que, existe no caso do autor de O
Contrato social, um desgosto profundo pelo mundo moderno que, como
mostrará a Profession de foi du vicaire savoyard, soube se enganar sobre
Deus e sobre si próprio. Para concluir esse ponto, convém também notar que
o legislador é, como o corpo político, mortal. Pode-se muito bem não mais o
escutar, colocá-lo à parte, morto no silêncio e, depois, morto simplesmente.
Para remediar esse perigo, Rousseau não imagina uma academia dos legisla­
dores, que se renovaria tanto em seus mensageiros quanto em sua mensagem.
De um legislador a outro, há uma solução de continuidade decisiva - há
rupturas que enfatizam o triunfo e a morte dos Estados.

Do Governo

Já que os fazedores de leis substituíram o verdadeiro legislador, que por


fim despareceu - o que enfatiza ainda uma vez que O Contrato social olha na
direção daquilo que poderia ter sido —, é claro que a série ideal desaba. O
legislador não é mais o intermediário entre a vontade geral e ela mesma. Não
se pode supor que o governo seja, na série real, o momento intermediário?
Para introduzir sua reflexão sobre o governo, Rousseau distingue a causa
moral e o poder que o executa. A causa moral é a vontade geral e é designada
como legislativo, Mas, em compensação, "o poder executivo só pode pertencer

1036
à generalidade como Legislador ou Soberano”(III, cap. 1). O poder executivo
não tem de propor a lei, mas sim de recorrer a ela, e seus atos, sob esse ponto
de vista, são particulares. Fica-se um pouco supreso em ver Rousseau hesitar
sobre as definições do governo. Antes de tudo, ele define o governo como um
“corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua
mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da
liberdade, tanto civil quanto política”. Nessa definição três termos devem ser
retidos; de um lado, o governo é um “intermediário”- nesse termo concebe-se
uma função e um momento reais, isto é, um corpo coletivo possuindo sua
própria generalidade. Desse ponto de vista, o governo é uma vontade geral
dentro da vontade geral. De outro lado, esse corpo intermediário, englobado
na generalidade suprema, é apenas o ministro do Soberano. É a natureza desse
ministério sob a relação de quantidade, - democracia, aristocracia, monarquia
—que define a qualidade do governo. Por exemplo, sob a relação da quantidade
quanto mais o governo se aproximar do corpo político, mais ele corresponderá
à democracia e como o governo será, por assim dizer, confundido com o povo,
sua força será diluída, o que leva a uma relação de qualidade.
A relação do governo com o povo soberano é uma proporção contínua
que varia segundo o duplo regime da quantidade e da qualidade. Nesse ponto,
a série ideal poderia se enxertar sobre a série real e completá-la. O autor quer
efetivamente um boa oportunidade para o legislador. O que não quer dizer que
sob pretexto de confundi-la com o povo soberano se deva confundir a demo­
cracia com a anarquia. Ora, esta última seria inevitável se o povo, ultrapassan­
do os limites naturais, do ponto de vista demográfico, se tornasse incontrolável.
Existe aí todo um sistema conduzindo a uma teoria da limitação do Estado,
que encontrará seu apogeu no État commercial fermé, de Fichte.
Mas Rousseau apresenta uma segunda definição: o governo é o corpo dos
magistrados que “exercem” em nome do Soberano, "o poder do qual os fizeram
depositários e eles podem limitar, modificar e retomar, quando lhes aprouver,
a alienação de tal direito” (III, cap. 1). Essa definição nos permite enfatizar
melhor o sentido do terceiro termo que queríamos enfatizar na definição
precedente; trata-se do termo “estabelecido". Como o Soberano pode es­
tabelecer o governo, permitir que, em seu nome, sejam impostas as leis e
exercido o poder executivo? Sendo interditada toda delegação de poder, senão
a soberania não mais existiria, não se vê por que seria concedida mais ao
governo do que ao legislador, que, como se sabe, só pode propor as leis sem
nunca as impor? Mesmo se na segunda definição do governo esse é compreen­
dido mais como uma função - “suprema administração”—, Rousseau não chega
a consentir em uma verdadeira delegação de poder. Dos magistrados é dito que
o soberano pode lhes retomar o direito do qual eles são depositários, "quando
lhe apraz”, sem explicações e de maneira perfeitamente arbitrária. Pode-se sem
dúvida sonhar com um Estado nomeando e depositando, deslocando e ins­
talando os magistrados de tal maneira que esses seriam forçados a ser
honestos, não podendo “fazer carreira”, nem estar bastante bem instalados
para resistir à opinião pública. Porém, essa é uma visão do espírito que

1037
Rousseau não reteve. Portanto, sobre a questão que diz respeito à delegação
do poder executivo, ele, na realidade, recusa toda solução. É a condição do
sucesso da série real. Mas não se vê por que Rousseau, constando na série ideal
o fracasso do legislador e o aparecimento dos fazedores de leis, admitiria na
série real uma delegação justa do poder executivo. Que se possa usurpar esse
poder, ele está de acordo; o espetáculo do mundo o mostra bastante, e sabe-se
que em Émile, livro contemporâneo de O Contrato social, a Revolução é
anunciada. Mas, denunciando a usurpação sob todas suas formas, não pode
justificar corretamente a delegação do poder executivo. A realidade da usurpa­
ção parece contestar a possibilidade da delegação.

Tipologia dos governos e regimes

Rousseau pretende tirar uma dedução genética dos governos. Certa­


mente de maneira muito clássica ele distingue a democracia, a aristocracia e a
monarquia. Mas a distinção é global no sentido de ela depender de uma relação
primeiro simples, depois complexa dentro de sua determinação. Essa relação
é primeiro numérica: opõe-se a quantidade de magistrados à de cidadãos e
acha-se que, já que o número dos cidadãos-magistrados é superior ao número
de simples cidadãos, se trata de uma democracia, que se o número dos
magistrados é inferior ao dos cidadãos se está sob regime aristocrático e, enfim,
que o governo de um só é a monarquia. Mas existe aí uma distinção puramente
matemática e que pode variar infinitamente, sobretudo nos pontos de equilí­
brio, de tal maneira há uma infinidade de governos que se aproximam mais ou
menos das estruturas ideais. Rousseau indica, assim, que o império Romanc
teve oito imperadores ao mesmo tempo, sem que se possa dizer que estava
dividido. Esparta, em sua constituição, exigia dois reis. A aristocracia pode ser
ampla ou fechada, e Rousseau conclui: "O Governo é realmente suscetível de
tantas formas diversas quanto o Estado tem de cidadãos” (III, cap. III). A
dedução genética abraça com grande força a realidade humana política dentro
de sua diversidade, mesmo se ela não aprovar tudo - o que, seja dito de
passagem, não devolve suas atribuições.
Para apreciar o valor das formas políticas, convém recorrer aos critérios
de qualidade e de probabilidade. Cada magistrado (no sistema democrático,
aristocrático ou monárquico) tem pelo menos três vontades. Consideremos o
aristocrata. Ele tem, primeiro, uma vontade própria que tende para sua
vantagem particular. Eie tem, em seguida, uma vontade de corpo, como
membro do corpo governante. Essa vontade de corpo é, com relação ao
governo, geral. Mas, com relação ao Estado, que tudo engloba, essa vontade é
apenas particular. “Em uma legislação perfeita, a vontade particular ou
individual deve ser nula, a vontade de corpo própria do governo, muito
subordinada, e, por conseguinte, a vontade geral ou soberana, sempre domi­
nante e regra única de todas as outras.” Rousseau indica com precisão que a
inversão dessa relação - de tal maneira que a vontade particular a conduza
sobre a vontade de corpo, e aquela, sobre a vontade geral —caracteriza o mal

1038
radical em filosofia política e ela pôde pensar que, sendo radical, esse mal seria
também definitivo. Mas essa relação qualitativa não toma todo seu sentido
senão quando relacionada com uma relação de probabilidade.
Mesmo quando afirma que somente a verdadeira democracia seria a
solução e confessa que tal governo só pode ser o dos deuses - e não o dos
homens —, Rousseau em presença dessas configurações indefinidas de governo
não pode trazer uma condenação formal.
O longo capítulo XV do livro III faz pensar que, se a relação qualitativa
for bem ordenada, não há uma certeza, mas uma probabilidade de que o
governo seja correto. Vê-se aqui mesmo a passagem da matemática pura para
sua aplicação pragmática. Uma integral é uma integral. Uma probabilidade
pode se revelar muito improvável, e existe aí um fosso separando O Contrato
social das Institutions politiques (Instituições políticas) sonhadas. Admirador
dos povos militares, Rousseau não renuncia a celebrar a Grécia e, dentro dela,
Esparta. Ora, se se ativesse ao ponto de vista quantitativo, dever-se-ia denun­
ciar Esparta. Dois reis... para um democrata, dois deles é demais! Mas a relação
qualitativa de Esparta era boa. As vontades dos reis coincidiam com a vontade
geral. O Contrato social apelava para a constituição das ciências políticas
comparativas.
Pode-se acrescentar que os elementos variáveis quantitativos e qualitati­
vos evoluem no interior de uma função que é o povo observado dentro de seu
número. Como se salientou, Rousseau não acredita que uma boa política possa
ser realizada —quer seja monárquica ou democrática - além de um número
de cidadãos determinado. A história da filosofia nos ensina que, desde Platão,
essa idéia assustou muitos pensadores. A originalidade de Rousseau consiste
em considerar esse número uma função reguladora independente das formas
de governo. Por exemplo, uma monarquia de seis mil homens é preferível a
uma democracia de vinte milhões de cidadãos. Essa função numérica é a
condição de possibilidade de uma regulação da vida política. Rousseau só é
democrata em um sentido muito preciso se se limita a ficar no espaço da prática
política: ele não pode confiar nas grandes monarquias de seu tempo, símbolo
gritante da falência do gênero humano tal como ele a constata. Daí a concluir
que basta curar o mundo, é a isso que ele se recusa. Sob esse aspecto,
Rousseau não é de maneira nenhuma o precursor de Saint-JusL O primeiro,
quando sonha com uma possibilidade concreta, sonha simplesmente com a
Córsega, pouco povoada, isolada, ao abrigo das doenças da civilização que ele
denunciava em seus primeiros Discursos. E sua preocupação não era fazer o
homem progredir, mas, ao contrário, retardar seus progressos fatais. Saint-Just
sonhou logo com uma França apoiada em seus grandes exércitos, encarregada
de propagar as idéias revolucionárias. Para qualquer um que consinta em ver
as coisas claramente, a partir da função numérica, a oposição de Rousseau e
dos revolucionários possuirá a nitidez desejável. A Revolução Francesa não
tomou nada emprestado de Rousseau em particular —nem mesmo as palavras
liberdade e igualdade, que ele não havia inventado, apesar de tudo! - e,
sobretudo, sua tipologia dos governos. Reteve-se a brutalidade concisa de

1039
certas fórmulas, um tom mais profético do que demonstrativo: o escritor sabia
seduzir.

O fechado e o aberto. O problema religioso

No Século das Luzes um pensamento político que não se define com


relação à religião é um pensamento inacabado. Rousseau não se esquivou do
problema, mas sentiu que sua construção desabava. Em seu próprio espírito,
pôde, voluntariamente, deixar-se levar a algumas alusões sarcásticas no to­
cante à religião cristã, usada pela história, e às querelas abomináveis aguçadas
pela intolerância, na qual ele não via, como Bossuet, uma virtude; sempre
sentiu-se próximo da religião de Cristo e, para definir sua orientação, poder-se-
ia, com algumas correções, retomar o esquema de Lessing, opondo die
christliche Religion e dieReligion Christi.
Ora, o que quer o Cristo e o que quer o cristão que o entende bem?
Primeiro que lance fora todas as armas (e o ideal da virtude militar em
Rousseau, admirador de Esparta, desmorona); em seguida, que a cidadania
seja substituída pela fraternidade; e, enfim, que a totalidade do gênero humano
se una ao mesmo tempo em que as pátrias desaparecem. Colocadas essas
condições, aquilo que se poderia chamar de solidariedade social desaparece
também, segundo Rousseau. Que interesse moral sério o cristão poderá ter por
uma totalidade histórica, de toda maneira consagrada inteiramente à morte,
assim como todo o corpo político, já que ele visa à eternidade? Rousseau
reconhece, escrevendo a Usteri, que “todo patriota é duro com o estrangeiro”,
mas isso não é próprio do cristão. E Rousseau sabe disso tão bem que,
considerando o estilo de pensamento cristão, vê nele uma preparação para a
servidão: “O cristianismo, escreve ele, só prega servidão e dependência. Seu
espírito é favorável demais à tirania para que ela não se aproveite sempre disso.
Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos, eles o sabem e não se
revoltam contra isso; esta vida curta tem muito pouco valor a seus olhos” (OC,
t III, pág.467; IV cap. VIII). O cristianismo é um pensamento da abertura
universal, da fraternidade - só há a religião que pode reivindicar a fraterni­
dade, e fazer dela um conceito puramente político é um erro que Rousseau
não cometeu —enquanto o Estado e a Nação, como organismos vivos, são
fechados a tudo que, sem seu concurso voluntário, poderia tentar penetrá-los
vindo de fora. Também entre sociedade civil e religião há uma oposição
fundamental: a do fechado e do aberto.
Havia, é claro, um expediente miserável para sair dessa dificuldade e era,
agravando o pensamento de Lessing, o de desacreditar não somente a Igreja
militante e estatutária, mas ainda os simples fiéis extraviados pelas práticas
absurda dos padres em geral. Mas Rousseau se recusou a isso. Um grande
filósofo nunca se deixa levar a desmentir a experiência, e a experiência, nesse
caso, é o fato cristão inegável, é o fato de que Cristo disse que seu Reino não
era deste mundo. Tanto assim que Rousseau dá de encontro a uma dificuldade
intransponível. E intransponível ela o é tanto mais que não se deve sempre

1040
considerar a problemática indo do fechado para o aberto. É preciso também
partir do aberto que se resume em poucas palavras: Quam iuncundum fratres
esse in unum! Sob esse ponto de vista, a oposição entre o cidadão e o homem
não é mais originária, é uma simples derivada que deve continuar a se reduzir
sem parar. O cristianismo em sua essência moral deve tender à supressão do
direito político.
A história do manuscrito de O Contrato social é, nesse ponto, instrutiva.
O texto sobre a religião civil é redigido no verso das páginas consagradas ao
legislador, e isso é bastante curioso, pois Jean-Jacques não era tão avaro de
papel (como Kant). Portanto, que significa isso? Como não se pode pretender
uma resposta concludente, deve-se, sobretudo, formular hipóteses. A primeira
e a mais verossímel consiste em considerar a religião civil um complemento da
doutrina política. Rousseau quis que o conteúdo da religião civil fosse tão claro
quanto possível. Ele tinha em vista “uma profissão de fé puramente civil", não
compreendendo dogmas, mas artigos que estabelece como “sentimentos de
sociabilidade”. Ora, esses sentimentos de sociabilidade - amar a justiça,
respeitar as leis, imolar, se necessário, sua vida a seu dever - não estão
necessariamente implicados na teoria do corpo político e é talvez por isso que
Rousseau os definiu em separado, por assim dizer. A segunda hipótese,
apoiada por numerosos textos, consiste em colocar a irredutibilidade entre o
fechado e o aberto, irredutibilidade essa que ele coloca à parte de seu
pensamento sobre a religião. Ainda uma vez, sem dúvida, ele distingue a
religião cristã da religião de Cristo: “Resta, portanto, a religião do homem, o
Cristianismo, não o de hoje em dia, mas o do Evangelho, que é totalmente
diferente”(IV, cap. VIII). E sonha em recolocar no catecismo do cidadão os
grandes princípios evangélicos. Porém, é preciso suprimir a dimensão de
abertura, de tal maneira que se alcance uma ética, no sentido próprio, e mesmo
uma moral política. Se, portanto, a reflexão sobre a religião não pode penetrar
facilmente o nexo político, se ela é redigida à parte, é porque o aberto cria uma
incerteza intransponível.
O mérito de Rousseau, nesse caso, foi o de ser infinitamente mais sensível
do que seus sucessores — Robespierre principalmente — à historicidade
fundamental da religião de Cristo e de perceber nela todas as conseqüências.
Certamente ele se quer adepto do Ser Supremo, mas não se engana sobre a
realidade das coisas. Em La Nouvelle Heloise, Julie, em seu leito de morte,
pode realmente confessar que sempre viveu segundo a razão e dentro da
confissão de fé protestante, mas há aí uma síntese sentimental que um romance
pode operar e não um tratado visando sempre à evidência genética. Es­
crevendo um romance, pode-se unir historicidade e razão, mas, em O Contrato
social, essa realidade das coisas não-dedutíveis conduz a um impasse. Havendo
pouco a dizer sobre relações entre política e religião, fez-se necessário, por
assim dizer, um anexo, e nele se procura o ponto de discórdia mínimo,
definindo uma religião civil ou uma ética no interior dos limites da razão
simples e não podendo se valer desse fato como objeção à religião de Cristo.
Mas Rousseau percebeu que a solução não era absolutamente coerente.

1041
Portanto, trata-se de um acaso muito estranho: foi no verso das páginas
consagradas ao legislador que a filosofia religiosa foi escrita. Ora, se se dispõe
a refletir um pouco sobre as séries ideal e real, o legislador e a organização
final do governo, isto é, sua ordem moral e ética, verificar-se-á que elas se
opõem e se contradizem. Sabe-se que Rousseau diz do legislador que ele é um
homem capaz de fazer falarem os deuses. Em sua função de propositor, ele se
vale desse recurso aos deuses para colher o elemento pragmático que sus­
tentai i sua influência. Poder-se-ia dizer que o discurso do legislador se realiza
no interior dos limites da superstição, de onde tira uma grande parte de seu
poder persuasivo. Isso se torna impossível no interior da abertura da religião
de Cristo, considerada em sua essência pura e verdadeira, de um lado porque,
se os ensinamentos do Evangelho fossem seguidos, a idéia política em geral
desmoronaria e, por outro lado, porque, segundo sua essência, a Religião de
Cristo, em sua simplicidade pura, não está de nenhuma maneira suscetível de
acarretar uma influência persuasiva ao legislador. Mas os filósofos, que
propõem uma ética política no interior dos limites da razão simples, colocam
por sua vez regras tão severas para o uso da razão, enquanto poder persuasivo,
que tornam inútil a função do legislador no corpo social. Como, apoiado
somente sobre o entendimento - ao qual correspondem os artigos da religião
civil —, o legislador poderia persuadir, convencer, dar uma forma sensível e
comovente à sua proposta? A instauração da religião civil, verdadeiro termo
da série real, é a supressão do legislador e vice-versa.

Do sentido da contradição

Se se prende à idéia tão difundida de que O Contrato social é uma


construção positiva, da qual se pode esperar resultados universalmente váli­
dos, então só poder-se-á dar um mau sentido à contradição, dizendo, por
exemplo, que Rousseau se contradiz. Porém, na verdade, se existe contradição
em O Contrato social, é porque há uma contradição no mundo dos homens.
E foi contra essa contradição, que ocorre em vários níveis existentes - quer
seja na ordem social, na ordem política ou na ordem religiosa - , que Rousseau
escreveu, julgando-a intransponível e de tal modo que, em sua polimorfia,
podia reencontrá-la a todo momento. O Contrato social, nesse sentido, não é
um sonho de esperança, mas sim um tratado arqueológico do desespero.
Diversas são as dificuldades segundo as camadas que compõem a história do
home.ii, mas sempre e em toda parte ele tomou o mau caminho e se encontra
no ponto em que esse tratado de desespero é também um ato de acusação.
Não! A vontade geral, fundamento da cidade, não é só uma idéia, não! Não se
escutam mais os legisladores, mas os “fazedores de leis’’. Ninguém é razoável
dentro da determinação dos limites do Estado! 0 problema religioso se
apresenta em termos delicados e não é de maneira nenhuma aquilo que se
supõe: um macio travesseiro para as consciências.
Foi a Revolução Francesa que, traindo O Contrato social, conseguiu fazer
o mundo acreditar que ele era o manifesto do futuro, alterando todas as

1042
perspectivas. Devemos muitas coisas, algumas muito nobres, à Revolução Fran­
cesa, mas também lhe devemos uma leitura muita falsa de O contrato social, que
permaneceu muito presente em nossos espíritos. A Revolução Francesa era uma
filosofia do futuro, e O Contrato social, um texto que se ligava mais facilmente
do que se supõe a uma filosofia da infelicidade, considerando aquilo que o
homem poderia ter sido e entendendo que ele havia ultrapassado a fronteira que
separa a existência e a esperança do desespero e da inexistência.

NOTAS
1. A le x is P h í l o n e n k o , R o u s se a u e t ta p e n s é e d u m a lh eu r, 3 v o l., V r in , 1 9 8 4 .
2 . L a g r a n g e , T h éo rie d e s f o n d io n s a n a ly tiq u e s, § 5 7
3 . R . P o l i n e x a m i n o u e s s e p o n t o e m s u a n o t á v e l o b r a : L a p o litiq u e d e Ia so litu d e, E s s a i
s u r J . —J. R o u sse a u , P a r i s e T o u l o u s e , 1 9 7 1 .

► l l a n n a A r e n d t , T o ta lita ria n ism , N o v a Y o r k , l l a r c o u r t , B r a c e & W o rld , 1 9 6 8 ; B ro n is la v


B a c z k o , S o litu d e e t c o m m u n a u té , P a r i s , 1 9 7 4 ; A b a d e B e r g i e r , L e d é is m e re fu te p a r lu i-m êm e,
e m d u a s p a r t e s , 4 3 e d i ç ã o r e v i s t a e c o r r i g i d a , P a r i s , 1 7 6 8 ; P .G .F . B e r t h í e r , O b s e r v a lio n s s u r “L e
C o n tr a í s o c i a l ”, P a r i s , 1 7 8 9 ; J. B . B o s s u e t , O e u v re s c o m p lè te s, P a r i s , L a c h a t , 3 1 v o l u m e s , 1 8 6 2 ;
E r n s t C a s s i r e r , D ie P h ilo s o p h ie d e r A u fk la ru n g ( T b i n g e m , M o h r ) , 1 9 3 2 ; The Q u estio n o f
J ea n -J a cq u es R o u ssea u , N o v a Y o r k , C o l u m b i a U n iv e r s i t y P r e s s , 1 9 5 6 ; R D e r a t h é , Jean -Jacqu es
R o u s se a u e t la S cien ce p o litiq u e d e so n tem p s, P a r i s , 1 9 5 0 ; A C o b b a n . R o u sse a u a n d th e
M o d e m S ta te, L o n d r e s , 1 9 3 4 ; E . D u r k h e i m , L e C o n t r a t s o c i a l d e R o u s s e a u . H i s t o i r e d u li v r e ,
R e v u e d e m é ta p h y s iq u e e t d e m o ra le, 1 9 1 8 ; B . C r o e t h u y s e n , L e s o rig in e s d e V e sp rit b o u r g e o is
e n F ra n ce, P a r i s , 1 9 2 7 ; P h ilo s o p h ie d e la R é v o lu lio n fra n ça ise, P a r i s , 1 9 5 6 ; G . G u r v i t c h , K a n t
u n d F ich te a is R o u s se a u In te rp r e te n , K a n t s t u d i e n , B d . X X V II, 1 9 2 2 ; D . M o r n e t , L e s o r ig in e s
in te lle c tu e lle s d e la R é v o lu tio n fra n ça ise , P a r i s , 1 9 5 4 , 5 ! e d i ç ã o ; A P h í l o n e n k o , R o u sse a u e t la
p e n s é e d u m a lh eu r, 1 9 8 4 , P a r i s , v o l. 111; R . P o l i n , L a p o litiq u e d e la so litu d e, E ss a i s u r J.-J.
R o u sse a u , S i r e y 1 9 7 1 .
I n te r p r e ta ç õ e s d e s c r e v e n d o u m c a m in h o d e a c e s s o à p o lític a d e R o u s s e a u . — P. B u rg e lin , La
p h ilo s o p h ie d e V e x iste n c e d e J . - J . R o u ssea u , P a r i s , 2 9 5 2 ; V . C o l d s c h m i d t , A n lh r o p o lo g ie e t
p o litiq u e , le s p r ín c ip e s d u s y s tè m e d e R o u sse a u , P a r i s , V r in , 1 9 7 4 ; J. S t a r o b i n s k i , L a tran s-
p a r e n c e e t V obstacle, s e g u i d o d e S e p t e ssa is s u r R o u ssea u , e d . d e 1 9 7 4 , P a r i s .
T r a b a l h o s d e r e f e r ê n c i a : O . G ie r k e , J o h a n n es A lth u siu s u n d d ire E n lw ick lu n g d e s n a tu rlich en
S ta a tsth e o rien , U n tersu ch u n gen z u r d eu tsch en S ta a ts u n d R ech tsgesch ich te, B r e s l a u , 1 8 8 0 ;
C .-E . V a u g h a n , The p o litic a l w ritin g s o f Jean-Jacques R o u sseau , 2 v o ls ., e m 8 g, C a m b r i d g e , 1 9 1 5 .

Alexis P H Í L O N E N K O

1043
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.iif ti í r;.1. : i r-: ,

si^or
SAINT-JUST, 1767-1794
Da natureza, do estado civil e da cidadania ou Regras da inde­
pendência de Governo, fim de 1791-1792

Em 1947, o professor Carnot, descendente do "Grande Carnot”, doou à


Biblioteca Nacional um conjunto de manuscritos de Saint-Just cujos textos
eram desconhecidos até aquela data e que se intitulava De la nature, de l ’état
civil, de la cité ou les régles de 1’indêpendance du gouuernement. A. Soboul
divulgou sua primeira edição nos Annales historíques de la Révolution
Française, t 23, 1951, sob o título “Um manuscrito inédito de Saint-Just”,
depois promoveu uma segunda edição numa coletânea bilíngüe de textos de
Saint-Just publicada na Itália sob o título de Frammenti sulli Istituzioni
republicane seguito da testi inediti., Einaudi, 19521.
O manuscrito de De la nature... é um texto fundamental no sentido mais
preciso do termo; trata-se da primeira expressão, inacabada, dos princípios de
filosofia política de Saint-Just, mais exatamente, de uma obra em busca de seu
fundamento. Esse ensaio põe de novo em foco o enigma de Saint-Just, que
transparece além do mito. A contenção de espírito do autor, a elaboração
filosófica que abre caminho, a vontade de apoiar na verdade a ação revolucio­
nária exigem que se leve em conta uma dimensão de Saint-Just frequentemente
mantida à sombra, a do teórico: mesmo quando alguns analistas irrelevantes,
como Brissot, Marat, Dézamy, comparando-o a Billaud-Varenne e Quinet a
Fichet, a L. Febvre, reconhecem nele um pensador. Poder-se-á daqui em diante
manter a interpretação clássica de Saint-Just como a encarnação de conflito
básico entre a teoria de O Contrato social e a práxis revolucionária? Graças a
essa redescoberta de uma das formulações teóricas mais coerentes do jacobi-
nismo "em processo”, nossa tarefa não passaria a ser mais a de pensar sobre
a continuidade entre essa teoria da natureza e a ação de Saint-Just ou, melhor,
a de nos interrogar, levando em conta a “força das coisas”, sobre os efeitos, no
campo político, daquilo que parece ser uma concepção dogmática da natureza

1045
e do estado natural? Até que ponto o fracasso jacobino, confessado por
Saint-Just na fórmula “A Revolução está congelada...” pode ser interpretado
em relação às insuficiências da teoria e de seus pontos cegos? Melhor do que
recolocar em questão a articulação entre a teoria e a prática, em nome de um
divórcio colocado como um destino irremediável, não seria conveniente dis­
cernir o que está faltando na teoria?
Uma anterioridade necessária: a data do manuscrito. A. Soboul, o primei­
ro editor, propôs sucessivamente várias soluções quanto ao momento da sua
redação: primeiro, em torno de 1790-1791; depois, nos primeiros meses da
Convenção, entre setembro de 1792 e abril de 1793, e, enfim, entre abril de
1793 e o 9 de Thermidor. Propusemos, a partir de uma crítica interna do
manuscrito, uma outra data que parece atualmente reconhecida (J. P. Gross,
Ensaio de bibliografia crítica, Actes du Colloque Saint-Just, Paris, 1968, págs.
343-463). Se se tomam, efetivamente, como referência a questão da escravidão
e a do divórcio, a redação do manuscrito teria acontecido entre 24 de fevereiro
de 1791 e 20 de setembro de 1792, datas nas quais a escravidão foi abolida na
França e o divórcio instituído. O manuscrito De la Nature... situar-se-ia,
portanto, a meio caminho entre L ’Esprit de la Révolution et de la Constitution
de France (1791) e os Fragments sur les institutions républicaines, ao que
tudo indica redigidos no ano II. Esse ponto é importante. Pois, ao constatar a
retomada de certos temas que lhe são próprios no Discours sur la Constitution
de la France (em 24 de abril de 1793) e no segundo Fragment sur les
institutions républicaines, pode-se perceber melhor a singularidade do estilo
político de Saint-Just. Sem fazer do texto Da natureza... um ponto de partida
filosófico de onde decorreriam logicamente o pensamento e a ação do jovem
chefe revolucionário, não se pode deixar de se ser impressionado por um
vaivém constante da teoria política para a prática e da ação para os princípios,
tendo como preocupação não deixar que a ação os desfigure. Ora, o ritmo
interno desse movimento se atém à recorrência periódica da filosofia da
natureza, espécie de trampolim fixo para uma partida completamente nova.
Dessa forma aparece o lugar central do manuscrito Da natureza... no caminho
de Saint-Just; daí a exigência de apreender, com relação a esse núcleo
doutrinai, as modulações do sentido dessa representação tão prenhe, que
escandiram a carreira de Saint-Just.

Reconstituição do manuscrito “Da natureza..."

Saint-Just entende por estado natural o que era corrente na teoria


política de seu século, o estado “no qual se encontravam os homens antes da
instituição do governo civil”. Ora, ele o descreve como imediatamente social,
pois a sociedade, dado natural e fenômeno fundamental e historicamente
primeiro, precedeu o indivíduo, e não o contrário. O indivíduo só apareceu no
decorrer de um processo de desintegração do corpo social. Essa sociedade
humana natural exprime um fenômeno universal que se manifesta em todos
os níveis da escala dos seres, com diferenças de intensidade segundo as

1046
espécies, em função da inteligência e da sensibilidade daqueles que estão
submetidos a ela. 0 homem, o ser mais sensível e mais inteligente da criação,
nasce para uma sociedade permanente; pois, escreve Saint-Just, ele nasce para
possuir: o conjunto das relações naturais que resultam das afeições e da
necessidades dos homens. Existem, portanto, duas espécies de posse: a posse
pessoal, que tem como origem as afeições do homem - ela compreende as
relações que nascem dos vínculos de pessoa para pessoa —, e a posse real, que
tem sua fonte nas necessidades e encobre as relações que derivam da ocupação
do solo, da troca das coisas e do comércio em geral.
Além disso, de homem para homem, tudo é identidade. A identidade,
suporte afetivo e psicológico da vida social, tem um lugar fundamental no
pensamento político de Saint-Just. A análise desse conceito ajuda a precisar a
definição do estado social e a diversificar seu quadro. Numa primeira proposi­
ção, descreve o estado social como a aliança harmoniosa da vida em sociedade
com a independência. O fundamento dessa complementariedade é o pertenci-
mento a uma espécie. Ele escreve: “Tudo o que respira é independente de sua
espécie e vive em sociedade dentro de sua espécie” (Da natureza..., pág. 135).
A identidade de origem, condição de possibilidade desse estado e seu corolário,
a igualdade, permitem eliminar da vida social todo fenômeno de dominação
tendo sua causa em uma diferença de poderio. É preciso velar cuidadosamente
para mantê-los a fim de preservar a harmonia do estado social. Pois, toda
desigualdade, de qualquer natureza que seja, arruinaria a identidade original
e introduziria, na espécie ou na sociedade uma heterogeneidade que seria um
fator certo de dissolução e dividiria a sociedade, unânime em muitos grupos
distintos e inimigos. Em conseqüência, a alteridade será a fonte do estado
anti-social, a saber, o estado selvagem ou o estado político. Com efeito, o estado
social desaparece desde que não se considerem mais as relações dos seres no
interior de uma mesma espécie, mas as relações de espécie para espécie; pois,
o aparecimento da diferença engendra as rivalidades, assim como a vontade de
dominação. Todo corpo social se apresenta, dessa forma, sob um duplo
aspecto, conforme o que se considere de um ponto de vista interno ou externo.
No interior de uma sociedade homogênea aliam-se a independência e a
sociabilidade; mas, desde que ela se choque com uma sociedade diferente, o
estado social desaparece para deixar lugar à lei política ou de conservação, com
os fenômenos de resistência e de força que a caracterizam. Saint-Just enuncia,
numa segunda proposição: “Tudo o que respira tem uma lei política ou de
conservação contra o que não faz parte de sua sociedade ou não é de sua
espécie” (Da natureza..., pág. 135)
Assim, dois estados diferentes coexistem. A localização de cada um desses
estados dependem do grupo que se considere. Segundo o nosso autor, até
chegar-se ao grupo povo, todos os grupos, a família, as comunidades, sempre
se reconheceram muito mais idênticos do que diferentes. Assim também se
sentem dentro do estado social. É nesse nível do povo que se situa o ponto de
passagem da identidade para a alteridade e que a solução de continuidade
intervém para criar o estado político. Saint-Just chega à distinção terminológica

1047
seguinte: "0 estado sociai é a relação dos homens entre si. 0 estado político é
a relação de um povo com outro povo” {ibidem).
Desse contraste decorre uma idéia fundamental: a força, nós diríamos a
coação, deve ser proscrita, pois ela é destruidora da unidade social. Desde que
se substitua uma relação de identidade e de igualdade por uma relação de coação
ou de dominação, a unidade anterior se dissolve para dar lugar a um conflito
entre os detentores da força a aqueles que eles oprimem e deixará aparecer o
binômio senhor-eseravo. Também as definições do estado social e do estado
político transformam-se; separando-se de todo conteúdo preciso, elas perdem seu
primeiro sentido e se tornam conceitos gerais e teóricos por meio dos quais o
autor define outras relações diferentes daquelas dos homens no estado natural
ou de povo para povo. O estado social torna-se um conceito normativo ou
regulador, e o estado político, uma categoria descritiva. Saint-Just, efetivamente,
afirma nitidamente a autonomia e a especificidade do social opondo a sociedade,
unidade interiormente vivida, imanente, à agregação, sociedade aparente, uni­
dade puramente formal, impondo do exterior uma coesão social não vivida.
Quanto ao estado político, ele serve para designar toda relação fundamentada na
força, na desigualdade e na coação. E o autor assemelha, sem nenhuma reserva,
a vida dita civilizada à vida selvagem; descreve a história como um desapareci­
mento do social sob o efeito de uma generalização do político, que, não limitado
às relações de povo a povo, regulou igualmente as de cidade a cidade, para, enfim,
destruir as de homem a homem.
Essa evolução compreende duas ordens de causas: as teóricas e aquelas
mais precisamente históricas.
A humanidade chegou ao estado selvagem pela seqüência de dois erros
fundamentais. Em primeiro lugar - e essa é a causa capital - , os homens
ignoraram a distinção entre as relações internas e as externas de uma
sociedade, as primeiras sendo devotadas à unanimidade, e as segundas, à
divisão e à guerra; eles confundiram o direito social com o direito político.
Desde então, a cidade repousou sobre princípios estranhos a sua ordem, e sua
estrutura interna se aproximou da sociedade geral dos povos, da qual a separa
apenas uma diferença quantitativa em vez de uma diferença qualitativa na
partida. Os homens, entre si, vivem daí em diante dentro de relações de povo
a povo. 0 fenômeno primitivo da participação desapareceu: encontra-se apenas
uma ordem de justaposição. A manifestação principal dessa confusão entre o
social e o político é a criação da força complexa dos governos. A segunda causa
dessa evolução, mais moral, se atém ao fato de que os homens se afastaram
progressivamente da natureza, primeiro, por ignorância, em seguida, pela
vontade sistemática de desnaturar o homem. Nessa desfiguração da imagem
do homem, a lei religiosa desempenhou um papel predominante e, segundo
Saint-Just, concorreu para todos os empreendimentos de dominação e de
escravização.
A descrição histórica é muito mais sucinta. Nas primeiras sociedades —o
autor tem em vista os Francos e os Germânicos - , o povo não tinha magis­
trados; sendo ao mesmo tempo príncipe e soberano, só necessitava de chefes

1048
para assegurar sua conservação externa. O estado político apareceu com a
separação do príncipe e do soberano, tornando necessário, portanto, o magis­
trado, cuja função não será interrompida enquanto alguém oprimir o povo.
Essa separação se produziu quando o povo perdeu o gosto pelas assembléias
e se desviou da vida da cidade para se dedicar ao comércio, à agricultura ou à
conquista. Foi então que interveio na história o contrato político que Saint-Just
vê sob a forma de uma dupla convenção, compreendendo um pacto de união
dos cidadãos entre si e um pacto de submissão dos cidadãos ao poder.
Saint-Just considera a reconstrução da cidade legítima de dois pontos de
vista sucessivamente: teórico e político.
Do ponto de vista teórico, é preciso inverter o curso da história e
reconquistar para o social o domínio que de direito lhe pertence, para alojar a
política no âmago das relações entre povos. O direito social deve informar a
reconstrução da cidade, apoiá-la na natureza, isto é, numa ordem de integração
e de participação numa totalidade orgânica, oposta a uma ordem de coordena­
ção e, a fortiori, de subordinação. É por isso que ele se ergue contra a
existência de um contrato social na origem da sociedade. De par com sua
própria estrutura, o contrato é só um meio de acomodar um compromisso
entre diversas forças antagonistas. Além disso, impor um contrato é mau em
si, já que eqüivale a querer coagir a natureza e ignorar a harmonia natural
repousando sobre uma interação recíproca entre a sociabilidade, de um lado,
fundamento da posse e da propriedade do território nacional, e a propriedade
e a posse, puras e simples, do outro lado, garantias mais certas da conservação
da sociedade. Essa harmonia natural é, no entanto, o fruto de leis hierarquiza-
das segundo as relações que a sociedade engendra. No ápice, Saint-Just coloca
as relações sociais, a saber, as relações imediatas que os homens mantêm em
sua simples qualidade de homens e as relações mais complexas, enquanto
cidadãos. As leis dessas relações são a independência e a propriedade. Enten­
damos que cada homem é proprietário de seu corpo, de sua vontade, de si
próprio. Essas duas leis mais abstratas constituem a norma fundamental com
a qual todas s outras leis da ordem jurídica devem estar em conformidade.
Desse modo, as leis civis, que regem a posse, devem ter como regra a igualdade
que não é outra coisa senão a tradução, para o plano civil, da norma de direito
social. Entretanto, em razão de certos dados de fato, Saint-Just reconhece ao
legislador uma certa latitude na administração prática da conformidade entre
o estado social e o estado civil, de um grau mais concreto. Quando essa
harmonia é respeitada, a sociedade se engendra e se perpetua por ela mesma
sem que nenhuma intervenção externa e de origem autoritária se verifique
necessária. E o autor coloca a ênfase sobre a posse que se torna progressiva­
mente o fermento mais certo da espontaneidade social à medida que descobre
como as relações civis são determinantes para consolidar ou, ao contrário, para
destruir o corpo social se não estiverem fundadas sobre a independência e a
igualdade. A posse, noção antropológica e jurídica, eqüivale a uma solidarie­
dade material não antagonista, porém harmoniosa, que encontra sua primeira
fonte dentro da afinidade e sua confirmação dentro do conjunto das mediações

1049
naturais e necessárias derivando das necessidades e das afeições dos homens.
De um ponto de vista político, o próprio título do manuscrito significa, apesar
das aparências gramaticais, como estabelecer “na natureza" a regra da inde­
pendência em relação ao governo entendido no sentido estrito de Rousseau2.
Da desconfiança de Saint-Just deriva uma solução tão imediata quanto negati­
va: a cidade não deve compreender nenhuma separação do magistrado e do
soberano; basta excluir para sempre o magistrado da cidade. Porém, trata-se,
nesse caso, mais de conclusões lógicas e ideais do que de soluções verdadeira­
mente políticas. Saint-Just formula outros imperativos negativos, tais como a
criação de uma força pública que não seja um órgão de opressão ou de divisão.
E preciso limitar o governo ao exercício de uma função única: a conservação
externa. Tratar-se-ia, portanto, mais de um chefe militar ad hoc do que de um
governo verdadeiro.
De um ponto de vista estritamente político, o manuscrito Da natureza...
é certamente decepcionante. Soluções positivas não são oferecidas e, quanto
a esse ponto, o pensamento do autor se prejudica pelo inacabado do manus­
crito. Mas a falta de acabamento do manuscrito não é a única responsável por
esse laconismo. É preciso contar com as tendências profundas do jovem
doutrinário jacobino. Dividido entre as exigências da lei social “que não sofre
a elevação nem a diminuição da pessoa” e a necessidade da conservação, ele
se afirma resolutamente oposto ao fenômeno da dominação à qual se reduziria,
segundo ele, a essência da política. Em várias retomadas, em fórmulas lapi-
dares, condena o fenômeno do poder. O direito social proíbe a distinção dos
governos e dos governantes que teria como efeito arruinar a primeira coesão
e construir a cidade sobre a oposição desastrosa do fraco e do forte. Essa crítica
radical, que mostra o enquadramento do autor numa tradição minoritária que
soube separar o ser social da divisão entre senhores e súditos, não visa a uma
forma política particular, mas rejeita absolutamente a política, enquanto tal,
compreendida no sentido do reinado da força. Ignorando a espontaneidade
criadora do estado social, a política instauraria vínculos violentos em vez de
vínculos naturais. A lei política dever ser proscrita, pois, no interior da cidade,
ela separa, enquanto a lei social une. O intérprete percebe, não sem surpresa,
no caso daquele que aspira aparecer sobre a cena política do mundo, um
verdadeiro ódio pela política, como se a julgasse apenas a partir da experiência
monárquica. Saint-Just escreve: “Não falarei mais da lei política, eu a suprimi
do estado” (De la nature..., pág. 156).

Naturalismo, primitivismo, teoria de direito social

Assim, reestruturado esse pensamento, qual é seu sentido global? Saint-


Just emprega um instrumento coletivo, pensa dentro da idéia da natureza. Qual
é o seu campo de noções? Quais são suas proporções?
Saint-Just tem, claramente, consciência da atualidade do tema e de sua
ambigüidade. Porém, mais do que recolocar em questão o próprio conceito da
natureza, ele afirma sua primazia e seu caráter intemporal. “A natureza

1050
soberana é o primeiro de todos os direitos, ela é de todos os tempos” (De la
nature..., pág. 157). Determinado a restaurar esse conceito em sua verdade
unívoca e a-histórica, ele entende a natureza, “ponto de justeza e de verdade
dentro das relações das coisas ou de sua moralidade”, como aquilo que existe
fora de toda intervenção do homem, por contraste com a arte. Trata-se de uma
ordem moral objetiva em que a convenção ainda não interveio. A sociedade
deve repousar sobre a natureza, pois ela não é mais o produto de uma criação
artificial, obra do homem, mas um dado natural que preexiste ao homem e
existe independentemente dele. Saint-Just considera que essa ordem social ou
“moral natural”, que existe paralelamente à ordem física, seja regida por leis
que engendram não relações necessárias, mas sim relações inteligentes que
deixam alguma dosagem à ação do homem, ainda que essa ordem objetiva,
não-autônoma, não seja estranha a uma ordem divina. Nada é, portanto, mais
estranho a esse pensamento do que o voluntarismo jurídico, e ele pende bem
mais para o lado do direito natural clássico do que para o do direito natural
individualista e revolucionário. O espírito humano deve se contentar em "ler”
leis da ordem natural que se impõem a ele do exterior; no entanto, lhe é
reconhecida a faculdade de pôr no lugar os diferentes elementos e de prever
as acomodações entre a lei social e as exigências práticas do estado civil.
Saint-Just leva muito longe seu naturalismo social: a sociedade encontra
seu fundamento na natureza, mas, igualmente, a solução das relações com­
plexas que ela engendra e a garantia de sua robustez, qualquer que seja seu
grau de evolução histórica. A natureza, harmonia espontânea, é o contrário da
força, fundamento real das sociedades contemporâneas. Exprimindo um natu­
ralismo deliberadamente otimista, idílico, mas ainda mais rigoroso e coerente,
Saint-Just exclui a razão do campo das noções como faculdade artificial.
Observa-se no fim do manuscrito Da natureza... uma queda de tensão muito
nítida: o autor após ter resistido contra as concepções comuns e ter praticado,
quase agressivamente uma inversão de sentido, “estado selvagem” significando
para ele “estado civil” ou político, e “estado social”, o "estado natural”, retorna
à terminologia corrente. “Os homens se amam na natureza. Na vida social, eles
se cuidam... Chamei vida social a dos homens reunidos por um contrato escrito,
de outra maneira não me teriam entendido” (De la nature..., pág. 175).
Saint-Just nega tanto mais facilmente à razão a qualidade de faculdade natural,
pois, segundo ele, ela não existe nem mesmo virtualmente no estado de
natureza e só pertence à história enquanto substituto e degeneração da
inteligência básica. Também posteriormente, por ocasião do acidente que fez
a humanidade passar do estado social para o estado selvagem, a razão foi só o
instrumento que sobrou ao homem para elaborar o contrato político e es­
truturar a sociedade à base de relações de força. Essa idéia da razão, geradora
da vida política ou selvagem, instrumento para coagir a natureza, mostra
bastante a que distância Saint-Just se situa do racionalismo, mesmo se seu
texto não parece excluir completamente um bom uso possível da razão. O
passo cedido à inteligência básica sobre a razão revela um primitivismo de
tendência bastante radical.

1051
Com efeito, no pensamento de Saint-Just, novidade é sinônimo de erro.
Ele escolheu a atitude do pesar nostálgico; seu espírito e sua consciência são
irresistivelmente virados para o que não existe mais. Ele exprime um primiti-
vismo essencialmente cronológico: o estado perfeito da humanidade existiu na
origem do gênero humano: a ela é apenas um longo declínio. Ele também
recusa a história, pois a história é o mal, é uma "alteração”, palavra-chave de
sua filosofia da história. Toda sociedade se corrompe desde que se afasta de
seu primeiro estado. Porém, apesar de professar uma teoria do declínio,
Saint-Just está convencido da bondade natural do homem. Nenhuma falha da
natureza humana explica a passagem do estado social para o estado selvagem;
não houve queda, a partir de uma paixão inata corruptora da natureza
humana, mas somente um acidente do qual a única responsável seria a
impostura teológico-política. Existe, portanto, uma antinomia entre a alteração
da alma humana e sua inocência original. Essa contradição só pode ser
resolvida pela descoberta de um contra-senso social na base das sociedades
contemporâneas. Dessa maneira, cava-se uma espécie de hiato temporal entre
o estado social e o estado selvagem que se encontra necessariamente no
sentido inverso. Resulta daí a prescrição de imperativos estáticos, sem ne­
nhuma procura dos meios dinâmicos suscetíveis de indicar o caminho do
estado social. Nenhuma visão do futuro aparece, realmente, no manuscrito Da
natureza... A palavra e a idéia de progresso parecem desconhecidas de
Saint-Just, o tempo histórico parece ignorado.
Pelo menos um indeterminismo histórico não impede a esperança; a
natureza está associada à primeira sociedade, ele só impede que ela possa
ordenar e regular a sociedade presente. A natureza não é feita somente pelos
bosques. Consciente de uma certa complexidade da sociedade de seu tempo, o
autor afirma apenas que, apesar de “algumas relações que o comércio, a
agricultura e a indústria estabeleceram entre os homens, não se deve concluir
que eles não possam ser governados naturalmente” {De la nature..., pág.143).
Os homens são, portanto, livres de voltar a uma forma social natural e, se se
fundar a sociedade presente sobre a natureza, "as relações nascerão uma da
outra, e o comércio e a indústria encontrarão ainda leis na natureza"(ibidem,
pág. 143). Um primitivismo mais nitidamente cultural - no sentido de recusa
de uma forma de civilização —se encarrega e se enriquece dos valores sociais
de Saint-Just Ante o capitalismo nascente e contra ele, Saint-Just exalta a
primeira sociedade onde os homens não sofriam de avidez, mas atingiam a
felicidade por meio do repouso e da satisfação das primeiras necessidades.
Em presença dessa recusa radical de todo fenômeno de poder e de
autoridade no interior da cidade, se está autorizado a fazer desse autor um
defensor do estado de anarquia? Escolher essa interpretação seria não ter
sensibilidade para a idéia de direito, ainda muito grosseira, é verdade, que
impregna, do começo ao fim, o manuscrito Da natureza... e alcança a idéia de
uma harmonia necessária entre o direito social e o'direito civil. Por outro lado,
Saint-Just, cortando logo, por antecedência, a acusação de ser um teórico do
estado de anarquia, respondeu: “No lugar em que não houver mais poderes,

1052
não haverá mais anarquia” (De la nature..., pág. 148). Resposta que, em uma
primeira abordagem, pode parecer ilusória, mas que nos coloca no caminho: é
preciso dissociar direito e poder; uma ordem jurídica é concebível inde­
pendentemente de todo fenômeno de coação e de autoridade. O pensamento
político de Saint-Just pertence à corrente de direito social que C.Gurvitch
resgatou e assim definiu: “O direito autônomo de comunhão pelo qual se
integra de uma maneira objetiva cada totalidade ativa, concreta e real, encar­
nando um valor positivo” (L'idée du droit social, Paris, 1932, pág. 15). A
analogia não está apenas nos termos, ela concerne à forma de sociabilidade e
à essência do direito que Saint-Just preconiza como fundamento da cidade. É
o que confirma o aspecto crítico do pensamento desse autor. A forma de
sociabilidade que ele combate enquanto reinado da lei política contém implici­
tamente aquela à qual ele aspira. O vínculo político só alcança uma sociabili­
dade por meio de uma interdependência em que os indivíduos essencialmente
distintos se delimitam reciprocamente e só conhecem uma ligação externa.
Quando a lei política penetra o estado civil, as relações mais naturais são
vividas sob conflito, e as relações de dependências substituem as relações de
união. O outro, dentro de tal sociedade, sendo percebido como obstáculo, e a
relação com o outro, como uma relação de antagonismo, a cidade passa a ser
apenas um agrupamento de cidadãos hostis, divididos, ameaçando-se uns aos
outros, segundo o equilíbrio da força, e somente unidos pelo Estado, que se
superpõe a eles do exterior.
Resulta daí que a expressão jurídica de tal forma de sociabilidade só pode
ser uma ordem de coordenação, isto é, nesse caso, o contrato, instrumento
necessário da mediação entre indivíduos separados. Ao contrário, a forma de
sociabilidade desejada e desejável é espontânea. Ela tem como símbolo dis­
tintivo e essencial relações de união, tanto mais íntimas que o todo precede as
partes e cada um vive aí por todos. As relações interpessoais são vividas nesse
caso sob a amizade ou o amor. Forma de sociabilidade por interpenetração, em
que, apesar das diferenças, a identidade prevalece, ela dá nascimento a um
direito de integração, resolutamente anticontratual: o direito social.
Parece, portanto, que o contraste que Saint-Just instaura entre direito
social e direito político coincide exatamente com a oposição entre direito social,
direito de integração e direito individual, direito de coordenação e, mais precisa­
mente quanto à expressão jurídica, entre direito estatutário e direito contratual.
Ê a partir dessa reinserção na corrente do direito social que se esclarecem os
caracteres principais de seu pensamento: o naturalismo doutrinário, o antiindivi-
dualismo e a oposição de toda teoria do contrato. Levemos ainda mais longe a
análise e veremos liberar-se com bastante nitidez uma teoria do direito social.
Depois de ter colocado a questão da necessidade de leis civis no âmbito da cidade
e ter concluído pela resposta afirmativa, Saint-Just escreve: “A cidade terá,
portanto, suas leis, para que cada um, seguindo a regra de todos, esteja ligado a
todos, e para que os cidadãos não estejam mais ligados ao Estado, mas sim para
que, ligados entre si, formem o Estado, as leis terão a posse como princípio e não
o príncipe ou a convenção” (De la nature..., pág. 158).

1053
Nessa frase exprimem-se princípios essenciais para a interpretação global
do pensamento desse autor: o princípio da distinção preliminar entre a sociedade
e o Estado, e a afirmação de que a sociedade é o fundamento do Estado e não o
inverso. O Estado, a mediação contratual das vontades, não cria a sociedade; a
sociedade, as relações das afeições e das necessidades que se concretizam dentro
da posse formam o Estado. A sociedade é concebida como um organismo, uma
totalidade orgânica: “O corpo social se parece com o corpo humano, todas suas
forças concorrem para sua harmonia” (ibidem, pág. 152). Ela segrega es­
pontaneamente um direito social comum, final das relações, das necessidades e
das afeições dos homens, da “sociedade civil” no sentido hegeliano. “A regra civil
para todos os compromissos deve ser calcada sobre a regra social. Uma e outra
sendo confundidas, o nó social fica mais apertado, e a sociedade que subsiste ela
mesma, como já disse, por um princípio natural fica ligada em todas as suas
partes pela regra civil" (ibidem, pág. 152). A ordem social existe, portanto,
enquanto ordem autônoma, independente da ordem estatal, que só tem como
efeito perturbar essa primeira ordem espontânea.
Enfim e principalmente, a função desse direito é de integração, função
específica do direito social. A totalidade, “O corpo social”, é imanente; não
transcende do exterior os membros da cidade, mas emana da reciprocidade
vivida das necessidades e das afeições, da posse, que engendra uma união, uma
participação concreta, dinâmica e incessantemente renovada do todo para as
partes e das partes para o todo. “O direito de homem a homem é a natureza
ou a independência; o de cidadão a cidadão é a posse; o de povo a povo é a
força. Encontra-se nas correlações dessas coisas a unidade do corpo social
sob todas essas relações. Ele se conserva porque, sob essas relações, está
unido" {De la nature..., pág.146). Toda perspectiva individualista está, portan­
to, nitidamente excluída: o homem, encerrado numa rede de vínculos naturais,
não violentos, vive espontaneamente para todos, tanto mais facilmente que a
comunidade à qual ele pertence tem uma obra para realizar, a conservação e
a defesa contra o exterior.
Daí a oposição radical de Saint-Just a uma concepção contratual e
artificialista de sociedade e a toda teoria do direito individual. A esse respeito,
a teoria da lei no manuscrito Da natureza... é sintomática. Todo fundamento
voluntarista do direito deve ser rejeitado; também a lei não pode ser expressão
da vontade geral, mas da natureza. E é ao legislador, sábio, filósofo, mas não
profeta, que compete o papel de exprimir a natureza.
Enfim, a posse tal como Saint-Just a concebe, poderia se definir como um
direito desmembrado (o jus ábutendi está ausente), controlado, harmonizado,
relativo, funcional, em uma palavra, uma propriedade social. É mesmo o tipo da
teoria de direito social em que as necessidades da comunidade pedem a
regulamentação da posse, sem medida comum com a propriedade saída do
direito romano. O pensamento do autor, apesar de colocar o homem como
proprietário de si mesmo, não pertence à corrente do individualismo possessivo,
já que esse homem é concebido como parte de um todo mais amplo do qual ele
deve reforçar a unidade orgânica por sua projeção, seja ela econômica ou afetiva.

1054
Não se pode deixar de ficar impressionado por um anti-rousseaunismo
quase sistemático nos três níveis sucessivos da filosofia da história, da teoria
da sociedade e do fundamento do direito. E, principalmente, do mesmo modo
que Billaud-Varenne nos Eléments de républicanisme (ano I), Saint-Just
censura Rousseau por ter excluído a tese da socialidade natural.

Os paradoxos de Saint-Just: da revoluçâo-restauração à


revoluçâo-abismo

Em que o texto Da natureza... pode nos ajudar a elucidar melhor a ação


de Saint-Just, sua posição revolucionária posterior, sua conversão ao Terror e
seu sentimento ferido diante do congelamento da Revolução?
Charles Nodier, o editor fascinado das Institutions républicaines (1831),
soube, talvez do que ninguém, designar o paradoxo de Saint-Just “Esse infeliz
Saint-Just (...) não era um homem sem entranhas... restaram-lhe ternuras e
mesmo convicções diante das quais nossa civilização aperfeiçoada recuaria
com desprezo... ele acreditava, o que é bem mais forte, no respeito aos
ancestrais e no culto dos sentimentos... Era um filósofo extremamente atrasa­
do em comparação com nosso século’’ (Jean Richer, Charles Nodier e a
Revolução Francesa, em Philosophies de la Révolution, Paris, Vrin, 1984). O
Arcanjo do Terror cultuava os ancestrais: “A velhice é um culto de nossa
pátria”, escreveu ele nas Institutions républicaines. Tentemos decompor esse
paradoxo.
A primeira imagem seria a de que esse jovem, a própria encarnação da
Revolução, funda sua ação, por mais estranho que isso possa parecer, no
direito natural clássico. Se é verdade que a invocação da natureza pode ter
efeitos críticos contra a tradição, não é menos verdadeiro que a idéia de limite
própria do direito natural clássico, pensamento teleológico, e um pensamento
do direito longe de uma fundação subjetiva tornam essa forma de pensamento
incompatível com a idéia moderna de revolução. Como se sabe, o pensamento
moderno da revolução, na lógica de uma filosofia da liberdade e não da virtude,
professa uma concepção subjetiva do direito ao mesmo tempo que visa a uma
emancipação projetada como movimento infinito.
Ora, a afirmação da socialidade natural, a posição sob o nome de
natureza de uma ordem objetiva não-histórica, a desconfiança confessada com
relação à vontade, individual ou geral, a recusa reiterada do modelo do
contrato, a teoria do legislador, todas essas características colocam Saint-Just,
artesão do mundo moderno, do lado dos Antigos. Dessa maneira faz sentido
seu apelo à virtude. Se ele associa a revolução ao povo, logo dissocia a
instituição republicana da vontade popular para atribuir sua tarefa e seu
monopólio ao legislador, eleito intérprete da natureza. Situação doutrinária
muito mais estranha pelo fato de Saint-Just confessar uma concepção do direito
natural de tendência igualitária, de inspiração muito mais cristã do que
clássica. Haveria nesse primeiro paradoxo um efeito de anti-rousseausismo:
colocando de maneira diferente de Rousseau que “a idade de ouro é anterior

1055
a nós” e caindo, assim, sob o golpe da crítica de Fichte, Saint-Just não pode ter
acesso à visão dialética da história própria do segundo Discours; além disso,
ele transforma a idéia de natureza que, em Rousseau, tem valor de uma
hipótese crítica, na afirmação de uma realidade passada que se erige em
verdade da primeira sociedade. Dogmatizando Rousseau por esse caminho, ele
apaga de uma só vez a tensão conflitual já que, para ele, retorno à cidade e
retorno à natureza devem tender a se confundir.
Assim, a revolução é refletida mais segundo um modelo astronômico —o
que implica a idéia de um retorno a uma posição ante —do que no interior do
campo político propriamente dito, a partir do conceito clássico de stasis ou da
reflexão moderna sobre os tumultos conduzindo a um pensamento do conflito
e da divisão social (MJ. Lasky, Utopia and revolution, Chicago, 1976, pág.
239-259).
Trata-se-ia de uma idéia moderna da revolução? A musa da perfectibilidade
não faz falta de maneira grave a Saint-Just? Dissociada da idéia de liberdade e
ligada à natureza, a revolução não está tão orientada para a liberação ou a
invenção de uma sociedade nova quanto para a “renaturação”, para a res­
tauração de uma ordem natural apagada por séculos de alteração monárquica,
denunciada no julgamento do rei como “crime contra a natureza”? A obra da
revolução exige, portanto, recolocar a sociedade acima da órbita da natureza,
voltar a uma ordem colocada como natural, longe do novo, e que institui limites
tanto mais constrangedores por serem colocados como objetivos. “Eu não parto
os vínculos da sociedade, mas a sociedade partiu todos os da natureza. Não
procuro mais estabelecer novidades, mas destruir as próprias novidades” (De la
nature..., pág. 161). Essa orientação voltada para o passado, esse ódio da
novidade, esse misoneismo permitem dar conta do caráter, do clima fundamen-
talista desse pensamento que vem acompanhado do puritanismo jacobino os­
cilando entre a figura do herói e a do santo. 0 que não deixa de modificar de
maneira sensível a imagem do revolucionário; ela não parece mais tão exposto à
paixão pela liberdade quanto atraído irresistivelmente pela instauração de uma
ordem que, por ser anunciada sob a inovação da revolução, não apresenta menos
todos os caracteres de uma codificação generalizada das formas da existência
(M.Walzer, The Revolution ofthe Saints, Nova York, 1976).
Paradoxo mais surpreendente ainda: não contente em associar a revolu­
ção ao projeto de uma restauração da natureza, Saint-Just convida a fazer, a
praticar a revolução longe da política, pior, contra a política. "Não é preciso se
assustar com as mudanças, o perigo está apenas na medida de operá-las, todas
as revoluções do mundo partiram da política. E por isso que elas foram plenas
de crimes e de catástrofes. As revoluções que nascessem das leis e que fossem
manejadas por mãos hábeis mudariam a face do mundo sem o abalar" (De la
nature..., pág. 155). Boas leis? Entenda-se leis repousando sobre a natureza.
Será preciso ver nessa surpreendente declaração do jovem doutrinário
jacobinismo um ressurgimento do agostinianismo segundo o qual a política é
identificada com o mal? Isso implicaria o fato do domínio do cristianismo sobre
o jacobinismo —dos modos de pensar sobre a política próprios ao cristianismo

1056
- ser mais importante do que se estima comumente. Relacionar o viver-junto
dos homens a uma espontaneidade do social com, além disso, um assentamen­
to da polis sobre a societas leva a uma depreciação da política. Esse despres­
tígio das coisas políticas mostra bastante como Saint-Just, apesar de sua
afinidade com o direito natural clássico, não consegue pensar nem na digni­
dade da política, nem reconhecer uma dimensão constitutiva, incontornável da
existência plural dos homens.
Contradições múltiplas, portanto, mas cujo aspecto essencial se atém à
utilização de uma prática moderna, a revolução, a serviço de uma repre­
sentação pré-moderna do direito e da sociedade.
Poder-se-á talvez assinalar aí um dos focos do Terror? A indignidade
emprestada à política não deixa de trazer um descrédito relativo para a
mediação política, mesmo quando Saint-Just adverte, no discurso Sur la
Constitution, que a “política natural” não é seu propósito. O que confessa esse
autor senão uma dupla recusa da política —(recusa da mediação ou confusão
com a lógica de uma outra ordem) —quando escreve: “Um governo republicano
tem a virtude como princípio ou, então, o terror. Que esperam aqueles que não
querem nem a virtude, nem o terror?” (Frammenti, pág. 49). Também o
retorno à natureza como destino da cidade, e não da humanidade, a revolução
pensada como caminho para esse retorno engendra a ilusão pela qual se opera
a confusão entre a política e a moral. Importa, efetivamente, não expor a
política a uma “sobrecarga” e da mesma forma não a tirar fora dos eixos
dando-lhe uma missão que exceda seus limites, nas presentes circunstâncias, a
reforma das consciências ou a supressão do egoísmo. Essa é a advertência de
Kant, em 1793, quando ele distingue entre comunidade política e cidade ética
e denuncia explicitamente os perigos de uma política da virtude. “Pode-se
chamar de sociedade ética a uma união entre homens, sob simples leis de
virtude seguindo as prescrições dessa Idéia, e, na medida em que essas leis
forem de ordem pública, de sociedade civil ética (em oposição à sociedade civil,
jurídica) ou, ainda, de comunidade ética... Todo Estado político pode sem
dúvida desejar que se encontre nele uma dominação exercendo-se sobre os
espíritos segundo as leis da virtude, pois no caso em que seus meios de coerção
não sejam suficientes, pelo fato do juiz humano não poder penetrar o íntimo
dos outros homens, as intenções virtuosas produziriam o que se almeja.
Porém, infeliz do legislador que quisesse estabelecer pela coação uma cons­
tituição com fins éticos, pois não somente faria, assim, o contrário dessa
constituição, mas, além disso, minaria sua constituição política e lhe tiraria
toda solidez” (La religion dans les limites de la simple raison, 1793, Vrin,
1972, pág. 126-127 e 129-130).
Também quando Saint-Just inaugura o que nos pareceu ser “uma nova
marcha” com o projeto das Institutions républicaines, uma saída do Terror
e poder-se-ia dizer uma crítica do jacobinismo do interior, não escapa do
domínio de um movimento de volta para um estado natural pré-político
(M.Abensour, La théorie des institutions et les relations du législateur et du
peuple selon Saint-Just, Actes du Colloque Saint-Just, Paris 1968, págs.

1057
239-290). A idéia de instituição, com relação a uma critica da lei - “obedecer
às leis, isso não está claro”, escreve Saint-Just—, faz ainda sinal em direção
à natureza, em direção à vontade de restabelecer uma ordem natural dando
acesso à objetividade. Mas não se pode deixar de observar no caso do
legislador jacobino, determinado a formar instituições republicanas, um
endurecimento, como se a orientação para a natureza se fizesse acompanhar
daí em diante por uma perpétua suspeita. Daí, dentro desse sobressalto em
que se trata de criar as instituições, a “alma da república”, o recurso ao
heroísmo. “O dia em que estiver convencido de que é impossível dar ao povo
francês costumes doces, enérgicos, sensíveis e inexoráveis para combater a
tirania e a injustiça, eu me apunhalarei’’(/'mmmen//, pág. 47). O suicídio
heróico contra a morte da natureza.
Um novo movimento paradoxal se esboça: partindo de um projeto
fundamentalista, restabelecer a cidade sobre bases naturais, o autor não
pôde fazer economia de um ato de fundação, mais exatamente de autofunda-
ção. A questão da Revolução Francesa torna-se a questão do heroísmo. O
heroísmo considerado na perspectiva da filosofia política, e não de um ponto
de vista romântico, é uma dimensão constitutiva da Revolução. Ele é seu
campo magnético. Por deixar de reconhecer a existência desse “sol central”
(G.Büchner), de medir seus efeitos energéticos, a magnetização das cons­
ciências, um “desdobramento da vida”segundo Chateaubriand, o intérprete
se expõe a não poder compreender nem pensar sobre o acontecimento
revolucionário. Brutus moderno, regicida aureolado de sua juventude e de
seu nome, Saint-Just apareceu de repente na cena política durante o proces­
so do Rei, conhecendo então a experiência heróica por excelência, a do
segundo nascimento. Michelet, que havia lido Plutarco, que havia praticado
Vico, tinha clara visão política da Revolução; mais ainda, não dissociou essa
forma de inteligência de uma consideração do heroísmo. Melhor do que
ninguém, soube também descobrir, no âmbito da Revolução, uma lógica do
heroísmo como força ativa e autônoma. É por isso que ele insiste sobre o
abalo sem volta que provocou, quando do julgamento do rei, a intervenção
de Saint-Just. “Esse discurso teve sobre o processo um efeito enorme...
Jovem ou não, exagerado ou não, ele teve esse poder de dar o tom a todo o
processo. Ele determinou o diapasão; passou-se a cantar no tom de Saint-
Just” (Michelet, Historie de Ia Révolution française, tomo II, La Pléiade,
1952, pág. 79). Trata-se realmente nesse caso de uma experiência do começo,
começo da República, apelo ao desconhecido, mas também, para ele, de se
retirar da obscuridade, da condição de simples particular, para projeção
repentina na luminosidade do espaço público. “Quem iria erguer o glá-
dio?...Era preciso um homem totalmente novo, que nenhum antecedente de
filantropia pudesse entravar...” (ibidem, pág. 73), escreve Michelet. Ao ler os
discursos de Saint-Just p erc e b e -se com efeito o quanto dentro desse aconte­
cimento misturam-se indissoluvelmente experiência do nascimento e expe­
riência da fundação, uma e outra ligadas necessariamente à morte do Rei.
“Os mesmo homens que vão julgar Luiz XVI têm uma república a fundar:

1058
aqueles que dão alguma importância ao justo castigo de um rei nlo fundarão
jamais uma república... Para mim não há meio-termo: esse homem deve
reinar ou morrer... o espírito com o qual se julgará o Rei será o mesmo que
com o qual se estabelecerá a república. A teoria de vosso julgamento será
aquela de vossas magistraturas”(Saint-Just, Discours et Rapports, Editions
Sociales, 1957, págs. 63, 65 e 67). Ou, ainda, “a revolução começa quando o
tirano acaba "(Saint-Just, Oeuvres, 1.1. ed. Vellay, 1908, pág. 398).
Porém, ergue-se logo uma questão diante do que M. Walzer, apoiando-se
sobre os trabalhos de E. Kantorowicz, qualifica justamente de “regicídio
público” e que, segundo ele, tem como característica singular atingir a
inviolabilidade da monarquia, transgredir o “terror sagrado” de origem teoló-
gico-política que se liga ao duplo corpo do rei, ao mesmo tempo mortal (M.
Walzer, Regicide and Revolution, Cambridge, 1974). Pode-se mudar a face do
mundo sem o abalar? Não acarretará efeitos incontroláveis o agir revolucioná­
rio, tanto mais que, no caso de Saint-Just, não se tratava de julgar o rei, mas
de combatê-lo, de abatê-lo como inimigo? Pode-se ainda acariciar a ilusão de
um retorno às boas leis, segundo a natureza? A revolução-experiência do
começo não é ao mesmo tempo uma exposição à imprevisibilidade? O próprio
Saint-Just não deixou de comparar o acontecimento revolucionário com o do
nascimento: “Nós opusemos o gládio, ao gládio e a liberdade foi fundada; ela
saiu do centro das tempestades; essa origem é comum a ela e ao mundo saído
do caos e ao homem que chora ao nascer... Tudo começa, portanto, sob o céu”
(Discours, op. cit, págs. 186 e 187).
O regicídio público, ruptura sem precedente, não arruinou, pela radicali-
dade que exige, a própria idéia de natureza? A revolução também deixaria as
margens tranqüilas de uma retorno à ordem natural para enfrentar as intem­
péries da liberdade, para se comprometer com o desconhecido de uma nova
experiência da liberdade, como a liberdade de fazer o bem e o mal. Em resumo,
a passagem de uma revolução-restauração para uma revolução-abismo. Saint-
Just, ao mesmo tempo que procura o ponto em que a revolução deve parar,
"na perfeição da felicidade e da liberdade pública sob as leis”, revela sua
inquietude diante da identidade daí em diante problemática, até mesmo
mascarada, da revolução, e diante do movimento vertiginoso da liberdade, por
ser movimento infinito. “Fala-se do alto nível da revolução, mas quem lhe
estabelecerá esse nível? Ela é móve.\”(Fragments pág. 52). Prova do impossível?
Diante dessa abertura, o heroísmo torna-se, por sua vez, experiência
paradoxal. Se Saint-Just volta com melancolia os olhos “para a beleza que não
existe mais”(Roma, Esparta), reconhece, todavia, uma metamorfose do heroís­
mo e concorda muito conscientemente com aquilo que P. Lacoue-Labarthe
escreve a propósito de Hõlderlin, como crise geral da imitatio, consecutiva ao
desmoronamento de uma tradição. “O desaparecimento de toda regra e de todo
modelo, de toda codificação em matéria de arte” (Hõlderlin, Hymnes, elégies
et autres poémes, Paris, 1983, introdução, pág. 8). E o poeta, não estranho ao
abalo revolucionário, se consume “na criação praticamente ex nihilo de uma
obra futura ou de uma arte nova”. Saint-Just anuncia no dia 25 de abril de

1059
1794: “Não duvidem, tudo que existe em torno de nós deve mudar e acabar,
porque tudo que existe à nossa volta é injusto; a vitória e a liberdade cobrirão
o mundo. Não desprezem nada, mas não imitem nada do que se passou antes
de nós; o heroísmo não tem modelos. Será assim, repito, que fundarão um
império poderoso, com a audácia do gênio e o poderio da justiça e da verdade”
(Discours, pág. 196).
Ora, é precisamente nesse mesmo discurso, Sur la police générale, sur
la justice, le commerce, la législation etles crime des factions, que Saint-Just
apresenta o retrato, o modelo do homem revolucionário, “herói de bom senso
e de probidade”, isto é, o intérprete privilegiado, senão guardião, da revolução.
“Como sua finalidade é ver triunfar a revolução, ele não a censura jamais, e
condena seus inimigos sem envolvê-la com eles; ele não a insulta, mas busca
esclarecê-la; defensor de sua pureza, ele se modera, quando a analisa, em
respeito a ela” (Discours et Rapports, pág. 183). À rapidez tumultuosa, ao
categórico da palavra regicida sucede a reverência lenta da exemplaridade
revolucionária. Essa mudança de ritmo manifesta a trajetória paradoxal do
heroísmo: energia do começo, no diapasão do impulso do initium, o heroísmo
cai, torna-se testemunho e força de parada, limite imposto ao impulso revolu­
cionário. Desenha-se uma nova figura de detentor dos critérios do bem e do
mal, juiz da moderação e do exagero. O heroísmo não tem mais modelos:
quando o solo da natureza desaparece, exposto a essa vacuidade, o herói se
transforma logo em modelo, em força de impossível “modelização”. Nesse
ponto nodal se reencontram a lógica do heroísmo e a lógica da invenção
democrática, tão bem esclarecidas por Claude Lefort (C.Lefort, L ’invention
democratique, Fayard, 1981). Privado do cânone da natureza, como determi­
nar daí em diante o limite entre a liberdade e a licença? Após a experiência sem
precedentes de desincorporação do social na e pela morte do rei, submetido à
prova de uma vertigem diante do desconhecido de uma sociedade não mais
voltada para a natureza, mas encarando o novo, após a perda das referências,
como recodificar, estabelecer critérios, referências, redesenhar marcas identi-
ficatórias, refazer o corpo (C. Lefort), senão oferecendo o corpo do herói
revolucionário como encarnação de um novo sagrado, como suporte de uma
identificação, senão aliando o poder a um corpo exemplar?
Camile Desmoulins, mais ateniense do que espartano e que gostava de
rir dos deuses e dos ídolos, dizia de Saint-Just que ele “usava sua cabeça
como um santo sacramento”. Em eco nos revém o grito de Lucile Desmou­
lins, em La mort de Danton: “Viva o rei!”, saudado como palavra de
liberdade por Paul Celan, aumentado com os escritos de Piotr Kropotkin e
de Gustav Landauer (LeMéridien, Mercure de France, 1971). Se Saint-Just,
por autocriação de seu mito, participou da invenção do que Stendhal
chamava de o belo moderno e exerce ainda a distância uma fascinação,
deve-se ainda guardar na memória as últimas linha do P r e f á c io de Michelet,
em 1869, intitulado Le Tyran (O Tirano): "Felizmente o tempo avança.
Somos agora um pouco menos imbecis. A mania das encarnações, inculcada
cuidadosamente pela educação cristã, o messianismo, passa. Compreende-

1060
mos, enfim, a opinião que Anachassis Clootz nos deixou ao morrer: “França,
curada dos indivíduos.’’

NOTAS
1. Todas as referências neste texto remetem a essa edição. Depois, o texto foi retomado
nas duas edições citadas no início da bibliografia.
2. O mesmo sentido passivo se reencontra na página 142, onde Saint-Just escreve: “O
pacto natural exclui toda força particular que é uma independência do soberano." Deve-se
entender: c o m re la ç ã o a o so b e ra n o .

• O e u v re s c o m p tè te s, edição estabelecida por Michèle Duval, Paris, Ed.Gérard Lebovici, 1984;


T h éo rie p o litiq u e , textos estabelecidos e anotados por A. Liénard, Paris, Le Seuil, 1976; O e u v re s
c o m p lè te s, com uma introdução e notas por Charles Vellay, Paris, Charpentier & Fasquelle,
1908, (contém um falso relatório sobre as potências neutras); D isc o u r s e t R a p o rts, introdução
e notas por Albert Soboul, Paris, Editions Sociales, 1957; F ra m m e n ti su lle is titu z io n i rep u b li­
c a m , A cura de Albert Soboul, Einaudi, 1952 (ed.bilíngüe; contém D e la N a tu re... e os
F ra g m e n ts s u r le s I n s titu tio n s ré p u b lic a in e s levando-se em consideração a edição de 1800;
serviu de referência para as citações do presente texto); sobre a edição da obra de Saint-Just, o
instrumento de trabalho indispensável é o trabalho de J. - P. Gross, L V e u v r e d e S ain t-Ju st.
Ensaio de Bibliografia crítica, A c te s d u C o llo q u e S a in t-J u st (sorbonne, 1967), Paris, págs.
343-463.

► P. Derocles, S a in t-J u st, s e id é e s p o litiq u e s e t s o c ia le s , Paris 1937; S.B Kritschewsky. J.-J.


R o u s s e a u u n d S a in t-J u st, Berna, 1895; E. Newton-Curtis, S a in t-J u st c o lle a g u e o f R o b e s-
p i e r r e , Nova York, 1935 (resumo de G. Lefebvre, A H R F , 1936); A OUívier, S a in t-J u st e t la
fo rc e d e s c h o se s, prefácio de André Malraux, Paris, Gallimard, 1954 (resumo de A. Soboul,
A H R F , 1956); R.R. Palmer, T w elv e w h o ru le d , Atheneum, Nova York, 1965; M. Abensour, L a
p h ilo s o p h ie p o litiq u e d e S a in t-J u st (1 e 2), AH R F , ns 1, 1966, págs. 1-32 e ns 3, 1966, págs.
341-358; Idem, L a T h é o rie d e s in s titu tio n s e t le s re la lio n s d u lé g is la te u r e t d u p e u p le , s e lo n
S a in t-J u st, e m A c te s d u C o llo q u e , Paris, 1968, págs. 239-290; A Philonenko, R é íle x lo n s s u r
S a in t-J u st e t V ex iste n c e lé g e n d a ir e , em E ss a is s u r la p h ilo s o p h ie d e la g u e r r e , Vrin, 1976;
A Soboul, L e s in s titu tio n s ré p u b lic a in e s d e S a in t-J u st d ’a p r è s les m a n u s c r ito s d e la
B ib lio th e q u e N a tio n a le , AH R F , 1948, págs. 214-254; idem, Un m a n u s c r it in é d it d e S a in t-
J u st: D e la n a tu r e d e l ’é ta t civil, d e la c ità o u le s r é g le s d e 1 'in d é p e n d a n c e d u g o u v e r n e m e n t,
A H RF, 1951, págs. 321-359; S. Torjussen, S a in t-J u st e t s e s b io g ra p h e s. M é c a n iq u e d ’u n
m y th e , A H RF, 1979, págs. 234 e sg.
E os estudos de M. Troper, J. Chaumié, J.-P. Gross, C.-A Michelet, M. Dommanget, F. Theuriot,
A. Geffroy, M. Abensour, em A c te s d u C o llo q u e S a in t-J u st (Sorbonne, 25 de junho de 1967),
Paris, Societé des Études robespierristes, 1968.

M iguel ABENSOUR.

1061
SA1NT-PIERRE, Charles Irenée Castel, Abade de, 1658-1743
Projeto de paz perpétua, 1713

A obra do abade de Saint-Pierre permaneceu na memória do pensamento


político principalmente em função do interesse que Jean-Jacques Rousseau lhe
dedicou. No entanto, uma metade de século separa o Projet de paix perpé-
tuelle (3 volumes, 1713) ou seu Abrégé (Resumo) (1728) do Extrait analítico
que Rousseau dela fez (1761): as motivações já são diferentes. Ora, a proble­
mática do abade de saint-Pierre merece ser redescoberta em si mesma, a fim
de que lhe seja dado seu verdadeiro lugar na história do pensamento político
e para que se apreendam as verdadeiras causas de sua influência.

A motivação da obra

O Projeto merece realmente figurar como um marco na história da “idéia


européia” tanto quanto na evolução da problemática “pacifista”: a própria
função do Projeto, na verdade, é ligar os dois aspectos, apresentando a
edificação de uma “sociedade européia” como a única garantia da "perpetui-
dade da paz”, seja nos Estados dos "príncipes cristãos”, seja fora deles.
O contexto concreto, lá pelo fim do reinado belicoso de Luís XIV, era a
busca de uma organização das “relações internacionais" baseada num funda­
mento pacífico. De fato, quando delegado plenipotenciário ao Congresso de
Utrecht, foi que o abade de Saint-Pierre redigiu um Memorial para tornar a
paz perpétua na Europa (1712). O Projeto, publicado no ano seguinte,
ultrapassa, todavia, o memorial “diplomático”. Trata-se, nesse caso, de uma
construção que se esforça em introduzir na relação dos Estados uma máxima
racionalidade. Rousseau resume belamente sua essência quando escreve, num
esboço de biografia do abade de Saint-Pierre (1758); “Teria sido um homem
muito equilibrado se não tivesse tido loucura pela razão” (Fragments et notes
sur Vabbé de Saint-Pierre, parágrafo 3).
O abade de Saint-Pierre refere seu projeto a um antecedente ilustre, por
meio do qual, de certa forma, o legitima: o plano de estabelecimento de uma
federação do mundo cristão destinada a assegurar a paz, mencionado por Sully
em sua Economies royales (1611; publicada em 1638) e atribuído a Henrique
IV em pessoa: “A aprovação que a maioria dos Soberanos da Europa deu ao
projeto de Sociedade Européia que Henrique, o grande lhes propôs demonstra
que se pode esperar o mesmo quanto a um Projeto semelhante da parte de
seus sucessores.” É curioso notar que, em 1623, uma obra intitulada o
Nouveau Cynée ou "Discurso sobre as oportunidades e meios para estabelecer
uma paz geral e a liberdade do comércio por todo o mundo”, atribuída a um
certo Emeric Crucé de Lacroix, apresentava esse plano (talvez o mesmo
atribuído a Henrique IV). Tanto mais que ele poderia remontar ao projeto da
“República cristã”, de Pierre Dubois, no século XIV, e ao projeto do Rei
Podiebrad da Congregado concordiae, no século XV: a idéia de uma federação

1062
européia esteve ligada à da defesa da cristandade durante as Cruzadas. No fim
do século XVII, Leibniz retomará essa idéia de uma federação européia, sob a
dupla autoridade do Papa e do Imperador, enquanto o quaker William Penn
visará a um contrato perpétuo entre os soberanos da Europa (1693). É essa
tradição que o Projeto retoma, no início do século XVIII, para elevá-lo ao nível
de uma construção sistemática. Os tempos pareciam ter chegado: Luís XV,
tendo sido batizado na ocasião de "Luís, o pacificador”, poderia dar realidade
ao que “Luís, o belicoso” havia prometido; a Regência se revela, desse ponto
de vista, um momento importante para a difusão dessas idéias, cuja importân­
cia talvez tenha sido menosprezada.

O silogismo fundador

O objetivo declarado da obra é o de “propor meios para tornar a Paz


perpétua entre todos os Estados cristãos”, a guerra sendo fonte de males tanto
para os soberanos quanto para os povos. E essa "necessidade em que estão os
Soberanos da Europa, como os outros homens, de viver em paz, unidos por
alguma sociedade permanente”, que o Projeto se dá como tarefa teorizar, de
maneira a reconciliar enfim os princípios e a realização. Pois “a constituição
presente de toda a Europa não poderia jamais produzir senão guerras profanas
quase contínuas”. Para passar da guerra contínua à paz perpétua, convém
instituir uma “Arbitragem perpétua” entre "as dezoito principais Soberanias
da Europa” (França, Espanha, Inglaterra, Holanda, Portugal, Suíça, Florença,
Gênova, Estado Eclesiástico, Veneza, Savóia, Lorena, Dinamarca, o Império
Curlandês*, Polônia, Suécia, Moscóvia), reunidas assim em um “Corpo Euro­
peu". Pois “os mesmos motivos e os mesmos meios que bastaram para formar
antigamente uma Sociedade permanente de todas as Soberanias da Alemanha,
estão ao alcance do poder dos Soberanos de hoje em dia e podem bastar para
formar uma Sociedade permanente de todas as Soberanias cristãs da Europa”.
Para essa solução, tanto existem "motivos suficientes” quanto “meios
praticáveis e suficientes”. Daí o silogismo fundador da construção: “Se a
sociedade Européia que se propõe pode proporcionar a todos os Príncipes
cristãos segurança suficiente de perpetuidade da Paz dentro e fora de seus
Estados, não há qualquer um deles para quem não haja muito mais vantagens
em assinar o Tratado para seu estabelecimento do que em não figurar nele.”
Ora, é exatamente o caso da Sociedade proposta. “Portanto, não há nenhum
entre eles para o qual não exista mais vantagens em assinar o Tratado para o
estabelecimento dessa Sociedade do que em não o assinar”. Essa é a premissa
fundamental em que se apoia o Projeto.

O imperativo de segurança

A concepção desse programa implica colocar em primeiro plano a

Corresponde a parte da atual Lituânia. (N. da T.)

1063
exigência de segurança. Sem “segurança permanente” nasce uma série impres­
sionante de “inconvenientes”: o desenrolar indefinido de querelas, que só
podem acabar pela liquidação de um dos pretendentes, embora seus des­
cendentes possam herdar as pretensões; a falta de proteção nas Regências; a
ausência de “poder coercitivo”, que só é possível por meio de uma força
superior dotada de autoridade suficiente, sem contar os gastos de processo e
a interrupção de comércio. O "sistema da União” fornece, em contraste com a
insegurança dos tratados, "um preservativo” contra as guerras estrangeiras e
as guerras civis, para a conservação dos Estados e do comércio.
Além disso, essa necessidade teórica tem apoio e modelo no grande
precedente da “União germânica”, estabelecida no fim do século IX como
tentativa de devolver unidade ao desaparecido Império de Carlos Magno. Basta
demonstrar que os soberanos alemães de então não tinham, para assinar
aquele Tratado, mais razões do que os soberanos da Europa atual. Por esse
prisma, assim como pela referência que faz ao projeto de Henrique, o Grande,
do fim do século XVI, o abade de Saint-Pierre arrima sua utopia em prece­
dentes objetivos, dando-lhe, assim, uma espécie de legitimidade histórica e
apontando a recorrência dessa necessidade, cuja satisfação o Século das Luzes
tem condições de prover.
Trata-se, além do mais, de mostrar que a paz é “lucro certo” para a
potência das grandes Casas Soberanas da Europa, cuja prosperidade material
e moral ela favoreceria, assegurando sua duração - o que demonstra que a
utopia universitária está preocupada em se apoiar num raciocínio em termos
de cálculo de poder. Saint-Pierre estava convencido de que uma harmonia
preestabelecida reúne os dois registros.

A escritura do tratado fundamental

A realização do Projeto depende, após “ter sido dado a perceber a


necessidade” dessa nova convenção, de “redigi-la em forma de tratado". O
autor disso se ocupa decerto sob a ditadura dessa necessidade: ele lhe dá um
texto - por onde o necessitarismo lógico se especifica numa espécie de
positivismo jurídico. A modéstia do enunciado do reformador esconde mal o
alcance de sua ambição: “Os que forem encarregados de compor o Projeto do
Tratado serão obrigados, eles próprios, a reduzi-lo em diversos artigos; dessa
forma, esse é um trabalho que lhes poupo; apresento-lhes um resumo já feito,
sobre o qual será bem mais fácil compor os deles, acrescentando e eliminando
o que julgarem mais conveniente ou, mesmo, às vezes sem nada acrescentar
ou eliminar, somente mudando expressões e arrumando cada artigo numa
ordem diferente.” O Projeto de paz perpétua é realmente, portanto, um
anteprojeto desse Tratado que deve inscrever a racionalidade na ordem política
—o que lhe exprime a própria originalidade.
Assim, o núcleo da obra - essa passagem do campo das razões ao da
escritura - é constituído por esse “resumo” de cinco artigos (cf. Abrégé).
O primeiro artigo enuncia, além disso, a necessidade da "aliança perpé-

1064
tua”: “Haverá, de ora em diante, entre os soberanos que terão assinado os cinco
artigos seguintes uma aliança perpétua: 1) para se proporcionarem mutua­
mente, durante todos os séculos por vir, segurança completa contra os grandes
infortúnios das guerras entre seus países; 2) para se proporcionarem mutua­
mente, durante todos os séculos que virão, inteira segurança contra os grandes
infortúnios das guerras civis; 3) para se proporcionarem mutuamente, durante
todos os séculos vindouros, segurança completa da conservação por inteiro de
seus Estados; 4) para se proporcionarem mutuamente, em todos os tempos de
enfraquecimento, uma segurança muito maior da conservação de suas próprias
pessoas e de suas famílias dentro da posse da soberania, segundo a ordem
estabelecida dentro da nação; 5) para se proporcionarem mutuamente muito
considerável diminuição de suas despesas militares, aumentando, entretanto,
sua segurança; 6) para se proporcionarem mutuamente, aumento muito consi­
derável do lucro anual que será produzido pela continuidade e pela segurança
do comércio; 7) para se proporcionarem mutuamente, com muito mais facili­
dade e em menos tempo, o desenvolvimento e a melhoria de seus Estados pelo
aperfeiçoamento das leis, dos regulamentos e pela adequada utilização de
numerosos e excelentes estabelecimentos; 8) para se proporcionarem mutua­
mente completa certeza de resolver mais prontamente, sem riscos e sem
despesas, suas disputas futuras; 9) para se proporcionarem mutuamente
completa certeza da pronta e exata execução de seus futuros tratados e de suas
promessas recíprocas.”
As estipulações desse artigo se confundem com “os nove efeitos princi­
pais que a aliança geral e permanente certamente produzirá”, o ponto exato
de partida sendo “a manutenção e a execução dos últimos tratados” —o que
evidencia o status quo das relações de poder que a conquista da paz requer e
eqüivale a uma espécie de renúncia ao “estado de natureza” dos Estados para
ter acesso aos ganhos de seu novo “estado social” assim promulgado. Essa
condição é comparada por um Congresso de que são membros os plenipoten-
ciários dos diversos Estados contratantes.
O segundo artigo estabelece o funcionamento desse "coletivo” no que
toca à cláusula concreta das “contribuições”, de tal maneira que “cada aliado
contribuirá, na proporção dos lucros atuais e dos encargos de seu Estado, para
a segurança e as despesas comuns. Dessa maneira instituir-se-á, por plenipo-
tenciários interpostos, uma presidência alternativa de cada um dos Estados.
Tanto mais que o abade de Saint-Pierre apresenta essa contribuição como “a
alimentação diária e perpétua do corpo político da Europa": a riqueza é de
certa forma o que regula a circulação vital do corpo formado pela “aliança”.
O terceiro artigo enuncia a “mediação” e a “arbitragem” como meio de
manutenção da aliança, correlato à renúncia à lei das armas: "Os grandes
aliados, para terminarem entre si suas diferenças presentes e por vir, renuncia­
ram e renunciam para sempre, por si e por seus sucessores, ao caminho das
armas, e convieram optar daí em diante pelo caminho da conciliação pela
mediação dos demais grandes aliados, reunidos em assembléia geral”; o
fracasso eventual dessa mediação deverá ser resolvido por um “julgamento”.

1065
Vê-se, assim, que a paz não é somente produzida pelo estado de fato criado
pela aliança: ela se torna uma exigência ou um dever que define a aliança como
uma prática, ela mesma “perpétua”, de realização da paz.
Mas o correlato dessa obrigação, introduzido pelo quarto artigo, é a
possibilidade de uma sanção: “Se algum entre os grandes aliados se recusar a
executar os julgamentos e os regulamentos da grande aliança, se firmar
tratados contrários, se se entregar a preparativos de guerra, a grande aliança
se armará e agirá ofensivamente contra ele, até que se disponha a executar os
ditos julgamentos ou regulamentos...” Está aí o princípio de “policiamento
europeu” que Saint-Pierre estabelece sobre uma curiosa pedagogia do “temor
salutar”, que aproxima os Estados das crianças, que têm necessidade “de
considerar uma punição certa, rápida e suficiente” para que escutem a voz de
seu próprio interesse.
O quinto e último artigo revela que o autor do Projeto está enunciando
uma verdadeira Carta Constitucional, deixando para os plenipotenciários da
Aliança o cuidado de regulamentar “em sua assembléia perpétua, todos os
artigos que forem julgados necessários e importantes para proporcionar à
grande aliança mais solidez, mais segurança e todas as outras vantagens
possíveis”, mas de tal maneira que “nunca se poderá alterar esses cinco artigos
fundamentais, a não ser com o consentimento unânime de todos os aliados”.
Dessas questões práticas fazem parte a determinação do peso dos votos, do
lugar da assembléia - o que será feito, provisoriamente, mediante "maioria
simples e, definitivamente, por tês quartos dos votos.
Pode-se agora compreender a motivação do Projeto: ligar a idéia de
aliança européia àquela de institucionalização da paz. A chegada do Tratado
é, além disso, concebida como um acontecimento político, que produz deter­
minados efeitos num dado momento - e não uma reforma intemporal: mas a
particularidade desse acontecimento é que ele gira sempre em torno da
vantagem da paz: “Se esse projeto for proposto a soberanos durante a guerra,
ele facilitará a paz; se lhes for proposto durante uma conferência da paz, ele
facilitará suas conclusões: se ihes for proposto após a paz concluída, ele
proporcionará sua duração. A motivação do Tratado é, portanto, transformar
a paz conjuntural numa paz perpétua, o que não acontecerá sem uma
reorganização global das relações entre Estados.
Saint-Pierre nada mais tem a fazer a partir daí - no terceiro tempo de
uma lógica tão impecável que os desvios são complexos, depois de ter exposto
a necessidade e descrito a instituição —senão mostrar que a instituição está
adaptada à necessidade.

O sentido da obra

A significação e o alcance do Projeto de paz perpétua devem ser


apreendidos, assim como os de toda obra política, tanto em seu lugar histórico
próprio quanto em sua importância. É tentador ver em Saint-Pierre a primeira
manifestação moderna da idéia européia, além de que é exatamente assim que

1066
ele concebe sua missão de propagandista e de reformador. Mas o próprio autor
está envolvido de perto na política de seu tempo, precisamente como reforma­
dor do Estado monárquico. De um lado, ele faz parte do movimento de ação
contra o absolutismo de Luís XIV que se desenha no fim do reinado e
desaparece com os primeiros anos da Regência: uma expressão concreta disso
é o caso da Polysynodie (Polissinodia), que valeu a Saint-Pierre se ver
censurado pelo cardeal de Polignac diante da Academia Francesa, na sessão
de 5 de maio de 1718, por ter atentado em sua obra contra a grandeza de Luís
XIV, a Academia tendo sido levada a debater sobre o pedido de sua exclusão,
que foi finalmente aprovada, incidente que esclarece tarde demais sobre a
importância do Projeto, trabalho animado por um universalismo que combate
o absolutismo e o expansionismo da realeza.
Mas não se deve subestimar que o Projeto tenha sido também redigido
do ponto de vista dos soberanos e da razão que lhes é atribuída: é, portanto,
uma garantia contra a desapropriação, apresentada habilmente como uma
contraprestação da ambição expansionista. Essa motivação equilibra de certa
forma o universalismo precedente. Mas o abade de Saint-Pierre os acredita
unidos: estão aí sua ambição e seu limite, ele lança assim uma ponte entre os
projetos de Podiebrad e Henrique IV e a Sociedade das Nações! Uma expressão
concreta e ingênua dessa posição é esta proposta de “que os soberanos
poderiam dispor, para sua necessidade particular e doméstica, da metade do
lucro que resultaria dessa contenção da despesa militar ordinária” (!) Basta
mostrar a intenção da obra: impor a Paz universal aos soberanos pelo engodo
de lazer que lhes proporcionaria esse presente ao gênero humano. Astúcia da
história que fará essa idéia servir para a edificação de uma federação européia
dos povos...

• P ro je t d e la p a ix p e rp é tu e lle , pelo abade de Saint-Pierre, Utrecht, 1713, 3 vol., depois


abreviado; cf. também D tsc o u r s s u r la p o ly s y n o d ie , 1718-1719.

► J.-J. Rousseau, Extrait du Projet de paix perpétuelle de l’abbé de Saint-Pierre, Jugement sur
le projet de paix perpétuelle, em O e u v re s c o m p lè te s, Seuil, t. II; M. G. Molinari, L 'a b b é d e
S a in t-P ie rre, sa v ie e t s e s o e u v re s, Guiliaumin et Cie., 1857; S. Siégler-Pascai, Un c o n te m p o ra in
é g a r é a u X V l l f siècle. L e s p r o je ts d e 1’a b b é d e S a in t-P ie rre, tese, Paris, 1899; C. Séroux
d'Agincourt, E x p o sé d e s p r o je ts d e p a ix p e r p é tu e lle d e 1’a b b é d e S a n t-P ierre, d e B e n th a m ei
d e K a n t, tese. Paris, 1905; J. Drouet, L ’a b b é d e S a in t-P ie rre, 1’h o m m e e t 1’o e u v re , tese, Paris,
1912; A. Blanchet, Un p a c ilis te s o u s L o u is XV, Mâcon, 1917.

Paul-Laurent ASSOUN.
SAINT-SIMON, Claude-Henri de Rouvroy, Conde de, 1760-1825
O Organizador, 1819

Mensageiro do futuro, revelador do passado, Saint-Simon quis mostrar


que o progresso da humanidade não se limitava à mudanças operada pela
Revolução Francesa. Esse desejo de uma seqüência revolucionária se exprimiu
sucessivamente sob a forma de uma utopia ou nos termos da ciência - melhor
dizendo, das ciências físicas e das ciências morais. Desde o século XIX, quando
Saint-Simon ainda era vivo, a obra dá nascimento a várias heranças. Augusto
Comte, os saint-simonianos, Pierre Leroux, de certa forma Marx, que saúda o
pensador socialista como um “crítico-utópico", e de outra Durkheim, que o
interpreta como o fundador do positivismo e da sociologia. Escolher um
trabalho de Saint-Simon posterior a 1813 seria se condenar talvez não a
manter silêncio sobre a categoria sempre presente do futuro, mas a des­
considerar a dimensão religiosa de seu pensamento. Ao contrário, realçar um
texto do período do Império eqüivaleria a ocultar a filosofia saint-simoniana da
história. Acreditamos ter evitado esse dilema por meio de uma apresentação
das teses de LVrganisateur (O organizador) (1819), sobre o sistema indus­
trial, precedida de um repasse de seus opúsculos anteriores.
“Não sou mais jovem”, adverte Saint-Simon nas Lettresd'un habitantde
Genève a ses contemporains (Cartas de um habitante de Genebra a seus
contemporâneos) (1803). Acrescenta: "Observei e refleti muito ativamente
durante toda minha vida, e vossa felicidade foi a meta de meus trabalhos”1.
Felicidade, essa palavra, circundada por um halo de milênios, deve ser levada
a sério: “O dia virá em que farei um paraíso” 2; “A época de ouro do gênero
humano não é mais anterior a nós. Ela está à nossa frente, está dentro da
perfeição da ordem social" 3. Desde sua primeira obra, Saint-Simon profetiza
o tempo em que o globo terrestre vai se tornar o Éden e foi devido à invenção
de uma política da felicidade que se escolheu investir no amor pela humani­
dade e na paixão pela glória do herdeiro putativo de Carlos Magno.
Pode-se ficar surpreso quando ele declara: “Escrevo porque tenho coisas
novas a dizer”4? No entanto, esse desejo pedagógico, essa vontade de transpa­
rência não esclarecem o enigma de um pensamento que se apresenta mas­
carado - Saint-Simon adotou a divisa de Descartes, Larvatus prodeo (Surjo
em cena como um fantasma) - nem atenua a complexidade de um discurso em
que se entrecruzam a utopia política e religiosa, o positivismo e a filosofia da
história.
A obra de Saint-Simon pode ser apreendida como uma interrogação, no
dia seguinte de uma revolução, sobre o convívio social nas condições históricas
da modernidade. Torna-se central, por ser inata, por ser permanente, a reflexão
saint-simoniana sobre os princípios correntes dessa convivência e sua as­
piração a reconstituir um corpo social ameaçado de dissolução pela “doença
política” do século, a "gangrena” do egoísmo. “Há muita distância”, escreve ele
em L 'Industrie, “entre esse instinto de sociabilidade e a associação: sociedade

1068
é aliança... quando um homem se liga a outro homem, ele está ativo, ele quer;
não há coalizão nem sociedade alguma sem objeto definido. Homens podem
aproximar-se por acaso, mas não estarão associados, não formam uma socie­
dade se um interesse comum não os unir. Só assim uma sociedade se forma”
5. Saint-Simon repete sem parar: "É preciso que se tenha uma meta de atividade
social, sem o que não há mais sistema político” 6, sem o que os interesses se
dividem, as forças e os poderes sociais se entrechocam. Ora, hoje em dia, o
interesse comum em vista do qual se forma a organização social é a produção,
a “satisfação das necessidades de todos”. “O objeto da associação política é
prosperar por meio dos trabalhos pacíficos de utilidade comum” 7; “A socie­
dade é o conjunto e a união dos homens entregues a trabalhos úteis” 8. O que
significa que a indústria é um princípio, coesivo, de unificação que reúne a
sociedade em torno de um fim comum e de uma identidade prática.
“A verdadeira sociedade cristã é aquela em que cada um produz alguma
coisa que falta aos outros, os quais, por sua vez, produzem tudo o que lhes
falta. O sentido de união é o sentido dos prazeres da vida; o meio de união é
o trabalho” 9.

O aspecto religioso dentro do aspecto político

Pierre Leroux, o inventor da tríade Saint-Simon, Fourier e Owen, atribuía


a Saint-Simon o mérito de ter proposto uma organização nova da humanidade,
baseada na indústria. Saint-Simon, escrevia ele, foi o profeta “do que se chama
hoje (estou orgulhoso por ter criado a palavra) o socialismo” 10. Desde as Lettres
(Cartas) enuncia-se com efeito uma teoria do sistema social apoiada na produção
e na cooperação: “Todos os homens trabalharão”; “Todos ver-se-ão... como
trabalhadores ligados a uma fábrica”11. De imediato, no entanto, a teoria
saint-simoniana quebra as formas do discurso científico da mesma forma como
escapa ao domínio do positivo já que, por um lado, a visão de uma nova ordem
social situa-se deliberadamente na escala do ecumênico e, por outro, além de uma
perspectiva estreitamente econômica ou política, revela a forma de uma religião
e de uma cosmologia. A reconstrução da sociedade civil remete a uma reforma
religiosa da humanidade, ela mesma dependente da instauração de um novo
vínculo entre o gênero humano e o universo: o Conselho e a religião de Newton,
dos quais as Cartas propõem precisamente o estabelecimento. Essa posição do
aspecto político no campo de gravitação do aspecto religioso, longe de ser própria
de Saint-Simon, pertence realmente à utopia socialista do século XIX. M. Aben-
sour comenta essa “nova aliança” colocando que “as utopias religiosas têm como
característica comum e particularizante visar à mutação unitária, generalizada,
da civilização na escala da espécie humana e, mais ainda, de sua harmonia
possível com os outros reinos. Além da emancipação da classe mais numerosa e
mais pobre, é exatamente do destino da espécie humana que se trata”. Aparece
na profecia religiosa “uma política universal ampliada até a escala do globo
terrestre, uma política filosófica que coloca a questão da relação da espécie
humana em sua exterioridade... É por meio de seu prqjeto de recentrar o mundo

1069
do homem sobre o macrocosmo que a utopia tem acesso à dimensão religiosa”
12. Interpretação que prolonga, infletindoas, as análises de H. Desroches sobre a
primeira fase do sistema saint-simoniano em que se exprimia o apelo a “uma
revolução geral, a uma mutação da espécie humana sob o signo de um saber que
seria a religião, ao mesmo tempo que sob o signo de uma religião que seria o
saber"13.
Literalmente, a fórmula de E. Durkheim - “A religião é a ciência dos povos
sem ciência ou das coisas das quais a ciência não é feita” 14 —não se aplica ao
culto dos adoradores de Newton. O que não quer dizer que o sociólogo não
compreendeu seu sentido. Ao contrário. A missão da religião saint-simoniana não
é, como ele mesmo enfatiza, desviar os homens do tempo presente para ligá-los
a uma divindade transcendente ou fazê-los partilharem uma experiência mística,
mas sim dar-lhes o sentimento da unidade. “Ela é chamada a fornecer o vínculo
espiritual que deve religar, uns aos outros, os membros da sociedade humana”
15 e torná-los conscientes da unidade do mundo e da humanidade. Deus e a
gravitação, eis duas maneiras de nomear o Um, aqui embaixo.
Acrescentamos que a presença do religioso se esclarece ainda no foco da
problemática clássica do legislador, fundador de religião ou de Estado. Saint-
Simon, após Maquiavel e Rousseau, ao qual o título das Lettres faz explicita­
mente menção, institui-se apóstolo ateu de uma religião nova, a religião de
Newton, “invenção” puramente “humana”, encarregada de uma dupla função
de agregação e de mediação. Única "natureza de instituição política que tende
para a organização geral da humanidade” ie, a religião se revela particular­
mente bem adaptada às épocas de transição I7; da mesma maneira, é a ela que
se deve recorrer para expor esotericamente o saber enciclopédico esotérico.
“Creio ter provado que a idéia de Deus não deve ser empregada nas ciências
físicas, mas não digo que ela não deve ter servido nas combinações políticas,
ao menos durante muito tempo. Ela é a melhor maneira que se encontrou de
motivar as altas disposições legislativas. É preciso examinar e combinar tudo,
colocando-se do ponto de vista do físicismo; as opiniões científicas esta­
belecidas pela Escola deverão ser revestidas a seguir de formas que as tornam
sagradas, para serem ensinadas às crianças de todas as classes e aos ignorantes
de todas as idades” 18. Mas, se, para cumprir seu papel de instância civilizadora,
a religião deve refundir seu sistema simbólico para colocá-lo em harmonia com
o estado dos conhecimentos, é preciso ainda que ela não perca, nessa operação,
sua virtude cardeal de produtora de vínculo social. Na observação prudente de
Saint-Simon - “Seria loucura querer suprimir atualmente as instituições
religiosas” 19 —, ressoa o eco das considerações da juventude de Hegel20.

A Enciclopédia positiva do século XIX

No começo de sua reflexão (por volta de 1797, segundo indicação


própria), Saint-Simon liga sua busca do vínculo social, do conatus no contexto
do Novo Mundo industrial, ao nascimento de uma nova ciência, a "ciência
físico-política”, incorporando a política ao conjunto das ciências positivas.

1070
“Meus amigos, nós somos corpos organizados; foi considerando fenômenos
fisiológicos nossas relações sociais que concebi o projeto que vos apresento”
21. Até o Mémoire sur la Science de Vhomme no qual Saint-Simon se volta (ou
se volta outra vez 22) para a fisiologia, ele se vai ligar à constituição de uma
teoria unitária dos corpos brutos e dos corpos organizados, a partir desse
primeiro postulado, “não há duas ordens de coisas, há apenas uma: é a ordem
física” 23. 0 ensinamento saint-simoniano não se limita a uma assimilação dos
fenômenos físicos e dos fenômenos morais (porém, muito geral no século XVIII
e na junção dos séculos XVIII e XIX: basta lembrar o método dos filósofos do
Iluminismo, como Montesquieu, mas também como Helvetius e d’Holbach, dos
fisiocratas ou dos economistas francesas posteriores a Adam Smith, Condorcet,
J. -B. Say, Destutt de Tracy). Herda do século XVIII um ideal do saber unitário
e positivo, que resume o conceito de sistema. Existe sistema quando as
diferentes partes do conhecimento "sustentam-se todas mutuamente", quando
"as últimas se explicam pelas primeiras; aquelas que dão razão às outras se
chamam princípios, e o sistema é tanto mais perfeito quando os princípios são
em menor número; é mesmo para se desejar que sejam reduzidos a um só” 24.
A tarefa da ciência é, então, reconstituir, a partir da diversidade do real, a
cadeia dos seres, pela descoberta de leis gerais. In fine, todas as ciências
estariam ligadas entre si. Esse princípio geral é, num primeiro tempo, a lei da
gravidade ou da gravitação que lhe oferece. “A gravidade universal pode ser
considerada lei única à qual o universo está submetido” 25, o “pequeno
universo” à imagem do “grande mundo”, escreve ele na Introduction à la
philosophie du XIX* siècle. Durante mais de dez anos, Saint-Simon se baterá
para demonstrar a validade de sua lei, germe da síntese positiva que servirá de
fundamento para a ciência geral da humanidade, alternando apelos às ins­
tituições eruditas para que elas se decidam a sacudir o jugo da Escola
newton-lockista e arenga contra frios calculadores entrincheirados por trás dos
escudos de x ou de z.
“Quis tentar, como todo mundo, sistematizar a filosofia de Deus; queria
descer sucessivamente do fenômeno universal para o fenômeno solar e desse
para o fenômeno terrestre; e, enfim, para o estudo da espécie considerada uma
dependência do fenômeno sublunar, e deduzir, a partir dessa busca, as leis da
organização social, objeto principal e essencial de minhas pesquisas” 26. Que
ele tenha trilhado esse caminho durante dez anos se deve sem dúvida à força
do paradigma físico 27 e ao domínio do modelo enciclopédico do Saber. Além
disso, a lei da sucessão entre revolução política e revolução científica que
Saint-Simon colocava no centro da história reforçava sua esperança numa
ciência do homem, encontrando seu lugar na Carta do Saber já constituída e,
enfim, unificada. “A Revolução Francesa começa poucos anos depois da
publicação da Encyclopédie;" “os grandes pensamentos, as grandes revo­
luções científicas são o resultado das grandes fermentações morais. Que
prodigioso resultado científico não se deve esperar da fermentação causada
pela Revolução Francesa” 28. Segundo Saint-Simon, o momento revolucionário
inauguraria, como escreve H. Desroches, o tempo de um novo nascimento do

1071
mundo, uma recriação da criação 29 por meio de uma revolução científica e
cultural. Enfim, talvez fosse preciso dar também lugar ao poder imaginário da
hipótese do peso, funcionando imediatamente como “imperativo da razão
prática”: a gravitação seria a atração mútua universal, mais, muito mais, do que
a sociabilidade.

A ciência social

O objetivo que Saint-Simon fixa para si em Mémoire sur la Science de


Vhomme, de 1813, consiste sempre em tornar positiva a filosofia “que jamais
pôde ser de outra natureza que não a de seus elementosf30. Mas o programa
de estudos se abre à história, pela mediação da fisiologia. A comparação da
estrutura dos corpos brutos com a dos corpos organizados deve ser seguida do
estabelecimento dos progressos do espírito humano “dividido em duas partes,
das quais uma contém o passado e outra, o futuro; o que será dito sobre o futuro
deve ser uma conseqüência evidente do que será constatado sobre o passado” 31.
É sobre essa base que poderá ser elaborada cientificamente “a reorganização do
sistema moral, do sistema religioso, do sistema político, em poucas palavras, do
sistema das idéias” 32. A partir de Mémoire, Saint-Simon separa-se do precedente
físico e/ou fisiológico para pensar e formular seu projeto com a ajuda da
economia política e da história filosófica de Condorcet33, mas também de Maistre
e de Bonald, onde ele reencontra o sentido da totalidade e de quem ele pede
emprestado a oposição entre período orgânico e período crítico M. No âmbito da
empreitada de constituição da ciência social, dois momentos são perceptíveis,
portanto: a História sucede ao fisicofisiológico. Saint-Simon queria "descobrir a
lei segundo a qual os fenômenos tendem a seu fim” 35. A primeira ciência do
homem se tinha como a conclusão de um saber universal, positivo e teleológico;
o determinismo histórico preenche em seguida a mesma função fundadora e
necessitante com relação à totalidade social e às esferas —teórica e prática - que
a forma 36.
A lei da civilização pede a passagem do sistema feudal e teleológico para
o sistema industrial e científico e o abandono do sistema transitório atuai
dominado pelos legistas e metafísicos. “O sistema que a marcha da civilização
nos incita a substituir era a combinação do poder espiritual, ou papal e
teológico, e do poder temporal, ou feudal e militar (...). A coincidência dos dois
poderes, quanto à época de suas origens e quanto a suas constituições
definitivas, merece ser notada... Essa simultaniedade constante (...) tende a
provar (...) que eles devem desaparecer ao mesmo tempo. No momento em que
o sistema feudal e teológico foi definitivamente organizado, os elementos de
um novo sistema social começaram a se formar. Uma capacidade temporal
positiva, isto é, a capacidade industrial, começa a nascer ao lado do poder
temporal (...) e uma capacidade espiritual positiva, isto é, a capacidade científi­
ca se levantou por trás do poder espiritual.” 37 Por conseguinte, “a única
constituição durável é evidentemente aquela que se apóia sobre as forças
temporais e espirituais, cuja influência se tornou atualmente preponderante, e

1072
cuja superioridade, ao mesmo tempo, tende a se pronunciar cada vez mais,
apenas peia evolução natural das coisas... Não se duvida que a observação do
passado não seja o único caminho para se descobrir sem incerteza quais são
essas forças e para avaliar também exatamente quão possíveis são sua tendên­
cia e seu grau de superioridade” 38. Esses dois textos são a medida do
historicismo saint-simoniano, sublinhado por P. Benichou em sua crítica da
utopia pseudocientífica. Implica a crença de que o pensamento é histórico, de
que a compreensão e a apreciação dos fenômenos são, elas mesmas, condicio­
nadas por sua situação histórica própria. "Esse projeto, escreve Saint-Simon,
em L ’Organisateur, apresenta-se como uma concepção absolutamente nova
(...) enquanto ele é, no fundo, apenas a conseqüência mais direta e mais
necessária de todos os progressos da civilização (...). Não se cria mais um
sistema de organização, percebe-se o novo encadeamento de idéias e de
interesses que se formou e ele é mostrado, isso é tudo” 39. Certamente, essa
descoberta de uma necessidade interna da realidade histórica não esclarece
sobre a afirmação da superioridade do presente, mas sim do futuro; nem
alcança também uma identificação da história que se faz com o que é “justo e
racional”. Se a evolução histórica é certa, se não é dado à humanidade escapar
à sua lei mais do que os planetas a suas órbitas, o movimento em direção à
sociedade industrial não é totalmente predeterminado nem completamente
fatal. Saint-Simon evidentemente sabe disso, ele que analisa as forças que agem
sobre as dinâmicas sociais, ele que elabora, como mostra Paul Ansart, uma
“sociologia” dos conflitos e da revoluções.

A sociedade industrial

“A sociedade atual é verdadeiramente o mundo às avessas...Quando as


sociedades estiverem, enfim, convencidas pela experiência de que o único meio
de adquirir riqueza consiste na atividade pacífica, isto é, na atividade dos
trabalhos industriais, a direção dos negócios temporais deverá naturalmente
passar para o âmbito industrial, e a força militar, por sua vez, não poderá mais
ser classificada senão como subalterna, como uma forma puramente passiva,
destinada mesmo a tornar-se um dia puramente inútil.
A capacidade científica positiva é exatamente o que deverá substituir o
poder espiritual.
Na época em que todos os nossos conhecimentos particulares eram
essencialmente conjunturais e metafísicos, era natural que a direção da
sociedade, quanto a seus negócios espirituais, estivesse nas mãos do poder
teológico, já que os teólogos eram então os únicos metafísicos gerais. Ao
contrário, quando (...) todas as partes de nossos conhecimentos são unica­
mente fundados sobre observações, a direção dos assuntos espirituais deve ser
confiada ao âmbito científico positivo, como sendo evidentemente muito
superior à teologia e à metafísica" 40. O sistema industrial institui, portanto,
tanto ao temporal quanto ao espiritual, a preponderância das capacidades, que
a língua saint-simoniana opõe explicitamente aos poderes. A distinção exprime

1073
a redução da soma de dominação exigida pela sociedade industrial, isto é, por
uma sociedade organizada em vista da ação sobre a natureza. Desde as Cartas,
aparecia o binômio poder espiritual —poder temporal. “O poder espiritual nas
mãos dos sábios; o poder temporal nas mãos dos proprietários”; e o lugar
reservado para o governo já testemunhava a submissão do político. Os escritos
posteriores, notadamente O Organizador, reiteram claramente essa subordi­
nação. Na era da política positiva, em que a política se torna ciência da
produção, a soberania não consiste mais “em uma opinião arbitrária erigida
em lei pela massa, mas em um princípio derivado da própria natureza das
coisas” da qual os homens só fazem reconhecer a exatidão e proclamar a
necessidade. “A ação de governar é nula, então, ou quase nula, enquanto
significa ação de comandar.” A função da polícia é a única, no novo sistema,
que exige “Um certo grau de comando dos homens uns com relação aos outros,
já que todo o resto é a ação dos princípios”41. Esse enfraquecimento do Estado
é devido à cientifização da política, assim como à essência da associação
industrial. Pois, se é verdade que “cada homem experimenta em um grau mais
ou menos forte o desejo de dominar todos os homens”42, a possibilidade de
neutralizar esse desejo existe derivando sua energia da natureza. Tornar a
representar o aspecto político frustrando a paixão de dominar: fazer de tal
maneira que o "principal desejo de quase todos os indivíduos (não seja) o de
agir sobre o homem, mas sobre a natureza”; arrumar o dispositivo do poder a
fim de que ele só “tenda a exercer ação sobre os homens para determiná-los a
concorrer para essa ação geral sobre as coisas”43. A diminuição da importância
do aspecto político é a conseqüência lógica e um deslocamento para a
administração das coisas e da mutação do poder político em capacidade
administrativa detida pelos artistas e sábios, a quem é confiado o magistério
espiritual, e pelos proprietários, encarregados da gestão dos assuntos tempo­
rais. “A sociedade industrial deve ser industrialmente administrada”, resumirá
E. Durkheim 44. Assim, a ciência tem como virtude circunscrever o poder; a
nova ciência política anuncia o fim do político, mais ainda, ela abre o caminho
para a emancipação. Porém a retirada de poder do príncipe aplica-se fora da
esfera do político. O modo de produção industrial alcança os produtores das
relações de autoridade. "No sistema antigo, o povo era arregimentado com
relação a seus chefes; no novo, ele está combinado com eles...havia comando...
só existe direção... o povo era submisso..., ele é associado. Esta é efetivamente
a admirável característica das combinações industriais, a de que todos aqueles
que concorrem para elas são, na realidade, todos colaboradores, todos associa­
dos... Cada um obtém um grau de importância e dos benefícios proporcionais
à sua capacidade e à sua colocação; o que constitui o mais alto grau de
igualdade possível e desejável” 45. Para cada um, segundo seu mérito, esse é o
princípio constituinte de sociedade de Saint-Simon. Mas esse desaparecimento
geral da dominação do Novo Mundo Industrial, a formação da “ciência da
liberdade” 46 que traduz sua eclipse, não significa reconhecimento do indivi­
dualismo liberal. “O estabelecimento do sistema industrial e científico (...) deve
ser a causa de toda necessidade (...) do mais alto grau de liberdade social (...)

1074
(mas), em nenhum caso, a manutenção das liberdades individuais pode ser a
meta do contrato social. A liberdade (...) é uma conseqüência da civilização,
progressiva como ela, mas não poderia ser sua meta. (...) A verdadeira liberdade
(...) consiste, ao contrário, em desenvolver, sem entraves e em toda a extensão
possível, uma capacidade temporal ou industrial útil à associação (...) A idéia
vaga e metafísica de liberdade (...) seria contrária ao desenvolvimento da
civilização e à organização de um sistema bem ordenado, que exige que as
partes sejam fortemente ligadas ao conjunto e dentro de sua dependência.” A
crítica se dirige igualmente à liberdade política e à incompetência política: “A
cultura da política será exclusivamente confiada a uma classe especial de
sábios que imporá silêncio ao palavrório.” 47 A distância do liberalismo, a
liberdade é referida ao desenvolvimento progressivo da civilização; ela é o
espírito do tempo, a necessidade do presente. Sobretudo, a liberdade é
concebida não como separação, mas como desdobramento das relações sociais,
como reapropriação do homem por sua associação às necessidades e às paixões
dos outros.
A despeito de seus progressos, a história avançava lentamente. As Luzes
do passado não acabavam de se apagar. Saint-Simon impacientava-se. No
entanto, a pêra estava madura4S. Era preciso colhê-la e, para isso, propagar a
doutrina. Daí o retorno final do aspecto religioso em seu último opúsculo. Le
Nouveau Christianisme (ONovo Cristianismo), o manifesto dos missionários
saint-simonianos:
“Trabalho pela formação de uma sociedade livre tendo como objeto
propagar o desenvolvimento dos princípios que devem servir de base para o
novo sistema.
“Os associados que são artistas deverão empregar seus talentos para
apaixonar a sociedade geral pela melhora de sua sorte.
“Os sábios que serão membros da sociedade deverão apresentar os meios
gerais a serem empregados para melhorar diretamente a sorte da maioria.
“Os chefes dos trabalhos industriais deverão usar de toda sua influência
sobre a massa da sociedade para lhe dizer que é de seu interesse sustentar a
indústria.
“Esse empreendimento é da mesma natureza da fundação do cristia­
nismo. Ele tem por objeto melhorar a sorte da última classe da sociedade e,
como meta geral, tornar todos os homens felizes quaisquer que sejam seu nível
e sua condição” 49.

NOTAS
1. Saint Simon, ti, a), 11, O euures, Paris, Anthropos, 1966.
2. T. I, a), 48.
3. D e la re o rg a n ts a tio n d e la s o c ie té e u ro p é e n n e , t.1, b), 247-248: “A grande operação
moral, poética e científica que deve deslocar o paraíso terrestre e transportá-lo do passado para
o futuro”, O p ln lo n s p h ilo so p h iq u e s , t. V, a), 82.
4. T. V, a), 16
5 . T. I, b), 20-21.
6. Du système industriei, t III, a), 13-14.

1075
7 . T. III, b), 97.
8. T. I, b), 128.
9. T. 1, b), 50. Todos esses textos reaproximam-se de escritos de Marx e de Engels. Dos
jovens Marx e Engels, mas também de obras da maturidade. Sobre esse ponto: M. Abensour,
L’hlstoire de Putopie et le destin de sa critique, em T extu res, 1973, 6 /7 e 1974, 8/9.
10. M. Abensour, P. Leroux e a utopia socialista, seguidos da Lettre au Docteur Deville,
Cahiers de 1’Isea, Études de Marxologie, dezembro de 1972, 2201-2035.
11. T. I, a), 55-57. Émile Durkheim, em Le socialisme, nota que a produção é em
Saint-Slmon a matéria mesma da vida comum. “Não há nada de mais social, escreve ele, do que
a atividade econômica'’, pág 162.
12. M. Abensour, L’utopie socialiste, une nouvelle alliance du religieux et du politique,
L e T e m p s d e la R ê fle x io n , IV, 1981, págs. 71 a 78.
13. H. Desroches, L e N o u v e a u C h rlstia n ism e , Paris, Seuil, 1969, pág. 29. H. Desroches
distingue na obra saint-simoniana três fases: saber, poder e querer dominariam sucessivamente;
ou ainda ao h o m o s a p ie n s sucederiam o h o m o fa b e r e o h o m e m lu d en s.
14. Durkheim, op. cit., pág 119.
15. Idem, págs. 209-211 e 217-218.
16. T. I, a), 57-58.
17. Ballanche, P a lin g é n é s ie so c ia le , P ro lé g o m è n e s, L I.
18. I n tr o d u c tlo n a u x tra v a u x sc len tifiq u e s, t IV, a), 176. “Acredito na necessidade de
uma religião para a manutenção da ordem social; acredito que o deísmo está gasto, acho que o
fisicismo não está mais bastante solidamente estabelecido para poder servir de base para uma
religião. Acredito que a face das coisas quer que existam duas doutrinas distintas: o fisicismo
para as pessoas instruídas e o deísmo para a classe ignorante”, ibidem, 170.
19. T. II, a), 39.
20. Bourgeois, L a p e n s é e p o litiq u e d e H egel, Paris, PUF, 1969, págs. 30 e seguintes.
21. T. I, a), 40.
22. Gouhier, L a je u n e s s e d 'A u g u ste C o m te e t la fo rm a tio n d u p o s itiv ls m e . Paris, Vrin,
1933,1964, 1970.
23. T. VI, a), 131.
24. D’Alembert, a r t Système, E n c y clo p éd ie .
25. T. I, a), 91; cf. igualmente t VI, 257,263.
26. H. Foumel, B ib lio g ra p h le sa in t-slm o n le n n e , Johanneau, 1833, p. 49.
27. P. Bénichou, L e T em p s d e s P ro p h è te s , Paris, Callimard, 1977.
28. T. V, b), 194, t VI, 18,157,289.
29. H. Desroches, op. cit., p&g. 29.
30. T. V, b), 30; “As ciências particulares são os elementos da ciência geral à qual se dá
o nome de filosofia. Assim, a filosofia teve necessariamente e terá sempre as mesmas caracterís­
ticas que as ciências particulares", 11, a), 128.
31. Ib id em , 42.
32. Ib id e m , 11.
33. Ansart, S o c io lo g ie d e S a in t-S im o n , Paris, PUF, 1970.
34. R. Nisbet, L a T ra d ltio n so c io lo g lq u e , Paris, PUF, 1984.
35. T. VI, 136. “A lei superior dos progressos do espírito humano conduz e domina tudo;
os homens são para ela apenas instrumentos. Apesar de essa força derivar de nós, não está em
nosso poder nos subtrair a sua influência ou dominar sua ação mais do que mudar a nosso gosto
o impulso primitivo que faz girar nosso planeta em tomo do Sol. Os efeitos secundários são os
únicos submetidos a nossa dependência. Tudo que podemos é obedecer a essa lei (...) com
conhecimento de causa, dando-nos conta da marcha que ele nos prescreve, em vez de sermos
levados cegamente por ele”, L II, b), 118-119.
36. D e la P h y s io lo g ie so c ia le a qual Durkheim faz referência explicitamente.
37. T. II, b), 77 e seguintes.
38. T. III, a), 68.
39. T. II, b>, 179.

1076
40. T. 11, b), 24,81-83
41. T. II, b), 196-202.
42. T. I, a), 47.
43. T. II, b), 120,121, ib id e m , 86.
44. Durkheim, op. c l l , pág 180. Sobre esses dois exemplos de constituição industrial, cf.
D u s y s tè m e In d u striei, t III e L V r g a n is a tlo n , t II.
45. T. II, b), 150.
46. T. I, b), 213.
47. T. III, a), 15-17, n* 1.
48. F. Manuel, The N e w W o rld o f H e n r l S a in t-S lm o n , Harvard University Press,
Cambridge Mass., 1956.
49. T. VI, 474-475.

► M. Abensour, L’histoire de 1’utopie et le destin de sa critique, T extu res, 1976, págs. 6-7,1974,
págs. 8-9; P. Leroux et 1'utopie socialiste, C a h ie rs d e VIsea. Ê tu d e s d e M a rx o lo g ie, dezembro
de 1972; L’utopie socialiste, une nouvelle alliance du religieux et du politique, L e T em p s d e Ia
R éflex io n , IV, 1981; P. Ansart, S a in tS im o n , Paris, PUF, 1969; S o c lo lo g íe d e S a in t-S lm o n ,
Paris, PUF, 1970; Ballanche, E ss a is d e P a lin g é n é s te s o c ia le , Paris, Didot, 1827-1829, 2 vols.,
vol. 1; P. Benichou, L e te m p s d e s p h o p h è te s, Paris, Gallimard, 1977; B. Bourgeois, L a p e n s é e
p o litiq u e d e H eg el, Paris, PUF, 1969; S. Charlety, H is to ire d u sa tn t-sim o n ism e . Paris, Paul
Hartman, 1931; J. Dautry, S a in t-S im o n . T e x te s c h o isis, Paris, Ed. Sociales, 1951; H. Desroches,
L e N o u v e a u .C h r is tia n is m e e t le s é c r lts s u r la re lig io n , escolhidos e apresentados por H.
Deroches, Paris, Seuil, 1969; E. Durkheim, L e s o c la llsm e , Paris, PUF, 1971; H. Foumel,
B ib lio g ra p h ie sa in t-sim o n ie n n e , Paris, Vrin, 1933; H. Gouhier, L a je u n e s s e d ’A u g u ste C o m te
e t la fo rm a tio n d u p o sitiv lsm e . Paris, Vrin, 1933,1964,1970; G. Curvitch, C. H. d e S a in t-S im o n ,
la p h y s io lo g le so c ia le , o e u v r e s c h o isie s , Paris, PUF, 1965; F. Manuel, The N e w W orld o f H e n r i
S a in tS im o n , Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1956; The P r o p h e ts o f P a r is ,
Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1962; R. Nisbet, L a tr a d itio n s o c io lo g iq u e . Paris,
PUF, 1984; Conservantism and sociology, A m e r ic a n J o u r n a l o fs o c io lo g y , setembro de 1952; J.
Walch, B ib lio g ra p h ie d u sa ín t-slm o n lsm e , Paris, Vrin, 1967.

D o m in iq u e DAMMAME.

SARTRE, Jean Paul, 1905-1980


Crítica da Razão dialética (precedida de Questão de Método), 1960

Ao concluí-lo, Sartre estava convencido de ter escrito “um grande livro”;


a acolhida que foi reservada a ele lhe deu algumas vezes razão, pois chegou a
ponto de apontá-lo como “a maior construção teórica de nosso tempo” (H.
Védrine, 1975, pág. 123) ou, até mesmo, como a obra do século. Sabe-se, no
entanto, que o livro, publicado em 1960, suscitou inicialmente pequena
ressonância, desencorajou leitores e irritou até mesmo os admiradores de
Sartre, que partilharam o julgamento de Raymond Aron: “Uma espécie de

1077
monumento barroc o, esmagador e quase monstruoso” (1973, pág. 9). Mas, com
o tempo, a influência e o prestígio da Critica espalharam-se quase como um
boato, revelando a figura de Sartre como pensador dos impasses da história e
a do filósofo das lutas esparsas ou minoritárias do pós-stalinismo. Extraordiná­
rio destino de uma obra pouco lida, pouco comentada, mas erigida pela
história, cujo sentido ela procura elucidar em “livro-farol”, divulgador da
intransponível filosofia de nosso tempo.
Em 1957, quando Sartre começou a escrever —“furiosamente" (Simone
de Beauvoir) - a Crítica da Razão dialética, ele acabara de voltar de uma
viagem à Polônia onde havia terminado de publicar, sob o título Existen-
cialismo e marxismo, o texto Questão do método, que abre a edição do
primeiro (e único) tomo de sua Crítica. Desde 1952 Sartre havia se “converti­
do” ao comunismo e oferecera a garantia de uma adesão completa ao PCF em
Les communistes et la paix [Os comunistas e a paz) (1952-1954), onde são
violentamente denunciados “os ratos pegajosos” do anticomunismo (1964,
pág. 130) e onde afirmara sem reservas a indispensabilidade do Partido - “seja
o que for que se pense dos stalinistas” - para organizar as massas e assegurar
a “unidade de classe” (1964, pág. 248). Estaria Sartre experimentando nessa
época a argumentação das teses defendidas por M. Merleau-Ponty em Huma-
nisme et terreur [Humanismo e Terror) (1947)? Talvez, mas é forçoso
lembrarmo-nos de que ele colocava nesse caso zelo demais aos olhos do
próprio Merleau-Ponty, que lhe aponta isso, em 1955, no livro Les aventures
de la dialectique (As aventuras da dialética), onde o censura, além disso, por
haver reduzido a história ao face-a-face do homem e das coisas, por se ter
fechado num pensamento sectário, por se deixar fascinar pela “ação pura” e
por falsificar, assim, a noção de “revolução permanente”. Em outras palavras:
por sustentar cegamente um marxismo adulterado.
Resta dizer que Sartre não renegará jamais seu comunismo dos anos de
1952-1956 e que persistirá na recusa da posição de Socialismo ou Barbárie:
naqueles anos de Guerra Fria, os comunistas tinham razão segundo ele em
pensar que a URSS era perseguida mesmo quando a conjuntura internacional
a levava a desejar a paz. Dominado pelo entusiasmo, em 1954, Sartre efetuou
sua primeira viagem ao país de Lênin; no ano seguinte, encenou sua peça
“Nékhrassov, cujo tema é a imprensa anticomunista. Em resumo, nenhum
"companheiro de estrada" era, então, mais diligente do que ele. A invasão
soviética de Budapeste contribuiu para desiludir o filósofo comprometido? Que
ela o tenha feito descobrir, em 1956, um imperialismo, do qual ele desculpava
a URSS até então, é uma coisa; mas que ela o leve a romper por isso com o
PCF é outra. Na realidade, a conclusão de O Fantasma de Stalin (1956) parece
bem pacífica se comparada com a reflexão apaixonada que os acontecimentos
na Hungria suscitaram em terceiros (entre os quais Claude Lefort): “Tentare­
mos, escreve Sartre, ajudar a desestalinização do Partido Francês.” Se se
reconhecer exatamente aí o núcleo do projeto político da Crítica da Razão
dialética, o motivo de Sartre se lançar na redação desse livro “monstruoso”
deveria evidentemente exprimir-se em termos menos neutros: trata-se de

1078
“racionalizar”, "num livro de filosofia pura”, a atitude pró-comunista de 1952,
que nem as revelações de Kruschev, nem a intervenção armada na Hungria,
conseguiram verdadeiramente desqualificar.
Esse “livro de filosofia pura” - o segundo depois de O ser e o nada,
conforme a apreciação do próprio Sartre — pretende, portanto, purificar o
marxismo de sua perversão stalinista. Essa ambição deverá se estender como
uma vontade de reintroduzir o homem e sua liberdade ali de onde o marxismo
dogmático os havia excluído. Dizendo de outra maneira, trata-se de objetar a
práxis no stalinismo, “esse marxismo preguiçoso” que deixou transformar “em
sonho paranóico a única filosofia que pode realmente apreender a complexi­
dade do ser humano” (Sartre, 1960, pág. 43). Nesse sentido, Questão de
método sustenta a inestimável contribuição do existencialismo para atacar
inapelavelmente a fetichização dos conceitos marxistas, da mesma maneira que
se encontra argumentado, aí, o interesse pelas ciências humanas, como a
psicanálise e a sociologia, que convidam a pensar sobre as "mediações” entre
o universal e o particular. A referência a Lukács e a sua crítica do “idealismo
voiuntarista" de Stalin é constante. Sartre teria podido invocar igualmente os
trabalhos de Horkheimer e de Adorno, que se empenham, desde o fim dos anos
trinta, em defender o direito do indivíduo contra o terrorismo da totalidade; a
analogia do projeto, senão sua realização, é com efeito manifesta, principal­
mente se, concordando com Raymond Aron, se possa entender o objetivo de
Sartre em termos de “reconciliação do individualismo ontológico e da totaliza-
ção dialética” (1973, pág. 229). Da recusa da aplicação da dialética à Natureza
até a rejeição da noção de ditadura do proletariado (Sartre, 1960, págs. 125 e
629), Sartre esposa paradoxalmente certos temas comuns ao revisionismo da
época —paradoxalmente, pois sua crítica do marxismo dogmático não o leva
de maneira alguma ao reformismo de um Bernstein. Ressalte-se, por sinal, que
Critica da Razão dialética traduz antes de tudo a vontade de salvar a
Revolução não somente de sua petrificação stalinista, mas também de toda
acomodação institucional.
Se Questão de método permanece discreto sobre esse último ponto, a
exposição da antropologia existencialista que nele se desenvolve parece dever
impor, dentro da Revolução, a transposição coletiva da práxis individual: o
homem definido pela superação da situação que se lhe apresenta (pág. 63), a
preocupação em afirmar constantemente “a especificidade do acontecimento
histórico” (pág. 84) e a procura de uma teoria da “compreensão” para pregar
uma peça no “daltonismo teleológico” do positivismo reinante (pág. 99) - tudo
isso revela claramente a ambição de arrancar a idéia de Revolução tanto do
determinismo acreditado por Engels quanto do “idealismo absoluto desses
marxistas não-comunistas” (aqueles da revista de Cl. Lefort e de C. Castoriadis,
Socialisme ou Barbarie) que, perdendo de vista o homem concreto, acabam
por emprestar intenções à própria burocracia (pág. 101). No limiar de sua
Crítica, Sartre indica claramente que coloca o existencialismo a serviço da
Revolução. Por trás do anúncio do projeto de contribuir para a fundação de
"uma antropologia ao mesmo tempo estrutural e histórica" ou, então, de

1079
elaborar “Prolegômenos para toda antropologia futura", a dimensão prática do
empreendimento não deixa nenhuma dúvida: reconciliar o marxismo com o
que Hegel chamava de “a liberdade absoluta”. Porque elas se sustentavam na
antropologia existencialista, as instruções metodológicas para descoisificar o
marxismo só podem introduzir uma defesa e uma ilustração da Revolução. É
nesse sentido que se pode compreender a conclusão de Questão de método,
onde Sartre anuncia, com a ênfase da escatologia marxista, sua própria
superação: “A partir do dia em que a busca marxista tomar a dimensão humana
(isto é, o projeto existencial) como o fundamento do Saber antropológico, o
existencial ismo não terá mais razão de ser” (pág. 111).
Entretanto, trata-se inteiramente de fornecer ao materialismo histórico
sua base transcendental e, para isso, de "determinar quais são os limites, a
validade e a extensão da Razão dialética” (pág. 120). A insistência de Sartre
em formular seu projeto em referência à crítica kantiana é digna de nota: "Em
que condições o conhecimento de uma História é possível? Dentro de que
limite as ligações colocadas em dia podem ser necessárias?” (pág. 135). Mas, é
também, no instante seguinte, pensando em Heidegger, que ele sublinha a
contingência do objeto da Crítica: “Por que existe alguma coisa como uma
história humana (já que a etnografia nos fez conhecer sociedades sem his­
tória)?” E é, enfim, mais de acordo com Marx que ele interroga a unidade do
processo histórico, isto é, as razões que fazem com que "deva existir uma
Verdade da História” (e não verdades - mesmo organizadas em sistema)” (pág.
152). Em resumo, a heterogeneidade das referências filosóficas de Sartre tem,
às vezes, motivos para se confundir. Raymond Aron está persuadido, por seu
lado, de que a crítica de Sartre pede muito mais emprestado ao projeto de uma
crítica da razão histórica, elaborado por Dilthey, do que à crítica kantiana
propriamente dita (1973, pág. 28); além disso, parece-lhe que “a análise
transcendental das condições de possibilidade de uma História e do co­
nhecimento de uma História” é acompanhada por uma “crítica das ilusões
humanas em vista de um retorno à intersubjetividade autêntica”, crítica essa
que mais situa Sartre na posteridade hegeliana de Marx do que na da crítica
marxista que se realiza dentro de O Capital. Dizendo de outra maneira, Sartre
permanece ainda muito próximo de Hegel, e sua preocupação essencial o
mantém, segundo Aron, na zona de influência representada pela Phénoméno-
logie de VEsprit “Como uma filosofia da liberdade individual pode concordar
com uma interpretação marxista da história? Como uma história, redutível por
direito às consciências individuais, pode, ao mesmo tempo, comportar um
sentido englobante que se confunde com a Verdade do homem e do vir-a-ser?”
(1973, pág. 33).
A confusão das referências filosóficas explica em parte a vulnerabilidade
de Crítica da Razão dialética, que não consegue repelir as objeções no tocante
à natureza mesma de sua empresa. Assim, as le Lévi-Strauss, que se parecem
dirigir ao suposto kantismo de Sartre; assim, as de Aron, que visam à sua
versão do marxismo. Objeções tanto mais perigosas, portanto, por dependerem
de uma crítica interna procurando avaliar a conformidade da obra com suas

1080
próprias exigências teóricas, em virtude de que, pergunta Lévi-Strauss, Sartre
opõe a razão analítica e a razão dialética? Por que ele pensa que a segunda é
superior à primeira, que é somente ela que “a razão positiva”, da qual Kant
empreende a crítica, encontrará para se justificar (Lévi-Strauss, 1962, pág. 325
e Sartre, 1960, pág. 136)? A Crítica da Razão dialética não é “o resultado do
exercício, pelo autor, de sua própria razão analítica”? Se Sartre fosse efetiva­
mente kantiano, não cederia ao paradoxo de uma oposição da Razão a ela
mesma; se fosse verdadeiramente marxista, conceberia essa oposição como
relativa e não como absoluta. Para além do que separa a ontologia sartreana
do estruturalismo (cf. J. Pouillon, LArc, n® 26), a objeção de Lévi-Strauss
encontra um problema que Adorno e Horkheimer. começaram a se colocar em
La Dialectique de la Raison (A Dialética da Razão) (1947): o de saber até que
ponto é legítimo conceder a uma "razão crítica” o poder de pôr termo à
dominação exercida pela “razão instrumental”; a resposta que eles acabaram
por dar contribuiu para arruinar a concepção de uma razão dividida pela
história da luta de classes.
A consistência do marxismo de Sartre é, aliás, a base das reservas feitas
por R. Aron. A Crítica não pára de invocar o modelo da práxis individual para
fundar a inteligibilidade da história enquanto atividade totalizadora. “Cada vez
que se puder relacionar uma práxis com a intenção de um organismo prático
ou de um grupo —ainda que essa intenção permaneça implícita ou obscura
para o próprio agente - há compreensão” (Sartre, 1960, pág. 161). A conjun­
ção do sartrismo com o marxismo reside neste fato da confiança concedida à
compreensão da dialética individual para explicar a lógica à qual os homens
obedecem ao longo da história. Está aí o que Aron chama de “o marxismo
compreensivo” de Sartre (1973, pág. 20) para juntá-lo a Dilthey ou a Weber
mais do que ao próprio Marx (ibidem, pág. 151). As coisas complicam-se
somente quando se enfatiza que esse marxismo sui generis impõe que a
dialética se apóie na "consciência individual, mesmo solitária” (ibidem, pág.
36). Aron aponta com solenidade essa extravagância teórica: "Pela primeira
vez, provavelmente, um filósofo descobre a dialética na solidão” (ibidem, pág.
41). E nesse aspecto que, escrevendo a Critica da Razão dialética, Sartre
parece não ter renegado de modo algum O ser e o nada (cf. Obliques, n® 18-19,
pág. 21), mas, ao contrário, ter prosseguido seu trabalho: “A Crítica substitui
uma política por uma moral enquanto seqüência da ontologia de O ser e o
nada” (ibidem, págs. 76,111). Porém, além dessa passagem ser muito contes­
tável em atenção à problemática do marxismo, parece, sobretudo, perniciosa
em suas conseqüências práticas, já que, como explica Aron, o inferno por si só,
sempre aniquilado pelo outro, deverá necessariamente conduzir a pensar toda
socialização como alienante e invivível e, por conseguinte, a resolver a política
em um ativismo justificando sistematicamente a violência (R. Aron, ibidem, ág.
76). O existencialismo injetado no marxismo só poderia, portanto, desencami­
nhá-lo para uma filosofia da violência, pois “a prioridade da existência sobre a
essência se traduz, na Crítica, pela primazia da práxis, ato puro, sobre todas
as determinações que a limitam e a desfiguram" (ibidem, pág. 66). É desse

1081
modo que a antropologia política de Sartre deve tombar na “demonologia”
mais desesperante (B. Saint-Sernin, 1938).
A experiência dialética submetida à análise transcendental é descrita
em três movimentos. Sartre precisa de que essa triplicidade nada deve a
Hegel, pois a cada momento encadeia-se, nesse caso, “por desvio e inversão”
e não “por destruição ou dissolução” (pág. 376). Apesar disso, a influência
de Hegel atravessa manifestamente os dois enormes volumes que compõem
sua Crítica. Já atestam isso a dedução das primeiras determinações que
devem rastrear ou elucidar os conceitos da política: a necessidade, concebi­
da como “negação de negação” (pág. 166); o trabalho, pensado como
revelador do caráter dialético da ação humana num mundo em que o fato da
raridade impõe a luta pela existência (pág. 192); e, em conseqüência, a
emergência do “terceiro”, mediador indispensável para realizar o vínculo
social e a unidade pacífica dos trabalhadores (pág. 197). As linhas de força
desse primeiro movimento dialético se inscrevem evidentemente na tradição
do romance filosófico, instituída pela Phénoménologie, de Hegel. Isso se
confirma, de certa maneira, quando Sartre anuncia, no começo do primeiro
livro, sua intenção de não ceder à vulgata marxista, a qual, dogmatizando a
análise das relações entre infra-estrutura e superestrutura, dá nascimento a
um sociologismo e a um economismo tão pouco revolucionários, que o
pensamento burguês não tem nenhuma dificuldade em projetar aí o versícu­
lo de seu catecismo liberal: “A relação dos indivíduos entre si é passivamente
vivida por cada um deles e condicionada exteriormente por outras forças
(todas aquelas que se queira)” (Sartre, pág. 179). Contra o tema de uma
sociedade moldando o indivíduo, Sartre recorre à inspiração fenomenológica
para afirmar a prioridade ontológica da práxis individual a partir da qual
deduz a intersubjetividade indispensável para que exista História. Assim, a
lembrança tácita da odisséia hegeliana da consciência explicaria que Sartre
tivesse escolhido ler em Marx a concepção segundo a qual “o homem faz a
História na exata medida em que ela o faz” (pág. 180) - concepção que é, de
todo jeito, menos estéril do que a identificada, por Althusser, em John Lewis
como avatar do sartrismo e obstáculo à ciência da história que teria rompido
com o hegelianismo (Althusser, 1973, pág. 43).
A Critica da Razão dialética não tem, certamente, o rigor austero de um
tratado de filosofia, mas, por trás da profusão das análises e de exemplos, o
filósofo permanece com o habitus de sua cultura. Assim, para designar as
estruturas interindividuais que se entretém as relações humanas e para dar a
compreender em que a história se constitui a partir da convergência da práxis,
a obra invoca sucessivamente, e sem mais delongas, a análise da linguagem,
de que permanece célebre o exemplo o invisível encontro do jardineiro e do
cantoneiro, que o filósofo percebe de sua janela, bem como faz referência a
teorias antropológicas sobre o potlach (troca ritual de presentes entre indíge­
nas norte-americanos). Argumentação desconcertante de ecletismo, às vezes
digressivo, mas cujos elementos tomados em si mesmos dão sabor à obra.
Os leitores de Sartre não deixaram de considerar certas descrições como

1082
fragmentos de uma antologia. Entre elas, as destinadas a ilustrar a noção de
alienação que esclarece a inversão da dialética em antidialética, isto é, a
constituição do campo prático-inerte, “esse lugar de violências, de trevas e de
feitiçarias” (pág. 358). Sartre recorre com efeito, para armar o cenário desse
“segundo momento da experiência” (pág. 376), ao exemplo do desmatamento
realizado pelos camponeses chineses e ao fim do qual, ao que parece, resulta­
ram ao mesmo tempo ruinosas inundações e salutares agrupamentos huma­
nos. Exemplo do que se chamará mais tarde “efeito perverso”, comprovando
que a alienação se atém antes de tudo ao resultado não desejado de uma ação
envolvendo matéria que resiste à liberdade: “O trabalhador torna-se sua
própria fatalidade material; ele produz as inundações que o arruinam”; ou
então: "Os fins humanos, realizando-se, definem em torno deles um campo de
contrafinalidade.” Nada melhor do que esse exemplo do desmatamento para
sugerir, além disso, que a liberdade sobrevive a despeito da dependência ao
prático-inerte cuja fatalidade ela própria precipita. Que só haja necessidade
porque a liberdade assume o risco de alterar-se em contato com a matéria, eis
o ponto em que Sartre se pode julgar oposto ao estoicismo (pág. 369).
Mas o essencial é sublinhar aqui o quanto a fecundidade teórica de
Crítica parece dependente da qualidade sugestiva de uma descrição do impac­
to de um exemplo. Poderíamos dar como exemplo a longa digressão consagra­
da à análise que F. Braudel faz da circulação de metais preciosos na região
mediterrânea, durante o Renascimento: com real senso de oportunidade,
Sartre conclui a partir dela que toda ação determina ciclos que escapam à
iniciativa, que ela produz sempre um resultado contrário àquele que esperava
(a acumulação de ouro provocou empobrecimento generalizado e uma inter­
dependência das nações, quando o que se esperava era enriquecimento e
autonomia); ele mostra igualmente, porém, que essa perversão da ação tem, no
entanto, a vantagem de criar uma solidariedade das práxis por meio da qual se
abre um futuro comum: "Dessa maneira, a práxis materializada (a situação
alcançada, etc.) tem como efeito unir os homens na medida mesma em que ela
os separa, impondo a cada um e a todos uma realidade significante infinita­
mente mais rica e mais contraditória do que o resultado com que individual­
mente contavam” (pág. 246). É aí que se manifesta de novo a lembrança de
Hegel: nessa artimanha da razão histórica, nesse providencialismo que cons­
trange o homem agente e deixar-se iludir pelo prático-inerte antes que uma
História comum cristalize os erros individuais.
Resta, todavia, o fato de que essa metafísica da história não suscita nem
teodicéia, nem teofania: ela circunscreve antes de mais nada o teatro de uma
violência insuperável naquilo em que o processo histórico que tenta explicar
começa com um fato cuja contingência exclui que se preveja sua supressão.
Esse fato consiste, como se sabe, na raridade; com ele se instala a violência,
essa “desumanidade constante das condutas humanas enquanto raridade
interiorizada, em resumo, o que faz com que cada um veja em seu parceiro o
Outro e o princípio do Mal” (pág. 221). Violência contemporânea da coexis­
tência dos homens da qual Dühring, melhor do que Marx e Engels, havia

1083
decifrado o verdadeiro alcance (pág. 219) e que justifica uma ontologização do
conceito de alienação bem discutível do ponto de vista da ortodoxia marxista.
É sempre verdade que, marcada pelo sinal característico da violência, a história
não obedece a nenhuma necessidade, a nenhuma escatologia: contingente no
seu começo, ela assim permanece, relativamente, ao seu final. É por isso que,
se ocorre a Sartre perguntar “em que medida uma sociedade socialista banirá
o atomismo sob todas as suas formas” (pág. 349, na 1), em que medida a
alienação cessará, não será jamais para fornecer uma resposta, mas muito mais
para opor um fim de não-receber à própria pergunta.
Enfim, contrariamente às observações de Louis Althusser (1974, pág.
74), parece, sim, que a análise transcendental da socialidade, que define o
segundo momento da experiência dialética, registra essa recusa da pros-
pectiva, apresentando, de maneira não-historicista, as categorias que permi­
tam pensar a Humanidade em choque com “a matéria aberta”, isto é, “o
motor fundamental da História” (pág. 250). A lógica dessas categorias é
clara: a exigência imposta pela materialidade à práxis; o interesse que
especifica essa exigência no universo conflitual determinado pelas relações
de produção; a necessidade que resulta da penetração da antidialética pela
práxis. Da carência à necessidade, essas categorias balizam a apreensão pelo
homem de sua realidade como "ser-fora-dentro-da-coisa” (pág. 286), e, por
isso mesmo, elas conotam a passagem da práxis individual para o ser social
e coletivo. Roger Garaudy teve todos os trunfos em 1961, ao declarar
especulativa essa épura esquematizada do materialismo histórico que resulta
da injeção do existencialismo no marxismo.
O estudo dos coletivos que conclui o primeiro livro aplica as categorias
anteriormente deduzidas e oferece a oportunidade de uma fenomenologia
surpreendente da vida cotidiana. Que se pense somente no célebre exemplo da
espera do ônibus (págs. 308 e segs.) que coloca em cena uma exigência
prático-inerte imposta pela raridade, uma inércia justificando o consentimento
na “unidade de série como interesse comum”. Que se pense também no exame
das “estruturas de alteridade” que funcionam no caso dos leitores do Figaro,
dos ouvintes de rádio ou dos parisienses do XVI distrito. Que se pense, enfim,
na análise do mercado concorrencial enquanto signifique “a separação realiza­
da” entre os homens ou, então, na explicação da opinião pública sobre o
terreno de “o Grande Medo de 89”, do colonialismo e do racismo. A inves­
tigação efetuada impõe finalmente considerar os remédios para a atomização
que encerra a práxis no Outro e não em si. Do ponto de vista propriamente
político, ela revela dessa forma que só a práxis de grupo (enquanto suprime
todas as formas da inércia) libertará o operário de seu destino. E é essa
“inversão do campo prático-inerte” que pretende descrever “o terceiro momen­
to da experiência”, confiando, portanto, a salvação do proletariado ao grupo
compelido pela "impossibilidade radical da impossibilidade de viver que amea­
ça a multiplicidade serial” (pág. 377).
Evidentemente, foi pensando sobretudo no livro II que Lévi-Strauss
escreveu: “O problema levantado por Crítica da Razão dialética pode ser

1084
reduzido a este: em que condições o mito da Revolução Francesa é possível?”
(1962, pág. 336). Aron revelou a mesma impressão com uma certa ênfase:
"Sartre me parece o primeiro filósofo que, no Ocidente, admirou sem reservas
a multidão revolucionária, a cabeça do administrador de uma prisão espetada
na ponta de um pique, o primeiro que saudou, no grupo em fusão, o acesso do
indivíduo à autêntica humanidade” (1973, pág. 128). Encontrou-se, em todo
caso, mais de um leitor, favorável ou não a Sartre, para reduzir Crítica apenas
à vontade de “compreender uma jornada revolucionária” (ex. J. -F. Peyret,
Magazine littéraire, nfl 103-104). Foi assim que uma juventude revoltada se
deixou facilmente dizer, na primavera de 1968, que um filósofo francês havia
descrito minuciosamente o golpe de força que precipitou a História. Ao se ler
Sartre, ele não parece de maneira alguma desmerecer sua reputação. Para nos
convencer disso, basta seguir sua análise dos acontecimentos que escandem,
desde 12 de julho de 1789, a insurreição do povo de Paris. Se bem que se
defenda de ter abordado a História concreta e que assegure se ter limitado à
determinação de suas "condições formais” (pág. 743), o autor da Crítica não
pode dissimular nem a erudição minuciosa, nem a parte de lirismo investidas
na descrição dessas jornadas de “Apocalipse” que consagram, segundo ele, "a
dissolução da série no grupo em fusão” (p. 391).
Percebe-se aí, ao vivo, como o sentimento de um perigo iminente, melhor,
talvez, do que “as transformações da instrumentalidade”, conduz à práxis
revolucionária; como uma cidade inteira se descobre, de repente como grupo
em fusão. É contingente a força que promove esse todo à posição de líder, de
“terceiro regulador” ou de "indivíduo comum” (p. 410); contingente é também
o objetivo a que o grupo se destina pouco a pouco, ao marchar; a Revolução
é decididamente contingente: é nesse aspecto que ela cria o futuro, o indeter­
minado propício à liberdade. Raymond Aron tem razão evidentemente em
apresentar a Revolução assim concebida como “a transposição social ou
coletiva da liberdade sartreana” (1973, pág. 213); é sob esse aspecto que "a
violência humana é significante” (Sartre, 1960, pág. 752): ela previne contra a
inércia indiferenciante das séries, contra a morte no final da História. Merleau-
Ponty já censurava Sartre, em 1955, por sacralizar a Revolução a ponto de
torná-la impossível (cf. 1955, p. 245); a censura valeria a fortiori para a Crítica
se Sartre não parecesse aí tão preocupado em descrever os caminhos empre­
gados pelos movimentos revolucionários a fim de sobreviverem. O ultrabolche-
vique enfrenta realmente aqui a realidade subseqüente à Revolução, já que a
História não parece poder culminar sempre nessas contradições, nesses mo­
mentos perfeitos que resgatam, segundo a tradição fenomenológica, a própria
essência do tempo.
A alteração do grupo em fusão é, em suma, o que dá à História o seu
sentido. Se ela reproduz exatamente, em escala social, o motivo da práxis
individual, a luta empenhada pelo grupo para resistir à inércia oferece, além
disso, a chave para compreender essa “totalização em curso” que caracteriza
a História. De modo que a passagem do grupo em fusão (Razão constituinte)
para a instituição (serialidade renascente) que opera, nolens volens, a organi-

1085
zação (Razão constituída) descreve a lógica sartreana da História. Cada etapa,
nesse desamparo, cede terreno ao prático-inerte que triunfa finalmente com o
Estado burocrático, essa instituição que se aproveita da “importância da série”
e assenta sua soberania de “manipular o coletivo sem tirá-lo da serialidade”
(págs. 610, 626). Visivelmente dominada por uma lógica da decadência, a
análise de Sartre deve, para evitar ser desmobilizadora, sugerir o caráter
circulatório da experiência dialética (pág. 574): com efeito, como a Crítica não
teria contribuído para “desesperar Billancourt”* se não tivesse somente com­
preendido, em 1968, que um excesso de prático-inerte preludia necessaria­
mente um novo Apocalipse?
Resta dizer que, trinta e dois anos depois de sua publicação, Critica da
Razão dialética não parece poder mais convencer que o Terror é um meio
salutar para unir um grupo minado em seu interior (págs. 448 e segs.). Os
leitores dos anos noventa estão verdadeiramente pouco inclinados a aplaudir
as virtudes do Juramento, pelo qual se pede que nos matem se nos retirarmos
e prometemos, na fraternidade que liga os membros do grupo ajuramentado,
"o começo da humanidade” (pág. 453); em suma, eles rejeitam, em sua maioria,
a idéia de que "a fraternidade é a forma mais imediata e mais constante do
Terror” (pág. 456). Por ter cedido à fascinação de 1793, a Crítica talvez tenha
se exposto a um descrédito rápido demais, visto que sua intenção é, em
realidade, revelar o caráter insustentável do binômio fraternidade-Terror.
A organização efetuada pelo grupo para agir sobre seus membros (da
qual Sartre descreve o arcabouço invocando o exemplo um pouco irrisório de
uma equipe de futebol), segundo a combinatória construída por Lévi-Strauss
em Les Structures élémentaires de la parenté, ela reintroduz, portanto, a
alteridade: o vínculo de socialídade não é mais o juramento, mas sim "as formas
concretas da relação humana” (pág. 476) no número das quais é preciso
calcular a forma da relação hierárquica. De modo que, em resumo, “a organi­
zação se transforma em hierarquia, os juramentos dão nascimento à ins­
tituição" (pág. 567) e a Autoridade que dela resulta acabe por referendar a
desintegração do grupo. Retorno à inércia que fixa o todo-poderio de um só:
o Soberano - “o terceiro insuperável” (pág. 591) - cuja legitimidade repousa
sobre a demissão das liberdades individuais e sobre a necessidade de salvaguar­
dar a comunicação no “grupo carcomido pelas seriaüdades” (pág. 598). Essa
é, portanto, a saída concreta da experiência dialética. Uma constatação desilu­
dida, parece, que esclarece, todavia, sobre o apelo à luta de classes para pregar
uma peça à dominação das séries, para evitar a armadilha da “soberania
sindical” - esse último avatar de um grupo que, de organizado, se fez
institucional e ameaça se burocratizar (cf. pág. 644 e págs. 298 e segs.: as
contradições do “humanismo anarcossindicalista”) —e para reestimular final­
mente o processo histórico.
Esse livro, um pouco inesperado, certamente teve sua época. Mas ele a

* Região altamente industrializada de Paris, onde se localiza o complexo produtivo da Renault


(N. da T.)

1086
suscitará também no futuro. Pois o marxismo-leninismo e o esquerdismo dos
anos sessenta estão longe de ser os únicos a tirar lições dele. Assim, a crítica
da instituição efetuada por Sartre não deixou de inspirar aqueles que, em
seguida a R. Laing e D. Cooper, formaram a corrente da antipsiquiatria. Dessa
forma, o ódio que Sartre não deixou de votar à burguesia —e que explica
notadamente que, se a violência é instransponível, a do proletariado vale
sempre mais do que a que causa estragos dentro da democracia burguesa (cf.
R. Aron, 1973, pág. 103) - ela lhe dita uma análise da “distinção [pela qual] o
herdeiro justifica a herança” (p. 719), análise prometida ao sucesso em P.
Bourdieu. O estruturalismo triunfante tem certamente ocultado a irradiação
da Crítica da Razão Dialética; resta dizer que a obra de Sartre parece ser para
as idéias contemporâneas o que a catarata é para o olho: quase irrevelável por
trás do dia que ele revela de nossa história. Possa ele resistir ao esquecimento
como o monumento de uma época um tanto louca que pensava reinventar a
política provando a audácia da palavra transformada em ação.

• C ritiq u e d e la R a iso n d ia le c tiq u e (precedido de "Question de Méthode”), t . 1, Théorie des


ensembles pratiques, Paris, Callimard, 1960; reedição em 1985, texto estabelecido e anotado
por A. Elkaim-Sartre.

► Louis Althusser, R é p o n s e à Joh n L ew is, Paris, Maspero, 1973; Raymond Aron, H ls to ire e t
d ia le c tiq u e d e la vio le n c e, Paris, Callimard, 1973; Julien Freund, Nota sobre C ritiq u e d e la
R a iso n d ia le c tiq u e de J.-P. Sartre, A rc h iv e s d e P h ilo s o p h ie d u D ro it,, 1961, ns6, p. 219-236;
Dick Howard, A Marxist Ontology? On Sartre's C ritiq u e o f D ia le c tíc a l R e a so n , C u ltu ra l
H er m n e u tic s, vol. 1, 1973; R. D. Laing et D. G. Cooper, R e a so n a n d vio len ce, A D e c a d e o f
S a r tr e ’s P h llo s o p h y 1950-1960, Londres, 1964; Ciaude Lévi-Strauss, L a p e n s é e sa u va g e , chap.
ÍX, Paris, Plon, 1962; M a g a z in e littéra ire, n2 103-104, Spécial “Sartre"; Maurice Merleau-Ponty,
L e s a v e n tu r e s d e la d ia le c tiq u e , chap. V, Paris, Callimard, 1955; Robert Misrahi, T ra ité du
b o n h e u r 11, E th iq u e, p o litiq u e e t b o n h eu r, Paris, Seuil, 1983, p. 177-197; O bliques, ns 18-19,
Spécial “Sartre" (bibliographie sur la GRD, p. 355); Bertrand Saint-Sernin, Les figures politiques
du ma) chez Sartre, E tu des, déc. 1983, p. 633-648; Jean-Paul Sartre, Les communistes et la paix,
S itu a tio n s VI, Paris, Gallimard, 1964, et C ritiq u e d e la R a iso n d ia le c tiq u e , t. II (inacabado),
organização, notas e glossário de A. Elkaim-Sartre, Paris, Callimard, 1985; Hélène Védrine, L e s
p h ilo s o p h ie s d e V h istoire, d é c lin o u crise, chap. V, Paris, Payot, 1975; Annie Cohen-Solal,
Sartre 1905-1980, Paris, Gallimard, 1985; Michel Contat et Michel Rybalka, L e s E c rits d e S a rtre,
Paris, Gallimard, 1970; R e v u e in te r n a tio n a le d e P h ilo so p h ie, Spécial “Sartre”, ns 152-153,
1985, fase. 1-2.

Jean Michel BESNIER.

1087
SCHMITT, Carl, 1888-1985
Teoria da constituição, 1928

Dentro da vasta produção científica de Carl Schmitt, Verfassung-slehre


(Teoria da constituição) - a que nos referiremos a seguir como VL - é, com
exceção do Nomos derErde (A Lei de Terra) (1950), consagrado à história do
direito internacional, a única obra sistemática, cujo objeto é ao mesmo tempo
uma teoria da constituição e da democracia. A repercussão acadêmica do
debate que prossegue há mais de cinqüenta anos em torno do seu “conceito
do político”1, assim como o descrédito que tombou sobre o homem que se
curvou diante do nazismo2 levaram a eclipse, fora dos meios especializados,
um dos últimos grandes textos da cultura européia sobre a política e a doutrina
do Estado. Publicado pouco após o Théorie générale de VEtat (Teoria geral
do Estado), de H. Kelsen (1925), e quase ao mesmo tempo que obras como
Souveraineté (Soberania), de H. Heller (1927), Constitution et droit cons-
titutionnel (Constituição e direito constitucional), de R. Smend (1928), e o
ensaio sobre a “representação”, de G. Leibholz (1929) 3, VL documenta ao
mesmo tempo a discussão política da Alemanha de Weimar e a influência do
direito constitucional, francês nos países de língua alemã - sendo como a
contrapartida de Contribution à la théorie génerale de VEtat, de R. Carré de
Malberg (1920-1922), que documenta a influência inversa. Obra de jurista,
construída a partir de uma enorme erudição, o livro de C. Schmitt, como todo
texto universitário, permite diversos níveis de análise e se presta a diferentes
tipos de interpretação — lembremo-nos do quanto Kant, de um lado, e
Benjamin Constant, do outro, se valeram da filosofia política de Rousseau.
Optamos, aqui, por focalizar os segmentos teóricos (VL, sec. 8 e 16-21) que
permitem, de acordo com Schmitt, pensar a “forma de governo" (um dos
sentidos da palavra Verfassung) democrático-representativa.
É preciso, antes, determo-nos sobre o conceito de "constituição”, ao qual
é consagrada a primeira parte de VL. O ponto de partida, como freqüentemente
ocorre nos trabalhos de Schmitt, é uma preocupação polêmica: o ques­
tionamento e a crítica da definição tradicional da constituição na qualidade de
“lei fundamental” (VL, pág. 3) ou, mais exatamente, como sistema normativo,
ao qual se destina o caráter, o atributo da soberania (VL, pág. 7). O alvo dessa
polêmica é, de uma maneira explícita, a teoria do direito de Kelsen (VL, pág.
8-9)4, que tem, para Schmitt, suas raízes no liberalismo “doutrinário” da
Restauração e da Monarquia de Julho. A esse conceito da constituição como
sistema normativo soberano5, Schmitt vai opor uma idéia estranha ao direito
público alemão, que retoma da teoria político-constitucional de 1789 e princi­
palmente de Sieyès (VL, pág. 77), a do “poder constituinte” concebido como
sujeito e vontade concretos, que determinam e mantêm em vigor o conteúdo
normativo da constituição. Essa é definida, portanto, como o ato ou a decisão
do titular do poder constituinte naquilo que concerne à maneira de ser e à
forma da unidade política (VL, págs. 20-21). Contra a teoria do “governo da

1088
lei”, VL reintroduz uma das questões centrais da filosofia política moderna: a
questão da vontade e do sujeito titular da soberania. É preciso esclarecer, no
entanto, que se trata aí simplesmente do que Schmitt chama de o conceito
“positivo” de constituição, que ele distingue de um conceito “absoluto”, assim
como de um conceito “relativo” (VL, págs. 3-36). O primeiro remete de uma
maneira geral à “forma de Estado ou de governo”, à problemática aristotélica
da noXireia (politeia); o segundo reduz a significação da palavra àquele de
“leis constitucionais”. São, em todo caso, os conceitos positivo e absoluto que
esquadriam VL, permitindo a Schmitt uma reelaboração totalmente original da
doutrina clássica das formas de governo — Staatsformem, no sentido de
constituição absolutas. Reelaboração centrada em torno de dois outros concei­
tos que vai ser preciso esclarecer: os de “identidade” e de "representação”.
É necessário considerar brevemente a Begriffsbildung (a formação dos
conceitos) própria de Schimtt, pois ela foi muitas vezes objeto de mal-entendi­
dos da parte dos intérpretes. Seu ponto de partida, que é comum a outros
intelectuais alemães de sua época, como W. Benjamin6 e S. Kracauer7, é o
princípio gnoseológico (gnose * o saber por excelência), segundo o qual a
formação dos conceitos necessita de que se leve em consideração o caso
extremo ou limite, que, na maior parte do tempo, nada mais é do que o
resultado de uma construção intelectual. Isso vale tanto para a “identidade” e
a “representação” quanto para o conceito de “soberania”. “É soberano aquele
que decide sobre a situação excepcional. Essa definição —acrescenta Schmitt
—pode satisfazer a noção de soberania como noção-limite. Pois noção-limite
não significa noção confusa, como na terminologia aproximativa da literatura
vulgarizada: trata-se de uma noção da esfera extrema. Vem daí o fato de que
sua definição não se poderia ligar ao caso normal: ele se liga ao caso-limite”8.
Essa observação é importante. Não se pode, por exemplo, fazer coincidir pura
e simplesmente a monarquia e a democracia, como regimes políticos, com os
dois princípios ou conceitos-limite da identidade e da representação9, pois a
posição gnoseológica dos princípios não é a mesma que a das formas concretas
de governo, que, todas, dependem de um espaço ocupado por casos figurados
de “constituição mista” (cf., por ex., VL, pág. 200 e segs.) - no sentido em que
Schmitt utiliza essa expressão.
A idéia de “constituição positiva” remete à teoria francesa do poder
constituinte, apagada no decorrer do século XIX pelo pensamento liberal e pelo
positivismo jurídico que chegara, na Alemanha, à doutrina da “soberania do
Estado”. Contra a ortodoxia, Schmitt, que quer reatar com a tradição cons­
titucional de 1789, reafirma que o sujeito (Trager) do poder constituinte só
pode ser o povo ou nação (VL, págs. 77-78). Essa idéia da constituição como
decisão da parte dos homens naquilo que concerne à maneira de ser e à forma
de sua própria existência política só se afirmou a partir do Século das Luzes.
Se é verdade que as doutrinas francesas e alemães do “princípio monárquico”
pretenderam, opondo-se à Revolução, atribuir ao rei o papel de sujeito titular
do poder constituinte, na realidade só Deus foi considerado ao longo da Idade
Média potestas constituens. Dessa maneira, a decisão política/constituição

1089
nada mais é do que a figura secularizada da criação divina da ordem da cidade
- “o ato imperativo da nação tirando do nada e organizando a hierarquia dos
poderes”.10 Na base do conceito schmittiano de “constituição positiva” há a
tomada em consideração de um processo secular pelo qual: “Não é mais uma
ordem divina do mundo e da natureza que determina o fundamento e a
precondição da ordem política e social; são, em compensação, os homens que,
graças à sua vontade e à decisão soberana, tomam em suas mãos seu próprio
destino e a ordem do mundo”11. Esse caráter secularizado da política, por meio
do qual a nação toma o lugar da vontade divina, constitui a superfície de
emergência da democracia moderna. Para perceber seus contornos vai ser
preciso voltar-se para a sistemática das formas de governo proposta em VL e
para a teoria da constituição mista (Mischverfassung, gemicchte Verfassung):
“Na realidade da vida política existe tão pouco um Estado (= uma
unidade política) que possa renunciar aos elementos estruturais do princípio
de identidade, quanto um Estado que possa renunciar aos elementos es­
truturais da representação" (VL, pág. 205). Vê-se, portanto, que os compo­
nentes da mistura não são, como na teoria clássica, instituições resultantes das
três formas: da monarquia, da aristocracia e da democracia12. Identidade e
representação aparecem como casos extremos, construções conceituais-limite
a partir das quais pode-se pensar nas formas mistas, que são as únicas
existentes na vida política real. Dentro de uma perspectiva estatal e a-histórica
da teoria constitucional, as formas de Estado (= absolute Verfassungen)
dispõem-se sobre um eixo sem que se possa jamais encontrar quer a identidade
pura, quer a representação absoluta:

R. R. I.

As formas puras não são somente excluídas do domínio do real, elas


também o são, para Schmitt, daquele do desejável ou do “dever-ser”.
“O perigo de uma realização radical do princípio de identidade consiste
em que a precondição essencial —a homogeneidade substancial do povo —não
é nada mais do que uma ficção. Nesse caso não é o máximo de identidade que
existe realmente, mas somente o mínimo de governo. A conseqüência é que
um povo que decai da condição de existência política para uma condição
subpolítica leva uma existência puramente cultural, econômica ou vegetativa
e poderá ser submetido a um povo estrangeiro, politicamente ativo. Em
compensação, um máximo de representação significaria um máximo de gover­
no; enquanto estivesse ativamente presente, se poderia valer de um mínimo de
homogeneidade do povo e formar uma unidade política a partir de grupos de
indivíduos diferentes naquilo que concerne a sua nacionalidade, confissão

1090
religiosa e classe. O perigo dessa situação consiste, por sua vez, em o sujeito
da unidade política, o povo, ser ignorado, e o Estado, que não é outra coisa
senão um povo na condição da unidade política, perder seu conteúdo. Estar-
se-ia, portanto, em presença de um Estado sem povo, de res populi sem
populus” (VL, pág. 215).
Como Schmitt pensa sobre os dois casos-limite, qual é o conteúdo,
mesmo que simplesmente ideal, da identidade e da representação? Sem dúvida,
a partir da filosofia política do Ocidente moderno, de Hobbes e de Rousseau.
Ele opera uma síntese original entre o direito constitucional continental e as
concepções da política do Estado dos séculos XVII e XVIII. Em Hobbes, a
unidade política, a existência do povo como unidade — que é o oposto da
dissociação, da guerra civil —é o produto do pacto de representação, pelo qual
o soberano torna presente, faz existir o que não é dado fora ou antes da
representação. Em Rousseau, a unidade do povo é pensada, em compensação,
sob a forma da identidade imediata entre “sujeito” e “cidadão”, entre “Estado”
e “Soberano”, a qual exclui toda espécie de representação. Ora, contra
Rousseau, Schmitt pensa que a realidade da vida política existe somente entre
os dois pólos abstratos “do hobbismo mais perfeito e da mais austera democra­
cia”13, ou seja, no sentido de Schmitt, entre a representação e a identidade
absolutas. Falando da democracia direta ou identitária, ele insiste explicita­
mente sobre o fato de que: “Essa condição se deve considerar uma construção
ideal do espírito, não como uma realidade histórica e política” (VL, pág. 215).
Na maioria das vezes, atribui-se ao autor da VL uma composição identitária e
rousseauísta da democracia, apoiando-se sobre a definição que dela ele dá:
“Identidade dos dominantes e dominados, dos governantes e governados, dos
que mandam e dos que obedecem” (VL, pág. 234). Mas Schmitt toma cuidado
em esclarecer o sentido de sua definição. Ele entende por identidade a
igualdade “substancial" entre todos os membros do corpo ou comunidade
política, a saber, a ausência de uma diferença qualitativa entre os governantes
e os governados. Essa crença - precondição essencial, conditio sine qua non
da democracia moderna - só pode ser compreendida opondo-a à crença que
funda e faz existir a forma de governo monárquico. Em seu Plaidoyer pour
Louis XVI (Em defesa de Luís XVI), Lally-Tolendal (Londres, 1793, págs.
100-101) cita um texto de Blackstone (1765), onde se trata da pessoa e da
prerrogativa do rei, texto que exprime, de uma maneira um pouco mais clara,
o fundamento cultural e antropológico da monarquia de direito divino:
“Em todo estado monárquico é necessário distinguir o príncipe de seus
súditos, não somente pela pompa estranha e as decorações brilhantes da
majestade, mas também observando como inerentes à sua pessoa real certas
qualidades distintas e superiores a de quaisquer outros indivíduos na nação.
Um filósofo consideraria puramente a pessoa do rei aquela chamada por um
contrato mútuo para governar os outros e que prestará os respeitos e os
deveres que exigem os princípios da sociedade; mas a massa dos homens será
levada a tornar-se insolente e refratária, se considerar seu príncipe um
homem que não tem nada a mais do que eles. A lei, portanto, destina ao rei.

1091
na altura de seu caráter político, não somente vastos poderes e grandes
emolumentos que constituem sua prerrogativa e seu ganho, mas ainda certos
atributos de uma natureza superior e transcendente, tais que a multidão
admirada com o brilho que o cerca vê nele um ser superior e lhe paga com
esse profundo respeito tão necessário àquele que faz funcionar o grande
negócio do governo.”
A democracia apóia-se, para Schmitt, sobre a derrubada desse princípio
da desigualdade substancial entre aquele ou aqueles que governam e aqueles
que obedecem, princípio que justifica também todo verdadeiro sistema
aristocrático. A democracia moderna traz inscrita sobre seu ato de nas­
cimento —1789 —a declaração de guerra civil contra a nobreza e contra seu
chefe, o rei. Porém, a igualdade democrática, a democracia como "forma de
governo” (Staats — und Verfassungform) não exclui o que Sieyès chamou
de a “verdadeira hierarquia”14 ligada ao exercício das funções de governo,
de direção política e de interpretação da vontade popular, a existência,
portanto, do processo de representação15. A hierarquia é o que VL (pág. 5)
define como Uber-und Unterordnung, na ausência da qual não é concebível
nenhuma forma de unidade política e nenhuma constituição como ordem
concreta da vida social. “A diferença entre governantes e governados não
pode desaparecer”, mesmo dentro do espaço homogêneo da democracia, mas
eia não envia mais a uma diferença “qualitativa” nem a um critério de
discriminação (VL, págs. 236-237). O espaço da identidade não se dissolve
no mito do autogoverno16. A partir da filosofia política moderna de Hobbes
e de Rousseau, a democracia representativa foi pensada na maioria das vezes
seja como forma “menor” e imperfeita da verdadeira democracia, concebida
como autogoverno do povo, seja como forma “fraca” ou degenerada da
representação no sentido hobbiano do conceito. Se ele for, ao contrário, uma
forma mista, como todas as que existem na realidade da vida política, é
preciso pensá-la, como C. Schmitt, a partir de dois princípios distintos e
irredutíveis um ao outro.
Pode-se perguntar em que consiste o componente propriamente demo­
crático da democracia representativa. Ele consiste primeiramente na nomeação
e na autorização da parte mais baixa dos representantes, juridicamente
organizados por processos eleitorais; secundariamente na existência de um
mínimo de identidade, que não se reduz à igualdade “substancial”, mas é
também homogeneidade social entre os indivíduos e os grupos que compõem
a unidade política. Contudo, um terceiro elemento deve ser acrescentado:
retomando um texto de Vattel, Schmitt sublinha que apenas uma “dignidade”
pode ser objeto de representação, e isso por oposição à Vertretung (re­
presentação), dos interesses. Ora, a única dignidade da democracia é a
igualdade entre os cidadãos, os membros da nação. O caráter próprio da
representação democrática é que ela representa (torna presente, põe em ação,
faz existir) essa igualdade. Se um certo grau de homogeneidade social é a
precondição da representação democrática, essa tem como finalidade a defesa
e a ampliação da igualdade. Contra os inimigos da igualdade, Sieyès chamara

1092
a atenção para a circunstância de que ela é algo de “metafísico”, a saber, uma
forma das relações entre os indivíduos que não é jamais patente na realidade
“física” de uma sociedade17.
“Só aquele que governa (regiert) participa da representação” (VL, pág.
212). Só um governo —aqui no sentido geral de órgãos dirigentes eleitos de
uma comunidade política e não de poder executivo —do qual o produto é a
igualdade pode ser considerado representação ou autoridade (Herrschaft)
democrática. Essa não constitui nem a nação, nem sua vontade, mas formula
o conteúdo igualitário da vontade nacional. A precondição real de uma
representação democrática é a existência de uma vontade difusa de igual­
dade no povo, ao menos no sentido de uma igual dignidade de todos os
membros do corpo político. Só há nesse caso um povo que se transforma em
uma “nação” (VL, pág. 79). Aqui, a identidade pode ser representada
(dargestellt), como na teoria política da Sieyès, sem que a unidade política
seja ela mesma produzida (hergestellt) (VL, pág.217) pela representação,
como em Hobbes. Se se retorna agora à teoria do “poder constituinte” da
nação, nota-se que ele é concebido por sua vez sob a forma da mistura entre
os dois conceitos da identidade e da representação. “A vontade constituinte
do povo é uma vontade direta”, Schmitt acrescenta, no entanto: “A realiza­
ção e a formulação posteriores à decisão política tomada pelo povo em sua
imediatividade pedem uma certa organização e processos...” (VL, pág. 84).
Essa afirmação é seguida da referência às assembléias representativas fran­
cesas do período revolucionário (VL, pág, 85 e segs.), às quais cabe a função
de intérpretes da vontade nacional18.
Todavia certas passagens da VL parecem contradizer a tese (VL, págs.
77-78) segundo a qual o titular do poder constituinte só pode ser o povo ou a
nação. Na obra de Schmitt, o monarca é apresentado como sujeito possível do
poder constituinte em dois contextos histórico-constitucionais diferentes. Em
um, faz-se referência à época da Restauração e ao “princípio monárquico” ( VL,
págs. 80-82)19; em outro, à monarquia absoluta e à figura do príncipe nos
Estados territoriais modernos (VL, pág. 205). O primeiro caso não apresenta
dificuldades particulares. Trata-se, como já foi mostrado várias vezes20, da
tentativa vã da parte do monarca constitucional de apropriar-se das categorias
estranhas à tradição da monarquia de direito divino e próprias da Revolução
de 1789. No caso da monarquia absoluta, encontra-se um problema mais
complexo, mas também mais fecundo. Não parece concebível atribuir ao
príncipe o poder constituinte próprio da “nação”, salvo para efetuar uma
colocação em perspectiva histórica das categorias de VL. Schmitt apresenta em
seu livro, de uma maneira sistemática, o que se poderia chamar de uma
“estática” dos dois princípios constitutivos da forma política (identidade e
representação). Pode-se tentar transpor essa “estática” da teoria da cons­
tituição na “dinâmica de uma história constitucional, no sentido de história das
formas de governo”. Ora, nesta perspectiva, a "representação” não é simples­
mente o pólo oposto à forma pura da “identidade", no interior da dimensão
sincrônica e sistemática. Do ponto de vista histórico, a saber, de uma recons-

1093
trução ideal-típica da história constitucional do continente europeu, o princípio
da representação precede o da identidade.

c o n s titu iç ã o
fo rm a s re a is d e E s ta d o o u d e g o v e rn o

democracia
representativa

Dentro do esquema, vê-se que os dois princípios da forma política não


são somente as categorias que permitem definir a constituição mista democrá-
tico-representativa. Eles tornam possível, além disso, a compreensão do desen­
volvimento constitucional da Europa moderna. Basta pensar nas teses de A. de
Tocqueville em L ’A ncien Régime et la Révolution (O Antigo regime e a
Revolução) (1856) ou, mais recentemente, nos estudos de E. Lousse21 e de G.
Oestreich22 para se dar conta do papel desempenhado pelo príncipe nos
Estados territoriais modernos como produtor de unidade política e de homo­
geneidade. Desse ponto de vista, o monarca, mais do que titular ou sujeito do
poder constituinte, aparece como a força (Macht ou Autoritat, cf. VL, págs.
75-76, n. lv) que desencadeia o processo de construção da nação, chegando
ao ato da constituição positiva. A unidade política da nação deve primeiro ser
produzida (herghestellt) para poder ser representada (dargestell) (VL, pág.
207). A “representação não é somente o conceito-limite que se opõe ao
princípio da identidade, mas também, na dimensão diacrônica, o que a precede
(VL págs. 47 e 214). A partir daqui, a teoria e a história constitucionais
poderiam mostrar como, graças a e além de uma dialética da realidade dos
conceitos (Bergriffs-Dialektik), encontra-se a dialética da realidade (Real-Dia-
lektik)(VL, págs. 209-210), no interior da qual a representação é ultrapassada
(aufgehoben), jamais absorvida pelo princípio da identidade.
Publicada em 1928, no momento em que a República de Weimar parece
poder sobrepujar as dificuldades que a acompanharam desde seu nascimento,
a VL ocupa um lugar central não somente dentro da produção científica de C.
Schmitt, mas também na trajetória de seu estranho destino político. Uma
trajetória que o conduzirá do catolicismo liberal23 à crítica do liberalismo em
nome da democracia24, depois à vergonha de defender, ao mesmo tempo que
a sua vida25, o assassinato do General K. von Schleicher26, de quem ele havia

1094
sido o conselheiro jurídico quando esse tentou, em vão, barrar a Hitler o acesso
ao poder27.
De acordo com R. Aron: “Carl Schmitt nunca pertenceu ao partido
nacional-socialista. Homem de grande cultura, ele não podia ser um hitlerista
e nunca o foi”28. Ora, ele se filiou ao partido em l fi de maio de 1933, depois,
contudo, de mais de dois milhões de alemães29. Esse nazista de última hora,
que precisou atacar os juristas judeus30 para tentar se fazer perdoar por suas
hesitações políticas e mesmo seus escritos da época de Weimar, tinha
dedicado a KL a um judeu, seu amigo Fritz Eisler, (que só foi reimpressa em
1954). Dedicatória que não deixará de lhe ser censurada em 1936, no
momento em que, em seguida a uma campanha orquestrada contra ele por
seus colegas nazistas (Hohn e Kollreutter) e conduzida pela SS, ele foi
afastado do partido e praticamente obrigado a não mais ensinar direito
público. O homem que se tornou na opinião comum Konjurist do Terceiro
Reich tinha, entretanto, tentado defender a República e a Constituição,
desenvolvendo uma teoria do papel político do presidente do Reich31, da
qual se encontra o eco nos artigos 5 e 16 da Constituição da V República.
Em um artigo, hoje em dia esquecido, R. Capitant32 fazia o elogio das teses
apresentadas por Schmitt em O Guardião da constituição (1931)33, teses
que permanecem uma tentativa importante para ultrapassar a herança
“monista" do governo de Assembléia, que nos foi legada pela Revolução de
1789.
O fato de a “nova direita”, em busca de uma autoridade intelectual,
voltar-se hoje em dia para C. Schmitt34 não deve fazer esquecer que a Teoria
da constituição permanece, da mesma forma que o Leviatã, de Th. Hobbes,
e o Contrato social, de Rousseau, uma obra inevitável para pensar a
democracia.

• V erfassu n gsleh re, Munique-Leípzíg, 1928, reimpressa várias vezes, a partir de 1954, sem
nenhuma modificação; cito a 64 edição, Berlim, 1983 (a trad. frac. dessa obra vai ser publicada
por PUF).

► A literatura consagrada a C. Schmitt, principalmente em alemão, mas também em italiano, é


doravante considerável (P. Tommissen vai publicar em breve uma biografia schmittiana exaus­
tiva). Infelizmente, ela é na maioria do tempo puramente polêmica e medíocre em interesse. À
parte a notável biografia de ). Bendersky, citada na nota 2, podem-se assinalar duas obras
importantes; P. Schneider, A u s n a h m e z u s ta n d u n d N o rm , Stuttgart, 1957 e H. Hofmann,
L e g itim ita t g e g e n L eg a líta t, d e r W eg d e r p o litisc h e n P h ilo s o p h ie C a r l S c h m itt, Neuwied-Ber-
lim, 1964. Em francês, J. Freund, L ’e ss e n c e d u p o litiq u e , Paris, 24 ed., 1986.

Pasquale PASQUINO.

1095
NOTAS
1. A primeira edição de D e r B e g r iffd e s P o lilis c h e n é de 1927; a trad. franc. apareceu em
1972 sob o título ambíguo de L a n o tio n d e p o litiq u e . Cf. P. Pasquino, Bemerkungen zum
Kriterium des Politischen bei C. Schmitt, em D e r S ta a t, 2 5 (1986), págs. 385-398.
2. Sobre as relações de Schmitt com o nazismo cf. J. W. Bendersky, C a rl S ch m itt. T h eo rist
fo r th e R eich , Princepton, 1983, IV* parte: The Nazi Experience, 1933-1947. Collaboration.
"Repudiation and Reckoning”, pgs. 195-272
3. D a s W esen d e r r e p r a s e n ta tio n u n te r b e s o n d e r e r B e r u c k s ic h tig u n g d e s R e-
p re s e n ta tiv s y s te m , Berlim.
4. Autor em 1922 de um estudo sobre a soberania: D a s p ro b le m d e r S o u v e r a n ita t u n d
d ie T h eo rie d e s V olkerrech ts, já violentamente tomado à parte por H. Heller.
5. VL, pág. 131: “Finge-se acreditar: 1) que a constituição não é nada mais do que um
sistema de normas que têm a forma da lei; 2) que esse sistema é fechado; 3) que ele é ‘soberano’,
a saber, que ele não pode em nenhuma parte ser trespassado nem mesmo simplesmente
influenciado por motivos e necessidades da realidade política”.
6. Cf. Origine du drame banque allemand (1926), Paris, 1985, pág. 32: “Ê um erro
querer apresentar o que é geral como um valor médio. O que é geral é a idéia. Em compensação,
quanto mais se puder vê-la como coisa extrema mais penetra-se-á profundamente o âmago da
realidade empírica.” O conceito decorre do extremo, e pág. 57: “A necessidade de se voltar para
os extremos - o que é a norma da formação dos conceitos nas pesquisas filosóficas...”
7. D ie A n g e s te llte r (O s e m p reg a d o s), Frankfurt am Main, 1930, pág. 7: “ O material
apresentado neste trabalho foi escolhido em Berlim, pois diferentemente de outras localidades
alemãs, Berlim é o lugar onde a condição dos empregados apresenta-se sob sua forma extrema.
E pode-se compreender a realidade somente a partir de seus extremos.”
8. Politische Theologie. Vier Kapilel zur Lehre von der Souveranitat, Munique-Leipzig,
1922, pág. 9 (a trad. franc. dessa obra apareceu em 1988 na Editora Gàllimard).
9. É o que faz, por exemplo, 0. Beaud, “Reprasentation” e “Stellvertretung”: sobre uma
distinção de Carl Schmitt, em D roits, n5 6, outubro 1987 págs. 11-20.
10. E. Boutmy, Ê tu d e s d e d r o it c o n stitu tio n n e l, Paris, 1903, 3 - ed., pág. 241.
11. E. W. Bockenforde, D ie v e rfa ssu n g g e b e n d e C e w a lt d e s Volkes, Frankfurt am Main,
1986, pág. 12.
12. Cf. W. Nippel, M isc h v e rfa ssu n g sth e o rie u n d V e rfa ssu n g sre a lita t in A n tik e u n d
F ru h e r N e u z e it, Stutgart, 1980, pág. 18.
13. Rousseau, a carta a Mirabeau de 26 de julho de 1767.
14. E s s a is u r le s p r iv ilè g e s , Paris, 1789, pág. 33 s., n. 1.
15. Sobre o conceito de “representação”, cf. o artigo de Beaud, já citado.
16. Sobre a impossibilidade de considerar a democracia pura, não representativa, uma
forma de governo e sobre os elementos representativos do plebiscito, do referendo e da iniciativa
popular, cf. as observações de Schmitt em seu livro V o lk se n tsc h e id u n d V olksbegeh ren . E in
B e itra g z u r A u s le g u n g d e r W eim a rer V erfassun g u n d z u r L eh re d e r u n m itle lb a re n D em okra-
tie, Beriim-Leipzig, 1927, sobretudo págs. 31-54. Cf. também E. Kaufmann, Z u r P r o b le m a tik d e s
V olksw illens, Berlim, 1931.
17. P r é lim in a ir e d e la c o n stitu tio n fra n ça ise, 3! ed. Paris, págs. 4-16.
18. Cf. sobre esse ponto as páginas importantes consagradas a Sieyès em D ie D iktatu r.
Von A n fa g e n d e s m o d e r n e n S o u v e ra n ila tsg e d a n k e n bis z u m p r o le ta r is c h e n K la sse n k a m p f,
Munique-Leipzig, 1921, pág. 141 s. Cf. também P. Pasquino, Die Lehre vom “pouvoir cons-
tituant” bei E. Sieyès und C. Schmitt, em C o m p lex io o p p o sito ru m . U ber C a rl S c h m itt (sob a
direção de H. Quaritsch), Berlim, 1988, págs. 371-385.
19. Sobre o “princípio monárquico” cf. Pasquino, La théorie constitutionnelle de la
Monarchie de Juillet, a ser publicado nos A ctes du colloqu e C u izot, Vai Richer, setembro de 1987.
20. Cf. K. Lowenstein, Volk u n d P a rla m e n l nach d e r S ta a tsth e o rie d e r fra n zo sis c h e n
N a tio n a lv e rs a m m lu n g v o n 1 7 8 9 , Munique, 1922, pág. 283 e II. Ileller, S ta a tsle h re (1934) em
G e sa m m e lte S c h rifle n , Leiden, 1971, vol. III, pág. 394.

1096
21. Cf. principalmente o artigo “Absolutismo, direito divino, despotismo esclarecido", em
16 (1958), págs. 91-106.
Ê tu d e s d 'h isto ir e g é n é ra le ,
22. Ver as duas coletâneas, G eíst u n g G estalt d e s fru h m o d e r n e n S ta a tes, Berlim, 1970
e S tru k tu rp to b le m e d e r fru h en N e u z e it, Berlim, 1980.
23. D e r W ert d e s S ta a te s und die Bedeutung des Einzelnen, Tubingen, 1914.
24. D ie g e ite sg e s c h ic h llic h e L a g e d e s h e u tig en P a rla m e n la rism u s, Munique, 1923; a
tradução francesa dessa obra apareceu em 1988 nas Edições do Seuil, na coletânea P a rla m en -
ta r is m e e t d é m o c ra c ie .
25. Pode-se dizer de Schmitt o que Th. Hobbes dizia de si mesmo: “O medo é a única
grande paixão de minha vida”.
26. Der Fuher Schutzt das Recht, em D e u tsc h e Ju risten -Z eitu n g , XXXIX, l 5 de agosto de
1934, págs. 945-950; esse artigo foi publicado imediatamente após a “noite das facas compridas”.
27. Cf. J. Bendersky, op. c it., na n. 2, 3! parte: “Weimar’s Final Crisis, 1929-1933. The
Theorist of the Presídential System”, págs. 107-144 e Th. Vogelsang, K u r t v o n S c h le ic h e r,
Gottingen, 1965.
28. M é m o ires, Paris, 1983, vol. 2, pág. 910; não se pode mais partilhar a afirmação de R.
Aron, de acordo com a qual C. Schmitt teria estado “cheio de desprezo a respeito da República
de Weimar”.
29. J. Bedersky, op. cit., pág. 204. A inscrição de Schmitt foi a de n? 2098860.
30. Die deutsche Rechtswissenschaft im Kampf gegen den judischen Geise em D e u tsc h e
J u risten -Z eitu n g , XLI, 15 de outubro de 1936, págs. 1193-1.199.
3 1.0 papel excepcional destinado por Schmitt ao presidente do R eich , eleito por sufrágio
universal, deve-se também à incapacidade cada vez maior da parte do Parlamento e dos partidos
políticos para resgatar, sob a República de Weimar, uma maioria democrática, fiel aos princípios
da Constituição. É preciso lembrar que Schmitt já desenvolve em 1924 (Die Diktatur der
Reischsprasident nach A rt 48 der Reichverdassung, em V eroíT entlichu ngen d e r D e u tsc h e n
S ta a tsre c h tsle h re r, Heft I, Berlim-Leipzig, 1924, págs. 63-104) suas teses sobre a função de
magistrado extraordinário do R e ic h s p ra sid e n t como defensor da Constituição, no momento em
que o cargo supremo do Estado é ocupado pelo socialdemocrata Ebert Suas teses vão ser
retomadas em 1926 pelo pai da Constituição de Weimar, Hugo Preu, no artigo “Reichverfas-
sungsmaBige Diktatur” em Z e itsc h rifl fu r P o litik , 1926, principalmente págs. 103 e 113. Cf.
também A. Brecht, Die Auflosung der Weimare Republik und die politische Wissenschaft, em
Z e itsc h rift íu r P o litik , 1955, págs, 291-308.
32.0 papel político do presidente do R eich em P o litiq u e - R e vu e d e d o c tr ín e e t d ’a c tio n ,
6° ano, n. 3, março de 1932; republicado em É c rits c o n stitu tio n n e ls , Paris, 1982, págs. 435-445.
Sabe-se que o General de Gaulle, que redigiu ele mesmo a parte da Constituição concernente
ao Presidente da república, era amigo de R. Capitant desde 1939.
33. D e r H u te r d e r V erfassun g, Tubingen, 1931.
34. Cf. M. Baldus, Caris Schmitt im exagon. Zur Schmitt-Rezeption in Frankreich, em D e r
S ta a t, 26, 1987, n. 4, principalmente págs. 576-586.

SÊNECA, Lucius Annaeus, 4 a. C. - 65 d. C.


Cartas a Lucilius, por volta de 63-65 d.C.

Sêneca é, em grande medida, o primeiro filósofo moderno. Ele sustenta


que só se estima a si próprio na medida de seu valor moral e que só se estima
por se tratar dele mesmo. Seu auto-amor não tem necessidade de nenhuma

1097
justificação. Todo homem ama a si mesmo, e Sêneca não é exceção. Manifes­
tamente nenhuma dessas atitudes é própria de Sêneca. Mas o que é radical­
mente moderno nele é que defende as duas, se bem que elas sejam vividas
como total mente contraditórias. Esse não seria o caso se a ipseidade (do latim
ipso, (o próprio) que Sêneca ama (unicamente por se tratar da sua) não
consistisse em nada mais do que a capacidade de reconhecer os valores morais
universalmente em vigor e em viver de acordo com eles. Todavia, ele se ama
em sua particularidade mesmo quando apenas se trate de sua preferência pelo
frio ou pelo calor (carta 67).
Ora, Sêneca não é para nós aquele que expôs a ética estóica? As histórias
deliciosas que ele nos conta sobre suas fraquezas pessoais nada mais são do que
procedimentos retóricos ou pedagógicos destinados a maravilhar o leitor, mos-
trando-lhe que, exatamente como ele, Sêneca é humano? E tudo isso não é, de
alguma forma, uma propedêutica ao estoicismo mais rigoroso, em favor do qual
Sêneca sempre advogou? Essa leitura comum não se dá conta do vigor de
humanidade que se encontra nas Cartas de Sêneca e que constitui um fenômeno
totalmente novo na história da filosofia antiga. Os detalhes que nos oferece sobre
sua vida privada —a qual, como reconhece, não responde sempre à ética estóica
—suscitam em nós maios do que um “interesse humano”, na medida em que
exprimem todo o amor que ele experimenta por si mesmo em toda a sua riqueza.
A esse respeito, Montaigne foi sem dúvida o melhor leitor de Sêneca.
Os meios graças aos quais Sêneca nos transmite seu duplo preceito são
sutis: ele não sustenta teses opostas, mas suas cartas (tomadas uma a uma ou
juntas) vão e vêm entre a afirmação de sua ipseidade tal como ela se dá livre
curso de maneira intensa e convincente em seus próprios sentimentos e a defesa
expressa da moral estóica. O êxito de sua expressão depende de seu poder de
escritor: ele é o mestre - e, parece, às vezes o criador - de uma notável série de
artifícios literários que transcrevem suas' emoções ao vivo sobre a página, indo
até à utilização hábil de mudanças de humor abruptas e surpreendentes, como
é o caso, por exemplo, quando trata da morte. A crença que professa, segundo a
qual não temos qualquer razão para temer a morte, está longe de ser original, e
o próprio Sêneca diverte-se com essa banalidade na Carta 24, onde ele imagina
seu leitor gritando: “Essas histórias aí... são lengalengas repetidas em todas as
escolas. Quando chegarmos ao ponto seguinte, o desprezo pela morte, você me
contará a história de Catão." Mas esse retrato compreensivo de seu leitor irritado
não lhe impede contar mais uma vez os últimos momentos de Catão (“E por que
eu não o mostraria em sua última noite, lendo um livro de Platão, com um punhal
sob seu travesseiro?”). Depois da história de Catão, Sêneca traz a de Cipião; no
transcorrer das páginas, ele repete o mesmo conselho contra o medo da morte
de diferentes maneiras. Contudo, o parágrafo final da carta encerra uma mudan­
ça de tom brutal: é uma expressão angustiada do ódio que Sêneca experimenta
pela vida: “Até quando as mesmas coisas?... A noite caça o dia, e o dia, a noite, o
verão se perde no outono, o outono é perseguido pelo inverno que se detém
diante da primavera: tudo só passa para voltar. Eu não faço nada de novo, não
vejo nada de novo.-As vezes chego a ter náuseas.”

1098
Nessas cartas, muitas vozes diferentes se fazem ouvir. Sêneca é generoso
consigo mesmo, cedendo-lhe a palavra. A própria linguagem que ele utiliza nas
cartas revela a fé que tem si mesmo em toda sua diversidade: da mesma maneira
que transmite seu amor pelo preceito estóico de constância por sua propensão a
um tom firme e seguro, assim também sua prosa, muitas vezes semelhante ao
reflexo do mar, manifesta seu amor por si mesmo em toda sua variabilidade.
A significação nova e moderna (para a época) da ipseidade em Sêneca
resulta, em certa medida, de uma nova concepção da tarefa principal da alma
com a qual todo ser humano se confronta: a exigência platônica de domínio de
si transformou-se na exigência moderna de possuir a si mesmo. Na Teogonia,
de Hesíodo, os elementos que movem todas as coisas (incluindo os humanos)
eram forças divinas errando pelo mundo. Elas circulavam em torno dos seres
humanos e neles mesmos, sem por isso lhes pertencer. A intuição platônica dos
poderes cósmicos que ativam toda a natureza não era diferente. Como em
Hesíodo, o Eros, de Platão, não é uma emanação de ipseidade, mas uma força
cósmica, ao mesmo tempo exterior e inerente ao homem. Acontece o mesmo
com a razão (Nós) que não é uma expressão da ipseidade, mas um poder que
molda o mundo como uma totalidade.
Conservando essa visão clássica das energias que animam a humanidade,
Platão talhou uma idéia semelhante daquilo que ele pensa ser a tarefa principal
incumbida à humanidade: dominar as forças que trabalham na psique de cada
um. O domínio não implica a posse nem o desejo de possuir. Platão não pensava
que algum ser humano pudesse algum dia apropriar-se das forças de Eros. Isso
seria absurdo na medida em que se tratasse de uma força cósmica que pudesse
facilmente apoderar-se de um homem e torná-lo louco. A tarefa da humanidade
consistia em canalizar Eros para seu objeto próprio. Poderia, portanto, tornar-se
senhora de forças que não possuía. Pela mesma razão, dever-se-ia dominar e não
possuir o corpo e seus desejos. Ele também era estranho e não podia ser de outra
maneira. A racionalidade e a moralidade mesmas que conferiam ao indivíduo o
poder de julgar e de dominar Eros e o o corpo eram energias cósmicas que se
podia utilizar, mas das quais não se podia apropriar.
Para Sêneca, a posse de si é a tarefa de toda vida humana. “Quem se
possui não perdeu nada; mas quantos são os que têm a felicidade de se
possuir?” (Carta 42). À primeira vista, a concepção que se permite da posse de
si, como tarefa de alma, é desorientadora na medida em que, de acordo com
sua experiência, tudo o que nos anima faz parte de nós e vem de nós. As forças
cósmicas não circulam mais ao longo de nosso ser. Nossa própria racionalidade
nos pertence: nós a possuímos. “Sejas feliz com teus próprios recursos. Mas
que recursos são esses? Tu mesmo és a melhor parte de ti” (carta 23).
Se tudo o que nos anima nos pertence, como poderia haver um problema
tratando-se da posse de si mesmo? Parece, entretanto, que não, podemos o
evitar. As coisas tornam-se mais claras quando se reconhece que a posse de si
supõe a existência de um eu, e que, mesmo se todos os nossos motivos são
realmente nossos, isso não assegura de maneira nenhuma a posse de um eu.
Só há um eu quando a pluralidade de nosso motivos recebe uma coesão e uma

1099
integridade, quando alguma coisa consegue unificar essa pluralidade dentro
de sua própria diversidade. E, quando há um si, então o indivíduo tem um eu.
Para Sêneca, existem duas maneiras diferentes de alcançar a posse de si.
Frente a seu amor por si mesmo em todas suas particularidades, ele realiza a
unidade expressão organizada por meios estéticos de tudo o que ele é. Montaigne
escrevia para si mesmo, exatamente como Sêneca. Ele escreve a seu corres­
pondente, Lucílio, ele nos escreve e ele escreve a si mesmo. “Eu converso comigo
mesmo” (carta 10). Ele ousa ter confiança em si próprio ao criar-se: se bem que
a forma estética da posse de si que Sêneca realiza suponha processos artísticos,
tais como a justaposição de humores, ela não é, por isso, “literária” no sentido
de “imaginária”. A unidade que alcança não revela só escritos ou palavras. Ela
faz parte da vivência de seu autor - falando claramente - quando exprime aquele
que ele é realmente. A arte faz parte integrante dessa forma de posse de si.
Do ponto de vista da moral, Sêneca procura a posse de si graças à
unidade que a constância engendra. Tudo o que ele faz, sente, pensa e diz será
à expressão de um único e mesmo objetivo moral certo que ele estima ser
universalmente válido. Adquire-se, assim, mais do que o domínio de si ou a
regra da consciência, pois o que vai criar, se conseguir, será uma unidade que
encontra sua expressão moral: “Que as palavras e as obras estejam em
uníssono, que o homem seja em toda parte igual e ou idêntico a si mesmo”
(Carta 20; ver igualmente a Carta 35).
Sêneca é um estóico, mas ele é mais do que isso. Pela primeira vez na
história da filosofia ocidental, a unidade estética, a forma necessária à posse de
si em suas diferenças e suas particularidades, é afirmada paralelamente à (e
manifestamente em oposição à) exigência igualmente sincera de posse moral de
si, uma unidade formada daquilo que Sêneca pensa ser um sistema universal­
mente válido de verdades. As duas formas de posse de si são necessárias para
Sêneca. Mesmo se fosse possível completar de uma vez por todas a posse de si
por intermédio da unidade moral, não se deixaria de encontrar em todo ser
humano mais do que o objetivo moral. Pode-se moldar o desejo de maneira a que
ele exprima uma finalidade moral, mas ele não pode, de qualquer maneira,
identificar-se com ela. A unidade estética será sempre necessária para a posse de
nós mesmos na plenitude das diferenças com nós mesmos. E essa verdade que
Sêneca faz viver nos meandros de quase cada página de suas Cartas.

• Remetemos o leitor à tradução francesa de Cartas a Lucílio, Paris, Belles-Lettres, 1964, trad.
H. Noblot.

► Tácito nos fornece, em seus Anais, uma biografia de Sêneca que lhe faz justiça não somente
na qualidade de ter sido um filósofo excepcional, mas também (durante algum tempo) um
homem extremamente rico e poderoso. Suetônio (em Vidas dos doze césares) e, mais tarde, Dio
Cassius (que escreveu no século 111) são bem menos compreensivos e criticam principalmente o
conflito agudo existente entre a vida e a filosofia de Sêneca. Esse ponto de vista me parece em
grande parte errôneo pois repousa sobre a crença de que Sêneca só era um estóico enquanto

1100
ele era, segundo me parece, muito mais do isso. A complexidade de sua prosa testemunha o fato
de que ele podia exprimir doutrinas opostas ao estoicismo, contribuindo sinceramente, assim
mesmo, para o progresso do estoicismo clássico. Os estudos contemporâneos sobre Séneca, se
bem que sejam geralmente pertinentes, pecam, contudo, pela paixão e têm tendência a reduzir
o homem a um objeto de museu. Todavia, as referências que propõem nos são úteis. Ver Miriam
T. Griffin, S e n e c a , a P h ilo s o p h e r in P o litic s (Oxford, Claredon Press, 1976) e G. M. Ross,
S e n e c a 's P h llo s o p h ic a l In flu en ce , em S e n e c a , editado por C. D. N. Costa (Londres, Routledge
& Keagan Paul, 1974), págs. 116-165.
A leitura de autores que perceberam a complexidade e as contradições frutuosas de suas C a rta s
é filosoficamente mais benéfica, é o caso de Montaigne e de Ralph Waldo Emerson. Contudo, a
compreensão de Sêneca não depende tanto da atenção que se dá a seus comentários (como o
de Montaigne nos E n sa io s, 1, XXVI (“Da instrução das crianças") e II, X (“Dos livros”), quanto
do desenvolvimento de um sentido geral das estratégias de pensamento e de expressão análogas
nesses autores.
Existe, todavia, um livro que, não estando especificamente centrado em Sêneca, é capital para
a compreensão dos desafios psicológicos e filosóficos que ele teve de enfrentar; trata-se de L e
s o u c i d e s o i (A p r e o c u p a ç ã o c o n sig o ) (H isto ire d e la se x u a lité , (3) (H istó ria da se x u a lid a d e),
d e M ic h e l F o u c a u lt P a ris, G a llim ard, 1984.

Edmund LEITES.

Traduzido do inglês por S. Courtine-Denamy.

SIEYÈS, Emmanuel Joseph - 1748-1836


O que é o Terceiro Estado?

Qu ’est<e que le Tiers État? (O que é o Terceiro Estado?) é uma obra que
ocupa um espaço singular na história das idéias políticas assim como dentro
da história da Revolução francesa. Sieyès indica nessa obra, a uma burguesia
ainda hesitante, o que ia ser seu objetivo e sua estratégia, desvendando de
maneira quase que profética os acontecimentos que iam advir, abalando um
mundo que, até então, só se dizia, só se pensava em termos da nobreza.
Raramente um intelectual comprometido pôde, através da publicação de um
escrito, desempenhar tal papel político e influir também diretamente sobre a
história de seu tempo. Existe aí, sem dúvida, a formulação de todas as revoltas
que borbulhavam confusamente dentro da sociedade, mas, mais ainda, a
invenção de um discurso que, antes da radicalização conduzida pelas lutas, vai
levar o inimigo, daí em diante claramente designado; o sistema dos privilégios,
ao reconhecimento e arrependimento da falta cometida. Esse texto foi uma
arma decisiva na luta revolucionária, enquanto que o sistema político, dele
decorrente e que devia para Sieyès “concluir" a Revolução, estava destinado a
tombar em relativo esquecimento.

1101
O Tiers é uma obra de circunstância, diretamente escrita para influir
sobre a conjuntura política. Sabe-se que o Rei, no curso dos anos 1787-1788,
teve que lidar com uma revolta da nobreza liberal sustentada pela burguesia.
Foi a partir do momento em que ele se decidiu a reunir os Estados Gerais que
a situação política mudou de aspecto, revelando o confronto da nobreza com
a burguesia: da escolha das formas de convocação e de voto nos Estados Gerais
dependia realmente a possibilidade de uma Revolução. Foi o que levou Sieyès
a escrever o Essai sur les privilèges (Ensaio sobre os privilégios) seguido
pouco depois de Qu’est<e que le Tiers Etat?, como ele próprio conta neste
trecho: “Não era a nação inteira que queria retomar seus direitos do poder
absoluto da realeza. Era a nobreza, sempre pronta a se enoveiar, que, a-
proveitando-se da reunião e do mau espírito dos últimos Notáveis, só desejava
fazer prevalecer seus interesses contra aqueles do povo, esperando levar o
Ministro a sancionar suas antigas e novas pretensões, sob intimidação. Eis o
que incitou Sieyès a escrever seu Essai sur les privilèges e, imediatamente
depois sua obra intitulada Qu’est<e que ele Tiers Etat?"1. Para os Notáveis que
se haviam reunido para debater, assim como para a maioria dos membros da
nobreza, era preciso se referir aos “antigos usos”2. A eleição dos repre­
sentantes assim como os votos nos Estados Gerais deviam portanto fazer-se
por ordens separadas. Suas decisões, que aliás só tinham o valor de propo­
sições submetidas ao consentimento real, só podiam ser adotadas com seu
acordo tripartido. Dessa maneira, cada ordem separadamente dispunha de uma
influência igual sobre a formação da lei e de um direito de veto sobre qualquer
proposição. Fazer desaparecer o sistema dos privilégios trazia, portanto, a
necessidade de acordo com a nobreza. Porém, como admitir que os re­
presentantes das ordens privilegiadas, ou seja, de 300.000 pessoas, pudessem
através do uso do veto, opor-se vitoriosamente às proposições dos repre­
sentantes do Terceiro Estado, ou seja de 25 milhões de homens? Estava aí,
sublinhava Sieyès, algo contrário à natureza das coisas assim como ao
princípio de igualdade dos direitos, princípio constitutivo da nação. Quanto às
proposições do partido patriota, reagrupado para defender os direitos do
Terceiro Estado, elas não eram mais avançadas: pedir a duplicação dos
representantes do Terceiro Estado, a deliberação em comum das três ordens
e o voto por cabeça era exigir a influência igual sobre a formação da lei para
o Terceiro Estado. Reivindicação bem tímida, que, para Sieyès, ressentia-se do
“espírito de submissão dos tempos antigos”.
Não são essas constatações de evidências, “essas verdades simplesmente
tolas”3, que interessam a Sieyès. Seu projeto é outro inteiramente diferente:
para ele, com efeito, o tempo não está mais comprometido, a razão e a justiça
estão no campo do Terceiro Estado e trata-se de desenvolver todos seus efeitos.
O que ele quer é, por meio de uma análise da realidade social, desvendar a
verdade a Fim de convencer e de conduzir para a luta política todos aqueles
que ainda são vítimas da “superstição privilegiada”. E preciso impressionar o
inimigo, assustá-lo mesmo, apregoando com firmeza seu objetivo que é tam­
bém o ponto de chegada da análise: a nobreza não é mais nada, ela está fora

1102
da lei. Grito de guerra, como diz Tocqueville,4 em que o filósofo brande a arma
da análise, a do discurso na luta que se anuncia. Dessa forma o terror, que
ainda ontem praticava os privilégios, mudará de campo: pois essa é, como o
diz Hegel, a ultima ratio da luta política.
Como discípulo de Locke, Sieyès via no movimento da economia o
fundamento e a finalidade do conjunto da sociedade. Espontaneamente, na
seqüência de etapas importantes, como o aparecimento da divisão do trabalho,
a sociedade se enriquece e se desenvolve.5 O jogo da “mão invisível” da qual
falava Adam Smith, o impulso reanimador das necessidades, regulado pelo
livre jogo da oferta e da procura permitindo-lhe funcionar espontaneamente o
melhor possível no interesse de todos. E mais riquezas significa, para Sieyès
assim como para Locke, mais liberdade, na medida em que o homem escapa
mais ao imperialismo das necessidades.
A sociedade política, ao contrário, é uma criação do espírito humano, um
“ente de razão” para o qual trata-se de descobrir as leis: o movimento, na verdade,
não é espontâneo, nesse caso, e pode a todo momento encontrar-se em contradi­
ção com a “etapa econômica”, ao retardar, até mesmo contrariar o movimento.
Também a tarefa daquele que Sieyès chama de “artista social”6 deve ser a de
adaptar a sociedade política às necessidades da evolução econômica. O exemplo
de Newton, descobrindo que os “mecanismos celestes” não eram regulados por
anjos mas sim por equações matemáticas, estava no espírito de todos aqueles
que, no século XVIII, se interessavam pela análise das sociedades de Adam Smith
a Quesnay ou a Sieyès. Este pretender-se-á além disso o inventor de uma ciência
política “que se vangloriará de ter concluído".7
Dentro da sociedade do Antigo Regime, o Terceiro Estado, ou seja, 96%
da população, é o “resto” social: nem de “sangue azul” (o que significa a serviço
do Rei), nem a serviço de Deus. Encontram-se aí os elementos sociais mais
diversos: do pobre trabalhador ao rico armador ou banqueiro: mas todas as
“pessoas de poucas posses”, isso é, “pessoas de nada”, encontram sua unidade
dentro do desprezo que lhes dedica a nobreza: o autor de O Burguês Fidalgo
já era portador do mesmo ódio que o do Ensaio sobre os privilégios.
E precisamente esse discurso que Sieyès vai inverter: o Terceiro Estado que
ontem era apenas o resto, o rebotalho, é hoje em dia o grande todo: ele é a Nação.
“O Terceiro Estado, sozinho, constitui a Nação e tudo que não é do
Terceiro Estado não pode ser visto como fazendo parte da nação. O que é o
Terceiro Estado? Tudo”.8 Não há aí a simples afirmação de dignidade reencon­
trada, dos direitos do número, mas análise da evolução econômica. Com efeito,
o Terceiro Estado, por sua habilidade e os progressos que ele realizou para a
nação adquiriu o direito à direção do corpo social. Dessa forma o “grande
crescimento das cidades” dentro das quais o comércio e as artes criaram uma
multidão de novas atividades, a expansão da divisão do trabalho dentro da
sociedade e o enriquecimento que daí resulta, representando a seus olhos o
fator decisivo de uma nova ordem social. Também a direção do Estado deve
passar para aqueles que são responsáveis por ele, isso é, os membros do
Terceiro Estado. E, mais particularmente, a essa "classe disponível do Terceiro

1103
Estado”, em que uma certa comodidade permite cultivar a razão, os co­
nhecimentos e interessar-se pelos assuntos públicos.
Notemos neste caso o conteúdo particular do conceito de nação em Sieyès.
Só pertence à Nação quem trabalha, quem participa do empreendimento do
desenvolvimento econômico. Como na teoria inglesa do duplo corpo do Rei,9 a
nação tem um corpo vivo, perecível, composto de todos aqueles que habitam o
território e que estão em condições de sustentar por meio de suas contribuições
as tarefas coletivas e por meio de seu trabalho o progresso geral. Ela tem também
um corpo político: é portadora do projeto político que une os cidadãos entre eles
e que deve garantir o desenvolvimento e as liberdades.
A nobreza, por sua inutilidade, se coloca ela mesma fora da nação;
parasita, ela é uma carga inútil e sem ela a nação não seria alguma coisa de
menos mas alguma coisa de mais. Dessa maneira volta-se ao discurso social, e
aqueles mesmos que o dominavam estão hoje em dia no lugar do “resto” que
faria a nação ganhar se se desembaraçasse dele:
“Assim, o que é o Terceiro Estado? Tudo, mas um tudo entravado e
oprimido. O que seria ele sem a ordem privilegiada? Tudo, mas um tudo livre
e florescente”.10
Houve então para os membros do Terceiro Estado como que um retorno
da imagem de si da qual se encontram traços no efeito produzido pela
publicação da brochura. Seu sucesso, sabe-se, foi imenso. Houve um concerto
de elogios no seio do partido patriota,11 mas foi principalmente no povo que
ele causou grande impressão. As pessoas se abordavam nas cidades, ao longo
das estradas, perguntando-se: “Você faz parte?”. Momento de ruptura em que
se pode ver como o ato de nascimento da nação francesa. Em alguns meses
três edições sucederam-se e a questão tornou-se uma espécie de palavra-chave
no seio do partido patriota.12 Sieyès, que se havia decidido a assinar a terceira
edição, tornou-se célebre.13 Notemos que as desigualdades que ele denuncia
aqui são jurídicas pois é contra o sistema dos privilégios que ele se bate. Os
privilégios conduzem aqueles que se beneficiam deles a defender seus inte­
resses de grupo contra o interesse geral. Não acontece o mesmo com as
desigualdades de riqueza, pois elas não entravam a formação do espírito
nacional e do sentido do interesse geral. E mais, na medida em que elas são a
justa recompensa daqueles que, por meio de sua atividade, concorrem mais
eficazmente para o desenvolvimento da riqueza nacional: “As vantagens pelas
quais os cidadãos diferem estão acima do caráter de cidadão... As desigual­
dades de propriedade e de habilidade são como as desigualdades de idade, de
sexo, de cor etc. Elas não desfiguram de maneira nenhuma a igualdade do
civismo”.14 O autor, como a maioria dos homens de seu tempo, não estava
preocupado com a desigualdade social, e se encontra em seus escritos um
elitismo desdenhoso.15 Mas não se pode dizer, como G. Lefebvre,16 que Sieyès
não tenha compreendido que a desigualdade econômica poderia pôr em perigo
a igualdade jurídica. Muito pelo contrário, o importante para ele era que a luta
entre os interesses privados pudesse ter livre curso: é o que visa estabelecer o
princípio da igualdade jurídica.

1104
Não será portanto nos Estados Gerais, onde se vota por cabeça ou por
ordem, que a nação poderá encontrar sua expressão política: os Estados são
na verdade a representação do sistema das ordens, de três povos separados,
por interesses divergentes, o contrário de uma nação. É ao Terceiro Estado
apenas que compete realizar “o caráter nacional” do qual ele está revestido:
ele sozinho é toda a Nação, e é portanto em Assembléia Nacional que ele deve
se constituir.
O programa de Sieyès não demorou muito para ser executado. Foi na
ocasião da verificação dos poderes dos deputados, ato necessário para tornar
os Estados Gerais ativos, que se formou o conflito. Desde 11 de junho de 1789,
com a instigação de Sieyès gritando: “É tempo de cortar as amarras!”, o
Terceiro Estado convidou as ordens privilegiadas, a se unirem a ele para essa
operação. A chamada por comarcas começou alguns dias mais tarde. Dentro
da grande sala em que se encontrava o Terceiro Estado o lugar dos re­
presentantes das ordens privilegiadas estava marcado e vazio. Verificava-se por
comarca, chamando todos os representantes delas, qualquer que fosse a ordem
a que eles pertencessem. Sempre sob a instigação de Sieyès, o Terceiro Estado
declarou-se Assembléia Nacional.17 Não foi o próprio Sieyès quem propôs o
nome, mas um obscuro deputado chamado Legrand, que, é claro, havia lido
Que’est-ce que le Tiers Etat?. Constituir a sala em que se encontravam os
membros do Terceiro Estado em sala nacional era retirar todo efeito da
ausência ou da separação dos representantes das ordem privilegiadas. Os
ausentes só podiam dar importância jurídica aos mandatos dos quais eles eram
portadores reunindo-se à Assembléia Nacional, decretada assim lugar único da
formação da vontade política. Todavia, ao atravessar o limiar da sala em que
se encontravam os membros do Terceiro Estado, cada deputado da nobreza ou
do clero tornava-se deputado nacional. Portanto, não é exato, como diz
Tocqueville, que os nobres não tenham tido outra escolha, a partir desse
momento, senão a de emigrar.18 Não há grande noite para a nobreza nessa
primeira fase da Revolução. Desde que aceitem despojar-se de sua posição de
privilegiados, os antigos nobres poderiam reintegrar a nação.
“Eu disse que ao revestir o caráter de privilegiados, eles se tornaram os
inimigos reais do interesse comum: eles não podem ser acusados de providen­
ciar isso. Acrescento que eles têm a faculdade de reentrar quando quiserem
dentro da ordem social”.19 Vê-se aqui a importância do papel de Sieyès nessa
primeira fase da Revolução; o mesmo não ia ocorrer em seguida.

Obra escrita com a finalidade de influir sobre o curso da história


imediata, Qu’est<e que le tiers Etat? é igualmente uma obra de teoria política
em que o autor expõe o que, até o 18 Brumário, será o objeto constante de
suas buscas e de suas preocupações, seu projeto de constituição ideal, do qual
ele dá aqui os primeiros elementos.20
O problema que se colocavam os homens do século XVIII era o de
conciliar a obediência necessária à lei com o respeito da autonomia das
vontades individuais. Uma sociedade na qual os cidadãos abandonam o direito

1105
que têm de governarem-se eles mesmos não é uma sociedade política, é um
pacto de submissão, uma tirania.21
Confrontado com esse problema, Rousseau já havia denunciado a ficção
que reina no regime britânico, o mais liberal da época, sobre as relações do
cidadão com os que o governam. O regime representativo à moda inglesa, cujo
princípio é o de que a vontade dos governantes seja mantida pela daqueles que
eles representam, é um logro: a vontade é ela mesma ou é outra: ela não pode
portanto ser representada.22
Daí, a solução do Contrato Social: os cidadãos farão eles mesmos a lei, e a
democracia será o princípio da sociedade política. Mas, se Sieyès compartilha a
análise de Rousseau, é uma outra solução totalmente diferente a que ele
preconiza. Para ele, efetivamente, a “democracia bruta”23é um sistema primitivo,
grosseiro, adaptado a um nível fraco de riquezas. O respeito pela liberdade
individual não passa por uma necessária participação direta dos cidadãos na
confecção da lei. Muito pelo contrário, pois quem, então, protegeria as liberdades
da minoria? Os homens não são, no sistema constitucional de Sieyès, “o material
que compõe o edifício”, eles são a própria finalidade do sistema, é para eles que
tudo deve ser feito. Quanto a pretender que os cidadãos poderiam transferir suas
vontades, é um erro. Vêm daí certas afirmações suas, categóricas e muito
célebres: “O povo só pode ter uma voz” a de seus representantes; ele só pode
falar, só pode agir através deles...".24 A idéia de poder em representação, como
se vê, não era nova. Ela tinha o mérito, para esse autor, de ser a forma política
da divisão do trabalho. Os cidadãos remetem o cuidado com os assuntos coletivos
aos mais qualificados dentre eles, que se tornam especialistas da coisa política.
Cada um fica mais em estado de se consagrar às tarefas privadas, úteis ao
progresso econômico geral.
A originalidade de Sieyès se situa no próprio procedimento da delegação,
procuração e colocação em incumbência do poder, muito próximo do mandato
de direito civil. Pois se os cidadãos “mandam fazer” por outros as tarefas
políticas, não deixam fazer. Se a idéia de democracia é descartada nesse caso
como primitiva e inadaptada, é em proveito da idéia de controle. Realmente
tudo deve ser temido para as liberdades da “força relativamente irresistível” da
qual dispõem os governantes para fazer executar a lei. Estes só devem agir sob
o controle da nação e de uma ameaça de revogação, para que as liberdades
estejam garantidas. Está aí todo o sentido que convém dar à separação do
poder constituinte do poder constituído do qual Sieyès se gabava de ser o
inventor.25 É na verdade a Nação que está encarregada desse controle,
princípio de funcionamento do sistema. A nação só existe dentro da ordem
natural e sua vontade, para produzir todos os seus efeitos, só tem que aparecer.
Ela é fonte e dona de direito positivo. É a nação que confia aos corpos
constituídos as tarefas coletivas: é ela que redige a constituição, esse “mandato
de fazer” dado aos governantes. Em seguida ela desaparece para deixar lugar
à distinção povo/governantes. Estes só podem exercer o poder que lhes foi
confiado; acima disso, eles estão “sem força”.
“Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar uma vírgula nas con-

1106
dições de sua delegação”, e os governantes só detêm frações parciais e limitadas
do poder social, eles só agem, além disso, sob o controle da Nação que, desde
que prejudique as liberdades, reaparece, armada de seu poder constituinte, para
destituir os governantes e redigir uma nova constituição. A única soberania, da
qual tratamos dentro desse sistema no qual se vê bastante a inspiração liberal,
situa-se fora do sistema político, pertence à Nação. A despeito da idéia bastante
nova de colocar ênfase sobre o controle político, mais do que sobre a de
participação no poder, só se pode, apesar de tudo, permanecer bastante reserva­
do sobre essa construção. Dessa forma, dentro do Tiers, Sieyès preconiza que a
Assembléia Nacional proceda à convocação de uma Convenção, eleita segundo
os princípios da igualdade política que não tinham sido respeitados quando da
eleição nos Estados Gerais. É a essa representação “extraordinária” que ele
encarregava de exprimir “a força irresistível” do poder constituinte da nação. Ora,
dentro de seu princípio, o poder constituinte é o voto espontâneo da massa de
cidadãos. Mas a expressão espontânea da vontade de milhões de homens, mesmo
quando não esteja limitada a alguma forma, permanecerá bastante hipotética, até
m e s m o im p o s s ív e l.
Se, como no Tiers, propõe-se um corpo de representantes especialmente
designados para exercer a função constituinte da nação, recai-se nas armadi­
lhas da vontade representativa que será sempre a do órgão representativo. A
solução preconizada parece ainda assim muito atrasada em relação aos princí­
pios revolucionários do capítulo V do Tiers e é uma construção muito
rudimentar em relação aos sistemas mais elaborados do ano III.26
Só se pode portanto ser reservado sobre a possibilidade de utilização
desse controle, necessário para impedir o conjunto do sistema de Sieyès de se
assemelhar a um simples governo aristocrático, aristocracia das luzes, dos
méritos ou da propriedade.
A Assembléia Nacional recusou-se a convocar uma Convenção. Ao contrá­
rio, desde o juramento do Jeu de Paume,27e\â baseou seu poder sobre o caráter
constituinte do qual se acreditava estar revestida. Ela acumulou desde então
as tarefas constituintes, legislativas e executivas. Entretanto, aqueles de seus
decretos que tinham a natureza constitucional eram simplesmente comunica­
dos ao Rei que, nesse caso, não se podia opor a eles. E a Constituinte, depois
de ser inicialmente inspirada pelas concepções de Sieyès, preferiu por fim um
sistema de modelo britânico.
Le Tiers é uma obra que por ser muito conhecida, foi bastante comenta­
da. A maioria dos autores, Tocqueville, Taine, viram nela o manifesto de uma
revolução burguesa. Mas foram sobretudo os escritores marxistas ou socialis­
tas que se interessaram por ela: Louis Blanc,28 Marx,29 Proudhon,30 Lassalle,31
Jaurès32 referem-se a ela, vendo nela uma gloriosa demonstração in vivo da
luta de uma classe revolucionária no momento em que ela toma consciência
de seu papel histórico. Alguns dentre eles, com sucessos desiguais aliás,
tentarão renovar a “proeza”: Proudhon com sua brochura Qu’est-ce que la
propriétéP33 (O que é a propriedade?), ou Herman Kriege em seu artigo Was
ist der Proletariat? (O que é o proletariado?).™ Ora, se não há mais dúvida de

1107
que a Revolução Francesa tenha sido uma vitória da burguesia esclarecida,
pode-se no entanto permanecer reservado quanto ao bem-fundado da análise
marxista. Os historiadores anglo-saxões foram felizes realmente ao fazer
observar a importância do capital não burguês dentro da fortuna plebéia, da
mesma maneira que o papel desempenhado por certos membros da aris­
tocracia dentro do desenvolvimento das primeiras indústrias. É preciso res­
guardar-se de projetar no passado a perspectiva de uma revolução operária
futura.
No lado oposto, os marxistas modernos, Mathiez,35 Soboul,36 Lefebvre,37
surpreendidos pela contradição que existe entre o igualitarismo de princípio
pregado no Terceiro Estado e o elitismo de algumas das posições de Sieyès, em
particular aquelas que são relativas ao direito de propriedade, censurando-lhe ter
sido o teórico do poder dos Notáveis e um precursor dos doutrinários da
Restauração. Da mesma maneira, R. Zapperi38 o acusa de só colocar a questão
da Revolução em termos políticos e de ser incapaz de compreender as formas
novas das relações econômicas necessárias ao aparecimento do capitalismo.
Há uma certa semelhança, realmente, entre o sistema constitucional de
Sieyès e alguns doutrinários da Restauração e isso ocorreu tanto mais que
alguns, como B. Constant, foram seus discípulos. Porém, uma diferença os
separa, que nos parece irredutível: Sieyès, como homem da Revolução, não tinha
medo do povo e dizia: "Nós só podemos ser livres com o povo e por ele”.39 Para
Guizot, ao contrário: "tudo deve ser feito pelo povo, mas nada deve ser feito para
ele”. Diferença que se marca também na dimensão do colégio eleitoral: 300.000
pessoas mais ou menos sob a Restauração, 6 milhões em 1791. O “aris-
tocracismo” do qual se pode taxar Sieyès só diz respeito ao exercício das funções
representativas. Para ele, os direitos políticos ou direitos de participar nas
eleições são direitos naturais que a sociedade só pode reconhecer. E se é verdade
que os representantes são livres em suas decisões, agem sempre, contudo, sob
o controle da nação, isso é, do conjunto dos cidadãos.
O que, evidentemente, representa a idéia forte do Terceiro Estado e
desempenhou papel decisivo nas primeiras semanas da Revolução, foi a idéia
de que os direitos do maior número devem ser sustentados e desenvolvidos,
conforme a justiça e a razão. Essa idéia prossegue seu irresistível caminhar, ao
longo de todo o século XIX, associada ao mandato representativo e à ideologia
democrática. O poder, desde a Revolução Francesa, só é legítimo se é desejado.
A Lei, na medida em que ela exprime a vontade geral, garante a liberdade. O
poder é então incontestável e a lei, norma soberana, expressão de um poder
de Estado restaurado. Pensamos, de nossa parte, que há dentro do sistema de
Sieyès uma dimensão liberal que se opõe aos temas dos direitos do maior
número e que geralmente foi deixada de lado pelos comentadores: a lei dentro
do sistema desse autor só é verdadeiramente legítima na medida em que ela
garante as liberdades. E não é a obediência alicerçada na ficção representativa
que é o princípio organizador de seu sistema, mas ao contrário a desconfiança,
o controle dos cidadãos sobre os governantes. A lei dentro dessa perspectiva
deve sempre ser contestável e os governantes sempre revocáveis. O essencial

1108
das pesquisas de Sieyès falará aliás em seguida sobre as formas que pode
revestir esse controle pelos cidadãos da ação dos governantes.40 Sieyès portan­
to prefigura bem a figura do intelectual comprometido tal como o concebe o
século XX. O povo revolucionário podia reconhecer-se inteiramente nas formu­
lações do Tiers. Esta obre não representa entretanto a obra capital desse autor
no plano da teoria constitucional, domínio em que ele só se afirmará verdadei­
ramente nos discursos do ano III.41

NOTAS
1. Notice sur la vie de Sieyès, membro da primeira Assembléia Nacional e da Convenção
escrita em Paris, em Messidor, ano II, e publicada no ano III. Trata-se de narrativas da vida de
Sieyès redigidas e colocadas na devida forma por seu admirador e amigo Oelsner. Esse texto é
de fato atribuído ao próprio Sieyès. Publicado em Révolution française, XXII, (1982), pág. 170.
2. Na verdade, o sistema seguido pela reunião dos Estados Cerais havia variado segundo
os tempos e os lugares: às vezes, mesmo as ordens haviam sido deliberadas em comum. Cf.
Esmein, Cours d'histoire du droit français, Sirey, 1921, pág. 489. Os membros da nobreza,
baseando-se nessas modalidades da reunião dos Estados de 1614 pediram a separação das
ordens para o voto assim como para a eleição. O Parlamento toma essa posição em seu édito de
21 de setembro de 1788.0 mesmo aconteceu na Assembléia dos Notáveis especialmente reunida
para estudar essa questão. Até os príncipes de sangue, dentro de um memorial, suplicaram-lhe
que “não se determinasse a sacrificar, humilhar sua brava, antiga e respeitável nobreza".
3. Qu’est-ce que le Tiers?, pág. 14, ne 1 (3! ed.). “Um autor estimável disse: ”0 Terceiro
Estado é a nação menos o Clero e a Nobreza." Confesso que nunca teria tido a coragem de
anunciar essa grande verdade... Peço-vos perdão, mas só tereis o projeto de articular uma
verdade simplesmente tola se não tiverdes concebido anteriormente o que 'a nação, como só há
trabalhos públicos e trabalhos particulares e como o Terceiro Estado basta para preencher todos
esses trabalhos." Numerosas obras sobre esse assunto apareceram na mesma época. É contra a
timidez de suas pretensões que Sieyès se insurge. É de Rabaud Saint-Etienne que ele fala nesta
nota a propósito de uma passagem da obra de Rabaud: Considêrations sur les êtats géneraux.
“Se se retirar os privilégios, o Terceiro Estado será a nação; se se retirar o Terceiro Estado, os
privilégios não poderão constituir a nação.”
4. A. Tocqueville, L ’A ncien Régime ei la Révolution em Oeuvres complètes, J. -P. Mayer,
Fragmentos e notas inéditas sobre a Revolução, pág. 139.
5. É uma análise que ele encontrou sem dúvida em Adam Smith, mas que retoma por sua
conta: “A razão, ou pelo menos a experiência, diz ainda ao homem: você terá mais sucesso em
suas ocupações tanto mais quanto souber limitá-las. Levando todas as faculdades de seu espírito
sobre apenas uma parte dos trabalhos úteis você obterá um maior produto com menores
dificuldades e a menores preços. Daí vem a separação dos trabalhos, efeito e causa do aumento
das riquezas e do aperfeiçoamento da habilidade humana. Esta matéria é perfeitamente
desenvolvida na obra do Dr. Smith. Observações sobre o Relatório do Comitê de Constituição,
1789, págs. 34-35, Sieyès.
6. O artista social, qualificado em outros textos “de amigo dos homens”, de “agente de
comércio das verdades sociais" interessa-se pela transformação social: ele tira as leis a partir de
análises que dependem de um trabalho científico. Mas apenas alguns são capazes disso: “Os homens
cujo espírito se lança para além da esfera ordinária e que vão buscar bem longe verdades úteis na
esperança de conduzirem seu século a novas descobertas e de contribuírem dessa forma para os
progressos sobre o globo terrestre, esses homens, digo, isolam-se muito mais por avançarem muito
mais, eles não podem mais, em sua marcha rápida, longínqua, ousada, puxar todo o aparato das
paixões dos interesses, de tudo o que faz o homem”, AN 284 AP 5 Di (11).
7. Contado por Dumont em Souvenir sur Mirabeau et les deux premières Assemblées
législatlves, Paris, Ed. Benetruy, 1951. A ciência política é para Sieyès uma ciência que se

1109
interessa pela transformação das sociedades, isto é, pelo “que deve ser”. É uma ciência
pluridisciplinar que deve associar dentro de um mesmo procedimento todos os conhecimentos
sociais, isto é, todas as ciências da civilização.
8. Q u 'e st< e q u e le T iers E tat?, PUF, 1982, pág. 32.
9. The K in g 's tuio bo d ies: a s tu d y in m e d ia e v a l p o litic a l th e o lo g y , por Emst H.
Kantorowicz, Princeton University Press (1970).
10. Q u ’est-ce q u e le T iers E tat?, Paris, PUF, 1982, pág. 30.
11. Encontra-se traços disso na carta de Mirabeau a Sieyès, publicada na C orres-
p o n d a n c e littéra ire, p h ilo so p h iq u e e t c ritiq u e por Grimm, Diderot, Raynal Meister, Ed.
Toumeu, XV, Paris, 1881, pág. 400.
12. Alguns meses mais tarde, foi ainda essa questão que os manifestantes de 5 de outubro
colocaram àqueles que encontravam para convidá-los a juntar-se a eles.
13. Podemos até mesmo nos admirar de que tal texto tenha podido ser publicado: o édito
de Luís XV, trazendo condenação à morte dos autores e impressores de obras tendendo a
perturbar a tranqüilidade pública, estava ainda em vigor. Mas, com a aproximação dos Estados
Gerais, o Rei havia convidado, por uma decisão de Conselho de 5 de julho de 1788: “Todos os
sábios e pessoas instruídas de seu reino e particularmente aqueles que compõem as academias
de Finanças e de Belas Artes de sua boa cidade de Paris a enviar ao Conservador dos Selos Reais
todas as informações e memórias sobre as modalidades de convocação dos Estados”. Esta
decisão se fez acompanhar da liberação de todas as livrarias e vendedores ambulantes presos
por venda de escritos de opositores das decisões reais. Viu-se então aparecer toda uma floração
de panfletos de todas as espécies e de todas as tendências. Mas nenhum conheceu o sucesso do
Tiers. A própria corte se emocionou (M é m o ires d e íVeber, irmão de leite de Maria Antonieta,
Paris, Ed. F. Barrière, 1860, pág. 160). Séguier, advogado geral próximo ao Parlamento de Paris,
propôs queimar o texto em praça pública.
14. Q u ’e s t< e q u e le T iers E tat?, Paris, PUF, 1982, pág. 208.
15. “Vi nas demoras do Terceiro Estado apenas o hábito do silêncio e do temor do
oprimido, o que representa uma prova a mais da realidade da opressão", Q u 'e st< e q u e le T iers
E tat?, PUF, 1982, pág. 53.
16. Georges Lefebvre: “Ele não experimentou de maneira nenhuma o sentimento de que
a desigualdade dos meios poderia praticamente anular a igualdade dos direitos”, É tu d e s s u r la
R é v o lu tio n fra n ça ise, PUF, p. 103.
17. A argumentação desenvolvida pelo próprio Sieyès diante da Assembléia é a do
“T iers"\ “Esta Assembléia já é composta dos representantes enviados por 95% da nação. Tal
massa de deputações* não poderia permanecer inativa na ausência de deputados de algumas
comarcas ou de algumas classes de cidadãos, pois os ausentes que foram chamados não podem
impedir os presentes de exercer a plenitude de seus direitos e de concorrer para a formação do
voto nacional. Todos os representantes conhecidos e verificados se encontram nesta Assembléia,
compete apenas a ela interpretar a vontade geral da nação, A P l g sé rie , 15 de junho de 1789.
18. Tocqueville, obra citada, pág. 140.
1 9 . Q u ’e s t< e q u e le T iers E tat?, 3 ! e d i ç ã o , p á g . 2 0 8 .
20. E. Burke o ridicularizará cruelmente sob esse aspecto, julgando munido “De todo um
conjunto de casas, de pombais cheios de Constituições totalmente feitas, etiquetadas, classifica­
das e numeradas, apropriadas para todas as estações e para todas as fantasias.” Carta de Burke
para um Lorde nobre sobre os ataques feitos a ele e suas pensões na Casa dos Lordes, W orks
o f t h e ríg h t h o n o u r a b le E. B u rke, Londres, 1877, págs. 142 e seguintes.
21. Para ele, na verdade, uma sociedade política só existe na medida em que “os
membros” da associação política podem se reger eles próprios", AN 284 AP3 D ll.
22. Rousseau, cap. 15, livro III do C o n tr a to S ocial: “No instante em que um povo se dá
representantes, ele deixa de ser livre, ele não existe mais".
23. “Dentro da democracia bruta, as paixões são demais em presença e os votos não são

* D eputações: reu n iõ e s d e pessoas e n carreg ad as de m issão especial; a to de d e p u ta r

1110
mantidos dentro de uma esfera estreita por uma preocupação limitada, o poder constituinte
confundido com o poder constituído, a maioria não esclarecida e se patenteando todos os poderes
ao m esm o tempo, pode perder tudo colocando a minoria sob jugo... É preciso democracia dentro
de um bom sistema social mas não é preciso fazer dela um tudo", A N 2 8 4 A P 5 D l (6). Sieyès, vê-se
por esse texto, emprega o termo democracia bruta no sentido de material bruto, grosseiro.
24. Sieyès, A rc h iv e s p a rle m e n ta ir e s , 1! série, L VIU, discurso de 7 de setembro de 1789.
25. Na França pelo menos, a despeito das críticas de La Fayette: em M ém o ires,
c o r r e s p o n d a n c e e t m a n u s c r its d u g é n é r a l d e L a F a yette, L IV, p. 3 (1838), retomadas mais
tarde por Carré de Malberg, em C o n tr ib u tio n s à la th é o rie g é n é r a l d e 1’E tat, t II.
26. Cf. D isc o u r s d e S ie y è s d e l ’a n III, ed. crítica por Paul Bastid (1939).
27. É o que sobressai do próprio texto do juramento prestado por todos os deputados
exceto um: “Por toda parte em que seus membros estiverem reunidos, aí será a Assembléia
Nacional, resolvido que todos seus membros reunidos prestarão imediatamente o juramento
solene de jamais se separarem e de por toda parte reunirem-se onde as circunstâncias o exigirem
até que a Constituição do reino esteja consolidada e estabelecida sobre fundamentos sólidos”,
A rc h iv e s p a rla m e n la ire s, 1! série, L 8, 20 de junho de 1789, pág. 138 É a mesma idéia que
Mirabeau desenvolve um ano mais tarde: “Nós somos Convenção Nacional desde que os
deputados encontraram essa sala cercada de baionetas e tiveram de se reunir em outra parte.
Pouco importa quais são nossos poderes, eles mudaram naquele dia e se tinham necessidade de
extensão, receberam-na naquele dia... O invencível repicar da necessidade vos conduziu...
Senhores! Eu vos asseguro que haveis salvado a coisa pública!”
28. Ver bibliografia.
29. Ib id em .
30. Ib id em .
31. Ib id em .
32. Proudhon, Q u 'e st< e q u e la p ro p r ie té ? , Paris, Ed. Augé-Laribé, 1926, pág. 147.
33. Herman Kriege, 1Vas is t d a s P ro leta ria t? , jornal semanal D e r Volk strib u n , publicado
em Nova York, em 1846, ns 8.
34. Ver bibliografia.
35. Ib id em .
36. Ib id em .
37. Ib id em .
38. R. Zapperí, ed. crítica de Qu ’e s l< e q u e le Tiers?, Genebra, Droz, 1970, col. “Classíques
de la pensée politique”.
39. Q u ’e s t< e q u e le T iers E tat?, Paris, PUF, 1982, pág. 54.
40. Será a função do célebre “juri constitucionário”, cf. discours du 18 Thermidor an III,
A P , págs. 442 e seguintes.
41. Colette Clavreul, L in ílu e n c e d e la th é o rie d ’E . S ie y è s s u r le s o r ig in e s d e la
re p r é s e n ta tio n e n d r o it p u b lic, tese de Estado, 1982.

• Edições de Qu’est<e que le Tiers Etat?, 1® ed ição , ja n e iro de 1789; se g u em -se d u a s o u tra s
n o m esm o a n o (é a te rc e ira a s sin a d a p o r S ieyès q u e é a m ais d esen v o lv id a); p u b lic a ç ã o p o r
C ra m e r d e n tr o d e u m a co leção d o s e s c rito s d e s se a u to r p u b lic a d a e m P aris, 1796; nova
p u b lic a ç ã o p o r C ra m e r d o m esm o texto, m as, em se g u id a a a lte rc a ç õ e s com S ieyès, e la tr a z em
fro n tisp íc io “e d iç ã o p a ra u so d a A lem anha"; A no VII, c u rio sa re e d iç ã o so b a fo rm a Qu'es<e que
le peuple?, em P a ris n a c asa de A ubry, M e ssid o r a n o VII da R epública; 1822 n o v a e d iç ã o de
Qu 'est<e que le Tiers Etat? e d e L 'essai sur les Privilèges, pelo A bade M o rellet em P aris, casa
C o rre a rd , 1822; Qu'est<e que le Tiers Etat? p reced id o de L'essai sur les Privilèges, e d iç ã o
c rític a d e E d m e C h a m p io n e A ulard, P a ris, 1888; E dição c rític a p o r R. Z ap p eri, G e n eb ra, D roz,
1970; Qu’est<e que le Tiers Etat?, p re c e d id o p o r L ’essaisur les Privilèges d a e d iç ã o d e E.
C h a m p io n , P a ris, PU F, 1982.

1111
► Brochuras contemporâneas em resposta ao Tiers. - Qu ’est<e que L 'Assemblée nationale?,
b ro c h u ra d ed icad a a E. B u rk e; Qu ’est<e que la noblesse et que sont ses privilèges? p elo C o n d e
M u ra t d e M o n tferran d , m esm o texto q u e foi p u b licad o a n te rio rm e n te , em A m sterdam , 1789;
G irard et, Qu’est<e que la nation?, 1789; Qu'est<e que la noblesse?, pelo A bade D u b ig n o n ,
b ro c h u ra d ed icad a a S ieyès, 1789; E p ísto la a S ieyès p o r o casião de Qu’est-ce que le Tiers?, C arta
d o clérig o d a seg u n d a o rd em ao S r. a b ad e Sieyès, 1789.
T ex tos in sp ira d o s n o T iers - M arat, Offrande à la patrie ou discours au Tiers Etat de la France;
C. D esm o ulin s, La France libre; S aint-S im on, Qu’est-ce q u ’un industriei?, catecism o d o s
in d u striais, em Oeuvres de Saint-Simon, p u b licad as p o r E n fan tin , L VII, P aris, 1875; Was it das
proletariat?, H erm an K riege, n 5 8, Jo rn al sem an al der Volkstribum p u b licad o em N ova Y ork em
1846; Qu'est<e que la bourgeoisie? p o r u m so b rin h o -n eto d o A bade S ieyès, P aris, 1863;
P ro u d h o n , Qu’est<e que la proprietè?, P aris, Ed. A ugé L aribé, 1926, p ág. 147.
Comentários da época - C arta de M irabeau a S ieyès, d e 2 3 de fev ereiro d e 1789, em
Correspondance littéraire p o r C rim , D iderot, R aynal, M aister, P aris, E d. T o rn e a u , L XV, 1881,
p ág . 400; Mémoires de Barras, E d. G. d u ru y , t III, 1896, pág. 484; Mémoires de Weber, P aris,
E d. F. B arrière, 1860, pág. 160; Mémoires de Malouet, 1 8 7 4 ,1.1, pág. 226; Mémoires de Barere,
E d. C a rn o t e D avid, 1844, pág. 427; Mémoires de Baily, págs. 59 a 63; M adam e d e S tael,
Considérations sur la Révolution française et sur les causes qui en prolongent la durée,
L o n d res, 1793, p ágs. 39 a 43; A. L am eth, De 1’A ssemblée constituante, P aris, casa C o rreard ,
1822; M ably, “O b serv atio n s s u r 1’h isto ire de F ra n c e ”, Mémoires de La Fayette, p u b licad as p o r
s u a fam ília, P aris, Ed. F. C orcellet, 1837; Mémoires du Comte de Montloseir, P aris, Ed. Difey,
1830; E. B u rk e, “A le tte r to a n o b le Lord, his p en sio n in the h o u se o f lords" em Works o f the
right honourable E. Burke, L o nd res, 1877, pág. 142; B. C o n stan t, S o u v e n irs h isto riq u e s écrits
à 1’o ccasio n d e 1’o u v rag e de M. B igeon, Revue de Paris, t XVI, págs. 102 e segs.
C o m en tário s crítico s. — E. B u rk e, Considérations sur la Révolution française (1790); G.
L efebvre, 1789 (1939); P. B astid, Sieyès et sa pensée, 1939, re e d ita d o em 1970; P. B astid, La
p lace d e S ieyès d a n s 1’h isto ire co n stitu tio n n elle , Revue d ’h istoire politique et pariementaire,
pág. 3 06 , 1939; G. Lefebvre, Annales historiques de la Révolution française (resu m o da o b ra
d e P. B astid), XVI, 1939, págs. 357-366; G. L efebvre, La R évo lutio n fran çaise e t 1’h isto ire d u
m o nd e, em Êtudes sur la Révolution française, P aris, 1963, p ágs. 431-443; C om te M ignet, Le
C om te Sieyès, N otice..., em Portraits historiques et littéraires, 1 .1, P aris, 1877, p ág. 76; E. C abet,
Voyage en Icarie, P aris, 1842, págs. 4 99 e seg u in tes, p o r M allet (edit.); T ocqueville, L ’A ncien
R égim e e t la R évo lutio n, em OEuvres complètes, 1 .11, págs. 139 e segs., Ed. J. -P. M ayer; L o uis
B lanc, Histoire de la Révolution française, B ruxelas, 1847, págs. 3 42 e segs., J. Jau rès, Histoire
socialiste de la Révolution française, t. 1: La Constituante, Ed. M athiez, 1922, pág. 247; K.
M arx, Das Kapital, B erlim , 1965, t. EU, pág. 339, t. 1, págs. 173 e segs.; A. A ulard, S ieyès e t
T alley ran d d ’ap rès B. C o n sta n t e t B arras, La Révolution française, t. XXIII (1920), pág. 299.
Berlim, 1965, p ágs. 41 e segs. - K. M arx, oF Engels Werke, IX, B erlim , 1960, p ág. 70; K. M arx,
La Sainte Famille em OEuvres philosophiques, tra d u ç ã o M olitor, P aris, 1927, pág. 53; G. P.
G oogh, A bbé S ieyès an d th e T h iers E tat, em Contemporary Review, n ? 1180, p ágs. 228-230;
M ichel P eltier, S ieyès le p ère d u T iers?, Êcits, P aris, fev ereiro de 1974, n 9 3 33 , p ág s. 48-52; P.
-J. P ro u d h o n , D u p rin cip e féd ératirf; em OEuvres complètes, E d. G. Scelle; J. L. P u ech , The
Ruyssen, P aris, 1 95 9, p ágs. 3 6 6 e 3 4 7 e segs.; L assalle, Reden und Schriften, B erlim , Ed.
B e rn ste in II, 1893, pgs. 2 5 , 38, “A rb eiter P ro g ra m ”; M athiez, La Révolution française (1922);
S p u ller, Sieyès et ses brochures, hommes etchoses de la Révolution, p ágs. 153-174; R. Z apperi,
S ieyès e t 1’ab o litio n d e la féo dalité en 1789, Annales historiques de la Révolution française,
1792, C, 44, n s 2 09, p ág in a s 321-351; G o u v ern eu r, M orris, Jo u rn al d e s a n n é e s 1 7 8 9 ,1 7 9 0 ,1 7 9 1 ,
trad . franc., P aris, 1901.

C o l e t t e CLAVREUL.

1112
SOREL, Georges, 1847-1922
Materiais para uma teoria do proletariado, Paris, Rivière, 1919; 2e
edição aumentada, 1921, 452 p. (nova ed., Paris-Genève, Slatkine,
1981, reimpressão)

Em 1914, pouco tempo antes do desencadeamento da Primeira Guerra


Mundial, Georges Sorel se dispõe a permitir a impressão um novo volume de
suas obras. O autor de Réflexions sur la violence (Reflexões sobre a violên­
cia), pressentindo que se tratará de sua última obra, aspira legar uma espécie
de “condensado” daquilo que constitui o essencial de sua filosofia socialista.
Antigo engenheiro, que se demitira de função pública em 1892, com a idade
de 45 anos, a fim de se consagrar integralmente à exposição de suas idéias por
escrito, Sorel sofre com o sentimento de ser um incompreendido. As inter­
pretações que suscitaram na França suas Réflexions sur la violence, apareci­
das em 1908, os dissabores resultantes de seus contatos com círculos da
extrema-direita, durante os anos 1909-1912, o incitaram a apresentar de novo
os fundamentos de sua crítica social.
A guerra retardará a publicação do livro, que só aparecerá em 1919. Os
Matériaux d ’une théorie du prolétariat (Materiais para uma teoria do proleta­
riado) podem, com justiça, ser percebidos como uma espécie de testamento do
velho Sorel; não se trata, no entanto, de uma obra realmente nova, mas sim de
um conjunto de ensaios redigidos entre 1896 e 1914 e que não sofreram mais
retoques a não ser a adição enriquecedora de numerosos comentários quando
da preparação desse volume. Uma segunda edição, publicada em 1921, conterá
longo apêndice que constitui um dos últimos escritos de Sorel: trata-se portanto,
efetivamente, menos de um livro do que de uma série de reflexões.
Sorel passa por ser um autor que freqüentemente, freqüentemente
demais, mudou de pontos de vista: liberal-conservador lá pelo fim dos anos
1880, marxista durante os anos 1890, dreyfusiano conseqüente na época do
"Caso”, teórico do sindicalismo revolucionário durante o período, socialmente
agitado, dos anos 1905, "tradicionalista” antidemocrata de 1909 a 1912,
antimilitarista, até mesmo derrotista, durante a “Grande Guerra”, Sorel, às
vésperas de sua morte, no momento do aparecimento do livro, revela-se
simpatizante da revolução bolchevista. Sorel passa igualmente por um pensa­
dor inclassificável e ele mesmo não teria dado importância às diversas defi­
nições que visaram classificá-lo e etiquetá-lo durante as fases sucessivas de seu
itinerário, a não ser com um pouco de ironia.
Essa obra não escapa à regra: Sorel apregoa nela, sem hesitação, notáveis
demonstrações de sua famosa versatilidade. O livro não contém todo o Sorel:
faltam-lhe, notadamente o Sorel epistemológico assim como o Sorel historiador
das religiões. Encontrar-se-á, em compensação, um concentrado do Sorel
“pensador do movimento operário”. Em relação às Réflexions sur la violence,
os Materiais apresentam a vantagem de revelar não só um momento das
relações do autor com o socialismo e o movimento operário, mas bem mais

1113
uma seqüência de posições de um pensador prosseguindo em uma única
investigação a partir de ângulos de aproximação diversos: o dos meios pelos
quais a classe operária conseguirá ocupar uma posição hegemônica dentro da
sociedade moderna.
Dedicando esse livro ao militante sindicalista Paul Delesalle e à esposa
dele, Sorel exprime talvez mais intensamente sua concepção do papel do
intelectual diante do movimento operário: “Espero que meus queridos cama­
radas, Paul e Léona Delesalle, aceitem a homenagem deste livro escrito por um
velho que se obstina em permanecer, como o foi Proudhon, um servidor
desinteressado do proletariado.”
Esse “servidor desinteressado do proletariado”, que proclama sua recusa
em si dirigir aos políticos burgueses, não tenta também, entretanto, endereçar-
se aos operários; ele esclarece imediatamente ao leitor, com efeito, que seu
livro “dirige-se aos homens que estão habituados a se interessar pelos esforços
do pensamento especulativo" (pág. 1). Sorel jamais quis endossar um papel de
pedagogo nem de propagandista e nunca se dedicou metodicamente a conven­
cer o leitor: sua obra se reveste essencialmente de uma dimensão crítica, ela
não se propõe definir um programa novo. Ele fixou para si, como meta,
completar e prosseguir o caminho começado antes dele por Marx e Proudhon,
isso é, formular uma expressão teórica das possibilidades de emancipação do
proletariado.
Contudo, por mais curioso que isso possa parecer, o velho Sorel, que
reúne em 1914 seus ensaios mais importantes consagrados ao movimento
operário, não se considera um socialista e chega mesmo a alimentar certo
ceticismo quanto ao potencial revolucionário das organizações operárias. Ele
cita, não sem um quê de orgulho, o filósofo italiano Benedetto Croce, seu
amigo, segundo quem “o sindicalismo era uma nova forma do grande sonho
de Marx, que foi sonhado uma segunda vez por Georges Sorel” (pág. 4). O
sindicalismo foi, para Sorel, apenas um sonho com o qual ele iria terminar por
se desiludir? A resposta a essa questão constitui a chave para a compreensão
desse livro e talvez permita encontrar um denominador comum às diversas
facetas desse pensador, rebelde às classificações tradicionais, e que se dirige a
nós por meio de vozes múltiplas.
Dessa forma, como compreender que se possa gabar, como Sorel o fez
em 1897, os méritos de um avanço do sindicalismo por meio de reformas
graduais desprezando totalmente o eleitoralismo, e depois, dois anos mais
tarde, preconizar a inserção do movimento operário dentro da luta pela
democracia política? Como compreender a sustentação trazida em 1905 ao
sindicalismo revolucionário, notadamente pelo recurso aos mitos, e, quatro
anos depois, a insistência enfática reservada à tradição familiar e nacional?
Como, nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial, afirmar-se proudhonia-
no, exprimindo ao mesmo tempo sua simpatia pela revolução bolchevista?
Sorel parece dessa maneira legitimar, dentro dessa obra, o julgamento emitido
a seu respeito por Plekhanov e Lênin desde os anos 1910, a saber: de ser um
“confusionista” incorrigível. Sorel, contudo, coloca em guarda o leitor em

1114
busca de vastas sínteses: “Eu trabalhava ao acaso de inspirações circuns­
tanciais.” Ele não se atrapalha mais com métodos nem formas. Seus escritos
respiram a desordem e a impulsividade: o fim de um ensaio toma às vezes o
sentido oposto ao do começo. Trata-se de uma escrita “bruta” permitindo
seguir um pensamento em movimento, do qual o autor legitima por outro lado
as sinuosidades, erigindo-as em método: “A filosofia social é obrigada, para
perseguir os fenômenos mais consideráveis da história, a proceder a uma
dirempçâo, isso é, a examinar certas partes sem levar em conta todos os
vínculos que as ligam ao conjunto, a determinar, de algum modo, o gênero de
suas atividades levando-as em direção à independência, quando ela chega dessa
forma ao conhecimento mais perfeito, ela não pode mais tentar reconstituir a
unidade rompida” (págs. 5-6).
A dirempçâo (do francês diremption, termo emprestado de Proudhon)
ocupa um lugar central na obra de Sorel. Esse método o afasta da “totalidade
concreta” hegeliana ou marxista e o aproxima do “tipo ideal” weberiano (que
Sorel, é claro, ignora). Essa dirempçâo permite a Sorel deixar vagabundear
seus pensamentos desconsiderando esse ou aquele aspecto de um assunto ao
qual ele concederá importância capital em algum texto de outra época. A cada
momento, Sorel desenvolve quase que exclusivamente essa ou aquela idéia
forte, ignorando soberbamente “todo o resto”. É nisto que residem ao mesmo
tempo a potência e a fraqueza essenciais de Sorel, a extrema originalidade de
sua obra e a principal origem dos perpétuos mal-entendidos dentro da inter­
pretação de seu pensamento. Isso explica igualmente que pensadores tão
dissemelhantes como Robert Michels e Antonio Gramsci, Walter Benjamin e
Carl Schmidt, para citar apenas os mais célebre, tenham podido recorrer a ele.
A filosofia do pluralismo, desenvolvida por Sorel no prefácio de Mate­
riais, reveste-se de um duplo aspecto: um pluralismo metódico por um lado, e,
por outro, o postulado, segundo o qual a vivência social divulgada pelo
sociólogo verifica-se, ela também, sempre “plural”. Sorel se entrega, permanen­
temente, a um combate contra o pensamento monista e orgânico; no plano
político, ele trava o mesmo combate contra uma concepção unitária do mundo.
Eis por que encontrar-se-á Sorel do lado de Aristóteles contra Platão, do lado
de Vico contra Descartes, do lado de Proudhon contra Fourier e do lado de
Marx contra... Engels. Convém ainda esclarecer que se trata de um Aristóteles,
de um Vico, de um Proudhon e de um Marx muito particulares, por terem sido
passados pelo filtro do pensamento soreliano que, em função da época,
privilegia a dimensão e o aspecto de suas obras que estejam mais ligados a tal
ou qual situação social e política.
Em 1914, depois de ter descoberto o filósofo americano William James,
Sorel, daí em diante, prefere definir sua aproximação como “pragmática" mais
do que como “materialista histórica”: “Está de acordo com o espírito do
pragmatismo levar muito em consideração o meio em que uma doutrina se
desenvolve quando se quer fazer dela uma idéia clara ao invés de defini-la em
termos escolásticos” (pág. 24). Sorel nos recomenda, portanto, inscrever toda
leitura de um texto em seu contexto histórico; e esse conselho merece muito

1115
particularmente ser aplicado aos Materiais que nos apresenta, levando-se em
conta sua ordem de aparecimento.
Um longo ensaio ocupa lugar central nesse volume; trata-se de Vavenir
socialiste des syndicats (O futuro socialista dos sindicatos), escrito em 1897
e ligeiramente modificado em 1901. Sorel, que se estava então afastando do
marxismo oficial, começa suas reflexões sobre os problemas do sindicalismo e
de seu papel dentro do movimento operário. Esse ensaio pode aparecer como
a expressão teórica de um processo encerrado desde 1894 e que vê o
socialismo francês se perder, por alguns anos, sua ligação com o movimento
sindical. Sorel considera absurdo um movimento socialista sem sindicatos; é
preciso ainda esclarecer que, nesse escrito, toma como modelo não os sindica­
tos franceses, mas as Trade-unions britânicas. Quanto a seus próprios escritos
desses anos, Sorel os define como uma tentativa de “renovar o marxismo por
meio de procedimentos marxistas” (pág. 253).
Os ensinamentos a tirar do trade-unionismo britânico são confrontados
aqui com aqueles da ideologia dominante na 11 Internacional, com, segundo
Sorel, a idéia de que a classe operária não pode conquistar o poder político
central. A ditadura do proletariado anunciada pelo socialismo político será
necessariamente "uma ditadura representativa do proletariado”. A conquista
do poder político, por vias revolucionárias ou reformistas, não poderá servir
de caminho para uma sociedade nova; o Estado não pode ser o genitor da
sociedade civil.
Os partidos políticos que se valem do socialismo em nome do proletaria­
do funcionam segundo um modo hierárquico e não escapam à divisão do
trabalho, característica de todo corpo político, entre intelectuais e traba­
lhadores braçais. Os intelectuais políticos que dirigem os partidos concentram
necessariamente seus objetivos sobre a conquista do poder e moldam o partido
em conseqüência disso. Sorel reconhece-se dentro da concepção marxista que
quer Estado simplesmente como uma organização encarnando o conjunto de
um povo, mas acrescenta a isso um elemento: o Estado não é mais o simples
representante de uma classe social: a ditadura política do proletariado é uma
ilusão da mesma forma que a democracia política.
Sorel alimenta, desde essa época, um desprezo profundo para com o que
chamará mais tarde “a elite do mundo plebeu” (pág. 278), e começa assim sua
crítica da função do intelectual revolucionário, “democrata” ou “socialista” que
aspira a governar o movimento político: uma crítica que, para além das
evoluções, não se desmentirá jamais. A relação com o Estado, preocupação
central de Sorel, tornar-se-á, de fato, um dos problemas fundamentais do
movimento operário no século XX. Os partidos socialistas, segundo Sorel, só
podem no máximo propelir uma nova casta política ao ápice do Estado se os
poderes reais dos produtores não se encontrem fundamentalmente modifica­
dos. Apenas o crescimento e a ampliação das instituições engendradas direta­
mente na base pelo conflito entre o capital e o trabalho permanecem porta­
dores das virtualidades de uma sociedade socialista nova. Sorel visa, dessa
maneira, os sindicatos, as cooperativas, as organizações mutualistas, únicos

1116
corpos suscetíveis, segundo ele, de transformar o proletariado “em classe para
si mesma”, como formulou Marx. O olhar do teórico deve concentrar-se na
aptidão dos trabalhadores para organizarem-se no terreno da produção; deve
observar e analisar as capacidades morais e intelectuais que permitirão aos
trabalhadores adquirir o domínio de seu lugar de trabalho. Isto não se efetua
sob a forma de um ato único; não haverá grande noite! Os sindicatos deverão,
por meio de uma luta obstinada, despojar pouco a pouco o Estado de todas as
funções dentro do domínio da produção.
Sorel aparece, portanto, em 1897, como um pensador antipolítico e
operarista; ora, menos de um ano mais tarde, a situação política criada pelo
Caso Dreyfus o conduz a desenvolver posições novas. Sem hesitar, ao contrá­
rio de seus amigos marxistas, ele se coloca resolutamente no campo dos
dreyfusianos. Sorel exprimiu, no prefácio que escreveu ao livro do republicano
italiano Colajanni (incluído nos Materiais), seu ponto de vista sobre o Caso que
sacode o mundo político francês: “O socialismo torna-se cada vez mais, na
França, um movimento operário dentro de uma democracia”, declara ele (pág.
279). Sorel não se tornou por isso um “democrata”. Toda a sua filosofia
permaneceu rebelde às concepções populistas, mas seu íntimo marcado de
liberalismo o conduz a preconizar uma reaproximação entre democratas,
socialistas e anarquistas contra "a loja fanaticamente nacionalista” (pág. 173).
0 apoio trazido a essa primeira “união da esquerda” não se limita só ao
plano político; Sorel esforça-se para conferir um fundamento teórico ao “bloco
histórico” dos dreyfusianos. Da mesma maneira que a história e a natureza
não respondem a um misterioso encadeamento dialético, a sociedade moderna
também não tende, estima Sorel, a se constituir simplesmente em duas classes
como pretendem os marxistas. O Partido Socialista deve libertar-se de uma
mentalidade de seita para imergir plenamente dentro da vida política; essa é a
função de um partido político e não a preparação ilusória de uma revolução
imaginária.
Sorel não procura afirmar uma coerência entre as posições exprimidas
nesse texto e os pontos de vista enunciados anteriormente a propósito dos
sindicatos. Todavia é manifesto que ele derruba a hierarquia que tende a definir
a II Internacional dentro das relações entre partido e sindicato. Na opinião de
Sorel, o partido é reduzido ao estado de grupo de pressão dentro da sociedade
existente; ele não o incumbe de transformar a ordem existente pois é ao sindicato
que cabe a tarefa de preparar a sociedade nova. O partido canaliza as ações e os
combates que não se inscrevem de maneira absoluta dentro da luta de classes
(no sentido trabalho contra capital), pois a sociedade se compõe de mais de duas
classes. A dicotomia, se não existe no plano sociológico, encontra-se, todavia,
“dentro das bases de todos os fatores morais das lutas históricas” (pág. 187). Dois
pólos se desenham na consciência social, duas concepções morais fundamentais,
portadora:, de dois projetos jurídicos antagônicos. 0 socialismo moderno tem
como fundamento “uma luta para a conquista de direitos” (pág. 187), ainda que
os programas políticos não reflitam sempre esse tipo de combate. Se Sorel
aprovou a entrada de Millerand no governo não foi porque esse último afirmou-se

1117
socialista; pois, contrariamente a Millerand, Sorel não pensava que os conflitos
de classes pudessem canalizar-se para uma paz social.
Através do artigo intitulado Greves e direitos trabalhistas, vemos que
aquilo que interessa a Sorel é a “auréola do direito" (pág. 396), dizendo de
outra maneira, uma consciência jurídica nova que jorra da greve. O processo
de confrontação entre trabalhadores assalariados e empregadores revela um
antagonismo fundamental e irredutível entre duas consciências jurídicas. O
antagonismo não se exprime na discussão sobre o preço da força de trabalho
mas dentro do sentimento de seus direitos que germina na consciência dos
trabalhadores na empresa. A partir desse sentimento subjetivo, nascido nos
grevistas, uma consciência radicalmente nova pode se formar, se bem que se
tratasse, neste caso, de uma virtualidade e não de uma necessidade.
Em um outro texto, redigido no fim de 1901 e incluído nesse volume,
Sorel tenta examinar as diferentes formas de que se reveste a dinâmica social
em diversos países. Ele conclui pela ausência de linearidade dentro do desen­
volvimento das organizações de trabalhadores. A situação na Inglaterra difere
totalmente da dos Estados Unidos, da mesma maneira que a legislação social
e os sindicatos na França conheceram um desenvolvimento totalmente dife­
rente do da Itália. Segundo Sorel, as diferenças de um país a outro não são,
no essencial, redutíveis a diferenças no grau de desenvolvimento industrial,
mas participam de problemas de mentalidades ligadas a uma história social e
institucional específica.
Esse texto suscita curiosidade por causa precisamente daquilo que não
se encontra nele; na realidade, Sorel passa em revista os movimentos operários
britânico, americano, francês e italiano, enquanto que a Alemanha sequer é
mencionada. Isto é particularmente não-habitual no começo do século para um
pensador que se define como marxista e fornece por isso mesmo precioso
esclarecimento sobre o universo teórico de Sorel antes que ele se torne o
teórico do sindicalismo revolucionário.
E precisamente o Sorel intérprete do sindicalismo de ação direta que se
encontra no "Prefácio de 1905" escrito para L ’a venirsocialiste dessyndicats.
Esse breve texto prefigura o Sorel das Réãexions sur la violence. Sorel o
"revolucionário" parte do postulado segundo o qual “o tempo das revoluções
de políticos acabou” (pág. 59). A revolução da qual falam os marxistas só se
torna possível pela visão da greve geral. Não são as teorias revolucionárias mas
os choques e confrontos cotidianos que fazem a revolução avançar. Sorel é
seduzido pela combatividade da CGT dos anos 1904-1908 e se dedica a ser seu
arauto teórico.
Tais páginas revelam, igualmente, o elemento central do Sorel apóstolo da
“violência operária”. Contrariamente à maioria dos pensadores socialistas que
concebem a revolução futura em função do modelo da Revolução Francesa, isso
é, pela conquista do poder central e pela proclamação de uma sociedade nova,
Sorel, que rejeita essa visão, considera dois outros caminhos. É preciso, diz ele,
adotar a perspectiva de “um modo materialista”. Se o intelectual socialista tenta
imitar seu antecessor, o revolucionário burguês, o operário socialista deverá,

1118
quanto a ele, se inspirar no exemplo do industrial revolucionário. A indus­
trialização e não a Revolução serve, efetivamente, de referência a Sorel. Em que
reside o segredo da vinda da burguesia? Sorel responde: "A potência e a riqueza
da burguesia foram baseadas na autonomia dos diretores de empresa. Por que a
força revolucionária do proletariado não seria baseada na autonomia das revoltas
operárias?” (pág. 65). O sindicalismo não tem necessidade quer de um comando
geral, quer de um projeto global. Vale mais a pena sindicatos gozando de
autonomia local, de tamanho reduzido e capazes de preservar uma espon­
taneidade combativa. A busca dessa espontaneidade conduz precisamente Sorel
a se referir a um segundo modelo de transformação social e cultural: o nas­
cimento do cristianismo, tal como ele leu através do filósofo napolitano Vico. foi
um “ricorso", um retorno às origens, que tornou possível o cristianismo. O
socialismo moderno deve, ele também, liberar-se da sofisticação teológica para
reencontrar as situações “arcaicas”. O socialismo só poderá se renovar depois
dessa fase e sobre a base de estruturas inéditas: instituições de caráter des­
centralizado e federalista, anunciadoras do direito futuro.
Sorel pôde, por instantes, dar impressão de apreender o movimento
operário como um movimento religioso; em verdade, noutro texto contido
nesse mesmo volume, nega ao socialismo moderno qualquer faculdade de se
transformar numa religião moderna. A seus olhos, o socialismo distingue-se
fundamentalmente das religiões pelo fato de estar desprovido de uma “metafí­
sica da alma”, (pág. 314), e estima que os mitos modernos não são em nada
semelhantes aos mitos religiosos.
A democracia coloca em perigo a visão e o projeto sindicalistas; de 1906
até sua morte, Sorel não cederá: a versão francesa da democracia, isso é, a prática
e a filosofia do radicalismo, constituem um fator de destruição da autonomia
sindical. A hostilidade de Sorel para com a democracia moderna não procede
certamente da vontade de ver reduzidas as liberdades, mas os temores que lhe
inspira a democracia de massa o incitarão, visto que será cortado o sindicalismo
revolucionário, para preferir um “republicanismo aristocrático”.
O trabalho intitulado L'organisation de la démocratie (A organização
da democracia), igualmente incluído nessa obra, ilustra esse estranho desdo­
bramento dentro da crítica soreliana da democracia. Sorel revela-se aí como
um espírito ao mesmo tempo conservador e libertário, fenômeno raro dentro
da literatura política do começo do século. Ele coloca um sinal de igualdade
entre democracia e demagogia e sublinha, em seguida a Proudhon, “a extrema
facilidade com a qual se passa da democracia ao despotismo e reciprocamente"
(pág. 379); e acrescenta: “Uma maioria fanática pode ser extremamente perigo­
sa” (pág. 385). Esse tipo de “democracia de massa” esgota suas forças com as
multidões pequeno-burguesas da “grande cidade em que os homens passam
como sombras” (pág. 386). Não se trata mais de democracia jacobinista-plebéia.
Sorel inclui igualmente na obra um breve ensaio autobiográfico no qual
enfatiza que sua concepção do socialismo foi sempre antijacobinista e anties-
tatal; o socialismo só podendo ser, segundo ele, proletário e utilizado pelos
próprios produtores. O socialismo não resultará com efeito da luta dos pobres

1119
conta os ricos para “uma distribuição filantrópica da riqueza nacional” (pág.
272); ele só se realizará graças à criação de corpos intermediários novos no
âmbito da sociedade civil, capazes de ao mesmo tempo de se autodirigirem (de
se autogerirem, diríamos hoje em dia) e de organizar a produção. Se, no tempo
do liberalismo nascente, o indivíduo havia podido ter acesso à cidadania inteira
sobre a base da propriedade, Sorel considera que o domínio do processo de
produção constitui a primeira condição necessária ao operário moderno para
a conquista de uma posição de cidadão ativo.
A imagem do produtor, tal como a concebe Sorel, refere-se ao artesão do
século XIX e não ao operário moderno do taylorismo (pág. 404). Sorel também
acreditou que os sindicatos poderiam desempenhar o papel de novos or­
ganizadores da produção e tornarem-se dessa maneira as “autoridades sociais”
legítimas capazes de suplantar as antigas elites do mundo liberal. Um discurso
totalmente diferente sobre a democracia e o socialismo depende, a seus olhos,
de uma demagogia de intelectuais, alcançando somente, no final das contas, o
reforço do Estado central.
Essa é a problemática essencial de Sorel: a de um liberal tradicionalista
(talvez um caso único) que se tornou marxista heterodoxo e que tenta, através
de uma síntese saint-simoniana e proudhoniana, definir o “futuro socialista dos
sindicatos”. Essa perspectiva tendo se obscurecido, Sorel reagirá durante
alguns anos através de uma reaproximação com os círculos da direita antide­
mocrática, marcando por aí sua preferência pelas “autoridades tradicionais”
mais do que pelos “comitês políticos" modernos.
Tendo realizado essa obra em 1914, depois de ter rompido seus vínculos
com a direita, Sorel dedica-se a depreciar sua imagem lembrando, uma última
vez, que fora da classe dos produtores organizados, não existe alternativa para
o liberalismo do século XIX, que está desmoronando. Mesmo o sindicalismo
revolucionário não tendo passado de um sonho, Sorel, o pessimista, ainda
continua a esperar e a procurar, contrariamente a Croce, seu amigo italiano.
Após a guerra, Sorel acrescenta a esses textos algumas anotações
mostrando que alimenta esperanças nos Sovietes da Revolução Russa (pág.
164) assim como na idéia, difundida então na Alemanha, “de fazer controlar
uma câmara saída do sufrágio universal por um senado de produtores” (pág.
344). Em apêndice inserido na segunda edição, às vésperas de sua morte, Sorel
continua a se preocupar, juntamente com Proudhon, com d fato de que
“existem relações entre o desenvolvimento das lutas de classes e a gênese dos
novos direitos” (pág. 424).
Essa última publicação dos Materiais para uma teoria do proletariado
continua, não obstante, a fazer referência a um tipo de proletariado em vias de
desaparecimento. O quadro conceituai de Sorel permaneceu, até o fim, o de
um pensador do século XIX. Na realidade talvez seja preciso ver em Sorel, sob
muitos aspectos, o último socialista do século passado; no entanto, algumas de
suas intuições, de suas advertências, de seus movimentos oscilatórios entre
esperança e desespero, nos recolocam, ao mesmo tempo, solidamente no
século XX.

1120
• Le procès de Socrale, P aris, A lcan, 1889, 3 9 6 págs.; D'Aristote à Marx, L ’a ncienne et la
nouvelle métaphysique (1 894), P aris, R ivière, 1 9 3 5 ,2 7 5 p ág s. (p ró lo g o p o r E d o u ard B erth); La
ruine du monde antique. Conception matérialiste de VHistoire (1 90 2), P aris, R ivière, 1933,
3 2 3 págs. (p ró lo g o p o r E. B erth); Saggi di critica dei marxismo, M ilão, S a n d ro n , 1903, 401
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4 3 0 págs.; Le sysième historique de Renan, P aris, Jacq u es, 1905-1906, 4 75 págs.; Réflexions
sur la violence (1908), P aris-G enebra, S latk in e, 1981, 4 5 8 págs.; Les illusions du progrès
(1908), P aris-G enebra, S latk in e, 1981, 3 9 0 págs.; De 1'utilité du pragmatisme (1921), P aris,
R ivière, 1928, 4 71 págs.; La décomposition du marxisme et autres essals, P aris, P U F, 1982,
2 6 2 págs. (a p resen tação d e T h iery P aq u o t).

► G eo rges G oriely, Le pluralisme dramatique de Georges Sorel, P aris, R ivière, 1962, 242
págs.; Irving L. H orow itz, Radicalism and the Revolt against Reason. The Social Theories o f
Georges Sorel (1961), Illinois, A rctu ru s B oo ks, 1 9 6 8 ,2- ed ição, 2 64 págs.; G ian B iagio F u rio zzi,
Sorel e 1’Italia, M essina, G. D ’A nna, 1975, 3 3 7 págs.; M ichel C h arzat, Georges Sorel et la
Révolution au X)C siècle. P aris, H ach ette, 1977, 296 págs.; Jo h n L. S tan ley , The Sociology o f
Vírtue. The Social and Political Theories o f Georges Sorel, B erk eley, U niversity o f C alifórnia
P re ss, 1981, 3 8 7 págs.; P ie rre A n dreu , Georges Sorel entre le noir et le rouge (1953), P aris,
S yros, 1982, 2- ed., 3 13 págs.; O b ra coletiva, Cahiers Georges Sorel, P aris, S o c ieté d ’É tu d e s
so rélie n n es, vol. I, 1983, 2 0 6 págs., vol II, 1984, 192 págs.; V alentino P e tru cci, Socialismo
aristocrático. Sagglo su Georges Sorel, N ápoles, E dizioni S cientifiche Italian e, 1 9 8 4 ,2 0 7 págs.;
S h lo m o S an d , L'illusion du politique. Georges Sorel et le débal intellectuel 1900, P aris, La
D éco u v erte, 1985, 281 págs.; Jacq u es Ju lliard e t S h lo m o S an d (sob a d ireção), Georges Sorel
en son temps, P aris, E d it. d u S euil, 1985, 4 7 6 págs.

SPENGLER, Oswald, 1880-1936


A decadência do Ocidente, 1918-1919

Não sem razão, André Reszler qualificou A decadência do Ocidente de


“breviário do pessimismo europeu”. Essa enorme súmula histórico-filosófica é,
com efeito, citada sempre como referência quando se trata da decadência de
nossa civilização. Escrito no decorrer da Primeira Guerra Mundial, o primeiro
tomo da obra suscitou, desde o outono de 1918, imensa controvérsia. É
verdade que a derrota alemã ampliava o eco de uma tese, hoje em dia banal,
mas então dificilmente suportável, que na mesma época Vaiéry formulava de
seu lado com sua célebre frase: “Nós, que constituímos civilizações, sabemos
daqui em diante que somos mortais.”
Curioso livro é esse best-seller filosófico de título-slogan e cujo subtítulo
define modestamente sua exorbitante ambição: “Esboço de uma morfologia da
história universal"! Do que se tratava? De propor, por meio de uma verdadeira
“revolução copernicana”, uma nova visão da história rejeitando o tradicional e
"indigente” esquema unilinear progressista - com seu corolário da superioridade
dos Tempos Modernos - e estruturando a história numa pluralidade de grandes

1121
civilizações de condição igual (Spengler fala de “altas culturas"). Elas se seguem
sem se continuarem; cada uma produz seu próprio tipo de humanidade e, em
todos os domínios, inclusive os mais universalizáveis como a ciência, suas
criações específicas. Spengler, de fato, sistematiza e radicaliza a idéia da relativi­
dade dos fenômenos histórico-culturais já enunciada por Herder. Ele postula
uma total descontinuidade histórica que faz aparecer toda filiação ou todo
empréstimo como uma ilusão freqüentemente nociva. As criações culturais,
quaisquer que sejam, exprimem simbolicamente uma imagem do mundo que
nasce e morre com cada cultura. A história é portanto privada de sentido e de
unidade se se excetua uma unidade estrutural residente na forma cíclica das
evoluções históricas. Dessa vez, Spengler leva ao extremo, biologizando-a,
metáfora organicista que os Românticos aplicavam ao povo. As grandes civili­
zações (ele conta oito delas até o presente) são no sentido próprio organismos
vivos percorrendo inexoravelmente fases biológicas: juventude (primavera), ida­
de madura (verão), velhice (outono) e morte (inverno). A morfologia histórica
consiste em comparar as fases “sincrônicas” (em tempo relativo) das diversas
culturas para mostrar suas analogias mas também suas divergências no plano
simbólico.
Apesar do número de aproximações e de erros logo levantados pelos
especialistas, essa síntese fascinava ao mesmo tempo pela riqueza de sua
erudição, pela força sugestiva de suas comparações e pela prenhez de seu
fatalismo biológico-histórico. Mesmo de uma maneira geral as pessoas insur­
gindo-se contra esse prognóstico, o anúncio do declínio do Ocidente parecia
crível já que ele se baseava sobre uma visão global que conseguia integrar dentro
de sua coerência a maioria dos sintomas diagnosticados pelos pensadores
anteriores da decadência. Apoiando-se principalmente sobre a comparação com
a “alta-cultura” antiga, dita “apolínea”, que reúne a Grécia e Roma, Spengler
ensina a seus contemporâneos que depois de ter atravessado a fase ascendente
da "cultura”, que vê a eclosão das grandes religiões, dos grandes sistemas de
pensamento, das grandes expressões estéticas, das grandes formas políticas, sua
“alta-cultura” ocidental, dita faustiana, entrou na fase declinante da “civilização”
caracterizada antes de tudo por um formidável surto quantitativo fundado sobre
as ciências e as técnicas, primícia paradoxal do esgotamento final.
Toda filosofia da história está comprometida na medida em que ela
procura dizer aos homens de onde eles vêm, quem eles são e para onde vão.
A de Spengler o está, sem dúvida, mais do que qualquer outra. Se ela não é
redutível à dimensão política, essa lhe é inerente. Encontram-se nela todos os
temas da crítica conservadora da sociedade tecnicista de massa: crítica do
racionalismo, do materialismo e da massificação. Melhor: a morfologia
spengleriana da história serve de infra-estrutura para uma doutrina política
que faz dele um dos primeiros representantes do pensamento antidemocrático
sob Weimar, um dos pais espirituais do que se conveio chamar de a “Revolução
conservadora”. Essa doutrina é mais precisamente exposta no segundo tomo
de Decadência publicado em 1922 e em um certo número de textos políticos-
satélites da opus magnum, sobretudo Prussianité etsocialisme (1919).

1122
A democracia, nos diz Spengler, é a forma política do declínio. Ela
aparece na articulação da “cultura” com a “civilização" quando a burguesia,
ordem citadina do espírito e da razão, quer substituir o Estado “orgânico”
repousando sobre as ordens primitivas, nobreza, clero e campesinato, por um
Estado teórico fundado sobre o contrato social e submetendo o poder a normas
jurídicas e morais. Além dos elementos retomados de Burke e do romantismo
político, a crítica de Spengler é alimentada pelo nietzscheísmo vulgarizado e
pelo darwinismo social. O que ela reprova sobretudo na democracia é ser um
atentado à própria essência do político identificado nem mais nem menos com
a vontade de poder e com o combate que rege a vida e a história. Derrubando
a fórmula de Clausewitz, Spengler pretende que a política seja apenas a
continuação da guerra por outros meios. Sob sua pena florescem as expressões
estético-orgânico-esportivas. Dentro do campo fechado da história, o Estado
tem como missão manter a nação “em forma”. Trata-se para ele de ter uma boa
"constituição”, menos no sentido jurídico do que no sentido fisiológico do
termo. O erro fundamentai dos ideólogos liberais, representantes do “raciona-
lismo político”, foi de querer construir o Estado do interior referindo-se aos
direitos e às necessidades dos indivíduos. Ora, para responder aos desafios
exteriores, o Estado deve respeitar esses dois critérios: poderio para o exterior,
autoridade para o interior, o segundo sendo a condição do primeiro.
Vê-se como em Spengler a velha teoria do Estado-potência (Machtstaat) é
inclinada para dentro de um sentido vitalista. A seus olhos, o melhor Estado é o
que repousa sobe o poder carismático de um chefe. Legitimidade e legalidade
(para retomar as categorias weberianas) só têm valor relativamente a esse
princípio fundamental. Tudo o que pode entravar o vínculo de obediência direta
entre o chefe e o grupo, e principalmente o discurso humanitário e universalista,
assim como os órgãos representativos da democracia, é definitivamente prejudi­
cial à eficácia do conjunto. É por isso que Spengler, contrariamente aos
românticos e a certos neo-românticos da Revolução conservadora (Othmar
Spann principalmente), não é nostálgico do Estado corporativo. A sociedade
feudal é para ele apenas uma etapa para a idéia verdadeira de Estado que aparece
com a monarquia absoluta. Esse é o regime em que o político informa mais a
política, a forma “cultivada” do poder natural, enquanto a democracia liberal é a
forma de Estado em que a política está mais afastada do político.
Entretanto, dentro de uma atitude ditada por seu fatalismo hi.-,lórico e
bem típica do conservadorismo revolucionário sob Weimar, Spengler sabe bem
que uma volta atrás é impossível. Ele também aconselha a sem, compatriotas
a esvaziar a democracia de sua substância, a utilizarem suas 'iberdades, suas
palavras de ordem, suas instituições, até mesmo suas organi :ações de massa
para estabelecer um regime elitista e autoritário. Desde 1918-1922, indica
assim o caminho para a extrema direita alemã em seu combate contra Weimar.
O cesarismo, do qual profetiza a vinda após a destruição completa pela
democracia das estruturas políticas tradicionais (retomando assim, depois de
outros, a velha tese platônica da democracia como escola de tiranos), deve
restaurar o poder "natural” de um chefe sobre uma massa amorfa de “felás”

1123
que as massas aglutinadas nas grandes cidades modernas prefiguram. Ele é
certamente uma conseqüência do declínio. Mas no final das contas, ele parece
preferível ao sistema frouxo e hipócrita da democracia e como promessa de
restabelecer a potência “em forma” e "em sangue” que logo varrerá os ídolos
do liberalismo, o espírito e o dinheiro, da mesma maneira que a “segunda
religiosidade” tornará definitivamente caduco o racionafismo da civilização já
entrada em uma fase de ceticismo radical.
A morfologia spengleriana da história se mostra convincente quando, ao
anunciar as teses da Dialética da Razão, descreve a tendência constitutiva do
racionalismo à autodestruição e sua perversão como instrumento de domina­
ção universal, assim também quando integra as reflexões sobre a sociedade
tecnicista e a democracia de massa conduzidas no fim do século XIX e no início
do século XX pela Kulturkritik conservadora e teóricos como Pareto, Mosca,
Max Weber, Robert Michels etc. A crítica spengleriana, diga-se de passagem,
evoca a de Marx, na medida em que opera por sua vez uma distinção entre
infra-estrutura e supra-estrutura ideológica. A democracia liberal é apenas uma
fachada por trás da qual agem as verdadeiras forças, as da vida, isso é, a
vontade de poder, mas também as do capitalismo. Para caracterizá-la, Spengler
tem essa fórmula precursora: “O espírito propõe, o dinheiro dispõe.” Dentro
dessa colocação em evidência do caráter muitas vezes formal da democracia,
dentro da denúncia da “plutocracia” que reina sob a capa dos ideais e das
instituições democráticas, dentro da prevenção contra as oligarquias partidá­
rias e contra a manipulação da opinião pública pelos meios de comunicação de
massa {hoje em dia, nos diz Spengler, um democrata autêntico deveria almejar
menos a liberdade de imprensa do que a liberdade com relação à imprensa!),
a crítica spengleriana muitas vezes acerta, antecipando freqüentemente si­
tuações que posteriormente só irão confirmar sua pertinência, como Adorno
bem o notou. O anticapitalismo de Spengler é, porém, tipicamente de direita.
Ele não recoloca de maneira alguma em questão a propriedade privada dos
meios de produção e ataca antes de tudo um capitalismo financeiro inter­
nacional que se arrisca a alienar o poderio nacional, enquanto o capitalismo
de empresas nacionais é considerado como o seu penhor mais seguro (sabe-se
que os nazistas incluem seu programa de 1920 o mesmo gênero de distinção
entre um capitalismo “espoliador” e um capitalismo “criador”).
Pois é exatamente o nacionalismo que fornece a estrutura de base do
pensamento spengleriano. encontra-se sua marca no ideal de autarquia cul­
tural que perpassa sob a tese spengleriana da relatividade geral e integral dos
fenômenos históricos. Pensador anti-humanista, Spengler professa um racismo
culturalista ou psíquico que postula não somente a separação de todas as
culturas, mas também o antagonismo irredutível das nações de uma mesma
cultura. A Decadência do Ocidente procura certamente demonstrar essa
inevitabilidade. Mas esforça-se principalmente em apresentar tal declínio como
a condição da irresistível ascensão da Alemanha. Segundo Spengler, com
efeito, cabe aos alemães erigir o Império que, a exemplo do Império romano
na Antigüidade, constituirá a nota de sustentação final de nossa história. O

1124
paradigma da decadência ao qual se referiram, entre outros, Gibbon e Montes-
quieu, torna-se dessa maneira, na morfologia spengleriana, promessa de assun­
ção imperial. O otimismo nacionalista contrabalança aí incessantemente o
pessimismo cultural e transforma o profético breviário do pessimismo europeu
em nova bíblia do pangermanismo.
Essa inversão de sinais faz-se pelo lado do mito de Fausto. O dinamismo
faustiano que Spengler opõe de maneira categórica demais ao estaticismo ou à
passividade das outras “altas-culturas”, encarnou-se no passar do tempo em
diferentes nações. No estágio da civilização, isso é, da extensão quantitativa e do
imperialismo, cabe ao povo menos gasto do Ocidente - o próprio sistema
histórico de Spengler o impedia de falar de "povos jovens" como Moeller Van
den Bruck - , a saber, o povo alemão, terminar a história. Essa vocação é tão
patente que uma identidade profunda existe entre o prussianismo e o “socialismo
ético” que é o avatar “civilizado", isso é, materialista, da moral faustiana, a versão
imperialista de uma moral imperativa. Prussianismo e socialismo humanitário e
igualitário dos utopistas e dos marxistas, mas de um socialismo “orgânico”, de
um sistema da vontade de poder cuja primeira preocupação é a coesão nacional
e cujo modelo é a organização do tempo de guerra. O socialismo prussiano de
Oswald Spengler, com sua figura central do Funcionário, é um plágio desse
socialismo nacional do qual várias versões circularão sob Weimar e que desem­
bocarão todas, às vésperas da chegada do nacional-socialismo, dentro das teses
jungerianas da Mobilização total e do Estado total do Trabalhador. “Solidarismo
disciplinar”, "socialismo” de comando e de obediência, ele deve fazer da nação
uma máquina de guerra bem azeitada, pronta para empreender sua luta pela
hegemonia, única “internacional” possível.
A doutrina de Spengler ilustra bem a passagem entre conservadorismo e
neoconservadorismo ou conservadorismo revolucionário, ou ainda entre o pes­
simismo cultural que deplora o desaparecimento das formas e dos valores
passados e tenta mais ou menos salvá-los do naufrágio da modernidade e o
“realismo heróico” que, em nome do amor fati, elogia a aceitação resoluta dessa
modernidade de onde vem, no entanto, todos os males. Stricto sensu o conceito
de “revolução conservadora” deveria ser reservado aos pensadores e às correntes
que, porque para eles a tradição é definitivamente obsoleta, não vêem outra saída
além dessa conversão voluntarista à modernidade. Mesmo que toda uma parte
de seu pensamento se enraíze fortemente dentro do pessimismo cultural, Spen­
gler vai mais longe do que muitos dentre eles. Pois não pode tratar-se para ele,
como para Moeller Van den Bruck, de criar novos valores que mereçam ser
conservados ou de achar sob as escórias da história uma tradição primordial que
teria escapado à erosão do tempo. Spengler é o crítico da modernidade que
decreta a futilidade de sua crítica. Pois não há para o homem ocidental qualquer
esperança de renascimento ou de regeneração, nem mesmo dentro desse cesa-
rismo e dessa “segunda religiosidade” que são como um recurso tardio às origens
antes do mergulho dentro da barbárie e do embrutecimento dos estágios
interculturais. Nem “arqueofílico” nem “melhorista” (P. A. Taguieff), esse pensa­
dor frio da decadência que é Spengler afirma que o problema dos valores está

1125
superado e se proclama “homem dos fatos”. Ali onde Nietzsche constata a
ascensão do niilismo mas anuncia também sua possível superação, ele ensina o
imperialismo. Com ele triunfa a razão cínica que não tem mais a opor ao niilismo
do que o culto do poder numa atmosfera de Crepúsculo dos Deuses vivido com
estoicismo, dentro de uma espécie de “consentimento orgulhoso no inevitável”
(Bouveresse). Se há ainda um romantismo em Spengler, é aquele que Julien
Benda descreve em seu Trahison des Clercs (Traição dos clérigos). É um
romantismo da Força e da Morte. Os intelectuais (Sombart, Scheler, Th. Mann
etc.) que formularam o que se conveio chamar de “as idéias de 1914", essa
ideologia de guerra alemã destinada a combater a propaganda das nações
ocidentais, opunham ainda a "cultura" alemã à civilização material e materialista,
superficial e decadente das potências do Acordo. Spengler projeta em diacronia
a antítese cultura/civilização, suprime portanto toda alternativa e profetiza a
morte irremediável da “cultura" para convencer melhor seus compatriotas de
que eles devem se converter à civilização", a suas tarefas quantitativas e realistas,
à sua razão instrumental. Rejeitando as ilusões emolientes da Razão emancipa-
dora, eles devem tornar-se os romanos do Ocidente, cessar de ser um povo de
“pensadores e poetas” para se mudarem em tecnicistas, tecnocratas, funcionários
e soldados, a serviço de uma personalidade de exceção, de um César flamejante
que, em vez de ser o instrumento de uma transmutação dos valores, guarda do
super-homem de Nietzsche uma certa dimensão estética, mas é sobretudo
concebido do modo dos grandes chefes de guerra ou dos grandes capitães de
indústria: “um homem realista de grande estilo”. A esse respeito, nada é mais
sintomático do que a frase que fecha Pessimismo?, o artigo através do qual, em
1921, Spengler se defendeu da censura que lhe tido sido feita muitas e muitas
vezes no decorrer da controvérsia em torno do Decadência. “Nós, alemães, não
produziremos mais um Goethe mas sim um César”. Poder-se-ia interrogar sobre
a função ideológica de tal linguagem que traduz ao mesmo tempo as nostalgias
das classes médias e os votos da grande burguesia capitalista (freqüentada por
Spengler). É preciso em todo caso notar que, mesmo o “César” de 1933 não
tendo correspondido aos desejos de Spengler, essa linguagem, talvez mais
autoritária do que totalitária mas impregnada de darwinismo social e do realismo
mais cínico, contribuiu muito para a “colocação em aceitabilidade” (J. -P. Faye)
ideológica do nazismo. A Decadência do Ocidente toma o lugar, após as obras
de Lagarde, de Langbehn, de H. S. Chamberlain e dos filósofos e pensadores que,
durante a primeira guerra mundial, formularam as “idéias de 1914", dentro da
série das bíblias profanas através das quais o nacionalismo alemão esforçou-se
regularmente para justificar suas metas políticas por meio de um discurso de
ordem científica ou filosófica. Mesmo existindo uma notável diferença de nível
entre o livro de Spengler e as outras obras citadas —e a fortiori com Mein Kampf
ou O mito do século XX, de Rosenberg - , tem-se o direito de ver nela a obra de
um vulgarizador correspondente ao horizonte de expectativa da época, retoman­
do, sistematizando e radicalizando a maioria dos trabalhos banais conservadores
e nacionalistas, senão võlkisch, e testemunhando assim a inclinação da ideologia
alemã para o fascismo hitlerista.

1126
Anos decisivos, 1933

Publicada em agosto de 1933, essa obra desencadeou uma nova controvér­


sia em torno de Spengler. Mas ela foi dessa vez alimentada essencialmente pelos
críticos nazistas, que se esforçavam em refutar as análises pessimistas que
conflitavam com a confiança e o otimismo fixados pelo III Reich nascente. O livro
deve com efeito seu sucesso aos ataques mais ou menos explícitos dirigidos
contra Hitler e seu movimento. Certamente Spengler declara-se satisfeito com o
fato de que a “revolta nacional” tenha posto termo ao regime amaldiçoado de
Weimar. Mas teme que o nacional-socialismo e seu chefe não estejam em
condição de levar a bom termo a “revolução conservadora”. Spengler partilha do
dilema dos conservadores da época que, depois de terem acreditado poder
utilizar o nacional-socialismo como base de massa de sua revolução, perceberam
que não conseguiriam “domesticar” Hitler como esperavam. Por que o nacional-
socialismo não pode satisfazer a tarefa histórica que os alemães esperam? Porque
ele é ainda por demais um partido tradicional, situando-se na linha direta do
liberalismo e do socialismo proletário que ele pretende combater. Comprovam-no
a demagogia desenfreada a que se entrega e, também, sua visão otimista da
história, o III Reich milionário e a felicidade que promete a todos os alemães, a
todas as coisas que perpetuam o messianismo cristão e o eudemonismo pro­
gressista. Ao racismo biológico e anatômico dos nazistas, Spengler opõe sua
concepção ao mesmo tempo vitalista e aristocrática da raça e do “sangue”:
“Qualquer um que fale demais de raça não a tem mais. O importante não é a raça
pura, mas a raça forte que um povo possui em si.” O sentimento de um destino
histórico comum é formador de raça, nos diz Spengler, que rejeita por outro lado
a pretensão do nacional-socialismo de fazer dos alemães um "povo de 80 milhões
de aristocratas” {D. Halévy). Uma nota inédita dessa época esclarece: “Quem diz
raça diz seleção. Raça e Võlksgenosse. Contradição.” O modelo que Spengler
propõe a Hitler é Mussolini, homem de Estado nato, herdeiro dos condottieri da
Renascença, verdadeiro “prussiano” do século XX e prefiguração do César: “O
cesarismo acabado é a ditadura, não a ditadura de um partido, mas a de um
homem contra todos os partidos, principalmente contra seu próprio partido.” O
que Spengler condena no nacional-socialismo é seu conluio com as massas, seu
plebianismo, a oclocracia (poder da massa) que ele instaura na Alemanha e que
faz dela a “prima irmã” do bolchevismo. Como esse último, ele é a finalização
iógica, o último capítuio do movimento democrático. Longe de ser um remédio
para a decadência é apenas uma de suas manifestações entre outras.
Anos decisivos fornece uma das primeiras interpretações conservadoras do
nacional-socialismo e ilustra bem o que separava a concepção conservadora do
Estado forte ou autoritário almejado pelos nacionalistas weimarianos, do Estado
totalitário e demagógico dos nazistas. Mais para um leitor de hoje em dia, o livro
tem ainda um outro interesse. Pois sob o golpe da crise econômica mundial,
Spengler viu na realidade que esses anos eram decisivos não só para a Alemanha
mas também para o Ocidente inteiro. Também a panóplia das teorias explicativas
do Decadência, que Spengler não renega de maneira alguma, apaga-se aqui em

1127
proveito da reformulação da lei histórica segundo a qual as civilizações acabam
de morrer sob os golpes conjugados da revolta das massas e das invasões
bárbaras, da revolução dos debaixo e da revolução dos de fora. Toynbee,
relevando o mesmo fenômeno, fala de aliança entre proletariado interno e
proletariado externo. A respeito da extensão planetária da civilização ocidental
Spengler forja as expressões de "revolução mundial branca" e de “revolução
mundial dos homens de cor”. Ele constata com efeito que, como em todos os
períodos de declínio, o poder e a potência abandonam a pátria original da cultura
para emigrar para territórios limítrofes. Desse modo, no fim do Império Romano,
as províncias tornaram-se mais importantes do que a própria Roma. Da mesma
maneira, em 1930, a velha Europa vê sua hegemonia contestada pelos Estados
novos que cresceram em outros continentes: Estados Unidos, Japão, Rússia
(potência asiática para Spengler!). As antigas colônias emancipam-se e colocam
em causa o imperialismo branco. Desde 1933 Spengler descobre bem a modifi­
cação decisiva dos equilíbrios planetários e algumas de suas fórmulas ainda
guardam hoje em dia todo o seu impacto: "Os povos dominadores da raça branca
não souberam conservar sua posição. Eles negociam hoje enquanto comanda­
vam ontem e deverão adular amanhã.” Da mesma maneira, o que Spengler diz
do desafio econômico ao qual o Ocidente deve responder submetido à concor­
rência de uma mãcxle-obra abundante e barata e condenado por esse fato às
crises e ao desemprego corresponde ainda às preocupações atuais. Mas a
pertinência dessas análises sofre com o darwinismo social e o ódio racial e social
dentro dos quais mergulham. Pois, se o Ocidente tem tanta dificuldade em
resistir à contestação dos homens de cor é também e principalmente, para
Spengler, porque ele está minado em seu interior pela "revolução mundial
branca”, isso é, pela revolução proletária e pelo bolchevismo ascendente ins­
taurado pelos “salários de luxo" dos operários. Esses “salários políticos” (isso é,
não tendo nenhuma justificação econômica) foram arrancados sob a pressão de
lobbies operários que constituem um verdadeiro “capitalismo de baixo". Para
lhes escapar os patrões tiveram de contratar mão-de-obra estrangeira, acres­
centando assim um fator de desestabilização suplementar onde explode o conluio
entre proletariado externo e proletariado interno. Por uma espécie de “flagelan-
tismo” imperdoável, o Ocidente forneceu, além disso, aos povos de cor as armas
de sua contestação, ensinando-lhes as palavras de ordem liberais e a utilização
das ciências e das técnicas. Prisioneiro de seu materialismo agônico e de seu
racismo psíquico, Spengler é incapaz de conceber a emergência de uma civiliza­
ção mundial baseada no intercâmbio. Os "povos de cor” só podem querer o
aniquilamento do Ocidente, do qual são incapazes, no final, de fazer frutificar as
conquistas, mesmo no plano científico e técnico. Os próximos mil anos contem­
plarão com espanto os vestígios dessa magnífica civilização que se expandiu até
os limites do globo, como contemplamos hoje em dia as ruínas das civilizações
passadas. Spengler também propõe as soluções mais reacionárias. E preciso
Voltar atrás nas conquistas sociais, diminuir os salários, aumentar o tempo de
trabalho. E, além disso, é preciso que o Ocidente, sob condução da Prússia-
Alemanha resista, valendo-se do resíduo de força viva, de barbárie primitiva que

1128
pôde conservar sob o refinamento de sua cultura. Os romanos cederam "ao
pacifismo tardio de uma civilização fatigada”. Por uma vez, Spengler desaconse­
lha sua imitação. Lembrando que o homem é um animal de presa, ele chega
mesmo até a promover medidas eugenistas cujo efeito seria no mínimo eliminar
a multidão de degenerados que vêm engrossar o proletariado revolucionário!
Reina, nas últimas páginas de Anos decisivos, uma tal exaltação vitalista e
anti-social que a crítica do nacional-socialismo, a que se opunham o individualis­
mo e o aristocracismo prussiano, só pode encontrar-se enfraquecida. Tranqüili-
zar-nos-íamos pensando que esse clima só faz refletir o pânico da burguesia
nacional alemã —da qual Spengler é aqui evidentemente o porta-voz —diante da
crise de 1930, se estivéssemos absolutamente seguros de que, na história, as
mesmas causas não têm sempre os mesmos efeitos.

• OBRAS PRINCIPAIS DE OSWALD SPENGLER


E d iç õ e s a le m ã s d a s o b ra s p u b lic a d a s q u a n d o o a u to r e ra vivo: D e r U n terg a n g d e s A ben -
d la n d es. U m risse e in e r M o rp h o lo g ie d e r W eltgesch ich te, LI: G e s ta ltu n d W ieklin ch keit, Viena,
1918, depois Munique, Beck, 1918 a partir da 3Sed. (edição revista e corrigida, Munique, Beck,
1923); t II: W ellh islo risch e P ersp e k live n , Munique, Beck, 1923 (ed. completa em I vol.,
Munique, Beck, 1963; ed. em livro de bolso, Deutscher Taschenbuch Verlag (2 ts.), Munique,
1972); P re u B e n tu m u n d S o z la lism u s , Munique, Beck, 1919; D e r M en sch u n d d ie T echn ik,
Munique, Beck, 1931; P o litis c h e S ch riften , Munique, Beck, 1932 (reúne P re u B e n tu m u n d
S o z ia lis m u s e um certo número de escritos políticos publicados em 1924); Ja h re d e r E n ts-
c h e id u n g , Munique, Beck, 1933 (ed. em livro de bolso, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1961).
O b ra s p ó stu m a s : R e d e n u n d A u fs ã tz e (éd. Hildegard Kornhardt), Munique, Beck, 1937;
G ed a n k en (éd. Hildegard Komhardt), Munique, Beck, 1941; B rie fe 1 9 1 3 -1 9 3 6 (éd. A. M.
Koktanek), Munique, Beck, 1963; U rfragen. F ra g m e n te a u s d e m N a c h la B (éd. A M. Koktanek),
Munique, Beck, 1965; F r ü h z e it d e r W eltgesch ich te. F ra g m e n t a u s d e m N a c h la B (éd. A M.
Koktanek), Munique, Beck, 1966.

OBRAS DE SPENGLER (em francês): L e d é clin d e iO c c id e n t, trad. de M. Tazerout, “Bibliothèque


des Idées”, Paris, Callimard, 1948; A n n é e s d écisives, trad. Raia hadekal-Bogdanovitch, Paris,
Copemic, 1980 (Prefácio de Alain de Benoist); E crits h isto riq u es d e t p h ilosoph iqu es. P en sées,
trad. Henri Plard, Paris, Copemic, 1980 (Prefácio de Alain de Benoist); P ru ssia n ité e t so cia lism e,
trad. Ebberhard Cruber, Aries, Actes Sud, 1986 (Prefácio de Gilbert Merlio); L 'hom m e e t la
tech n iq u e, Paris, Callimard, 1958 (tradução de Anatole Petrowsky), publicado na col. “Idées”.

► André Dabezies, Visages d e F a u s ta u X l f siècle. Paris, PUF, 1967 (L’homme faustien d’0swald
Spengler 1’actualité, 1’histoire et le mythe, págs. 124-159); Lucien Fevre, De Spengler à Toynbee:
Quelques philosophies opportunistes de 1’histoire, págs. 5734502, em R evu e d e M étaph isiqu e e t d e
M orale, Paris, 1936; André Fauconnet, Un ph ilo so p h e allem a n d e con tem porain . Paris, Alcan, 925;
Edmond Vermeil, D o c trin a ire s de la R évolu tion allem an de, Paris, Sorlot, 1939; Gilbert Merlio,
O sw a ld S pen gler, tém o in d e so n tem ps, Sttutgart, Heinz, 1982 (2 ts.); Jacques Bouveresse, La
vengeance de Spengler, págs. 371401, em L e te m p s de la réílexion, Paris, Callimard, 1983; Pierre
Vaydat, L’anti-humanisme de Spengler. Une philosophique d’extrême droite, págs. 140-145, em
R ech erch es K a iserreich un D íktatur, Munique, Beck, 1988; Jürgen Nãher, O sw a ld Spen gler,
Hambourg, Rowollt, 1984; Anton Mirko Koktanek, O sw ald S p e n g le r in s e in e r D en ker, Berna,
•Francke, 1958; S p e n g le r heute, Sechs Essays (éd. P. C. Ludz), Munique, Beck, 1980; Theodor W.
Adorno, Spengler nach dem Untergang (1950), págs 51-81, em P rlsm en . K u ltu rk ritik u n d
Gesellschaft, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1976; Georg Lukács, D ie Z erslõ ru n g d e r V em unft,

1129
Berlim, 1954, (cap. consagrado a Spengler); Thomas Mann, Über die Lehre Spengiers (1924), págs.
223-228, em S ch riflen u n d R eden z u r L iteratur, K u n s u n d P h ilo so p h ie /, Fischer, Bücherei,
Frankfurt/Main, 1968; Henry S. Hughes, O sw a ld S pen gler, A c ritic a i estim ate, Londres, Scríbner,
1952; Hugh Larimore Trigg, The im p a c t o f a pessim ist: the recep tio n o f O sw a ld S p e n g le r in
A m erica, 1919-1939, Ann Arbor, Michigan, 1968.

Gilbert MERLIO.

SPINOSA, Baruch, 1632-1677


Tratado político, 1677

O Traité politique (Tratado político) de Spinosa é uma obra de suporte


teórico: alicerce do pensamento político-democrático da Europa moderna. Afir­
mação rigorosa: não se poderia, antes de tudo, reconduzir a uma identidade geral
a idéia moderna de democracia, fundada sobre o conceito de multitudo, e a idéia
antiga de democracia. O fundamento específico e imediato da idéia de democracia
para Spinosa, e muito mais ainda o do conceito de multitudo, é a universalidade
humana. Para os antigos, a liberdade é o atributo apenas dos cidadãos da polis.
Spinosa distingue-se, além disso, de outros pensadores democráticos de sua
época: muitas vezes no pensamento democrático moderno, a idéia de democracia
não é concebida em termos de imediaticidade da expressão política, mas sob a
forma abstrata da transferência de soberania e da alienação do direito natural.
Esposando ao contrário o conceito de democracia e um jusnaturalismo radical e
construtivo, Spinosa elabora um projeto político revolucionário. O Tratado
político é uma obra com raízes fixadas nas condições da modernidade. Seu tecido
problemático é o de uma sociedade de massa dentro da qual os indivíduos são
iguais do ponto de vista do direito e desiguais do ponto de vista do poder. Várias
possibilidades são abertas; Spinosa descreve cada uma delas zelando sempre
para preservar as condições de uma solução de teor democrático. A teoria
atravessa a experiência com realismo, e o projeto democrático que coroa seu
esforço, muito longe de ser utópico, é totalmente adequado às aporias e às
alternativas envolvidas dentro das formas históricas concretas do Estado. Quer-se
muitas vezes ver as origens do pensamento democrático moderno noutro lugar
e não em Spinosa. A retomada sofisticada da tradição antiga pelo humanismo
europeu, as posições teóricas que acompanharam as batalhas da burguesia das
Comunas contra as concepções medievais do poder, a tradição conciliar, certas
correntes progressistas da Reforma, tudo isso produziu sem dúvida alguma
elementos da teoria democrática. Mas Spinosa não se contentou com elementos:
elaborou o pensamento democrático dentro de seu conjunto - e isso no nível da
sociedade capitalista de massa, apesar de ainda liminar.

1130
0 TP é portanto uma obra do futuro, o manifesto de um pensamento
político voltado para um futuro que o século XVH só podia conceber em termos
de formas e de reformas do despotismo; despotismo que Spinosa, figura
anômala de pensador metafísico e político, quebra quanto a ele em termos de
projeto político constitutivo de democracia.O TP faz uma entrada sob todos
aspectos paradoxal dentro da história do pensamento democrático. Em primei­
ro lugar, sua importância é por assim dizer escondida pelas vicissitudes
dolorosas de sua publicação. Redigido de 1675 a 1677, ano da morte de
Spinosa, ele permanece inacabado. Inacabado no sentido de que o texto
publicado em 1677 pelos editores da Opera Posthuma pára no Capítulo XI, no
momento em que devia ser tratado o governo democrático. Os capítulos
precedentes podem ser divididos em duas partes: os capítulos I-V, tratando dos
temas gerais da filosofia política, podem ser considerados como acabados; a
segunda parte é interrompida no momento de abordar o tema da democracia,
enquanto os capítulos precedentes falam longamente das duas formas de
governo: monarquia e aristocracia. A interrupção provocada pela morte sobre­
vêm p o rta n to no momento de abordar o próprio cerne do projeto spinosista.
Por que então afirmar, como acabamos de fazer, que o TP é um texto essencial
à construção da idéia moderna de democracia, visto que ele pára precisamente
no momento de falar dela? Outro paradoxo: os editores acrescentam, à guisa
de prefácio, uma carta “a um amigo” (Carta LXXXIV) na qual Spinosa expõe o
plano da obra. Ele confirma sua intenção de estudar o “popular Imperium”.
Os editores sublinham que ele não estava em estado de acabar seu programa.
Porém, acrescentam imediatamente esse subtítulo: “Tractatus Politicus, in
quo demonstratur, quomodo Societas, ubi Imperium Monarchicum locum
habet, sicut et ea, ubi Optimi imperant, debet institui, ne in Tyrannidem
labatur, et ut Pax, Libertasque civium inviolata maneat". Para um olhar
exterior, o TP pareceria portanto ter um só propósito, justificar filosoficamente
a monarquia e a oligarquia, a exclusão da democracia não sendo tomada como
acidental, mas interna à evolução lógica de Spinosa. No curso dos anos setenta,
em particular por volta de 1672, a crise havia com efeito surpreendido a forma
oligárquica de governo, instituída nos Países-Baixos, e a família de Orange
tinha conquistado uma forte hegemonia no país, e restaurado, com inovações,
as formas tradicionais de governo monárquico. Os editores aproveitaram-se da
falta de conclusão do texto para fins seguramente não-democráticos: ele se
reduziria aos debates então em curso sobre a Oligarquia e a Monarquia e
tomaria partido neste debate. Este é o segundo paradoxo. Ao que é preciso
acrescentar que, na verdade, Spinosa não ficou insensível às recentes modifi­
cações substanciais do clima político e do quadro institucional holandês. Em
1670, ele havia publicado o Tractatus theologico-politicus. Publicação anôni­
ma para escapar à censura e à Inquisição: publicação em latim para limitar sua
circulação aos meios cultos e liberais. A correspondência testemunha sua
hostilidade a toda tradução holandesa. Porém há mais. O TTPhavia despertado
a suspeita, até nos amigos mais próximos de Spinosa, de esconder um
pensamento ateu e até mesmo de ser a conjunção de um republicanismo

1131
radical com um materialismo em estado puro. As polêmicas, as censuras, os
rancores, talvez, haviam marcado muito Spinosa. O TTP aparece imediata­
mente como obra maldita. Seus amigos aconselham Spinosa a retificar a
pontaria e a fixar uma posição legalista em política e tradicional em metafísica.
Nestas condições, fisicamente e juridicamente perigosas, será verdadeiramente
possível que Spinosa, não somente tenha retornado a seu projeto democrático,
mas o tenha levado mais longe ainda na obra política que vem imediatamente
após essas polêmicas? Será verdadeiramente possível que sua recusa desde­
nhosa das críticas e sua reafirmação da legitimidade de seu comportamento,
que preenchiam sua correspondência de então, impeçam toda operação de
retificação e de esclarecimento? Tudo parece portanto concorrer para fazer do
TP uma obra de sinuosidades, e a idéia de uma configuração republicana e
democrática dele é apenas mais paradoxal ainda. Mantemos, no entanto, nossa
posição com obstinação e iremos mostrar por quê. Mas antes de nos empe­
nharmos nos problemas de leitura e de interpretação levantados pelo pensa­
mento político de Spinosa, lembremos não obstante uma anedota. Em 20 de
agosto de 1672, os partidário dos Orange mataram os dois irmãos de Witt,
administradores esclarecidos da oligarquia holandesa, abertos quanto aos
fundamentos a uma revolução republicana e democrática do regime. Ao saber
a notícia desse terrível assassinato, Spinosa teria redigido e tentado publicar
um folheto indignado, começando por essas palavras: “Ultimi barbarorum...
Longe de nós fazer dessa emoção o centro do pensamento político de Spinosa;
todavia esse é um símbolo, um sinal importante.
Para compreender o sentido político do TP, é preciso antes de tudo
definir seu lugar dentro do conjunto da obra de Spinosa. Ele é precedido ao
menos por duas obras, de conteúdo parcial, mas não menos diretamente
políticas: o TTP, composto entre 1665 e 1670, e a Ethique (Ética), obra de toda
uma vida, mas cuja redação final aconteceu certamente entre 1670 e 1675. A
partir do TTP, e principalmente na Ethique, o sistema spinosista procura
liberar-se de certos aspectos emanatistas e de um certo dedutivismo neoplatô-
nico e "renascente”, presentes na primeira metafísica e em particular no Court
Traité e dentro do Traité de la Réforme de VEntendement. Tratava-se de
desenvolver e de transformar os conteúdos de uma ética construída sobre
premissas panteístas e portadoras de um certo entusiasmo ascético, para
passar para uma ética positiva: ética do mundo, ética política. As primeiras
obras são aquelas de uma imediatividade das relações natureza/divindade e
homem/sociedade impedindo a teoria de articular uma mediação precisa com
o concreto e, portanto, de pensar sobre a atividade política. Há mais: no
momento em que a indiferença e a imediaticidade da tradição panteísta são
rompidas, uma dialética positiva se abre dentro da Ethique e do TTP, em
direção ao mundo, à sua superfície, à esfera da possibilidade - no ponto em
que o determinismo causai é conduzindo para o indeterminismo e em que a
física, fundada sobre o impulso para a produção do mundo, é concebida como
a base e a fonte da ampliação do horizonte material e humano. A liberdade do
indivíduo começa a ser definida como potência constitutiva. A potentia, figura

1132
geral do Ser, sustentando a concepção do conatus como impulso de todo ser
para a produção de si mesmo e do mundo, exprifne-se então como cupiditas e
investe de maneira constitutiva no mundo das paixões e das relações históricas.
Este processo, concluído no nível da análise metafísica, é complexo. Acima das
dificuldades, uma linha essencial sobressai: mundanização e positividade
sempre mais radicais do horizonte humano, ético e político. A formação das
hipóteses teóricas do TP é a conclusão desse processo metafísico. É essa
inerência do TP à metafísica que dá seu extraordinário valor de obra não
somente interno ao desenvolvimento do pensamento político europeu, mas
também ao da metafísica européia: obra inovadora dentro dessas duas tra­
dições. Aliás é muito difícil contestar que dentro da história do pensamento
ocidental, e em particular dentro do da burguesia, metafísica e política cons­
truam-se juntas. Muito mais: no curso da gênese e do primeiro desenvolvimen­
to do Estado moderno, é sem dúvida a metafísica que determina, de maneira
absolutamente preponderante, não somente os instrumentos e as categorias
do pensamento político, mas também a sensibilidade e os comportamentos, as
aspirações e os compromissos que fazem parte da parte inteira do pensamento
político. De modo que nenhuma leitura estritamente “especializada” do TP ou
de outros tratados políticos dos séculos XVI, XVII e XVIII possa permitir-se
eliminar a presença do pensamento metafísico e a espécie de quadriculado que
ele impõe ao pensamento político. Na realidade, a verdadeira política moderna,
no decorrer da ascensão da burguesia, é a metafísica - é sobre esse terreno
que devem trabalhar os historiadores do pensamento político... O TP de
Spinosa apresenta, desse ponto de vista, a vantagem de não ser somente o
produto de um desenvolvimento metafísico determinado, mas também um
elemento interno do dito desenvolvimento. É, além disso, o que reconhecem
os grandes comentadores que renovaram os estudos spinosistas nestes últimos
cinqüenta anos. De Wolfson a Guéroult, de Deleuze a Matheron, de Kolakowski
a Macherey passando por Hecker, o trabalho de reconstrução histórica do
desenvolvimento e da unidade do pensamento spinosista alcança um reco­
nhecimento do TP como uma obra que, do interior, coroa a metafísica - que
resulta de certas contradições, que esboça com potência não somente uma
política nova, mas também um quadro metafísico desenvolvido sobre o terreno
do ser prático: “experientia sive praxis".
Permitir-se-á ao velho materialista que eu sou a seguinte observação: se
alguém colocar-se no interior da história do pensamento político europeu, verá
que o TP encarna uma figura particular: figura que, se de um lado se baseia
sobre a utopia humanista da liberdade como princípio de constituição radical,
subtrai por outro lado, e aqui particularmente, o princípio constitutivo da
determinidade das relações de produção que afirmam sua hegemonia dentro
da crise. Ela o subtrai dessa forma das ideologias que representam essas
relações de produção e as relações políticas que decorrem delas, todas voltadas
para o despotismo absolutista. O TP é assim a conclusão de um duplo
encaminhamento filosófico: daquele, especificamente metafísico, que persegue
as determinações do princípio constitutivo do humanismo, para conduzi-lo da

1133
utopia e do misticismo panteísta para uma definição da liberdade como
liberdade constitutiva; e daquele, mais propriamente político, que chega à
definição dessa liberdade como potência de todos os indivíduos, excluindo
dessa forma toda possibilidade de alienação do direito natural (da força social
do princípio constitutivo). O pensamento do TP define-se dessa forma como
pensamento democrático acabado. A ausência dos capítulos sobre a democra­
cia não muda em nada o grande sopro que percorre o texto. Dir-se-ia mesmo
tratar-se de um piscar de olhos nos convidando a medir a enormidade do que
precede: uma política que, na medida em que critica a fundo a mistificação do
princípio constitutivo, é francamente materialista; uma política que, na medida
em que recusa a alienação do direito à vida (e à livre expressão desse direito)
inscrito em todo indivíduo, é francamente antidialética, e se coloca assim fora
das grandes correntes do pensamento político burguês. A democracia teoriza­
da por Spinosa não é uma democracia mistificante das relações de produção e
servindo-lhes de cobertura, ou legitimante das relações políticas existentes; é
uma democracia que baseia uma ação coletiva dentro do desenvolvimento das
potências individuais, que constrói sobre essa base relações políticas e que
libera imediatamente da escravidão das relações de produção. Formando o
mundo, a potência dos indivíduos forma igualmente o mundo social e político.
Nenhuma necessidade de alienar essa potência para construir o coletivo - o
coletivo e o Estado constituem-se no decorrer do desenvolvimento das potên­
cias. A democracia é a fundação do político.
Venhamos ao texto. O TP começa por cinco capítulos definindo o objeto
da política dentro do conjunto da metafísica. O I a capítulo é uma introdução
metodológica dentro da qual Spinosa polemiza contra a filosofia escolástica e,
mais genericamente, contra todas as filosofias que não fazem da trama das
paixões humanas a única realidade efetiva sobre a qual implantar uma análise
política. Existe aí como que uma paráfrase conceituai do livro XV do Príncipe
de Maquiavel. A polêmica volta-se a seguir contra “os Políticos”, contra aqueles
que teorizaram a política a partir da experiência - não que essa não deva
constituir a base exclusiva do pensamento político: mas não basta reconhecer
a “experiência como prática". Observação e descrição não bastam: A prática
humana deve ser passada pelo crivo de um método “seguro e indubitável”
estudando “os efeitos que decorrem de causas determinadas” e captando a
condição humana como uma determinação do ser dinâmico e constitutivo. O
retorno explícito à Ethique é portanto essencial. A referência à dinâmica
constitutiva da coletividade descrita na Ethique permite a Spinosa precisar a
discriminação metodológica aqui operada. Trata-se, nos diz ele, de conceber a
relação entre desenvolvimento das cupiditates (cupidezas) individuais e cons­
tituição da multitudo: esse é o objeto da política, não da moral ou da religião.
Mas esse é também o sujeito da política. E através de um dinâmica autônoma
que a conditio humana torna-se constitutio política; e essa passagem implica,
do ponto de vista dos valores, uma consolidação da libertas em securitas e, do
ponto de vista das dinâmicas do agir, uma mediação entre multitudo e
prudentia: uma forma do governo. Dentro do TTP Spinosa havia escrito:

1134
“Finis reverá Reipublicae libertas est". Ele confirma isso aqui, mostrando
como a liberdade dos indivíduos singulares deve construir a segurança coletiva
e como essa passagem constitui especificamente o político. A autonomia do
político só pode ser constituída pela autonomia de um sujeito coletivo.
Tocamos aqui por excelência em um ponto nodal da metafísica: a separação
potentia/potestas, potência/poder, que havia estado no centro de uma das
batalhas lógicas essenciais da Ethique. Na primeira redação da Ethique, havia
uma diferença entre potestas (capacidade de produzir as coisas) e potentia
(força que as produz em ato). Diferença decorrente da permanência de um
esquema emenatista próprio da primeira metafísica de Spinosa. E o grau de
maturidade sucessivamente atingido pelo materialismo de Spinosa pode ser
medido em relação à necessidade de destruir essa relação dualista de subordi­
nação e de conceber o ser como constituição radical e ativa. O 7Panela o anel.
A relação poder-potência é totalmente invertida: só a potência, constituindo-se,
só a potência da multidão, fazendo-se constituição coletiva, pode fundar um
poder. Poder que não é visto como uma substância, mas como o produto do
processo de constituição coletiva, sempre reaberto pela potência da multitudo.
O ser apresenta-se neste caso como fundação inacabada e como abertura
absoluta. A Ethique é como que completada pelo TP.
O capítulo II do TP parte desse momento metafísico e desenvolve a
liberdade metafísica da potência. Spinosa reenvia imediatamente ao TTP e à
Ethique, e o que foi então construído em torno do conceito de potência deve
ser agora demonstrado apoditicamente - entendamos por “demonstração
apodítica” a auto-exposição do ser. "Já que a potência das coisas naturais, pela
qual elas existem e agem é a potência de Deus em sua plena presença,
compreendemos facilmente o que é o direito natural. Com efeito, já que Deus
possui um direito sobre todas as coisas e que o direito de Deus não passa da
própria potência divina, enquanto é considerada como absolutamente livre,
segue-se daí que cada coisa natural herda da natureza tanto direito quanto ela
tem de potência para existir e para agir: pois a potência de cada coisa natural,
pela qual ela existe e age, é apenas a própria potência de Deus, que é
absolutamente livre.” O direito natural é portanto, neste caso, definido como
expressão da potência e construção da liberdade. Imediatamente. Se a potentia
metafísica havia sido até aqui conatus físico e cupiditates vitais, ela é agora
reinterpretada e concebida como jus naturale. A imediaticidade e a totalidade
dessa função jurídica excluem toda mediação e só admitem deslocamentos
procedendo da dinâmica interna das cupiditates. O cenário social é desse modo
definido em termos de antagonismo; mas esse antagonismo não tende de modo
nenhum a ser resolvido por uma pacificação abstrata ou por uma operação
dialética: só o avanço constitutivo da potência poderá resolvê-lo. “Se dois
homens concordam em unir suas forças, eles são, juntos, mais possantes e,
conseqüentemente, têm mais direito sobre a natureza do que cada um dos dois
separadamente. Quanto mais numerosos eles forem a se unir mais terão direito
todos juntos.” O direito natural dos indivíduos, dado universal, constitui-se
portanto em direito público atravessando o antagonismo social, sem negá-lo

1135
sob uma forma ou outra de conduta transcendental, mas constituindo desloca­
mentos coletivos. É uma física social que é proposta aqui; e não é preciso
principalmente se espantar com a eliminação do Contrato Social (figura
essencial da concepção burguesa do mercado, da sociedade civil e de sua
regulamentação através da transfiguração e da garantia realizadas pelo Es­
tado). Em presença de dificuldades análogas, Spinosa havia introduzido su-
brepticiamente no TTP a idéia de Contrato, esgotada dentro da cultura de seu
tempo. Aqui, ao contrário, o tema do Contrato é eliminado. No Contrato
substitui-se o consenso, o método da individualidade pelo da coletividade. A
multitudo torna-se potência constitutiva. O direito público é a justiça da
multitudo na medida em que os indivíduos percorrem o cenário do antagonis­
mo e organizam coletivamente a necessidade de liberdade.
Em termos contemporâneos, o quadro desenhado aqui é o do Estado
constitucional. E o do “positivismo jurídico”: é o direito público assim cons­
tituído que determina o justo e o injusto, que se reproduzem no legal e no
ilegal. Mas convém ser prudente quando se aplica essa terminologia a Spinosa.
A ciência contemporânea do direito público pressupõe efetivamente a idéia de
uma forma da legitimidade se afirmando através da alienação do direito natural
e a construção de uma transcendência do poder. O positivismo jurídico
torna-se dessa forma apologia de um fonte exclusiva e transcendente de
produção do direito, e o constitucionaiismo dispositivo de divisão dos poderes
e de articulação do controle em torno do mesmo princípio soberano. O
raciocínio spinosista é totalmente diferente, para não dizer ao contrário. A
centralidade do Estado e a eminência da soberania não são pressupostas, não
são dadas antes da lei ou do sistema constitucional —e, sobretudo, não são
separadas do processo de legitimação. Os limites do poder não derivam de
valores estranhos à potência - e principalmente nada de um pretenso “direito
divino”. Elas derivam de um processo continuado de legitimação emanando da
multitudo. A legitimação está enraizada de maneira inalienável dentro da
coletividade; só a potentia coletivamente exprimida, só a criatividade da
multitudo determina a legitimidade. Não há nenhuma espécie de transcen­
dência do valor dentro da filosofia de Spinosa. O constitucionaiismo está
subordinado neste caso ao princípio democrático.
O que foi enunciado positivamente dentro dos dois primeiros capítulos é
retomado de maneira polêmica nos capítulos III e IV, contra os dois pontos
fundamentais do pensamento jusnaturalista e absolutista moderno: as idéias
de transferência transcendental do direito natural e de ilimitação do poder
soberano. Spinosa não pára de repetir: é preciso se liberar dessas ilusões
geradoras de despotismo. Se portanto o poder construído pelo processo
formador da multitudo é absoluto, isso não impede no entanto de estar sempre
submetido ao movimento da comunidade. “O direito do Estado é determinado
pela potência da multidão que é conduzida como por uma só alma”, porém a
ninguém é tirada a possibilidade de conservar sua própria faculdade de
julgamento e de procurar interpretar a lei em nome da razão. O cidadão só é
sujeito dentro da liberdade reorganizada em um Estado racional. Segue-se que

1136
o mecanismo de legitimação do absolutismo é verdadeiramente eliminado.
Soberania e poder são chapados sobre a multidão e sobre os processos de
constituição do Estado a partir dos indivíduos: soberania e poder vão até onde
vai a potência da multitudo organizada. Este limite é orgânico, participa da
natureza ontológica da dinâmica constitutiva. A crítica da ilimitação do poder
é ainda mais forte no capítulo IV. Spinosa chega a enunciar o paradoxo
revolucionário segundo o qual só há verdadeira ilimitação do poder se o
Estado for maciçamente limitado e condicionado pela potência do consenso.
De modo que, inversamente, a ruptura da norma consensual desencadeia
imediatamente a guerra — a ruptura absolutista de um direito civil cons­
titucional é por si mesmo um ato relevante do direito de guerra. “As regras e
os motivos de temor e de respeito que o corpo político deve observar em seu
próprio interesse relacionam-se ao direito natural e não ao direito civil, visto
que é em virtude do direito de guerra e não do direito civil que se pode exigir
seu respeito.” O princípio de legitimidade fundado pelo direito natural pode
ser atribuído ao direito de guerra: a subordinação do direito natural a um
direito soberano ilimitado, a um direito civil promulgado de maneira absolutis­
ta, tem como conseqüência a guerra. Já que a paz, a segurança e a liberdade
só podem proceder da unidade continuada do exercício do poder e do processo
de formação da legitimidade. Não há gênese jurídica, só há uma genealogia
democrática do poder.
O capítulo V fecha a primeira parte do TP. Spinosa examina neste
capítulo um outro conceito essencial da teoria do direito natural: a idéia de
“melhor Estado” — mas para fazê-lo desempenhar uma vez mais um papel
subordinado, para transformá-lo incluindo-o em sua concepção da potência.
Daquilo que se viu anteriormente, decorre que o melhor Estado será simples­
mente aquele em que se poderá inscrever a expansão máxima do movimento
das liberdades, do movimento de organização coletiva das cupiditates. Longe
de toda utopia: o melhor dos Estados não pode seguramente subtrair-se dos
processos concretos de organização da multitudo. Longe de toda ilusão: o
Estado não poderia passar por um produto perfeito, o direito civil e as fileiras
da legitimação estão sempre sob ameaça de uma interrupção possível do
processo constitutivo e de sua substituição pelo direito de guerra, pela
reafirmação da independência conflituai das liberdades individuais inaliená­
veis. Não foi a troco de nada que a primeira parte do TP terminou como havia
começado: por um elogio de Maquiavel concebido, com o realismo extremo que
o caracteriza, como o defensor de um programa de liberdade. "Tantum juris
quantum potentiae”: os cinco primeiros capítulos do TP e, em particular, sua
conclusão podem ser considerados como um comentário desse adágio metafí­
sico. Retira-se deles:
a) uma concepção do Estado recusando absolutamente toda transcen­
dência e excluindo todas as teorias, presentes ou futuras (de Hobbes a
Rousseau), fundadas sobre a transcendência do poder; b) uma determinação
do político como função subordinada à potência social da multitudo; c) uma
concepção da organização constitucional como necessariamente movida pelo

1137
antagonismo dos sujeitos. Spinosa, anomalia singular, opõe-se dessa forma às
tendências hegemônicas de seu tempo, tanto em política como já em metafísica.
Em política, ele exige uma presença ativa dos sujeitos contra toda autonomia
do político, restituindo inteiramente a política à prática constitutiva humana.
A crítica spinosista do absolutismo e do fundamento jurídico do Estado se
mostra aqui capaz de estar à frente de seu tempo; ela merece ser religada às
perspectivas do pensamento democrático mais conseqüente. Destruição de
toda autonomia do político, afirmação da autonomia das necessidades coletivas
das massas: essa é, longe de toda utopia, a extraordinária modernidade da
constituição política do mundo segundo Spinosa.
Os cinco capítulos seguintes analisam as formas monárquica (caps. VI e
VII) e aristocrática (caps. VIII-X) de governo. A obra é interrompida no capítulo
XI, no começo da análise do governo democrático. Esta segunda parte é mesmo
duplamente inacabada: é plena de ambigüidades e de incertezas, totalmente
não habituais neste autor.
Os capítulos sobre a monarquia têm uma estrutura incerta. O capitulo
VI aborda de novo os princípios estruturais da constituição, para passar em
seguida a uma descrição do regime monárquico; no capitulo VII, o autor tenta
demonstrar o que acaba de enunciar. Apesar de não estar completa, a conduta
é importante, pois ela testemunha uma maneira nova, realista, de considerar o
governo monárquico, após os anátemas lançados contra ele no TTP. Assistimos
portanto de novo ao desenvolvimento constitutivo da multitudo —o antagonis-
mo-motor sendo neste caso, especificamente, o “medo da solidão”. No estado
natural, são o medo e a solidão que dominam - daí o "desejo” de segurança
dentro da multidão. A passagem para a sociedade representa não uma cessão
de direitos, mas um passo à frente, um enriquecimento do Ser: passagem da
solidão para a multidão, para a socialidade que, em si e por si, suprime o medo.
É o caminho real exposto nos capítulos mais propriamente metafísicos e que
deveria prosseguir sem flexão. “Mas a experiência parece bem ensinar a
remeter, no interesse da paz e da concórdia, todo o poder a um só homem.” A
contradição está portanto in re ipsa (na própria coisa). Mas, uma vez relevada
a contradição entre a gênese da forma monárquica e os pressupostos do
processo constitutivo, é possível sublinhar que Spinosa percebe justamente a
realidade histórica como contraditória com o fundamento ontológico. Daí uma
busca contínua de coerência sistemática, um esforço contínuo para atenuar a
tensão contraditória. Se portanto o TTP recusava firmemente a monarquia,
Spinosa acrescenta aqui que sua forma preferida é a forma “moderada”. E por
moderação é preciso que se entenda uma relação bem determinada entre poder
monárquico e direitos inalienáveis dos cidadãos, entre exercício do poder e
representação do consenso, entre vontade real e princípios fundamentais da
constituição. “Os reis realmente não são deuses: são homens e deixam-se
freqüentemente seduzir pelo canto das sereias. Portanto, se tudo dependesse
da vontade variável de um só, não haveria nada durável. O Estado monárquico
deve, para permanecer estável, estabelecer-se assim: tudo é feito apenas por
decreto do rei; mas toda vontade do rei não será assemelhada ao direito.” O

1138
absolutismo da época é portanto firmemente rejeitado e a própria forma
monárquica só é aceita estando subordinada, de maneira dinâmica, ao confron­
to mediação-encontro entre potências diferentes. Aceitação realista do presente
histórico, mas submetido ao programa ontológico. A monarquia é um fato: a
análise a toma como tal; mas ela começa por negar seu absolutismo; ela lhe
impõe em seguida o horizonte da moderação, depois a desarticula dentro da
relação constitucional dos poderes, para submetê-la enfim ao movimento
constitutivo da multitudo. Se existe efetivamente contradições, é preciso
contudo reconhecer que tal conduta chega a desestabilizar profundamente a
categoria de monarquia.
Quando ele aborda, nos capítulos VIII, IX e X, a questão da aristocracia,
adota o mesmo gênero de método. Após reafirmado que “com efeito o poder
absoluto, se existe, é verdadeiramente aquele que a multidão inteira detém” e
que se o governo não for absoluto, mas exercido por uma parte dos homens,
pela oligarquia aristocrática, isso engendrará um antagonismo contínuo entre
governo e sociedade, conclui que o governo aristocrático “será o melhor se for
estabelecido de maneira a reaproximar-se ao máximo do poder absoluto”. O
que quer dizer que o governo aristocrático, mais ainda do que o governo
monárquico, é forçado a respeitar o consenso social e a estabelecer formas de
constituição e de funcionamento do “conselho” (forma por excelência desse
tipo de governo) que se aproximam sempre cada vez mais do governo absoluto.
Spinosa redige então uma coleção de exemplos de formas aristocráticas de
governo (a falta de acabamento do TP é particularmente evidente neste caso,
o conjunto é muito confuso), com a meta de resolver o seguinte problema:
como apreciar, do ponto de vista das dinâmicas constitutivas da multitudo, os
processos de produção (ou de legitimação) e os critérios de gestão (ou de
exercício) do poder?
É inútil esconder: há nestes capítulos um hiato entre o papel metafísico
desempenhado pela noção de "governo absoluto” e pela idéia-chave de mul­
titudo e o conteúdo analítico e experimental exposto. E é claro que só o
capítulo sobre a democracia teria podido equilibrar determinação ontológica e
determinações históricas. Mas o texto pára neste ponto. Inútil perder-se em
conjecturas. Pode-se simplesmente acrescentar que esses limites mesmos
colocam em evidência a importância do pensamento político desse autor. A
falta de conclusão do TP não é manifestamente estrutural; estruturalmente, o
TP arremata a fundação spinozista de uma concepção do ser como produto da
potência: ele chega a uma exaltação implícita e exemplar do governo absoluto
da multidão exprimindo-se como liberdade organizada dentro da segurança.
Obra profundamente democrática, havíamos dito: e a ausência do capítulo
sobre a democracia não a altera em nada neste caso.
Um último ponto. Se ligamos o TP ao desenvolvimento do pensamento
metafísico de Spinosa, falamos pouco do desenvolvimento de seu pensamen­
to político (afora algumas observações sobre as diferenças mais gritantes
entre TP e TTP). Convém portanto lembrar que no TTP, escrito entre 1665
e 1670, Spinosa fixa para si três objetivos: combater “os preconceitos dos

1139
teólogos”; destruir “a opinião que tem de mim o povo, que não pára de me
acusar de ateísmo”; e “defender por todos os meios a liberdade de pensamen­
to e de falar, que a autoridade grande demais deixada aos pregadores e seu
ciúme ameaçam suprimir”. Esta defesa da liberdade organiza-se através da
construção de uma história natural do povo hebreu e da crítica da imagina­
ção profética e da revelação apostólica, com a finalidade de estabelecer as
premissas e as condições da sociedade política. Princípios expostos essencial­
mente nos capítulos XVI-XX: derrubando toda a tradição, Spinosa expõe
nesses capítulos, pela primeira vez, a teoria do "poder absoluto” como
democracia. Democracia que pressupõe portanto a crítica de todas as formas
de superstitio, do papel mistificador de toda religião positiva. Democracia
como desenvolvimento do direito natural que pertence a todo indivíduo
enquanto expressão de sua potência, e que não pode em nenhum caso ser
alienada - democracia como construção de uma comunidade de homens
livres, visando não somente eliminar o medo, mas também constituir uma
forma superior de liberdade. Desse ponto de vista, o TTP não é portanto
apenas uma premissa do TP, ele parece mesmo constituir sua conclusão,
acrescentar a esse a parte que lhe falta. A conclusão do TTP poderia portanto
constituir a alma da parte que falta no TP sobre a democracia: "Dos
fundamentos do Estado tal como havíamos exposto acima, resulta, com a
última evidência, que seu fim último não é a dominação; não é para segurar
o homem pelo temor e fazer com que ele pertença a um outro que o Estado
é instituído; ao contrário, é para liberar o indivíduo do temor, para que ele
viva tanto quanto possível em segurança, isto é, para que ele conserve, tanto
quanto se possa, sem danos para os outros, seu direito natural de existir e
de agir. Não, eu repito, a finalidade do Estado não é a de fazer os homens
passarem da condição de seres racionais para a de bestas brutas ou de
autômatos, mas ele é, ao contrário, instituído para que suas almas e seus
corpos executem em segurança todas suas funções, para que eles próprios
não usem mais de ódio, de cólera ou de astúcia, para que eles se suportem
sem malquerença uns aos outros. A finalidade do Estado é, portanto, em
conclusão, a liberdade." O TP virá algumas vezes contradizer o TTP, mas o
inverso não considera o seguinte ponto: nas partes da Ethique provavel­
mente escritas entre 1670 e 1675 - entre a conclusão do TTP e o começo
da redação do TP - o problema essencial examinado por Spinosa, em seu
trabalho de reformulação da teoria das paixões, é sem dúvida o da socializa­
ção dos afetos. Há aí como que uma correção da rigidez excessiva do
jusnaturalismo do TTP, do individualismo de sua concepção do contrato e
de suas aporias ontológicas; e há também como que uma clara antecipação
da perfeição do método constitutivo utilizado no TP. Podemos portanto falar
de uma coerência absoluta do trabalho teórico de Spinosa. Da imediaticidade
utópica da filosofia de juventude da grande virada do TTP até a última
redação da Ethique e depois o TP, Spinosa constrói uma teoria política
democrática elaborando sem descanso suas condições e seus instrumentos
metafísicos: “Da utopia à ciência”.

1140
Se a sorte do TP dentro do pensamento político do século XVII, das Luzes
e do primeiro romantismo, é a de um livro maldito, é por causa de sua
radicalidade e de sua capacidade de retomada do conjunto da metafísica spinosis-
ta. Tem-se muitas vezes assinalado a influência escondida do TP. influência que,
tratando-se de um livro a não ser citado, foi traduzida muitas vezes paradoxal­
mente, por puros plágios. Mas o que nos interessa neste caso, é o trabalho
realizado pela metafísica spinosista, dentro de sua vertente política, no decorrer
dos séculos de formação e de triunfo do Estado absoluto da burguesia nascente.
Trata-se, segundo nós, de um trabalho de desmistificação, indicando o caminho
de uma alternativa revolucionária. As condições excepcionais de um desenvolvi­
mento da produção e de uma história política livres nos Países-Baixos permitindo
a Spinosa medir a intensidade da crise do pensamento humanista e progressista
que impressiona todas as grandes nações européias durante a primeira metade
do século XVII. A passagem para o absoiutismo na França e na Inglaterra, o
reforço das estruturas centrais na Espanha e no império Austríaco, a destruição
do grande tecido das liberdades comunais na Itália e a catastrófica Guerra dos
Trinta Anos na Alemanha: esse é o pano de fundo da última batalha humanista
e democrática, visando preservar a liberdade das forças produtivas da colocação
de uma nova forma hierárquica da exploração dentro da relação de produção.
Spinosa, figura anômala de pensador político, escreve o TP nos anos setenta,
dentro de um país em que a resistência à restrição absolutista foi mais longa e
mais encarniçada do que em outros lugares: podia então considerar essa batalha
como acabada e constatar a adequação dos grandes pensamentos políticos no
desenvolvimento do Estado absolutista. Triunfo do Direito natural, introdução
de um individualismo adequado às novas exigências de produção e permitindo
legitimar teoricamente o Estado absoluto pelo mecanismo contratual da transfe­
rência de soberania: eis o essencial. Spinosa, figura do antagonismo, não aceita
isso. Seu pensamento político atravessa o Direito natural para negar seus dois
fundamentos essenciais: o individualismo e o contrato. Negando por princípio
toda possibilidade de regulação do mercado entre os homens por elementos
transcendentes, ele introduz o ateísmo em política. O homem não tem outro
mestre senão ele mesmo. Recusa de toda alienação: da concepção reacionária de
Hobbes à idéia utópica de vontade geral. "Quanto à política, a diferença essencial
entre mim e Hobbes consiste em que eu mantenho sempre o direito natural e só
concedo, dentro de uma cidade, direito ao soberano sobre os súditos na medida
em que, por nascimento, ele leva vantagem sobre eles. É a continuação do estado
natural.” Materialidade da existência e de seu direito, acompanhada pela afirma­
ção intransigente de que por um trabalho comum e igual, uma sociedade livre
pode ser construída, organizada e preservada: esse é o objeto de escândalo
permanente para o pensamento político hegemônico, que nunca chegou a
desunir formação da sociedade e determinação de sua hierarquia, construção e
transcendentalidade normativa da legitimidade. Este ateísmo pleno, esse materia-
lismo operatório, só os reencontramos em Maquiavel e em Marx: com Spinosa,
eles constituem o único pensamento político de liberdade da época moderna e
contemporânea.

1141
• O p e ra p o sth u m a , q u o ru m se r ie s p o s t p ra e fa tio n e m ex h ibetu r, 1677; D e N a g e la te n S ch rif-
ten , 1677; O p era q u o tq u o t re p e rta su n t. R e co g n o ve ru n t, J. Van Vloten e J. P. Land, Hagae
Comitum, apud Martinum Nijhoff, 1822-1883; O pera. Im A u ftra g d e r H e lJ e lb e rg e r A k a d e m le
d e r W issen sch a ften , herausgegeben von Carl Cebhardt, Winters Universitãts Buchhandlung,
1924-1926; T he P o litlc a l Works, cd. por A. G. Wernham, Oxford, At the Claredon Press, 1958;
O e u v re s c o m p lè te s, por Robert Caillois, Madeleine Francês e Robert Misrahi, Paris, La Pléiade,
1954; T ra ité p o litlq u e , ed. por Sylvain Zac, Paris, Vrin, 1968.

► I n te rp r e ta ç õ e s g e ra is da ob ra d e S p in o sa . - S. Zac, L ’ld é e de la v ie d a n s la p h ilo so p h ie d e


S p in o za , Paris, 1963; M. Cuéroult, S p in o za , vol. I, D le u (E th iq u e I), Paris, 1968, vol. 2, L ’ú m e
(E th lq u e 2), Paris, 1974; G. Deleuze, S p in o z a e t le p r o b lè m e d e V expression , Paris, 1968; A.
Matheron, In d lv id u e t C o m m u n a u té c h e z S p in o za , Paris, 1969; Idem, L e C h rist e t le s a lu t d e s
ig n o ra n ts c h e z S p in o z a , Paris, 1971; P. Macherey, H e g e l o u S p in o z a , Paris, 1979; A. Negri,
L 'A n o m a lie sa u va g e. P u issa n c e e t p o u v o ir c h e z S p in o z a , Paris, 1982. (Porém ver J. Préposiet,
B ib lio g ra p h ie sp in o z is te , Besançon-Paris, 1973.)
Obras sobre o pensamento político de Spinoza. - N. Altwícker, T exte z u r G esch ich te d e s
Darmstadt, 1971 (com textos de S. von Dunin-Borkowski, W. Eckstein, L. Strauss,
S p ln o zism u s,
etc.); C. E. Vaughan, H is to r y o f p o litlc a lp h ilo s o p h y b e fo re a n d a fle r R o u sse a u , vol. I, Londres,
1925; L. Strauss, S p in o z a 's c ritiq u e o f re lig io n (1930), Nova York, 1965; Idem, D r o it n a tu re l
e t H isto ire, Paris; K. Hecker, G esellsch a ftlich e W irk lich k eit u n d V ern u n ft in S p in o z a , Re-
gensburg, 1975; L. Mugnier-Pollet, L a P h ilo s o p h ie p o litlq u e d e S p in o z a , Paris, 1976.
Alguns textos sobre as fontes e a sorte históricas da filosofia política de Espinosa. — A.
Thalheimer-E. Deborin, S p in o z a s S le llu n g in d e r V orgesch ite d e s d ia le k tis c h e n M ateria lism u s,
Viena-Berlim, 1928; H. A Wolfson, The p h ilo s o p h y o f S p in o za , Cambridge, Mass., 1934; M.
Francês, S p in o z a d a n s le p a y s n é e rla n d a is d e la se c o n d e m o it i í d u X V I I f s i è c l e , Paris, 1937;
Idem, Les reminiscences spinozistes dans le C o n tra so c ia l de Rousseau, R e vu e p h ilo so p h lq u e,
141,1951; G. Solari, S tu d i s to r ic i d i filo so fía d e i d iritto , Turim, 1949; Turim, 1949; G. L. Kline,
S p in o z a in S o v ie t P h ilo so p h y , Londres, 1952; P. Vernière, S p in o z a e t la p e n s é e fra n ça ise
a v a n t la R é vo lu tio n , vol. 2, Paris, 1954; A. Ravà, S tu d i s u S p in o z a e F ich te, Milão, 1958; L.
Kolakowski, C h r é tie n s s a n s E gllse. L a c o n sc ie n c e re lig ie u se e t le lie n c o n fe s s io n n e l a u X V f
siè cle. Paris, 1969.

A n t p n i o NEGRI.

Traduzido do italiano por François Matheron.

STALIN (Joseph Vissarionóvitch DJUGÁCHVILI)- 1879-1953


O marxismo e a questão nacional e colonial, 1913

O movimento operário europeu conheceu nos anos anteriores à Primei­


ra Guerra Mundial uma dupla orientação. De grupinhos centrados sobre as
disputas ideológicas ele se amplia para grande organização de massa que se

1142
torna elemento decisivo da vida política das sociedades. Mas a mutação é
também geográfica. O movimento operário, nascido nos velhos Estados-
nações consolidados da Europa Ocidental, estende-se rapidamente para a
parte oriental do continente onde, no âmbito dos Estados, coexistem ou
opõem-se múltiplas nacionalidades, onde os sentimentos nacionais des­
pertam e abrem um difícil caminho para si nos combates políticos. A
social-democracia deve enfrentar as conseqüências dessa transformação do
terreno em que ela se implanta, e o tema nacional, por muito tempo
ignorado, conduz, dentro dos impérios multiétnicos —Império austro-húnga-
ro, Império russo - a um debate apaixonado. Quais devem ser as relações
entre movimento operário e movimento nacional na hora em que a expansão
do capitalismo dentro da parte mais atrasada da Europa conduz a imensas
perturbações, aumentando as oportunidades de sucesso do movimento
operário? Esse debate não concerne a todo o socialismo internacional, é
assunto dos partidos que são confrontados com as aspirações dos grupos
nacionais dentro do quadro de seus próprios países. É por isso que alguns
nomes manifestam-se, nomes daqueles que se esforçam em pesar a importân­
cia respectiva das duas correntes, as conseqüências políticas das reivindi­
cações nacionais, as conclusões estratégicas a serem tiradas. Rosa Lu­
xemburgo (Luxemburgo, 1896-1908), não obstante estar muito consciente
da gravidade do debate, afirma que não compete ao movimento operário
resolvê-lo. Muito pelo contrário, Karl Kautsky (Kautsky, 1907-1908) sustenta
que a social-democracia não pode ignorar o problema e deve elaborar um
"política ofensiva” sobre esse plano. Mais precisa ainda é a análise de Otto
Bauer (Bauer, 1907). Refletindo dentro do quadro do Império austro-húnga-
ro sobre os meios de preservar o movimento operário das contradições
nacionais, também sobre os meios de levar a seu termo a evolução social e
econômica da dupla monarquia, Otto Bauer conclui pela importância do fato
nacional, pela necessidade para o movimento operário de traçar-lhe um
caminho que associe as duas correntes em vez de apô-las, e propõe a solução
da autonomia cultural no âmbito dos Estados existentes.
Ao debate de idéias, ainda hesitante, que opõe R.Luxemburgo e Kautsky,
ao esforço de reflexão de Otto Bauer, a sociaWemocracia russa, e primeiro
Lênin, opõe uma percepção estratégica do problema. Para Lênin, a questão
nacional reduz-se a dois imperativos concretos: salvar a unidade do Partido das
divisões nacionais — o Bund, ou ainda os sociais-democratas do Cáucaso
pleiteiam então uma organização nacional do Partido; inscrever uma solução
para o problema nacional dentro do programa do Partido. Lênin, rejeita, por
nativos íntimos, as proposições de autonomia cultural de Otto Bauer; rejeita
também, por motivos estratégicos, a recusa de R. Luxemburgo em introduzir
o problema nacional dentro do programa do movimento operário (Luxembur­
go, 1904-1905, págs. 643-646). Confrontado na Rússia com a influência
crescente das idéias de Otto Bauer, Lênin decide em 1912 lançar contra os
partidários da autonomia nacional-cultural um ataque devastador. Ele confia o
encargo a um jovem georgiano, acabado de chegar a Cracóvia, Djugáchvili, que

1143
se vai tornar conhecido sob o nome de Stalin. A escolha de Stalin deve-se às
suas próprias posições - desde 1904 ele combateu no Cáucaso as teses
“autonomistas" dos sociais-democratas, como Noé Jordânia; ela se deve tam­
bém ao desejo de Lênin de utilizar um “nacional” para combater posições
“nacionalistas”. A tarefa destinada a Stalin torna-se precisa. Ele deve escrever
um panfleto destruindo as teses austríacas, partindo dos próprios textos
austríacos (Lênin, fevereiro de 1913, págs. 160-163). O produto desse trabalho,
ao qual Stalin consagra-se quando de sua estada em Viena em janeiro de 1913,
é um texto publicado nos nas 3,4 e 5 da revista Prosvechtchenie do curso do
mesmo ano sob o título .4 questão nacional e a social-democrata (Stalin, 1913)
e que, ligeiramente recomposto —conteúdo e título - , reaparecerá no ano
seguinte em brochura em São Petersburgo.
O estudo de Stalin está longe de ser o simples panfleto esperado por
Lênin. A primeira parte é, com efeito, uma introdução teórica em que se situa
sua contribuição mais original, mais durável para a reflexão e a prática
marxista em matéria nacional. Ao definir a nação, Stalin olhou ao mesmo
tempo em direção a Otto Bauer e a Kautsky, rejeitando a aproximação do
primeiro e apoiando a reflexão do segundo. Para Otto Bauer, a nação define-se
pela comunidade de cultura e de caráter. Para Kautsky, trata-se de um
fenômeno moderno (Kautsky, 1887, págs.442 e segs.) ligado ao desenvolvimen­
to de grandes territórios econômicos na época do capitalismo. Língua nacional
e território comum são elementos característicos da nação. Dentro da definição
de nação que ele propõe, Stalin adota a perspectiva de Kautsky para contentar
a aproximação psicológica de Bauer e, no entanto, retém também seu critério
decisivo, “a comunidade da formação psíquica". Para Stalin, e toca-se aqui no
essencial de sua contribuição para o debate, pode-se dessa forma definir todos
os critérios que caracterizam a nação: “a nação é uma comunidade humana,
estável, historicamente constituída, nascida sobre a base de uma comunidade
de língua, de território, de vida econômica e de formação psíquica que se
traduz dentro de uma comunidade de cultura” (Stalin, 1913, pág. 317).
Todos esses critérios constituem os elementos indissociáveis que atestam
a existência da nação; “basta que só dentre eles falte para que a nação cesse
de ser nação.”
Vê-se aqui a reflexão de Stalin tem de complexa. Sem dúvida, como fiel
discípulo de Lênin ele se dedica a relativizar o fato nacional, a situá-lo dentro
da história das sociedades humanas. “A nação não é, sublinha ele, uma
categoria histórica permanente, ela é o produto de uma época determinada,
a época do capitalismo ascendente”; “ela tem sua história, um começo a um
fim”. Como Kautsky, do qual Lênin está tão próximo, Stalin coloca à frente,
dentro da mesma ordem, os fatores que o capitalismo desenvolveu: língua,
território, vida econômica. Mais além, o raciocínio staliniano descarta-se do
caminho seguido por Kautsky e Lênin, para penetrar naquele que Bauer
havia explorado. “A comunidade de formação psíquica” que a se exprime
dentro da “originalidade da cultura comum à nação”, o “caráter nacional”,
mesmo quando eles não são condensados, “marcam com seu sinal a fisiono-

1144
mia da nação” e, por isso mesmo, transcendem as etapas do desenvolvimento
econômico e social. A fórmula é próxima da de Bauer para quem “a nação é
o conjunto dos homens ligados por uma comunidade de destino em uma
comunidade de caráter” (Bauer, 1907, pág, 113). Sem dúvida, o resto da
brochura de Stalin está mais de acordo com o desígnio que lhe destinava
Lênin. Após ter definido a nação, feita obra teórica, Stalin volta-se apara sua
tarefa polêmica e ataca com força o austromarxismo e seu conceito de
autonomia nacional<ultural desenvolvida por Springer (1918, pág, 194) e
por Bauer. Denunciando as “inconsistências” e erros acumulados dentro do
raciocínio austromarxista (com relação aos judeus por exemplo, Otto Bauer
“confunde a nação, categoria histórica, com a tribo, categoria etnográfica”),
Stalin faz-se acusador. A autononomia nacional-cultural não é outra coisa
senão o nacionalismo disfarçado. Perverso, esse tema é também ridicula­
mente obsoleto em um tempo em que, segundo a predição de Marx, escreve
Stalin, as barreiras nacionais desmoronam-se sob o impulso das solidarie-
dades de classe. Stalin Esclarece ainda que a social-democracia não está
encarregada da sorte das nações, mas da luta das classes. Ela não pode
aceitar ser enfraquecida pelas reivindicações nacionais. Com certeza, auto­
nomia cultural e direito à autodeterminação (esse último princípio estando
inscrito dentro do programa do Partido social-democrata operário russo) não
estão em oposição. A solução concreta para a Rússia, segundo Stalin, passa
por uma visão dos problemas: as minorias poderão ser organizadas sobre
uma base de autonomia regional acompanhada de direitos culturais. O
princípio territorial, como quadro da autonomia é decisivo. Mas a classe
operária, ela deve ser organizada segundo um princípio unitário. A social-de-
mocrácia pode desse modo reconciliar a exigência de sua luta própria e as
aspirações legítimas das nações.
O texto de Stalin coloca múltiplos problemas. Antes de tudo o da
coerência intelectual e política. De fato, o projeto de panfleto proposto por
Lênin dividiu-se em dois: ensaio teórico visando esclarecer o debate sobre a
nação e máquina de guerra contra o austromarxismo. Apesar da divisão prática
do texto em duas partes distintas, o conjunto sofre com a oposição entre dois
projetos difíceis de conciliar. Ao teorizar a nação, Stalin enfatiza sua importân­
cia, mesmo para a social-democracia. Ao polemizar em seguida com o aus­
tromarxismo, afirmando que a social-democracia não deve incomodar-se com
esse problema, Stalin contradiz-se evidentemente. A social-democracia poderá
relativizar a esse ponto uma categoria histórica, da qual ele acabou de mostrar
a importância dentro da história das sociedades humanas? Mas a dificuldade
está no próprio cerne de sua concepção da nação. Stalin refletiu longamente,
por sua conta, e além dos desejos de Lênin - sobre os autores que leu e
integrou suas reflexões dentro de seu esforço teórico. Três obras o marcaram
particularmente, as de Kautsky e Bauer, já citadas, e a reflexão de V. Medem
sobre o caso preciso da Rússia (Medem, 1906 e 1912). De suas diferentes
hipóteses, ele elaborou uma construção que pede emprestado por toda parte
e que tem como última instância sua própria coerência. Ao lê-lo bem, constata-

1145
se a marca profunda do austromarxismo que ele combate noutro lugar e que
foi central os debates ideológicos no Cáucaso, onde Stalin trabalhou por tanto
tempo. A nação, para Stalin, é uma realidade que se tira do mais profundo das
consciências humanas. Para permanecer fiel ao marxismo, ele introduz cons­
tantemente a noção da mudança sócio-econômica. Mas ele não chega por isso
a apagar as conseqüências de uma aproximação cultural. O pano de fundo de
um Cáucaso multicultural, nas tradições muito antigas orgulhosamente reivin­
dicadas, não é provavelmente estranha à sua concepção. E o esforço teórico
que ele realiza testemunha a importância da nação a seus olhos e sua
incapacidade em reduzí-la a um simples dado estratégico. A coerência do
raciocínio staliniano está justamente dentro esforço realizado para dar conta
de um terreno cultural infinitamente complexo e reconciliá-lo com a apro­
ximação econõmico-sociológica marxista. Uma segunda questão concerne à
originalidade da contribuição de Stalin. Trotski (1941 e 1967, págs. 156-158)
e depois dele numerosos autores, como Souvarin (1985, pág. 131), Wolfe (1948,
págs 578-581), Deutscher (1966, pág. 54) afirmam que Lênin inspirou a
totalidade do texto e que Stalin foi um simples escriba. A hipótese inversa
sustentada por R. Pipes (1968, págs. 40-41) ou R. McNeal ((1967, págs. 4344)
reflete, sem dúvida nenhuma, muito exatamente a realidade. O estilo, o modo
de trabalhar - Stalin apropria-se constantemente das idéias e frases de outrem,
omite citações, deforma ocasionalmente,o que conduzirá Lênin a retificá-lo-, o
dogmatismo e a rigidez do texto levam bem a marca do autor. O julgamento
de Lênin sobre esse texto merece também que se detenha nele. Quando evoca
a seguir as "teorias marxistas” da nação (Lênin, dezembro de 1913, págs.
126-155), Lênin refere-se a Kautsky e Bauer sem jamais citar Stalin. Deve-se
deduzir que a obra de seu discípulo lhe foi indiferente? Não, sem dúvida
nenhuma. Em duas retomadas 24 de fevereiro e 29 de março de 1913 - (cartas,
págs. 169 e 173), ele evoca o artigo de Stalin em cartas a Kamenev; diz que ele
é “excelente”; e em um editoral datado de dezembro de 1913, acrescenta que
a contribuição de Stalin impõe-se “na primeira fila” dos recentes escritos
marxistas sobre a questão nacional. Mas que o Lênin retém dessa contribuição
é que: “Temos munições contra os oportunistas do Bund." Em seu julgamento,
as preocupações estratégicas prevalecem; quanto esforço teórico de Stalin, ele
não vê utilidade. É preciso sublinhar que, em 1913, Lênin se refletia sobre esse
problema, não havia ainda produzido nenhum escrito maior, já que o Direito
dos povos à autodeterminação só será publicado perto de dois anos mais tarde
(Lênin, 1914). Contudo, não é como “bom aluno" (Souvarin, 1985, pág. 131)
que ele trava Stalin, mas como eficaz companheiro de luta.
A história posterior deu às idéias de Stalin um crédito do qual ele não
havia jamais previsto o uso. Se até 1956 a “teoria stalinista da nação” tem valor
de dogma dentro do movimento comunista internacional (Stalin, tXI, págs.
333-334) e serve de base para a elaboração do federalismo soviético, os anos
pós-stalinianos abriram o caminho a um curioso debate na URSS. O PCUS
coloca então uma surdina na "teoria stalinista da nação” e desenvolve cons­
tantemente a tese das mudanças sobrevindas nas condições de vida das nações.

1146
conduzindo para sua supressão. Em compensação, uma reflexão teórica
desenvolveu-se na periferia da URSS, que se vale da definição stalinista para
afirmar a perenidade da nação —o cultural é imutável - , e sugere prolongar a
orientação de Stalin acrescentando um quinto critério a sua definição - o
sentimento de pertencimento à nação. Este debate - jamais nítido na URSS
e onde Stalin, mobilizado por Lênin para relativizar o fato nacional, invocou
com o apoio da tese da perenidade da nação - atesta ao mesmo tempo a
gravidade do problema e da contribuição não-negligenciável de Stalin para sua
discussão.

• L e m a rx ism e e t la q u e stio n n a tio n a le e t c o n o n ia le, 1913, texto russo: S o tc h in e n iia ,


Moscou, 1946-1952, t. II, págs. 295-367; texto francês: Paris, Ed. Sociales, págs. 25-92 (as
citações referem-se ao texto russo).

► Os textos publicados sobre a questão nacional por R. Luxemburgo, muitas vezes em polonês,
raramente traduzidos, podem ser consultados em parte no I n te r n a tio n a lis m o u n d K la sse n -
k a m p f, Neuwied Luchterhand, 1971, págs. 220-278 (texto de 1896 e 1905); G e sa m m elte W erke,
Dietz, Berlim, 1970-1973; Deuvres. Écrits politiques, Paris, Maspero, vol. II, 1969, págs. 69-100
(sobre sua reflexão após a revolução russa e a autodeterminação); Das Problem der Hundert
Volker, D ie N e u e Z eit, 20, 1904-1905.
K.Kautsky, Die moderne Nationalitat, Neue Zeit, V, 1887; N a tio n a lita t u n d I n te r n a tio n a lita t,
Suplemento à N e u e Z eit, n2 14, 1907-1908, 18 de janeiro de 1908; O. Bauer, D ie N a tio n a li-
ta lc n fr a g e u n d d ie S o z ia ld e m o k r a tie , Viena, 1907; Lenin, Carta a Gorki, fevereiro de 1913,
P o ln o e S o b r a n ie Sotchinenii, t.48; Cartas a Kamenev, ibldenv, Idem, Notas críticas sobre a
questão nacional, dezembro de 1913, P o ln o e..., t. XXIV; Idem, Do direito das nações a dispor
delas mesmas, publicado em P r o s v e c h tc h e n ie , n2s 4, 5 e 6, abril-junho, 1914, e P o ln o e
S o b r a n ie S o tc h in e n ii, L 25, págs. 255-320; K. Renner, D a s S e lb s tb e s tim m u n g d e r N a tio n e n ,
W ien , Springer, 1918; Trotski, S ta lin : an a p r a is a l o f t h e m a n a n d h is in flu e n c e. A referência
do texto relaciona-se à edição frencesa: S ta lin , Paris, 1967; B.Souvarine, S ta lin e , Paris,
Champ Libre, 1985 (ed. revista e completa); I. Deutscher, S ta lin : a p o litic a l b io g ra p h y , Nova
York, 1966 (2! ed.); B. Wolfe, T h ree W ho m a d e a re v o lu tio n , Nova York, 1948; R. Pipes, The
fo r m a tio n o f th e S o v ie t U n io n , Nova York, 1968; R. McNeal, S ta lin 's W orks: a n a n n o la te d
b ib lio g r a p h y , Stanford, 1962; V. Medem, Posição da questão nacional na Rússia, V esln ik
E v ro p y , 1912, n2s 8 e 9, S o ts ia l D e m o k r a tiia i n a c io n a P n o i v o p ro s, São Petersburgo, 1906;
D.Boersner, T he b o lsh e v ik s a n d th e n a tio n a l c o lo n ia l q u e s tio n , 1917-1928, Genebra, Droz,
1957; H. Carrère d’Encausse, Unité prolétarienne et diversité nationale, Revue Française de
Science Politique, vo). 1, ns 2, abril de 1971; H. B. Davis, Nationalism and Socialism, Nova
York, 1967; Q u estio n d e la p o litiq u e n a tio n a le e t d e 1’in te r n a tio n a lis m e p r o lé ta r le n ,
Moscou, Ed. du Progrès, 1968.

Hélène CARRERE d’ENCAUSSE.


STIRNER, Max, 1808-1856
O Único e sua propriedade, 1845

A obra de Max Stirner, aliás Johann Caspar Schmidt (1806-1856), é o tipo


mesmo dessas obras-meteoro da história das idéias políticas. Brilhante, com
um brilho particular no momento de seu aparecimento em 1845 - data
simbólica do apogeu da "ideologia alemã” parece desaparecer quase que
instantaneamente. O próprio autor parece ter investido nesta única obra a
substância de sua mensagem, ao ponto de quase renunciar à sua publicação
até a morte. Este contraste mesmo entre uma obra que conheceu imediata­
mente uma ressonância extrema (quase comparável àquela da Essence du
christianisme de Feuerbach em 1841) e o silêncio quase contínuo que seguiu
sua revelação requer interpretação. Será que ela pertence a esse tipo de obras
marcadas por seu momento ideológico e histórico, condenadas a se desvalori­
zarem e a se evaporarem desde que seu sentido ficou gasto ou será que ela
merece seu lugar de pleno direito dentro da história das idéias políticas?
E mais, como tratar essa obra, é o caso de dizê-lo, “única em seu gênero"?
Será que ela pertence, como se sustentou ao menos depois de John Henry
Mackay, o poeta alemão que foi origem de sua redescoberta a partir de 1889,
a essa tradição anarquista da qual ela seria uma variante metafísica (Max
Stirner. Sein Leben und sein Werk, 1898) ou será mais justo referi-la ao
existencialismo (Henri Arvon, Auxsources de Vexistencialisme, Max Stirner,
1954)? Esta própria formulação da questão volta paradoxalmente a uma
denegação da unicidade da obra, como se, face a esse discurso intempestivo, a
exegese experimentasse a necessidade de subordiná-la custe o que custar a
uma categoria englobante. Dificuldade agravada pelo fato de Stirner ter sido
abordado seja a contrario (como antiMarx), seja como precursor (Nietzsche
ainda em desenvolvimento), mas muito raramente em si mesmo...

Stirner, o intempestivo: o dobre* da “ideologia alemã"

O autor dessa obra, que choca, pertence a esse grupo de universitários


que, nos anos 1840, participa de uma reflexão sobre o presente da Alemanha,
estreitamente articulada a seus olhos aos destinos da humanidade e da
história. Ele participa do famoso "Clube dos Doutores”, agrupando os “Libe­
rados” {Freien) na Universidade de Berlim em torno de Bruno Bauer, antes de
colaborar na Rheinische Gazette (Gazeta do Reno) cujo redator-chefe não era
outro senão Karl Marx. Comprazeu-se, depois de Engels, em enfatizar o
contraste entre o extremismo intelectual de Stirner e seu comportamento
pacífico e temerário. Sua própria vida não passa de uma seqüência de fracassos
— universitários e econômicos. Após estudos trabalhosos em Kõnigsberg,
Erlangen e Berlim (1929-1835), ele teve de renunciar ao doutorado. Depois de

* Dobre - dobrar dos sinos em um funeral

1148
ter ocupado um posto modesto no ensino livre, ele teve de recolher-se a uma
vida das mais miseráveis (uma vida, portanto, que deveu muito pouco ao
Estado...).
O Único e sua propriedade marca portanto o ápice do curto período em
que Stirner fez uma entrada fracassante sobre a cena do combate ideológico,
em um momento, é verdade, que não poderia ser mais instável. Estranho
Evangelho que, desqualificando o político em nome do “Único”, desqualifica­
va o Estado como pseudobem público.
Para tornar legível essa obra, em sua especificidade resgatando dela a
atualidade, trata-se portanto de tentar retomar o momento que ela traz de certa
maneira à expressão, de maneira ao mesmo tempo exemplar e atípica.
O Único e sua propriedade é exemplar como produto desse extraordi­
nário laboratório ao qual Marx deu o nome de “ideologia alemã”. A obra,
publicada no fim do ano de 1844 (mas trazendo o milésimo do ano seguinte)
inscreve-se dentro do prolongamento de uma atividade de jornalismo político
característico do sismo ideológico no qual estão implicados os "Jovens Hege-
lianos”. De repente empenhado em uma luta anti-religiosa - cristalizada pelo
escrito de Bruno Bauer, A trombeta do último julgamento - desde seus
primeiros artigos de 1842, Stirner pensa dentro do horizonte da esquerda
hegeliana, esfera de influência da qual Marx participa. É dentro dessa pers­
pectiva que ele colabora na famosa Rheinische Gazette, enquanto sua crítica
da tutela Bauer (dita a “Crítica crítica”) se declara. O Único e sua propriedade,
provavelmente redigido a partir de 1843, concluído em abril de 1844, traz a
marca desses debates, onde se misturam, na esteira de Hegel e de Feuerbach,
as reflexões mais “fundamentalistas” relativas à antropologia e à filosofia da
história e as propostas mais situadas dentro da prática política hic et nunc. É
essa particularidade que é preciso levar em consideração para situar o momen­
to político dentro de sua proteção especulativa. Como seus “colegas", Stirner
não separa de maneira nenhuma a situação mais precisa - a que é marcada
pela política reacionária e antiliberal de Frederico-Guillerme IV —e o destino
histórico da humanidade.
Atípico também, pois Stirner toma progressivamente suas distâncias para
com o “paradigma” da esquerda hegeliana, a ponto de colocar todo o seu
discurso sob o signo da demarcação e da negação. O Único e sua propriedade
marca a afirmação retumbante da secessão da subjetividade —o que deu a Stirner
a reputação de um Ficbte anarquista. É como se ele tivesse levado ao seu cúmulo
a virtualidade negativista da esquerda hegeliana voltando-a contra si mesma —o
que marca a “primeira morte” dela —Marx tendo-lhe administrado a segunda!
Estas duas características de exemplaridade e de atipia podem conciliar-
se se se notar que Stirner as toma sobre si, com a radicalidade especulativa
que convém (será que ele não deve seu pseudônimo ao apelido dado por seus
amigos em referência à sua vasta fronte, Stirnt) à posição mais extrema da
crítica, a que varre toda exterioridade de si mesma e acaba por reconhecer o
Eu como pólo único de verdade. Compreender-se-á dessa forma o lugar
considerável que cabe ao “santo Max” na Ideologia alemã (ou seja, os três

1149
quartos), como se Marx e Engels visassem através dele ao extremismo idealista
que assinala a parada de morte da ideologia alemã, a que requer o famoso
"acerto de contas com a velha consciência filosófica”.

O unicismo como niilismo

Para apreciar bem o manifesto de Stirner, convém medir o tamanho de


seu "acerto de contas”, aquele através do qual ele quer varrer toda uma
concepção da questão sócio-política. Não é exagerar ver nela uma verdadeira
reforma do entendimento político.
Esta exprime-se antes de tudo por um estilo inimitável - que exerceu uma
fascinação tão irresistível quanto esporádica. Segundo o autor, trata-se de um
mosaico de notas e de “fragmentos”. De fato, encontramo-nos ante um
conjunto estruturado como que em uma só corrente, gerando um pensamento
único, o do Eu, a exemplo da Doutrina da ciência fichtiana ou mesmo da
Fenomenologia hegeliana —fora isso tem-se aí uma versão única e um texto
unívoco. Eis uma Fenomenologia da qual o Eu é o alfa e o ômega.
Há mais precisão ainda: para fixar seu universo próprio, Stirner está não
fortuitamente em posição de forjar uma língua própria - recurso certamente
característico do procedimento especulativo desde Hegel, mas que toma aqui
um sentido especial. A idéia central de individualidade - propriedade apóia-se
sobre uma tomada ao pé da letra dos recursos da palavra eigen e de seus
derivados-compostos. Trata-se de conjugar corretamente, de certa forma, esse
domínio da Eigenheit—à originalidade ou o caráter do que é próprio —, o da
propriedade - no duplo sentido da Eigenschaft (idiossincrasia) e da Eigentum
(possessão) - com seu correlato ético (Eingennutz, o egoísmo). O Único e sua
propriedade pode ser considerado como um dispositivo discursivo destinado
a explorar em sua amplitude máxima essa noção de ipseidade - no sentido
daquilo que é próprio ao “mesmo”, é por isso que o trabalho sobre a própria
linguagem se revela tão importante nesta obra: essa "alquimia das palavras”
(Arvron, pág. 50) exprime a natureza homonímica do objeto de busca.
E aí que se pode avaliar sua contribuição para o pensamento político:
a tese de Stirner é que esse próprio princípio do mesmo como sujeito é o
que é preciso introduzir no entendimento político. Se a empresa é metafísica
em sua formulação, ela se inscreve portanto de maneira muito precisa e
paradoxal dentro do saber político, já que ela se dedica a atingir seu âmago:
o sujeito encontra-se sujeitado a uma alteridade que se dá ilegitimamente
como seu Bem.
Este efeito anuncia-se antes de tudo por um niilismo provocante: "Eu
baseei minha causa sobre nada” (Oeuvres complètes. L Vnique etsa proprieté
etautres écrits, PAge d’Homme, 1972, pág. 79). A referência ao “nada único”
tem lugar de profissão de fé contra toda fé: “Minha causa não é nem divina
nem humana nem o Verdadeiro nem o Justo nem o Livre etc. mas somente o
Meu\ ele não é geral, mas... Única, como Eu sou único” (op. cit., pág. 81). Se
o Meu —possessivo erguido em categoria - se dá como o Nada, encontra-se

1150
colocado o princípio mais desmascarante que existe da lógica da dominação:
“Para Mim, não existe nada acima de Mim!” Notar-se-á o aspecto tautológico
da fórmula, mas é justamente é essa resolução de assumir o tautologismo até
o fim que se outorga em uma posição política. Qualquer outra posição que não
esta deve com efeito se votar a uma dependência, no sentido forte do que faz
violência ao Eu. Stirner prolonga assim o imperativo de emancipação ao qual
Feuerbach dera sua formulação humanista, mas é precisamente esse princípio
genérico do Homem que ele recusa - substituindo-o pelo Eu - o que ilustra a
divisão em duas grandes seções. Trata-se de fundar a necessidade radical de
passar do “Homem" para o “Eu”. Compreende-se, desse ponto de vista, que se
possa falar de intuição pré-nietzschiana: o próprio homem não seria, após “a
morte de Deus”, o novo ídolo metafísico à sombra do qual pode perpetuar-se
uma dominação, tanto mais radical por ser imanente? Stirner está de fato em
posição de produzir uma política anti-humanista destinada, sabe-se, a uma
longa carreira.

Crítica da razão liberal

Efetuando essa redução ao Eu, Stirner encontra a doutrina política que


acha aparentemente seu fundamento na individualidade, ou seja o liberalismo.
Portanto não é fortuito que uma boa parte da primeira secção seja consagrada
a uma avaliação do liberalismo. Este é abordado não somente como doutrina
política, mas também como “liberalismo social” - o que o faz significar
“socialismo”! (no sentido proudhoniano) —e enfim como “liberalismo humano”
—o que permite englobar aí os "Liberados” (Freien), núcleo de jovens-hege-
lianos reunidos em torno de Bauer.
0 pecado comum de todas essas formas de liberalismo é justamente, sob
as cores de liberação política, social e humanista da individualidade, o de
imolá-la amarrando-a ao Estado. Stirner vê aí a forma sócio-política do protes­
tantismo, o Estado sendo a divindade leiga e o credo liberal a forma apurada
da fé (o que, dessa vez, acena para Max Weber). Em resumo, “o liberal”, sujeito
da modernidade política, é um proprietário possuído.
A crítica do liberalismo, neste sentido ampliada, apóia-se sobre a crítica
de uma política da liberdade (Freiheit), por definição negativa e limitativa aos
olhos de Stirner - já que ela se apóia sobre uma negação dos entraves sem
nada afirmar de positivo. Ela permite portanto liberar um espaço para uma
política de Eigenheit. não se trata somente de estar desembaraçado dos
impedimentos, é preciso gozar, como proprietário, de seu si. Stirner censura
portanto os liberais de toda casta (de fato, todas as formas de doutrinas
sócio-políticas modernas) por não se apoiarem sobre o verdadeiro conceito de
propriedade. Ela só pode pensar em um bem-individual, coletivo ou metafísico
- fora do Eu, ali onde é preciso pensar no Eu como Bem, ao mesmo tempo
vazio e supremamente precioso. Dessa forma, é preciso reabilitar a noção de
“egoísmo”, amaldiçoado pelos discursos do Bem e da Liberdade, fazendo dele
um uso cínico e revolucionário: a Eigennutz é a ereção do Eu à categoria de

1151
Utilidade suprema. O verdadeiro filósofo político será portanto o defensor
conseqüente desse "egoísmo”, prazer salutar, contra o que todas as formas do
Outro - do Estado liberal ao Estado socialista, passando pela Crítica crítica! —
Nos prometem. A ética suprema é a de não ser enganado por essa promessa
de um Bem heterônimo — denunciando a traição dos liberais em 1844
inclinando-se diante da repressão.
No final dessa dissolução de todas "as hipóteses até aqui existentes”,
nada deve ser salvo - nem mesmo esse “pensamento” que é ali a “crítica pura”
(cara para Bauer): “E em Meu proveito que essa dissolução deve ser produzi­
da” (pág. 206). Sobre a base dessa limpeza das estrebarias de Augias teológi-
co-políticas - “o homem, Deus, o Estado, a moral pura etc.” - Stirner vai fazer
entrar em cena, dentro de uma atmosfera de “crepúsculo dos ídolos”, o que
deve fazer sair o entendimento político de todo idolatrismo, o Eu. O todo é
determinar qual Eu —t isso mesmo constitui a "operação Stirner”.

A ciência do Um e o político

Enquanto a primeira seção referia-se a uma linha de evolução histórica,


é significativo que a segunda se apresente como uma dedução formal, alguma
coisa como uma Wissenschaftslehre demarcada de Fichte. Trata-se de mostrar
na obra o auto-engendramento do Eu como Eigenheit autêntica, o que retorna
a contrario - já que todo o texto político anterior só pode pensar em uma
liberdade outorgada — em uma reaproximação que é simultaneamente um
aprendizado pelo Eu de sua própria verdade. Depois da Ilíada da Alteridade,
essa Odisséia do Egoísta será escandida em três tempos (Stirner partilha da
fascinação da posteridade hegeliana pela tríade especulativa): em um primeiro
tempo, o Eu experimenta-se como potência - “Meu poder”; depois ele se
realizará como “comércio” (Verkehr) com seus outros (“Minhas relações”).
Enfim, ele atingirá essa possessão inefável e real de seu Eu (“Meu prazer
pessoal”). É por meio dessa dialética que ele transformará a particularidade
ainda abstrata nesta singularidade que é “o Único" (Einzige).
Não se deve perder de vista, para nosso propósito, o conteúdo e as
motivações políticas dessa operação - sabendo que esse pequeno drama
metafísico contém ipso facto uma significação política (embora ainda nos
questionemos, depois de tê-lo reconstituído, sobre a mutação semântica
imposta por isso mesmo à categoria de “política”).
Colocando a questão do Eu como poder, Stirner põe a nu a questão
tópica das relações da vontade individual com a vontade geral - que caminha
pelo menos de Rousseau a Hegel. Ele a renova à sua maneira, através dessa
dialética do egoísta e da alteridade. Concebe-se realmente, conforme o que
precede, que o “recalque” do Eu, que caracterizava o texto político, encontra
sua sanção nessa contradição das teorias do contrato social que só podem
garantir a liberdade (civil) imolando o Eu, isso é, a verdadeira individualidade.
Stirner retoma o problema da Filosofia do Direito e do Estado: ali onde
Hegel argúi sobre a substancialidade do Estado para dar resposta à articulação

1152
da Vontade particular com a Vontade geral que permanece contraditória no
autor do Contrato social, Stirner reabre de certa maneira a ferida. O ponto de
vista do Eu, bem compreendido, opõe-se a tal solução. O problema é exata­
mente, para o Eu, o de reapropriar-se do Estado. Em vez desse trazer resposta
para a questão do bem e permitir a concessão de "direitos”, ele remete à
questão do Eu: “Eu não reclamo nenhum direito, também Eu não tenho
necessidade de reconhecer nenhum deles” (pág. 255). Esta “careta zombeteira”
feita ao Estado consiste em opor a potência ao direito: “Ter direito ou não tê-lo,
pouca Me importa. Se Eu tiver somente o poder, Eu serei Senhor e lastreado
em poder, não tendo necessidade de qualquer autorização, nem de jus­
tificação.”
Mas acontece o mesmo com a “sociedade”? Coloca-se aqui o tema da
associação e da tomada de partido. A resposta de Stirner não é menos clara:
tendo conjurado a fascinação sagrada do vinculo, ele nos faz imaginar uma
associação de egoístas que, sem aderir a um partido (o que seria mortal para
seu egotismo), não se repugnam em "ser da parte” (as palavras vêm sempre,
decididamente, em socorro do pensamento do Único). Os partidos e a socie­
dade, assim como o Estado, vêm partir-se contra o Único. Isto não quer dizer
que esse renuncie à relação com o Outro - não é um acaso se Stirner, na
esteira de Feuerbach, medita desde a origem sobre o Amor —mas “o que Eu
faço”, Eu o faço "por amor a Mim" (pág. 354). O Único pluraliza-se, portanto,
sem se alterar - eis a fórmula stirneriana do verdadeiro "pluralismo”.
Esse ponto onde egoísmo e amor são indivisíveis é o Prazer —naquilo
que ele tem de mais "pessoal". Não se deve entender por isso o prazer da
"pessoa” (que designaria mais o alvo do Estado, da Sociedade, do Bem), mas
sim essa singularidade que tem enfim o usufruto dela mesma. Chegando a
esse ponto, “Eu não Me inquieto mais pela vida, Eu a "consumo" (pág. 356).
Este tema de aparência fourierista não deve nos fazer esquecer que se toca
ali no prazer do vazio que é o Eu (ver acima). Depois de se ter liberado —
no sentido próprio do termo —dos pesos da educação — problemática pela
qual Stirner tem interesse desde sua origem já que ela coloca o desafio da
transmissão e da conquista da autonomia —, o Eu pode fazer a experiência
mais sensível que existe (em contraste com a qual a sensualidade feuerba-
chiana empalidece). Sua vinda se faz dentro de uma atmosfera de transgres­
são inocente: “Não há nem pecador nem egoísmo pecador.” É nesse ponto
que o verbo de Stirner vibra em uma profissão de fé além de toda Fé: “Ele
volta a Ti mais do que o divino, mais do que o humano etc. Ele volta a Ti o
que é Teu” (pág. 392). “Este é o sentido do Único.” Esta é também a tarefa
mais elementar e mais árdua: tornar-se o Único que se é. “Eu sou pro­
prietário de meu poder, e Eu o sou quando Eu Me reconheço como Único"
(pág. 397). Dizendo de outra maneira: “Dentro do Único, o próprio pro­
prietário volta ao nada criador de onde ele nasceu.”
A última palavra será portanto idêntica à primeira: “Eu não baseei Minha
causa sobre o nada.” Mas não teria sido necessário todo esse longo rodeio para
torná-la audível.

1153
Uma "política sem qualidades"

Precisamente, o que se falou sobre o momento audível dessa mensagem


e o que se pode entender por isso hoje em dia?
Tal “tratamento de choque” da questão antropológica e de suas recaídas
sócio-políticas acha sua verdade dentro da “recepção” que lhe foi feita.
Os primeiros "acusados de recepção" vieram naturalmente do meio da
esquerda hegeliana, que reagiu a ela com essa mistura de estupor (mesclado
de indignação) e de fascinação (mesclada de inquietude), tanto O Único e sua
propriedade pertencia à sua problemática - colocando “preto sobre o branco”
o que ela não ousava dizer —apresentando-se como um “filho ilegítimo”.
Se os representantes da Crítica crítica só podem ver na obra de Stirner
a forma exacerbada da Consciência de si, a do "delírio de presunção", Feuer-
bach, que saúda o autor de O Único e sua propriedade como “o escritor mais
genial e mais livre que já me foi dado conhecer”, estima que foi apenas por um
malentendido que essa o acusa de hipostasiar o Homem, como um eu principal,
remetendo a individualidade a um Eu secundário. Quanto a Engels, ele vê em
Stirner uma espécie de Bentham, sem poder aceitar, suspeita-se, essa associa­
ção dos egoístas. Marx discerne de imediato dentro da visão de Stirner esse
extremismo idealista e fantasmático que só faz refletir o estado atual da
sociedade burguesa (posição partilhada por Moses Hess que vê nele um
“fanfarrão). Em resumo, O Único e sua propriedade é apreendido como um
produto último da "Santa Família", dissidência que no final das contas pouco
teve relação com seu efeito nocivo contra o ideal socialista, que adere à
referência ao homem verdadeiro - embora Stirner seja um aliado muito
provisório na crítica de Feuerbach, nesse ano simbólico em que Marx e Engels
tiraram férias da ideologia alemã. Foi talvez a maneira mais elegante de
“entregar um certificado de indigência” a toda realidade.
O efeito mais espetacular exerceu-se sobre o próprio Stirner que, depois
de ter dado esse “grito de alegria instintivo” que, temia ele, “não podia ser
reconhecido dentro da longa noite do pensamento e da fé”, voltou a entrar no
silêncio. Este Único, que ele apresenta em A anticrítica, responde a seus
detratores, como “indizível" e “indefinível”, não está longe de evocar uma
mística que, sob o aspecto de caça cínica do desinteresse, busca uma síntese
patética do amor de si e da realidade. Tudo se passa como se, depois de tal
saturação, não houvesse nada de original a dizer: não é assim que se deve
compreender o destino do autor de O Único e sua propriedade, reduzido em
seguida à categoria de compilador laborioso, antes de desaparecer na miséria?
Considerado retrospectivamente, Stirner aparece como um desses pensa­
dores intempestivos, no sentido da Unzeitmãsssigkeit nietzschiana. Se, além
do “retorno a Stirner” discernível no fim do último século, ele permanece tão
isolado é porque ele se apresenta como esse momento selvagem que introduz
na cultura política um elemento que põe o logos político em oposição com ele
mesmo. Neste ponto talvez ele partilhe da sorte desses “sofistas” entre os quais
Kuno Fisher, que, em um artigo célebre, o colocava entre os Sofistas moder-

1154
nos", (1847). Sozinha, essa maneira de jogar com o poder das palavras produz
um pensamento-limite que toma todo seu sentido de provocação. Jogando com
a etimologia e com a homonimia, Stirner questiona os conceitos-chave de
Estado e de individualidade para colocar a racionalidade política em crise
aberta com ela mesma, pode-se mesmo perguntar-se se ele não adivinhou,
sendo um dos primeiríssimos, a posição de um pensamento pós-moderno do
político, consecutivo à última grande síntese, a de Hegel. Isto se confirma pela
maneira pela qual Stirner procura incansavelmente o que, dentro do entendi­
mento político, dá sintoma. Seu “Eu" — por mais indizível que ele seja —
funciona como esse operador que permite trazer à luz o não-dito do discurso.
Isto é o O Único e sua propriedade: uma tentativa de metafísica do político
que objetiva impiedosamente os pressupostos de uma teoria do poder. O que
resulta daí, mais ainda do que um anarquismo, é uma espécie de arqueologia
de todo discurso do Estado, que desemboca, mais do que em um apolitismo,
em uma espécie de “política sem qualidades". Isto poderia ser, nesse sentido,
a fronteira entre a política - no sentido tradicional, apoiada sobre uma filosofia
da história —e o político (o que faria de Stirner o precursor secreto dessa fileira
maldita que se estende de Nietzsche a Bataille).
Enquanto Marx relança, a partir de sua crítica de Hegel e de Feuerbach,
a dinâmica da história, o autor de O Único esua propriedade coloca a questão
da crença que subentende o político. E nessa qualidade de fora do jogo que
essa obra interpela a história das idéias políticas: designando isso contra o quê
a razão política esbarra, ela reivindica uma atualidade discreta mas crônica.

• Max Stirner, D e r E in z ig e u n d se in E ig en th u m , Leipzig, Otto Wigand, 2- ed., 1888; 3! ed.,


1901; Max Stirner, L V n iq u e e t s a p ro p r ie té , trad. de R. L. Leclaire, Paris, Stock, 1900; trad. de
H. Lasvignes, R e v u e B la n ch e, 1900; reed. 1948; Max Stirner, O e u v re s c o m p lè te s. L V n i q u e e t
s a p r o p r ie té e t a u tre s écrits, trad. P. Callissaire et A. Saude, Lausanne, L’Age d’Homme, 1972
(nossa edição de referência); G esch ich te d e r R e a c lio n v o n M a x S tirn er, Berlim, Allgemeine
Deutsche Verlag, 1852; D ie N a tio n a l-O e k o n o m e n d e r F ra n zo se n u n d E n g la n d e r , h e ra u sg e g e-
b en vo n M a s S tirn er, Leipzig, Urto Wigand, 1845-1847; M a x S tir n e r s k le in e re S c h rifíe n u n d
s e in e e n tg e g e n s e lz u n g e n a u f d i e K r itik s e in e s W erkes. “Der Einzige und sein Eigenthum”, Aus
den iahren 1842 bis 1847. Herausgegeben von John Henry Mackay, Berlim, 1898.

► John Henry Mackay, M ax S tirn er. S e in L eb en u n d se in Werk, Berlim, Schuster und Loeffler,
1898; 2- ed., 1910; Ola Hannsson, S e h e r u n d D e u te r , Berlim, 1894; victor basch, L ’in d iv id u a -
lis m e a n a rch ist. M a x S tirn e r , Paris, Félix Alcan, 1904; Albert Levy, S tir n e r et N ie tz sc h e , Paris,
1904; Henri Arvon, A u x so u r c e s d e 1'exislen cialism e: M ax S tirn e r , PUF, 1954.

Paul-Laurent ASSOUN.

1155
STRAUSS, Leo, 1899-1973
Da tirania (uma interpretação de Hierão de Xenofonte), 1948

Apresentamos aqui o comentário por Leo Strauss de Hierão de Xeno­


fonte, curto diálogo que coloca em cena um tirano e um poeta. Esse comentá­
rio suscitou um debate opondo Kojève a Strauss. Escrita em 1948, a inter­
pretação do Hierão faz eco, mas de maneira atenuada, aos grandes abalos
ainda presentes na memória de cada um. Esses últimos, no entanto, não
poderiam desempenhar a função de "horizontes intransponíveis” determinan­
do seu limite ao nosso pensamento. Strauss está à procura de coordenadas em
relação às quais o pensamento não é nem subjetividade nem objetividade. Ele
se deve apoiar sobre a permanência de certos problemas.
A referência aos “problemas fundamentais” é, na verdade, a própria razão
do debate entre Kojève e Strauss. Cada um sabe, evidentemente, que é dentro
da história que a política manifesta-se e mantém-se. Mas é oportuno perguntar-
se se a política é lida diretamente dentro do livro aberto da história: é preciso
portanto interpretá-la. Para Strauss, há a possibilidade de uma interpretação
permanente que permite decifrar cada página tomada separadamente, encon­
trar o momento considerado como tal, independentemente do encadeamento;
isso porque é sempre possível colocar cada "momento” em referência a uma
norma universal, permanente, trans-histórica, que permite julgar. Para Kojève,
cada situação implica elementos inéditos exigindo uma interpretação globali-
zante: é preciso ter lido a última página para compreender as páginas ante­
riores. Uma filosofia da história é portanto requerida para permitir ver o que
se passou à luz do que terminou. É a história que se encarrega de realizar -
hic et nunc - a forma acabada e definitiva da vida política. O debate falará
sobre a figura histórica concreta que poderia tomar essa forma acabada: a
figura pouco tranqüilizadora de um “Estado homogêneo e universal”.
Quer dizer que o comentário dessa obra antiga não é de maneira nenhuma,
para Strauss, um fim em si, mas unicamente um expediente engenhoso, um
caminho indireto, que permite, dentro da conjuntura moderna cercada por um
tipo de hegelianismo, repensar a política em relação a motivações ocultas,
motivações que não são históricas e, nas circunstâncias, anacrônicas, mas
paradigmáticas. É forçoso, além disso, constatar que hoje em dia Kojève não
aparece mais como interlocutor privilegiado desse debate. A realidade encarre­
gou-se de indicar que a História não é normativa, que nos apresenta a todo
momento brechas que incitam um pensamento independente a procurar de
novo uma norma cuja função não é a de se realizar, mas, ainda uma vez, de
permitir julgar. Strauss é um comentarista e, sobretudo, um pensador da política.
Kojève afirma, por exemplo, que Xenofonte não podia ainda conhecer
tiranias bem organizadas e duráveis tal como existem hoje em dia, tiranias que
se apoiam sobre as ciências modernas da natureza, sobre a tecnologia e sobre
a propaganda; em resumo, tiranias apoiando-se sobre “idéias”, ideais ou
objetivos superiores definidos a partir do ensinamento “científico” dos “sá-

1156
bios”. Xenofonte apresentaria como utópica uma tirania que se tornou moeda
corrente hoje em dia. Contestando essa interpretação do Hierão, segundo a
qual Xenofonte propunha tal utopia, Strauss afirma que os Clássicos estavam
aptos a perceber que princípios poderiam tornar possível o advento de tiranias
do tipo moderno, mesmo não tendo exemplos históricos sob seus olhos. O
princípio de uma ciência orientada exclusivamente para a conquista da natu­
reza e o da vulgarização ou difusão do conhecimento científico ou filosófico
eram, segundo Strauss, conhecidos dos Clássicos. Esse é o postulado.
Seja como for, a questão é de saber se a tirania atual, assim como a afirma
Strauss, “pode ser compreendida, de uma maneira precisa, dentro do quadro
clássico”, sobre a base dos princípios colocados pela filosofia política clássica.
Poder-se-ia retorquir que não se encontra nas obras de um Platão ou de um
Aristóteles uma teoria da tirania contemporânea. Mas, responde Strauss, essa
teoria encontra-se inscrita aí como que “interiormente”, em filigrana, porque, diz
ele, a idéia de um progresso tecnológico ilimitado e a de uma perversão
generalizada do saber sob a forma da propaganda pareciam-lhes “tão absurdas
que voltaram seus pensamentos para direções totalmente diferentes” (Hierão,
pág. 285). Entretanto, o que todo leitor dessa interpretação do Hierão está apto
a notar não é, poderíamos dizer, a ausência de “mediações” entre o duplo
princípio de uma ciência como domínio e de um saber que chega a justificar tudo
sob sua forma ideológica e a tirania contemporânea? Para Strauss, a posição do
saber e da filosofia é a única que pode nos permitir discernir a diferença entre
tirania clássica e tirania atual. É preciso portanto levar essa indicação a sério.

Filosofia política e retórica

A leitura de Strauss do Hierão (abrev.: H) não é “francesa” nem como


espírito nem como método. Esse fato é confirmado por sua leitura de Maquia-
vel (Pensamentos sobre Maquiavel, abrev.: PSM). Strauss situa-se realmente
na contracorrente das Luzes. Posição muito "alemã”, à primeira vista, que
poderia se inscrever dentro da tradição romântico da crítica das Luzes. Este
não é o caso, no entanto. Se a única alternativa fosse a que opõe Iluminismo
(Luzes) e Romantismo, Strauss com certeza, escolheria o Iluminismo; mas,
para ele, a alternativa verdadeira passa-se entre os Antigos e os Modernos.
Quanto a nós, nós nos reconhecemos na leitura das obras contemporâneas,
onde "entendemos que prossegue um único debate, sempre o mesmo, o qual,
ainda que pareça datado, se reconhece como sendo o debate das luzes” (4*
contracapa dos Escritos de Lacan, Seuil, 1966).
Nossa expatriação nasce do fato de que Strauss redescobre nos textos
antigos e medievais (mais judaico-árabes do que cristãos, aliás) a utilização de
uma arte de escrever secreta. Ele lê o Hierão à luz rasteira e sua leitura imita
- no sentido antigo do termo, isso é, atualiza mas também utiliza —essa forma
de escrita esotérica. Esta arte fala sobre a forma exterior que deve revestir a
comunicação de um debate filosófico que toca em política (cf. Persecution and
the Art o f Writing). “Os clássicos consideravam que o conteúdo de seus

1157
pensamentos políticos era indissociável da forma sob a qual ele se tornava
visível para a comunidade política” (Persecution, pág. 18) e “que não se muda”
desse pensamento "sem mudar ao mesmo tempo o conteúdo” (PSM, pág. 87).
O princípio de base dessa arte reside na intenção própria a um autor de
dissimular seu pensamento: um homem mais clarividente do que os outros
dissimulará seu próprio saber sobre esse ou aquele aspecto da vida política
quando se dirigir a homens menos clarividentes do que ele. Princípio eminen­
temente aristocrático demonstrando que o filósofo situa a si mesmo dentro do
séquito dos homens políticos mais clarividentes. Assim procede a ironia
socrática, arte de dissimulação, por um sábio, de seu próprio saber. Um saber
se impõe a regra da moderação mantendo-se dentro dos limites de uma
racionalidade normativa quando fala sobre "verdades fundamentais que ne­
nhum homem decente proferiria em público”.
É notadamente o caso de considerações teóricas sobre a tirania. Tratar
da tirania evitando todo inconveniente é, com efeito, impossível. É preciso
também temperar a audácia com a prudência. Platão “se abstém de ensinar a
arte tirânica e confia seu processo a Sócrates, isso é, a um de seus personagens;
mas o preço a pagar por essa escolha é que ele deve confiar seu elogio a
homens que a louvam sem vergonha” (H, pág. 133), procedimento que, em
suas bocas, não pode evitar a demagogia. Xenofonte faz uma outra escolha:
confia seu elogio ao sábio e sua condenação ao tirano. Essa inversão dos papéis
só pode chamar a atenção do leitor. “O Hierâo representa a defesa clássica da
tirania por um homem sábio” (PSM, pág. 314). Xenofonte sustenta seriamente
a idéia segundo a qual a tirania pode ser melhorada, pode ser benfazeja, pode
ser superior às leis e a um governo legítimo? O leitor do Hierão impressiona-se
pelo “caráter surpreendentemente amoral” das propostas examinadas pelo
sábio. Strauss insiste sobre seu silêncio ou sobre o “olhar frio” que Simônide
traz às declarações do tirano quando este lhe confessa sua infâmia.
A ironia só evita o risco de se voltar contra seu autor se as proposições
expostas não são nem possíveis nem realizáveis. A ironia de um Swift funciona
da maneira mais subversiva que existe, já que nenhuma lei, até hoje, autoriza a
comer crianças em época de penúria. A ironia supõe, portanto, que ela tenha sua
base dentro de um pensamento realmente independente ou desinteressado.
Desse modo, a ironia ou a arte de escrever previnem toda confusão entre uma
tese teórica e uma proposição prática (H, pág. 151). Tomemos dois exemplos:
Xenofonte apresenta Ciro como modelo político do monarca que sabe dar
provas de moderação. Ele parece dar razão a Maquiavel que verá na Cyropédia
"a exposição clássica do príncipe tal como se imagina”. Ora, a crítica do
príncipe imaginário por Maquiavel não leva em conta o caráter irônico da obra.
Um dos procedimentos próprios da arte de escrever esotericamente consiste,
por exemplo, para um autor, em se contradizer intencionalmente. A contradi­
ção indica que se tocou em um ponto importante. Se a quase-totalidade da
Cyropédia toma a forma exterior de uma apologia de tal monarquia ideal, essa
aparência é destruída pelo último capítulo que cai como um cutelo: ele nos
revela que Ciro transformou a monarquia constitucional em um despotismo

1158
oriental que desmoronou depois de sua morte (H, págs. 289-290; PSM, págs.
314 e 261-262 e Platão, Les Lois, III).
Platão foi ourives em matéria de ironia. Levanta no 5a livro da República
(portanto no centro dessa obra) a questão da relação entre política e filosofia a
seu ponto extremo, o da coincidência das duas atitudes. Esse tema “teórico”
corresponde a um ponto extremo de ironia que é subiinhado por três ondas de
riso. A apresentação esotérica da solução ao problema político toma um aspecto
cômico (e não trágico) que lembra as comédias de Aristófanes (cf. Sócrates and
Aristophanes). As condições requeridas para efetuar-se a absorção recíproca da
filosofia e da política contradizem sua possibilidade e sua realização; uma dessas
condições consiste, por exemplo, em deportar para os campos todos os cidadãos
que têm mais de dez anos. De duas uma: ou Platão prefigura Pol-Pot, e é louco,
ou então essa hipótese é irônica e indica que estamos lidando com “a mais
profunda análise do idealismo político” (City and Man, 127).
A filosofia política clássica é portanto, segundo Strauss, marcada pelo
selo da retórica; não da que persuade mas da que dissuade. Uma filosofia
torna-se política quando sua audácia intelectual faz desenvolver certas hipó­
teses teóricas que ela comunica por meio de caminhos múltiplos e indiretos
dos quais alguns reaproximam e outros afastam dessas hipóteses diversas
categorias de leitores. A retórica tem como função tornar visível o desvio que
separa política e filosofia. Sua eliminação ou sua transformação em uma
retórica que procura seduzir ou fazer aderir coloca a filosofia no campo da
divulgação de todos azimutes: a sofistica justifica tudo. A divulgação faz a
filosofia correr o risco de não mais considerar a sociedade de maneira teórica
mas sim dentro de uma perspectiva prática (PSM, págs. 311 e segs.). Da mesma
forma uma tese pode expor-se a uma interpretação que a transforme em uma
doutrina política perigosa.
A filosofia política muda de sentido e de motivação quando ela não
dissimula mais, quando "esclarece”. O abandono da ironia marca a passagem
de uma concepção democrática da filosofia política; ela favorece a intrusão da
prática dentro da teoria. A filosofia política moderna, a partir de Maquiavel, vai
levara sério, segundo Strauss, o que os clássicos expunham ironicamente. Ela
exporá projetos apresentados como possíveis e realizáveis.

Diálogo entre um sábio e um tirano

A uma primeira leitura, o Hierão não nos ensina nada que ainda não
saibamos sobre a tirania. Certos comentadores afirmam que o Hierão é uma
pálida imitação dos livros 8 e 9 da República e que uma multidão de passagens
lembra a obra do mestre. Poder-se-ia igualmente insistir sobre o fato de que
Platão e mais tarde Aristóteles trataram das maneiras de estabilizar a tirania
(Politique, V, 11 a 29 e segs.). O tirano deve tomar a máscara do rei, parecer
virtuoso, montar o espetáculo do regime legítimo. "Os aspectos odiosos da
tirania não são certamente destruídos, mas banidos da vista” (H, pág. 122). O
que é mais, Aristóteles expõe abertamente o que Xenofonte apresenta sob a

1159
forma mais dissimulada de um diálogo. Aristóteles escreve “que desempe­
nhando com habilidade o papel de um rei”, um tirano “terá uma meia-virtude
e não será perverso mas somente meio perverso”; propostas que podem nos
fazer pensar sobre os “hábeis” de Pascal, "pessoas do entremeio que se fazem
de entendidas”. Xenofonte parece ir mais longe do que Aristóteles já que
Simonide diz ao tirano no fim do Hierâo: “Se você seguir meus conselhos, você
será feliz sem ser invejado.” Essa promessa só pode ser interpretada correta­
mente se se levar em conta o caráter irônico do diálogo.
O que é novo é a colocação em cena de um sábio e de um tirano e não
somente, como nos diálogos de Platão, de um sábio e de um porta-voz dos
tiranos. Um mestre fala sobre um mestre; bastará assinalar: um mestre ou um
tirano fala. De modo geral, eles se calam e são os sábios ou os súditos que falam
dos mestres. Por outro lado, um tirano consente em escutar um sábio, chega
mesmo a solicitar sua opinião. Falar e consentir em escutar repousam “sobre a
hipótese de um tirano que é capaz de ser ensinado” (H, pág. 298). Mas uma
hipótese não é uma tese. É portanto sobre a base de uma hipótese que o leitor
pode seguir a maneira de proceder do sábio. “Dá-se, escreve Platão na Carta VII,
conselhos a um homem doente e que pratica um regime detestável... 0 doente
aceita vos escutar? Se não aceita, renunciar então a aconselhar semelhante
obstinado seria, a meus olhos, manifestar-se como homem e como médico...
Mostrar-lhes por que meios tudo tornar-se-á mais cômodo e fácil para eles, o
homem que suportasse tal papel, eu o teria como um covarde.”
Lidamos com uma situação dialogada, isso é, com uma ficção; precisa­
mente a do encontro entre um sábio e um tirano. A hipótese não é nada mais
do que a ficção de um tirano que fala e que escuta, mas igualmente a de um
sábio que fala a um tirano. A hipótese só pode portanto ser desenvolvida se a
tese —a tirania é um sistema político radicalmente aberrante - for dissimulada
ou encoberta. Simônide, no Hierâo, dissimula até o fim aos olhos do tirano seu
saber concernente à natureza da tirania. Ele evita mesmo empregar esse termo
na segunda parte do diálogo e o substitui pelo de príncipe. Prática que
retomará Maquiavel no Príncipe. Quando Simônide expõe a arte da tirania, da
tirania melhorada, ele mantém silêncio sobre a natureza desse regime e se atém
de maneira limitativa apenas às condições de seu exercício; ele não toca nas
causas mas nos efeitos da tirania. O Hierâo, para nós leitores, reforça o
paradoxo de uma conduta que consiste em prodigalizar um ensinamento
prático não alterando um ensinamento teórico mesmo que ele o contradiga. A
conduta efetiva do tirano poderia ser modificada sem que fosse recolocada em
causa a natureza "monstruosa” da tirania.
Para jogar esse jogo sutil, os deslizamentos de terra só podem ser
evitados se a prudência do sábio acompanhar a ousadia de suas hipóteses. O
que visa um sábio apresentando um ensinamento que parece vir em socorro
de um regime julgado defeituoso por outro lado? A questão essencial não é na
verdade a de saber se o tirano colocará em prática os conselhos do sábio. Um
tirano inteligente não tem necessidade de estabilizar seu regime. Dessa forma,
a enumeração por Aristóteles dos meios para conservar a tirania só fazem

1160
retomar condutas efetivas utilizadas por tiranos: Aristóteles não as inventou.
Ele aconselha aos tiranos recorrer “com conhecimento de causa” a meios que
já foram aplicados mais ou menos cegamente. Todos esses conselhos "maquia­
vélicos” fazem parte de um ensinamento do qual os tiranos podem tirar
vantagem, já que o filósofo dá-lhes a boa consciência de fazerem o que faziam
até aqui com mais ou menos má consciência" (PSM, pág. 306). Esse ensina­
mento prático inscreve-se portanto aqui dentro de uma situação dialogada em
que o ensinamento teórico seria lido entre as linhas. Não visaria de maneira
nenhuma a uma meta prática mas teria ele próprio um alcance teórico. O que
é da sabedoria de um sábio que dá conselhos a um tirano? É da relação entre
sabedoria e poder que se trataria então dentro do diálogo de Xenofonte.
O método de leitura proposto por Strauss é particularmente esclarecedor
e permite trazer à luz a verdadeira motivação do diálogo. Isto, precisamente,
porque ele mostra que todo diálogo é ordenado em torno de temas teóricos que
são calados intencionalmente. “A meta a que se propõe o Hierão não é, na
verdade, exposta em nenhum lugar por seu autor” (H, pág. 52). Ora, isso se deve
ao fato de que Xenofonte não nos apresenta seu saber sobre a tirania sob uma
forma pura e científica (H, pág. 130), mas dentro de uma situação dialogada.
Strauss faz o recenseamento dos termos que são evitados por Simônide: o demos,
a politeia, a realeza, as leis; nenhuma alusão à justiça nem mesmo ao “bem
comum": estratégia não é verdade. Simônide não se refere jamais aos regimes
legítimos, o que seria uma maneira de minar aos olhos de Hierão a razão de ser
da tirania. Desta maneira ele evita dizer a Hierão que “finja ser o rei”, como dirá
mais tarde Aristóteles. O que certos comentaristas estimam ser, no caso do
Hierão, uma versão empobrecida da análise platônica da tirania corresponde, na
verdade, ao efeito de seleção de uma arte de escrever.

A repartição dos papéis e dos discursos

Xenofonte faz um poeta desempenhar o papel de um sábio. O persona­


gem de Simônide não é o personagem de Sócrates: ele “não grita a virtude do
alto dos telhados”. Simônide apresenta portanto imagens da sabedoria ou pelo
menos de um certo saber que embaralham as cartas quanto à verdadeira
natureza da sabedoria. No entanto, esse poeta vagabundo não é um sofista,
isso é, alguém que tira proveito do prestígio do qual pode gozar o saber. Desse
modo, Simônide mantém discursos “judiciosos” que só poderiam ser o efeito
de uma arte de ilusão. A ambigüidade que ele escolhe deve ser a característica
dos sábios que se dirigem a tiranos. Uma das funções próprias dessa ambigüi­
dade é a de fazer nascer dentro da alma de um tirano um temor indeterminado
face a um sábio do qual ele não pode determinar o intento com nitidez.
O papel desempenhado por Hierão é quanto a ele desprovido de ambigüi­
dade, exceto o fato, já assinalado, de que ele aceita discutir com um homem que
supostamente sabe mais do que ele. É a repartição dos discursos que deve reter
nossa atenção. O processo da tirania é confiado ao tirano e seu elogio ao sábio.
Simultaneamente, o processo da tirania é conduzido sobre a base de um vivo

1161
elogio do amor e dos prazeres do corpo; enquanto o elogio da tirania é conduzido
sobre a base de um vivo elogio da honra. Poder-se-ia rapidamente concluir que
o conhecimento da diferença entre o amor e a honra pode nos ensinar sobre a
que existe entre a vida tirânica e a vida segundo a sabedoria, já que Simônide
tem a honra e os prazeres que derivam dela como o que há de mais elevado. Ele
deixa portanto entender que ele próprio pode fazer parte dos homens que
aspiram à honra. Mas as coisas não se apresentam assim tão abstratamente. E
preciso determinar dentro do diálogo em que momento intervém o elogio ao
amor, depois o da honra, já que tratamos com discursos estratégicos. É preciso
levar mais em conta o fato - visto a ausência da palavra "sabedoria" - de que os
temas teóricos explicitamente desenvolvidos reduzem-se a dois: o do amor e o da
honra. Se se rejeitasse a sugestão de Strauss - no caso, a utilização de uma arte
de escrever secreta da qual um dos efeitos é dissimular a sabedoria verdadeira
—, poder-se-ia enunciar essa hipótese: esqueçamos que Xenofonte é o autor do
Hierão; nada nos impediria então de supor que esse diálogo teria podido ser
escrito por Maquiavel, autor do Príncipe e da Mandrágora.
Todos os discursos do tirano na primeira parte do diálogo tendem a
persuadir Simônide de que a vida tirânica é indesejável porque há incompati­
bilidade entre “ser tirano” e “ser amado”. A tirania afasta do amor. O tirano é
portanto mais infeliz do que o simples particular. Hierão apresenta-se como
levado pela necessidade irresistível de ser tratado como alguém que se ama,
figura do amante eternamente repelido. “Digam-me, minhas filhas, qual de
vocês devemos julgar a mais amorosa?”, perguntará o Rei Lear. A estratégia
de Hierão diante de Simônide consiste em lhe fazer acreditar que ele não é
atraído pela tirania mesmo exercendo-a. Tese que pode ser plausível. Esse
quadro negro pintado por Hierão se opõe à opinião comum que Simônide
retoma por sua conta e que estima que, se a tirania é má para a Cidade, ela é
melhor para o tirano. Esse julgamento próprio da opinião pública explica o fato
de que os tiranos são ao mesmo tempo odiados e invejados. Simônide
apresenta-se da mesma forma como menos bem informado do que Hierão, que
“sabe” do que ele fala: “Provando que ele é extremamente infeliz, Hierão prova
que ele é mais sábio do que Simônide” (H, pág. 72).
Mas há outra coisa me jogo. Se Hierão mantém o discurso sobre o amor
é para não manter ele próprio o discurso sobre a honra. Na hipótese de uma
estratégia, supor-se-á que o tirano sabe que a honra traz uma satisfação mais
ampla do que aquela que deriva do amor e que o desejo da honra é a verdadeira
motivação do homem que aspira ao poder. Na hipótese de uma ausência de
estratégia, supor-se-á que Hierão procura somente dissimular sua ambição
porque ele está desconfiado face aos verdadeiros desejos de seu interlocutor.
Silenciar sobre a ambição é uma manobra grosseira que mostra que o tirano
não conhece a diferença que separa a ambição da honra, isso é, o estúpido
desejo do poder do desejo esclarecido de exercer uma verdadeira autoridade.
Seja como for, o fato de não ter tomado ele próprio a iniciativa do discurso
sobre a honra o conduzirá ao fracasso diante de Simônide.
Este último não está efetivamente de maneira nenhuma impressionado

1162
pelos discursos negativos de Hierão sobre a tirania e persiste acreditando que
o caminho tirânico, sobre o capítulo dos prazeres do amor e do corpo, é mais
desejável do que o caminho privado dos particulares. O capítulo 7 corresponde
a uma reviravolta decisiva dentro do diálogo. Simônide toma a iniciativa do
discurso sobre a honra, discurso do qual a opinião comum não retoma mais a
responsabilidade e do qual pode-se pensar que é ainda mais “retórico” do que
seu elogio anterior da tirania. “Parece-me, Hierão, que a honra é uma grande
coisa... Vocês se referem sobre a tirania com impetuosidade para que os
honrem, para que todo o mundo obedeça sem rodeios suas ordens." E ele
acrescenta: “Parece-me que o que faz a diferença entre o homem e os outros
animais é o desejo da honra.” É destruído com uma bofetada todo o discurso
de Hierão concernente aos prazeres do corpo e do amor que o homem partilha
com os animais. Mais ainda, pelo desejo de ser honrado e de honrar, o homem
reaproxima-se da divindade. O elogio da tirania encontra um fundamento que
a faz sair do horizonte bitolado em que Hierão havia tentado mantê-la. Mas, da
mesma forma, se a honra é o que o homem pode desejar de melhor, verifica-se
que Simônide também pode aspirar à tirania. Daí o alarme do tirano.
Hierão vê-se forçado a fazer um sobrelance mostrando que ele não retira
nenhum prazer das honras na medida em que ele está condenado à pior das
corrupções morais. Ele faz abertamente apelo ao “senso moral” de Simônide
para que sua sabedoria o dissuada de escolher a vida segundo a honra ao preço
do crime. Strauss assinala neste momento preciso (fim do capítulo 7 e começo
do capítulo 8) do diálogo o que ele chama de o silêncio do sábio. “Após haver
escutado até o fim todo esse discurso, Simônide...” Este reforça o efeito que
produz seu silêncio por meio dessa estocada: se a vida do tirano é tão miserável
como ele diz —Hierão não chega até a sugerir que ele deveria se enforcar? —,
por que ele não abandona o poder? Se ele se prende a isso, não é porque a
tirania é sempre desejável?

O silêncio de Simônide

Simônide acolhe portanto, dentro de um silêncio que se pode supor glacial,


as propostas de Hierão concernente a sua imoralidade. O silêncio de um
personagem, principalmente quando se trata de um sábio, corresponde a um dos
procedimentos da arte de escrever esotericamente. Guardando o silêncio, Simô­
nide dá a aparência de um sábio desprovido de todo escrúpulo e de maneira
nenhuma abalado ou indignado pela infâmia do tirano. Por outro lado, ele
aparece como um homem que não procura - a exemplo de um democrata que a
coragem e a justiça animam - restabelecer o poder da liberdade e das leis. Ele
pode então parecer estar na situação de tirano virtual. Ele deixa pensarem que
“essa inevitável imoralidade não o impediria de aspirar à tirania por amor às
homenagens” (H, págs. 110-111). Para um leitor advertido da presença de uma
arte de escrever utilizada por um sábio, mas não por um Hierão, “mesmo um
homem perfeitamente justo que quer dar conselhos a um tirano deve apresentar-
se como um homem desprovido de todo escrúpulo”.

1163
Hierão se dá conta daí em diante a quais extremos poderia ir um homem
dispondo de um saber superior ao seu para exercer a tirania. Por seu silêncio,
infinitamente mais subversivo do que a indignação ou a denúncia dos valores
morais ou supostos como tais, Simõnide coloca o tirano a sua mercê. Se o
poeta o quisesse, escreve Strauss, ele teria os meios para exterminá-lo. No
entanto, “aqueles que praticam a sabedoria e acreditam-se capazes de dar
conselhos úteis a seus concidadãos não se deixam levar à violência... a
persuasão produz os mesmos resultados... Pois quem desejaria matar alguém
mais do que ganhá-lo vivo pela persuasão?” (Mémorables, I, 2).

A conversão imaginária

O medo substituiu a suspeita. É a vez de Simõnide jogar daqui para


frente. Longe de ir no sentido de sua proposição de abdicação, ele mostra a
Hierão que o tirano é um príncipe e que enquanto tal pode gozar de um grande
prestígio. Se ele quiser ser honrado, é preciso que “dispense as apologias e as
honras àqueles que as praticam melhor": só o reconhecimento atrai o reco­
nhecimento. O leitor poderá reportar-se às medidas das concretas propostas
por Simõnide e que retoma quase que palavra por palavra Maquiavel no fim
do capítulo 21 do Príncipe. Essas medidas mostram que “o fato de honrar seus
súditos por meio de recompensas é um excelente negócio” {H, pág. 123).
O poeta propõe a Hierão uma espécie de conversão. O desejo de honra
opera uma transformação nele que atrai a vida tirânica no sentido em que, sem
ter de renunciar a seus desejos e a seus interesses, ele pode passar de uma
meta acanhada para uma meta ampla. Simõnide faz Hierão entrever que se a
tirania que ele exerce é injustificável, a que ele lhe propõe que exerça pode ser
perfeitamente justificável. Seu silêncio já havia sugerido que o caráter criminal
ou não da tirania é um ponto secundário. Esta conversão repousa portanto não
sobre “razões morais” - nenhuma alusão é feita à virtude e à justiça mas
sobre a necessidade inerente ao próprio exercício do poder. A honra não
elimina a opressão mas a tempera. Ela abre ao tirano um campo de possibili­
dades novas e permite-lhe agir. Ela pode servir à segurança do tirano, liberá-lo
até certo ponto do medo da morte violenta, reforçar sua autoridade, reforço
que teria bases positivas sobre seus súditos que se beneficiariam de sua própria
segurança. “Basta-lhe compreender que agir em favor de seus súditos não
prejudica a segurança de seu poder nem a satisfação e sua ambição” (PSM,
pág. 292). Deste modo seus súditos poderão beneficiar-se dos efeitos de seu
poderio. Não há nenhuma necessidade para Hierão de se devotar ao “bem
comum”; nenhuma necessidade de ser virtuoso; a aparência de virtude basta.
Simõnide faz Hierão entender “o canto de sereia da virtude” (H, pág. 126). No
começo do capítulo 26 do Príncipe, Maquiavel escreverá que o desígnio de um
príncipe prudente e virtuoso é introduzir uma forma de governo que lhe trará
a honra (onore) e que será em compensação benéfica a seus súditos.
A conversão proposta consiste em passar de uma lógica do amor, lógica
limitada e infra-política que considera o Estado como a propriedade privada de

1164
um príncipe (o tirano neste caso afronta seus súditos como um particular
afronta outros particulares), para uma lógica da honra que confere ao Estado
uma dimensão quase que universal e que traz para o príncipe uma satisfação
não menos universal. O desejo do príncipe exprime ao mesmo tempo seu
próprio desejo e os de seus súditos já que o reconhecimento marcha nos dois
sentidos. Sustentado pelo desejo da honra que seus súditos partilham com ele,
o tirano estará, além disso, em condições de empreender tarefas difíceis, até
mesmo gloriosas.
A promessa final de Simônide, assegurando ao tirano que obedece a seus
conselhos “uma felicidade que não fará invejosos”, parece supor que o desejo
de reconhecimento pode encontrar sua satisfação eliminando a luta para o
reconhecimento. O sucesso da conversão depende desse fator. O silêncio de
Hierão mostra que ele não compreendeu a motivação dessa conversão, fas­
cinado como está pelos prazeres do corpo, os quais permanecem um dos
motivos que fazem um homem aspirar à tirania. Mas além da tolice de Hierão,
é uma nova concepção da vida privada e da vida pública que aparece neste
ponto. A vida política só se define sobre a base da exclusão da vida segundo o
amor ou o desejo sexual. Essa concepção parece prefigurar a de um Maquiavel,
de um Hobbes, de um Hegel.
Entretanto isso quererá dizer que, segundo Simônide - e a fortiori -
segundo Xenofonte, a honra e o amor sejam definitivamente exclusivos um do
outro? A ambigüidade nasce do fato de que o discurso de Hierão é equívoco
na medida em que confunde no amor o que Xenofonte distingue com cuidado
noutro lugar, mas que aqui é assemelhado: eros, philia e as aphrodisia
(Mémorables, I, 4). "Desejo” e “amizade” estão próximos um do outro; as
aphrodisia são desejos servis. Hierão só considera esses últimos. A promessa
de Simônide deixa entender que, se Hierão tivesse a glória honesta, teria a mais
a amizade. Não temos portanto que tratar com uma alternativa: ou o amor ou
a honra. A philia concerne com efeito a todas as relações humanas, tanto
privadas quanto públicas, e a honra não a exclui, muito pelo contrário. A
relação social, política e econômica, é anterior à philia que a reforça e a
exprime no nível da afeição. A concepção clássica da amizade impede a
separação radical da vida privada e da vida pública. Eia poupa os problemas
colocados apenas pelo desejo de reconhecimento, na medida em que a presen­
ça da philia é a prova de que a relação entre um príncipe e seus súditos obteve
sucesso; enquanto o reconhecimento nunca é assegurado já que a luta e o
medo de ser morto sempre subsistem.

A motivação do Hierão

Do lado dessas considerações conceituais, é o caráter empírico dos


conselhos propostos ao tirano que atrai a atenção. Simônide aborda o proble­
ma prático dos mercenários. Ele sugere que uma parte do poder seja transfe­
rido aos cidadãos; operação que supõe uma dose de habilidade permitindo
certificar-se da confiança dos cidadãos sem atrair a desconfiança dos soldados.

1165
Esta decisão é apresentada como dependente das circunstâncias: a ameaça que
os Bárbaros fazem pesar sobre a Sicflia impedem ou não o tirano de armar
também o povo? Ela implica também que o tirano aceite estabelecer relações
de força opondo as diversas camadas sociais e reconheça que a sociedade da
qual ele é o chefe compõe-se de vários atores e não de um só.
Strauss insiste sobre o final do Diálogo: o silêncio de Hierão. Significa
que essa tentativa de melhorar a tirania está destinada ao fracasso? Neste caso,
esse Diálogo teria sido inútil ou a prova, pelo absurdo, de que a tirania é um
regime bloqueado sem esperança de melhora. Kojève pende para uma inter­
pretação negativa. A resposta de Strauss nos parece esclarecer a motivação do
Diálogo e o que Xenofonte procura mostrar.
Dois elementos devem ser considerados: a forma do Diálogo e seu
conteúdo. A forma remete a essa arte de escrever de que necessita uma
situação de perseguição e de ameaça; um sábio colocado em presença de um
tirano corre graves perigos à semelhança dos outros cidadãos. Sua tentativa
de melhoramento da tirania deve tomar uma forma indireta que dá conta da
estratégia do sábio: longe de partir da confiança que ele poderia inspirar ao
tirano, ele parte da desconfiança; joga os elementos passionais uns contra os
outros; joga com a carta da mecânica passional. Esse jogo atinge seu ponto
culminante quando Simônide apresenta-se como um sábio que atrai a tirania.
A forma do Hierão imita a tirania.
O conteúdo está, por outro lado, na medida da forma. Simônide propõe
a Hierão que ele se sirva do mal contra o mal, que procure no mal o remédio
contra o mal; a idéia de uma aspiração ao bem que animaria o tirano está
ausente aqui. Por outro lado, a proposição de Simônide sobre os mercenários
apela para a inteligência das situações ou para a arte de governar. É lembrado
que o homem de ação opera dentro da dependência das situações, que ele age
cada vez de uma maneira. A indeterminação das conjunturas permite apenas
que seja requerida esse poder da inteligência. O silêncio de Hierão remete a
essa problemática empírica: só ele pode apreciá-la em função das circuns­
tâncias. O sucesso da empresa de Simônide é somente provável; seus conselhos
não são viáveis sob todas as condições mas nas situações que poderiam
apresentar-se como favoráveis. Dentro do caráter empírico dos conselhos
dados pelo sábio reconhecemos um dos grandes princípios que anima o
pensamento político antigo quando ele encara a vida política concreta e que
formularemos trivialmente assim: dentro de todos os regimes políticos exis­
tentes, “isso funciona como pode”...

Teoria e prática

Todo regime existente funciona empiricamente. O funcionamento empí­


rico das instituições, a sabedoria improvisada dos homens políticos mostram
que nenhum regime funciona “necessariamente” ou estritamente conforme
sua essência; que nenhum regime determina quase que mecanicamente (a
exemplo do Soberano de Rousseau) seu próprio funcionamento e a maneira

1166
de exercer o poder. A vida política é empírica porque existe sempre jogo nela,
mesmo que reduzido ao mínimo como no caso da tirania. Essa contingência
ou essa possibilidade elimina toda ortodoxia política e maneja nem bem nem
mal a idéia de um melhoramento eventual assim como aliás a de uma
degradação.
0 Hierão situa-se portanto no plano do exercício efetivo do poder. É
suposto da mesma maneira que um poder, pelo simples fato de se exercer, vá
encontrar possibilidade de ser melhorado. O poder dentro de um regime
tirânico não está absolutamente condenado a só ser exercido tiranicamente.
Uma oportunidade, mas somente uma oportunidade, é reservada para uma
melhora eventual. A empresa de Simônide corresponde a uma oportunidade
para se agarrar. Nenhuma benevolência há nessa iniciativa que não apague a
diferença qualitativa que separa os diversos regimes.
Lembremos que para um Platão ou para um Aristóteles, todos os regimes
existentes são imperfeitos; um entre eles sendo o mais defeituoso de todos. É
colocada uma distância irredutível e imutável entre esses regimes e o regime
que seria simplesmente bom. Essa distância é descrita em termos de tensão e
de aspiração a uma melhora possível. Nenhum regime encarna a norma, mas
todos são suscetíveis de visá-la; o que subentende que em certas situações esses
mesmos regimes não são suscetíveis de ser melhorados. Pessimismo e otimis­
mo virão cruzar-se neste ponto. 0 exame do melhor regime, isso é, daquilo que
política ou viver-junto politicamente quer dizer, é da competência da teoria ou
da contemplação, a única atividade que é verdadeiramente subversiva já que a
norma da qual ela se vale conduz à contestação de todas as políticas de fato.
A tarefa do filósofo não é de construir com todas as peças —contrariamente
ao que poderia fazer crer a conduta de Platão dentro da República - um
regime que, conforme essa norma, se inscreveria dentro do real, por meio de
uma espécie de forcing. Esses filósofos pensam sobre o político em termos de
normatividade e “praticam” a política empiricamente. Não há intromissão da
prática dentro da teoria.

A tirania moderna e a sciencia propter potentiam: a querela dos


Antigos e dos Modernos

No começo desse livro, Strauss estabeleceu uma dupla constatação: 1) a


filosofia política antiga estava em condições de analisar as tiranias próprias de
seu tempo; 2) a filosofia política moderna e principalmente a contemporânea foi
pega inesperadamente diante da aparição de “tiranias” como o nazismo e o
stalinismo. A impotência da teoria moderna para esclarecer esses fenômenos
políticos novos tem, segundo Strauss, uma razão de ser bem precisa: esse
pensamento político viu-se confrontado com “tiranias” que se desenvolveram
sobre a base de seus próprios princípios. O transtorno que os modernos —a partir
de Maquiavel - fizeram com que a teoria “sofresse” está na origem dessa
cegueira. De contemplativa, a teoria política tornou-se scientia propter poten­
tiam. Domínio! Esta é a paiavra-mestra que corre sem descanso sob a pena de

1167
Strauss. “Confrontados com esse processo perturbador, não podemos deixar de
nos perguntar o que, na derrota da filosofia política clássica, pôde dar nascimento
à aventura moderna que era considerada como devendo ser uma empresa
racional” (Pensées sur Machiauel, pág. 321). A filosofia política moderna pensa
sobre a política em termos de potência; mas, por um efeito de choque em retorno,
essa nova idéia da vida política transforma a teoria em um efeito-de-potência.
Essa tese coloca uma questão anterior que é preciso examinar. Essa ideia
é qualificada como perigosa; ora, eis aí uma afirmação logicamente insus­
tentável; uma idéia não é perigosa: ela é verdadeira ou é falsa. Se existe perigo,
isso prova que ela não é uma idéia mas uma “ideologia”. O pensamento
moderno seria o equivalente de uma sofistica? Strauss não o escreveu jamais.
Seria falso? Esta é uma questão que se está no direito de colocar... Ainda mais,
afirmando que as “tiranias” contemporâneas têm uma conivência com os
princípios do pensamento moderno, Strauss deixa entender que esses fenôme­
nos políticos são efeitos da teoria. Proposição contraditória. Se a potência é o
mestre-de-obras da política, a idéia ou a teoria não pode ser colocada como
tendo por ela mesma qualquer eficacidade. É a potência e não a idéia que
“conduz o mundo”! Uma teoria que pensa sobre a política em termos de
potência é uma coisa; uma teoria que pensaria sobre si mesma nestes termos
é uma outra; bem mais, um tal empreendimento verifica-se absurdo já que ela
não pode autodestruir-se enquanto pensamento independente de seu objeto.
Tal suposição vale para um Cálicles que afirma que o que ele diz é ele próprio
tomado dentro daquilo que ele fala. Tudo é objeto para um sujeito que se torna
por sua vez um objeto da potência. É a ruína de toda teoria.
Há, no entanto, alguma coisa de “transtornante” ou de "derrapante” na
interpretação de Strauss. A filosofia política moderna apresenta com efeito um
comportamento que se poderia qualificar de torção e que faz dela toda a
acuidade. Ela começa por eliminar a idéia antiga de que o homem nasce
cidadão; imediatamente o homem torna-se um enigma. Ela dá em um segundo
tempo um nome a esse enigma: a vontade ou desejo da potência como
modalidade dessa potência; mas já que a potência é apenas a denominação
desse enigma que permanece o x incontornável, o teórico não tem outra
alternativa senão construir peça por peça o objeto de sua teoria. “Nós só
compreendemos aquilo do qual somos os autores”, escreve Hobbes. Mesmo
comportamento com Rousseau, que constrói o Contrato do princípio ao fim.
“Uma ficção para ver”, dirá ele mesmo. A construção que se edifica sobre suas
próprias bases repousa sobre um fundo desconhecido em si do qual ela está
separada como que por uma vidraça embaçada. É a razão pela qual ela esse
pensamento político que coloca no início uma potência enigmática é uma
filosofia da insegurança com a qual é preciso compor bem e viver. O domínio
da mesma forma só fala sobre a capacidade de construir um mundo político
habitável mas não sobre a própria potência que permanece nas lonjuras o
Mestre absoluto. Domesticar a Potência ou a Sorte, escreverá Maquiavel, na
medida em que isso dependa de nós; mas o que depende de nós, isso é, o que
podemos fazer, reenvia sem parar para essa indomabilidade.

1168
Nenhuma teoria poderia portanto equivaler-se àquilo que é o Ser; ou
melhor, nenhuma teoria pode assegurar-se de que é exatamente o Ser do qual
ela fala. A diferença para com a conduta antiga é considerável na medida em
que essa sabe de que ela parte, no caso do Ser dentro do qual está inscrita a
dimensão comunitária, isso é, a dimensão lingüística que torna possível o
discurso político. O pensamento político moderno não é portanto, segundo
nós, uma teoria falsa; é uma teoria que não prova nada e que sempre foi
considerada como tal. Ela é às avessas.
Ora, é exatamente aí, segundo Strauss, onde o sapato aperta: dentro do
esquecimento enfim de toda referência da teoria ao Ser. Crítica que se aparenta
manifestamente ao encaminhamento de Heidegger, apesar de se desenvolver
sobre uma base radicalmente oposta no que concerne à concepção que cada
um tem do Ser. O que Strauss escreve concernente ao Estado homogêneo e
universal dentro da Afinação do Hierõo depende de uma análise análoga
àquela conduzida por Heidegger nas páginas luminosas da Superação da
Metafísica (em Essais et Conférences, Galimard, 1958), páginas das quais nós
fazemos nosso fio condutor.
Está examinada a tese moderna que coloca a Potência ou Vontade de
Vontade como condição do poder absoluto. Trata-se, para a Vontade, de ser
invencível, de assegurar sua segurança absoluta. Ela aparece em um primeiro
tempo sob uma forma naturalista, como conatus (com Hobbes), já que o que
ela quer é ainda alguma coisa de exterior a ela. O poder, escreve Hobbes,
consiste nos seus meios presentes de obter algum bem aparente futuro. A
Vontade visa, portanto, a algum bem fora dela. Em seguida, essa Vontade só
visa a ela mesma: a meta do poder permanece interior ao poder: ele é para si
mesmo seu próprio fim. Mas se a Vontade de Vontade quer a si mesma, por
que ela dá poder a lutas, por que se faz Vontade de Potência? Nas lutas, ela
experimenta a si mesma, coloca-se à prova; o poder absoluto é exatamente a
motivação. Neste sentido, ele permanece inacessível já que se deve experimen­
tar (lutar) sem parar. Nessas lutas puramente internas a Vontade de Vontade
só procura coincidir consigo. Todos os fins que ela visa são, na verdade, meios;
o que mostra que nenhum fim é daí em diante exterior a ela.
E porque ela só quer a si mesma que a Potência abole toda referência ao
Ser, a qualquer coisa que lhe seria exterior; ela é esquecimento do Ser: ela é
o Ser. Sendo o tudo fechado sobre si mesmo, ela é idêntica para todos. Na
Vontade de Vontade não é o ser de cada um dentro de sua singularidade que
quer: ele é querido (desejado). O indivíduo alimenta a ilusão de que é sujeito
querendo e agindo quando se define como uma vontade. Na realidade, ele é o
objeto dela. A Potência domina e subjuga toda decisão. Ela abole toda
diferença entre os seres: reino do homogêneo universal. Na corrida ao poder
absoluto, só existe vontades idênticas em luta pela dominação em que cada um
é unicamente um obstáculo para cada outro.
Sobre a base dessa análise, mostra-se que a Vontade de Vontade é
nihilismo já que ela abole ainda uma vez o Ser como instância exterior a ela.
Da mesma forma, ela é destruidora do poder no sentido político do termo.

1169
Nesse estágio da análise, Strauss, poder-se-ia dizer, faz o revezamento. Um
poder é político quando ele tira seu significado de sua relação com outra coisa
que não ele mesmo; quando sua forma não é idêntica a seu conteúdo; quando
visa a um fim exterior que lhe serve de medida. Em seu teor político, o poder
é decisão, apta a deliberar, o que supõe uma relação com o real e com sujeitos
políticos diferenciados. Dessa forma, ele não é exclusão, até mesmo destruição
do outro, mas relação com o outro, ainda que utilitária. Ele não pode portanto
excluir a verdade, isso é, o acordo entre seres diferenciados, acordo que está
inscrito na natureza das coisas. É portanto por sua inscrição dentro do Ser que
o poder é político e escapa ao nihilismo.
O que separa Strauss de Heidegger reside na concepção que cada um
tem do Ser. Strauss afirma que, reduzindo o Ser a alguma coisa de abissal,
destina-se o homem a uma temporalização intransponível, Heidegger conclui
esse movimento nihiíista já que “o acaso afeta o ser se ele não for idêntico ao
Ser” (H, 343). Mas do outro lado dessa divergência, esses dois pensadores
fornecem pouco à Modernidade que eles reduzem à marcha inexorável e
homogênea de uma fatalidade da qual resta perguntar-se se ela está inscrita
no próprio Ser ou se ela é o produto de um “pensamento” extravagante...
Restaria perguntar-se se a filosofia política moderna corresponde exata­
mente a essa empresa que só teria tirado sua força de sua ruptura com o
pensamento antigo. O grande assunto dessa filosofia é a história, no sentido
em que todas as coisas estão mergulhadas no tempo. Este último representa
certamente a queda do Absoluto dentro do Relativo; mas a "temporalização:
ao mesmo tempo criadora e destruidora não é ela mesma colocada como
eterna, intemporal? Deslocamento da philosophia perennis e não ruptura... O
historicismo e o positivismo seriam então apenas formas degradadas desse
pensamento segundo o tempo, a exemplo do que foi a sofistica com relação ao
pensamento antigo.•

• A produção de Strauss vai do ano de 1921 (tese sobre Jacobi) até o ano de 1973, com um
ponto forte que marca uma orientação nova: 1932, data na qual ele deixa definitivamente a
Alemanha e vai para os Estados Unidos. Publicação da primeira parte das obras de Moses
Mendelssohn, 1929, cf. A rch ives d e P h ilo so p h ie, t. 42, (IPAufhiaerung); obra sobre Espinosa,
1930, traduzido para o inglês sob o título de S p in o z a 's C ritiq u e o f R elig io n , Nova York,
Schocken, 1965; 1935, P h ilo so p h ie u n d G e se tz (Filosofia e lei), obra essencial a ser publicada
brevemente em inglês; obra sobre Mobbes, 1936, traduzido para o inglês sob o título The
P o litic a l p h ilo s o p h y o f llo b b e s, Chicago Press, 1906; 1941, P erse cu lio n a n d lh e A rt o fW r itin g ,
reeditado sob o mesmo título na obra do mesmo nome com outros estudos que trazem à luz
essa arte de escrever esotérica, obra-chave para ler Leo Strauss, Clencoe Free Press, 1952,
Creenwood, 1973, 1976; 1948, On T y r a n n y :a n in te r p re la tio n o fX e n o p h o n 's “H ie r o ”, reedita­
do em Cornell UP Paperbacks, 1968, trad. franc., Callimard, “Essais”, 1954 e 1983. Essa obra
compreende um diálogo, entre Strauss e Kojève, sobre as alternativas fundamentais em filosofia,
concernentes aos Antigos e aos Modernos. É colocada a questão da tirania moderna; 1953,
Lições sobre “O Príncipe” e sobre os “Discorsi”, que serão retomadas em T h ou gh ls on
M a c h ia v elli em 1958 e traduzidas para o francês em 1982, Payot; 1954, trad. franc. de D ro it
n a tu re l e t H isto ire, Plon, trad. em C ritiqu e, X, 83, de O n th e fía s is o f flo b b e 's P o litic a l
P h ilo so p h y; 1959, W hat is P o litic a l P h ilo so p h y? . Clencoe, 111, The Free Press, obra fundamen-

1170
tal sobre o enfoque antigo e a conduta moderna concernente à política, Greenwood, 1973,1975,
1976; 1963, introdução ao C u id e d e s E g a ré s de Maimonides, Chicago, III, University of Chicago
Press; 1964, The C ity a n d M an, Chicago e Midway, Rand McNally, 1977; 1966, S ó c r a te s a n d
A risto p h a n e s, Basic Books; com o E p ilo g u e que permanece uma peça-mestra no enfoque dos
Tempos Modernos; 1971, 1973 e 1975, X e n o p h o n 's S o c ra tic D isco u rs, Cornell Paperbacks;
X e n o p h o n ’s S ó c r a te s , mesma editora; T h e A r g u m e n ta n d A c tio n o f P la t o ’s L a w , Chicago Press;
Xenophon’s Anabasis, em I n te rp r e ta tio r v A J o u r n a l o f P o litic a l P h ilo s o p h y ; 1975, P o litic a l
P h ilo so p h y , S ix E s s a y s b y L e o S tra u ss, Hilail Gildin, obra onde é exposta em sua radicalidade
a Q u erela d o s A n tig o s e d o s M odernos-, L e s T rois V agues d e la M o d ern ité, traduzido por Y.
Hersant, C a h ie rs P h ilo so p h iq u e s, n4 20,1984.

► Allan Bloom, Un vrai philosophe, Leo Strauss, em C o m en ta ire , n - 1, 1978; The I n d e p e n d e n t


J o u r n a l o f P h ilo so p h y , consagrado a Strauss, volume II, 1978; Pierre Manent, N a iss a n c e d e la
p o lttiq u e m o d e m e , Payot, 1977; Claude Lefort, em L e T ra va il d e V O euvre, Gallimard, 1972;
Raymond Aron, Resposta a Strauss em L e S a v a n t e t le P o litiq u e de M. Weber, “10-18", 1959;
Michel-Pierre Edmond, P h ilo s o p h le P o litiq u e, Masson, 1972; Idem, prefácio aos P e n s é e s s u r
M a ch la vel, Payot, 1982; Miguel Abensour e Michel-Pierre Edmond, arL Leo Strauss, em
E n c y c lo p e d la Universalis-, Yvon Beleval, Sur PArt d’écrire ésotérique, em C ritiqu e, outubro de
1953; M. P. Edmond, em L ib re, n4 6,1979; N. Ruwet, em P o étiq u e , nfi 38,1979; Taminiaux, em
R e c o u p e m e n ts, n* 7, Ousia, 1982; Roger Zweifei, em Café, n4 3, 1983; Luc Ferry, P h ilo so p h ie
P o litiq u e, PUF, 1984.

Michel-Pierre E D M O N D .

SUAREZ 1548-1617
Defensio fidei, 1613

A Defensio fidei pode certamente passar por uma obra de circunstância;


intervindo diretamente no grave conflito que já opunha o rei da Inglaterra e o
Cardeal Bellarmin, desde 1607 (v. carta de Bellarmin ao arcipreste G.Black-
well), Suarez executava, na verdade, uma missão que lhe tinha sido ex­
pressamente recomendada pelo núncio apostólico residente em Madri. A
polêmica que ia brevemente abraçar toda a Europa e marcar de maneira
durável as doutrinas teológico-jurídico-políticas da época clássica era tão
impetuosa que Suarez não deixou, precisamente para levar em conta as
circunstâncias e sua instabilidade, de tomar todas as precauções possíveis
antes de se lançar na arena, chegando mesmo a solicitar a Paulo V, aliás sem
sucesso, "um breve pelo qual o papa lhe testemunharia sua satisfação com
todos os trabalhos que ele já havia levado a bom termo e por aqueles que ele
se propunha a proseguir”1. A resposta romana foi sem surpresas: o breve seria
enviado assim que se tivesse executado o trabalho pedido.

1171
Dessa maneira historicamente determinada, a Defensio fídei — “obra de
encomenda” —terá uma imensa repercusão não somente em razão de seu
contexto histórico imediato, mas também, sem dúvida, porque as coações
formais da controvérsia terão conduzido infalivelmente o Doctor Isximius a
mostrar seus efeitos e a radicalizar a doutrina teoiógico-política ou melhor,
eclésio-política já elaborada no Tractatus de legibus, antes apresentado sob
forma de curso na Universidade de Coimbra de 1601 a 1603 depois publicada
em dez livros, em 16122. Em seu combate às “heresias” de James I, Suarez
efetivamente deixa aparecer mais claramente do que seu comentário da Prima
Secundae a modernidade de um pensamento que, no entanto, faz expres­
samente questão de só expor doutrinas comuns universalmente aceitas3.
Naturalmente é sempre como teólogo que Suarez aborda as questões
jurídicas e políticas no De legibus, assim como na Defensio fídei ou no De
bello4, mas a necessidade na qual se encontra de defender, contra aquele que
se pode tomar como o primeiro teórico da monarquia absoluta de direito
divino, as prerrogativas da Santa-Sé, o conduz a propor, no encadeamento de
sua crítica de uma nova concepção da soberania, um contramodelo, ampla­
mente secularizado, da autoridade política, de sua fonte e de seu requisito
fundamental.
Para medir a verdadeira motivação do debate em que se confrontam o
soberano inglês e, através de Bellarmin e de Suarez, a Sé apostólica, é preciso
lembrar muito esquematicamente os principais fatos decisivos5.
Em 1603, o Rei da Escócia, James VI, filho de Maria Stuart, sobe ao trono
da Inglaterra sob o nome de James I. Depois de um início de reinado bastante
confuso, a hostilidade do soberano explode com relação a seus súditos
católicos. Ele publica em 1604 um decreto que expulsa do reino todos os
padres católicos e em particular os jesuítas. Mas foi após a “explosiva”cons-
piração que a tensão atingiu seu ponto culminante. Em 5 de novembro de
1065, descobre-se realmente uma conspiração na qual numerosos católicos
estavam envolvidos, e provavelmente também alguns eclesiásticos, planejando
atentado a bomba contra o rei no seu Parlamento, desencadear uma revolução
e instalar no trono um príncipe católico. Imediatamente após a descoberta
dessa conjuração dramática, o rei, em solene discurso no Parlamento (9 de
novembro de 1605), acusou abertamente seus súditos católicos e denunciou a
cumplicidade de jesuítas, servindo aos interesses do papa. O soberano denun­
ciou em particular as doutrinas pontificais (“mistério de iniqüidade") que,
desde o cisma de Henrique VIII, tendiam a derrubar por todos os meios,
inclusive a excomunhão, a deposição e o apelo implícito à rebelião, os
soberanos legítimos. A autoridade pontifícia podendo ir, em último recurso,
até à liberação dos súditos de todas as suas obrigações e de toda obediência
quanto ao seu soberano.
James I aproveitou-se da emoção para impor aos católicos da Inglaterra
um novo juramento de obediência (julho de 1606), ainda mais penoso do que
aqueles que a Rainha Elisabeth tinha prescrito em 1559°. James 1 bem que
quis fazer passar por um ato puramente político ou civil esse novo compro-

1172
misso, destinado simplesmente a confirmar sua autoridade, mas logo ficou
claro que o próprio texto inevitavelmente acarretaria um conflito aberto com
a Santa-Sé. Pode-se resumir as principais disposições desse texto em cinco
pontos: por esse juramento os súditos declaravam expressamente “que James
era rei legítimo e supremo senhor do reino”; "que nem o papa nem a Igreja
tinham poder de depô-lo, de dispor de seu reino ou de seus domínios, de
desobrigar qualquer de seus súditos de sua obediência e submissão”; “que,
se algum dia o rei for assim excomungado ou deposto e os súditos dis­
pensados de obedecê-lo, não se levará em nenhuma consideração tais senten­
ças e que se revelará, desde que dela se tenha conhecimento, toda maquina­
ção formada contra o monarca”, “que se repelirá com horror a doutrina
segundo a qual um rei, excomungado e privado de seus direitos, possa ser
deposto ou condenado à morte, seja por seus súditos, seja por outrem” ; “que
não se reconhecia, quer ao papa, quer a ninguém, o poder de dispensar tal
juramento ou de invalidá-lo”7.
O que esse juramento trazia de novo que justificasse a amplidão e a
dureza da querela? Sob certo sentido o juramento de obediência era muito
menos radical do que doutrinas políticas formuladas por James 1em suas obras
de 1599, The Trew Law o f free monarchies ou o Basilikon Dorons. E esses
próprios tratados parecem retomar argumentos ou topoi muitas vezes utiliza­
dos pelos teólogos da corte e os legistas contra as sentenças dos curialistas e
dos defensores da Santa-Sé em suas grandes lutas históricas com o Império.
No entanto o juramento de obediência promulgado por James I podia marcar
uma reviravolta decisiva na medida em que não tendia somente a confirmar
seus poderes absolutos, mas mais ainda a defini-los contra e com relação ao da
Santa-Sé. É por sua oposição direita à supremacia pontifícia que acha de se
afirmar a autoridade sem limites do soberano e a ausência de limites à sua
jurisdição. Para constituir-se, o absolutismo apresenta-se antes como uma
réplica fiel, uma antítese estrita, da monarquia pontifícia.
O caso de juramento de obediência fornece portanto a Bellarmin assim
como a Suarez a oportunidade para desenvolver uma crítica radical da
monarquia de direito divino, expondo uma contra-teoria relativa à origem, à
natureza a ao assunto da soberania, sucetível de delimitar rigorosamente o
principatus politicus com relação à teocracia pontifícia. Neste sentido a
controvérsia com James I oferece a ilustração evidente de uma série de
evoluções eclésio-políticas: o soberano inglês procurando refúgio contra as
tramóias pontifícias em um sobrelance teocrático, enquanto os teólogos roma­
nos, renunciando à tese da subordinação do Império defendida por George VII,
Inocêncio VIII ou Bonifácio VIII, vão esforçar-se para secularizar e como que
naturalizar o Estado. Se a teoria política do direito divino elaborar-se com
efeito como em réplica às pretensões hegemônicas da Santa-Sé, os teólogos
opõem a essa teologia política cujos motivos são antigos, mas cujo campo de
aplicação é novo, uma doutrina eclesiológica moderna (a “potência indireta”).
Se a questão da origem e do fundamento da soberania política se torna
inflamada é porque ela permite trazer à luz a instituição racional do corpo

1173
político contradistinguindo-a da constituição cristológica formal do corpus
mysticum ecclesiae.
Seguramente, tanto Bellarmin quanto Suarez devem fazer jus à palavra
do Apóstolo (Rom. 13, I): omnis potestas a deo. Toda a questão é de saber
como interpretar essa máxima fundamental,. O poder, isso é, o poder político,
vem de Deus no sentido geral que se segue necessariamente da natureza
humana, tomada como tal, independentemente de sua posição. Natural, tal
poder não poderia ser retirado do homem sem trazer prejuízo a sua essência.
“O poder político - nota Bellarmin — é nesse ponto necessário ao gênero
humano e não lhe poderia lhe ser tirado sem destruir sua própria natureza”
(De laicis, cap. 5). E é porque ele pertence tão essencialmente ao homem do
qual Deus é o autor que é permitido afirmar que ele vem de Deus imediata­
mente (ibidem, cap. 6). É por isso também que esse poder pode ser caracteri­
zado como de jure naturae: os homens realmente não poderiam subsistir sem
ser governados. Vê-se aqui em que segundo sentido derivado o poder político
pode se qualificado de direito divino, no sentido em que esse se deixa
reconduzir de maneira última a um jus divinum fundador. Se portanto,
tomado nesse sentido amplo, todo poder vem de Deus, é importante distinguir
nitidamente entre um poder transmitido diretamente por Deus, como a facul­
dade de ligar e de desligar passada a Pedro, e aquele que aparece como
conseqüência necessária da sociabilidade natural do homem. Bem mais do que
só deterem o poder vindo de Deus, os príncipes só o receberam na medida em
que ele o “insinuou dentro da alma humana como um instinto natural que os
leva a quererem ser governados” (ibidem, cap. 21). É, portanto, através dos
homens, pela mediação de sua natureza e de sua vontade, que a soberania
política se exerce concretamente e toma historicamente essa ou aquela forma
determinada. Se o poder, em última instância, deriva sempre de Deus, é preciso
compreender que ele é a deo per populum, de tal maneira que se, factual­
mente, a potência suprema (suprema potestas) se encontra detida por um
príncipe, essa não deixa de ser derivada do povo (a populo profecta ac
derivata) no qual ela está enraizada (radicaliter etsuppletive eadem potestas
est in regnof.
Suarez sublinha igualmente o caráter mediato da soberania política
conferida ao príncipe: o princípio, a fonte do poder apenas pode assegurar sua
legitimidade e sua justiça (Def. fídei, III, 1,6). A questão politicamente decisiva
é a da origem: a quo? No capítulo 2 do livro III da Defensio fidei, que aborda
a questão (Utrum principatus politicus immediate a de sit seu ex divina
institutione), Suarez defende Bellarmin atacado por James I, por ter sus­
tentado que a autoridade (auctoritas) não fora confiada imediatamente aos
príncipes como ela o fora aos pontífices. Com efeito, só o poder conferido
expressamente por Deus, considerado como causa próxima e atribuído volun­
tariamente como dom especial, é um poder que procede imediatamente de
Deus. Mas Deus só age normalmente como prima et universalis causa, autor
de uma natureza humana, ela mesma dotada de um certo número de pro­
priedades. Tratando-se da natureza humana, principalmente a de constituir,

1174
quando indivíduos estão reunidos em corpo, uma potestas política naturális
(ibidem, III, 2,3). A instituição do poder político é portanto natural, ela é uma
conseqüência da natureza humana que tende necessariamente, para assegurar
sua conservação, a se constituir em comunidade: “Eo ipso quod homines in
corpus unius civitatis vel reipublicae congregantur, sine interventu alicujus
creatae voluntatis, resultat in illa communitate talis potestas, cum tanta
necessitate, utnon possit per voluntatem humanam impediri” (III, 2, 6).
Recusar toda idéia de uma emanação imediata do poder atribuído por
Deus a um soberano, isso implica também, positivamente dessa vez, determinar
um médium entre o Deus criador e o principal político, sob todas suas formas,
a saber, o povo. Mas isso é dizer também que considerada em si mesma
(praecisespectata), a soberania não consegue encarna-se em nenhuma pessoa
ou nenhum grupo determinados, porém que ela recide essencialmente (ex
natura rei) na própria comunidade: “Prout (haec potestas) est immediate a
Deo, solum intelligitur esse in communitate, non in aliqua parte ejus” (III,
2, 7). E, acrescenta mesmo Suarez, a razão natural não permite nunca
determinar porque tal potência deveria definir-se mais como monarquia ou
aristocracia, simples ou mista. Processo regressivo de retorno à origem conduz
bem mais a apresentar a democracia como instituição divina. Conseqüência
que Suarez recusa se for o caso de entender-se por isso uma "instituição
positiva”: a instituição política originariamente democrática é bem mais quasi
naturalis, neste sentido de ela resultar da natureza humana e da razão natural:
“Ipsa ratio naturalis dietat potestam políticam supremam naturaliter sequi
ex humana communitate perfecta." Mas se a democracia pode ser dita nesse
sentido de direito natural, é preciso acrescentar que se trata aqui de um direito
natura! tomado negativamente (negativo), isso é, de um direito que "permite”
ou "concede”, sem nada "prescrever". A instituição democrática, que não é
positiva, não impõe nada, ela também não se impõe de jure naturali: a título
de “ponto zero" da comunidade política ela é o que permite todas as formas
possíveis de instituições positivas, isso é, voluntárias, inclusive a de uma
democracia expressa em que os cidadãos congregados decidiriam conservar e
exercer o poder.
Para constituir verdadeiramente uma comunidade política regulada por
um órgão soberano (principatus politicus), é preciso, portanto, juntar de novo
à instituição original uma determinado, isso é, para Suarez uma translado
potestatis, pela qual o povo remete voluntária e imediatamente seu poder ao
soberano.10
A fonte imediata do poder - abstração feita aqui de Deus como causa
prima et universalis —é portanto exatamente o povo tomado em corpo, ou
melhor, constituído de uma vez em corpus polidcum mysticumn, desde o
momento em que se agregam indivíduos isolados, da mesma maneira que do
povo é originalmente o primeiro sujeito da potestas política. Mas essa primeira
comunidade política deve, por assim dizer, instituir-se uma segunda vez para
recomeçar por uma transferência explícita de poder. Pode-se aqui falar de
contrato, mas o que importa é caracterizar precisamente a natureza singular

1175
desse contrato. A potência política, como já vimos, não pertence por direito a
nenhum homem determinado, mas sim à comunidade perfeita formada por
indivíduos reunidos em corpo: ao mesmo tempo que se constitui o corpo
político aparece a potência pública. Na realidade, essa potência cujo sujeito é
o corpo político, saído de um primeiro contrato “social” ainda é apenas
potencial o subjectum potestais deve ser anterior à potestas ipsa (De legibus,
III, 3,6). E o corpo político, para assegurar-se de sua unidade, para cumprir o
fim para o qual ele está de imediato ordenado como communitas perfecta,
deve dar-se uma verdadeira forma política dando-se um príncipe, em virtude
de um contrato propriamente político. É unicamente dessa forma que o
subjectum potestatis - o povo tomado em corpo — deixa sua posição de
entidade quase potencial ou material para tornar-se em ato um povo uno
(“unum corpus politicum quod moraliter dici potest per se unum ”) (De
legibus, 111,2,4). Como observa de maneira excelente A. de Muralt, “é o próprio
povo que transmite seu poder ao príncipe, porque só ele é detentor da potência
de ser ordenado para seu fim comum e é o príncipe que, investido da soberania
política, atualiza o poder da comunidade e conclui seu estado civil dando-lhe
seu princípio formal de unidade política”12. Compreende-se por aí por que a
transferência do poder é concebida por Suarez em termos de abandono ou de
alienação (non est delegatio, sed quasi alienatio, sed perfecta largitio): o que
é abandonado sem retorno é esse poder de unidade política que residia antes
no povo, mas que só o príncipe pode realizar e atualizar) E se, em um certo
sentido, como o sublinha igualmente Suarez, a “força da instituição primitiva”
permanecer sempre presente como o último alicerce da soberania, não deixa
de ser verdade que a transferência de poder é bem definitiva, análoga à
sujeição do escravo: “Da mesma maneira que um homem privado se vende e
se dá a um outro como escravo (esse dominium existe por ordem do homem
absolutamente, isto é, esse contrato sendo suposto, o escravo é obrigado por
direito divino e natural a obedecer a seu mestre), da mesma forma(...) a potên­
cia tendo sido transferida ao rei, ele é tornado por ela superior ao próprio reino
que lha deu (...) porque, o reino dando-a, ele se submeteu ao rei e se privou de
sua liberdade anterior, como é evidente no exemplo do escravo, guardadas as
proporções” (De legibus, 4,6). Tal interpretação da translatio potestatis como
abandono definitivo da soberania não impedirá Suarez, que já tinha subli­
nhado a permanência da vis primae institutionis, em virtude da qual o povo
permanece como fonte doadora do poder, de seguir Bellarmin defendendo
contra James 1a tese de que se o povo transmite bem sua autoridade à pessoa
do rei, “ele retém sempre sua força potencial diante dele”, para retomá-la
atualmente e de fato, dado o caso em apreciação. (Def. fidei, III, 2, 1).
Em que casos o povo pode mudar de opinião sobre a primeira translatio
potestatis e utilizar essa habitudo potentialis que ele detém desde a origem?
A resposta dos teólogos jesuítas é bem conhecida em seu princípio,
mesmo quando ela apresenta nos detalhes variações significativas que pode­
mos desconsiderar aqui. O abandono de toda potestas política ao soberano é
anulado de fato e de direito quando o soberano se transforma em tirano

1176
(tyrannus in regimine), quando ele nada mais é do que um usurpador
(tyrannus in titulo) e, enfim —e sobretudo - quando o soberano transgride os
fins espirituais da Cristandade, como herético, por exemplo (Defensio fídei, VI,
4, 1 sq.; De Charitate, tra t III, XVIII, 8, 2). Com efeito, se o corpo político
constitui uma comunidade perfeita perseguindo legitimamente seus fins pró­
prios, é permitido sustentar que o o soberano é detentor de uma potestas
suprema, no sentido de sua potência não estar submetida a qualquer autori­
dade exercendo-se dentro de sua esfera própria. É preciso portanto, decidida­
mente, contar doravante com o plural dos Estados independentes e soberanos,
ordenados cada um ad convenientem statum et temporalem felicitatem
humanae reipublicae pro tempore vitae praesentis (Def. fidei, III, 5, 2; De
legibus, III, 9, 4). Mas essas precisões (“posição conveniente”, “felicidade
temporal”, “tempo da vida presente") manifestam também de imediato que o
soberano pode e deve mesmo ser “dirigido, socorrido e corrigido’’perordinem
adspiritualia e isso mesmo quando se tratar dos assuntos temporais, visto que
elas são determinadas por uma potência de uma outra ordem, regulada para
um “fim eterno e mais excelente”. Dessa maneira, mesmo a potência do
soberano, supremo em sua ordem, encontra-se colocada sob a "dependência
indireta” do Soberano por excelência: o Supremo Pontífice (Suarez, ibidem;
Bellarmin, Tractatus de Postestate Summi Pontifícis, cap. 5)13.
Vê-se aqui como a conseqüência é originária a da doutrina do primeiro
contrato social e político e da interpretação da translado potestatis pela
doutrina da potência indireta do sucessor de Pedro em matérias temporais.
Bellarmin, ainda uma vez, enuncia-o claramente: “Da mesma maneira que Deus
deu aos homens os reinos, mediante o acordo e a deliberação dos homens, que
Ele pode e tem o costume de mudá-los e de fazê-los passar de povo para povo,
em virtude do mesmo acordo e da mesma deliberação, assim também, e com
razão mais forte, Ele pode mudá-los e fazê-los transferirem em vista de um fim
espiritual por seu Vigário-Geral que Ele instituiu acima de toda a sua família”
(ibidem).
Mas tal poder de direção e de ordenação não poderia, esclarece ainda
Suarez, ser desprovido de toda eficácia (def fídei, III, 23, 2). De “Se é verdade
que Deus deu ao Supremo Pontífice um poder diretivo, Ele lhe deu também
um poder coercitivo, senão a instituição teria sido imperfeita e inoperante.” O
Supremo Pontífice pode portanto, em virtude de sua potência (indireta,
certamente), coagir e punir: uma das modalidades privilegiadas da coação
consistindo justamente em desligar os súditos de seu dever de obediência e em
declarar o soberano tirânico. Vê-se por aí como a doutrina do tiranicídio, tão
discutida de Mariana a Suarez (Def. fídei, VI, 4, lsq.; De Charitate, disp. 13,
De bello, s. 2), constitui uma peça indispensável dentro da administração frágil
e complexa da teologia política dos jesuítas na época da Contra-Reforma.
A controvérsia com James I revela claramente o caráter profundamente
“polêmico" ou “reativo” das teorias políticas de Bellarmin e de Suarez.
Efetivamente o doutor de Coimbra não afirma abertamente a autonomia do
Estado como societas perfecta perseguindo seus fins próprios —o bonum

1177
commune - a não ser para assegurar melhor sua subordinação à direção
pontifícia (potestas indirecta). Contra o soberano da Inglaterra e a fim de fazer
sobressair mais claramente a oposição principal entre teocracia pontificial e
monarquia absoluta, Bellarmin assim como Suarez farão do povo - ou melhor,
do povo em corpo —o primeiro sujeito da soberania, indo até a delinear a idéia
de uma democracia primitiva de direito natural. Mas o que importa na
realidade é mostrar por aí como dentro do Estado soberano encontram-se
invertidos todos os traços que caracterizam a monarquia pontificial, quer se
tratasse da origem do poder, de seu tema, do fim buscado, do campo de
aplicação ou da transmissão do poder. E ao mesmo tempo, a doutrina política
e jurídica de Suarez visa favorecer o Estado absoluto, interpretando com
sujeição incondicional a transferência definitiva da potestas política primitiva.
A tarefa paradoxal do adversário de James I é portanto a de confortar o
monarca absoluto arruinando a doutrina do direito divino dos reis, já que a
única instituição de jure divino é a Igreja de Pedro, cuja suprema potência
pode e deve ser defendida, mesmo indiretamente.

• Francisco Suarez, D e fen sio fíd e i III, P rln c lp a tu s p o litic u s, introdução e ed. critica bilingüe
por E. Elorduy e L. Pereiia, Madri, 1965: De ju r a m e n to fid elita tis, e stú d io p re lim in a r,
c o n c ie n c ia y p o lític a , por L. Perena e outros, Madri, 1979; De juramento fidelitatis, documen­
tação fundamental, ed. crítica bilingüe por L. Perena e outros, Madri, 1978; D e leg ib u s, ed.
crítica bilingüe por L. Perena, 8 vols. publicados, Madri, 1971-1981; Fr. Suarez, D e bello, texto
crítico bilingüe em L. Perena, T eoria d e la g u e rr a in Fr. S u a re z, Madri, 1954, UI, págs. 245-263;
Fr. Suarez, A u sg ew a h lle T e x te z u m V õlkerrech t, ed. de Vries, Tubinguen, 1965; R. Bellarmin,
O p e ra o n n la , ed. J. Fèvre, Paris, 1870-1874.

► Heinrich Rommen, D ie S ta a tsleh re d e s Fr. S u a re z, M. Cladbach, 1927; Reijo Wilenius, The


social political theory of Fr. Suarez, em A c ta x p h ilo s o p h ic F en n ica, vol. XV, 1963; Fr. X. Amold,
D ie S ta a tsle h re d e s K a r d in a ls B e lla rm in , Munique, 1934; G. Jarlot, Les idées politiques de
Suarez et le pouvoir absolu, em A r c h iv e s d e p h ilo so p h ie , vol. XVIII, 1949; ). - Fr. Courtine,
L’héritage scolastique dans la problématique théologico-politique de l’âge classique, em L’Etat
baroque, ed. H. Méchoulan, Paris, 1985, págs. 89-118.

Jean-François c o u r t in e .

NOTAS
1) . Cf. R. de Scoraille, F ra n ç o is S u a r e z d e la C o m p a g n ie d e Jesu s, l II: L e d o cteu r, le
re llg le u x .Paris, 1913, págs. 172-173.
2) . T ra cta tu s d e legibu s, o p e ra o m n la , ed. Vivès, ts. 5 e 6, Paris, 1856-1857.
3) . Cf. Charles H. Lohr, Jesuit Aristotelianism and sixtennth-century Metaphysics, em
P a ra d o sls, S tu d ie s in m e m o r y o f E d w in A. Q u a in , Nova Yorque, 1976, págs. 203-220.
4) . D e fen sio fídei, o p e r a o m n la , ed. Vivès, L 24; D e bello, L 12.
5) . Cf. os preciosos artigos de J. de La Servière, em Les Etudes, 1 89 (1901), págs. 58-76;
L94 (1903), págs. 627-650; t95 (1903), págs. 44-62.

1178
Cf. também a monografia já citada de R. de Scoraille, t II, pág. 165 e segs.
Ver sobretudo agora o dossiê muito completo reunido no volume coletivo: Fr. Suarez, D e
Ju ra m en to fídelitatis, estú d io p relim in ar: C on cien cia y P olítica, Madri (CHP, vol. XVIII), 1979.
6) . Encontrar-se-á o texto do juramento em Suarez, D e ju r a m e n to fíd e lita tis, t l l (CHP,
vol. XIX), págs. 20-21.
7) . Cf. R. de Scoraille, op. cit., t. II, págs. 167-168.
8) . The p o litic a l W orks o f J a m e s I, com uma introdução de Charles Howard Mclllwain,
Cambridge (Harvard Political Classics, vol. I), 1918.
9) . Bellarmin, D e C o n s iliis e t E cclesia , liv. II, cap. 16 (Op. O m n ia , L II, 268).
10) . D e fen sio fíd ei, III, 2,17: “...potestas autem regia non ex divina institutione poditiva,
sed solum ex ratione naturali ducit originem, media libera voluntate humana; et ideo necessário
est ab homine immediate conferente...”
11) . Eg. D e L eg ib u s, III, 3, 6. Sobre a história dessa fórmula, v. H. de Lubac, C o rp u s
m y s tic u m , V E u ch a ristie e t T E glise au M o y e n A ge, Paris, 1949, pág. 116 e segs. e E. Kantoro-
wicz, T he K in g 's tw o b o d ies, Princepton, 1981, pág. 194 e segs.
12) . A. de Muralt, La structure de la philosophie politique moderne. D’Occam à Rousseau,
em C a h ie rs d e la re v u e d e th é o lo g ie et d e p h ilo s o p h ie ns 2, Cenebra- Lausanne- Neuchâtel,
1978, pág. 64.
13) . T ra cta tu s d e P o te sta te S u m m i P o n tifíc is, cap. 5 : "... p o te s ta te m P o n tifíc ia m p e r se,
e t p r o p r ie sp ir itu a le m esse, e t id e o d ire c te resp icere, u l o b jec tu m s u u m p ro p r iu m , sp ir itu a lia
n eg o cia ; s e d in d ire cte , i d e s t p e r o rd in e m a d sp iritu a lia , red u ctive, e t p e r n e c e s sa ria m
c o n se ç u e n tta m ... re sp ic e r e tem p o ra lia , u l o b jectu m se c u n d a r iu m , a d q u o d n on c o n v e r tib u r
h a e c s p ir itu a lis p o testa s, n is i in casu."

SULTÃO CALIEV
Escritos

O pensamento do Sultão Galiev, um comunista tártaro, constitui o


enxerto mais durável da idéia revolucionária e socialista no mundo muçulma­
no. Ele é contemporâneo da Revolução de 1917, de suas seqüências, e está na
origem tanto da convocação do islã não-árabe para a luta contra o imperialis­
mo, quando do Congresso de Baku em 1919, quanto de sua separação dos
objetivos do regime soviético desde o início da época stalinista. Reprimido, o
sultã-galievismo não deixou de sobreviver, e a partir dos anos 50, armou com
uma teoria revolucionária a luta de uma parte dos povos colonizados. Deve-se
a Alexandre Bennigsen e a Chantal Quelquejay o reencontro e a reunião dos
textos do Sultão Galiev.
A existência de uma tradição nacional, institucionalizada, em uma época
qualquer, sob a forma de um Estado, e a presença de uma “elite”, constituíram
as condições que, no âmbito do Islã não-árabe, predeterminaram a penetração
da idéia socialista, mesmo não tendo sido essa a ideologia em torno da qual se
formou o movimento reivindicativo.
No caso dos Tártaros, por exemplo, eles passaram do democratismojadid
(modernista) para o socialismo nacional, para o nacional-comunismo e depois

1179
ao nacionalismo puro entre 1890 e 1930. Há também amálgama entre lutas
sociais e conflitos étnicos quando, por exemplo em Baku em 1905, os operários
muçulmanos tiveram de combater os patrões georgianos, russos e armênios.
Outra condição: a existência de uma força combatente que não é necessaria­
mente um proletariado industrial ou camponês e que pode herdar subversões
nômades, da herança combatente das tariqa (associações religiosas) místicas
etc. Penetrando por canais indígenas, não-europeus, as idéias revolucionárias
só se enraizaram pelo fato de o vínculo ser constante entre lutas nacionais e
luta social, daí a difusão privilegiada das idéias de K. Kautsky e de O. Bauer,
e pelo fato de a adesão a essas idéias se apresentar como um aprendizado em
trabalho clandestino; uma técnica destinada, pela elite, a estabelecer um
vínculo com o grande número das pessoas, um meio de chamá-las para o
mundo exterior; todos dados que se encontram no itinerário do Sultão Galiev
e de outros revolucionários bashkirs ou persas.
Que dentro dos movimentos que se criaram na alvorada do século XXtenha
existido uma identificação nacional mais forte do que a identificação social, não
há nenhuma dúvida: basta observar como, em Baku, os proletários de todas as
nações do Cáucaso se entremataram de 1918 a 1923 com tanta fé e determinação
quanto os proletários da Europa ocidental durante a grande guerra de 1914-
1918. Quando estoura a Revolução de 1917, ela, vista dos confins muçulmanos
da Rússia, é percebida mais como uma desintegração do Antigo Império do que
sob o aspecto de uma revolução socialista. As nações do perímetro vão poder
alcançar a oportunidade de sua libertação? Desse modo, as teses nacionalizantes
dos federalistas conduzem às teses centralistas dos Tártaros. Entretanto, quando
se tornou evidente que a revolução de Outubro, longe de trazer o direito à
autodeterminação anunciada, precipitava ao contrário o movimento de exclusão
dos muçulmanos das instâncias dirigentes dos Sovietes de deputados, os muçul­
manos rejeitados, como nacionalistas, ao grito de “reação", hesitaram entre
várias atitudes; pois, entre os Brancos e os Vermelhos, era preciso escolher bem.
Para o Sultão Galiev, a escolha era evidente, já que ele havia aderido ao
bolchevismo. Os outros muçulmanos julgaram dever fazer a mesma escolha já
que não havia nada a esperar dos Brancos ou dos Ingleses. O que ajudou a
ligação com os Vermelhos foi a política apropriada de Stalin, que, auxiliado por
Galiev, soube introduzir um grande número de líderes nacionais dentro das
instâncias do novo Estado Soviético, criando por exemplo, no âmbito do
Comissariado para as Nacionalidades, um Mus-kom (comitê muçulmano), cuja
existência, em si, tinha um valor simbólico. Dessa forma, a vitória do bolchevismo
e a do Islã encontravam-se associadas. Além disso, desde o Congresso de Baku,
em 1919, a idéia de uma revolução mundial animada pelo Oriente tomava alguma
consistência. Se Galiev apresentava uma Resolução em que a participação do
Oriente aparecia como uma condição sine qua non do sucesso da revolução
mundial, a adesão às idéias socialistas revolucionárias mudava, dessa maneirei,
de invólucro. O sucesso da Revolução confundia-se com a derrota do imperialis­
mo. Estava-se verdadeiramente longe da luta de classes. Até lá, o Sultão Galiev
estava em estreito acordo com o regime soviético: ele exercia as funções de

1180
presidente do colégio militar muçulmano central no âmbito do Comissariado do
povo na Guerra da República da Rússia Soviética. Contudo, após a vitória sobre
os Brancos, a política stalinista não respondendo mais às aspirações de uma boa
parte dos marxistas nacionalistas muçulmanos, a idéia do comunismo nacional
abriu caminho entre os tártaros, encontrando em Galiev o teórico que ia armá-los
com seu conceito operatório, o de Nação proletária. Desfazer-se da nação-o-
pressora (a Rússia soviética) tornava-se, dentro de sua estratégia, o objetivo
prioritário; a luta de classes, no interior dos países colonizados, passava para
segundo plano, tornando-se somente a segunda etapa da revolução social
mundial. Esse novo princípio de divisão internacional da luta de classes, anti-rus­
sa, se opunha muito diretamente, além disso, à estratégia do Komintern.
Para Galiev, o problema não era ajudar o sucesso da revolução européia
por um enfraquecimento do imperialismo inglês ou francês, - como Lênin
preconizava - mas sim o de considerar que duas vezes oprimidos, pelo capital
e pela nação dominadora, os países coloniais, ou dependentes, eram necessa­
riamente mais revolucionários do que a Europa cujo proletariado explorado
pelo capital não deixava de explorar indiretamente os trabalhadores e as
nações proletárias do mundo inteiro. Dessa maneira, adaptando a tese de Lênin
do “elo mais fraco”, aplicado a por ele ao proletariado russo, o Sultão Galiev
aplicava-o à nação proletária, os comunistas nacionais mostrando que uma vez
ampliado ao planeta, o elo mais fraco não era o proletariado europeu, mas
exatamente as nações do Oriente proletário.
A supressão da desigualdade entre as ações precedia a supressão da
desigualdade no interior das nações. Criar uma espécie de Internacional
Colonial, independente do Komintern, ou até oposta a ele, esse é o projeto que
toma forma no começo dos anos 20 e do qual a Tricontinental foi, pos­
teriormente, um esboço.
Tais posições do Sultão Galiev foram logo condenadas por Stalin que,
até então, o havia levado, segundo seus dizeres, "com a esperança de que ele
cessaria um dia de ser nacionalista e tomar-se-ia marxista”. O cisma realizou-se
definitivamente quando Moscou balcanizou o antigo Turquestão em um
grande número de pequenas repúblicas, fornecendo a prova manifesta de que
o poder central era capaz de todas as inovações teóricas suscetíveis de partir
o movimento para a instituição de um Estado asiático central unido, que
pudesse ter sido associado ao antigo império russo. Paralelamente, a criação
da República de Ghilan, nos confins do Cáucaso turco e persa, fora das
fronteiras da URSS conseqüentemente, e que aparece posteriormente como a
primeira república-satélite criada por Stalin, foi um outro exemplo que mos­
trou que a política do “socialismo dentro de um só país” podia cobrir todas as
anexações, ou mudanças de política; pois, após ter ajudado sua formação, o
governo de Moscou contribuiu para a sua destruição indo aliar-se com o xá da
Pérsia, Reza Khan, considerado por Stalin como um obstáculo mais consis­
tente do que o Ghilan para resistir a uma contra-ofensiva do "imperialismo
inglês”. Um acontecimento que prefigura o drama de Cantão em 1927.
Para as “nações proletárias" estava claro que não se devia esperar nada

1181
nem do Komintern, nem - para os muçulmanos do interior da URSS - do
poder de Moscou, que pretendia gerir e controlar o “nacionalismo” dos
muçulmanos. Dentro do país, os cultores do comunismo nacional foram, um
após outro, exterminados; ou então desapareceram e, entre eles, o Sultão
Galiev, irreversivelmente condenado desde 1923. A política de assimilação
soviética acabou, desde então, por prevalecer, de bom ou de mau grado,
notadamente graças à integração de um certo número de líderes nacionais
dentro do aparelho estatal.
A semente do comunismo nacional sobreviveu todavia; e mais ainda o
conceito de nação proletária que enxameava no Terceiro Mundo. Roy nas
índias, Malaka na Indonésia, antes Lin Piao na China, retomaram essas idéias,
esvaziando-as de sua antiga conotação muçulmana. Os muçulmanos as reen­
contraram com Ben Bella e Boumediène, que conheceram as idéias do Sultão
Galiev, retomadas em seguida parcialmente por Kadhafi. Dessa vez, o Islã
revolucionário tendia a confundir-se com o destino da nação árabe.

• Os principais escritos do Sultão Caliev, publicados em Z izn 'nacionaV nostej (V ida d a s n acio n a ­
lid a d es) 1918-1921, figuram traduzidos nos anexos da obra de A. Bennigsen e Chantal Quelquejay,
L e s m o u v em e n ts n acion aw c c h e z les M u su lm an s de R ussie, Paris, Mouton, 1960, págs. 203-255.

► A. Bennigsen e S. E. Wimbush, M u slim N a tio n a l C o m m u n ism in th e S o v ie t U nion, Univ. of


Chicago Press, 1979; Maxime Rodinson, M a rx ism e e t m o n d e m u su lm a n , Paris, Le Seuil, 1972;
S. Schramm e H. Carrère d’Encausse, L e m a rx ism e e tl'A s ie , Paris, A. Colin, 1965.

Marc FERRO.

SUN YAT-SEN, 1866-1925


Os Três Princípios do P ovo, 1 9 0 5

Quem diz “três princípios do Povo” não evoca um livro mas um homem:
embora ele tenha escrito muito, Sun Yat-Sen (1866-1925) não consagrou um
tratado em boa e devida forma a seu programa em três pontos para restaurar
a grandeza nacional da China (primeiro princípio), ajustar suas instituições ao
mundo moderno (segundo princípio) e preservar e desenvolver o “bem-estar”
(:minsheng) material e moral de seu povo (terceiro princípio). A primeira
formulação escrita desses “três princípios” data de 1905; a obra que traz esse
título (Sanminzhuyi, Xangai, Minzhe shuju, 1925, 144 páginas, trad. franc.:
Les trois Príncipes du Peuple, Comitê de compilação da história do Guomin-
dang, Taipei) é uma coletânea póstuma de conferências pronunciadas em

1182
Cantão de janeiro a agosto de 1924, um ano antes da morte do “Pai da Pátria"
(guofu). A História, para dizer a verdade, encarregou-se de escrever o grande
tratado que ele meditava, soprando retoques e redefinições para uma doutrina
cuja qualidade-mestra reflete exatamente a de seu autor: leveza, permeabili­
dade tática, a serviço de uma estratégia intangível, destinada a fazer da China
dividida e humilhada dos primeiros decênios deste século uma nação "rica e
poderosa” (fugiang) à imagem de um Ocidente (de um Japão também) que faz
menos figura de inimigo do que de modelo.
Seguros dessa orientação, Sun Yat-Sen e seus intérpretes não cessaram
de melhorá-la ou de purificá-la ao sabor das alianças e das circunstâncias. De
onde vêm a vitalidade, a influência constante da doutrina e de sua evolução,
inclusive depois da morte de Sun. Ideologia oficial do Guomindang no Conti­
nente, depois em Formosa após 1949, ela é utilizada e solicitada mesmo hoje
em dia pela China comunista: a serviço de um mesmo desígnio de grandeza e
de modernização, Deng Xiaoping encontrou nela uma caução nacional para
sua política de “abertura”, ao mesmo tempo que um tema próprio a favorecer
a “reunião” com Formosa. Para além de Mao e Chiang Kai-shek, o simbólico
(mais do que as palavras) dos Três Princípios tornou-se a referência política
fundamental da China contemporânea na hora da modernização. Uma conivên­
cia profunda entre o homem e a História: eis sem dúvida a explicação de tal
sucesso. Durante a vida de Sun Yat-sen, três etapas a marcaram, através de
muitas vicissitudes.
De 1895 a 1913, Sun pára as grandes linhas de sua doutrina ao mesmo
tempo em que ele toma a frente do movimento revolucionário chinês (1905),
depois a presidência da República que dá seqüência (em 1912) ao Império após
a revolução de 1911. O fracasso dessa primeira experiência —foi um general
de pulso, Yuan Shikai, que confiscou e desnaturou a nova República desde
1913 - força Sun a repensar seu programa político. De 1914 a 1922, é pelas
armas que ele se opõe aos “Senhores da guerra”, herdeiros de Yuan Shikai
(morto em 1916) cuja desunião mergulha a China dentro da anarquia. Várias
tentativas de reconquista - batizadas de “Expedição do Norte” (beiía), porque
Sun organiza-as a partir do Sul onde ele conservara alguma influência —
fracassarão por falta de aliados seguros e de meios militares conseqüentes.
Esses meios Sun os recebe, enfim, da aliança que concluiu em 1922 com a
União Soviética, etapa decisiva da qual um dos corolários é a constituição de
uma “frente unida” entre o Guomindang (seu partido) e o Partido comunista
chinês (fundado em 1921). No decorrer dessa última fase (1923-1925), Sun está
longe de aderir ao comunismo, mas preocupações revolucionárias mais marca­
das, assim como uma retórica antiimperialista nova nele, parecem influenciar
sua visão de mundo e da ação política. Até que ponto os Três Princípios sofrem
as conseqüências dessa evolução? Os partidários de Chiang Kai-shek pleitea­
ram a intangibilidade, que conduzira Sun à ruptura; os comunistas ao contrá­
rio reclamaram uma “conversão” a fim de oporem melhor Sun a Chiang - um
Sun cujas “três grandes políticas” eles teriam realizado: aliança com a União
Soviética, acordo com o Partido Comunista e sustentação do movimento

1183
popular. A expressão não é do próprio Sun, mas de seus conselheiros do
Komintern e de sua viúva, adquirida na aliança em Moscou. O problema de
fundo não deixa de ser colocado. Açambarcamento de herança de um lado,
desvio do outro? O exame das variações do próprio Sun Yat-sen sobre os temas
que ele não deixou de modular enquanto era vivo traz respostas claras ao
enigma aparentemente insolúvel colocado pelo confronto ideológico dos ir­
mãos inimigos.
Nenhum dos três princípios, como veremos, é uma invenção original de
Sun Yat-sen. O que dá a ele um lugar único na história da China contemporâ­
nea é a reunião das doutrinas e das forças esparsas em torno da idéia de
revolução, idéia que —outro título para a originalidade - ele foi o primeiro a
conceitualizar e a pôr em prática no fim do século XIX. Enquanto nos anos
1880-1890 a grande maioria dos letrados ocidentalizados ligam-se a um
programa de reformas constitucionais e de modernização econômica, Sun
Yat-sen enuncia um esquema revolucionário consistindo em derrubar pela
violência a dinastia manchu que reina na China desde 1644: é preciso, diz ele,
substituir o Império autocrático por uma República parlamentar. Criada em
1894, quando o Japão inflige uma pungente derrota ao Império, uma sociedade
para a regeneração da China (Xingzhongui) é encarregada de aplicar esse
programa. O que ela fez em Cantão desde o ano seguinte organizando (mal!)
uma rebelião em união com as sociedades secretas antimanchus. Toda a
sociologia do sun-yatsenismo está nessa primeira tentativa: apoio sobre o
terceiro estado urbano, as comunidades chinesas de além-mar (que asseguram
o financiamento) e as poderosas sociedades secretas do Sul. Mas também toda
sua impotência para organizar, para dominar o acontecimento, fraqueza que
Sun não saberá remediar, apesar dos bolcheviques em 1923-1924. Esse
fracasso original tem, no entanto, um efeito benéfico. Provocando a fuga dos
conjurados para o Japão, elp lhes fez descobrir que em japonês moderno
(língua que se escreve parcialmente com os ideogramas chineses), a ação deles,
concebida por eles como uma tradicional “rebelião” (zaofari), é designada com
a ajuda dos caracteres descrevendo a “mudança do mandado" (geming) —quer
dizer, a substituição de uma dinastia por uma outra - dentro da cosmologia
política do confucionismo. Assim nascem as idéias modernas da revolução e
do primeiro “Partido revolucionário” chinês (Gemingdang), nova apelação da
Xingzhonghui, antecipando a Liga jurada (Tongmenghui), criada em 1905, e
o Guomindang (fundado duas vezes, a primeira em 1912, a segunda em
1919-1920). Outro efeito benéfico do exílio que sanciona o fracasso: em
Londres, onde ele se refugia em 1896, Sun Yat-sen escapa por pouco a uma
tentativa de rapto perpetrada pelo serviço secreto da legação chinesa. O apoio
da imprensa britânica fortifica sua admiração pela organização política do
Ocidente democrático.
Não continuaremos mais com a genealogia detalhada dessa vocação
revolucionária que se afirma antes de todas as outras. Basta acrescentar que
Sun Yat-sen a deve ao seu meio - o delta do Rio das Pérolas, perto de Cantão
(e não longe de Hong-Kong), onde os Taiping deixaram uma profunda marca

1184
de não-conformismo (por sua inspiração cristã) e de rebelião antidinástica,
reatualizada na infância e na adolescência de Sun pela influência das missões
e das sociedades secretas. Tendo partido muito jovem para reunir-se a um
irmão mais velho no Havaí, Sun Yat-sen completou seus estudos de Medicina
em Hong-Kong ao mesmo tempo que se convertia ao cristianismo. Mas, dotado
de uma profissão ocidentalizada, o “Doutor Sun” não é somente um dos
primeiros representantes das novas elites ocidentalizadas que tomam o lugar
dos antigos letrados confucianos: porque ele aplica um saber totalmente novo
ao ideal muito antigo de uma “mudança” da sociedade chinesa, mas à luz,
igualmente nova, da revolução, ele encarna um tipo novo, o do revolucionário
profissional, deixando para outros —Liang Qichao o modernizador prudente,
Chen Duxiu o ferrabraz confuciano - o cuidado de educar e de conduzir a
nova intelligentsia.
No entanto, a revolução não é o primeiro Princípio do Povo: é a
redefinição da nação que ocupa esse lugar fundamental. Redefinição obrigató­
ria visto que a identidade chinesa, durante muito tempo confundida com a
centralidade de uma civilização que não admitia igual, nem mesmo a possibili­
dade de uma pluralidade das culturas, é batida sem remédio pelos sucessos
manifestos das armas e das letras ocidentais. Aos olhos de Sun, a identidade
da nação funda-se sobre a do povo (min), a qual se lê na raça, na nacionalidade
(minzu) portadora de uma cultura particular e hóspede de um território de
ocupação tão antiga que se pode dizê-la ancestral. Esta definição “biológica”,
Sun Yat-sen partilha-a com todos aqueles que o darwinismo social, muito em
voga no fim do século XIX entre os letrados chineses, influencia. Ela tem a
vantagem de excluir os manchus sobre as bases aparentemente indiscutíveis
de um racismo que, então, não incomoda quase ninguém (Chen Duxiu é o
único intelectual a se opor a isso por princípio), justificando assim a condena­
ção política da qual eles são o objeto como ocupantes de um poder autocrático
incapaz de preservar a grandeza chinesa.
A identidade da raça e da cultura é um dado tão forte para Sun Yat-sen que
ele não julgará nunca útil fornecer-lhe uma elaboração dogmática, caminho no
qual se empenham um certo número de teóricos ultranacionalistas (tanto
revolucionários quanto conservadores) em busca de uma “quintessência chine­
sa” ao abrigo das vicissitudes da história — renúncias da modernização ou
tumultos da revolução. Corolário importante, Sun Yat-sen não terá jamais de
queimar o que ele tenha adorado de uma maneira tão extrema. Quando em
seguida a Chen Duxiu os intelectuais radicais adotarem a atitude inversa, a da
negação sem restrição da herança confuciana, Sun se reunirá certamente à idéia
de uma “revolução cultural” (expressão que ele utiliza por volta de 1919-1920,
quando a influência iconoclasta de Chen Duxiu está em seu apogeu), mas como
homem que nunca hesitou em criticar o mestre e cuja formação clássica muito
fragmentária tinha suscitado, antes de que se impusesse a eles em 1905, a
desconfiança dos letrados antimanchus adeptos da “quintessência nacional”.
Homem do compromisso cultural, Sun Yat-sen o foi também em sua vida
pessoal: ora vestido e penteado à ocidental, ora ostentando o famoso colarinho,

1185
de origem tradicional, que a vox populi obstina-se a atribuir a Mao, ele foi
esposo de uma simples camponesa (após um casamento arranjado) depois, em
segundas núpcias, de uma herdeira da família Song, símbolo da China moderna
que se desenvolve a partir do fim do século XIX na franja costeira do antigo
império agrário em contato com o estrangeiro. Repitamos: a evidência da
identidade chinesa em continuidade parcial e escolhida com a tradição é tão
forte que Sun não experimenta nenhuma necessidade de fechar a China para
garanti-la nem de excluir as idéias e os costumes estrangeiros que foram
implantados nela. Ele vê nisso, ao contrário, úteis enxertos modernos, com a
condição de escolher e filtrar do lado de lá assim como do lado da tradição.
Nada é menos xenófobo do que esse patriotismo sincrético que ele propõe para
a China do século XX. É quase como se ele não desse, nos momentos mais
sombrios de sua carreira (como quando as Potências Ocidentais dão a prefe­
rência a Yuan Shikai em 1913), ouvidos às sereias (pró-japonesas) do panasia-
tismo. Estaria retomando por sua conta a retórica antiimperialista dos soviéti­
cos e dos comunistas (a partir de 1922)? O que acontece é menos uma
“conversão” (como o querem os comunistas) do que uma adaptação momen­
tânea a circunstâncias particulares. Ele não renega em nada o plano que havia
preparado em 1917-1920 para o desenvolvimento econômico da China (The
International Development o f China, publicado em inglês em Shangai em
1920, fazia expressamente apelo ao concurso dos capitais e dos técnicos
estrangeiros). Mas o eclético Sun Yat-sen não era indiferente à planificação
soviética, a intervenção do Estado sendo necessária a seus olhos para assentar
eficazmente as bases do desenvolvimento industrial preservando a população
dos malfeitos de uma polarização social acentuada demais: o homem do
compromisso cultural foi também o do compromisso social, que constrói o
fundo de seu “terceiro princípio” (infra). Den Xiaoping está portanto perfeita-
mente autorizado a se valer de tão ilustre padrinho para “cobrir” sua política
de desmaoização e de abertura!
O que Sun Yat-sen exigia sem compromisso eram a independência nacional
e a igualdade da Nação chinesa, tão gravemente diminuídas pelos “tratados
desiguais”. Esta atitude lhe valeu, no que toca à intransigência, a autoridade
carismática de dirigente nacionalista; no que toca às nuances, como Marie-Claire
Bergère o mostrou, a audiência dos setores comerciais chineses, mais preocupa­
dos com a igualdade no acordo e a cooperação com o estrangeiro do que com
confrontações ou fechamentos nocivos ao bom andamento dos negócios.
A definição da identidade nacional pelo povo - raça, cultura e história —
tem outras conseqüências que não esse cosmopolitismo tão fecundo. Alguns
se surpreenderão pelo menos, tal o temor muitas vezes afirmado por Sun de
uma "despovoação” do país face a uma espécie de “perigo branco” condenando
a existência física da raça... Não menos intransigentes, outros são, ao contrário,
de uma bela lucidez. Após a eliminação rápida da hipoteca dinástica, ele se faz
advogado incansável não somente da independência mas também da unidade
nacional, enquanto as elites intelectuais ou políticas, situando o imperativo
nacional noutra parte (seja no combate por uma “nova cultura”, seja inclinan-

1186
do-se sobre as comunidades locais), admitiam, de fato, a balcanização do país
sob a aparência de “federalismo”. Nas horas mais sombrias da anarquia militar,
Sun Yat-sen foi, realmente, o principal, para não dizer o único, porta-voz de
um nacionalismo, visando construir um Estado-nação moderno na escala
legada pela milenar história chinesa: um de Gaulle em Londres (Tóquio) ou em
Alger (Cantão) em suma, muitas vezes reduzido a compor com as facções ou
os partidos, a se afastar aparentemente de seu caminho, a fim de adquirir os
meios necessários para a execução do grande desígnio. Compreendemos
dentro dessa perspectiva o “flerte” às vezes desconcertante com os potentados
da época, senhores de Cantão ou de Pequim, ou simplesmente com o ins­
trumento militar da reconquista. É dentro dessa perspectiva também que se
deve situar - e relativizar - a aliança com os comunistas (eles também
partidários da unidade nacional), ao mesmo tempo que esse outro componente
do pensamento de Sun que lhe foi ditado de imediato por seu nacionalismo:
quero dizer o estatismo, em política como na organização da sociedade e da
modernização econômica. Os soviéticos, não obstante, não se enganaram mais
sobre isso. Em 1912, Lênin via em Sun Yat-sen o chefe um pouco trapalhão,
um pouco carbonário, da ala “populizante” da nova burguesia chinesa. O
Komintern, nos anos de 1920, e em particular seus representantes na China,
Maring e Borodin, aprenderam a apreciar um homem de Estado. O Estado,
ocupação predominante do homem de ação, é a maior constante que determi­
nou a evolução de seu pensamento nos domínios —política e filosofia social —
cobertos pelos dois outros princípios.
Tanto seu nacionalismo coloca Sun no diapasâo de seus contemporâneos
quanto sua filosofia política estatal —objeto do segundo princípio - o afasta
de seu horizonte de eleição, totalmente penetrado de teorias anarquistas. A
“democracia”, ou mais exatamente o “poder do povo” (minquam ou m inzh‘i),
é a idéia mais comumente divulgada entre as elites chinesas do início do sécu’o
XX. Mas essa aparente unanimidade esconde importantes divergências sobre a
realização do sistema democrático e sobre sua própria natureza. A primeira
diferença opõe os reformistas aos revolucionários. Contra esses últimos, Lian
Qichao preconiza reformas constitucionais conservando a monarquia e a
dinastia no poder. A segunda diferença divide o próprio campo revolucionário.
A maioria de seus membros concebe, no dia seguinte da revolução —breve
episódio de violência política —, uma sociedade podendo se dispensar de
política e de autoridade, regida somente pela harmonia de comunidades
autônomas. A audiência dessa utopia de consonância muito kropotkiniana (por
mais que ela se articule com as concepções ocidentais) explica-se facilmente,
mais ainda talvez do que pelo ressurgimento dos ideais individualistas e
anárquicos do taoísmo, pela influência das tradições políticas confucianas,
incessantemente divididas entre o reconhecimento das vantagens de um
Estado central poderoso e a afirmação das autonomias locais (difang zizhi).
Essas concepções, aliás, encobriam a textura particular do tecido social chinês,
distendido entre os abusos de um poder burocrático sem limites e a ausência
ou a fraqueza, na base, das lealdades extracomunitárias. Excesso de autoridade

1187
de um lado, insuficiência dela do outro: Sun, que compara o povo chinês a um
monte de areias dispersadas, abstém-se de achar na atomização do corpo social
um legado benéfico preparando, graças à abertura de uma era de progresso
técnico ilimitado, a passagem para uma sociedade de abundância sem embara­
ços. O que ele procura, ao contrário, é um cimento, dizendo de outra maneira,
uma modernização em vez de uma utopia.
Essa flexibilidade será antes de tudo emprestada das instituições dos
grandes Estados modernos em sua variante democrática. O segundo princípio
propõe inicialmente um esquema estatal temperado pela separação de cinco
poderes - legislativo, executivo, judiciário, aos quais são acrescentados, para dar
boa medida e mais uma prova suplementar do ecletismo de Sun, dois suplemen­
tos tirados do “lado bom” da tradição burocrática chinesa: um poder de censura
e um poder de exame. Esse esquema só era realista em aparência. O sonho
anarquista apresentava a incompatibilidade da China, em seu estado presente,
com as formas e os fundamentos de uma democracia parlamentar. Lian Qichao,
de seu lado, dizia mais lucidamente que o país, subdesenvolvido e subeducado,
não estava pronto e que seria necessário a fim de evitar a explosão: aquilo porque
ele aceitava uma espécie de pacto histórico com a monarquia. Sun compreendeu
o tamanho de sua ilusão em 1912-1913, quando ele teve de aniquilar-se diante
dos generais e recorrer a meios militares a fim de concluir a revolução. Daí a
evolução e as redefinições subseqüentes. A democracia estava rejeitada no final
do processo, o qual compreendeu daí em diante, na segunda fase do segundo
princípio, uma sucessão de etapas autoritárias preparando o povo e reunindo a
nação: governo militar, tutela transitória de um partido único (o Guomindang),
depois governo constitucional indo dar no pluralismo e na separação dos
poderes. Esta ruptura importante é mais significativa no plano das mentalidades
políticas e da ação do que no dos princípios. Pois, chinês modernista im­
pregnando de confucionismo, Sun sempre distinguiu cuidadosamente a “sobera­
nia” (quan), inteiramente saída do povo, da “capacidade" (rieng), inteiramente
destinada ao “governo”, expressão genérica na qual deve-se compreender os
organismos emanando dos cinco poderes. Passar de um governo democrático
para um governo ditatorial (ou o inverso) só depende, dentro dessa ótica, de uma
segunda restrição, relativamente às competências dentro da execução da sobe­
rania, sem que o poder que nós diríamos não-democrático possa ser de maneira
nenhuma tachado de ilegitimidade.
Dando razão àqueles que, como Liang Qichao e Chen Duxiu (mas seguindo
análises e com conseqüências muito diferentes), opunham a imaturidade do povo
chinês à aplicação imediata do ideal democrático, Sun Yat-sen consegue dessa
maneira falar de democracia elogiando a ditadura, aquilo em que ele deforma
nossas categorias políticas como o farão quase todos os pensadores ou os
homens políticos da China contemporânea, aos olhos dos quais nem a liberdade
nem os direitos individuais são valores absolutos. Notemos a que ponto a
deformação que ele inflige a essas categorias o aproxima do esquema bolchevi-
que: a legitimidade dentro do exercício ditatorial do poder democrático encarna-
se através do partido revolucionário; a revolução não é mais um obstáculo

1188
repentino dentro do tecido histórico, mas um processo de longa duração que
constrói a ordem nova ao menos tanto quanto ele destrói a ordem antiga; ao
longo de todo esse processo, o Estado congregador da nação confunde-se com o
partido militarizado. Sun consagrou-se sem descanso, depois de seu fracasso de
1913, à edificação desse mediador universal (o partido), mas sem a penetração
teórica nem o sucesso prático de Lênin. Como C. M. Wilbur o mostrou, ele é um
organizador “frustrado” (e, pensando bem, medíocre), que só consegue mobilizar
os recursos financeiros da diáspora chinesa... É certo que, após 1922, os
bolcheviques forneceram um modelo ao mesmo tempo que meios. No entanto,
enquanto se multiplicam as divergências, o perfil social da revolução-recons-
trução teorizada por Sun acaba de constituir seu sistema em ideologia e de tornar
essa ideologia irreconciliável com a de Lênin.
Sobre o terreno da filosofia sócio-econômica, encontramos com efeito um
Sun Yat-sen melhor armado do que se supõe, que não tinha nenhuma
necessidade de sofrer a influência comunista a fim de descobrir as reservas de
potencial revolucionário contidas dentro da “questão social”. Ao contrário, são
os adversários comunistas do Guomindang que, após o radicalismo dos anos
1930, moderarão muitas vezes seu programa inspirando-se no seu. Qual é
portanto esse minsheng (terceiro princípio)? Ele é sem contestação aquele que
escapa mais nitidamente a nossas classificações. Não dizemos nem socialismo
nem comunismo: Sun Yat-sen só se deixou levar para essas aproximações após
1922, sem dúvida para encantar seus interlocutores do Komintern (Borodin o
foi bastante), e porque ele sonhava com o capitalismo de Estado da NEP.
Digamos "bem-estar” material e moral o que trai menos a expressão chinesa
do que a tradução literal (“vida do povo”), pela qual ele precisaria entender
“vida” no sentido forte que nós damos à “vida espiritual”, mas dentro de uma
acepção secular ainda que moral, e mais social do que individual: em resumo,
no sentido confuciano do termo.
Sun, realmente, empresta mais da tradição nesse domínio do que nos dois
primeiros. Tradição ihuito rica: alimentar o povo, zelar pela boa manutenção de
seus costumes são antigas obrigações que justificaram as intervenções do
Império dentro da esfera econômica e social. É assim que Sun Yat-sen entende
a vocação do Estado moderno que ele quer construir. Suas intervenções terão
por missão desenvolver as infra-estruturas (econômicas, sociais, educativas,
culturais etc.) de uma sociedade industrializada e urbanizada, preservando a
China dos malefícios sociais ligados à industrialização e à urbanização. No
Ocidente, em Londres sobretudo, Sun viu as favelas, ele leu Marx no British
Museum: a sinistra realidade de uns o impede de subscrever as teorias do outro,
nas quais ele receia uma passagem obrigatória por uma revolução de classe antes
das terras prometidas do socialismo e do comunismo. Preocupação freqüente,
como já vimos, que essa atitude defensiva contra o capitalismo, percebido como
um mal que divide e empobrece (enquanto o progresso é considerado como um
bem em si), um mal mais grave do que os males no entanto perniciosos que
subjugaram e dividiram o povo chinês no decorrer dos séculos. Preservar a China
dos maus efeitos do progresso: eis o objetivo comum dos revolucionários

1189
chineses (nisto mais populistas do que marxistas) desde que eles sonharam em
desenvolver seu país. Também, na querela que os opõe a Liang Qichao após a
unificação de 1905, eles defendem a necessidade de uma revolução social ao
mesmo tempo como remédio para os males passados e como profilaxia dos que
virão. A utopia anarquista prevalece nitidamente, como no plano das idéias
políticas, que são aliás solidárias com as concepções econômicas e sociais:
reformar a sociedade chinesa é restaurar a antiga harmonia de sua Idade de Ouro
(velha lua confuciana) garantindo um progresso indolor. A ajuda mútua, a
cooperação, a educação são consideradas como os meios privilegiados da
transformação social. E, como no plano político, Sun aparece como minoritário
lúcido favorecendo soluções estatais. Ainda como o homem do compromisso ele
concebe dois setores (privado e nacional). É ele também que preconiza a
concórdia entre o trabalho e o capital e que favorece a instalação de um
movimento sindical poderoso, mas comumente corporatista, dentro de seu feudo
de Cantão depois de 1917. Porém a China sendo muito mais agrária do que
industrial, ele se vale sobretudo das teorias de George Henry de Progresso e
pobreza: o Estado deve racionalizar o sistema fiscal redistribuindo a terra
nacionalizada para “aqueles que a cultivam”.
A revolução social estatal de Sun, em resumo, é um processo reformista
que deve intervir após a revolução política, dentro da ordem e de cima. Por
mais que ela se separe dos antigos programas estatais de “igualação das terras"
e de reorganização fiscal ijigtiari), ela se parece muito mais com as reformas
agrárias e fiscais que presidiram as modernizações do Japão, de Formosa e de...
Deng Xiaoping do que com as tempestades levantadas por Mao. Em resumo,
ela pertence a essa “construção nacional” (jianshe) que terá sido a grande idéia
de Sun Yat-sen, ao mesmo tempo em que ela o opõe ferozmente a toda forma
de pensamento ou de ação fundada sobre a luta das classes.
Podemos portanto considerar como resolvido o enigma deixado em
suspenso por sua morte. Porém, vários de seus subchefes, a começar por
aqueles que preconizavam o acordo tático com os comunistas, testemunharam
sem equívoco sobre a maneira pela qual foi concebia a aproximação dos
últimos anos: não mais uma convergência, ainda menos uma conversão, mas
uma “tolerância” com finalidade tática. Suas distâncias com o comunismo
estando bem marcados, Sun Yat-sen não errou, sabendo que nas mãos dos
comunistas o Estado-nação moderno não poderia nascer fora dos confrontos
sociais? Estes confrontos deviam por isso tomar o aspecto violento que lhes
conferiu o maoísmo? Reforma ou revolução: Lucien Bianco mostrou bem a
inanidade do primeiro caminho visto que ele era defendido (nos anos 30 e 40)
por pequenos grupos impotentes da “terceira força” que recusavam a hegemo­
nia seja do Guomindang, seja do Partido Comunista. Mas se a reforma era sua
palavra de ordem, não é também verdadeiro que ela se tornara letra morta do
lado nacionalista? Apesar de ser tida como a ideologia oficial do Guomindang,
é preciso marcar aqui uma diferença importante entre o projeto dos Três
Princípios e a realização tentada por Chiang Kai-shek, o qual, antes de seu
desastre, de 1949, julga impossível ou inútil proceder à vasta transformação

1190
das estruturas agrárias e à redistribuiçâo das riquezas entre cidades e campos
da qual Sun Yat-sen tinha compreendido toda a importância tanto para a
modernização quanto para a revolução: seu sun-yatsenismo e seu modernismo
se ancilosam de um tradicionalismo e de um conservadorismo que refletem a
aliança (ou pelo menos a co-habitação) de seu regime com as elites tradicionais
do campo. Se ele houvesse vivido tanto quanto Chiang, Mao ou Deng Xiaoping,
isso é, ao menos até 1949, Sun Yat-sen se teria tornado um modernizador
autoritário como Liang Qichao, mas mergulhando —vantagem suplementar! —
suas raízes nas fontes da revolução: em suma, um Deng Xiaoping antes de sua
definição, que teria talvez podido fazer a economia do maoísmo, ou um Chiang
que teria suplantado os comunistas? Resta um outro enigma: como esse
personagem muitas vezes inconsistente apesar da firmeza de seus objetivos
teria podido impor seu programa de reformas aos pesos sob os quais Chiang
Kai-shek se enterrou ao chegar ao poder? E Sun não diz nada da reforma do
partido, tornada ao menos tão necessária quanto a da sociedade, pelo fato do
exercício solitário do poder de tutela pelo Guomindang. Dentro dos fatos,
entregues a eles mesmos pelo desaparecimento do guofu, os Três Princípios
só puderam opor sua leveza artística às interpretações e aos subterfúgios de
Chiang, fazendo da mesma forma a parte bela para os comunistas. A verdadeira
grandeza de Sun é sem dúvida em outro terreno que não esse. A China do
século XX teve um consumo imoderado de dogmas e de exclusividades, mas
ela acabou por decidir, em todos os domínios, em favor do compromisso.
Embora eles tenham ou conservado demais ou rejeitado demais, os próprios
Chiang e Mao testemunham essa tendência para as sínteses, mas é Sun Yat-sen,
o Sun dos Três Princípios, que é impossível de se classificar a Leste ou a Oeste,
do lado da revolução ou da modernização, que o encarna mais fielmente em
seu “sincretismo inovador” (G. K. Kindermann), dizendo de outra forma,
dentro de um "caminho chinês”, que teria de esperar o fim do século XX para
se impor de um lado ao outro do estreito de Formosa.

• Além das obras e das traduções já mencionadas e das O bras c o m p le ta s (Z on gli qu an ji,
Shangai, Minzhe shudian, 1930,5 vols., paginações múltiplas), Sun deixou memórias traduzidas
(ou melhor, adaptadas): S o u v e n ir s d'u n r é v o lu tlo n n a ir e ch in o is, Paris, Editions de la Nouvelle
Revue critique, 1933,224 págs. A exposição mais completa da doutrina (princípios e estratégia
modemizadora) é: J ia n g o fa n g lu e (U m a e stra té g ia p a r a c o n s tr u ir a N a çã o ), Shangai, Minzhe
shudian, 1924,482 págs.

► A maioria dos personagens citados aqui, inclusive o próprio Sun, são objeto de notícias no
volume C h ln e do D ictio n n a ire biograph iqu e du m o u v em e n t o u v rie r In tern ation al, sob a direção
de Lucien Bianeo e Y. Chevrier, Presses de la Fondation nationale des Sciences politiques et
Editions Ouvrières, 1985,846 págs. Em francês, o S u n Yat-sen de Jean Chesneaux (Club français
du Livre, 1959, 264 págs.) é antigo. Algumas obras dominam uma abundante bibliografia sun
yatseniana não desprovida de preocupações ideológicas, até mesmo hagiográficas. Reportar-se-á aos
estudos de Harold Z. Schiffrin (Sun Yat-sen, R elu ctan t R evolu tion ary, Boston, Little Brown & Co.,
1980, 290 págs.) e C. Martin Wilbur (Sun Yat-sen, F ru strated P atriot, Nova York, Columbia

1191
University Press, 1976, 414 págs.). Sobre o fracasso do regime nacionalista que se inspirou nos
Três P rin cíp io s, ver Lloyd E. Eastman, The A bortive R evolu tion : C hin a u n d er N a tio n a list Rule,
1 9 2 7-1937, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1974,398 págs., e do mesmo autor, S e e d s
o f D estru ctlo rv N a c io n a list C hin a in W ar a n d R evolution, 1937-1949, Stanford, Stanfor Univer­
sity Press, 1984, 312 págs.; Marie-Claire Bergère (L'Age d ’O r de ia B o u rg eo isie ch in oise,
1 9 1 1-1937, Flammarion, 1986,370 págs.) faz uma análise penetrante do contexto sócio-estatal da
modernização na China. Introduções cômodas ao período em Lucien Bianco, L es o rig in e s d e la
révo lu tio n ch in oise, 1915-1949, Callimard (“Folio histoire”), 2- ed., 1987,376 págs., e Y. Chevrier,
L a C h in e m o d e m e , PUF, (“Que sais-je?", n! 308), 1989.

Yves CHEVRIER.

SUNZI
A arte da guerra (aproximadamente século IV ou V)

O tratado chinês concernente à arte da guerra redigido em treze breves


capítulos, entre o século IV e o século V antes de nossa era, e atribuído a Sun
Zi é não somente a mais antiga obra de estratégia militar mas também uma das
obras capitais nesse domínio.
Não se sabe nada sobre o autor desse tratado, tido, desde a dinastia dos
Han e ao longo de toda a história chinesa, em muito alta estima, como
testemunham o número e a qualidade de seus comentadores. Muito cedo a
influência do tratado foi atestada no Japão enquanto seus principais comenta­
dores datam dos séculos XVII e XVIII. Na Europa, Sun Zi foi traduzido pela
primeira vez pelo jesuíta francês J. J. M. Amiot e publicado em 1772, em uma
época em que a Eruopa das Luzes dá ao Oriente em geral e à China em
particular uma atenção nova, graças aos jesuítas. Mais tarde o tratado foi
traduzido também para o inglês, o alemão e o russo.
Desde a vitória de Mao Tsé-Tung, cujos escritos militares trouxeram, no
decorrer dos anos cinqüenta, o interesse sobre o pensamento militar chinês,
até então considerado como medíocre pelo Ocidente, Sun Zi suscita uma
atenção - e traduções - novas. Em sua apresentação na mais recente das
versões inglesas, B. H. Liddel Hart escreve: “Os ensaios de Sun Zi sobre a arte
da guerra constituem o mais antigo dos tratados conhecidos sobre esse
assunto e eles jamais foram ultrapassados quanto à extensão e à profundidade
do julgamento. Eles poderiam justamente ser designados como a quintessência
da sabedoria sobre a condução da guerra. Entre todos os teóricos militares do
passado, Clausewitz é o único que lhe é comparável. Ele envelheceu mais
ainda, e está em parte ultrapassado, se bem que tenha sido escrito mais de dois
mil anos depois de Sun Zi. Este possui uma visão mais clara, uma penetração
maior e um frescor eterno.”

1192
0 que de imediato permite estabelecer uma correlação entre Sun Zi e
Clausewitz baseia-se numa compreensão comum da guerra como dependendo
primeiro da ordem política. O tratado chinês começa com estas palavras: "A
guerra é assunto de importância vital para o Estado; a província da vida e da
morte; o caminho que leva à sobrevivência ou ao aniquilamento. É indis­
pensável estudá-lo a fundo.”
Antes de pensar sobre a conduta na guerra, Sun Zi estabelece seu
princípio transcendente: a paz dita seu sentido à guerra. Longe de se preocupar
principalmente com problemas militares técnicos e ligados por conseqüência
estreitamente a uma época, Sun Zi esforça-se em resgatar a essência da
estratégia da guerra e sua ligação com o político. Neste sentido, Sun Zi como
clássico militar é provavelmente insuperável, tudo ou quase tudo realmente é
dito dentro dos aforismos e das sóbrias alternativas destinadas a ilustrá-los,
cujo conjunto ultrapassa apenas uma centena de páginas.
Considerando a guerra como uma realidade inevitável, Sun Zi preconiza
limitar tanto quanto se possa sua duração. Seu tratado concerne à inteligência
das relações de força e à utilização mais racional, até mesmo a mais econômica,
das tropas. É preciso procurar submeter as forças adversárias por meio de uma
combinação de astúcia, surpresa e desmoralização. Este último fator é funda­
mental e raramente no passado se colocou melhor a ênfase sobre a importância
da guerra psicológica: rumores, intoxicação, suscitar e utilizar uma quinta
coluna, semear a discórdia entre os inimigos, subverter e corromper entre os
adversários todos aqueles que podem sê-lo no escalão da tropa.
Essas práticas são tanto mais fáceis quando se trata de tropas mercená­
rias, de generais de lealdades pouco certas, de conflitos cujo êxito é de
pouquíssima importância exceto para a dinastia ou o potentado que a em­
preende e sua clientela.
Nessa concepção implícita da guerra tal como ela é pensada por Sun Zi
não entra nenhum dos dados que provocam os conflitos ideológicos mais
mortíferos: guerras de religião, guerras civis ou guerras nacionais. O que se
denominava guerra de opinião na idade clássica no Ocidente era desconhecido
no universo de Sun Zi. Também o eram conflitos entre civilizações estrangeiras
— nômades contra sedentários ou'invasão comparável àquela dos conquis­
tadores na América. O universo intelectual de Sun Zi inscreve-se dentro de um
mundo em que a guerra é praticada no âmbito de uma mesma sociedade, com
meios e metas relativamente limitados, dentro do quadro de regras geralmente
aceitas. Nesse sentido, a guerra da qual Sun Zi fala está mais próxima, dentro
de suas motivações, meios e desígnios, dos conflitos medievais ou das guerras
limitadas dp século XVIII europeu, do que das invasões mongóis vindas da Ásia
Central que a China conhecerá mais tarde, dos tumultos religiosos da Europa
do século XVI ou das guerras aniquiladoras da era das massas e dos antago­
nismos nacionais.
Os treze capítulos de Sun Zi englobam e sintetizam os princípios gerais
que devem guiar a conduta de um conflito. A esse respeito, ele privilegia antes
a moral e a coesão das tropas, a importância da “harmonia do povo com seus

1193
dirigentes”. A doutrina estratégica de Sun Zi está bem lastreada no conhe­
cimento do adversário, de suas concepções, de seu modus operandi: “O que
tem a maior importância é estudar à estratégia do inimigo”.
Como todo pensador militar depois dele, Sun Zi escreve: "Utilizem-se
mais da falta de preparação do inimigo, ataquem-no no momento em que ele
menos espera, evitem sua força e firam sua inconsistência”. A doutrina do
teórico chinês concede um lugar considerável à decepção e à manipulação do
adversário mantendo em suas próprias fileiras firmeza de espírito e disciplina.
Em última maneira, a estratégia, baseada na inteligência do outro, o partido
tirado de suas fraquezas, sua desmoralização preparada, visa dar um golpe
decisivo em um adversário em plena desordem. A guerra, sob pena de esgotar
também o vencedor, ganha em ser breve.
Como teórico não-dogmático, Sun Zi constata toda a importância da
capacidade em se adaptar a uma situação imprevista: “Da mesma maneira que
a água não tem forma estável, não existe na guerra condições permanentes”.
Não temer infringir as ordens do soberano se a situação na prática assim exigir.
Por essa afirmação ousada, sobretudo na época dos despotismos, Sun Zi
recoloca menos em causa o aspecto político do conflito, “os soberanos es­
clarecidos deliberam sobre os planos, os bons generais executam-nos”, do que
as rígidas considerações de uma direção sem meios de medir a capacidade de
uma situação concreta. A coragem e o talento do chefe de guerra se medem
também pela capacidade de infringir as ordens quando ele tem a profunda
convicção de deter a chave tática de uma situação.
Longe de preconizar a guerra, Sun Zi deseja diminuí-las em seu tempo
de duração e, graças ao fator moral, torná-las o menos custosas possível,
assentando o golpe de misericórdia em um adversário já vencido. As guerras
de cerco são desaconselhadas em proveito das guerras de movimento/jogando
com a surpresa e o ponto fraco do inimigo.
Em sua essência, A arte da guerra de Sun Zi é um tratado militar
tomando como postulado uma política sensata, um emprego moderado da
força, o uso da inteligência e da astúcia combinadas com a firmeza de espírito
e a tenacidade.
A arte da guerra é ao mesmo tempo uma conceptualização genial dos
conflitos militares tal como os descreverá o admirável romance chinês Os três
reinos, cujos acontecimentos se passam alguns séculos mais tarde, e uma
obra-prima universal. A obra de Sun Zi é o primeiro tratado em que a guerra
não é nem considerada sob seu ângulo moral nem como um acontecimento
acidental. Com um avanço considerável Sun Zi coloca o problema da guerra
como central para o Estado e como um ato consciente podendo se prestar a
uma análise rigorosa e do qual a paz dita o sentido.•

• A arte da guerra é atribuída a Sun Zi, do qual não sabemos nada. A obra data, segundo toda
probabilidade, dos séculos IV e V antes de nossa era.

1194
► A rt m ilita ire d e s C h in ois, Paris, editora de Didot 1’AIne, 1772, trad. por P. Amiot; G.
Cotenson, De l’art militaire des Chinois d’après leurs classiques: L a N o u v e lle R e vu e, Paris,
agosto de 1900; L ’a r t m ilita ir e d e V A n tiqu ité ch in o ise . U ne d o c tr in e b im illé n a ire , ed. crítica
tirada da trad. de Amiot pelo Tenente-Coronel E. Cholet, Paris, Lavauzelle, 1922; S u n Tse e t les
a n c ie n s C h in o is, apresentados e anotados por L. Nachin, Paris, Ed. Berger-Levrault, 1948, trad.
de Amiot; S u n Tzu, L ’a r t d e la gu e rre, prefácio e introdução por Samuel B. Criffith, prólogo de
B. H. Liddel Hart, trad. do inglês por François Wang, Flammarion, 1972, republicado em
“Champs", Flammarion; Sun Zi, L e s tr e iz e a rticle s, trad. de M. C. Beuzit, L’impensé radical,
1971; S u n Zi, L ’a r t d e la g u e rre , trad. e ed. crítica por Valérie Niquet-Cabestan, apresentação
de Maurice Prestat, Econômica, 1988.

Gérard CHALIAND.
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TAINE, Hippolyte, 1828-1893
As origens da França contemporânea, 1875-1893

Estranho destino póstumo é o de Hippolyte Taine! Difamado enquanto


vivo pelos clérigos, depois tardiamente adotado por eles, sofreu por sua
fraternidade “siamesa” imposta com Ernest Renan - diz-se Taine-e-Renan
como se diz “Tarn-e-Garonne”, zombava Thibaudet —tanto quanto por sua
politizaçâo exagerada que, muito freqüentemente, na França, decide sobre a
sobrevivência das grandes obras de pensamento. Tanto que os cento e
cinqüenta anos de seu nascimento (1978) foram, ao contrário de seu
centenário (1928), marcados por uma indiferença de chumbo, desmentida
apenas pelo colóquio que uns vinte e poucos eruditos corajosos organizaram
em Paris. Como confirmar na verdade seus diagnósticos mais sombrios sobre
a futilidade e a versatilidade do “espírito francês’’... Há ainda uma geração
“Senhor Taine”, espécie de duplicata intelectual do execrável “Senhor
Thiers”, que servia a alguns de cutelo conveniente quando se tratava de
rachar ao meio o fantasma do “positivismo”, a outros de reservatório para
cópias de exames (“a raça, o meio, o momento”, o “espírito-polipeiro de
imagens”, a “percepção como alucinação verdadeira”). Hoje em dia, quando
os estudos renanianos, parcialmente libertos da poeira dos velhos clichês
secularistas, conhecem uma recrudescência indiscutível, o purgatório de
Taine perdura. Quererá isso dizer que sua obra, tão difícil de ser lida hoje
em dia de outra maneira que não em biblioteca pública —que nunca teve a
honra de uma reedição completa e crítica —tenha perdido atualmente toda
pertinência dentro do debate intelectual e político?
Atualmente ela ainda sofre da má reputação que se liga na França a todos
aqueles que se obstinam em tratar os fatos sociais, históricos ou “culturais”
como coisas e com a preferência dissimulada do “partido intelectual” pelos
catecismos de todas as cores confessionais ou políticas. Estranho a toda
ortodoxia, Taine o é também a toda normatização acadêmica. Ninguém sabe

1197
se se deve “colocá-lo” entre os filósofos ou os psicólogos, os historiadores da
literatura ou os das idéias, os “especulativos” ou os “empíricos”, os ensaístas
sérios ou os janotas do conceito. Além disso ele transgrediu dois grandes
tabus, lembrando aos intelectuais franceses que eles tinham um passado nem
sempre glorioso e, ao conjunto de seus compatriotas, que a Inglaterra havia
freqüentemente obtido sucesso onde nosso país fracassava com brio. Ele teve
também muitos discípulos, mas poucos continuadores.
Nasceu em 1828, dentro de uma família ardennesa de tabeliões e de
notários, “modesta”, honrada, enraizada desde o começo do século XVII nos
mesmos lugares de uma província". Perde seu pai, procurador, muito jovem
e será criado por uma mãe muito piedosa e por avós céticos, herdeiros de
uma tradição do século XVIII, voltairiana e condilaciana. O garoto muito
sensível e nervoso desde pequeno, toma gosto pela leitura dentro dessa
paisagem chuvosa que ele descreverá mais tarde com entonações que vão de
Chateaubriand a Combourg. Com treze anos, conhece a sorte dos jovens
dotados das províncias no século XIX: parte para Paris, onde segue os cursos
do Liceu Bourbon (estamos em 1841), residindo como interno na “ins­
tituição Mathé”. Aí ele ganhará o ódio pelo liceu-caserna do tipo napoleôni-
co, mas também o ideal grego e “pagão” do qual ele se valerá toda a vida.
Esse superdotado de saúde sempre frágil “integrará” sem dificuldade a
Escola Normal Superior no mesmo ano da Revolução de 1848, em primeiro
lugar, e freqüenta, portanto, em outubro desse ano movimentado, as edifi­
cações novas em folha da rua Ulm. “Um sopro possante agitava essa época
e penetrava a Escola”, escreveu mais tarde Octave Gréard para evocar essa
época em que tudo parecia possível; “a observação dos fatos, em filosofia,
em moral, em história, em literatura, havia tomado um espaço notável do
lugar ocupado até então pelo estudo das puras teorias. Decorar-se-iam os
artigos de Sainte-Beuve; Balzac suscitava entusiasmo; inventava-se Stendhal.
Seguia-se o progresso da química e da história, os progressos da fisiologia”.
O jovem normalista permanecerá durante toda sua vida fiel a esse programa,
que começará, aliás, para ele com desgosto: “fichado" por seus professores
como perigoso materialista, fracassa em dezembro de 1851 na tentativa de
admissão à livre-docência de filosofia; um ano mais tarde, pela mesma ofensa
grave ao espiritualismo e à religião, vê recusada sua tese de doutorado sobre
A Sensação, primeiro esboço do que será seu De Fintelligence {Da inteli­
gência). Seus dois anos de professorado passar-se-ão mal da mesma maneira,
do ponto de vista da Administração. Em 1853, o jovem filósofo, intimado a
pegar uma classe de sexta série (sic) em Besançon, pede demissão com
altivez. E verdade que uma honesta fortuna pessoal permitia-lhe encarar o
futuro sem muitos temores. Repelido pela Universidade, começará por
pagar-lhe dívida, obtendo finalmente seu doutorado de Estado sobre um
assunto “sensato”, por excelência: La Fontaine et ses fables (La Fontaine e
suas fábulas). Depois ele impressionará seus censores em cheio: Les philo-
sophes classiques du XIX siècle en France (Os filósofos clássicos do século
XIX na França) aparece em 1857 e faz Taine alcançar a celebridade. Ele fala,

1198
em seu prefácio, de "cinco ou seis jovens” que, vivendo no quartier Latin
(famoso bairro de Paris) em 1852, “tinham praticado uma ciência, o que lhes
havia gerado desprezo pela filosofia literária; eles só viam nela uma retórica
e elegante e quando lhes perguntavam o que é filosofia clássica, respondiam
que é a filosofia para uso das classes”.
E é verdade que, liberado das “classes”, o jovem pensador vai freqüentar
os anfiteatros de medicina, os laboratórios e os gabinetes de história natural
mais do que os salões. Sua vida daí em diante confundir-se-á com a realização
prática dessa “geometria moral”, da qual ele havia concebido o sonho nos
turnos da rua d’Ulm com outros irmãos espinosistas encontrados no liceu,
como Prévost-Paradol, o autor dessa France nouvelle, que é preciso que se
leia se se quiser compreender a política de Taine de outra maneira que não
como uma reação epidérmica de pessoa que vive de rendas diante das
convulsões sociais da Comuna. Taine amadureceu durante muito tempo sua
obra-prima, pareceu durante muito tempo mais preocupado em deixar um
nome dentro da psicologia individual e coletiva, dentro de uma renovação
racionalista da estética e da crítica do que dentro da história especulativa. No
entanto, ele nunca escondeu que um dos mais importantes “mestres” foi
Guizot, o filósofo liberal da civilização francesa e européia.
Seria fácil mostrar que, se os filósofos, os sociólogos, os especialistas
da história e outros semiólogos contemporâneos ignoram soberbamente o
pensamento de Taine, não é para ele que o sintoma é opresivo. Todos, aliás,
não o esqueceram realmente: um Pierre Bourdieu, por exemplo, que soube
recentemente encontrar palavras vingativas contra uma certa vulgaridade
antitainiana e cujas afinidades com o autor de Thomas Graindorge seriam
um belo assunto para ele mesmo. Mas existe uma disciplina de onde Taine,
ainda que ao preço de desempenhar o papel pouco invejável do “detestável
reacionário”, não pode ser desalojado: a história, tão estratégica para este
país, da Revolução Francesa. Ainda assim, ele é citado com menos boa
vontade do que Michelet ou do que um Tocqueville, e permanece “incontor-
nável”.
Como o título indica, no entanto, Les origines de la France contempo-
raine, esse trabalho de mais de vinte anos (1871-1892) não teve como objeto
último a crise revolucionária. Filósofo de formação, Taine quer ser historiador,
mas historiador de um gênero novo, para o qual a simples reconstituição dos
acontecimentos não interessa por si mesma. Sua intenção é outra: constituir
uma ciência da política cujo conhecimento e cuja difusão colocam a França ao
abrigo das convulsões repetitivas que a afetaram de 1789 a 1871. Não
esqueçamos de que se trata do mesmo homem que, no mesmo momento em
que concebe o grande propósito das Origines..., coloca de pé, com outros
liberais conservadores como ele (Boutmy, Laboulaye, Janet), a Escola Livre das
Ciências Políticas, para preparar o reerguimento da França. Já que evocamos
aqui uma instituição cuja referência abertamente reinvindicada era Oxford e
Cambridge, é aqui também o lugar de lembrar que, muito simbolicamente,
Taine passou, a “semana sangrenta” de 1871... em Londres, onde pronunciou

1199
uma série de conferências e que esse pretenso inimigo mortal da democracia
voltou com este gênero de observações: “Dois princípios desconhecidos na
França, admitidos universalmente em todos os países livres:
1) Quando a maioria se pronunciar, submeter-se francamente, seria-
mente, não manter o pensamento dissimulado de violentá-la por meio de um
golpe de Estado.
2) Permitir à minoria dizer e imprimir o que lhe convém. Eis os direitos
da maioria e da minoria; nem um nem outro são respeitados na França."
(Sublinhado por nós).
A grande obra de Taine será portanto uma longa, interminável - e além
disso inacabada — investigação sobre essa ausência, na França, de um
“consenso” sobre a posição da cidadania*. Essa investigação foi conduzida
segundo os princípios do pequeno “discurso sobre o método”, que Taine, no
mesmo momento em que dividia ao meio, nos aplausos de Sainte-Beuve e de
Renan, o espiritualismo universitário, expunha assim: "Se se decompõe um
personagem, uma literatura, um século, uma civilização, em resumo um
grupo natural (sublinhado por nós) de acontecimentos humanos, achar-se-á
que todas as partes dependem uma das outras, como os órgãos de uma de
uma planta ou de um animal.” Esse método, do qual Taine nos diz que o
deve “a Aristóteles e a Hegel”, permite pensar sobre uma história enfim
científica. Oito anos mais tarde, dentro de um contexto político mais favorá­
vel (com o grande Victor Duruy, os obscurantistas não se sentem mais em
casa no Ministério da Instrução Pública e a juventude começa a seguir
Taine-e-Renan...) ele poderá ser ainda mais explícito: “A história recente
vinda [das ciências morais] pode descobrir leis como suas antecessoras”
(Essais de critique 2- ed., 1866).
Ela estará portanto em condições de explicar o “estado” atual da França
de 1871, seu duplo colapso interno e externo, por meio de “estados” mais
antigos (o Antigo Regime, a Revolução) e as leis de sua transformação.
Certamente, Tocqueville já o havia tentado, e Taine não deixa de render
homenagem a seu ilustre precursor. Mas ele pensa ter dado um grande passo
à frente em comparação a Tocqueville, introduzindo conceitos onde esse se
contenta, na maioria das vezes, em constatar e descrever. Os dois conceitos
fundamentais utilizados pelo autor das Origines de la France contemporaine
serão os de "caráter francês” e de “máquina moral”. Ao caráter francês, do
qual Taine diz que ele é “a própria essência da raça” (uma raça que não é a
“raça” dos racistas biologizantes, mas muito mais uma comunidade forjada por
um longo "viver junto”, corresponde a “faculdade-mestra” da qual ele havia
feito anteriormente o operador por excelência da compreensão do indivíduo:
a “geratriz”, no sentido matemático de todos os traços pertinentes de uma
biografia. O "egotismo” de Stendhal é um exemplo. As máquinas morais
(Estado, Igreja, Escola, Família, etc.) são o artifício que pode comprimir, coagir
e, finalmente, reformar esse caráter. A maquinária, quase que perfeita na

* Essais de critique et d'histoire, 1! ed., 1858.

1200
Inglaterra, é muito defeituosa na França. Por quê? Por que essa “desor­
ganização latente da França”?
Se retormarmos as categorias epistemológicas expostas no Prefácio de
1866, citado anteriormente, diremos que isso se deve ao mesmo tempo às
dependências e às condições da França contemporânea. As “dependências”
são os traços ideal-típicos que se estendem a todos os estágios da estrutura
social; ancestral de todos os funcionalismos modernos, como o tinha notado
Ernst Cassirer (The logic o f the humanities), Taine lembra-se de Leibniz: dessa
forma o espírito clássico, oratório e superficial, toma conta da dominação dos
salões sobre as universidades quanto do utopismo “pseudogeométrico” dos
subintelectuais jacobinos. Mas há também as “condições”, dizendo de outra
maneira, os dados imediatos da biopolítica à qual muitas vezes reduz-se o
método de Taine, mas que convém remeter a seu verdadeiro lugar. Esse
"espírito clássico", para retomar o mesmo exemplo, é condicionado pela
existência, de longa duração, de um caráter nacional que o autor das Origens
da França contemporânea caracteriza dessa forma dentro de suas notas
preparatórias: “Excitável, muito visível sobretudo nos tempos de revolução;
eles se tornam loucos, sublimes ou ferozes. Daí o pânico, ou fúria francesa...
Nisso eles são totalmente femininos...da mesma maneira a necessidade de
diversão, o ódio pelo tédio.”
Compreende-se agora o esquema diretor da obra que nada tem evidente­
mente de uma apologia do Antigo Regime, caracterizado como “miséria,
opressão, privilégio”, como por toda a historiografia democrática mais clássica.
Trata-se muito mais de compreender por que o elemento regenerador foi
sempre dominado dentro da história francesa, o morto agarrado pelo vivo. O
povo não é o acusado. Que as “teorias transformam-se em lendas” dentro de
seu cérebro só é um fato pernicioso se a "teoria” for má. É o caso desde o
século XVIII, em que a sociedade "elegante" domina a inteligência “es­
clarecida”, as letras, as Ciências. Taine conta com azedume essas palavras do
Abade Maury em 1790: “Na Academia Francesa, considerávamos os membros
da Academia das Ciências como nossos criados.” Daí a “anarquia espontânea”
de 1789, os “dogmas e instintos” absolutistas que se manifestam no Governo
revolucionário de Robespierre...mas também no Regime moderno de Napo-
leão Bonaparte, o qual Taine considera que perenizou singularmente sem e
pela Escola e pela Igreja, o atraso, o “mal francês”. Contrariamente a um
estereótipo (um a mais!) muito difundido, Taine não considera a psicologia
clínica dos revolucionários, à qual ele se entrega um pouco complacentemente
em La conquête jacobine (A conquista jacobina), como uma causa, mas sim
como um efeito dos vícios da antiga sociedade. Ele raciocina também da mesma
maneira quanto às relações entre o Segundo Império e a Comuna. Se quiser­
mos compreender a verdadeira cadeia de razões que Taine aplica à crise
permanente da sociedade francesa no século XIX, é ao capítulo II do Governo
revolucionário que é preciso nos reportarmos. Ele expõe aí que o grande
defeito do jacobinismo é “sua concepção retógrada do Estado” que nos leva
de volta a “dezoito séculos atrás”, a essa Cidade antiga onde a "sociedade

1201
humana era talhada sobre o padrão de um exército ou de um convento".
Obsessão do ritualismo cívico, onipresença da guerra total, eis ao que, segundo
Taine, nos leva a fixação greco-romana dos jacobinos, bêbados de educação
humanista mal digerida. 0 “mal-estar dentro da civilização” que ele diagnostica
e que o assusta, como verdadeiro visionário dos totalitarismos modernos ainda
por vir", é o retorno monstruoso às “civilizações da primeira era”, a um
retrocesso de toda a história ocidental para o estágio em que “o princípio das
sociedades humanas era ainda o das sociedades animais: o indivíduo pertence
à sua comunidade, como a abelha à sua colmeia e a formiga ao seu formi­
gueiro”.
Segue um elogio da sociedade liberal moderna, fundada sobre a [liber­
dade de] “consciência” e “a honra”. “Hoje em dia, todo homem de coração,
como o burguês, o camponês, o operário, tem sua honra, como o nobre”, e essa
honra, Taine preocupa-se muito em explicá-lo, confunde-se com a preservação
da “fortaleza” dos direitos individuais. Certamente Taine, para preservar a
fortaleza das liberdades propõe sacrificar a onda democrática, instituindo o
sufrágio em dois graus (os eleitores são primeiro eleitos eles próprios, ou o são
por suas “capacidades”). Ele se sustenta, portanto, sobre as aporias que
sabemos constitutivas de todo liberalismo puro. Mas será essa uma razão para
não ler mais esse genial analista da “ideologia francesa”, esse grande pensador
de uma reforma intelectual e moral a quem só faltaram continuadores que não
fossem apenas os Bourget e os Barès?

• L e s o r ig in e s d e ia F ra n ce c o n te m p o ra in e foram editadas por Hachette de 1875 a 1893, em


10 volumes; elas só são disponíveis atualmente em uma edição abreviada de R. Laffont.

► V. Giraud, E ssa i s u r Taine, Paris, 1963; A. Cheurillon, Taine, F o rm a tio n d e s a p e n sé e , Paris,


1932; M. Leroy, T aine, Paris, 1975; Revista R o m a n lism e, ns 32, 1981, Contradictions de Taine
(Colóquio ocorrido na ENS em maio de 1973).

Daniel LINDENBERC.

1202
TCHERNYCHEVSKI, Nikolai Gavrilovitch, 1828-1889
Que fazer? Narrativas sobre os novos homens, 1863

Este romance, pouco conhecido o Ocidente, foi desde seu aparecimento


e até o fim do século o livro de cabeceira da juventude russa. Ele é o fecho da
abóbada de uma obra que costitui ao mesmo tempo a crítica mais fecunda do
despotismo autoritário e uma raiz fundamental do leninismo. Escrito na prisão,
em 1863, no limiar de uma penosa deportação de vinte anos, o Que fazer? é
duplamente codificado. Pois, em primeiro lugar, a questão colocada pelo título
traduz uma dificuldade teórica que depende - assim como a resposta oferecida
- de uma concepção da natureza do despotismo russo elaborada anterior­
mente por Tchernychevski em torno de três idéias: a) todas as pessoas estão
reunidas verticalmente e individualmente por uma “hierarquia de despo­
tismo” em que cada um é sempre, ao mesmo tempo, o súdito e o déspota de
um outro: resulta daí que as divisões sociais antagônicas não se manifestam,
“a sociedade não está constituída” e que o Estado é todo-poderoso; b) “a
impossibilidade de ação" está inscrita na natureza desse sistema fechado feito
de obediência absoluta e de necessidades constrangedoras das quais o súdito-
e-déspota colocado imediatamente acima detém a chave; c) “a decomposição
da natureza humana”: em seguida à escravidão plurissecular, a Rússia é
homogeneizada pela “despersonalização” (obezlitchivanie) de seus súditos.
Como então arrancar do Estado o monopólio da iniciativa, se ele é o único
agente espontaneamente apto para a ação? A revolta desesperada deve ser
afastada: mesmo dirigida por uma minoria consciente, ela só fará, em caso de
vitória, assegurar a renovação do despotismo fornecendo-lhe a legitimidade
popular. Uma ruptura realmente anti-autocrática supõe retificar a espon­
taneidade da história russa para atingir a autonomia do Social: mudar as
mentalidades introduzindo “a civilização européia”, um “processo muito longo
e difícil” cuja saída permanece contudo incerta, segundo esse autor. Na Europa
a história produz espontaneamente os agentes apropriados para a ação: as
classes sociais. A ausência delas, na Rússia, torna necessário instituir volunta­
riamente o agente. No caso, trata-se de ampliar um novo —e será o primeiro —
meio verdadeiramente social, o dos raznotchintsy, indivíduos provenientes de
todas as ordens mas libertos de todas as suas amarras. Eram chamados
otchtchepentsy, “aqueles que desertam” (do sistema) mas também os “novos
homens” (N.h.). Esta última expressão, consagrada pela tradição (ao invés da
tradução literal “novas pessoas”) não quer ocultar que a emancipação da
mulher era uma das preocupações centrais da inteligência russa nessa década
de 60. Que fazer? é a pergunta de uma geração que reclama a passagem para
a ação. Ou, segundo código para abordar o livro, seu autor opõe-se aos projetos
de confrontação direta com o poder. Cabeça pensante do que se chama o
populismo russo e que dá então seus primeiros passos, Tchernychevski sente
ao mesmo tempo que o movimento lhe escapa. Uma atividade puramente
intelectual como a sua não basta mais para orientar essa geração da qual uma

1203
parte, inclusive entre seus próximos, escolhe a clandestinidade, organizando
contra a sua advertência o movimento “Terra e Liberdade” em 1861, enquanto
o extremismo revolucionário, contra o qual ele prevenia seus partidários,
exprime-se em A Jovem Rússia em 1862. É então que Tchernychevski “deixa
a cena”, ao ser detido. Sua mensagem de adeus àqueles que se encontram no
limiar da ação é um romance de amor, Que fazer?
À questão enunciada pelo título o texto responde indicando a emergência
voluntária de focos de "civilização” chamados para tecer o espaço social autôno­
mo do Estado. A intriga é aparentemente simples. Por meio de um casamento
"branco” com um N.h., a estudante Lopukhov, Vera, moça inteligente mas
“sufocando” sob o despotismo familiar, liberta-se e tem acesso a esse novo
ambiente, espécie de proto-sociedade sustentada pelos N.h. Mais tarde acontece
o verdadeiro amor, com Kirsanov, o melhor amigo de Lopukhov. Este "deixa a
cena” simulando suicídio. Para realizar seu plano, ele utiliza Rakhmétov, o
“homem especial” (H.e.), percebido depois pelo conjunto do movimento revolu­
cionário e principalmente por Lênin como o arquétipo do revolucionário profis­
sional. Rakhmétov é “o instrumento" do N.h.: ele ajuda à encenação de Lopu­
khov, que o encarrega de comunicar a Vera que se trata de um falso suicídio e
ele discute com ela a fim de desculpá-la e de convencê-la de que seu amor com
Kirsanov é possível. É a única aparição de Rakhmétov no romance, sua inter­
venção é necessária para que os N.h. tenham acesso à “felicidade total”. Os
sonhos de Vera escandem a narrativa: o primeiro e o quarto constituem suas
marcas fundamentais. O tema do primeiro é a emancipação individual pelo
estabelecimento de relações humanas excluindo o elemento submissãodes-
potismo. A realização do desejo segue o sonho; mas esse primeiro passo para a
passagem do servo ao cidadão revela-se tão difícil na Rússia que toda a narrativa
lhe é consagrada. Em compensação o quarto - onde a Utopia irrompe —não tem
seqüência: o futuro “radioso” é duplamente fantasioso, desde o momento em que
se manifesta somente no sonho e sob formas propositadamente utópicas em
extremo. Em duas retomadas, entretanto, sua relação com a realidade é explícita:
quando Vera, que sonha com um estágio social ista-singular-e-universal da huma­
nidade, exige sua representação específica, recebe como resposta apenas um
parágrafo (o de n2 7) preenchido unicamente com pontos de suspensão, e quando
o autor define o socialismo como o lugar de projeção social da natureza do
homem, exatamente o oposto do sistema autocrático. “Nada é superior à mulher,
nada é superior ao homem”: além da libertação deles está o nada, o silêncio do
parágrafo 7 ou a utopia. Sendo o socialismo a única ordem moral incapaz de
conluio com o despotismo, ele é indispensável à europeização da Rússia.
Estes N.h., "principais personagens” do romance, constituem um “tipo de
homem” cujo traço distintivo é o de ser “comum”: todos os submissos podem e
devem tornar-se N.h. Em oposição à “decomposição da natureza humana” na
dupla submissão-despotismo, os N.h. correspondem à verdadeira natureza do
homem. Rakhmétov é uma “outra espécie”: um H.e. e não um N.h. Desde os
mongóis, sua linhagem confunde-se com aqueles que construíram a autocracia,
tendo tido representantes esclarecidos, e ele próprio cresceu dentro de uma

1204
família “conservadora, inteligente, honesta, submissa e despótica”, tantas "predis­
posições” para essa “natureza especial” que lhe permitem comparar-se com seu
rival-espelho, a autocracia: cada Estado tem os revolucionários que merece. No
triângulo N.h.-H.e.-povo, este (Macha, submisso-e-déspota) ressente-se do H.e. por
estar muito próximo enquanto tudo o separa dos N.h., mas Rakhmétov está mais
distante de Macha do que Vera e seus amigos. É o momento despótico: sua
presença para os H.e. e sua ausência para os N.h. que determinam esse
sentimento de familiaridade ou de estranheza vivido por Macha. Os N.h. por sua
vez "temem” Rakhmétov: é “um monstro lúgubre” do qual deve-se “desconfiar”.
A ênfase é colocada sobre aquilo que distingue os N.h. dos H.e.: a “vida privada”,
“indispensável” para os N.h., mas ausente para os H.e. que a identifica com o que
ele considera como o interesse comum. Ora, Rakhmétov é por sua vez insubs­
tituível: sem ele, o único capaz de medir-se com a autocracia, os N.h. não podem
nem se realizarem nem se multiplicarem. O valor do H.e. reside em sua
“efícacidadeNo entanto, os traços inerentes ao revolucionário eficaz - a “frieza
da inteligência”, "o ardor da vontade” e “o pragmatismo impassível” em oposição
ao “romantismo” e à “fé juvenil” dos revolucionários unilineares” —são atribuí­
dos dentro do romance tanto aos N.h. quanto aos H.e. Dizendo de outra maneira,
o N.h. deve saber comportar-se como H.e. para agir eficazmente, mas esse
desdobramento supõe uma nítida distinção: Tchernychevski coloca o N.h. para
assegurar uma dimensão humana a uma ação que só o “monstro” pode suportar.
O revolucionário profissional é indispensável à ampliação do espaço social, mas
representa também a possibilidade de um formidável reforço do despotismo em
razão de sua afinidade interior com esse. Dessa forma, na cena em que, para
permitir a uma submissa (Katia) tornar-se “nova mulher”, um N.h. (Kirsanov) age
como H.e., Tchernychevski toma cuidado em fazê-lo proclamar duas vezes os
limites que ele deve observar para manter-se do lado contrário do despotismo:
“Adoto uma regra: contra a vontade de uma pessoa não se deve fazer nada a seu
favor, a liberdade está acima de tudo, mesmo acima de sua vida”. Represar a ação
para respeitar a natureza do homem é, na Rússia "uma mistura de loucura e de
inteligência”, mas que encerra “uma importância histórico-universai”. A ação só
pode ser eficaz respeitando-se “as leis da preparação gradual”, aquele que se
apressa em agir deve preparar-se para viver de fracasso em fracasso, sabendo que
enquanto for vivo nada será obtido, nem mesmo o primeiro sucesso, e uma vez
esse tendo sido atingido, será preciso retirar-se voluntariamente (como Tcherny­
chevski em sua vida, como Lopukhov e Rakhmétov no romance). Senão, “eles
serão cassados da cena, desprezados e desonrados". A ação, na Rússia, tem, como
o H.e., uma “natureza especial”. É a chave do Que fazer?-, com “os esforços de
uma única tentativa”, nenhuma transformação antidespótica, mesmo a mais
elementar, será possível. Ele não está nem mesmo certo de que o primeiro passo
possa ser seguido por um segundo; mal apareceu, Rakhmétov parte para a
Europa e os Estados Unidos para ”aproximar-se de todas as classes" e “-
provavelmente ali permanecerá”: sem classes, a Rússia não é ainda um terreno
de ação. O último capítulo que apresenta a variante otimista ocupa menos de
uma página e seu título fixa por si só o máximo que se pode obter a curto prazo:

1205
“Mudança de cenário”, nada mais. Quanto aos objetivos últimos, será preciso
esperar “talvez centenas de anos”.
Na formação das gerações seguintes de socialistas, o romance ocupa um
lugar central. Entre as exegeses difundidas nos anos 60-70, retém-se aqui duas
delas. Uma privilegiava a nova vida privada exaltada pelos N.h. e traduzia-se
pela colocação em prática das cenas do livro: os casamentos brancos generali­
zam-se para permitir às moças escaparem ao despotismo patriarcal, oficinas
coletivas de produção desenvolvem-se, tentativas de resgate e de reinserção de
prostitutas são experimentadas... No outro extremo, a imagem do socialista
esgota-se na do H.e. eclipsando a dimensão “homem comum” desejada por
Tchernychevski. Os militantes impõem-se seguir os princípios espartanos de
Rakhmétov, por exemplo, partilhar os duros trabalhos físicos e as privações
dos trabalhadores. Quando a ação revolucionária começa a se desenvolver,
nota-se duas práticas: a que coloca a ênfase sobre a propaganda no meio do
povo (Lavrov) e a que a coloca sobre a minoria vanguardista (Tkatchev). O
conflito latente no revolucionário bidimensional de Tchernychevski exprime-se
em toda sua complexidade no momento do episódio Netchaev: esse leva a um
paroxismo certos traços de Rakhmétov, mas ele é rejeitado por uma parte
importante dos revolucionários. A despeito daquilo que os N.h. e os H.e.
tinham em comum, seus leitores contemporâneos, como numerosas testemu­
nhas o atestam, concluíram que se tratava de dois projetos de vida diferentes,
até mesmo opostos. A dinâmica revolucionária entretanto vai impor entre os
militantes o modelo rakhmétoviano, seu traço principal, a eficácia da ação
gradual, pelo menos. Mais tarde, é a crença na “cientificidade" da teoria que
repele os temores que Rakhmétov inspirava em seu criador. “Ele me perturbou
completamente”: é Lênin que resume assim sua relação com Tchernychevski.
É interessante sublinhar neste ponto uma convergência e uma divergência
nessa relação. Tendo concluído pelo fracasso de um capitalismo que não
europeiza “espontaneamente” o Império, mas que ao contrário é "barbarizado”
pela autocracia, o jovem Lênin retoma por sua conta, em 1900-1901, o
diagnóstico de Tchernychevski concernente à especificidade da história russa:
fracasso do social e portanto nem constituição política das classes nem luta de
classes. A “espontaneidade histórica” russa é de novo condenada. A alternativa
(“um outro desenvolvimento burguês”, 1902) supõe a introdução da cons­
ciência política a fim de permitir a “todas” as categorias sócio-econômicas
tornarem-se sócio-políticas: a luta de classes poderá, enfim, desenvolver-se. O
agente dessa introdução —coloca-se como no primeiro Que fazer? sobre um
novo ambiente humano —é o Partido. No Que fazer? de Lênin, no entanto, a
distinção entre N.h. e H.e. não existe. Rakhmétov ocupa toda a cena, ele não
é somente o arquétipo do revolucionário profissional, é ao mesmo tempo N.h.,
portanto arquétipo da nova sociedade. Ora, o que diferenciava o N.h. do H.e.
era, no primeiro, a necessidade e, no segundo, a ausência de vida privada. Hoje
em dia, várias leituras dependem da de Lênin. A soviética primeiro: erigindo
Rakhmétov como modelo acabado do N.h., ela proclama uma sociedade do N.h.
sem vida privada suscetível de se projetar socialmente e autônoma do Estado.

1206
Mas, reencontra-se às vezes essa mesma identificação N.h.-H.e. dentro da
historiografia ocidental.
Vulgarizada, essa leitura leniniana acabou por mascarar uma obra que
permanece atual e por redescobrir sob vários aspectos. Pois, em primeiro lugar,
a concepção do despotismo em Tchernychevski repousa sobre considerações que
se reencontram entre as que subentendem hoje em dia as teorias do totalitarismo.
Neste sentido, a reflexão de Tchernychevski inscreve-se no seio debate sobre a
especificidade do totalitarismo dentro de um país em que o consenso aparece
dessa forma como sendo uma preocupação multissecular do pensamento políti­
co. Em segundo lugar, o Que fazer? é uma tentativa para sobrepujar dificuldades
semelhantes, porque avança do fracasso repetido do aspecto social dentro da
história russa, àquelas que reencontram atualmente as oposições antitotalitárias.
Ora, nesse meio-tempo, algumas das potencialidades, sobretudo a capacidade
para renovar o despotismo, de um revolucionário profissional, que esse autor
mais do que outros contribuiu para “forjar”, realizaram-se, da mesma maneira
que se revelaram justificadas suas dúvidas concernentes à "europeização”: o todo
na escala de uma superpotência e além, nas vastas regiões do mundo.

• P o ln o e S o b r a n ie S o tc h in e n i (O bras co m p le ta s), t. I-XV1, Moscou, 1939-1953. Em francês:


T ex tes p h ilo s o p h iq u e s c h o isis, Moscou, 1967 e E ssa is c ritiq u e s, Moscou, 1976. Q u e faire?...,
publicado em 1863 em Sáo-Petersburgo. Uma edição acadêmica apareceu em Leningrado,
Nauka, em 1975. As duas edições em francês (Lodi, Itália, 1875 e Moscou, 1967) sofrem de
traduções defeituosas e correspondem a edições russas, elas próprias mal preparadas.

► Para uma interpretação diferente daquela proposta aqui, ver A. Besançon, L e s o rig in e s
tn te lle c tu e lle s d u lé n in ism e , Paris, Calmann-Lévy, 1977. Para uma exposição de conjunto da
vida e da obra de Tchernychevski e uma bibliografia muito completa, ver o capítulo que lhe
consagra F. Venturi em L e s in tellecu els, le p e u p le et la ré v o lu tio n . Paris, Gallimard, 1972.

Claudio-Sergio INGERFLOM.

TOMÁS DE AQUINO, 1225-1274


Suma teológica, 1266-1273

A ciência “política” é rara. Florescente na Grécia no século IV antes de


Cristo, ressurgida em Roma no tempo de Cícero, havia sido abandonada desde
a época helenística e os últimos séculos da história romana. A vida da polis
estiolava-se sob o peso dos impérios.

1207
Não é menos lacunar sob tal ponto a literatura judaico-cristã. Israel, no
tempo do exílio e da dispersão, sofreu sob o jugo de dominações exteriores, e só
quis reconhecer como rei um Deus transcendente. Não são menos estranhos à
política os Padres da Igreja. O interesse de Santo Agostinho visava muito mais à
Cidade de Deus do que aos reinos terrestres, essa “grande ladroeira”. Teve-se
mesmo razão em se falar de “agostinismo político”? Nas escolas monásticas da
alta Idade Média, certamente exaltam-se os deveres dos reis, principalmente de
piedade (Salomão idealizado servindo de modelo); prega-se também a obediência,
o respeito aos juramentos, a fidelidade dos vassalos para com seus senhores. A
política é absorvida pela moral religiosa. Eclipse da ciência política.
À qual visam os trabalhos de Albert Le Grand e de São Tomás: quando
decidiram restaurar a filosofia natural, as ciências de Aristóteles, entre os quais
a Política. Quando São Tomás começa a ler e a comentar diante de seus alunos
a Política de Aristóteles. (O início do texto, na edição Marietti, 1966, é de sua
autoria, até III, 6). Esse acontecimento chega em boa hora quando na
cristandade mas também nos reinos, nos grandes feudos senhoriais e nas
cidades, renascia uma ordem política. A partir daí deu-se o recomeço da ciência
política na Europa. Ela se vai refazer em torno desse livro, primeiro com ele;
até quando surgir o sistema de Hobbes contra a Política de Aristóteles.
Esse comentário merece nossa atenção. O Prefácio (Prosemium) é uma
obra-prima. Ele coloca a ciência política em seu lugar, precisa seu objeto: essas
comunidades dentro das quais os cidadãos têm acesso ao “viver bem”. De fato
o homem não vive nunca sozinho. Antecipadamente é exorcizado o mito do
“estado natural” individualista. Podemos observar que essas comunidades se
desenvolvem, com maior ou menor sucesso.
Elas devem ser realizadas, porque é dever dos homens, que fazem parte
da natureza, participar de sua criação. É por isso que a ciência política é ao
mesmo tempo “especulativa” - observadora do real - e “prática”, útil à ação
(§6). A ciência política não é neutra. Nossos politólogos fariam bem se tirassem,
entre outras, essa lição do comentário de São Tomás.
Mas, para nós, ele tem o defeito de uma exemplar fidelidade ao texto de
Aristóteles. Não temos de repetir o que já pôde ser dito desse filósofo.
Daqui a pouco vou mencionar um outro opúsculo: De Regimine princi-
pum, cujas primeiras páginas foram durante muito tempo atribuídas a São
Tomás. Mas a doutrina pessoal de São Tomás sobre a política, a supor que ele
tenha uma, será tirada de preferência da Suma teológica (Summa theologica),
de todos seus livros o mais lido, o mais influente. A obra de Aristóteles é
explorada aí mas, como de costume, São Tomás teve o cuidado de confrontá-la
com textos da Santa Escritura, dos Apóstolos, ou de outros filósofos da Antigui­
dade, suas conclusões tendo levado em conta todos esses pontos de vista.
O que portanto ele concluirá? Será que ele foi o inventor de um novo
sistema da Política? Sua fé cristã tê-lo-á obrigado a se afastar com esse
propósito da doutrina de Aristóteles?
Prevenimos que o plano da Suma não reserva à Política nenhum lugar
particular. Os textos que tocam nesse assunto estão dispersos. Será preciso

1208
que nós os reunamos e coloquemos as questões. Escolherei dois que a-
presentam um interesse ainda vivo.

MEDIDA DO PODER

Discussão acalorada na época atual: contra o absolutismo do Estado


moderno fundado sobre o contrato social, é preciso que ergamos barreiras, que
imaginemos contraforças e um arsenal de garantias constitucionais; a seu
todo-poderio deve-se opor os direitos naturais dos indivíduos. Mas esses
“direitos do homem” irrealizáveis, tomados ao pé da letra, levar-nos-iam de
novo à anarquia do "Estado natural”. A Política contemporânea é incoerente.
Essas duas tendências opostas existiram todo o tempo. Ideologias sempre
se empenharam em justificar os excessos do poder público, contra os quais
eram invocadas, desde a Idade Média, as liberdades com as quais o Evangelho
dotou os indivíduos. A dialética de São Tomás parte dessas teses contraditórias
e procura, com a ajuda de Aristóteles, uma solução equilibrada —que difere de
maneira sensível dos sistemas hoje reinantes.

Estados e comunidades políticas

Abramos a Suma e comecemos por uma observação lingüística, para


ajudar o leitor moderno: São Tomás ignorava “o Estado” tanto quanto os
“direitos do homem”.
Educaram-nos, desde a escola primária, para acreditar no Estado. Enti­
dade aliás mal definida. Georges Burdeau dizia que ele é uma “idéia”. Mas ele
se reveste para nós da forma de um ser distinto, de uma Pessoa (fictícia ou
“moral”), de uma quase-substância, engendrada pelo pretenso contrato social.
No mundo mediterrâneo, a seus olhos o mais evoluído, Aristóteles tinha
observado o florescimento de comunidades. Ora, existe muita diferença entre
Estado e comunidade.
A filosofia de Aristóteles parece-me isenta dessa doença da filosofia
moderna—já existente na Escolástica tardia - , o substancialismo, nascido dos
abusos feitos por sua Lógica. Além das substâncias, existe, para Aristóteles,
uma ordem, a das relações. A comunidade política é de essência relacionai
Essa comunidade é uma relação entre essas substâncias, ditas “primeiras”:
os indivíduos. É fácil compreender-se sua origem: entre os bens aos quais aspiram
os indivíduos, existem muitos, não os menos importantes, cuja fruição verifica-se
comum; não somente o ar que respiramos, mas a ordem, a justiça, a cultura ou
a verdade, sem falar no próprio Deus no momento. Esses bens comuns são os
próprios bens dos particulares: Bonum commune est fínis singularum persona-
rum..., sicut bonum totius, fínis est cujuslibet partium (Ha, Ilae, qu. 58, a rt 9,
ad. 3), mas só poderiam ser alcançados por uma busca em comum.
Vê-se também os homens unirem-se em grupamentos organizados, cons­
tituírem um todo, como a cidade. Qual é a natureza deles? Não se trata, diz
São Tomás, de um "todo contínuo”, a exemplo do corpo humano (em Meta-

1209
physica, 1.099 e seg.). Não atribuamos a São Tomás o organicismo em que
caíram seus intérpretes românticos. Não mais do que no exemplo das comuni­
dades místicas dos >1/05 dos Apóstolos, esse Todo não é fusão em um ser único.
A unidade do grupo político é somente uma unidade de ordem (habet solam
unitatem ordinis) (em Eth., 5; cf. Ia, qu. 47, art. 3). Ele é feito de partes
distintas, autônomas, entrando somente em relação na procura e na fruição de
um fim comum. Para a filosofia clássica, a vida, os movimentos dos seres
naturais explicam-se inteiramente por seus fins.

Apologia do Poder

Fundamento do Poder: assim como um bem próprio ou familiar deve ser


gerido (ele o é por seu proprietário), assim também deve acontecer com o
interesse comum. Já no estado de inocência, os homens não eram de maneira
nenhuma iguais, mas uns conduzidos pelos outros, no interesse mesmo dos
subordinados; não por um mestre: não se manda em homens livres como se
faz com animais irracionais (Ia, qu. 96, art. 3 e 4). Mas por “aquele que tem a
seu cargo" (curam) o bem da comunidade (quae curam totius multitudinis
habet) (Ia, Ilae, qu. 90, art. 3 e passim).
Fica-se impressionado com a extensão que, sempre seguindo Aristóteles,
São Tomás concede ao poder. Não há o mínimo gosto pela desordem. Mas a
afirmação repetida sem parar da preeminência do todo. O bem comum total
prevalece, por ser mais nobre, sobre os bens próprios, prazeres, desejos, desejo
excessivo de liberdade dos indivíduos (Ia, Ilae, qu. 117, art. 6; lia Ilae, qu. 47,
art. 10, ad. 2; qu. 117, art. 2 etc.).
Leiam na Suma as questões sobre a obediência (lia Ilae, qu. 104, art. 1,
refutação das heresias das seitas cristãs anarquizantes, e art. 6) sobre a
sedição, um dos pecados mais mortais (lia Ilae, qu. 42). Leiam também o
tratado da lei humana (Ia Ilae, qu. 95 e seg.), onde ele precisa que o principal
ofício do príncipe é reger pelas leis em benefício do bem comum as condutas
dos homens dentro do grupo.
Potência da lei positiva humana; ela obriga todos os cidadãos, santifica­
dos ou não pela graça, dentro do próprio foro de suas consciências (qu. 96,
arts. 4 e 5). Ela está em condições de punir, inclusive pela pena de morte. “Se
é permitido a um médico, para a saúde total do corpo, amputar um membro,
da mesma forma o príncipe para salvar o todo pode extirpar um malfeitor” (Ila,
Ilae, qu. 64, arts. 2 e 3).
E qual é a meta da lei do príncipe? O “viver bem” com o qual deve prover
a comunidade política, mantida dentro do exercício das virtudes. Meta da lei
humana: governar “os atos de todas as virtudes”, porque todas, enquanto
compõem a justiça dita geral, interessam ao bem comum (Ila Ilae, qu. 96, a rt
3), reprimir os vícios, os que são possíveis de extirpar e que destroem a vida
comum (ibidem, art. 2).
Soluções que não são as de vocês! Até os tomistas do século XX têm má
vontade com esse aspecto, como Alfred Verdruss: forçado a combater a

1210
onipotência do Estado moderno, o liberalismo tentou subtrair de sua compe
tência a esfera da moralidade, tornada assunto de cada indivíduo. Detestamos
toda “ordem moral”! Somente essa crítica é anacrônica; ela só é necessária para
opor-se ao Estado moderno; e, como acontece muitas vezes quando se lê a
Suma, ela tem o defeito de reter apenas um dos aspectos da questão.

Limitações

Leiamos até o fim esses mesmos textos, invocados em favor da ordem


dentro do parágrafo anterior. Perceber-se-á que para o princípio da obediência
devida aos poderes da cidade são previstas muitas exceções: que o dever de
obediência cessa com relação ao príncipe injusto (Ha Ilae, qu. 104, art. 5; a rt
6, ad. 3); que a sediçâo (seditio) de pecado mortal torna-se louvável contra
tiranos —ainda que São Tomás desconfiasse das revoluções {lia llae, qu. 42,
a rt 2,3 e ad. 3).
Passou-se para o poder da lei humana. Com efeito, São Tomás mal
afirmou que o principal ofício do príncipe é de promover por meio da lei o
exercício de todas as virtudes e que a lei o obriga conscientemente a que se
retroceda: se faltar lei à sua função - falemos claro - então sua autoridade
desaparece. Pois uma lei injusta não merece ser chamada lei (Lex esse non
videtur quae justa non fuerit) (Ia Ilae, qu. 96, a rt 4; cf. Ila Ilae, qu. 60, a rt 5,
ad. 1 e 2 etc.).
O que é uma lei injusta? As questões de São Tomás sobre a lei humana
devem ser recolocadas no conjunto de seu Tratado das leis (Ia Ilae, qu. 90 a
108). Imediatamente, constatamos aí em torno e acima da “lei humana” uma
quantidade de outras espécies: lei eterna - lei natural - ou “leis divinas”
formuladas na Santa Escritura. E nossa lei positiva humana é “derivada” das
duas primeiras (la Ilae, qu. 95, art. 2) e ser-lhes-á subordinada. Pluralidade das
fontes do direito e da moral. Que melhor maneira haveria de diminuir o poder
político, anteriormente definido na Suma como um poder legislativo?
E era preciso contar com ela. Lembremos a distância que separa do
Estado as comunidades. Enquanto o vício do sistema construído sobre o mito
do estado natural individualista e a idéia do contrato social é deixar o indivíduo
só, em face da força esmagadora e monolítica do Estado, as comunidades são
plurais. Mesmo quando fazemos abstração daquelas constituídas livremente,
artificialmente, pelos homens, múltiplas são as comunidades que a natureza
tende a produzir por toda parte e sempre.
No meio delas, a Cidade, nomeada comunidade “perfeita”, última, sufi­
ciente (Ia Ilae, qu. 90, art. 2 e 8, ad. 3 etc.). Porque ela é suficíentemente ampla,
porque engloba tal diversidade de ofícios e de classes sociais, porque pode
trazer o “viver bem”, a cultura, a realidade da vida moral (a Sittlichkeit, dirá
Hegel), ela faz do homem um civilizado. Mas ela não é de modo nenhum única.
Como sublinhava o início da obra de Aristóteles a Cidade é um agregado
de comunidades familiares, não menos naturais. À Família cabe a obrigação
do viver (primum vivere), da geração dos filhos e de sua primeira educação; e

1211
da subsistência material. 0 domínio sobre a economia não pertence à Cidade.
O bem comum da Cidade não é o Welfare, a riqueza, que dependem da família.
Eis aí uma limitação de importância, muito tempo efetiva, e da qual duvido que
tenha perdido hoje em dia toda realidade. Se bem que, nos Tempos Modernos,
a família e a empresa de produção tenham-se revestido de formas novas, elas
continuam a existir.
Agora, acima das Cidades, observamos a existência de grupamentos mais
extensos. Os Impérios? Não, essas produções da força militar brutal não são
“comunidades”. Então os Reinos, em via de se realizar no século XIII? São Tomás
utiliza muitas vezes a palavra regnum no lugar de civitas. Começo da futura
extensão da política de Aristóteles nos grandes Estados da Europa moderna?
Ocasionará problemas. A Comunidade internacional? São Tomás pede empres­
tado aos romanos a noção de um jus gentium (Ila Ilae, qu. 57, a rt 3).
Mas, de todas as comunidades, a mais incontestável é a dirigida por Deus,
que preside ao “bem comum do universo" (la Ilae, qu. 111, art. 9, ad. 2; Ila
Ilae, qu. 111, a rt 5, ad. 1). E contando com seu pertencimento a essa
Comunidade Suprema que o homem se subtrai à primazia da política (Homo
non ordinatur ad communitatem politicam secundum ominia sua) (la Ilae,
qu. 21, a rt 4, ad. 3).
Essa é a carta constituinte de nossas liberdades, o mais sólido dos
argumentos que o indivíduo pode invocar contra a hipertrofia do poder
público. Não a ficção dos direitos do.homem. Não poderia existir direito de um
homem solitário. O bem comum prevalece sempre sobre os bens próprios
individuais. Mas o "Todo” que a Cidade forma, por mais “perfeito” que seja em
sua ordem, não é superior ao “Todo” do Universo. O bem comum universal
prevalece sobre o político e o familiar (Ia Ilae, qu. 103, a rt 9, ad. 2; Ila Ilae,
qu. 152, a rt 4, ad. 3). Assim podem existir leis, certamente não escritas, ainda
indistintas - a lei eterna, a lei natural - a serviço do bem do universo. Quanto
a procurar o conteúdo dessas leis superiores, às quais estarão subordinadas as
leis positivas “humanas”, encarregar-se-á disso a comunidade dos sábios, que
ultrapassa a Cidade. Não é por nada que existem outras comunidades além da
comunidade política.
Retenho um único efeito, significativo, pois é a dominação do Estado
moderno sobre a “pesquisa científica” e sobre a “cultura” que faz o totalitaris­
mo: a universidade medieval é uma instituição de Igreja; da Igreja católica, a
representante aqui em baixo, aos olhos de São Tomás, da comunidade global.

Rompe Sâo Tomás com Aristóteles?

Aí reside a novidade da Política de São Tomás. Para muitos de seus


intérpretes, haveria aqui a ultrapassagem da Política de Aristóteles, nas­
cimento de uma “política cristã": se São Tomás assume a fórmula tirada de
Aristóteles de que a comunidade política é “a mais perfeita” (Ia Ilae, qu. 90,
a rt 2; a rt 8, ad. 3), de que a ciência da Política é a ciência “arquitetônica”, ele
acrescenta “relativamente aos assuntos humanos” (“circa res humanas") (em

1212
Pol., 7). Acima dela ele coloca a teologia (em Eth., 31). Além do “viver bem”
terrestre do qual é responsável a cidade, o fim supremo do homem é Deus.
Não estamos plenamente convencidos de que haja neste ponto ruptura com
Aristóteles. O Reino de Deus diferindo por natureza daquele das cidades (Super
Joh. Ev., 2.358), a Política em São Tomás conserva sua autonomia. E em
Aristóteles, entre outras obras, no livro Xll das Metafísicas já estão presentes os
conceitos de ordem universal, do bem comum do universo, tão cultivados desde
então pelos autores da Antiguidade pagã tardia. Eles já tinham a consciência (que
a Revelação cristã teria somente confirmado) dos limites da política. Aristóteles
sabia que a filosofia ultrapassa as leis da Cidade, que seus inventores abriram no
seio de uma república universal (ele mesmo não era ateniense). Tanto em Atenas
quanto em Paris no século XIII, ela não é instituição de Estado. E o tema das leis
naturais superiores às leis da cidade é de origem grega. Quero crer que aí São
Tomás ultrapassa Aristóteles, mas mantendo-se na mesma linha.

A FAVOR E CONTRA A MONARQUIA

Gerações de tomistas sustentaram que São Tomás separou-se de Aris­


tóteles por sua pretensa preferência pelo regime monárquico; uma espécie de
monarquia que eles batizam de bom grado de cristã.
Esta opção (a supor que fosse a de São Tomás) poderia também invocar
o testemunho de textos filosóficos. Mas principalmente de uma teologia. A
monocracia tem origens mais orientais e a Bíblia oferece o modelo da realeza
davídica, na qual se inspirou a alta Idade Média. No século XIII, era ainda a
grande tentação.
Deus não é o único Senhor e Jesus Cristo rei? Ele não confiou a São
Pedro e a seus sucessores as chaves do reino dos céus, e talvez também o
controle do outro poder? Pouco após a morte de São Tomás, o papa Bonifácio
VIII, no fim do século, estará perto de deduzir o princípio de uma monarquia
pontificial, cobrindo o temporal.
Por seu lado, o Imperador, os reis, se fazem consagrar pela unção de
onde saía a realeza judia. O Poder desceria do alto sem intermediário.
Monárquico à imitação do governo de Deus sobre o mundo. Este é o tipo de
ideologia, religiosa, que por muito tempo serviu para legitimar os reis absolu­
tos. O estatismo moderno derivou daí: o Leviatã de Hobbes é um “Deus mortal”
e nossos "soberanos” os herdeiros de uma “teocracia”.
Apesar disso, no tempo de São Tomás surgiam cidades, comunas, nos
regimes oligárquicos ou ditos democráticos, que não existiam sem apresentar
alguma analogia com as Cidades da Grécia Clássica. Sobre a questão tradicio­
nal do “melhor regime”, que posição tomou São Tomás?
Ele não parece ter-se apaixonado além das medidas por esse problema.
Seu temperamento pessoal o inclinava mais ao respeito das instituições
estabelecidas, um pouco à maneira de Montaigne e talvez também de Aris­
tóteles. No entanto ele o discutiu, e encontrar-se-á em sua obra argumentos a
favor e contra a monarquia.

1213
a) A favor. Os tomistas aos quais acabamos de fazer alusão reúnem textos
professando essa verdade metafísica: não há Todo sem princípio de Unidade.
A maioria não visa especialmente à esfera da política. Sem nenhuma dúvida, o
governo de Deus sobre o universo é único: Ia, qu. 103, art. 3: Optima enim
gubernatio est quae fit per unum. A propósito da lei humana: Socialis vita
multorum esse non potest nisialiquispraesideret... etideo Philosophus dicit
in principio Pol... quod quandoque multa ordinatur ad unum, semper
invenitur unum utprincipale etdirigens (Ia Ilae, qu. 96, art. 4), Ha Ilae, qu.
50, a rt 1, ad. 2: regnum inter alias politias est optimum regimen ut dicitur
in VIIIEth. Pena que o texto esclareça que no caso a palavra é tomada em seu
sentido amplo, se bem que inclua todos os bons regimes “omnia regimina
recta"... Era hábito de São Tomás fazer da palavra regnum um sinônimo de
civitaSj toda cidade devendo ser regida, isto é, dirigida.
Único testemunho claro em favor da monarquia: as declarações sem
rodeios através das quais é aberto o tratado De Regimine principum (ed.
Mariotti, 1948, traduzido para o francês por Roguet sob o título Du Gouver-
nement royal (Do governo real) e em outro lugar chamado De Regno), cuja
tradição atribuía-os a São Tomás. A seqüência, que teria tido como autor
Ptolomeu de Lucca, pleiteia ao contrário em favor do regime misto. Mas o
primeiro capítulo desse opúsculo traz uma demonstração da excelência da
monarquia. Ele lança mão de todos argumentos, tanto filosóficos quanto
bíblicos. Seguem comentários edificantes sobre os deveres do príncipe cristão
e os perigos da tirania.
Tratado de comportamento muito dogmático, cheio de exemplos empres­
tados à história romana, em estilo medíocre. De minha parte não reconheço
nele a pena de Tomás de Aquino (cf. Browne, An sit authenticum opusculum
de regimine principum, em Angelicum, 1926, págs. 300 e seg.).
b) Sed Contra.- Vale mais a pena ater-se a fontes incontestáveis, elas são
suficientemente numerosas. Primeira observação: as preferências de São
Tomás não iam em direção a uma monarquia temporal do papado.
Sem dúvida ele toma nota de que o direito positivo da época fazia de um
certo número de príncipes temporais os vassalos do Papa (Commentaire das
Sentences, II, 44, qu. 2, art. 3). Ele aceita o fato sem hesitar, essa é sua maneira.
Mas tanto suas origens (saiu de uma família há muito tempo gibelina) quanto
sobretudo o conjunto de sua teologia o situam no campo oposto: teologia da
ordem natural, da autonomia das “segundas causas" com relação à Primeira
Causa.
Ele não aceitará mais que o Imperador e os reis conservem sua potência
do sagrado. A ordem política não é da competência da ordem da graça (Ila Ilae,
qu. 10, a rt 10): aconteceu na história que príncipes infiéis tenham detido um
dominium sobre cristãos; a vinda do cristianismo não os desapossou. A graça
não destrói a ordem natural nem seu complemento o direito humano: “Jus
autem divinum quod est ex gratia non tollit jus humanum quod est ex
naturali ratione’’...
Contra a tendência agostiniana para sacralizá-lo, São Tomás devolve ao

1214
poder suas fontes profanas. Não é um de seus ensinamentos que a “nova Lei”,
contida nos Evangelhos, própria ao cristão, não comporta nada concernente
aos assuntos do direito, público ou privado; que essas coisas foram “deixadas
ao arbítrio natural dos homens”? (Ia Ilae, qu. 108, a rt 1 e 2); o Evangelho não
deve ser explorado por nenhuma causa política porque a Política e o Direito
não são a matéria de seu discurso.
Nosso problema será portanto tratado com meios naturais, filosofica­
mente. Então, o que vale a monarquia? No caso dos filósofos, um partido lhe
é favorável, principalmente a corrente platônica cuja influência impregna o
autor do primeiro capítulo do Regimine principum. A obsessão de Platão na
República havia sido a de conferir ao corpo político, para salvá-lo da dissolu­
ção, o máximo de Unidade. Entre outros meios a presença em sua cabeça de
um monarca único é a marca dessa unidade.
Já se viu que São Tomás, comumente, opta por Aristóteles contra Platão
(em Pol., 179, 196 e seg., etc.). Em Aristóteles, o conhecimento parte do
sensível, em outras palavras, da percepção do múltiplo. Ele observa que a
natureza produz certamente certos efeitos “epi to polu", na maioria do tempo,
mas ela pode ter suas falhas e, como uma planta, suas variações. Seus efeitos
não poderiam mais reduzir-se a idéias simples.
Portanto, ele concluiu, primeiramente, que os homens sendo o que são,
— os regimes justos são plurais e relativos às circunstâncias. A Acrópole é
oligárquica e a Planície democrática. (Cf. lia Ilae, qu. 50, a rt 1, ad. 2, cit. sub
regnativa comprehenduntur omnia alia regimina recta-, 11a Ilae, qu. 57, a rt
2, ad. 1: todo direito natural é mutante etc.).
Outra conclusão: a Politie, constituição por excelência em direção à qual
tenderia em média e mais frequentemente a natureza, é uma mistura de
oligarquia e de democracia, uma partilha do poderio público entre a elite dos
ricos e a massa dos pobres. - A cada vez que, na Suma, São Tomás colocou a
questão do melhor regime, ele se pronunciou pelo regime misto: Ia Ilae, qu.
105, a rt 1: Utrum convenienter lex vetus de principibus ordinaverit: ao
contrário da Nova Lei, muda sobre essas questões, a “Lei Antiga” de Moisés
ordenava as instituições do antigo povo eleito. O notável é que São Tomás, ao
invés de tirar sua Política da Torah judia (a qual cessou de unir os cristãos
nesse domínio, qu. 104, a rt 3) ousou julgar seu valor pela bitola da filosofia.
Pois bem, ele celebra a excelência da ordem política judia, porque (sem
qualquer desprezo pela erudição histórica) ele descobre aí “a Politie”, o melhor
regime segundo Aristóteles, uma boa mistura-, de realeza, ainda que um só
presida neste caso; de aristocracia, uma elite tem sua parte no governo; e de
democracia, a eleição dos governantes procede do povo. Talis est optima
politia, bene commixta ex regno, in quantum unus praeest; et aristocratia,
in quantum multi principuntur secundum virtutem; et ex democratia id est
potestate populi, in quantum ex popularibus possunt eligi príncipes, et ad
populum pertinet electio principum. Et hoc fuit institutum secundum legem
divinam (trata-se da lei mosaica). Sem dúvida não se encontra aí toda a
doutrina última de Aristóteles: aos critérios da pobreza e da riqueza são

1215
preferidos os do número ou da virtude. Uma das mais fecundas intuições de
Aristóteles é escamoteada. Mas que a boa mistura comporta um componente
monárquico não tem nada de contrário às vistas de Aristóteles: é preciso um
princípio de unidade para o Todo político (Ia Ilae, qu. 96, a rt 4). São Tomás
opta sem rodeios pelo regime misto.
A mesma solução é reafirmada em outros textos, não somente no Comen­
tário sobre a Política [§13, opondo ao regime “real”, onde o chefe encontra-se
investido de uma plenaria potestas, o regimen politicum (342 etc.), mas dentro
da Suma (Ia Ilae, qu. 95, art 4). Aqui, São Tomás faz o elogio da pluralidade das
fontes do jus civile (constituições imperiais, senados-consultas, plebiscitos etc.,
para acabar a lei que resulta do acordo dos chefes com o povo] porque ela teria
correspondido a essa mistura de monarquia, aristocracia e oligarquia, que é o
melhor regime (“regimen ex istis commixtum quod est optimum”). Aqui ainda
é injetada dentro da melhor constituição uma dose de monarquia. Seria porque
era-lhe necessário levar em consideração do ponto de vista dos monarquistas,
representados no debate por um texto do Deuteronómio, um outro de Platão
(qu. 105, art 1, 2)? Ou porque ele tinha sob os olhos o espetáculo de realezas,
como a realeza de São Luiz, para as quais convém essa análise? Pouco importa.
Quanto ao essencial a opção de São Tomás é clara: ela é favorável a Aristóteles
e contra a exegese agostiniana do Antigo Testamento.
Pelas mesmas razões, extratos das Metafísicas, sobre as quais vimos a
Suma situar a limitação do Poder, da mesma maneira que o TODO, é lembrado
de que o UM "se diz de múltiplas maneiras” (em Met., 842 e seg., 191 e seg.).
Atribuído ao corpo político, ele não implica uma unidade simples Non est
simpliciter unum (em Eth., 5).
A Cidade é uma “multiplicidade” (Ia Ilae, qu. 90, a rt 3): Colocar leis, ato
próprio do poder público, pertence à multiplicidade, ainda que essa função
possa também ser da competência do príncipe responsável pelo cuidado dessa
multidão. Condere legem vel pertinetad totum multitudinem vel pertinet ad
totam multitudinem vel pertinet ad personam publicam quae totius mul-
titudinis curam habet. Pois a multidão reunida para a busca de um fim comum
deve ser ordenada. No entanto, será faltar ao realismo à maneira de Platão,
perseguir sua unidade total submetendo-a ao “pleno poder” de um monarca;
ou como os modernos, ao “Soberano”, ao monstro estatal, poder estranho
exterior aos membros da Comunidade.

Fortuna Histórica

Impossível retraçá-la. A obra de São Tomás proclamada, em particular


nos séculos XVI e XIX, doutrina oficial da Igreja Católica, e a Suma colocada
na primeira fila, inumeráveis são os empréstimos e as citações que foram feitas
dela. Algumas palavras somente sobre os resultados.
Existem intérpretes fiéis, talvez numerosos, esposando as intenções de
São Tomás. Em nossa opinião, sem pretender ser original, contra o agos-
tinianismo dominante nas escolas religiosas, ele queria restaurar e continuar

1216
a tradição da Política de Aristóteles. Esse renascimento teve sucesso durante
muito tempo dentro de um amplo setor da opinião européia. E enquanto São
Tomás só fez transmitir para a Europa a Política de Aristóteles, sua contribui­
ção foi considerável. Mas existem sombras no quadro...
A grandeza dos ensinamentos de Aristóteles e de São Tomás e a riqueza
de suas conclusões devem-se ao método deles. Método dialético: Aristóteles teve
o cuidado de confrontar as teses de seus predecessores, sobre cada problema
disputado. E a dialética de São Tomás (toda a Suma é feita de “questões”)
prolongava a de Aristóteles. —A perenidade da doutrina deles nos parece devida
por outro lado a sua modéstia: ela não pretende ser ciência dos fatos singulares,
onde se move a prática. A ciência só tem acesso ao geral. Dar à Cidade suas leis
—elas devem sempre estar adaptadas às contingências históricas —loco tempore
convenientes (la llae, qu. 95, art 3) - não é assunto dos filósofos. Eles devem,
ao contrário de Platão, reconhecerem-se incompetentes neste caso, deixar essa
tarefa à prudência dos homens de ação: prudentia legislativa, dita a seguir
regnativa, que é a virtude dos governantes, e para todo cidadão ativo, prudentia
política (Ila llae, qu. 50, arts. 1 e 2). São Tomás, tanto quanto Aristóteles, pinta-se
longe da ação. A filosofia deles é especulativa e só visa ao conhecimento do que
é permanente, do universal. Da mesma maneira ela pôde atravessar os séculos e
merecer continuar a existir ainda.
Mas o gosto pela especulação, a capacidade de se abstrair, é uma espécie
de temperamento raríssimo. É pouco difundido entre os filósofos da Europa
moderna e contemporânea, menos ainda entre aqueles que professam a
filosofia política. Eles se querem comprometidos. Vejam Hobbes, Locke, Mon-
tesquieu, Marx etc.
Dessa maneira, da maioria dos continuadores da política de São Tomás,
apenas a ciência política, que foi restaurada graças a ele, é utilizada por Gilles
de Rome em favor da causa do Papa, por Dante ou Marcílio de Pádua para a
causa do Imperador, por Jean de Paris para o rei da França... Tenho medo que
já se tenha perdido o espírito de São Tomás.
Atravessemos três séculos. Foi no século XVI que São Tomás foi declara­
do doutor da Igreja. Nas grandes universidades do mundo católico, a Suma
tornou-se oficialmente a fonte dos estudos de teologia. Na verdade, misturada
a outras influências. Os escolásticos espanhóis são pragmáticos-, preocupados
em se tornarem úteis e eles o puderam, tendo tido acesso à corte dos reis
católicos. O retorno aparente à Suma permite-lhes reintegrar no âmbito da
teologia os princípios do “direito natural" e da Política. Mas esses mestres têm
seus objetivos: para a maioria, a afirmação da ordem monárquica católica;
Vitória, a invenção de um direito internacional (o jus gentium torna-se com ele
jus intergentes) ou a defesa dos índios; Suarez, Bellarmin, o primado da Igreja
romana, a resistência aos reis protestantes, alguns o tiranicídio... A serviço dos
quais eles exploram esse ou aquele pedaço da obra de São Tomás.
Que dizer do novo Renascimento dos estudos tomistas, inaugurado pela
encíclica do Papa Leão XII Aeterni Patris (1879)? Sai de uma "doutrina social
da Igreja” ou doutrina cristã da política, uma pretensão muito oposta aos

1217
pontos de vista de São Tomás. Isento de todo clericalismo, a audácia de São
Tomás ao contrário foi a de tirar sua política de fontes pagãs, comuns aos
Cristãos e aos Infiéis. Não pode ser diferente. A Doutrina social pretensamente
cristã do século XX é tributária da filosofia moderna. Desde Leão XIII, é patente
que ela pede emprestado a Locke e a Wolff e arrisca-se, segundo a conjuntura
ou as preferências de cada um, a se dispersar em todos os sentidos: tra­
dicionalista, progressista, logo preconizando a ordem, o patriotismo, a prima­
zia do "bem comum” colocado sob todas as formas (De Wulf, Kurz) e, em
outros lugares, a "libertação” dos indivíduos...
Um caso exemplar é o de Jacques Maritain. Ele recebeu de seus diretores
espirituais, na época de sua conversão, sob a capa do tomismo, a ideologia
monarquista da Ação Francesa — sem dúvida lia-se, nos círculos da Ação
Francesa, o De Regimine principum. Mas ele se volta; descobre na Suma os
"direitos do homem” (que não se encontram mais aí! o direito para São Tomás
é parte atribuída a cada um com relação aos outros dentro da comunidade, não
liberdade do indivíduo isolado do “estado natural”). Talvez Maritain não tenha
tornado São Tomás responsável pela “democracia cristã”, mas sim pelo
“personalismo cristão”. Eu lamento, mas São Tomás só faz uso da palavra
pessoa —“substância racional” investida de uma eminente dignidade, tal como
a definiu Boécio - a propósito das pessoas divinas, o termo conotando as
relações que essas três Pessoas mantêm (Ia, qu. 39 e seg.). Manejado dentro
do domínio do direito e em política, ele se reveste de uma outra acepção,
herdada dos juristas romanos, que não tem nada a ver com o “personalismo”...
É fácil tirar da Suma com que sustentar qualquer coisa, sobretudo as
teses das quais São Tomás tinha provado a insuficiência, porque a Suma é
dialética: Em cada artigo, começa-se por apresentar opiniões muito diversas, a
maioria parciais, unilaterais, para se elevar acima delas e sobrepujá-las na
conclusão. Este era o método escolástico, emprestado de Aristóteles e hoje em
dia deixado de lado. Mas se vocês só retiverem um dos lados debaixo da
catedral, a abóbada desmoronar-se-á. O tecido que havia constituído o esforço
dialético do Mestre com essas malhas entrelaçadas redecompõe-se. Todo o
fruto de seu trabalho está perdido. Termino com esse lugar-comum de que há
muita diferença entre São Tomás e nossos “tomismos”.

► S a n T om m a so e la filosofia d e i d iritto oggi, obra coletiva sob a direção de C. Ambrusetti,


Citta Nuova, 1980 (art. de F. vou der Meydte, Legaz e Lacambra, A. Verdross); Craneris,
C o n tr ib u ti to m is tic i a lia F ilosofia d e i diritto , Turim, 1949; J. Maritain, La personne et le bien
commum, 1947; J. F. Coy, Thomistic analysis of social order, 1943; L. Lachance, L 'h u m a n ism e
p o litiq u e . In d iv id u e t état, 1939; E. Kurz, In d iv id u u m u n d C e m e in sc h a ft b e in h e il Thom as,
1932; M. de Wulf, “L’individu et le groupe dans la scolastique do XXXe siècle” em R evu e
n é o -sc o la stiq u e d e p h ilo so p h ie , 1920, págs. 88 sq,

Miche! Vl Li EY

1218
TUCÍDIDES, 4607-395? antes de Cristo
História da guerra do Peloponeso

Como observa Jacqueline de Romilly (prefácio à tradução das obras de


Heródoto e de Tucídides na “Biblioteca da Pléiade”), a constância com a qual
as coletividades humanas - qualquer que seja a forma política que elas adotem:
cidade, reino, estado - continuam a fazer a guerra assegura o sucesso e a
atualidade permanente de Tucídides, que, não somente soube ver os aconteci­
mentos exemplares e reveladores - singularmente a guerra —, mas ainda
“viu-os... sub specie aeternitatis”. Desde as primeiras páginas da narrativa
consagrada às circunstâncias e ao desenvolvimento do conflito que opôs em
uma luta cruel Esparta e seus aliados a Atenas e seu “império” entre 431 e
405 a.C., o historiador declara: “Julgar-me-ei muito satisfeito se for considerado
útil para aqueles que desejem ver claro sobre os acontecimentos do passado,
assim como sobre os, semelhantes ou similares, que a natureza humana nos
reserva no futuro. Mais do que um texto de efeito, composto para o auditório
de um momento, é um capital imperecível que se encontrará aqui” (I, 22).
Esta certeza, que ele alimenta, de fazer uma obra durável, que respondeu,
em vinte e quatro séculos, ao interesse profundo de pensadores tão diversos e
tão diversamente situados, como Denys d ’Halicarnasse, Lorenzo Valia (autor
da primeira tradução latina, 1513), Claude de Seyssel (primeira tradução
francesa, 1527), Thomas Hobbes (primeira tradução inglesa, 1628), David
Hume que o cita de bom grado, Clausewitz e Hegel que se inspiraram nele, e
hoje em dia, para só citar autores de língua francesa, Eric Weil e Raymond
Aron, essa certeza, ele a justifica com duas experiências irrecusáveis. A
primeira concerne à natureza do conflito - uma entre as diferenças que opõem,
armas à mão, pequenas e grandes cidades: ele a considera, desde seu desenca-
deamento, como uma grande guerra, tanto por causa da potência que adqui­
riram os dois beligerantes, senhores um e outro de uma grande parte da
Hélade, quanto por causa da motivação: a hegemonia futura sobre o “mundo
civilizado”, hegemonia que não significa somente domínio, mas também
definição de um modo de vida e de uma ordem política. A segunda é o dado
de que essa guerra, em nome do cortejo de violências sem misericórdia que
marcaram sua preparação, não pode deixar de levar a seu mais alto ponto de
brutalidade e de pureza trágica o aspecto essencial (ou dominante) do homem,
revelado a si mesmo pela dureza das provas às quais é submetido.
O objetivo da empresa é claramente circunscrito: o bom cidadão Tucí­
dides, membro provavelmente moderado da facção democrática, admirador e
amigo de Péricles, ligado intelectualmente a esses mestres da palavra a quem
se irá brevemente chamar pejorativamente de “sofistas”, considera indis­
pensável trazer para aqueles que querem desempenhar seriamente seu papel
de cidadão os meios de alicerçar bem suas reflexões (e ações) com dados que
lhes permitam conhecer o essencial da realidade em meio à qual eles terão de
lutar. Ele não escolhe, como Górgias e Protágoras, ser educador dos saber-fa-

1219
zer e dos saber-pensar: ele se faz historiador. Ele que foi destituído de sua
qualidade de cidadão e condenado ao exílio por ter cometido um grave erro
estratégico quando exercia um importante comando, ele que escrevia sobre a
história - “na falta de poder fazer a história, ser da história”—(A. Thibaudet,
La campagne avec Thucydide, pág. 17), descobre na análise das ações
históricas que marcaram os principais episódios dessa guerra, o conceito-chave
que abre a intelecção de toda política
Esse conceito, pode-se denominá-lo por um termo moderno: imperialis­
mo. Certamente, ele não confirma de maneira nenhuma a noção econômica
popularizada por Hilferding e “politizada” por Lênin. Sua acepção é pura­
mente política. Pode-se compreender sua significação seguindo a dinâmica da
formação do Império ateniense a partir da tomada de Sestos. Em um primeiro
momento, arma-se e faz-se mostrar sua força para provar a eventuais adversá­
rios que toda tentativa de sujeição está votada ao fracasso. Assim os atenienses
perseguiram as tropas bárbaras que evacuavam lentamente demais a península
grega e ocuparam a última cidadela persa. A manifestação dessa força atrai
infalivelmente as simpatias de cidades ou nações naturalmente fracas que
procuram aliança e principalmente proteção. Dessa forma aconteceu com a
Cidade de Atenas que se encontrou em pouco tempo à frente de uma aliança
com cidades pequenas e médias que temiam uma terceira invasão. Por motivos
que se atêm ao mesmo tempo à estratégia e à política interior, essa aliança
organiza-se cada vez mais nitidamente em torno do centro ateniense. Uma
aliada quer deixá-lo porque mudou de orientação política? O centro não pode
admiti-lo, pois isso seria confessar sua fraqueza e comprometer o que já foi
adquirido. Não somente castigar-se-á a dissidência, mas ainda, para preveni-la,
convencer-se-á, de maneira às vezes insistente e mesmo violenta, outras aliadas
a reunir-se ao grupo. Deve-se falar ainda de aliados? Não se trataria mais de
coletividades tributárias ou dependentes?
Quando esse grau é atingido, nenhum retorno pode ser admitido. Tucí-
dides precisa que então é o império que, como estrutura dinâmica, exerce o
comando, até e inclusive sobre os chefes e os cidadãos do centro imperialista.
De maneira totalmente normal, o historiador deixa entender que, quando o
desenvolvimento se torna excessivo, o edifício desaba, sob os golpes resolutos
seja de um adversário que será tomado pelo medo diante da ameaça que essa
força representa, seja dos “aliados”, cansados de serem sujeitados, reagru-
pando-se em rebelião maciça.
Essa teoria do imperialismo apóia-se sobre uma concepção realista e
bastante sombria da “natureza humana”. É a ela que apelam os plenipotentá-
rios atenienses perante a Assembléia espartana no momento das últimas
negociações antes da guerra: Lacedemónio tem apreensão face ao império de
Atenas: “Nossa conduta não tem... nada que possa surpreender, nada que não
esteja dentro da ordem das coisas humanas. Aceitamos o império que nos foi
oferecido e não permitimos que ele se desfizesse, pois os motivos mais
imperiosos, isto é, a honra, o temor e o interesse, nos tiravam toda a
possibilidade” (I, 76). Dessa maneira, o poderoso revelador que é a guerra só

1220
faz atualizar em atos coletivos a tendência primordial inscrita no homem assim
como na humanidade. Há alguma saída menos infeliz e violenta que se possa
definir? A idéia de que essa situação estivesse ligada ao mecanismo de certas
instituições ou de certos regimes, Tucídides excluiu-a. Os negociadores a que
acabamos de nos referir não hesitam em afirmar - como uma evidência, que é
a verdade do historiador - que se a muito oligárquica Esparta se encontrasse
na posição da muito democrática Atenas, ela teria agido sem dúvida nenhuma
da mesma maneira... e com as mesmas conseqüências!
Deve-se então renunciar à mediação do logos ao qual a escola de pensa­
mento à qual pertence o historiador não cessa de se referir como ao instrumento
que permite instaurar um quadro de vida coletiva tornando possível a realização
do homem segundo sua virtude? O racionalismo que preside à elaboração da
narrativa de Tucídides e que lhe permite não somente lançar os primeiros
fundamentos da crítica histórica, mas também construir uma inteligibilidade em
que a ordem das razões articula-se sobre a ordem das causas, é, nesse domínio
também, intransigente. A análise das ações históricas propriamente ditas (movi­
mentos de tropas e de trirremes, comprometimentos armados, fortificações,
abastecimento etc.) é entrecortada por relações, reportando-se às reações das
opiniões públicas, aos debates políticos no seio das Assembléias responsáveis, às
discussões entre dirigentes interrogando-se sobre a estratégia a adotar, aos
conciliábulos entre Cidades aliadas ou aos confrontos entre delegações de partes
hostis. Dos “sofistas”, Tucídides retém o método que consiste em exprimir a
complexidade de uma situação e a dificuldade de escolha para efetuar, jus­
tapondo dentro da mesma "cena”, os dois discursos contraditórios de dois
dirigentes reputados como símbolos das duas opções extremas.
Assim, ao longo de toda a narrativa, ações militares e deliberações
políticas se respondem e se reforçam. Ora, é interessante notar que o his­
toriador não consente em mostrar a facilidade da conciliação intervindo após
cada parte ter evocado sua tese. O diálogo permanece conflitual. Não há ponto
de vista exterior à história, que a julgaria, que programaria zonas de repouso
ou indicaria linhas de fuga para o ideal. Tudo se passa como se Tucídides,
refutando antecipadamente os diálogos didáticos de Platão (e, talvez, de
Aristóteles) quisesse indicar que o discursivo (o teórico) é a conceitualização
(a colocação em forma universal) do conflito ou da diferença, e não sua
reabsorção pelo milagre da administração do verdadeiro.
Dá-se tudo no mesmo, portanto, e acaba na guerra a todo transe ou nas
violências moderadas das falsas reconciliações? O admirador de Péricles e o
discípulo de Anaxágora não podiam conceder essa triste vitória aos arautos da
força. A descrição do enfraquecimento progressivo de Atenas após os primeiros
anos de guerra ainda moldados pelo espírito de Péricles é a oportunidade de
uma busca que, tanto sobre o plano das operações militares quanto dentro do
domínio político, resgata uma perspectiva. O que fez Atenas perder foi o fato
de ela ter aceitado entregar-se ao imperialismo —assim como Esparta após a
vitória de 404 abandonar-se-á aos prazeres do triunfo e a seus excessos e
comprometerá definitivamente o que lhe restava de virtude. Ora, Péricles

1221
conhecia esses erros. Desde a declaração de guerra em 431, ele havia explicado
que se a Cidade, se comprometesse com o caminho das conquistas, ela se
sentiria tão forte e gloriosa que estaria perdida. Era preciso para ele manter
seu império, agora que ele lhe cabia, e se contentar, no restante, em conter
Esparta enfraquecendo-a lentamente e esperando que a boa presença, a
riqueza e a elegância da vida democrática fizessem seus aliados ceder pouco a
pouco e a contaminassem... ela não teve nem essa confiança nem essa
inteligência.
Um outro uso da razão? Foi talvez isso que, durante séculos viram ou
suspeitaram aqueles que consideraram a História da guerra do Peloponeso
como uma introdução obrigatória para a reflexão política.

• Texto e tradução francesa por L. Bodin e J. de Romilly, em vias de publicação desde 1953,
Paris, Les Belles-Lettres; Texto apresentado, traduzido e anotado por D. Roussel, em Hérodote,
Thucydide, O e u v re s co m p lè te s, Paris, La Pléiade, 1964.

► A. Thibaudet, L a C a m p a g n e auec T h u cydide, Paris, Gallimard, 1922; J. M. finley, Thucy-


d id es, Harvard University Press, 1942; J. de Romilly, T h u cyd id e et 1’im p é r a lis m e a th é n ien ,
Paris, Les Belles-Lettres, 1956; F. Châtelet, L a N a issa n c e d e 1'H istoire, Paris, Ed. de Minuit,
1962, reed. em 2 volumes, UCE, "10/18", 1974; P éricles, Le Club française du Livre, 1960, 2-
ed., 1969, reed. em Bruxelas, Ed. Complexe, 1982.

François c h â t e l e t .

TOCQUEVILLE, Charles Alexis Clérel de, 1805-1859


Da democracia na América, 1835-1840

Nos anos em que Tocqueville decide sua grande viagem, a República


americana não pertence a seu patrimônio familiar. Ela encarna, ao contrário,
uma tradição política totalmente estranha ao ambiente legitimista no qual foi
educado o jovem Alexis, já que ela alimentou a oposição a Luís XVIII e a Carlos
X: são aos liberais avançados de todas nuances, os franco-maçons, os republi­
canos, que formam sob o cajado simbólico do velho La Fayette o campo das
simpatias americanas. Mesmo que o futuro autor da Démocratie en Amérique
tenha encontrado na mesa familiar antigos “americanos” como Chateaubriand,
Hyde de Neuville ou Monsenhor de Cheverus e mesmo que seu companheiro
de viagem, Gustave de Beaumont, fosse um parente longíquo de La Fayette,
restaria que a referência americana não era familiar à tradição na qual os dois
viajantes haviam sido educados.

1222
Ela não existe também até uma data surpreendentemente tardia, na
correspondência do jovem Tocqueville, já que a América só aparece aí duas
semanas antes da partida, na carta de 14 de março de 1831, consagrada aos
preparativos imediatos, sendo muda sobre o objeto da viagem. No entanto, a
idéia de uma viagem improvisada, ligada às circunstâncias políticas francesas
e à situação “delicada” na qual a necessidade de prestar juramento ao novo
regime colocava dois descendentes de famílias legitimistas, só não é verossímil
se se refletir sobre a natureza do gênio de Tocqueville, mais levado à dedução
abstrata do que à curiosidade gratuita. Ela é contraditória com o tipo de notas
que ele toma desde que coloca os pés em solo americano e que atestam a
elaboração intelectual anterior à viagem; incompatível sobretudo com um
testemunho formal, se bem que tardio, dado por ele mesmo sobre as razões da
dita viagem. É uma carta de janeiro de 1835, escrita conseqüentemente bem
depois de seu retorno, no momento da publicação do primeiro volume da
Démocratie. Tocqueville expõe aí a Kergolay sua convicção de que o mundo é
irresistivelmente conduzido para uma igualação das condições. Ora, a partir
daí, dois tipos de governo, e apenas dois, são concebíveis no futuro: ou o
governo democrático, isso é, "um estado de sociedade em que todo mundo
tomaria mais ou menos parte nos negócios”, ou a sujeição de todos, o poder
absoluto de um só, como o Império deu uma primeira amostra. Como obter o
primeiro tipo de governo, evitando o segundo, essa é a questão que está no
centro de seu pensamento. E ele acrescenta:
“Não foi sem haver maduramente refletido que eu me determinei a
escrever o livro que publico neste momento. Não dissimulo o que há de
deplorável em minha posição: ela não deve atrair-me as simpatias vivas de
ninguém. Uns acharão que no fundo não amo tanto a democracia e que sou
severo para com ela, outros pensarão que favoreço imprudentemente seu
desenvolvimento. O que haveria de mais feliz para mim seria que não se lesse
o livro e essa é uma felicidade que talvez me aconteça. Sei de tudo isso, mas
eis minha resposta: já há perto de dez anos que penso uma parte das coisas
que acabo de expor. Só estive na América para me esclarecer sobre esse ponto.
O sistema penitenciário era um pretexto: eu o tomei como um passaporte que
iria fazer-me penetrar em toda parte nos Estados-Unidos. Nesse país em que
encontrei mil objetos fora de minha expectativa, percebi várias coisas sobre as
perguntas que me havia feito tão freqüentemente. Descobri fatos cujo co­
nhecimento me parecia útil. Não fui para lá com a idéia de fazer um livro, mas
a idéia do livro veio-me lá.”
Há nesta carta duas indicações-chave: a primeira é que Tocqueville
concebeu muito jovem, em torno de vinte anos, a idéia que iria atormentar sua
vida intelectual e que tem, evidentemente, suas raízes na reflexão sobre a
Revolução Francesa. A segunda é que ele não atravessou o oceano para
observar os Estados Unidos da América, mas para estudar aí, dentro de um
contexto diferente do revolucionário francês, o problema da “democracia".
A própria idéia da viagem deve-se, portanto, a uma interrogação juvenil
que Tocqueville encontrou, muito naturalmente, no ambiente da época em que

1223
ele cresceu e que ele partilhou com toda sua geração: os acontecimentos tão
próximos do fim do século XVIII trouxeram-lhe como uma evidência, a
“fatalidade” da democracia, trazida por uma Revolução aparentemente tão
independente da vontade dos homens. Para ele particularmente, já que conser­
vou, por seu nascimento, um pé no antigo mundo aristocrático e que por essa
razão foi mais sensível ao transtorno ocorrido. Mas a Revolução Francesa
ofereceu também a seus observadores o enigma de ter inventado o mundo da
igualdade democrática através de um curso alternadamente favorável e nefasto
à liberdade: se bem que a ambigüidade política da democracia, essa questão
que Tocqueville se colocou durante vinte anos, ele a encontrou também na
história da Revolução Francesa e nos pensamentos de seus herdeiros liberais,
como Royer-Collard ou Guizot.
Mas o que vai conduzi-lo à América é uma inteligência mais radical do
que a deles.
Eles, os famosos “Doutrinários”, são os homens da Carta Constitucional
de 1814: sim à igualdade civil, não à igualdade política. Sobre a sociedade
igualitária legada pela Revolução, eles querem fundar uma nova aristocracia
política, garantia de um governo enfim durável. O modelo deles não é a
república americana, que eles ignoram, mas o regime misto da Inglaterra tal
como o enraizou a Gloriosa Revolução, após quarenta anos de perturbações
civis. Havendo entrado para a oposição em 1820, eles vivem querendo, com
seus votos contra a reação ultra-realista, um 1688 francês.
O jovem Tocqueville, ele também, partiu da comparação entre a história
da França e a da Inglaterra, como testemunha sua correspondência. Mas, em
alguma data entre 1828 e 1830, sem que se possa ter limites mais precisos, por
falta de textos, ele parou de acreditar na utilidade da referência inglesa para
compreender a história francesa e, principalmente, a Revolução Francesa. Com
efeito, o problema que ele se coloca não é mais o de compreender as condições
de desenvolvimento das “instituições livres”, mas sim de explorar todas as
conseqüências da democracia como tipo de organização social. Daí sua recusa
aos regimes mistos, sua crítica da Carta Constitucional de 1814 como mistura
dos princípios contraditórios e também o abandono do exemplo inglês: se é a
partir do princípio democrático que é preciso analisar e organizar o futuro das
sociedades, a referência a uma sociedade que permaneceu aristocrática tornou-
se sem objetivo e o modelo político “misto” de 1688 sem valor. A Inglaterra
não é um exemplo, já que ela está por assim dizer do outro lado da história da
França. Como termo de comparação para a democracia francesa e para
compreender para onde ela vai, é preciso, para Tocqueville, uma nação em que
as conseqüências do estado democrático estejam mais desenvolvidas do que
na França e em que as modalidades históricas tenham sido muito diferentes
de maneira a permitir o exame daquilo que as particularidades da democracia
francesa devem a suas origens revolucionárias. É dentro desse espaço intelec­
tual que ele descobre os Estados Unidos.
Na origem da viagem americana, há portanto a distinção que ele instaura
entre a idéia de democracia e a idéia de revolução: distinção que marca sua

1224
originalidade profunda dentro da filosofia política liberal de sua época, se se
imaginar, por exemplo, que Guizot não chegará jamais a concebê-la. A supe­
rioridade de Tocqueville é uma superioridade de abstração. Ele consegue
dissociar o conceito de democracia de sua referência empírica, a Revolução
Francesa, de maneira a poder interpretar através dele uma democracia não-re-
volucionária, a América, e uma democracia revolucionária, a França. O mesmo
pensamento que o liberta da obsessão existencial da Revolução Francesa,
característica de toda sua geração, dá-lhe a idéia da viagem para a América.
Trata-se de poder elaborar uma teoria da sociedade democrática com a qual
relacionar o caso francês: menos para ler aí o futuro da França em geral do
que para medir o alcance desse acontecimento singular que é a Revolução
Francesa.
É a capacidade para operar abstratamente essa descentralização da Revo­
lução Francesa com relação à marcha da história universal em direção à
democracia que caracteriza a originalidade precoce do gênio de Tocqueville. Foi
ela quem lhe deu essa aptidão excepcional para recolocar a Revolução dentro de
um quadro de relações inédito, do qual ele vai testar os elementos atravessando
o Atlântico. Jovem aristocrático, só precisou de lembranças de família para
escapar ao discurso da identidade sobre a curiosidade central de sua vida: ele
pertence também ao mundo que desapareceu. Mas a idéia da comparação
americana testemunha que com essa distância existencial, ele fabricou conceitos
novos, dos quais a América é apenas a manifestação empírica.
Realmente, desde o início da estadia americana, ele trabalhou dentro de
um sistema com duas dimensões, no qual os Estados Unidos figuram como
pólo democrático puro, já que a tendência aristocrática não existe aí. Ele
simplificou desse modo a rede conceituai de Guizot, suprimindo o tipo ideal
do regime monárquico, para conservar apenas a oposição aristocrático-demo-
crática: ele não pensa mais em termos históricos, mas sociológicos. A partir
desse fato, os dois princípios de organização social que ele retém, a aristocracia
e a democracia, englobam a história universal e caracterizam todos os níveis
das sociedades, o político tanto quanto o social. Mas na França a democracia
governa a sociedade civil, enquanto o domínio político permanece aristo­
crático. Nos Estados Unidos ela reina em toda parte e sem divisão.
A idéia que revém constantemente nos livros de anotações do viajante,
logo que chega, é exatamente a de uma sociedade que se gere ela mesma, sem
ter necessidade de um governo. E a atividade individual de cada cidadão que
constitui a soberania do conjunto entre eles. Por meio da democracia completa,
o homem reencontra a liberdade do selvagem, mas em um outro nível e por
outras razões. O primitivo, só tendo necessidades elementares, não tem a
preocupação de formar uma sociedade para satisfazê-los. O civilizado, ser
social e complexo, conserva sua autonomia e sua liberdade controlando suas
paixões por suas luzes. Sinal de que Tocqueville já está impregnado não
somente de Montesquieu mas também de Rousseau; testemunho, principal­
mente, de que a viagem americana foi uma maneira de responder, com o
método do primeiro, a uma questão colocada pelo segundo: como pensar sobre

1225
uma sociedade composta de indivíduos iguais e livres. Se os Estados Unidos
tornaram-se o testemunho dessa investigação imaginada a partir de elementos
fornecidos pela história da França, é justamente porque a Revolução Francesa,
de 1789 a julho de 1830, só permite fabricar sobre esse assunto respostas
confusas e contraditórias.
No entanto, a democracia americana também nasceu de uma revolução.
Porém, trata-se de uma revolução totalmente particular, pois ela dispensou
seus autores do combate contra o antigo mundo aristocrático e poupou-lhes,
portanto, as paixões inseparáveis desse combate. Os Estados Unidos nasceram
de uma dissidência sem luta, pois se trata de uma emigração e de uma
reinstalação sobre um território virgem. Por onde Tocqueville singulariza o
conceito da Revolução Francesa (com relação à revolução democrática em
geral), tornando-a inseparável do conflito e das paixões a que ele conduz; por
onde, por outro lado, ele reencontra a história da Inglaterra sob uma forma
simplificada, já que os americanos são os ingleses democráticos. Sua viagem,
ou melhor, sua idéia da viagem, permitiu-lhe, assim, ultrapassar os velhos
dilemas da filosofia política francesa, que consiste em classificar a Inglaterra.
Ele tem enfim uma Inglaterra quimicamente pura, uma vez passada pelo crivo
americano: “O americano é o inglês entregue a si mesmo.”
O que ele quer dizer com isso? Para compreendê-lo, é preciso passar pela
noção de “caráter nacional” de um povo, que ele pede emprestado a Montes-
quieu. O viajante, em suas anotações, é sensível à permanência dos traços
nacionais nas populações expatriadas, portanto colocadas fora de seu contexto
histórico-social: como franceses no Canadá ou alemães na Pensilvânia. Os
primeiros ficaram impermeáveis à influência inglesa, os segundos conservaram
a ancoragem de suas tradições em meio ao reboliço americano. Os Estados
Unidos são uma nação recente demais para partilhar lembranças comuns,
hábitos, crenças, idéias herdadas. Porém o que eles já têm de caráter nacional
é precisamente essa ausência de lembranças, de hábitos, de crenças e de idéias:
dentro dessa sociedade que nada fixa nem faz ficar junto, só existe um único
vínculo que pode unir os homens: que é o interesse. Daí os traços dominantes
da jovem República, que são o gosto pelo dinheiro, a mobilidade, a inquietude,
a paixão sem fim pelo sucesso material.
Ora, esses traços formam para Tocqueville a base do caráter inglês. Para
dizer a verdade, é uma idéia que visivelmente ele não tinha quando partiu, já
que, ao contrário, ele indica em dezembro de 1831, em seus livros de
anotações, o que era provavelmente sua hipótese original: que os ingleses
possuem por excelência o caráter aristocrático, oposto ao dos americanos, já
que a história e o estado social deles são a ilustração do regime aristocrático.
Mas um mês depois, em janeiro de 1832, ele transformou o sentido da
referência inglesa com relação aos Estados Unidos: “A América apresenta a
imagem mais perfeita para bem e para mal do caráter especial da raça inglesa...
Tudo o que é brilhante, generoso, soberbo, faustoso no caráter britânico, tudo
isso é aristocrático e não inglês.”
Em um primeiro estágio, portanto, não existe para Tocqueville caráter

1226
nacional independente do princípio social dominante: os ingleses são aris­
tocráticos na Inglaterra, democráticos na América. Saídos de um tronco
comum, os dois povos manifestam princípios contraditórios, e Tocqueville foi
ver nos Estados Unidos o contrário da Inglaterra. Mas a anotação de janeiro
de 1832 traz ao inverso a hipótese de um caráter nacional exterior ou
preexistente ao estado social. Realmente, o que Tocqueville nota como a base
do caráter democrático americano, o espírito calculista e racional, o egoísmo
frio e tenaz, o gosto pelo dinheiro, o orgulho do sucesso, ele vê aí a verdade
do caráter inglês. A democracia opera esse retorno a um fundamento étnico, e
quase pré-social, desembaraçando-o daquilo que a ele acrescentou a sedimen­
tação dos séculos de aristocracia. Também no caso da liberdade individual, ela
é um retorno civilizado a uma origem, o que no fundo pode ser o caráter
inevitável.
Assim, é a democracia que é a base do gênio inglês, pois só ela concilia-se
com as qualidades da raça. A aristocracia encobriu essa base primitiva, porque
dominou a história da nação. Em certo sentido, enquanto os americanos
alemães permanecem alemães, só há os americanos ingleses que são inteira­
mente americanos, por excelência americanos, porque eles operam e manifes­
tam o retorno dos ingleses ao verdadeiro caráter deles. Mas se os americanos
são a verdade da Inglaterra, é que implicitamente Tocqueville faz sobre a
história inglesa e sobre a revolução inglesa do século XVII uma análise muito
diferente da que contém sua carta de 1828, e contraditória em todo caso com
a de Guizot e dos homens de Julho. A verdadeira revolução inglesa não foi em
1688 nem mesmo em 1648; foi a emigração, a nova Inglaterra, logo a República
dos Estados Unidos. A democracia fez irrupção na Inglaterra com muito mais
força do que ela pedia em suas origens; ela se manteve com tanta plenitude
quanto pôde, ao invés de combater, atravessar o oceano para crescer. Através
do que Tocqueville reencontrou, via Inglaterra dessa vez, a comparação com
a Revolução Francesa.
Os Estados Unidos constituem, portanto, o conceito e o terreno a partir
dos quais resolve-se o problema clássico das histórias comparadas francesa e
inglesa. Parece-me claro que desde 1831, durante os primeiros meses de
viagem, ele procura analisar a sociedade americana através de um duplo jogo
de comparações. Ele vai utilizar de um lado a dupla Inglaterra-Estados Unidos
para compreender a oposição entre sociedade aristocrática e sociedade demo­
crática fora de todo conflito revolucionário: oposição tanto mais pertinente,
pela América oferecer-lhe, ao mesmo tempo que um substituto da Inglaterra,
a verdade da Inglaterra, a pureza reencontrada do caráter democrático. Por
outro lado, a dupla França-Estados Unidos vai lhe permitir medir e com­
preender os efeitos da destruição antecipada da aristocracia, isso é, da revolu­
ção, sobre a democracia francesa do século XIX; oposição muito mais perti­
nente por se apoiar sobre duas nações que prezam da mesma forma a
igualdade, mas cujas instituições e evolução políticas são espetacularmente
diferentes. O que dá aos Estados Unidos seu valor central é que eles são, com
relação à Inglaterra, uma revolução democrática radical, e com relação à

1227
França, uma democracia radicalmente não-revolucionária. A viagem americana
simplifica as duas histórias européias em que Guizot tinha lido a história do
mundo; ela melhora seu caráter comparável relacionando-o com uma terceira
experiência que encarna o rigor das hipóteses e dos conceitos. No que ela
constitui muito mais do que uma viagem: um achado filosófico.
Se essa é exatamente a genealogia da Democracia na América, se é essa
a ambição intelectual da viagem, deduz-se que a lógica profunda do livro não
deixa de ser comparativa. Se Tocqueville passa quase dez anos a escrevê-la, é
menos porque ele completa sua documentação propriamente americana em
Paris do que porque ele está constantemente em vias de enriquecer e de
aprofundar as implicações de seu conceito central, de maneira a estender sua
pertinência a novos contrastes entre os Estados Unidos e a velha Europa.
Tocqueville é um espírito que trabalha indefinidamente as mesmas idéias para
descobrir nelas aspectos inéditos: dessa aplicação característica de seu gênio,
os dois volumes sucessivos da Democracia são um bom testemunho, já que o
primeiro, publicado em 1835, analisa sobretudo a sociedade e as instituições
americanas, enquanto o segundo é um trabalho sobre a idéia geral de
democracia e sobre a diversidade de suas manifestações, Estados Unidos e
França em primeiro lugar, e acessoriamente a Inglaterra. Foi a primeira
Democracia que foi a mais aplaudida quando apareceu; mas só a segunda, que
foi muitas vezes julgada no século XIX “filosófica” demais, chega à ambição do
autor, que é uma teoria geral da democracia.
A América ofereceu-lhe uma experiência inteira conforme ao princípio de
igualdade: sem história aristocrática anterior, portanto sem revolução necessá­
ria para destruir um antigo regime, ela é um “estado social” conforme a uma
matriz original; dessa situação única ao longo da história, ela tirou uma
sociedade de indivíduos móveis, interessados, inquietos, que nada liga a uma
hierarquia preexistente e que tudo predispõe ao mesmo tempo a uma extrema
afirmação deles mesmos e a uma espécie de coesão geral. A igualdade, que lhes
abre qualquer futuro desde o nascimento, lança-os na perseguição desordena­
da do melhor desses futuros. Mas constituindo também uma cultura nacional,
um estado de espírito geral, costumes comuns, ela instaura como que uma
uniformidade de civilização, da qual testemunha a facilidade com a qual a
sociedade americana se administra, se autogoverna, sem ter necessidade do
recurso ao Estado para se pensar como unidade. O social, se bem que partido
em uma infinidade de indivíduos iguais, se reúne como tal: forma quase
espontânea da soberania do povo e na qual os costumes, a educação, a religião,
as leis, conjugam e redobram seus efeitos.
Ora, essa passagem do indivíduo ao cidadão, que a democracia americana
opera com tão aparente facilidade, é precisamente o que está em questão
dentro da democracia, aos olhos de Tocqueville. Por quê? Por motivos sobre
os quais a filosofia política européia não cessou de se interrogar de Hobbes a
Rousseau e que se devem ao fato de que o homem democrático é um indivíduo
separado de toda relação institucional preestabelecida com seus semelhantes,
definido por seus interesses particulares, isolado e auto-suficiente. O conceito

1228
moderno de indivíduo não comporta a idéia de obrigação cívica, mas cruza o
imperativo democrático na medida em que, como o indivíduo, o cidadão só
pode obedecer a seu igual: o que redobra a dificuldade do pacto social. Assim
Tocqueville, que meditou sobre Rousseau, partilha sua maneira de colocar a
questão da democracia, mesmo recusando sua “solução”. O homem, isolado de
seus semelhantes, aparece duas vezes na história universal, “nos dois extremos
da civilização”: primeiro como homem selvagem, em seguida como homem
democrático. Daí o retorno da velha questão, no segundo volume da Democra­
cia, já que o primeiro não o exorcizou: em que condições a igualdade moderna
dos indivíduos permite manter o vínculo social sem tocar na liberdade?
Esta igualdade moderna é uma abstração e é como tal que ela governa
os comportamentos dos indivíduos. É provavelmente por meio dessa fórmula
que se pode compreender melhor o que Tocqueville quer dizer por essa
palavra: democracia, que ele emprega um pouco sem discernimento, dentro de
uma multiplicidade de acepções, mas para retrabalhar constantemente seu
significado e seu alcance.
Com efeito, a igualdade abre um campo imenso para a imaginação e o
desejo, sem nunca poder satisfazê-los. Não há sociedade em que as condições
dos homens sejam iguais, mas a democracia define um mundo social em que
todo o mundo tende para o melhoramento de sua sorte e a inveja do vizinho
se ele estiver melhor. Daí a inveja, a inquietude, o isolamento do homem
democrático. Como Pierre Manent observou, o capítulo mais fundamental da
Democracia sobre a natureza nova da relação social-democrática, com relação
à relação social-aristocrática, é aquele em que Tocqueville consagra à relação
do servidor com o patrão dentro dos dois tipos de sociedades. Já que existe,
numa e noutra, servidores e patrões, onde está a diferença? Não na realidade
bruta da situação hierárquica, responde Tocqueville, mas em sua percepção
pelos atores. A relação patrão-servidor existe na sociedade democrática, mas
ela não é mais conforme ao princípio da ordem social, como dentro da
sociedade aristocrática; ao contrário, ela contradiz a igualdade suposta de
reinar entre os homens. Ela não cria portanto aí, sobre a base da sujeição
pessoal, um povo à parte, caracterizado de pai para filho por costumes e
espiritualidade particulares, ela é, ao contrário, o produto de um contrato
livremente consentido, pelo qual o servidor negocia sua obediência provisória
e os limites dessa obediência. “A igualdade das condições, diz Tocqueville, faz,
do patrão e do servidor, seres novos, e estabelece entre eles novas relações.”
Assim, “a igualdade das condições”, uma das expressões favoritas para
caracterizar a democracia, não significa que as condições sejam iguais, mas
que elas podem sê-lo, que esse sentimento basta para modificar mesmo, e
sobretudo, a relação social mais desigual. A condição de servidor não é
constitutiva de um “estado”, como na antiga sociedade, já que ela é contratual,
provisória e que, se é verdade que o servidor pode se tornar patrão, ele não é
diferente do patrão. Aliás ele aspira a essa transformação dos papéis, que lhe
dita a cultura democrática: daí a relação de inveja, de ódio e de temor que liga
os atores de uma sociedade igualitária considerados numa relação hierárqui-

1229
ca. A democracia, que tem como meta explícita reaproximar os homens, os
separa.
A perseguição desse objetivo abstrato, inatingível, indefinidamente fugaz,
que é a igualdade, dissocializa o indivíduo sob a capa da procura sem fim de
sua humanidade, isso é, do que o torna semelhante aos outros. O estado
social-democrático existe mais pelas paixões a que ele induz do que pela
situação que ele cria, já que a igualdade real das condições não é nunca
atingida, mas sempre cobiçada. Progredindo, além disso, ela recua sem parar
as fronteiras de sua realização final e alimenta muito mais as paixões pela
procura das menores distinções: “Quando a desigualdade é a lei comum de
uma sociedade, as mais fortes desigualdades não surpreendem os olhos;
quando tudo está quase no mesmo nível, as menores os ferem. É por isso que
o desejo da igualdade torna-se sempre mais insaciável à medida que a igual­
dade é maior.”
A partir desse traço do gênio sobre o que constitui a causa da ideologia
e das paixões democráticas, pode-se medir o que Tocqueville e Marx têm em
comum e o que os separa. Tanto para um como para o outro, a democracia
moderna é a abstração igualitária: definindo com efeito o homem a partir do
cidadão, ela estende de maneira imaginária a todas as esferas da atividade
humana a igualdade que serve de regra para a constituição da soberania
pública. É por isso que Marx denuncia sua mentira já que o homem concreto
da sociedade civil, o homem real, não corresponde nunca ao homem abstrato
da sociedade política ou da ilusão democrática. Para Marx, essa alienação do
indivíduo concreto em sua imagem igualitária é característica da separação
entre o social e o político, a sociedade civil e o Estado, o mercado e a
comunidade. Ela abstrai o cidadão do burguês e a figura comunitária do
Estado do individualismo conflitual do mercado: abstração que se trata para a
revolução socialista de reduzir pela desalienação do homem democrático, o fim
do Estado político imaginário e a realização da igualdade real dos homens.
Ora, para Tocqueville, essa meta não pode ter nenhum sentido já que a
abstração da democracia, sua ilusão, é sua própria verdade ou, para falar nos
termos do jovem Marx, sua “realidade”. Tocqueville é completamente estranho
a essa violenta “crítica” da esquerda alemã pós-hegeliana, que se deu como
objeto desvendar o trabalho da razão dentro da história para constituir seu
sentido. Da história, Tocqueville tira somente uma idéia, ou melhor uma
convicção, já que ele não se explica jamais sobre o porquê dessa idéia: a saber,
que a humanidade marcha para a democracia, a igualdade dos indivíduos. O
conceito data do cristianismo e ele recebe sua plena consagração com o século
XVIII e a Revolução Francesa, que ilustra o caráter inseparavelmente social e
político. Com efeito, não há em Tocqueville uma verdade da sociedade, que
seria a do mercado e uma mentira do Estado político, que seria a da democra­
cia. A seus olhos, a idéia de igualdade, inseparável do indivíduo, informa e
governa a sociedade tanto quanto o Estado, já que a parte da realidade que ela
comporta é secundária em comparação com a representação da relação social
que ela veicula. E se Tocqueville partilha com Marx, se bem que ele a utilize

1230
de maneira menos sistemática, a idéia de uma prioridade do estado social sobre
o estado político, ele tira dela conclusões inversas. Em Marx, a sociedade está
nas mãos dos interesses, o Estado democrático saiu de uma ilusão. Nele, o
estado social, assim como o estado político são dominados todos dois por
paixões e por representações idênticas. O Estado democrático é o produto e a
garantia de cidadãos livres e iguais. Mas se é verdade que, para esses cidadãos,
a igualdade é a paixão dominante, ele pode também realizar negativamente
essa igualdade e ser constituído de maneira que ninguém seja livre.
Risco que a América conjurou por uma série de corretivos e que, de
qualquer jeito, ela incorreria minimamente pelo fato de sua situação ser
excepcional como democracia originária. Mas é justamente a inexistência
desses corretivos para a igualdade que caracteriza um estado social inter­
mediário entre a aristocracia e a democracia e que é a revolução. Estado social
intermediário no sentido cronológico, já que a revolução é aquilo pelo qual se
efetua a passagem da aristocracia para a democracia; mas também no sentido
sociológico, já que a revolução cria brutalmente os elementos da democracia
sem reunir nela as condições de funcionamento, ao mesmo tempo pela ruptura
que ela opera dentro dos espíritos e pela tradição que ela veicula sem saber.
Os indivíduos "revolucionários” herdam do desmedimento das ambições aris­
tocráticas: seu sentimento de criar um mundo total mente novo participa desse
desmedimento e a renovação dos homens e das leis barra o caminho para o
mecanismo regulador de ajustamento dos desejos às oportunidades.
Assim, pelo tipo de mudança histórica que ela constitui, a revolução
acrescenta elementos suplementares para a dissolução individualista do víncu­
lo social que engendra tendenciosamente a democracia. Ela permanece na
explosão do igualitarismo mais do que na da igualdade.
Ela explora ao máximo a distância que cria entre o que almejam os
homens e o que a sociedade pode oferecer. Ela cria, por sua vez, uma tradição
que sobrevive aos anos excepcionais e que explica a instabilidade pós-revolu-
cionária: “As paixões que a revolução tinha sugerido não desaparecem junto
com ela. O sentimento da instabilidade perpetua-se em meio à ordem - a idéia
da facilidade do sucesso sobrevive às estranhas vicissitudes que a tinham feito
nascer.” Dessa exasperação do sentimento igualitário nasce o vínculo privile­
giado entre revolução e despotismo que os acontecimentos franceses ilustram.
Nesse ponto situa-se uma das articulações fundamentais do pensamen­
to de Tocqueville: a oposição entre democracia e democracia revolucionária,
entre paixão igualitária e paixão revolucionária apenas, no segundo volume
da Democracia na América, comparando implicitamente os Estados Unidos
e a França do começo do século XIX, em benefício dos primeiros. É que, aos
olhos de Tocqueville, a revolução é uma corrupção do princípio democrático,
ou ainda esse princípio levado ao absoluto, ocupando todo o espaço político
de uma sociedade. Corrupção tanto mais grave e inquietante por tocar em
um princípio que, seja como for, fragiliza o vínculo social para restabelecer
a relação natural de igualdade: daí a extraordinária potencialidade despótica
das sociedades democráticas. É por esse desvio que Tocqueville tem a

1231
intuição de que a democracia está impregnada do perigo totalitário: “Acho
que se os homens que vivem nos séculos democráticos fossem privilegiados
de liberdade, eles cairiam facilmente abaixo do nível ordinário da humani­
dade” (inéditos, Yale).
Então, o que separa o estado social-democrático do estado social-revolu-
cionário? Ou, colocando a questão de outra maneira, quais são as condições
democráticas da liberdade?
A primeira vista, a democracia leva como que naturalmente em direção
à revolução, pela dissolução da relação social a que ela conduz, pela ins­
tabilidade das categorias e das situações sociais das quais ela faz seu próprio
princípio e pela violência da inveja igualitária com a qual ela alimenta os
espíritos. Além disso, o vínculo entre democracia e revolução era percebido
como quase-evidente, não somente, o que acontece por si só, pela tradição
contra-revolucionária, mas também pelo pensamento liberal do século XIX
francês: os escritos políticos de Guizot são a esse respeito exemplares. Ora,
Tocqueville não partilha dessa convicção. Diferentemente de Guizot, liberal e
não-democrata, ele é liberal e democrata, mesmo se o liberalismo lhe vem do
mais profundo de si mesmo e a democracia da razão apenas. E uma das razões
de sua razão é que a democracia fornece ou pode fornecer antídotos contra a
revolução.
Primeiro por motivos que se devem aos efeitos quase-mecânicos da
igualdade sobre os comportamentos e sobre os espíritos. Do espetáculo dos
Estados Unidos, Tocqueville traz de volta na verdade a idéia, paradoxal em um
francês de sua geração, de que “as grandes revoluções se tornarão raras”, e
ele consagra todo um capítulo (II, 3S parte, cap. 21) para explicar por quê. A
democracia é inseparável, a seus olhos, de uma certa igualação das condições
materiais de existência e da multiplicação dos indivíduos nem ricos nem
pobres, usufruindo do que se pode chamar de comodidade. Estes se atêm
muito mais a essa comodidade que a Democracia proporciona, que eles têm
como conquista pessoal, mas que lhes parece sempre precária; por outro lado,
ninguém pode pensar no abuso a seu vizinho sem se ameaçar a si mesmo. Além
do quê, essa classe de pequenos e médios proprietários nada teme mais do que
uma revolução, que os despojaria muito mais rápido porque a propriedade
mobiliária, característica dos tempos democráticos, é mais vulnerável. Assim,
a famosa agitação dos indivíduos democráticos para se enriquecerem, para se
educarem e para modificar cada um em seu favor o equilíbrio social está
finalmente contida dentro dos limites que excluem as aventuras e as revo­
luções: os cidadãos podem ser conduzidos a isso por minorias, mas não o
provocam.
A esse conservadorismo geral dos pequenos e médios interesses, Tocque­
ville acrescenta, indo no mesmo sentido, as conseqüências da igualdade sobre
as inteligências. A democracia americana parece-lhe dominada por um grande
conformismo intelectual e por uma extrema lentidão do povo em se desprender
de uma idéia recebida ou para mudar uma crença. Os homens aí são ao mesmo
tempo separados uns dos outros e comparáveis uns com os outros, cada um

1232
ocupado em agir por sua conta, ninguém tendo o vagar da vida especulativa,
o que cria as condições de um poder ótimo da massa sobre o espírito dos
indivíduos. Daí a fraca irradiação da idéia de revolução, no sentido europeu,
nos Estados Unidos: "Notei muitas vezes que as teorias que são revolucionárias
por natureza, no aspecto de que elas só podem se realizar por uma mudança
completa e às vezes experimentada no estado da propriedade e das pessoas,
são infinitamente menos favorecidas nos Estados Unidos do que nas grandes
monarquias da Europa. Se alguns homens as professam, a massa os repele com
uma espécie de horror instintivo.
“Não temo dizer que a maioria das máximas que se costuma chamar de
democráticas na França seriam proscritas pela democracia dos Estados Unidos.
Isso é compreendido facilmente. Na América, tem-se idéias e paixões democrá­
ticas; na Europa, temos ainda paixões e idéias revolucionárias.
“Se a América experimentar algum dia grandes revoluções, elas serão
trazidas pela presença dos negros no território dos Estados Unidos, isto é, não
será a igualdade das condições, mas ao contrário sua desigualdade que as fará
nascer.”
Desta maneira Tocqueville, contrariamente a todos seus contemporâ­
neos, considera aqui como contraditórias e exclusivas a democracia e a
revolução: a primeira tende a sua permanente autoperpetuação, enquanto a
segunda é apenas uma forma patológica da igualdade, devido à proximidade
cronológica da derrubada da aristocracia. No fim desse mesmo capítulo,
Tocqueville chega mesmo até a recear como o pior perigo ameaçando as
sociedades democráticas a espécie de conservadorismo satisfeito em que elas
se arriscam a enterrar-se: em comparação com essa paralisia fraca nas fruições
materiais e com o conformismo intelectual, a revolução lhe parece ser um mal
menor.
Este famoso capítulo da segunda parte da Democracia - um daqueles
sobre os quais Tocqueville mais trabalhou - enfatiza mais fortemente do que
em outras partes a oposição conceituai entre democracia e revolução, paixões
democráticas e paixões revolucionárias. Mas ele deixa a impressão de paradoxo
um pouco forçado. O que ele contém de artificial é provavelmente devido ao
fato de que ele constitui, sem dizê-lo, um ataque contra GuizoL Essa verdadeira
coluna vertebral do regime de Julho, procura desde as leis repressivas de
setembro de 1835 assentar o regime sobre a despolitização das massas e a
paixão pelo enriquecimento nas classes médias. Tocqueville replica que o
remédio é pior do que o mal e que aliás esse ma! - a revolução - é imaginário:
ele também reflete, nesta medida, a convicção geral da época de que a
monarquia burguesa de Luís-Felipe adormeceu por muito tempo a sociedade
francesa. Daí, talvez, esse fim de capítulo provocador sobre a utilidade das
revoluções, da parte de um espírito que partilha a hostilidade de Guizot contra
as revoluções, mas que se separa radicalmente dele sobre os meios de evitá-las.
Resta dizer que esse capítulo XXI (II, 3* parte), dentro da ênfase que
coloca na inclinação da democracia para a indiferença dos cidadãos, está em
contradição com o retrato feito cinco anos atrás, no primeiro volume da

1233
Democracia, da atividade política incessante da sociedade americana. Essa
contradição se explica por duas razões, expostas pelo próprio Tocqueville em
uma nota acrescentada ao manuscrito de trabalho de Yale. “Examinando as
coisas mais de perto, diz ele, descubro que se encontra nessa independência
individual nos países democráticos limites que eu não tinha visto antes e que
me fazem crer que as crenças devem ser mais comuns e mais estáveis do que
se julga à primeira vista. Já é fazer muito levar até aí o espírito do leitor.”
Tocqueville quer acrescentar a essa primeira correção, já paradoxal, uma
segunda que o é ainda mais: “Quero chegar ainda mais longe e vou até o ponto
de imaginar que o resultado final da Democracia será de tornar o espírito
humano imóvel demais e as opiniões humanas estáveis demais. Esta idéia é tão
extraordinária e está tão afastada do espírito do leitor que é preciso fazê-lo vê-la
apenas como pano de fundo e como uma hipótese.
Desse modo o estado democrático que apaga o espírito cívico e chega a
matar a inovação social é uma espécie de estado final da democracia. Essa
profecia a longo prazo não faz desaparecer sua verdade na descrição da
situação atual da sociedade americana, tal como Tocqueville a fez no primeiro
volume. Por esse fato, a oposição central permanece, por um longo período,
aquela que separa em benefício da primeira, a democracia americana da
democracia francesa, ou ainda da liberdade da Revolução. E a precaução
essencial, durante todo esse período, não foi de reanimar a democracia através
da revolução, mas de extinguir a revolução através da democracia.
Precaução difícil de tomar e de conservar, já que a democracia, se tem
- ao menos nesta época de sua história - a vantagem sobre os outros estados
de sociedade de mobilizar a atividade dos cidadãos através de suas paixões
igualitárias, apresenta igualmente um problema desconhecido das aris­
tocracias: o de conter essa atividade e essas paixões dentro dos limites
compatíveis com instituições livres. O problema é, de toda maneira, difícil de
resolver, e torna-se dramático quando a paixão da igualdade ultrapassa todas
as outras e, principalmente, a que faz os homens prezarem a liberdade: é esse
desnivelamento de preferência que cria para as democracias o perigo princi­
pal. Realmente, se as duas paixões fossem igualmente fortes, igualmente
gerais, elas conjugariam seus efeitos e cada cidadão teria efetivamente um
direito igual de concorrer para o governo. Ora, a experiência sugere que
pode haver igualdade e paixão da igualdade, dentro da sociedade civil e não
dentro da sociedade política: é o caso dos regimes censitários. Ou ainda
igualdade e paixão da igualdade dentro da sociedade política sem que haja
liberdade: é o caso do despotismo.
A relação da paixão igualitária com as outras paixões da vida democrática
aparece dessa forma como a questão principal. No fundo, Tocqueville pensa
que essa paixão figura sempre entre os povos democráticos como a principal,
distintiva, e que é seu caráter compatível ou não com a liberdade que é central.
Por que ela é mais forte do que todos os outros sentimentos políticos? O
primeiro capítulo da segunda parte do segundo volume oferece uma série de
razões: o conformismo da época, o enraizamento dentro dos hábitos profundos

1234
do estado social, o fato, sobretudo, de que a paixão igualitária está de acordo
com a lógica da democracia, já que ela pode ser partilhada por todos, enquanto
as vantagens da liberdade só são sensíveis a um pequeno número. Inversa­
mente, os abusos da liberdade (anarquia, por exemplo) são evidentes para
todos, enquanto aqueles da igualdade são insensíveis e só aparecem para
poucos espíritos. Enfim, Tocqueville não esquece nunca o exemplo francês, já
que é o problema de sua vida: na França, a paixão pela igualdade é tão forte
que ela há muito tempo preexiste à da liberdade e já que ela foi favorecida aí
pela ação niveladora dos reis absolutos. A tradição de liberdade é frágil,
intermitente, limitada. A da igualdade é constitutiva da nação. A Revolução é
a culminação da igualdade e do poder administrativo central marchando de
mãos dadas.
A América, ao contrário, ignora ao mesmo tempo o poder administrativo
central e a revolução. A democracia é aí ao mesmo tempo todo-poderosa e está
em toda parte, na medida em que a ação da sociedade sobre ela mesma figura
aí como o essencial da vida política e, no entanto, moderada, se for verdade
que a paixão igualitária é protegida aí contra seus próprios excessos. A América
manifesta a pureza do princípio democrático controlando seus efeitos: de um
lado pelo consenso religioso, que reserva para a divindade a questão dos fins
últimos da humanidade e assegura dessa forma o caráter limitado do inves­
timento político; do outro, pelas instituições, que dão a precedência e mesmo
o poder à sociedade sobre o Estado. O famoso capítulo do segundo volume
sobre as associações mostra que elas desempenham, dentro da sociedade
democrática, um papel comparável ao da aristocracia dentro da sociedade
aristocrática, constituindo muitas manifestações da independência do social
com relação ao Estado. E impedindo a emancipação do político com relação
ao social que a democracia americana escapa da mesma forma da aventura
perigosa do messianismo revolucionário.
E esse otimismo sobre o equilíbrio que a sociedade americana conseguiu
estabelecer e conservar entre igualdade e liberdade que explica o paradoxo
sobre o qual Hannah Arendt se interrogou: há em Tocqueville recusa de
colocar no mesmo plano ou de intitular com a mesma palavra a Revolução
Francesa e a Guerra de Independência americana, na medida em que a segunda
não funda um estado social novo, porém reencontra-o, já que os americanos
são desde suas origens um povo democrático. Mas esse otimismo de Tocque­
ville, construído sobre uma oposição simples entre democracia e revolução e
que domina toda a primeira parte da Democracia, publicada em 1835, mo­
difica-se de duas maneiras na obra de 1840; de um lado através da profecia de
que a longo prazo a democracia pode criar indivíduos tão egoístas e uniformes
que a revolução poderia ser, em um dia longínquo, uma necessidade ou, pelo
menos, uma oportunidade. Por outro lado através da descoberta —essa a curto
prazo - de que o espírito revolucionário pode sobreviver muito tempo à
revolução e que sua existência encobre a da centralização. Tocqueville acredi­
tou primeiro que as instituições eram a expressão das idéias e dos costumes;
seu pensamento evoluiu para a convicção, evidente no LAncien Régime, de

1235
que elas têm uma vida autônoma e de que a tradição revolucionária, uma vez
instaurada, se sustenta para dizer isso dela mesma. Desde os primeiros
capítulos da Democracia, pode-se seguir a formação progressiva do conceito
de “estado social revolucionário”, misto confuso de democracia e de revolução,
em oposição ao de “estado social-democrático”. Desde então, ele não cessará
de ser o centro da reflexão desse autor, do qual ele alimenta a melancolia:
fevereiro e junho de 1848, depois de dezembro de 1851, marcarão além disso
sua pertinência. A melancolia vem do fato de que esse conceito de tradição
revolucionária se autoperpetuando aparentemente de maneira sem fim perma­
nece ao mesmo tempo uma tristeza existencial e um mistério intelectual. Desde
1850, em suas lembranças, Tocqueville observa com uma espécie de desespero
seu caráter inatingível: “E eis aqui a Revolução Francesa que recomeça, pois
é sempre a mesma. Na medida em que vamos, seu término afasta-se e
obscurece-se. Chegaremos, como nos asseguram outros profetas talvez tão
vãos quanto seus antecessores, a uma transformação social mais completa e
mais profunda do que quiseram nossos pais e que nós mesmos não podemos
ainda conceber; ou devemos alcançar somente essa anarquia intermitente,
crônica e incurável doença bem conhecida dos velhos povos? Quanto a mim,
não posso dizê-lojgnoro quando acabará essa longa viagem; estou cansado de
tomar sucessivamente como margem névoas enganadoras e pergunto-me
muitas vezes se essa terra firme que procuramos há tanto tempo existe
realmente, ou se nossa existência não será mais a de balançar eternamente no
mar?!” (Souvernirs, pág. 87).
Esse é o mistério do qual Tocqueville vai procurar a origem no Antigo
Regime, coroando sua obra com aquilo que nunca deixou de ser sua obsessão:
a Revolução Francesa. Porém a Revolução é daqui em diante para ele
irredutível à democracia, mesmo a uma de suas formas degeneradas: é um tipo
de regime sui generis, do qual a história da França reuniu os traços e que
ameaça o futuro da Europa. A América e a França encarnam doravante em seu
espírito dois conceitos explicativos e duas linhas de evolução irredutíveis um
ao outro, não têm passado nem futuro que reconciliem suas histórias; uma
encarna a democracia, a outra a revolução.

► R. Aron, L a d élin itio n libérale d e la liberté: A lexis d e Tocqueville e t K a rl Marx, em Archives


européennes de sociologie, 5, 1964; Idem, L es g ra n d es étapes d e la p e n s é e sociologiqu e. Paris,
Gallimard, 1967; S. Dresher, D ilem m as o f D em ocracy, Tocqueville a n d m o d ern iza tio n , Pittsburg,
1968; Idem, Tocqueville a n d E ngland, Harvard University Press, 1964; F. Furet, P en se r la
R évo lu tio n française, Paris, Gallimard, 1978; J. -C. Lamberti, Tocqueville e t les dew c dém ocraties,
Paris, PUF, 1983; P. Manent, T ocqueville e t la n atu re d e la dém ocratie, Paris, Julliard, 1982; C. W.
Pierson, T ocqu eville a n d B ea u m o n t in A m erica, Nova York, Oxford University Press, 1938;
Saint-Beuve, C au series du lundi, vol. 5; J. T. Schleifer, The m akin g o f T ocqueville's D em o cra cy in
A m erica, Chapei Hiil, University of North Carolina Press, 1980.

François FURET.

1236
TROTSKI, Lev, (Lev Davidovitch Bronstein) 1879-1940
A R evolução traída, 1 9 3 6

Por que ler ainda hoje Lev (Leão) Trotski?


A corroboração pelo sucesso à qual, segundo a modernidade, parece
pretender um pensamento político, sobretudo marxista, foi recusada ao seu,
tanto durante sua exsistência quanto no tempo de seus epígonos; as esperanças
de ressurgimento que esses últimos puderam conhecer alguns anos antes e
depois de 1968 parecem hoje em dia distantes. Trotski não seria hoje apenas
uma figura do passado, abandonada aos historiadores, longe da atualidade?
Parece-nos errado concluir desse modo, por duas razões. A primeira é
que se o "trotskismo" de filiação explícita é uma corrente marginal dentro da
vida política dos anos 1980, uma temática aparentada com a sua permanece,
em compensação, presente em numerosas correntes da esquerda. Descartemos
duas posições extremas: a que afirmava a conformidade da União Soviética à
idéia socialista e a que, ao inverso, identificava a burocracia como a nova classe
exploradora (ela reagruparia autores m uito divergentes, de inspiração m aoísta,
“ultra-esquerda”, libertária ou social-democrata). Entre esses extremos, o
campo permanece amplo para aqueles a quem os “desvios” que afetaram
(certamente de maneira grave) a vida política da URSS não impediram a
existência dentro da economia e da sociedade desse país de “bases socialistas"
(nacionalização, planificação) que permitiam caracterizá-las como “pós-revolu-
cionárias” e formas “de transição”. É assim um grande leque de militantes e
de intelectuais que, sabendo-o ou não (ou não querendo sabê-lo), participa
disso que se poderia chamar de um “trotskismo difuso” face ao qual pode
parecer esclarecedor referir-se diretamente a Trotski, por ter sido ele o que
mais forte e nitidamente formulou esse tipo específico de crítica (ou de
semicrítica) ao regime soviético.
O que lastreia nossa segunda razão para julgar oportuna a releítura de
Trotski. Se se pode questionar a atualidade do trotskismo como projeto
político, a da crítica do totalitarismo soviético não pode infelizmente ser
colocada em dúvida. Ora, se se tentasse uma tipologia dos pontos de vista
possíveis a partir dos quais essa crítica é concebível, perceber-se-ia que Trotski
ocupa aí um lugar absolutamente específico, por seu projeto de operar um
corte entre a herança de Marx e a de Lênin, por um lado, e suas seqüências
históricas totalitárias, por outro. O próprio de sua posição é apoiar-se sobre
essa herança, cuja validade atual é afirmada, a crítica dessas seqüências tem
posição única dentro da tradição marxista. Com efeito, a crítica chinesa do
regime soviético jamais se elevou até uma crítica ao stalinismo enquanto tal, e
pode mesmo, sob vários aspectos, aparecer como uma crítica “ultra-stalinista”
do “stalinismo” enfraquecido desde 1956; entretanto, quantas outras críticas
como as de Karl Kautsky ou dos marxistas “de esquerda" (conselheiros
alemães em Socialisme ou Barbarie) vão, ao contrário, até o ponto de
recolocar em causa o próprio leninismo. É o que fazem igualmente (de maneira

1237
totalmente diferente) certas análises “eurocomunistas” que admitem, contra­
riamente aos ultra-esquerdistas e a Kautsky, que o bolchevismo teve sua hora
de legitimidade, mas, contrariamente ao trotskismo, que essa hora passou e o
movimento operário entrou em uma época em que a herança de Lênin não será
mais seu único nem seu principal instrumento.
Ler Trotski, portanto, vale tanto pela reflexão sobre a URSS quanto, mais
amplamente, sobre o leninismo e o destino do movimento operário socialista.
A revolução traída (La Révolution trahie*) (RT) impõe-se como a súmula mais
ampla das análises do autor sobre o conjunto desses problemas. Publicado em
uma época de reviravoltas e de radicalização dos confrontos, a obra reflete as
modificações que resultam disso dentro da teoria de Trotski que se reveste
então de sua forma quase que definitiva. A partir de uma colocação do contexto
e das motivações dessa publicação, esboçaremos os temas principais e a
coerência do conjunto para considerar enfim os problemas e os debates aos
quais devia dar lugar a herança teórica de Trotski.

Contexto e motivações

Foi dentro da “calma, severa e aprazível Noruega” (segundo os termos


de Natalia Trotski) que foi elaborada a obra. Convidado por esse país após sua
expulsão da França, em junho de 1935, Trotski teve de deixá-lo em dezembro
de 1936 em virtude de pressões diplomáticas soviéticas, para ganhar seu
último exílio no México. Na aldeia norueguesa em que o hospeda um velho
militante socialista, ele se dedica a um trabalho obstinado de correspondência,
de redação (a RT, mas também o Boletim da oposição) e de leitura da imprensa
russa e internacional. A análise da situação mundial e da política do Komintern
conduziu-o depois de alguns anos a uma evolução em sua interpretação da
natureza do stalinismo e em sua atitude prática em direção ao movimento
comunista, do qual a RT e os outros escritos desse período vão formular os
conhecimentos adquiridos. Elucidemos brevemente esses três pontos.
A situação internacional é dominada pelos acontecimentos alemães,
franceses e espanhóis. A vitória de Hitler, favorecida pela linha sectária da
Internacional Comunista que, designando a social-democracia como o adver­
sário prioritário, tornou impossível qualquer união das organizações operá­
rias na Alemanha, conduziu a direção russa a renunciar a essa linha e adotar
aquela, totalmente oposta, das Frentes Populares na Espanha e na França.
Ora, uma e outra estratégia são contestáveis aos olhos de Trotski. A primeira,
conduzindo à derrota o proletariado mais importante da Europa, traduz uma
perda do real, um desvio “aventureiro” que se exprime também, durante os
mesmos anos, no plano interior, pela coletivização das terras e a indus­
trialização ultravoluntaristas. A segunda, em compensação, lhe parece como
um desvio “de direita” (neomenchevique) já que ela vai d ar na su b o rd in ação
programática do proletariado aos republicanos burgueses e por isso vai dar

* Pode-se ler a obra na coleção “10-18", ou em D e la R évolu tion , Ed. de Minuit, 1967.

1238
também no aborto das possibilidades revolucionárias que, para Trotski, a
situação na França e na Espanha comporta. Ele não é a favor nem mesmo
da brutal alternância dessas duas linhas, que não lhe parece construtiva; por
mais opostas que elas sejam, seus resultados são "objetivamente” os mes­
mos: a derrota da revolução na Europa. Daí a suspeita de que essa derrota
seja a meta efetiva da burocracia soviética, o que vai lançar sobre sua
natureza uma nova luz.
A análise da burocracia vai, portanto, conhecer uma inflexão. Em 1929
Trotski a caracteriza como um aparelho “centrista” oscilando entre burguesia
e proletariado; mas ele precisa que a Rússia continua sempre um Estado
operário e que um “Thermidor” não aconteceu: não houve restauração do
capitalismo. Após 1933, a burocracia vai aparecer como uma camada portadora
de interesses específicos. Sua política internacional parece ter constituído, para
Trotski, um sintoma decisivo nesse aspecto: ela vai ser interpretada daí em
diante como uma conduta positivamente contra-revolucionária, evidentemente
necessária para a burocracia se manter, já que sua existência e seu poder são
um efeito do atraso da revolução na Europa.
Se ela adquire assim uma espécie de especificidade, de "consistência”
sociológica, a burocracia não deixa de conservar uma natureza fundamental­
mente transitória e contraditória, já que, defendendo seu poder político contra
o proletariado, deve defender contra o imperialismo as conquistas sociais de
1917 (a economia estatizada e planificada). Ser-nos-á preciso assinalar no
próprio texto da R T a maneira pela qual Trotski vai gerar a delicada dualidade
desses pontos de vista, que caracteriza sua posição e deu lugar, naquele
momento, assim como depois, a tantos debates.
A linha política da corrente que ele anima vai, em todo caso, conhecer,
nesses mesmos anos, uma inflexão correlativa daquela que afeta a análise
teórica do stalinismo. Essa corrente, que tenta desde 1929 organizar-se em
escala internacional, o faz antes como “oposição de esquerda” recusando a
idéia de constituir um “segundo partido”. É no ano de 1933 que, aí, também,
se dará a reviravolta: a idéia aparece primeiro como a de criar uma nova
direção revolucionária na Alemanha, onde “o proletariado reerguer-se-á e o
stalinismo jamais” (março de 1933). Rapidamente se impõe a idéia de uma
degenerescência acabada da Internacional em seu conjunto e do Partido russo:
desde agosto de 1933, na saída de uma conferência reunindo em Paris várias
organizações socialistas de esquerda ou comunistas oposicionais, quatro
dentre elas, entre as quais a oposição russa, afirmam que é preciso preparar a
construção de uma IVS Internacional. Resulta disso, escreve Trotski, que “a
oposição de esquerda cessa definitivamente de se sentir e de agir como uma
oposição” e não reivindica mais a reintegração de seus membros dentro dos
PCs oficiais nem a “reforma” desses. A fase de “preparação” da nova Interna­
cional virá a dar na sua conferência de fundação em setembro de 1938. Uma
das motivações da Revolução traída será a de precisar os fundamentos
teóricos da nova orientação revolucionária: para se desmarcar completamente,
tanto do stalinismo quanto das correntes burguesas e social-democratas, é

1239
necessário que se indique claramente em que a análise trotskista da realidade
soviética difere da deles.

Temas e coerência

Trata-se também de se desmarcar dos “amigos da URSS”, aqueles aos


quais a introdução e as últimas páginas da obra administram uma surra:
economistas pedantes como os Webb, ou humanitários líricos, como Barbusse
e Romain Roland, que são muito mais levados a reconhecer o “socialismo
naquilo que se passa na URSS, porque essa posição não-crítica conforta a
ausência de crítica da qual eles dão exemplo desde sempre no que toca à
realidade burguesa. Dentro dessa veneração pelo fato acabado tanto no Leste
quanto no Oeste, é tranqüilizador para eles, assim como para seu público,
delegar a carga de contestar a realidade a ”uma revolução estrangeira, porém
acalmada". Ao contrário dessa esquerda ao mesmo tempo frouxa e pró-stalinis-
ta, a exposição de Trotski se quer crítica e comprometida e isso porque ele se
quer científico, isto é, baseado numa análise das contradições da sociedade
soviética. Surge aqui a objeção, tornada tradicional: não se faz assim o jogo
da burguesia? A resposta de Trotski é que não se vê qual o proveito que os
inimigos do socialismo tirarão da crítica dos aspectos contra-revolucionários
da URSS, isto é, daqueles que, de seu ponto de vista, são positivos!
Para que se veja claro a diferença entre seu ponto de vista crítico e o dos
mencheviques por exemplo, a obra justifica de novo a Revolução de Outubro pela
lei do desenvolvimento combinado dos países atrasados: em razão da inter­
dependência dos economistas capitalistas em escala mundial, os países atrasados
não podem reunir-se aos países avançados no caminho do desenvolvimento
capitalista. Foi por isso que a revolução burguesa na Rússia foi desembocar
imediatamente na revolução socialista (conforme à noção de revolução perma­
nente) e isso, “não porque sua economia era a mais madura para a transformação
socialista" (esquema marxista tradicional, pré-leninista), “mas porque essa econo­
mia não podia mais desenvolver-se sobre bases capitalistas”.
A amplidão do desenvolvimento soviético é testemunha desse caminho ser
o certo, desenvolvimento esse que só a planificaçáo permitiu e que o autor ilustra
com estatísticas que conferem à URSS uma vantagem sobre o Ocidente (exposto
à crise) do ponto de vista dinâmico, isso é, quanto à rapidez do desenvolvimento.
Mas o nível de partida sendo muito baixo, uma apreciação comparativa
estática mostra a insuficiência dos resultados atingidos. A rapidez mesma do
processo cria uma falta de harmonia entre os diversos setores, assim como um
atraso da formação profissional. Daí uma fraca produtividade, preços que se
mostram elevados para uma qualidade insuficiente, que a imprensa oficial, ela
mesma abundantemente citada pelo autor, deplora e isso em todos os setores
(mesmo o da indústria militar, onde no entanto os melhores resultados foram
atingidos, o exército e a frota sendo já “os clientes mais influentes e mais
exigentes”).
Um desenvolvimento muito rápido, mas ipso facto desequilibrado, eis a

1240
realidade que confirma o exame do rendimento e da produção per capita. Um
baixo nível de consumo popular resulta: 1) dessa fraca produtividade; 2) da parte
elevada do lucro nacional absorvida pelo investimento; 3) do levantamento
monetário operado pela camada privilegiada. Isto, para o autor, não condena de
maneira nenhuma a revolução socialista, mas o conduz a afirmar que essa está
ainda, e por muito tempo, em uma fase preparatória, consistindo em assimilar
as aquisições do Ocidente e em “recobrar” seus resultados.
Não somente o dinamismo do desenvolvimento não deve mascarar a
insuficiência dos resultados, mas ainda esse desenvolvimento não tem nada de
um progresso linear; Trotski retraça os “ziguezagues” e as crises que marcaram
a política econômica soviética. O período do "comunismo de guerra" (1918-1921)
caracteriza-se por um regulamentação total planificada da produção e da redis-
tribuição e isso tendo em vista responder à dupla urgência da guerra civil e da
escassez urbana. Todavia, o comunismo de guerra não se reduzia a esses
aspectos conjunturais, ele era animado por um projeto mais amplo: passar
progressivamente para o verdadeiro comunismo, mantendo a substituição do
comércio por uma redistribuição nacionalmente planificada dos produtos.
Este projeto sofreu o desmentido da realidade, sob a forma de uma baixa
dramática da produção e foi então criticado como utópico. Foi a vez da NEP
(Nova Política Econômica) com a restauração do sistema monetário e o
restabelecimento das relações de mercado. Os anos da NEP conheceram uma
forte rearrancada da indústria e um aumento mais modesto das colheitas.
Começam a ocupar a frente da cena os problemas concernentes às relações
entre indústria e agricultura. O distanciamento entre os preços industriais e os
preços agrícolas (fenômeno dito das “tesouras”) faz o campesinato perder o
que havia ganho com a expropriação dos grandes domínios; o que suspende
as tendências ao crescimento da produção, e limita igualmente o parcelamento
da terra. Daí resulta um problema social: o aumento de produção robustece os
kulaks (camponeses rico), a diferenciação social aumenta no campo.
Está aí o conteúdo principal dos debates de 1923 a 1928 dentro do
Partido. A “direita” (Bukharin) que sustenta então o "centro” stalinista,
impulsiona essa política pró-kulak à qual a “esquerda” (Trotski) censura por
ameaçar em termos o caráter socialista da sociedade; a renovação da pequena
burguesia altera o caráter de classe do partido e é a essa alteração que Trotski
imputa sua burocratização e a destruição do debate democrático. A esquerda
reclama de seu lado uma industrialização ampla e planificada e deplora a
timidez dos primeiros esboços de plano qüinqüenal.
Ora, é exatamente no momento em que Stalin completa sua vitória
política sobre Trotski que esse vê suas advertências ilustradas por uma grave
crise alimentar devida à recusa camponesa em continuar a vender o trigo em
condições desvantajosas. Daí vai resultar uma reviravolta política capital.
Stalin desencadeia realmente um processo de coletivização da terra com uma
amplidão alucinante, já que o número de focos camponeses admitidos nas
kolcozes passa de 1,7% em 1929 para 61,5% em 1932! Um desenvolvimento
industrial planificado não menos grandioso é posto em prática. Politicamente,

1241
a crítica e depois a repressão abatem-se sobre a “direita” que Stalin sustentava
até então (negando sua existência).
Neste ponto de sua reconstrução histórica, Trotski deve resolver um
problema delicado: essa virada stalinista não é a retomada de seu próprio
programa? O tema antikulak e o tema da industrialização não eram seus
cavalos de batalha? De fato, Trotski recusa "o discurso confuso liberal que quer
que a coletivização tenha sido inteiramente o fruto só da violência” e reafirma
que ela era objetivamente necessária. É a maneira pela qual ela foi conduzida
que ele critica como aventureira, nesse caso em que não se levou em
consideração a medida na qual a indústria podia colaborar com a grande
exploração agrícola. Improvisada e rápida demais, ela se opera dentro de um
desencadeamento de violência, fazendo milhões de vítimas e teve conseqüên­
cias econômicas desastrosas. “A responsabilidade, reafirma Trotski, não cabe
à coletivização, mas sim aos métodos cegos, temerários e violentos com os
quais foi aplicada.” O mesmo aventurismo ocorrera industrialização, onde se
procede “esforçando-se por fazer de todo sucesso momentâneo uma norma e
perdendo de vista a interdependência dos ramos da economia”.
Pelas análises que acabamos de relembrar, o autor visa dois objetivos:
atacar a apologética stalinista e introduzir o leitor no problema central, a
natureza da URSS. Primeiro ponto: a amplidão do desenvolvimento (permitida
pela nacionalização e pela planificação) não impede que a URSS esteja ainda
longe de igualar o capitalismo quanto à produtividade e ao consumo; e esse
desenvolvimento foi conflitua! e contraditório. Segundo ponto: em vista desses
resultados e dessas contradições, pode-se aceitar a idéia de que o socialismo
realizou-se na URSS? Stalin diz: “Nós ainda não estamos no comunismo
acabado, mas já estamos no socialismo, estágio inferior do comunismo.” Mas,
para Marx, esse “estágio inferior” pressupunha de imediato um desenvolvimen­
to superior àquele do capitalismo avançado! Não se pode portanto caracterizar
a URSS como socialista, mas como forma transitória entre capitalismo e
socialismo. E as contradições próprias dessa forma transitória impedem es­
perar que ela passe “automaticamente” para o verdadeiro socialismo. Tudo
depende da evolução das contradições econômicas e sociais.
Estas aparecem na caracterização que Trotski oferece do Estado soviéti­
co. Quais são as causas da existência do Estado? “A dominação de classe e a
luta pela existência individual.” Entretanto, a supressão da primeira, pela
socialização dos meios de produção, não abole logo a segunda! Mesmo nos
Estado Unidos, sobre as bases do capitalismo mais avançado, o Estados
socialista não poderia satisfazer de imediato todas as necessidades; deveria
incitar cada um a produzir o máximo possível, o que implica normas desiguais
de redistribuição, portanto a persistência do direito burguês. Porém, como
escrevia Lênin, o direito burguês implica o Estado burguês, pois o direito não
é nada sem o aparelho coercitivo. Dessa maneira, dentro de uma primeira fase
do comunismo, “o Estado burguês subsiste sem burguesia”!
Daí a dupla natureza do Estado: socialista enquanto defende a pro­
priedade coletiva, burguês enquanto mantém normas capitalistas de redis-

1242
tribuição. Essa dualidade inevitável de todo Estado operário exerce-se muito
mais duramente quando se trata de uma sociedade pobre. Daí vem que o
Estado não enfraquece de maneira nenhuma e que a burocracia aumenta seu
poder. Mas se essa é imputável ao subdesenvolvimento, por que os sucessos
econômicos posteriores ainda não aumentaram a ponto que “de deformação,
a burocracia se tornasse sistema de governo”? Apontando a contradição do
discurso oficial que afirma ao mesmo tempo a vitória total do socialismo e o
fortalecimento da ditadura, quando a primeira deveria tornar inútil o segundo,
Trotski refere esse último ao desenvolvimento de novos antagonismos sociais
baseados na penúria e no baixo rendimento do trabalho.
Essa natureza transitória, pré-socialista, do Estado soviético é ilustrada
por análises concernentes à moeda, daí resultando que, após tentativas vo-
luntaristas de abolição prematura, a burocracia teve de reabilitar esse ins­
trumento de medida e de redistribuição. Essa necessidade das normas burgue­
sas é reencontrada na análise do trabalho de empreitada e do stakhanovismo.
Se, como lembrou o autor, o uso dessas normas burguesas é necessário,
como censurar a burocracia? Ela não é justificada pela análise de Lênin, como
lembramos, sobre o Estado burguês sem burguesia e a dualidade inevitável do
Estado operário? De fato Trotski admite a necessidade dessas práticas, porém:
1) com críticas sobre os métodos, como seu viu; 2) recusando a mentira que
pretende que isso já seja o socialismo; 3) e, sobretudo, esses métodos e essa
mentira revelam o que distingue a burocracia de uma direção revolucionária
que passaria certamente pela etapa preparatória que lhe impõe o atraso russo,
mas sabendo o que ela faz e mantendo-lhe as verdadeiras metas sob seus olhos.
O poder burocrático não é portanto a continuação da Revolução, mas o
fruto de um “Thermidor” imputável a causas internas e a fatores inter­
nacionais. Fatores internos: o proletariado, esgotado pela guerra civil, defen­
deu menos fortemente seu poder; a pequena burguesia, revigorada pela NEP,
aproveitou-se; a burocracia tornou-se o árbitro entre essas classes opostas e
desenvolveu seu poder autônomo. No plano internacional: as derrotas (Alema­
nha 23, China 27) provocadas pela direção burocrática a reforçam, paradoxal­
mente, pelo desencorajamento que criam nas massas.
A camada burocrática, órgão necessário das normas não-igualitárias de
redistribuição, constitui-se a principal beneficiária disso tudo: Trotski analisa
longamente o crescimento da desigualdade social, encontrando inumeráveis
índices dentro da própria imprensa oficial e analisando-os pacientemente para
extrair deles a imagem da diferenciação dos ganhos e das condições de existência.
Ele conclui, ao final de um raciocínio preciso, apesar de hipotético em razão da
ausência, eloqüente em si, de estatísticas sobre os salários reais, com essa
estimativa: 15 a 20% da população consomem tanto quanto todo o resto dela.
Existe, portanto, um processo de orientação global contra-revolucionário.
O autor analisa seus sintomas concernentes à condição da mulher, da criança,
da juventude, a política cultural, a questão nacional, a política estrangeira, a
organização militar: em toda parte a proclamação dos princípios socialistas
encobre um retorno às práticas reacionárias e capitalistas. Será então preciso

1243
concluir que a contra-revolução foi realizada, que a URSS perdeu seu caráter
socialista e que a burocracia tornou-se uma nova classe exploradora? O que é
a URSS e para onde ela vai?
Por trás dos números (que parecem atestar a predominância esmagadora
do setor socialista na economia) é preciso ver a realidade social, isso é, “a
potência das tendências capitalistas residuais (artesãos, cultivadores indivi­
duais) infinitamente menos fortes do que aquelas das quais ela mesma é
portadora! Realmente, não se deve deixar enganar pelo caráter estatal da
propriedade, que é apenas a crisálida da borboleta socialista: "A propriedade
do Estado só se torna a do povo inteiro na medida em que desaparecem os
privilégios e as distinções sociais e em que, conseqüentemente, o Estado perde
sua razão de ser. Dito de outra maneira: a propriedade do Estado torna-se
socialista à medida que ela cessa de ser propriedade do Estado." Mas imedia­
tamente desenvolvem-se o poder político da burocracia (portanto a distância
do Estado ao povo) e seus privilégios econômicos. A propriedade estatal não
segue o caminho que a conduziria a tornar-se socialista. Certamente, a
redistribuição é um fator secundário em relação à produção: mas há entre elas
interação e "o destino dos meios nacionalizados de produção será decidido no
final das contas pela evolução das diferentes condições pessoais”, da parte dos
grupos sociais dentro da redistribuição.
Desse modo “a questão do caráter social da URSS não está ainda
decidido pela história”. De um lado, o agravamento das desigualdades prepara
uma restauração capitalista; do outro, o desenvolvimento cria os fundamentos
econômicos do socialismo. Será preciso que uma dessas duas tendências
prevaleça: contra-revolução restabelecendo a propriedade capitalista ou des­
truição proletária do poder burocrático. Trotski recusa-se a considerar a
burocracia como classe dirigente por maior que seja o tempo em que ela não
abula a propriedade estatal: ela “não criou base social para sua dominação, sob
a forma de condições particulares de propriedade”. Sua análise apresenta-se,
portanto, explicitamente como provisória, por ser análise de uma realidade
essencialmente contraditória, que só pode evoluir para o socialismo ou para o
capitalismo. O que fundamenta sua argumentação contra os “escolásticos”
(tanto stalinistas quanto, ao contrário, defensores da teoria do “capitalismo de
Estado”) desejosos de encerrar esse objeto contraditório dentro de seus
conceitos unívocos.

Herança e debates

A análise da URSS por Trotski é portanto uma delicada empresa dialética,


visando manter junto um certo número de contradições:
—esse regime saiu de uma verdadeira revolu- —ele não é o socialismo nem podia sê-lo
ção socialista, traz em si as bases do socia­
lismo
- o proletariado é a classe dominante... ... se bem que seja explorada

1244
- a burocracia é o fruto de causas que a —ela não está por isso justificada e deve ser
tornaram inevitável combatida
- ela não é uma classe dominante e defende ... mas ela é portadora enfim de uma res­
as conquistas de Outubro contra o imperia­ tauração capitalista
lismo...

- é preciso portanto defender a URSS... ... mas trabalhar para a queda do regime s-
talinista.

Repetimos enfim que um quadro tão contraditório só pode ser para


Trotski aquele de uma realidade transitória chamada a evoluir bastante
depressa em um ou em outro sentido.
Ele mesmo, em Défense du marxisme (.Defesa do marxismo) (1940), faz a
sorte dessa análise depender de um prognóstico sobre a geração da revolução
pela guerra mundial: caso contrário seria preciso recolocar em causa a aptidão
do proletariado para se erguer como classe dominante e considerar o stalinismo
(assim como o fascismo) como precursor de um novo modo de exploração.
Assim a R T apresenta-se explicitamente como a análise transitória de um
objeto transitório. Após 1945, far-se-á sentir cada vez mais a dificuldade de
gerir interminavelmente tal posição e diversos ângulos conduzirão correntes
de origem trotskista a optar por uma ou outra de nossas duas colunas...
Porém esse esquema rege também uma parte dos debates exteriores ao
trotskismo, tanto no momento quanto depois. A propaganda comunista oficial
poderá, até a era de Khruschev, permitir-se negar terminantemente os fatos
alegados por Trotski, sobre a repressão e o atraso econômico e afirmar que,
apesar de sua desvantagem, a URSS pôde realizar, ou realizou, o “socialismo”.
O próprio trotskismo, caracterizado nos anos vinte como social-democrata
e “pequeno-burguês”, tornar-se-á na era dos grandes processos “um bando de
espiões, de assassinos (...) a soldo dos serviços de espionagem estrangeiros" (ver
sobre esse assunto Jean-Jacques Marie, Le trotskysme, Flammarion, “Questions
d’histoire”, 1970, págs. 124 a 126). Progressos (muito) relativos foram feitos: Léo
Figuères escreve em Le trotskysme, cet antiléninisme (Editions Sociales, 1969)
que “os adeptos dos trotskistas (...) não foram indistintamente agentes hitleristas
há trinta anos". Este respeito da história só tem de igual o rigor na reconstrução
teórica, a qual se pode julgar aprendendo sob sua pena que o trotskismo
"desenvolveu a tese de que estados capitalistas e estados socialistas eram para
ser colocados no mesmo plano e que, nos dois casos, uma revolução era
necessária para derrubar a classe dominante”.
De maneira mais “sutil” era possível contestar Trotski admitindo com ele
a “degenerescência” da URSS e dos PCs, mas argüindo, até por uma retomada
de suas próprias explicações sobre o caráter necessário dessa degenerescência,
que já que nada de diferente era possível, era por aí que passava o caminho da
revolução. Uma derivação desse tipo sobrevêm no seio da IV1 Internacional
quando Michel Pablo sustentou em 1951:1) que a transição para o socialismo
duraria “alguns séculos”; 2) que esses séculos serão preenchidos por "regimes
transitórios" burocráticos; 3) que a burocracia não é portanto uma excrecência

1245
parasitária mas conserva um papel histórico por muito tempo. Daí uma
estratégia de “entrismo* sui generis" dentro dos PCs que conduziu alguns a
uma união completa. Dentro de uma atmosfera intelectual diferente, poder-se-
ia evocar as análises de outros autores “progressistas” como J. -P. Sartre (ver
Les communistes et la paix, na revista Les Temps modernes, de julho de 1952,
outubro-novembro de 1952, abril de 1954, retomado em Situations VI) que
censura os marxistas antistalinistas, quer se tratasse de trotskistas ou de
Claude Lefort, por seu “idealismo” que consiste em sonhar com outro proleta­
riado diferente do que existe. Ora, desse último o PC é a expressão, melhor
ainda: o único meio de acesso à existência como sujeito histórico. É o que
Merleau-Ponty chamará de “ultrabochevismo” de Sartre (Les aventures de la
dialectique, Gallimard, 1955) e que será objeto de uma virulenta crítica de
Castoriadis em Socialisme ou Barbarie (Sartre, le stalinisme et les ouvriers,
retomado em Vexpérience du mouvement ouvrier, “10-18", 1974).
Encontrar-se-á uma resposta trotskista a Sartre na coletânea de artigos
de Ernest Mandei, La longue marche de la Révolution (Galilée, 1976). Uma
parte de sua argumentação, como a de Castoriadis, fala sobre a posição do
possível dentro da história, contra o “fatalismo”: “Com a maneira de pensar de
vocês, toda política efetivamente aplicada em um dado momento torna-se de
fato a única política possível” - sem que Mandei (nem Castoriadis na época)
se pergunte se esse problema pode ser elucidado dentro de um quadro
marxista e se se pode pensar até o fim a parcialidade de “explicar” sem
“justificar” (como já queria Trotski) - o que implica que seja recolocada a
questão do determinismo e da contingência na história: conduta com a qual
operarão mais tarde Castoriadis e Lefort, mas não o trotskismo.
Para concluir sobre esse tipo de crítica “de direita” (entendendo por isso,
muito grosseiramente, que elas incriminam em Trotski um “excesso” de antis-
talinismo), mencionamos o dispositivo que consiste em não dar razão a ele nem
a Stalin, como representando dois momentos, tornados falsos, por sua dissocia­
ção do que era a síntese leninista (Nicolas Krasso, Le marxisme de Trotski, Les
Temps modernes, junho a outubro de 1969, artigo que apresenta além disso uma
crítica interessante do sociologismo de Trotski) - síntese da da qual se pôde
esperar o renascimento, no campo do maoísmo, superação tanto do stalinismo
quanto do trotskismo (Kostas Mavrakis, Du trotskysme, Maspero, 1971).
Segundo aspecto desse conjunto de debates legados por Trotski: a
evolução do próprio trotskismo. Consultar-se-á os livros de J. -J. Marie, Le
trotskysme, já citado e Trotski (“Que sais-je?”, PUF) assim como P. Frank, La
Quatrièmme Internationale (Maspero).
M. Marie escreve de um ponto de vista que se quer fiel à posição
trotskista “clássica”, a partir da qual são apontadas as derivações de outras
correntes trotskistas, motivadas pela procura de "substitutos” permitindo
poupar-se a difícil construção da Internacional e do Partido. Evocamos a

* Entrismo * tática revolucionária que consiste em introduzir nas administrações ou nos serviços
um núcleo de opositores com o propósito de os desorganizar.

1246
derivação pablista para a reunião com a burocracia; o autor indica outras, indo
dar no terceiro-mundismo, ou no que ele chama de um “revisionismo” visando
adaptar o programa à nova época imprevista de prosperidade capitalista
posterior à guerra (tendência Frank).
Uma análise mais aprofundada desses debates seria necessária; ela
permitiria talvez considerar como uma autocrítica “objetiva” do trotskismo
esse quadro contrastante das reações de seus partidários na deslocação entre
a posição de Trotski e seus prognósticos de 1940 e a realidade de após 1945:
alguns (pablismo) se adaptam a essa realidade ao preço de alterações graves
da posição, outros (lambertismo) gerando-o repetitivamente a perder de vista,
outros ainda (frankismo) fazendo as duas coisas, se falam do Oeste são
“revisionistas”, se falam do Leste conservam a análise da Revolução traída
quando não a inclinam para um sentido “pablista”
Um terceiro espaço é ocupado pelos autores marxistas que procedem a
uma crítica “de esquerda” do trotskismo. O primeiro eixo dessa crítica é a
contestação da análise da burocracia e sua caracterização como classe domi­
nante e exploradora. Destas posições tendo aparecido no fim dos anos trinta
no Partido Trotskista Americano, encontrar-se-á o dossiê desse debate sobre
Trotski, Defesa do marxismo, EDI, 1972, que reúne os artigos de Trotski sobre
esse assunto e uma documentação sobre seus adversários. É sobre temas
vizinhos que após a guerra o grupo Socialismo ou Barbárie romperá com a
IV® Internacional: ver as coletâneas de artigos de Castoriadis, La societé
bureaucratique (A sociedade burocrática) e L'experience du mouvement
ouvrier (A experiência do movimento operário) (col. “10-18").
O segundo eixo consiste em sustentar que esse erro sobre a natureza da
burocracia não é inocente: Trotski é ligado demais ao regime burocrático para ir
até o fim em sua crítica, já dizia Anton Ciliga nos anos trinta. O leninismo não
permite uma crítica radical da burocracia, porque ele próprio é uma das fontes
dela. Esse tema reencontra-se igual mente nos autores de Socialisme ou Barbarie
para os quais a crítica do stalinismo deve se prolongar em crítica do bolchevismo
(Castoriadis, “Le rõle de 1’ideologie bolchevique dans la naissance de la burocra-
tie”, em L ’experience du mouvement ouvrier, 2, Lefort, “La contradiction de
Trotski”, em Eléments d'une critique de la bureaucratie, Gallimard, col. “Tel”).
A evolução posterior desses dois autores nos introduz no quarto aspecto
do debate. Da tomada de consciência da insuficiência da crítica trotskista, os
autores de Socialisme et Barbarie passam a uma investigação sobre as fontes
dessa insuficiência e, como se viu, da crítica do stalinismo à do leninismo. Mas a
etapa seguinte será a de renunciar a opor um “verdadeiro marxismo” ao desvio
leninista-trotskista e de fazer remontar a crítica até Marx ou a certos aspectos de
sua obra. De uma certa maneira nossos autores foram precedidos neste caminho
por Merleau-Ponty, no capítulo sobre Trotski das Aventures de la dialectique
(Gallimard, 1955). Retomando o artigo já citado de Lefort, “A contradição de
Trotski” (1948-1949), Merleau-Ponty procura as raízes dessa contradição dentro
da própria fidelidade de Trotski à dialética marxista, não dentro de um desvio co­
mo Claude Lefort Mas esse iria deixar desde 1947 a IV® Internacional, para

1247
participar da fundação de Socialisme ou Barbarie com Castoriadis. Um e outro
iriam começar um vasto trajeto de pensamento, do qual encontrar-se-á uma visão
de conjunto, para Lefort, no Prefácio à edição Tel dos Eléments..., para Cas­
toriadis no da La societé bureaucratique, volume 1 ("10/18"). Tanto um quanto
outro deviam afastar-se da explicação trotskista da burocracia pelas condições
particulares da Rússia e isso: 1) Pela experiência de seu renascimento, na
ausência de toda base econômica, nas organizações revolucionárias minoritárias:
o que induz à reflexão sobre a idéia de autonomia do político e, em Lefort, a uma
renovação da interrogação sobre a democracia; 2) Ao inverso, pela constatação
da universalidade do fato burocrático, a Leste mas também a Oeste: o que condu­
zirá Castoriadis a pôr em questão a "racionalidade" imaginária que estrutura a
sociedade moderna e a redefinir o projeto revolucionário bem para além das
fronteiras da luta de classes tradicional, como projeto de uma sociedade de auto­
nomia, colocando conscientemente suas instituições como sua própria criação.

• Terrorisme et Communisme (1921), '10/18", 1963; Cours nouveau (1923), ”10/18", 1972; La
Révolution permanente (1930), NRF, 1963; La Révolution trahie (1936), “10/18", 1963 (essas
duas últimas obras retomadas, com La Révolution défiguróe de 1923, em De Ia Révolution, Minuit,
1967); Leur morale et la nôtre (1938), Pauvert, 1966; Défense du marxisme (1940), EDI, 1972.

► Visões de conjunto. -J. -J. Marie, Le trotskysme, Flammarion, 1970, republicado em Champs,
1972; J. -J. Marie, Trotsky — textes et débats, Le Livre de Poche, 1984; Idem, Trotsky, te
trotskysme et la l \ f Internationale, PUF, 1980; Pierre Frank, La Quatrième Internationale,
Maspero, 1969; Victor Serge, Vie et mc <: de Léon Trotsky, Maspero, 1973; Jean Baechler,
Politique de Trotsky, Armand Colin, 1961 •.
Herança e debates:
Esfera de influência comunista. - Léo Figuères, Le trotskysme, cet antiléninisme, Ed.
Sociales, 1969; Trotsky, Textes, com introdução de Jean-Paul Scot, Ed. Sociales, 1984 (o artigo
acima já estava redigido quando apareceu essa obra, que marca um progresso considerável
sobre o precedente no sentido do escrúpulo histórico e da nuance política).
Esferas de influência trotskistas. —Ernst Mandei, La longe marche de la Révolution, Calilée,
1976; Denise Avenas, Alain Brossat, De Tantitrotskysme, Maspero, 1971; Stéphane Just,
Dé/ense du trotskysme, La Verité, setembro de 1965; Pierre Naville, Trotsky vivant, Les Lettres
nouvelles, 1972.
A posteridade de “Socialisme ou B a r b a r ie - Claude Lefort, em Eléments d'une critique de
la bureaucratie, Gallimard, 1979: “La contradiction de Trotsky" (1948-49), “Résurrection de
Trotsky” (1969), e passim; idem, em L 'invention dêmocratique, Fayard, 1981: “La logique
totalitaire”, “Staline et le stalinisme" e passim; Cornélius Castoriadis, em La societé bureaucri-
tique, vol. 1, “10/18", 1973: "Introduction" (1972) e numerosos artigos; idem, em L ’experience
du mouvement ouvrier, vol. 1: “Commentlutter”, "10/18", 1974, passim: em vol. 2: "Prolétariat
et organisation", “10/18", 1974, passim e particularmente "Le rôle de 1’ideologie bolchevique
dans la naissance de la bureaucratie" (1964).
Diversos. —Merleau-Ponty, Les aventures de la dialectique, Callimard, 1955.

Thierry MACLET.

1248
V
VICO, João Baptista (Giambattista), 1668-1744
O método dos estudos de nosso tempo (“De nostri temporis
studiorum ratione”), 1709

O método dos estudos de nosso tempo é a primeira obra filosófica de


Vico. Ela foi publicada em 1709 e composta um ano antes para o discurso
inaugural na Universidade de Nápoles.1 O De ratione2 não foi jamais editado
em francês e Vico é principalmente conhecido por seus Príncipes de la
philosophie de Vhistoire (Princípios da filosofia da história), sua Scienza
nuova? Também vemos nele naturalmente o “pai” dos filósofos modernos da
história, até mesmo o precursor de nossas ciências históricas, mais do que um
crítico da cultura européia na alvorada do século XVIII. No De ratione, Vico
empenha-se em uma confrontação entre os estudos clássicos e os estudos
modernos. Porém, ele enfatiza logo que essa confrontação refere-se espe­
cificamente à questão do método: “Para que possam mais facilmente com­
preender o conjunto de minha exposição, explicava Vico aos estudantes de
Nápoles, é preciso que saibam que não comparo aqui nossas ciências com
ciências antigas, nossas artes com as artes dos antigos, mas que procuro saber
em quê nosso método de estudos é superior ao método antigo, em quê ele lhe
é inferior e de que maneira ele pode evitar essa inferioridade”.4
Para Vico, a finalidade dos estudos modernos é a verdade. E o ins­
trumento essencial dessa finalidade é a “nova crítica’’, isso é, o método de
Descartes,5 para todas as ciências em geral - e mais especificamente, a análise
para a geometria, a geometria para a física (assim como a química e a espagíria
(farmácia) para a medicina).6 Sempre se querendo imparcial, Vico tenta subme­
ter ao que nós chamaríamos hoje em dia de uma “metacrítica” a crítica
moderna no sentido de Descartes e ele pretende igualmente instruir o processo
do método geométrico que procede de maneira analítica e não sintética (como
conviria, no entanto, a uma ciência do real). O De ratione se apresenta, assim,
como um “discurso do método”, que não é de maneira nenhuma uma apologia

1249
do moderno, mas muito mais uma colocação em causa da pretensão absolutista
da verdade concebida sob os critérios “modernos” da distinção e da clareza. É
aliás por isso que se pôde mesmo ver em Vico uma espécie de anti-Descartes:
em sua História da história da filosofia,7 M. Guéroult havia podido escrever
que"... sustentando uma tese radical de anti-cartesianismo erudito, Vico toma,
desde 1708, o partido dos antigos e fala a linguagem de Huet". Segundo M.
Guéroult, essa defesa da sabedoria dos Antigos contra a ciência dos Modernos
seria concebida por Vico “como devendo ser introduzida por uma ”censura da
filosofia cartesiana", por um processo do conhecimento matemático (...). A
censura é total", declara ele. Ele faz claramente de Vico um partidário dos
Antigos contra os Modernos, da tradição contra a razão, da história contra a
filosofia, da "prudência” (no sentido da phronêsis de Aristóteles) contra a
“ciência” (no sentido de uma episteme moderna).
Ora, se nós fazemos alusão a essa interpretação, não é para subscrevê-la,
mas muito mais porque ela denotaria uma dificuldade geral para a com­
preensão da crítica viquiana. Pois certos autores chegaram a dar uma inter­
pretação de Vico quase que radicalmente oposta àquela que nos propunha M.
Guéroult. Como Hannah Arendt, que parece ver em Vico um precursor dos
“tecnólogos” modernos. Ela nos explica que “Vico, que é considerado por
muitos como o pai da história moderna, não se teria voltado para a história
nas condições modernas”: ele se teria, diz ela, “voltado para a tecnologia; pois
nossa tecnologia faz verdadeiramente o que Vico pensava que a ação divina
fizesse no domínio da natureza e a ação humana no domínio da história”.8 Esse
julgamento de H. Arendt sobre Vico é muito mais interessante porque ela
mesma, a exemplo de Vico, concede maior importância ao “senso comum” em
oposição à ciência, à “opinião” em oposição ao “conhecimento”, à tradição em
oposição à razão, à “dialética" (no sentido de Aristóteles) em oposição à
analítica, à “tópica”9 em oposição à crítica, à phronêsis em oposição à
episteme... Pode-se então perguntar como é possível que Vico tenha podido ser
tão diversamente compreendido por bons autores, ora como um defensor do
Antigo, ora como um representante do Moderno.
Como Vico se situa com relação a essas oposições entre o Antigo e o
Moderno? Em um plano metodológico, a mais importante entre elas é a
oposição entre a tópica e a critica: esquematizando muito, poder-se-ia dizer
que a tópica não toma diretamente a verdade como objeto, mas o que é
acreditado antes pela opinião e o senso comum, isso é, no sentido literal, pela
verossimilhança. Entretanto, a crítica se interessaria diretamente pelas ver­
dades de razão, isso é, pelas verdades que a consciência tem como universais
e necessárias, no sentido daquilo que é a priori claro e certo. Enquanto a
tópica se apóia sobre a particularidade das opiniões e das crenças, a crítica se
refere somente à generalidade do que é necessário em razão; enquanto que a
tópica procede do particular para se elevar progressivamente em direção ao
universal, a crítica (no sentido do cartesianismo) procederia segundo o silogis­
mo, do mais universal para o mais particular;10 enquanto a tópica supõe uma
“compreensão” prática, uma espécie de inteligência teórica daquilo que deve

1250
ser, seguindo as regras gerais do entendimento e os princípios universais da
razão.
Ora, dentro dessa oposição, Vico não recusa nem a crítica nem a tópica. De
um lado, cada uma tem suas vantagens: a crítica permite eliminar o erro e
fornecer, dessa forma, um método privilegiado de acesso à verdade; a tópica
permite à opinião esclarecer-se ela mesma na troca de argumentos e fazer, desse
modo, frutificar os conhecimentos fazendo-os partilhar por outros. A crítica é
disciplinar, a tópica é pedagógica. Porém, todas duas têm também seus inconve­
nientes. Pois, explica Vico, a crítica tende a relegar todo o domínio do verossímil
àquilo que é simplesmente falso, enquanto a tópica toma o risco sistemático de
acolher o falso.11 É por isso que, sabendo de seus respectivos defeitos, Vico tem
em vista superar a oposição entre a crítica e a tópica dentro da perspectiva de
uma complementaridade possível. Sobre esse ponto, Vico exprime sua posição
própria que não deveria deixar lugar a nenhum malentendido:

Para evitar um e outro defeito, eu seria de opinião que se deve ensinar aos jovens todas
as artes e ciências formando seus julgamentos de maneira completa, a fim de que a tópica
enriqueça seus repertórios de lugares-comuns e que ao mesmo tempo eles se fortifiquem,
graças ao senso comum, dentro da prudência e da eloqüência e se firmassem, graças à
imaginação e à memória, nas artes que repousam sobre essas faculdades de espírito. Que
eles aprendam em seguida a crítica e que julguem então, sobre novos aspectos e com
seus próprios julgamentos, as coisas que lhes foram ensinadas e se exercitem a raciocinar
sobre elas sustentando as duas teses opostas.

Eles terminariam desse modo por tornarem-se amigos da verdade nas ciências, hábeis na
prudência prática, abundantes na arte da oratória, imaginativos na poesia e da pintura,
ricos de memória na jurisprudência. Evitar-se-lhes-ia além disso tornarem-se temerários
(...), ou respeitosos de maneira demasiado cega (,...12

Lembremos que Vico dirigia-se aqui aos “jovens nobres” da Universidade


de Nápoles. Está aí uma boa razão para que a precedência metódica da tópica
sobre a crítica seja argumentada sob considerações pedagógicas. Mas sabe-se
também que estreitos vínculos filosóficos a questão pedagógica entretém com
a questão política. O que está em questão nos dois casos é efetivamente o
problema crucial da relação entre teoria e prática. A esse respeito, é notável
que Vico defende uma atitude política situada no oposto exato da “atitude
tecnológica” ou “tecnicista" que H. Arendt teria suposto dele. Assim o atesta
essa frase-chave do De ratione:

Os sábios imprudentes que vão muitas vezes do verdadeiro em geral às verdades


particulares forçam sua passagem através das tortuosidades da vida. Mas os sábios que
mantêm os olhos fixos sobre a verdade eterna através dos desvios e das incertezas da
ação dão voltas, já que não podem seguir uma linha reta. Eles tomam assim decisões que,
a longo prazo, se revelarão tão proveitosas quanto a natureza o permite.

E Vico tira daí imediatamente as conseqüências políticas:

Resulta do que dissemos que aqueles que aplicam à prudência o método de julgamento

1251
do qual se serve a ciência estão errados: eles avaliam as coisas segundo a razão direta,
enquanto os homens que, para uma boa parte das pessoas, são insensatos, não são
governados pela reflexão, mas pelo capricho ou pelo acaso. Eles julgam as ações humanas
tais como elas deveriam ser, enquanto a maior parte do tempo elas foram realizadas
aventureiramente. E como eles não cultivaram o senso comum e nunca procuraram o
verossímil, já que só se contentam com o verdadeiro, não fazem nenhuma questão em
saber quais sentimentos os homens experimentam comumente a respeito dessa verdade
e se o que eles consideram como verdades aparece como tal para o resto dos homens.
Não somente simples particulares, mas também príncipes e reis foram vistos reprovando
como um defeito muito grave essa negligência, que foi às vezes a causa de grandes danos
e de grandes males.13

Estas palavras são notáveis, porque elas defendem a opinião e o senso


comum, sem poder todavia se deixar “recuperar” de forma alguma pelas críticas
antimodernas da razão e de sua “verdade”: Vico visa mais do que a reconciliação
desses dois pólos, que só são antiéticos em aparência; e a esse respeito, o meio
permitindo assegurar a mediação da razão e da opinião, da verdade e do senso
comum, nada mais é do que o diálogo. É o que em todo caso Habermas não
deixou de assinalar em Vico. O modelo viquiano apresentaria com efeito para
Habermas a grande vantagem de ter especificamente em vista o fato de que “a
passagem da teoria para a prática encontra-se (...) confrontada, além de com uma
simples aplicação técnica dos resultados científicos, com o dever de penetrar as
consciências e as opiniões dos cidadãos destinados a agir: é preciso, comenta
Habermas, que nas situações concretas, as soluções teóricas possam parecer
como as que se impõem praticamente e mesmo que essas soluções sejam
concebidas sem dificuldades do ponto de vista daqueles que agem”.14 E Haber­
mas prolonga sua reflexão sobre Vico fazendo dele, não o precursor dos
“tecnólogos”, mas bem mais um representante do “diálogo”: “Para Vico, a
retórica sabe que as verdades fecundas na prática têm como meta obter
habilmente o consenso de todos. É a "aparência" que toma a verdade no senso
comum dos cidadãos que debatem publicamente".15
Esse ideal político não poderia ser recusado por uma certa concepção
moderna da crítica, que não nos vem de Descartes, mas muito mais do século
XVIII, o das Luzes e de Kant em particular: é a crítica concebida como “uso
público da razão”, como "publicidade" (Oeffentlichkeit).16 Ora, essa concepção
moderna da crítica tem de pressupor também a concepção. É por isso que, na
“querela entre os Antigos e os Modernos”, Vico não é nem do tempo de Descartes
nem do tempo de Aristóteles, ele é mais profeta de seu tempo - um tempo que
é talvez ainda o nosso, na medida em que ele não é nem o dos Modernos nem o
dos Antigos, mas o do ideal da síntese. É aliás assim que A. Pons nos apresenta
a intenção de Vico: "A esperança que ele confessa é a de realizar a síntese daquilo
que o método dos Antigos e o dos Modernos têm de melhor, pedindo aos
Modernos para se comprometerem de novo nas direções indicadas pelos Antigos
e cedo demais abandonadas, sem renunciar por isso a explorar os territórios
novos triunfalmente conquistados’’.17 E só se pode subscrever a questão que
segue imediatamente: “A conciliação entre as duas culturas é possível?”

1252
Para tentar responder a essa questão, talvez fosse preciso primeiro
precisar e limitar seu alcance com relação ao projeto específico da Scienza
nuova. O De ratione anuncia realmente à sua maneira o princípio cardeal da
Scienza nuova, o verum factum, que foi posteriormente desenvolvido no De
Antiquissima. Este princípio é enunciado assim por Vico no capítulo IV de O
método dos estudos de nosso tempo, a propósito do método geométrico
(analítico) introduzido pelos Modernos na física:

Nós demonstramos as coisas geométricas porque as fazemos; se pudéssemos demonstrar


as coisas físicas, nós as faríamos.18

É principalmente com relação a essa frase que o aviso dado sobre Vico
por Hannah Arendt poderia pretender ter uma certa pertinência. Há antes de
tudo a idéia de que o método geométrico é infecundo, porque ele é analítico e
não sintético. Dito de outra maneira, as verdades da geometria estariam já
contidas dentro da primeira verdade, enquanto maior, de um silogismo. Elas
não trazem conseqüentemente nenhuma informação verdadeiramente nova.
Mas em seguida e sobretudo, há a idéia de que as verdades da geometria estão
certas de fato de que elas correspondem a alguma coisa que só é construída
por nós. Ora, a natureza é obra de Deus. Podemos certamente compreender o
que nós próprios fazemos (está aí o sentido do princípio verum factum); mas
não podemos compreender o que é a obra de um outro entendimento diferente
do nosso - e a fortiori o que é a obra de entendimento divino, de um
entendimento infinito. Nesse caso, o princípio verum factum valeria também,
por direito, para a história que, diferentemente da natureza, podemos conhecer
na medida em que nós próprios a fazemos.
Vico supunha com efeito que a história era domínio da criação humana
por excelência - o que é aliás típico dos pensamentos da Aufklarung - e que,
em certa medida, a história poderia em princípio ser conhecida por nós. Porque
essa é uma concepção moderna, dever-se-ia por isso ver aí um racionalismo
tecnicista? Ora, isso suporia da parte de Vico ele considerar que o domínio da
prática humana possa ser objetivado sob as leis gerais do entendimento. Não
se trata disso. Para Vico, o domínio da prática humana é eminentemente o das
ações caprichosas e das opiniões instáveis. Só a inteligência prática, entendida
no sentido de uma phronêsis, pode se ajustar aos entrelaces complexos da
existência e ao mundo mutável dos assuntos humanos. É por isso que o
princípio - certamente moderno - verum factum deve também se conciliar
com o princípio clássico da prudência. Dentro da linguagem da epistemologia
contemporânea inspirada em Dilthey para as ciências humanas, diríamos que
é preciso “compreender" antes de poder “explicar”.
Não há na verdade, no De ratione, uma grande lição de Vico, cuja
pertinência poderia já ser experimentada dentro do quadro de uma reflexão
sobre o método das ciências humanas? Pois o princípio verum factum, se for
pelo menos bem compreendido, não tem no fundo nada a ver com um modelo
tecnológico: ele supõe com efeito uma orientação metódica do conhecimento,

1253
que não é a objetivação própria das ciências da natureza, mas a auto-reflexâo
própria das ciências do espírito. Essa implicação é importante para o método
das ciências humanas e, singularmente, no caso das ciências históricas. Pois a
auto-reflexão faz sinal em direção a um saber de si que só pode ser retros­
pectivo e voltado para um anterior. Nessa medida, o conhecimento da história
não poderia, sob pena de inconseqüência, ser concebido sobre o modelo de um
saber normológico, isso é, de uma ciência capaz de enunciar “leis” invariantes,
válidas para o passado assim como para o futuro, como pode pretender o
conceito de leis da natureza. Que possa haver um domínio autônomo de
conhecimento científico, cujos princípios metodológicos são específicos e não
se submetem aos critérios de cientificidade das ciências da natureza é o que
atestará além disso, mais de um século após Vico, a fundação da hermenêutica
moderna em Dilthey.19 Entretanto, o método apoiado no hermenêutico é ele
próprio fundado sobre o movimento reflexivo sugerido pela tópica e supõe
uma intersubjetividade que é igualmente antecipada pelos modelos da retórica
e da dialética antigas.20 Como A. Pons escreve em sua introdução a O método
dos estudos de nosso tempo, “o tempo da prudência voltou”. Mas isso ainda
não deve ser entendido como um “retorno aos gregos”; isso deveria sobretudo
significar que a “ciência nova” de Vico, como a ciência hermenêutica da Escola
histórica alemã,21 conserva necessariamente vínculos com o classicismo. Vico
não se contentava certamente em reativar um elemento do método dos
Antigos. Ele anunciava também explicitamente um novo conhecimento, uma
“ciência nova”, que todavia não se identifica nem se reduz ao elemento das
ciências modernas da natureza, porque ela procede não da observação mas do
questionamento e porque ela não é mais “saber de objetivação”, mas “saber
de reflexão”. Vico pode também nos lembrar isso.

Jean-Marc f e r r y .

NOTAS
1) Vico detinha na época a cátedra de Retórica, da qual A. Pons faz a observação de que
era “a mais mal paga e a menos honorífica’'. Pois ela "desempenhava, na Universidade de
Nápoles, o papel de uma matéria preparatória aos estudos "profissionais", isso é, Teologia,
Direito e Medicina" (introdução de A. Pons a O m é to d o d o s e stu d o s d e n o sso tem p o , pág. 187.).
2) Trata-se da abreviação tradicional utilizada para o D e n o s tr i te m p o ris stu d io r u m
ra tio n e (cf. as indicações esclarecedoras de A. Pons, notadamente no prólogo e nas notas
bibliográficas).
3) A S c ie n z a n u o va p r im a foi publicada em 1725 e a S c le n z a n u o va se c u n d a em 1774.
4) G. Vico, op. cit., pág. 221.
5) A. Pons precisa a esse respeito (cf. n. 2, pág. 280) que se trata do método cartesiano,
tal como em particular ele está exposto em a L ó g ica d e P orto-R oyal.
6) Vico distingue, pela análise do método dos estudos modernos, entre os in stru m e n to s
que não sejam conceituais, como a nova crítica, a Análise, a Geometria, a Química e a Espagíria,
seja técnicas, como o microscópio, o telescópio, a bússola; os a u x ílio s, em segundo lugar, que
não sejam culturais, como os tratados da Antiguidade, seja materiais, como a imprensa, seja

1254
i n s t i t u c i o n a i s , c o m o a f u n d a ç ã o d a s u n i v e r s i d a d e s ; a fin a lid a d e, e m t e r c e i r o l u g a r , q u e é a
v e rd a d e ; “ É a v e r d a d e e s ó e la q u e , e m n o s s o s d ia s , é p e r s e g u id a , c u ltiv a d a , h o n r a d a p o r to d o s .”
7) M. Guéroult, Vico: a queda da recusa cartesiana na Itália, em H istó ria d a h is tó r ia d a
filosofia, livro 1, Paris, Aubier-Montaigne, 1984, págs. 226 e segs.
8) H. Arendt, Le concept d’histoire, em L a c rise d e la cu ltu re. Paris, Callimard, 1972,
pág. 79.
9) A tópica é o procedimento retórico que consiste em partir de tó p ic o s do senso comum
(lu g a res-co m u n s) para elevar progressivamente as consciências e a opinião às verdades univer­
sais. Aristóteles preconizava utilizar a tópica a serviço da dialética.
10) Tenhamos cuidado com o fato de que para K a n t, ao contrário, o “procedimento
crítico" (ou “movimento reflexivo") consiste em partir do particular (o real, a imagem) em
direção a um universal (o conceito) que não é nunca dado - como na estética - , enquanto o
“procedimento dogmático” (ou “movimento determinante"), próprio aos métodos matemáticos,
consiste no movimento inverso, ou seja, em subentender o particular sob um universo já dado.
Foi por isso que H. Arendt pôde religar a p h r o n ê sis de Aristóteles (e seu procedimento tópico)
ao movimento reflexivo kantiano (e seu procedimento crítico).
11) Vico é perfeitamente claro sobre esse ponto: “(...) os dois métodos de raciocínio são
defeituosos, o dos adeptos da tópica porque eles aceitam muitas vezes o falso, o dos adeptos da
crítica porque eles recusam-se a acolher também o verossímil” (pág. 229). E, em pouco mais
acima: “Nós dizemos que a crítica nos faz dizer a verdade e que a tópica nos toma eloqüentes.”
1 2 ) G . V ic o , p á g . 2 2 9 .
13) G. Vico, pág. 240.
14) J. H a b e rm a s , L a d o c trin e c la s s iq u e de Ia P o l i t i q u e d a n s se s ra p p o rts a v e c la
p h i l o s o p h i e s o c i a l e e m T h éorie e t pra tiq u e, t. 1, P a r i s , P a y o t , 1 9 7 5 , p á g . 9 9 .
15) J. Habermas, ib id em .
16) Cf. sobre esse ponto J. Habermas, L ’e s p a c e p u b lic , Paris, Payot, 1978.
17) A. Pons, introdução a L a m é th o d e d e s é tu d e s d e n o tre lem p s, pág. 190.
1 8 ) G . V ic o , p á g . 2 3 1 .
19) W. Dilthey, L e m o n d e d e 1'espiril, Paris, Aubier-Montaigne, 1947; e também do
mesmo autor, I n tr o d u c tio n à l'étu d e d e s S cien ces h u m a in es, Paris, PUF, 1942.
20) Cf. H. G. Gadamer, Hegel und die antike Dialetik, em H eg e lstu d ien , t 1, 1961,
igualmente do mesmo autor, Rhetorik, Hermeneutik und Ideologiekritik, em H e r m e n e u tik u n d
Id e o lo g ie k ritik (ob. coi.), Frankfurt, 1971. E ainda, J. Habermas, T h eo rie d e s k o m m u n ik a tiv e n
H a n d eln s, t. 1, introdução, Frankfurt, 1981.
21) R. Aron, L a p h ilo s o p h ie c ritiq u e d e l ’h isto ire (1938), Paris, Vrin, (reed.).

• Opere, ed. F. Nicolini, 8 vol., Bari, 1914-1941; Oeuvres choisies, trad u ção e a p re se n ta ç ã o d e J.
Chaix-Ruy, P aris, 1946; La Science nouvelle (Scienza nuova, 1944), trad. A. D oubine, P aris, 1953;
Príncipes de la philosophie de 1’hisloire, trad u zid o s da Scienza nuova p o r J. M ichelet, P aris, 1927,
reed . 1963; Vie de Giambattista Vico écríte par lui-même, seguida de Lettres e de La méthode des
études de notre temps, ap rese n ta ção , trad u ção e n o ta s p o r Alain P ons, P aris, 1981.

► A. P o n s, N a tu re e t h isto ire ch ez Vico, em Études philosophiques, n ? 1, 1961; M. G u éro u lt,


vico; le re n v e rs e m e n t d u re fu s c a rté sie n e n Italie. P ré lu d e à u n e p h ilo so p h ie de 1’h isto ire d es
id ées, em M. G u é ro u lt, Histoire de l’histoire de la philosophie, vol. 1, P aris, 1984.

Jean-Marc FERRY

1255
VOLNEY, Constantin François de CHASSEBOEUF, conde de, 1757-1820
A lei natural, ou Catecismo do cidadão, 1793

Esta obra, que foi um sucesso considerável, representa um espécime do


gênero político produzido pela Revolução Francesa: tratava-se de oferecer, em
analogia com a instrução religiosa, um “catecismo do cidadão”, contendo as
resposta a todas as perguntas relativas à coisa política. A dimensão política é
também relacionada a uma concepção geral do homem: o subtítulo é, aliás,
“Princípios físicos da moral". É, nesse sentido, alguma coisa como o “necessá­
rio a ser pensado” do homem político nascido da grande Revolução. É portanto
uma ocasião privilegiada para apreender a forma prática e teórica do humanis­
mo político que constitui a filosofia revolucionária.

Uma antropologia política

A estrutura da obra esclarece-se à luz desse projeto: tudo parte da


definição de “a lei natural” (capítulo 1 da qual se encontram analisados os
“caracteres” (cap. II). Isto permite explorar os “princípios da lei natural com
relação ao homem” (cap. III) - o que atesta que a visão humanista estabelece-
se sobre um postulado naturalista. Nesse ponto, coloca-se uma elucidação das
“bases da moral” (cap. IV), das “virtudes individuais” (cap. V-IX), depois
“virtudes domésticas” (cap. X), que fazem transição para as “virtudes sociais”
e a “justiça” (cap. XI): o “homem político" encontra-se portanto deduzido do
homem moral - como este é do Homem e esse último da Natureza. Desde
então é só preparar o programa de “desenvolvimento das virtudes sociais”
(cap. XII), por onde o ideai revolucionário reúne-se ao ideal de certa forma
inerente à Natureza, transformando a “lei natural” que rege o homem em
imperativo de transformação social.

O postulado: a “lei natural"

Por "lei natural”, Volney entende “a ordem regular e constante dos fatos,
pela qual Deus rege o universo; ordem que Sua sabedoria apresenta aos
sentidos e à razão dos homens, para servir a suas ações de regra igual e comum
e para guiá-las, sem distinção de país nem de seita, para a perfeição e a
felicidade” (1,1). Ainda assim, a etimologia “leitura” é alegada como que para
ligar a lei inerente à natureza, à lei humana, caracterizada como “uma ordem
ou uma proibição de agir” (I, 2). A Natureza remete com efeito, não somente
ao universo e ao “mundo material”, mas também à “potência que anima, que
move o universo”, assim como às “operações parciais dessa potência em cada
ser ou em cada classe de seres” (I, 3) - por onde se reconhece a equação da
Natureza e da potência construída pela tradição da filosofia política, desde
Hobbes, Crotius e Spinosa até Rousseau. Volney liga além disso a natureza à
ordem, jogando com os dois sentidos de arrumação e de comando - o que

1256
parece definir a problemática central do Catecismo: “Porque todos esses fatos
e seus semelhantes são imutáveis, constantes, regulares, resultam para o
homem muitas verdadeiras ordens para se conformar a elas” (1,4). Isto implica
enfim uma espécie de finalismo eudemonista, a Natureza se propondo a
realizar a felicidade do homem, o que cria para esse último obrigação de se
conformar a esse programa, realizando-o.
A “lei natural” serve de emblema para esse fim. Da mesma forma é preciso
conhecer seus caracteres, como que para se conformar a essa pedagogia: ela é
“inerente à existência das coisas” (II, 6), deriva “imediatamente de Deus”, é
"una e universal”, “uniforme e invariável” (II, 7), “evidente” e “palpável”,
“racional”, “justa” (II, 8), "pacífica e tolerante”, “igualmente benfazeja para
todos os homens”, de modo que ela “abraça tudo o que as outras leis civis e
religiosas têm de bom e útil” (II, 9), sendo portanto a "única suficiente”. Volney
enuncia, nesses dez epítetos, a base metafísica de sua política.
De um lado, ela tem como pressuposto a idéia de um Deus, definido como
“agente supremo” e “motor universal e idêntico" (II, 10); do outro, ela é
definida como "formando nela mesma ”uma ciência exata" (II, 13). Ela age
sobre o homem pelo efeito de "um preceito fundamental e único”, “a conser­
vação de si mesmo” (III, 14). Mas aí verifica-se que a natureza é exatamente
um “comando”, já que esse princípio ordena ao homem conservar-se através
da dor e do prazer. Mas, como a máquina pode errar, por “ignorância” ou por
"paixão”, um complemento é necessário, a "instrução”. Nesse ponto intervém,
pela primeira vez, a “sociedade”, apresentada como “uma necessidade, uma lei
que a natureza lhe impõe pelo próprio fato de sua organização” (III, 18), desde
a sexualidade até o “estado de sociedade”, passando pelos “co-sentimentos” -
o que leva a desacreditar do “estado selvagem", puro estado de imperfeição.
Volney chega a afirmar a harmonia do egoísmo de autoconservação e da
vocação social que é a pedra angular de seu “naturalismo social”.
Está aí, da mesma forma, a medida da moral, tanto do “homem indivíduo”
como do “homem social”: basta observar para esse fim que o “bem” e o “mal”
só designam o que, respectivamente, “tende a conservar e a aperfeiçoar o
homem” e a “destruí-lo” e a “deteriorá-lo” (IV, 22). O "pecado”, dentro dessa
religião natural, não pode designar outra coisa senão "o que tende a perturbar
a ordem estabelecida pela natureza para a conservação e a perfeição do homem
e da sociedade" (IV, 23). Mais positivamente, a virtude é “a prática das ações
úteis ao indivíduo e à sociedade” (IV, 24), o vício reduzindo-se às ações
“nocivas”.
Esse “utilitarismo social” combina estranhamente a referência às virtudes
platônicas - ciência, moderação e coragem são indicadas como “virtudes
individuais” —com um pragmatismo social: a atividade ou “amor ao trabalho”
e o “emprego do tempo” e a “limpeza” completam na verdade a lista (V, 26). É
uma dietética e uma higiene que preparam o indivíduo para sua vocação social.
É para isso, também que o encaminham “as virtudes domésticas” - economia,
amor paternal, amor conjugal, amor filial, amor fraterno e “realização dos
deveres de senhor e de servidor" (X, 47). É que Volney está persuadido de que

1257
“as virtudes individuais”, por sua própria meta, “a conservação do homem que
as pratica”, “tendem àquelas da família e da sociedade, que se compõem da
soma reunida dos indivíduos” (IX, 46).

O naturalismo social

Já é tempo de definir a sociedade, da qual se mostrou a função de


acabamento da finalidade antropológica. A definição que dela foi dada sublinha
essa continuidade apregoada entre a ordem natural - sob seus dois aspectos,
individual e social: “Toda reunião de homens vivendo juntos sob as cláusulas
de um contrato expresso ou tácito, que tem como meta sua conservação
comum” (XI, 54). Assim, a teoria do contrato é invocada para fundar isso que
deve ser pensado: a realização da “conservação” no plano social - em comum.
Por aí, a sociabilidade vê destinar-se uma necessidade pela própria lei natural.
Esta se exprime, todavia, como princípio propriamente social sob o termo
de “justiça”, compreendendo “todas as virtudes da sociedade” (XI, 54), princí­
pio soberano de utilidade social de certa forma, resumindo-se ao axioma: “Não
faças aos outros o que não queres que te façam” (XI, 55) — fórmula que,
transpondo positivamente a fórmula kantiana, exprime-se em princípio de
produção da utilidade social.
Os direitos fundamentais de igualdade, de liberdade e de propriedade são
apresentados como os três “atributos físicos, inerentes à organização do
homem”, pelos quais a lei natural “prescreve” a justiça ao homem. É preciso
compreender por aí que os homens tendo sido feitos iguais, livres e autônomos,
“não se devem nada”, “não têm o direito de pedir nada uns aos outros, a não
ser que eles se tornem valores iguais, que a balança do dado e do devolvido
esteja em equilíbrio”, o que se chama precisamente de “justiça”. Revelar-se-á
essa vontade de caracterizar os “direitos” de maneira totalmente diferente do
que como dos princípios ou dos deveres em si, mas exatamente como necessi­
dades inerentes à mecânica da “natureza humana” no sentido mais literal do
termo. O “direito” só designa "em seu verdadeiro sentido" "justiça” no sentido
de “faculdade recíproca” (XI, 57).
O último capítulo do Catecismo exprime essa aposta de derivação
utilitarista da sociabilidade. Isto se opera por u ma espécie de lógica do cálculo.
A "caridade ou amor ao próximo” constitui um preceito e uma “aplicação” da
lei natural “por motivo de igualdade e de reciprocidade”, isso é, por reci­
procidade dos serviços e evitação dos prejuízos (XII, 58). Dessa vez, a caridade
é apresentada como a forma positiva do imperativo que a justiça enuncia
negativamente: não somente, portanto, “Não faças aos outros o mal que não
gostarias de receber deles”, mas também: “Faze aos outros o bem que gostarias
de receber deles” (XII, 59). Por aí, o preceito da "lei natural” reúne-se ao
Evangelho. Porém, ele especifica a exigência evangélica referindo-se a essa
sabedoria da Natureza, melhor garantia contra a “opressão”. A virtude política
é aquela da “pátria”, “comunidade dos cidadãos”, que, reunidos por sentimen­
tos fraternos e necessidades recíprocas, fazem de suas forças respectivas uma

1258
força comum" (XII, 67): por aí, o “amor ao próximo” é “estendido a toda uma
nação”.
O Catecismo pode desde então ser concluído por um enunciado do dever
social, resumido “na prática desses axiomas baseados sobre nossa própria
organização: conserva-te; instrui-te; modera-te; vive para teus semelhantes, a
fim de que eles vivam para ti” (XII, 69). Vê-se que o imperativo social é o
“axioma” final dessa cadeia de razões da qual o imperativo individual de
conservação é o primeiro elo: esse é realmente o círculo que pretende realizar
a demonstração de Volney.

O interesse e a importância do Catecismo do cidadão

O interesse do Catecismo do cidadão é indicado antes de tudo por seu


próprio contexto: tendo aparecido em pleno Terror, seu eudemonismo otimis­
ta, contrastando com o clima de guerra civil, marca um dos picos da ambição
filosófico-política da Revolução. Seu sucesso considerável indica que alguma
coisa, dentro da consciência revolucionária, reconhecer-se-ia nele. Quanto a
seu próprio autor, ele foi pouco recompensado, sendo preso por supostas
simpatias realistas e só foi salvo no 9 Thermidor. Tornado par da França, sua
obra colocou em primeiro plano “a lei natural” em detrimento do Catecismo
do cidadãol
De fato, Volney erigiu uma ponte entre a filosofia naturalista do século e
o acontecimento político maior que foi a Revolução: exprimia assim a ambição
alimentada por ela de ser uma fonte histórica da ordem do mundo ao mesmo
tempo que a realização do destino do homem contido na Natureza. Foi essa
ambição que procurava se cristalizar dentro dessa espécie de teodicéia política
da “Lei natural”.
Foi sob essa forma que a Revolução recebeu a mensagem da filosofia
política: Volney vulgarizava na verdade, com uma certa felicidade, a fórmula
apropriada à função de pedagogia política da época, um mundo de conceitos
transformados em “idéias-forças”. Mas o Catecismo não se limita a colocar o
Contrato Social como diálogo ao alcance do cidadão: ele inclina o espírito,
para isso apresentando de certo modo sob a forma de uma ciência popular do
homem e da política o que, na grande filosofia política clássica, se apresentava
sob forma de princípios. Por aí, o homem da Revolução se vê redefinido como
“animal político” (no sentido do zôon politicon aristotélico), já que esse está
inserido na própria Natureza: somente, uma certa teoria moderna da “or­
ganização” continuou daí em diante o processo para dar seu fundamento
antropológico a essa consciência de ruptura histórica. O Catecismo do cidadão
exprime desse modo a forma ideológica sob a qual o cidadão saído da ordem
política instaurada pela Revolução redefinia seu pertencimento e sua visão do
mundo: a obra de Volney, ao mesmo tempo que ele a formula, remete ao
membro da Cidade nova a imagem da qual ele tem necessidade para habitá-la
- por onde se notifica uma das funções mais concretas da obra política,
expressão de um momento da consciência histórica. O que, dentro da grande

1259
obra política, é crítica e elucidação conceituai, torna-se aqui doxa, “opinião
verdadeira”, extraída dos princípios elucidados noutro lugar, colocada e trans­
mitida como tal: é por aí que ela age diretamente sobre a história política.

• La loi naturelle ou catéchisme du citoyen, ]! edição, agosto de 1974, reeditada em Oeuvres


complètes, 1821; editada separada La Loi naturelle ou Príncipes physiques de la Morale (nossa
edição de referência, Badouin frères, 1826). Conferir também Les Ruines ou Méditations sur
les révolutions des empires (1791).

► Eugène Berger, Volney, étude sur sa vie et sur ses oeuvres (1852) e o útil Notice sur la vie
et les écrits de Volney de A. Boussange (1821); cf. também J. Barni, Les Moralistes français du
X V Iif siècle (1873).

Paul-Laurent ASSOUN.

VOLTAIRE, François Marie Arouet, 1694-1778


Cartas filosóficas, 1734

Publicadas em 1734, porém várias vezes reeditadas durante a vida do


autor com adjunções importantes, as Cartas filosóficas (Lettres philosophi-
ques) são sem dúvida a melhor introdução ao pensamento político de Voltaire.
Aos olhos de nossos contemporâneos, Voltaire passa muitas vezes por um
polemista mais do que por um filósofo, e retém-se hoje em dia de sua obra nada
mais do que algumas idéias que passam por bastante curtas, mesmo quando
se reconhece sua importância histórica (a tolerância, a visão “burguesa” da
sociedade). Nas Cartas filosóficas, essas idéias têm ainda todo seu frescor e
elas são expressas sob uma forma leve e agradável, através de uma descrição
da sociedade, dos costumes e da literatura inglesa; mas as Cartas... têm
também o mérito de situar claramente as motivações do debate da época entre
as Luzes e a tradição, mostrando como a procura racional da felicidade ia em
par com o enfraquecimento das paixões religiosas. Para apreender todo o seu
alcance, é preciso antes compreender o que a Inglaterra representava para um
francês de 1730, para reconstituir em seguida a visão do homem que as
subentende, que é menos simples e mais original do que parece.

1260
A motivação da partida de Voltaire para a Inglaterra (1726) foi sua
querela com o cavalheiro de Rohan-Chabot (que o mandara espancar, depois
encarcerar), mas ele não era o único a procurar em Londres uma nova
concepção de sociedade, já que foi seguido algum tempo depois pelo Abade
Prévôt (1728) e mais tarde por Montesquieu (1729). O que surpreende então
os homens de letras franceses é antes o contraste entre as duas sociedades,
que parece nitidamente em vantagem para a Inglaterra, economicamente
próspera e, depois dos tratados de Utrecht (1713-1715), politicamente podero­
sa; para a elite esclarecida, a superioridade da Inglaterra vem de seu regime
político (estabilizado pela “Revolução Gloriosa” de 1688) e, sobretudo, de sua
recusa da intolerância e das querelas religiosas (que permite aos homens
concentrar seus esforços sobre este mundo nosso); inversamente, o enfraque­
cimento da França nesse início do século XVIII deve igualmente traduzir um
vício interno de sua constituição política e social. Além disso, a Inglaterra tem
também um papel importante nas Ciências e nas Artes (mesmo a França
gozando ainda nesse plano de um prestígio justificado, adquirido sob o reinado
de Luís XIV): a sociedade nova (o mundo “burguês”, como dir-se-á mais tarde)
não está portanto necessariamente voltada ao grisalho e à mediocridade. O
primeiro mérito de Voltaire é o de ligar essas duas constatações levando-as a
uma fonte única (a emancipação do espírito humano): é o que faz a importância
histórica das Cartas filosóficas. É preciso guardar-se entretanto de exagerar a
“anglofilia” de Voltaire: o que o interessa no exemplo inglês é que ele mostra
a possibilidade de uma vida mais racional, mas nada diz que,, para melhorar,
a França deve sempre usar os mesmos meios que a Inglaterra.

A tolerância e a religião

As primeiras Cartas colocam ênfase sobre a originalidade da religião


inglesa. A Inglaterra não é somente um país protestante dotado de uma Igreja
“estabelecida”; é pois o país da tolerância, que se traduz pela proliferação de
“seitas”: "Um inglês, como homem livre, vai para o Céu pelo caminho que lhe
agrada" (V, pág. 14). Voltaire não ignora, é claro, que a religião anglicana seja
amplamente majoritária (não há mais que uma vigésima parte da nação que
esteja fora do âmbito da Igreja dominante), o que ele explica por motivos muito
simples: “Não se pode ter emprego nem na Inglaterra nem na Irlanda, sem estar
entre o número dos fiéis anglicanos”; contudo, ele escolhe começar sua série
de cartas por uma descrição da seita mais estranha, a dos Quakers (I-IV), para
mostrar bem que, mesmo quando ela é compatível com a predominância de
uma Igreja majoritária, a tolerância religiosa modifica profundamente a posi­
ção da religião, relativizando seus dogmas. O “bom quaker” é uma figura cara
a Voltaire, porque ele lhe permite abalar o orgulho dos cristãos ortodoxos,
mostrando que, para as Luzes assim como para a moralidade, nada os autoriza
a se acreditarem superiores aos outros homens. Os quakers recusam o batismo
e a comunhão (I) e não têm padres (II): eles podem, com razão, apoiarem-se na
autoridade da Escritura; do mesmo modo a bizarria de seus costumes, de suas

1261
maneiras e de seus usos repousa de fato em motivos filantrópicos e, como tais,
racionais (II); quanto à crença deles na inspiração dos fiéis, ela repousa de fato
numa filosofia semelhante à de Malebranche (filósofo ao mesmo tempo ra-
cionalista e cristão) (II).
Resta dizer, entretanto, que Voltaire é pessoalmente indiferente à fé dos
quakers e que sua proposta não é defender um cristianismo expurgado de suas
“superstições” mais visíveis; o que se trata de mostrar é que a tolerância
(resultado feliz, mas não-deliberado, das lutas religiosas inglesas) dá à ação dos
homens seu verdadeiro objeto, o melhoramento da condição humana pelo
desenvolvimento das atividades “úteis”: “Entrem na Bolsa de Londres, esse lugar
mais respeitável do que muitas das cortes; vocês verão ali reunidos os deputados
de todas as nações para a utilidade dos homens. Ali, o judeu, o maometano e o
cristão tratam-se uns aos outros como se fossem da mesma religião e só dão o
nome de infiéis àqueles que pedem falência; ali, o presbiteriano fia-se no
anabatista e o anglicano recebe a promessa do quaker” (VI, págs. 17-18).
Esse célebre texto exprime primeiramente, é claro, a confiança em si do
"burguês”, convencido de que o mundo do qual ele é herdeiro é absolutamente
superior aos modelos que se poderia tentar opor-lhe, quer venham da nobreza
(ver X, “Sobre o comércio”) ou da religião. Porém, precisamente, se ele é assim,
é porque o comércio e, mais genericamente, a busca de uma felicidade razoável
só podem prosperar ao preço de uma modificação radical das idéias e dos
valores dominantes. Por esse fato, não se poderia superestimar a importância
da última carta (XXV) “Sobre >os Pensamentos do Sr. Pascal”, que, longe de
ser uma obra-prima, resgata de fato o alcance real da emancipação encontrada
na Inglaterra.
O ataque de Voltaire contra Pascal toca no essencial: a análise da condição
humana a partir do dogma da Queda (I), a insistência sobre a “duplicidade” do
homem (IV), a critica do “divertimento” (XXII-XXIV). À apologética pascalrna,
Voltaire opõe primeiro uma antropologia naturalista que vê na problemática da
Queda e da salvação um índice de orgulho-, a condição dos homens, como a dos
outros seres, é só um aspecto da ordem da Natureza, ela não traduz um desígnio
particular de Deus. Mas essa defesa paradoxal da Providência só faz preparar o
elogio do gosto dos homens pela ação, que é uma disposição natural e boa em
si mesma. Enquanto para Pascal o "instinto secreto que leva (os homens) ao
divertimento e à ocupação vem do ressentimento com sua miséria contínua”, ele
é, para Voltaire, a melhor garantia de nossa felicidade (XXIV); isso porque, contra
Pascal, Voltaire considera que nada é melhor para o homem do que fundar sua
ação na preocupação com o futuro-, “É preciso, bem longe de se lastimar,
agradecer ao autor da natureza por ele nos ter dado esse instinto que nos leva
sem cessar para o futuro. O tesouro mais precioso do homem é essa esperança
que nos adoça nossos pesares e que nos pinta prazeres presentes. Se os homens
fossem bastante infelizes para só se ocuparem com o presente, não se semearia
mais, não se construiria mais, não se plantaria mais, não se providenciaria nada;
faltaria tudo em meio a esse falso prazer” (XXII).
Em todos esses pontos, Voltaire é um discípulo de Locke, que tinha

1262
mostrado como a inquietude (uneasiness) é o estímulo que leva o homem a
agir e a transformar o mundo (cf. J. Locke, Essai philosophique conernant
1’e ntendementhumain, livro II, cap. XXI, 2842). Mas o próprio Locke inscreve-
se dentro de uma corrente geral que, de Malebranche a Leibniz, opera uma
derrubada, que não é necessariamente deliberada, do pensamento cristão.
Para essa, cuja fonte principal está aqui em Santo Agostinho, a inquietude é o
fruto da Queda, que conduziu à separação entre o finito (a criatura que caiu)
e o infinito (o Criador); mas ela pode muito bem ser percebida como o meio
que a Providência usa para determinar os homens “à sua própria conservação
e à continuidade de sua espécie” (Locke, op. cit., cap. XXI, 34). De fato, como
Jean Deprun mostrou, os filósofos franceses do fim dos séculos XVII e XVIII
oscilam entre Malebranche e Locke, entre a imagem da miséria da criatura
decaída e a, quase já “utilitarista”, do desenvolvimento da indústria humana
(cf., sobre todos esses pontos, Deprun, 1979, passim). Dentro desse contexto,
Voltaire, que difunde as idéias de Locke na França, é também na época das
Cartas filosófícas, aquele que as separa mais radicalmente de suas origens
cristãs: não é mais sobre um “cristianismo razoável" mas sobre um simples
deismo que se funda agora o elogio da vocação industriosa do homem (na
Inglaterra mesmo, porém, a razão inspira os unitarianos, que, negando a
Trindade, são, entre as seitas cristãs, a mais afastada do dogma (VII)).

A França e a civilização inglesa

A Inglaterra é para Voltaire, portanto, o exemplo de uma sociedade que


soube se emancipar das opressões que a tradição impõe à atividade humana. Isto
não significa absolutamente que Voltaire seja “anglófilo”. Antes de tudo, na
verdade, sua visão da história inglesa está muito afastada da ortodoxia Whig: ele
é bastante indulgente com os Stuarts e não tem nenhum entusiasmo pela
“Revolução Gloriosa” (cf. IV, pág. 13: “O infeliz James II, que como quase todos
os Stuart era um composto de grandeza e de fraqueza, perdeu seu reino sem que
se possa dizer como isso aconteceu”). A principal vantagem da história da
Inglaterra sobre a história da França é, para ele, que na Inglaterra as lutas civis
e religiosas voltaram-se em vantagem da liberdade, enquanto na França elas
nunca tiveram nenhum efeito benéfico (cf. principalmente Carta VIII); mas para
compreender o infortúnio francês é preciso reportar-se a outros textos e sobre­
tudo à Henriade (1728), cuja elaboração já estava muito avançada quando
Voltaire partiu para a Inglaterra. O drama da França (e, mais genericamente, da
Europa continental) vem ao mesmo tempo das querelas religiosas e das ambições
políticas da Igreja e, mais genericamente, como mostrará o Essai surles moeurs
(1756), ele tem sua fonte no conflito que o cristianismo introduziu no âmago da
Cidade, por sua pretensão a se impor como autoridade política; desse fato advém
que o problema central da política racional não é tanto o de limitar o poder dos
reis mas muito mais o de neutralizar a religião para superar os conflitos que ela
provoca, o que, na França, só pode ser feito pela autoridade real (da qual
Henrique IV permanece a melhor encarnação). A solução inglesa repousa na

1263
subordinação rigorosa da Igreja oficial à autoridade civil (V) e sobre a partilha
do poder entre o Parlamento “árbitro” e o rei “super-árbitro” (VIII): ela é
eminentemente favorável à liberdade, mas nada indica que ela possa ser univer­
salizada. De fato, no que concerne à França, a política constante de Voltaire foi
a de se apoiar, contra a aristocracia e a Igreja, sobre correntes reformadoras da
monarquia, salvo para defender o rei contra a contestação dos parlamentos
(explica-se assim facilmente sua hostilidade pelas teses de Montesquieu e, mais
tarde, sua ajuda a Maupeou.
Da mesma forma, o elogio que Voltaire faz, nas Cartas filosóficas, da
filosofia e da literatura inglesas é sobretudo destinado a mostrar quais são as
tarefas dos “Filósofos”, mas isso não implica admiração incondicional.
O único autor que é objeto de um elogio sem restrições é Locke (aquele de
O entendimento humano e não aquele dos ensaios sobre O governo civil),
porque ele definiu a orientação geral da nova filosofia, eliminando os falsos
problemas resultantes da tradição metafísica: “Tantos argumentadores tinham
feito o romance da alma, um sábio veio e fez modestamente sua história.” Em
compensação, a célebre comparação entre Newton e Descartes (XIV), se ela
conclui pela superioridade absoluta da filosofia experimentalista de Newton, não
deixa de colocar a balança igual entre os dois pensadores, reconhecendo a
Descartes um mérito decisivo e mesmo incomparável para a emancipação do
espírito humano: “Eu não creio que se ouse comparar, na verdade, em nada sua
filosofia com a de Newton: a primeira é um ensaio, a segunda é uma obra-prima.
Mas aquele que nos colocou sobre o caminho da verdade talvez mereça aquele
que foi depois no fim dessa carreira" (X, pág. 58; um pouco antes, pág. 57),
Voltaire zomba da vaidade nacional dos ingleses, que fazem de Newton (“o
Hércules da fábula, a quem os ignorantes atribuíam todos os feitos dos outros
heróis”). Da mesma maneira, a apresentação cheia de simpatia que Voltaire faz
do teatro e da poesia ingleses (XVIII-XXII) não o impede de maneira nenhuma de
admirar as letras francesas; ela o conduz aliás a uma comparação entre a sorte
dos homens de talento nos dois países, que, apesar da sua aprovação pela
consideração da qual o "mérito” é objeto na Inglaterra é também muito elogiosa
para com a política de proteção das artes de Luiz XIV (XXIV).

O classicismo de Voltaire

A leitura das Cartas filosóficas deve ser completada por aquela do Siècle
de LouisXIV (Século de Luís XIV), onde a ligação de Voltaire com a França
aparece plenamente, e por aquela do Essai sur les moeurs (Ensaio sobre os
costumes), onde ele expõe sua “filosofia da história”. Voltaire é um filósofo do
Progresso, que vê na história humana o teatro de um conflito permanente
entre a “razão” e a “superstição”, mas, contrariamente a Condorcet, ele não é
por isso um teórico do progresso ao infinito, pois o modelo do progresso
científico é menos importante para ele do que a oposição eterna entre a
“Natureza” e o “costume”: o que nós podemos esperar é que a fortuna e o
esforço dos homens permitam, aqui ou ali, a emergência das formas racionais

1264
de vida em sociedade, mas, da mesma maneira que as artes e as letras sào
definitivamente reguladas pela idéia clássica do Belo, o melhor estado social
não pode ser nada além da realização parcial de um estado “natural” (logica­
mente insuperável) de perfeição (ver as relações entre “Natureza” e “Progres­
so” no século XVIII, ver Ehrard, 1963, 1981, cap. XII).
Este “classicismo” conduz ele mesmo à posição filosófica particular,
irredutível às formas posteriores do racionalismo. À influência de Locke,
dominante na época das Cartas filosóficas, é preciso acrescentar a de Marle-
branche, menos conhecido mas cada vez mais importante nas obras posteriores
(cf. sobre esse ponto: Pomeau, 1956, 1969; Alquié, 1974). O “deísmo” vol-
tairiano não se funda somente sobre a filosofia de Newton, mas também sobre
a doutrina de Malebranche, para quem a existência do mal é a contrapartida
da perfeição dos caminhos da criação. Para Malebranche, Deus só pode agir
sob regras gerais, é por isso que ele não pode evitar o mal e a injustiça dos
quais são vítimas criaturas particulares. Daí decorrem para ele duas idéias das
quais Voltaire tirará conseqüências anticristãs: de um lado, temos o direito e
o dever de melhorar a criação, suprindo a vontade divina pela ação racional
(notadamente técnica); do outro lado, o mal parece de certa forma instrans-
ponível e não podemos fundar nossas esperanças nem sobre a idéia leibniziana
do “melhor dos mundos” nem sobre a crença em um interesse de Deus por
cada indivíduo. Esta última tese, desenvolvida de modo sério no Poème sur le
désastre de Lisbonne (Poema sobre o desastre de Lisboa) (1756) e de modo
divertido em Candide (1759), fixa os limites da defesa voltairiana da natureza
humana, que se opõe antecipadamente a todas as tentativas para fazer do mal
o instrumento da Providência ou da Razão, agindo dentro da história.
Por sua apologia da destreza humana, Voltaire legitima o ativismo das
Luzes e, no Ensaio sobre os costumes, ele abre o caminho para as grandes
filosofias posteriores da história; contudo, e é isso que faz o encanto próprio
de sua obra, Voltaire não é nem Hegel nem Condorcet as idéias que adquiri­
ram a força da evidência no século XIX estão nele in statu nascendi (em estado
de nascimento) e seu alcance é ainda limitado com referência à Natureza.

• Citamos aqui a edição de J. Van den Heuvel, em Voltaire, M élan ges, Paris, GalÜmard, Bibl.
de la Pléiade, 1961.

► F. Alquié, L e c a rté s ia n is m e de M alebran ch e , Paris, 1975, J. Vrin; Ernst Cassirer, L a


p h ilo s o p h ie d e s L u m iè r e s (1932), trad.. Paris, Fayard, 1970; Jean Deprun, L a p h ilo so p h ie d e
1'in q u iétu d e a u X V I l f siè c le , Paris, J. Vrin, 1979; Jean Ehrard, L ’id é e d e n a tu re e n F ra n ce
d a n s la p r e m iè r e m o itié d u X V I l f siè cle. Paris, 1963, reed., ParisCenebra, Slatkisne, 1981;
Peter Gay, V o lta ire’s p o litic s , Princepton, 1959; René Pomeau, L a re lig io n d e V oltaire, Paris,
Nizet, 1956, reed. 1969; P o litiq u e d e Voltaire, A. Colin, 1963.

Philippe RAYNAUD

1265
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sasi
WEBER, Max, 1869-1924
E conom ia e sociedade, 1 9 2 2

Entre todas as grandes obras da sociologia do começo do século XX,


Economia e sociedade brilha com um fulgor singular: enquanto o valor da
obra de Pareto permanece contestado e os trabalhos de Durkheim parecem,
freqüentemente demais, marcados pelo contexto político e epistemológico de
seu tempo, as análises de Max Weber sobre o capitalismo, sobre a sociologia
da religião ou sobre a significação da burocratização das sociedades modernas
não cessaram de informar o pensamento científico e político contemporâneo.
A força particular de Economia e sociedade deve-se primeiro ao fato de
esse livro retomar alguma das ambições essenciais das grandes filosofias da
história do século XIX (repensar a história universal, estabelecer a originali­
dade da civilização ocidental) dentro de um contexto que se quer não-es-
peculativo, liberado de toda pretensão em reduzir a história real à realização
de um destino predeterminado, quer esse decorra da ação da providência ou
do desdobramento das "leis da história”. A história humana aparece aqui como
una, na medida em que a ciência sociológica estabelece o valor universal de
suas categorias e mostra a constância de certos tipos de atividade humana e
de legitimação; os temas dominantes de Economia e sociedade (oposição da
tradição e da modernidade; inteligibilidade da história humana até em seus
aspectos aparentemente irracionais) prolongam portanto a reflexão dos filóso­
fos do século XIX, mas o esforço de neutralidade axiológica que traduz a
oposição entre "fatos” e “valores”, a preocupação de compreensão do sentido
visado pelos atores da história e, sobretudo, a recusa em deduzir do sistema
conceituai da sociologia geral uma periodização única da história universal já
evocam as exigências das ciências sociais contemporâneas. Com Max Weber, a
sociologia apresenta-se como a herdeira da dupla preocupação de racionali­
dade e de sensibilidade na diversificação dos fatos históricos que define uma
das linhas de evolução do pensamento racionalista (de Herder a Hegel) mesmo

1267
quando recusa violentamente a pretensão especulativa de uma reconciliação
da humanidade consigo mesma através da História.
Compreende-se, dessa maneira, por que a obra de Max Weber é tão
sugestiva para nós contemporâneos. Filosoficamente, Weber afirma, ao mesmo
tempo que a possibilidade de uma ciência social objetiva e rigorosa, a ruína
das grandes ambições da filosofia racionalista, quer seja sobre o plano teórico
(já que a história real não pode ser deduzida das categorias filosóficas) ou
sobre o plano prático (já que a pluralidade dos sistemas de valores interdita
toda esperança de uma discussão racional sobre esse assunto). Mais profunda­
mente ainda, talvez, reconhecendo dentro da burocratização da sociedade o
fenômeno maior de nosso tempo —paralelo à predominância crescente da
racionalidade instrumental —Max Weber introduziu um tema nas ressonân­
cias filosóficas e sociológicas múltiplas: as análises de Economia e sociedade
estão no pano de fundo tanto do marxismo “crítico” e das análises da Escola
de Frankfurt (cf. em Lukács os temas da “reificação” e do "fetichismo”; em
Horkheimer e Adorno a idéia da derrubada da Aufklarung na dominação da
racionalidade instrumental ou a análise do crescimento do “mundo adminis­
trado”) quanto das críticas pós-fenomenológicas da "técnica” e do artificialismo
moderno e prenunciam as pesquisas dos sociólogos contemporâneos sobre o
fenômeno burocrático. A sociologia de Weber, parece, além disso, fazer eco à
sua reflexão filosófica já que essa, excluindo que a razão possa colocar fins,
parece fundar a confusão entre a Razão e a racionalidade instrumental.
Entretanto seria lamentável reter apenas de Economia e sociedade os
temas que parecem anunciar as pesquisas e as controvérsias contemporâneas;
apesar de sua não-conclusão (a obra foi publicada em 1922, dois anos depois
da morte de Weber), ela se apresenta como uma obra fortemente coerente, até
mesmo sistemática: é portanto a partir da reconstituição do projeto do autor
e da coerência interna da obra que se pode compreender plenamente a
importância das análises de Weber —que são talvez mais ricas ainda do que
deixa supor o eco delas em seus sucessores.

A METODOLOGIA DE MAX WEBER:


UMA EPISTEMOLOGIA NEOKANTIANA

Em seus grandes textos metodológicos (Weber, 1951, trad., 1965), Max


Weber sempre insistiu sobre o fato de que, se ele se opunha a certas correntes
das ciências sociais de seu tempo, era menos sobre o conteúdo das análises do
que sobre a posição destinada aos conceitos sociológicos e sobre a concepção
das tarefas das ciências históricas e sociais. Segundo ele, por exemplo, o
materialismo histórico não pecava somente por sua superestimativa do papel
da economia dentro da história mas príncipalmente porque se achava, em seu
princípio, uma “ilusão dedutiva”: para mostrar que a economia é “em última
análise” o “fator causai decisivo”, o marxismo oscila entre um funcionalismo
econômico (que postula antes de toda análise concreta que todos os elementos
da realidade social concorrem para a manutenção ou a expansão de um modo

1268
de produção) e uma redução arbitrária da importância do trabalho científico
que conduz a tratar “tudo o que dentro da realidade histórica não pode ser
deduzido de elementos econômicos como "acidental", que por essa razão seria
sem significação científica" (Weber, 1951, pág. 168, trad., pág. 149). Também
por esse mesmo fato, não poderia tratar-se, salvo para recair nas mesmas
ilusões, de substituir a explicação econômica da realidade social por um outro
princípio que se teria por sua vez como o fator causai decisivo dentro da
história. O marxismo é dessa forma apenas uma forma característica da
transposição, no interior das ciências sociais, de uma ilusão especulativa cujo
modelo acabado é a filosofia hegeliana, alicerçada, segundo Weber, sobre o
projeto de uma dedução da realidade a partir do conceito (cf. Weber, 1951,
págs. 15-16, Raynaud, 1984). Isto não impede de dissociá-los da posição
filosófica que lhes confere o “materialismo histórico”.
A atitude de Max W'eber é nesse ponto reveladora de dois aspectos
essenciais de sua orientação científica: uma capacidade notável para integrar
análises de origens extremamente diversas, sem ecletismos mas também sem
preconceitos, vem nele, junto com uma referência, implícita mas constante, a
uma epistemologia neokantiana, tão próxima da Escola de Marbourg quanto
da filosofia crítica da história de Dilthey.
No fundamento da epistemologia weberiana, há com efeito a vontade de
preservar, contra a coisificação dos conceitos científicos, o valor de método das
diferentes categorias em uso dentro das ciências sociais. A tarefa da sociologia
do direito, por exemplo não é de deduzir o conjunto dos fenômenos jurídicos
presentes dentro de uma comunidade do “espírito do povo” caro a Hugo e a
Savigny, mas sim de compreender a evolução jurídica comparando-a a um
modelo conceituai necessariamente distinto da realidade social. Para Weber,
assim como para Hermann Cohen ou Ernst Cassirer, o conceito não é uma
reprodução da realidade a conhecer, mas um meio para o pensamento intro­
duzir pelo pensamento a unidade dentro dos fenômenos, meio cujo valor
heurístico depende de sua aplicabilidade à realidade concreta. A mesma
orientação encontra-se na primeira parte, metodológica, de Economia e Socie­
dade: as análises de Max Weber visam primeiro permitir uma desfetichização
das categorias científicas que, restituindo ao pensamento sua obra própria (a
construção dos conceitos e dos métodos, a procura do sentido da atividade
social), evita da mesma forma a ilusão especulativa (se o conceito é uma
construção ideal, seria inútil pretender deduzir dele a realidade empírica).
Essa concepção da ciência determina a posição das grandes categorias
da metodologia de Weber (o tipo ideal, a causalidade histórica) assim como sua
concepção própria da compreensão e da explicação.
A categoria central da metodologia sociológica é a do tipo ideal que designa
uma "construção intelectual”, uma "utopia” que se obtém acentuando-se pelo
pensamento elementos determinados da realidade, mas dos quais não se encon­
tra nunca equivalente na empiria. Concebido desse modo, o método dos tipos
ideais permite fundar conceitos singulares, cuja razão de ser é permitir o "estudo
das individualidades históricas” (Weber, 1951, págs. 190-191, trad., págs. 180-

1269
181). A construção dos tipos ideais é por excelência a tarefa da sociologia e ela
não se reduz de maneira nenhuma a uma pesquisa indutiva daquilo que pode
ser comum a diversos conjuntos históricos. O problema é, na verdade, o de
pensar o concreto histórico e cultural, elucidando sua significação, e não
simplesmente o de esclarecer sobre regularidades estatísticas: “Quanto mais
lidamos com uma classificação de processos que se manifestam dentro da
realidade sob uma forma maciça, mais também lidamos com conceitos genéricos.
Ao contrário, quanto mais se dá uma forma cultural a elementos que constituem
o fundamento da significação cultural específica das relações históricas com­
plexas, mais também o conceito ou o sistema de conceitos toma o caráter do tipo
ideal. Realmente, a meta da construção de conceitos típicos ideais consiste, em
toda parte e sempre, em tomar rigorosamente consciência não do que é genérico,
mas, ao contrário, da natureza particular dos fenômenos culturais” (Weber,
1951, pág. 202, trad., 1965, pág. 197).
A extensão do método do tipo ideal é portanto considerável, até mesmo
indefinida, desde o instante em que se obedece a duas regras de coerência
lógica e de irredutibilidade da realidade ao conceito. Pode-se, por exemplo,
construir tipos ideais do desenvolvimento, mas sua função não será a de
determinar a “necessidade histórica” de certas evoluções (a passagem da
sociedade medieval para o capitalismo, por exemplo) mas, ao contrário, de
estender (pela comparação do desenvolvimento “real” com o desenvolvimento
“típico”) nosso conhecimento das sociedades reais; imaginemos, por exemplo,
que se construísse um tipo ideal do desenvolvimento e da acumulação dentro
de uma sociedade “organizada” rigorosamente segundo o princípio do “arte­
sanato”, o interesse seria o seguinte, no que concerne a nossa compreensão
do futuro das sociedades medievais: “Para saber se o curso empírico do
desenvolvimento foi efetivamente o mesmo que aquele que se construiu, é
preciso verificá-lo com a ajuda dessa construção tomada como meio heurístico,
procedendo a uma comparação entre o tipo ideal e os "fatos". Se o tipo ideal
foi construído “corretamente” e se o curso real das coisas não corresponder
ao curso típico ideal, teríamos a prova de que a sociedade medieval não foi
rigorosamente “artesanal” sob certos aspectos" (Weber, 1951, pág. 203, trad.,
1965, pág. 198).
Compreende-se portanto qual é a relação complexa de Max Weber com
Marx: Marx colocou-se questões de uma importância científica considerável,
suas construções têm uma fecundidade considerável se se as toma como tipos
ideais e se são “utilizadas somente para compará-las com a realidade”, mas elas
representam um “perigo” desde que se creia ver nelas “construções tendo uma
validade empírica” ou “forças que agem” “reais (o que quer dizer na verdade:
metafísicas)” (Weber, 1951, pág. 205, trad., 1965, pág. 200). Foi portanto de
maneira justa que um crítico marxista de Weber pôde-se referir à oposição
entre Weber e Marx como um conflito sobre a noção de necessidade histórica:
em Weber “a sociedade capitalista moderna (...) não pode aparecer como o
fruto necessário de processos históricos conhecidos e cuidadosamente delimi­
tados, ela permanece para o investigador a conclusão amplamente contingente

1270
de processos múltiplos cujos vínculos recíprocos não podem ser estabelecidos
com exatidão”, enquanto, ao contrário, “a explicação marxista (...) apresenta o
capitalismo como o fruto necessário da dissolução da formação feudal” (Vin-
cent, 1973, pág. 166). É preciso acrescentar, entretanto, que está aí a principal
falha de Marx aos olhos de Weber: para esse, tipo ideal do desenvolvimento e
história são "duas coisas rigorosamente distintas” (Weber, 1951, pág. 204,
trad., pág. 198) que não se poderia confundir sem cair de novo do método para
a ontologia.
O correlato dessa concepção é evidentemente o de reconhecer um limite
intransponível entre sociologia e história: é somente a história que trata com
as consecuções singulares que conduziram realmente de uma sociedade a
outra, sem que a sociologia possa jamais reuni-las às pretensas "leis da
história”. Um livro como Economia e sociedade não dá portanto uma inter­
pretação da história universal como processo único, mesmo quando visa
explicitar as categorias pressupostas pela ciência histórica.
Isto não significa que não haja relações recíprocas entre sociologia e
história. As análises célebres de Weber sobre a importância da causalidade
dentro das ciências históricas visam ao contrário mostrar como o recurso à
explicação causai (necessariamente implicado pela pesquisa histórica desde o
instante em que o historiador interroga-se sobre as conseqüências de um
acontecimento) tem também um valor de verificação para o sociólogo; a
comparação do curso “típico ideal” da história e de seu curso real permite
estabelecer o valor objetivo das análises sociológicas passando da com­
preensão do sentido visado pelos atores para a explicação das regularidades
sociais: a compreensão deve ser verificada pela explicação porque, nelas
mesmas, as análises compreensivas só têm um valor hipotético (cf. sobre essas
questões Aron, 1970, pág. 240-242).
O hiato entre sociologia e história não é por isso superado: dentro da
sociologia da religião, a análise do papel da ética protestante dentro da gênese
do capitalismo permite verificar a afinidade estabelecida, no plano das signifi­
cações, entre certos elementos da doutrina calvinista e uma atitude inédita a
respeito do mundo natural e humano, mas ela não convida de maneira
nenhuma a apresentar a formação do capitalismo como um processo dedutivel
da evolução das crenças religiosas. Ao contrário, mostrando o caráter epigonal
(muito afastado do espírito do protestantismo original) do puritanismo “ca­
pitalista”, a análise de Max Weber contribui para destruir a ilusão retrospectiva
da necessidade.
Max Weber, mesmo se distingue, às vezes, entre causalidade histórica
(análise da consecução singular que conduz a um acontecimento) e causali­
dade sociológica (análise das regularidades dentro dos fenômenos sociais),
insiste sempre sobre a posição de simples probabilidade que tem a causalidade
dentro das ciências sociais; mais profundamente, ele tende sempre a fazer a
causalidade desempenhar um papel bastante inabitual, para estabelecer a parte
irredutível da indeterminação que o sábio reencontra dentro da análise dos
fatos sociais: o sociólogo não pode passar da compreensão à explicação a não

1271
ser relativizando suas análises; o historiador que estabelece a importância
determinante de um acontecimento pressupõe que o vir a ser posterior não era
“fatal”, já que é esse acontecimento que é sua origem ou pelo menos sua
condição. (Sem a vitória de Maratona, a liberdade grega não teria podido
sobreviver). (Sobre todos esses pontos, cf. Aron, 1967, págs. 511-519, e
Raynaud, 1984, passim).

OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA SOCIOLOGIA

0 individualismo metodológico

No começo de Economia e sociedade, Max Weber define a sociologia como


“uma ciência que se propõe a compreender por interpretação (deutend vers-
tcherí) a atividade social e assim explicar causalmente (ursàchlich erklàren) seu
desenvolvimento e seus efeitos” (Weber, 1955, p. 1, trad., 1971, pág. 4).
Tal definição pressupõe ao mesmo tempo uma concepção particular do
ponto de vista sociológico (o individualismo metodológico) e uma tomada de
posição sobre a natureza dos problemas colocados pelos limites da objetivi­
dade dentro das ciências sociais. Definir a sociologia como uma interpretação
da atividade social é realmente, como mostra luminosamente o Ensaio sobre
algumas categorias da sociologia compreensiva (1913), pressupor que, em
última análise, deve-se considerar “o indivíduo isolado e sua atividade” como
a “unidade de base” da sociologia, já que o indivíduo é o “único portador de
um comportamento significativo”. A crítica da “fetichização” dos conceitos
científicos (que, como já vimos, estava na base do “criticismo” weberiano)
encontra aqui um eco na definição da atividade do sociólogo; as próprias
instituições humanas só podem ser compreendidas se se reencontrar por trás
de sua estrutura “coisificada” a atividade que lhes deu nascimento: “Conceitos
como aqueles de "Estado", de “associação”, de “feudalidade" ou outros
semelhantes designam, de maneira geral, do ponto de vista da sociologia,
categorias representando formas determinadas da cooperação humana; sua
tarefa consiste em reduzi-las a uma atividade “compreensível”, o que quer dizer
sem nenhuma exceção, à atividade dos indivíduos isolados que participam
dela" (Weber, 1951, pág. 439, trad., pág. 345).
Com uma acuidade verdadeiramente admirável, Max Weber exprime
assim o vínculo logicamente necessário entre os dois aspectos essenciais de
sua concepção da ciência, que, além do neo-kantismo, o religam ao fundo
comum da filosofia política moderna: a prioridade da compreensão sobre a
explicação causai e o individualismo metodológico. Se eu quiser apreender o
sentido subjetivamente visado pelos homens em suas atividades, devo neces­
sariamente partir da significação do comportamento dos indivíduos; se quiser
compreender o sentido das instituições aparentemente as mais estranhas à
minha cultura, devo remontar à atividade significativa que lhes deu nas­
cimento, aos motivos e às razões que conduziram os homens a reconhecer-lhes
um valor. Inversamente, se se dá (como a sociologia durkheimiana) de imediato

1272
como objeto o resultado “coisificado" da atividade, é-se sempre, pouco ou
muito, levado a reduzir a atividade dos indivíduos e a significação que os
homens deram a suas ações, ou a suas crenças, a simples condições funcionais
da vida social.
A dificuldade essencial do ponto de vista do “individualismo metodológi­
co” é evidentemente que em um certo momento ele reencontra necessaria­
mente estruturas coletivas (Estado, família, nação etc.) que, longe de aparece­
rem como o resultado da atividade individual, impõem-se à totalidade dos
indivíduos como uma referência necessária: “A sociologia não pode, mesmo
para seus próprios fins, ignorar as formas de pensamento coletivas que são da
competência de outras atividades de pesquisa” (Weber, 1955, pág. 6, trad.,
1971, pág. 12). Weber reconhece portanto que a sociologia compreensiva deve
dar lugar às representações “holistas” (Louis Dumont), por motivos que se
devem ao mesmo tempo à estrutura da linguagem comum, ao fato de que os
homens orientam sua atividade em função das estruturas “coletivas” (que têm
“uma importância causai muito considerável, muitas vezes mesmo dominante,
para a natureza do desenrolar-se da atividade dos homens reais”), e enfim, à
potência heurística dos modelos “organicistas” ou funcionalistas de inter­
pretação da sociedade (que vão da "totalidade" ao indivíduo) (Weber, 1955,
págs. 6-7, trad., 1971, págs. 12-13).
Compreende-se assim as objeções que a metodologia de Max Weber não
cessou de levantar nos outros representantes das ciências sociais contemporâ­
neas. Dentro da perspectiva que domina a sociologia francesa (de Augusto Comte
a Durkheim e, mais recentemente, a Louis Dumont), poder-se-ia por exemplo
objetar a Weber que o "individualismo metodológico” não reconhece a primeira
exigência da sociologia, que é a de admitir que seu objeto (a sociedade) preexiste
aos indivíduos. Esta objeção possível não é ignorada por Weber:
“Na verdade, é só neste momento (com a interpretação compreensiva)
que começa o trabalho da sociologia (tal como nós o entendemos aqui). Com
efeito, no caso das "estruturas sociais" (ao contrário dos “organismos”),
estamos em condições de levar para além da constatação de relações e regras
(“as leis”) funcionais alguma coisa a mais que permanece eternamente
inacessível a toda “ciência da natureza” (no sentido em que ela estabelece as
regras causais de processos e de estruturas e “explica” a partir daí os
fenômenos singulares): trata-se da compreensão do comportamento dos indi­
víduos singulares que aí participam, quando não podemos compreender o
comportamento das células, por exemplo, mas apreendê-lo somente funcional­
mente e determiná-lo em seguida segundo as regras de seu desenvolvimento.
Essa aquisição suplementar é no entanto paga bem caro, pois é obtida ao preço
do caráter essencialmente hipotético e fragmentar dos resultados aos quais se
chega através da interpretação. Todavia, é precisamente nisso que consiste a
especificidade do conhecimento sociológico" (Weber, 1955, pág. 7, trad., 1971,
págs. 13-14).
A autonomia da sociologia supõe portanto, segundo Weber, uma diferença
instransponível entre as ciências humanas e as ciências da natureza. É preciso

1273
além disso observar que essa posição tem uma significação essencialmente
metodológica; não se trata tanto, com efeito, de dizer que os indivíduos preexis-
tem à sociedade quanto de compreender que, para o entendimento cientifico,
1) é possível conferir um sentido às estruturas coletivas sem remontar-se à
atividade da qual elas nasceram; 2) o fato de que os fenômenos humanos têm um
sentido é, antes mesmo da existência da sociedade constituída, a primeira
evidência que se impõe àquele que tentar estudar uma sociedade.
É evidentemente impossível, dentro dos limites desse estudo, reconstituir
em toda sua amplidão a problemática epistemológica de Max Weber; nós nos
ateremos, portanto, a quatro observações:
1) A prioridade da compreensão e do individualismo metodológico estão
apoiados na transposição, dentro da epistemologia das ciências sociais, do
modelo criticista que já encontramos: a atitude compreensiva é uma condição
transcendental do conhecimento dos fatos sociais, mais do que uma conse­
qüência dos caracteres da realidade a conhecer;
2) A compreensão deve tornar possível a explicação (causai) que sozinha
pode verificar a objetividade das construções científicas: é portanto exatamente
o ideal de uma ciência “objetiva” que orienta a pesquisa;
3) O “individualismo metodológico”, longe de traduzir um preconceito
“etnocentrista” que impediria a sociologia compreensiva de compreender a
especificidade das culturas “pré-individualistas” (não-ocidentais), é, ao contrário,
para Weber a condição da constituição de uma sociologia “universalista”. Isso
não será possível se se contentar em tratar imediatamente como “dados” os fatos
sociais que caracterizam essa ou aquela cultura: a descentralização da visão
sociológica supõe que sejam colocados em evidência, por um esforço reflexivo,
os limites que sua posição impõe ao observador; é esse esforço que traduzem os
textos em que Weber analisa as dificuldades que o sociólogo encontra quando
não é capaz de “compreender com uma inteira evidência muitos "fins" últimos e
“valores” segundo os quais a atividade de um indivíduo pode se orientar
intelectualmente'' (Max Weber, 1955, pág. 2, trad., 1971, pág. 5);
4) Mais genericamente, a sociologia compreensiva supõe uma elucidação
reflexiva dos limites da compreensão que conduz a explicitar a importância
para as ciências da atividade dos processos não-compreensíveis, mas simples­
mente “explicáveis” (“mecânicos” ou provados de significação inteligível). A
oposição entre “compreensão” e “explicação” não remete simplesmente aqui a
dois momentos da pesquisa, mas como em Jaspers, a uma delimitação entre o
que, dentro das ciências humanas, depende da significação e do que se
aparenta com processos naturais.

Tipos de atividade e relações sociais

A célebre classificação weberiana dos tipos de atividades responde à dupla


exigência epistemológica de prioridade da compreensão e de universalidade.
A delimitação do que é atividade social, antes de tudo, evoca de novo as
exigências da compreensão; para que um comportamento seja uma atividade,

1274
é preciso realmente que “o agente ou os agentes comuniquem-lhe um sentido
subjetivo” e a atividade “social” é a “atividade que, segundo seu sentido visado
(sublinhado por nós, Ph. R.) pelo agente ou agentes, se reporta ao comporta­
mento de outros, com relação aos quais orienta-se seu desenvolvimento”
(Weber, 1955, pág. 1, trad., 1971, pág. 4).
Para que haja atividade social propriamente dita é preciso, portanto, que
o indivíduo confira ele próprio uma certa significação a suas relações com o
outro, o que implica que todas as relações entre os homens não são atividades
sociais: o contato ocasional (a colisão entre dois ciclistas, para retomar o
exemplo de Weber), a influência das “massas” sobre o indivíduo (cf. a Psicolo­
gia das multidões de Gustave Le Bon) ou a imitação (cf. as análises de Gabriel
Tarde) só se tornam atividades sociais quando os indivíduos relacionam-se
significativamente a essas situações (por exemplo: referindo-se a uma crença
comum, a uma "moda” ou uma “tradição” etc.). Evidentemente,Weber não
pretende aqui que o mundo social seja inteiramente determinado por compor­
tamentos significativos (ou que as regularidades "naturais” não tenham impor­
tância"), mas lembra simplesmente que é a presença da finalidade intencional
ou da significação que define a especificidade da sociologia (seu “problema
central”, “o que é por assim dizer constitutivo da ciência que ela é”, ao mesmo
alcance sociológico" que (o que) produz uma “atividade social no sentido
verdadeiro do termo” (sobre todos esses pontos, cf. Weber, 1955, págs. 11-12,
trad., 1971, págs. 20-21).
O requisito de universalidade supõe aliás que a compreensão estende-se
a todas as culturas; é preciso, portanto, que haja uma certa unidade nas
significações que determinam a atividade social. Weber distingue portanto
quatro tipos de atividade, sem excluir a possibilidade de que sua tipologia
possa ser melhorada ou enriquecida (já que se trata de tipos ideais, é evidente
que a realidade é mais rica do que á tipologia, mas é sua potência heurística -
que se verifica quando se compara a atividade real aos tipos de atividade —que
constitui sua justificação):

- A ação racional com relação a um fim visa à eíicáciae supõe a procura de uma certa
concordância entre meios e fins; é, escreve Raymond Aron, “a do engenheiro que constrói
uma ponte, a do especulador que se esforça em ganhar dinheiro, a do general que quer
obter a vitória” (Aron, 1967, pág. 500).

- A ação racional em termos de valor supõe ao contrário a prioridade absoluta dos


“valores” que determinam a ação, quaisquer que possam ser suas conseqüências; “Age
de maneira puramente racional em termos de valor aquele que age sem levar em con­
sideração as conseqüências previsíveis de seus atos, a serviço como está de sua convicção
sobre o que lhe aparece como ordenado pelo dever, a dignidade, a beleza, as diretrizes
religiosas, a piedade ou a grandeza de uma "causa”, qualquer que seja sua natureza"
(Weber, 1955, pág. 12, trad., 1971, págs. 22-23). Esse tipo de ação pode ser determinado
por sistemas de valores extremamente diversos: sentimento aristocrático da honra (no
caso do homem que se bate em duelo ou do capitão que se deixa naufragar com seu
navio) ou, ao contrário, ética “universalista” (cf. as análises da moral da convicção em o
sábio e o político).

1275
- 0 comportamento tradicional e o comportamento “afetivo" têm em comum situarem-
se “no limite e muitas vezes além daquilo que é orientado de maneira significativamente
consciente” (Weber, 1955, pág. 12, trad., 1971, pág. 22) (é aliás por essa razão que Weber
fala aqui indiferentemente de “comportamento” e de “ação”). O comportamento “tradi­
cional", com efeito, fundado sobre a crença passiva na validade daquilo que sempre
existiu, “é, na verdade, muitas vezes, só uma maneira morna de reagir a excitações
habituais, que se obstina na direção de uma atitude adquirida no passado"; de maneira
análoga a ação “afetiva" ou emocional pode ser “apenas uma reação sem freio a uma
excitação insólita” (Weber, 1955, pág. 12, trad., 1971, pág. 22).

As quatro formas de ação não podem, portanto, ser colocadas es­


tritamente sobre o mesmo plano: a ação racional com relação a uma meta e a
ação racional com relação a um valor participam eminentemente da atividade
(a ação é orientada aí segundo uma significação inteligível) e dependem
portanto eminentemente da compreensão; a ação tradicional e a ação afetiva,
em compensação, são apenas “ações” e se situam nas fronteiras da atividade e
da simples regularidade observável. Porém é digno de nota que Weber, para
determinar as relações entre o comportamento afetivo e a ação racional, faça
apelo à distinção do consciente e do inconsciente: “Nós temos de tratar com
uma sublimação quando a atividade condicionada pelos afetos aparece como
um esforço "consciente" para aliviar um sentimento; nesse caso, ela se
aproxima na maior parte do tempo (mas nem sempre) de uma “racionalização
em termos de valor”, ou de uma atividade com finalidade, ou dos dois ao
mesmo tempo" (Weber, 1955, pág. 12, trad., 1971, pág. 22).
Se se lembrar do que Weber diz da especificidade da sociologia, é
difícil não concluir de tudo isso que é somente com a ação racional (em
termos de valor ou de finalidade) que temos de lidar plenamente, com o que
constitui o problema constitutivo da sociologia compreensiva, os outros
tipos de comportamento (tradicional ou afetivo) aparecem mais como o
limite da atividade - qualquer que seja por outro lado sua importância
causai dentro do real; em compensação, desde o instante em que se confere
à tipologia uma significação histórica, ou mesmo que se esforça por recons­
tituir idealmente as condições de passagem de uma forma de ação a outra
(ou da predominância, dentro de uma sociedade dada, de um tipo de
atividade sobre as outras), torna-se difícil não representar a passagem para
formas de atividade "racionais” (em termos de finalidade ou de valor) como
um progresso, da necessidade à liberdade, da reação mecânica à ação
significativa ou do “em si” ao “para si".
A importância desse problema aparece já dentro da análise dos tipos
(logicamente) elementares de relações sociais (cf. Aron, 1967, págs. 551-554).
Weber é levado a distinguir dois modos de integração dos indivíduos às
estruturas coletivas, que evocam a célebre distinção estabelecida por Tõnnies
entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft) (Tõnnies, 1887,
trad., 1944).
“Chamamos de "comunalização" (Vergemeinschsftung) uma relação so­
cial quando, e enquanto, a disposição da atividade social apoiar-se (...) no

1276
sentimento subjetivo (tradicional ou afetivo) dos participantes de pertencerem
a uma mesma comunidade (Zusammengehõrigkeit).
Chamamos de “sociabilização” (Vergesellschaftung) uma relação social
quando, e enquanto, a disposição da atividade social alicerçar-se num com­
promisso (Ausgleich) de interesses motivados racionalmente (em valor ou em
finalidade) ou sobre uma coordenação (Verbindung) de interesses motivados
da mesma maneira" (Weber, 1955, pág. 21, trad., 1971, pág. 41).
A oposição entre comunidade e sociedade corresponde portanto, no
essencial, à distinção entre as condutas afetivas e tradicionais, de um lado, e a
racionalidade, do outro. A racionalização das relações sociais é portanto
imediatamente colocada como um elemento de discriminação entre os tipos de
estruturas coletivas. Por pouco que se reconheça que a predominância pro­
gressiva da “sociabilização” sobre a “comunalização” é característica da his­
tória ocidental, compreender-se-á que a sociologia de Weber é inseparável de
uma reflexão sobre o vir a ser da Razão. Ver-se-á por outro lado que as
sociedades modernas caracterizam-se pela expansão da racionalidade ins­
trumental muito mais do que pela emancipação, o que não é sem importância
para a elucidação da relação entre ação racional e comportamento afetivo ou
tradicional.

A SOCIOLOGIA POLÍTICA E AS FORMAS DE DOMINAÇÃO

Reconhece-se, em geral, à sociologia weberiana da “dominação” (Herr-


schaft) o mérito de ter lembrado contra o “economismo” do materialismo
histórico (pelo menos em suas formas “vulgares”), a especificidade e a irredu-
tibilidade da ordem política. Não se trata entretanto de substituir a economia
por um outro princípio tomado por sua vez como "fator causai decisivo”; de
um lado, como nós já vimos, isso seria recair na “ilusão dedutiva” do idealismo
e, por outro lado, talvez sobretudo, isso seria desconhecer as tarefas específicas
da sociologia compreensiva: a distinção entre “política” e “economia” deve
primeiro corresponder a uma discriminação entre dois tipos de atividades
definidas uma e outra pelo sentido que lhes dão os atores: “Uma primeira
distinção aparece desde então entre a ordem da política e a da economia. A
economia reporta-se à satisfação das necessidades como à meta que determina
a organização racional da conduta, enquanto a política é caracterizada pela
dominação exercida por um ou por alguns homens sobre os outros homens”
(Aron, 1967, pág. 555).
O fato maior, para a sociologia política, será portanto a relação de
dominação e seus correlatos: a obediência, as razões normativas que motivam
a subordinação dos “dominados” e os tipos de legitimidade que fundamentam
as pretensões dos "dominantes”.
Assim concebida, a dominação não se reduz de maneira nenhuma ao
simples exercício de uma potência de fato (potência econômica, por exemplo)
e ela não é de maneira nenhuma abolida pela existência de formas jurídicas
“contratuais” ou “igualitárias”. A obediência “voluntária” ou resultante de um

1277
“contrato” não deixa de ser obediência; a própria “democracia” supõe a
dominação: “O fato de o chefe e de a direção administrativa de um agrupamen­
to apresentarem-se, quanto à forma, como "servidores" daqueles que eles
dominam não é de maneira nenhuma uma prova contra o caráter de “domina­
ção”. Falar-se-á de novo, em particular naquilo que concerne às situações
materiais, de fato daquilo que se chama de “democracia”. Um mínimo de poder
de decisão e, conseqüentemente, nessa mesma medida, de “dominação”, deve
lhe ser concedido na maioria dos casos" (Weber, 1955, pág. 124, trad., 1971,
pág. 221).
O problema da legitimidade, dentro da sociologia weberiana, reúne dessa
forma a questão central da filosofia política moderna: como se passa da força
ao direito, como a obediência torna-se um dever, por quais razões subjetiva­
mente necessárias se é conduzido a reconhecer as potências como legítimas?
A tese da autonomia da Herrschaft corresponde porém à linha dominante do
pensamento político alemão, de Pufendorf a Hegel e aos juristas do começo do
século. Entretanto, a teoria sociológica tem um objeto específico, que é o de
pensar sobre a diversidade das formas políticas (através de uma tipologia
construída por complexificação crescente de um pequeno número de tipos
fundamentais), e não simplesmente o de resgatar a estrutura geral da relação
entre sociedade e Estado.
Já que a política é definida em referência a um certo tipo de atividade e
de relação entre os homens, parece que deve haver uma certa correspondência
entre os tipos de dominação legítima e os tipos de atividade. Ora, como
Raymond Aron observa, parece que existe aqui uma dificuldade, já que Max
Weber só distingue, em geral, três tipos de dominação legitima (para quatro
tipos de atividade). Weber escreve na verdade:

Há três tipos de dominação legítima. A validade dessa legitimidade pode principalmente


revestir-se de:

1) Um caráter racional, repousando sobre a crença na legalidade dos regulamentos


retidos e do direito de dar diretrizes que têm aqueles que são chamados para exercer a
dominação por esses meios (dominação legal);

2) Um caráter tradicional, repousando sobre a crença quotidiana na santidade de


tradições válidas todo o tempo e na legitimidade daqueles que são chamados para exercer
a autoridade por esses meios (dominação tradicional);

3) Um caráter carismático, (repousando) sobre a submissão extraordinária ao caráter


sagrado, à virtude heróica ou ao valor exemplar de uma pessoa, ou ainda (emanando) de
ordens reveladas ou emitidas por essa (dominação carismática) (Weber, 1955, pág. 124,
trad., 1971, pág. 222).

“Max Weber, observa Raymond Aron, distingue quatro tipos de ação e


três tipos de dominação; por que não há conformidade entre a tipologia das
condutas e a das dominações?” (Aron, 1967, pág. 558). Para ele, se a domina­
ção tradicional corresponde evidentemente à ação tradicional e a dominação

1278
carismática à ação afetiva, a dominação racional-legal corresponde apenas à
racionalidade com relação a um fim (o tipo puro da dominação legal sendo
encarnado pela burocracia). Nada corresponderia portanto dentro da classifi­
cação das formas de dominação, à racionalidade em termos de valor.
Aron resolve a dificuldade observando que a tipologia de Weber é
flutuante (em outros textos, Weber evoca quatro tipos de validade de uma
ordem legítima que correspondem estritamente aos quatro tipos de ação; cf.
Weber, 1955, pág. 19, trad., 1971, pág. 36), o que seria devido ao fato de “Max
Weber não ter escolhido entre conceitos puramente analíticos e conceitos
semi-históricos”: “A ação wertracional, conclui ele, figura em certos casos como
um dos fundamentos da legitimidade (a honra) mas desaparece na tipologia
dos modos de dominação, porque ela não constitui um tipo abstrato” (Aron,
1967, pág. 559).
Essa interpretação, por mais sugestiva que seja, não nos parece resolver
a dificuldade, que se deve mais à relação muito particular da racionalidade em
termos de valor com a dominação; realmente, a tipologia dos fundamentos da
validade de uma ordem legítima não é mais "histórica” do que a das formas
de dominação, e, sobretudo, nada indica que as duas tipologias devam ser
estritamente idênticas ou sobrepostas. Em um caso, efetivamente, trata-se das
razões pelas quais “os agentes podem conceder a uma ordem uma validade
legítima” (Weber, 1955, pág. 19, trad., 1971, pág. 36), em outro, razões que
podem ser invocadas pelos dominantes em apoio a sua legitimidade. É porque,
de um lado, a racionalidade da dominação igual pode ser admitida tanto no
que concerne à racionalidade em (termos de) valor quanto no que concerne
à racionalidade em vistas de um fim; Weber escreve noutro lugar que dentro
da dominação legal, o direito pode ser "orientado para a racionalidade em
termos de valor (ou os dois)” (Weber, 1955, pág. 125, trad., 1971, pág. 223): a
dominação legal corresponde portanto, nesse sentido, às duas formas de ação
racional, em finalidade e em valor. Mas, por outro lado, a racionalidade em
termos de valor apresenta uma outra característica: porque ela se refere a uma
ordem absolutamente válida (superior, portanto, à ordem política) ela pode,
em certas condições, aparecer como um princípio de limitação (material e não
simplesmente formal) das possibilidades de ação dos dominantes.
É alias por isso, parece, que Weber indica (em seu texto sobre os
fundamentos da validade da ordem legítima) que “o tipo mais puro da
validade raciona! em valor é representado pelo direito natural” (Weber, 1955,
pág. 19, trad., 1971, pág. 36).
A racionalidade em termos de valor tem portanto uma importância bem
considerável para a atividade humana, muito além da feudalidade e da ética
aristocrática da honra, já que ela subentende a atividade política inspirada
pelos sistemas de valores “universalistas” (direito natural, certas formas de
cristianismo etc.). Contudo, o princípio “feudal” da honra aparece ele próprio
como um princípio de limitação (cf. Weber, 1955, págs. 148-159, trad., 1971,
pág. 262: “O contrato de ”feudo" não é um “negócio” habitual, mas uma
fraternização em um direito (livremente) desigual, que tem como conseqüência

1279
deveres de fidelidade recíprocos, os quais são fundados sobre a honra de uma
ordem (stãndisch, i.e. cavalheiresca) e estritamente delimitados).

A RACIONALIZAÇÃO DO DIREITO

Que significa, neste caso, a afinidade evidente entre a crença na legali­


dade como fundamento da legitimidade, a dominação legal, e a expansão da
burocracia (que supõe a regularidade das formas de ação e a impersonalidade
das regras)? Não se trata necessariamente, como em certos sucessores de
Weber, de trazer à luz uma hipotética tendência para a dominação total: o
conceito de totalitarismo (saído das experiências do século XX) não está no
primeiro plano da reflexão de Max Weber, que, sobre esse ponto, aparece quase
que, apesar das inquietações, como um liberal da espécie otimista (cf. Aron,
1967, pág. 568: “Ele não ignorava a necessidade de uma Constituição, de um
Estado de direito (Rechtsstaat), o valor das liberdades pessoais, talvez tivesse
sobretudo tendência, como homem do século XIX, a acreditar que estavam
definitivamente asseguradas essas frágeis conquistas da civilização política”).
Weber procura mais elucidar a significação sociológica do crescimento do
positivismo jurídico e da articulação moderna entre a referência à validade da
ordem legal positiva como padrão último de legitimidade (que não acontece
sem conformismo e sem submissão ao Estado) e a consolidação do Estado de
direito.
É aí, parece, que se pode perceber o lugar paradoxal da racionalidade
em termos de valor dentro da sociologia weberiana da dominação: a crença na
racionalidade em termos de valor, poder-se-ia dizer, tem como efeito o cres­
cimento da racionalidade em geral que, porque os conflitos entre sistemas de
valores são insolúveis, se derrama em expansão da pura racionalidade ins­
trumental.
Esse paradoxo aparece nitidamente quando se analisa essa configuração
ideológica muito particular que é o direito natural moderno, revolucionário:
“É claro que (os) postulados da igualdade formal e legal e da mobilidade
econômica contribuíram para a destruição de toda espécie de direito patrimo­
nial ou feudal e pavimentaram o caminho que leva a normas abstratas e, por
aí, à burocratização" (Weber, 1955, cap. XV, in fine). Esta análise é magis­
tralmente conduzida na Sociologia do direito, uma das partes mais sugestivas
de Economia e sociedade que trata tematicamente da racionalização do
direito, depois do direito “carismático” (revelado e portanto irracional) até o
direito moderno, racionalizado ao mesmo tempo em suas regras (rigor deduti­
vo) e no procedimento (tecnicidade crescente). O direito natural (e singular­
mente o direito natural moderno) aparece aqui sob um duplo aspecto:
- ele favorece primeiro a emancipação (como o faz a expansão da justiça
formal), limitando a dependência dos indivíduos em relação às autoridades e
minando os fundamentos dos poderes autoritários - teocráticos ou “pa-
trimonialistas”; por esse fato, também, ele favorece o declínio do direito
"feudal” ou "patrimonial” e o sucesso do ideal de racionalismo “legalista”;

1280
- o direito natural moderno é porém incapaz de sobrepujar um conflito
nascido de uma antinomia interna a seus princípios: a oposição entre direitos
formais e direitos “substanciais” conduz à ruína de todos os axiomas “metaju-
rídicos” do direito natural, tendo como dupla conseqüência o ceticismo quanto
ao valor das regras jurídicas e a submissão efetiva em relação às autoridades
“legais” (cf. sobre todos esses pontos: Weber, 1955, cap. VIII, ATB: 7). É , pois,
nesse quadro conceituai que se inscrevem as reflexões de Weber sobre as
tendências contraditórias do direito moderno, que podem conduzir tanto ao
fortalecimento da distinção entre direito público e direito privado (cap. VHl,
I, 1), quanto a seu desaparecimento dentro de um sistema em que “o corpo
inteiro das normas consiste em regulamentações” e em que “todas as formas
de direito são absorvidas pela administração e tornam-se elemento do ”gover-
no" (cap. VIII, 1, 2).
Esta última situação permanece no essencial uma hipótese teórica, mas
sua evocação permite ver como se pode ler em filigrana por trás das análises
sociológicas de Weber, os elementos de uma crítica filosófica do vir a ser da
racionalidade. A expansão da ação racional corresponde a uma visão subjeti­
vamente necessária da atividade humana (a passagem do comportamento
afetivo ou tradicional para a racionalidade marca o acesso à ação propriamente
dita) que orienta, em certa medida, o vir a ser das sociedades, mas a emanci­
pação converte-se necessariamente em racionalidade instrumental, pelo fato da
impossibilidade de uma racionalidade prática - impossibilidade da qual a
“guerra dos deuses” (o antagonismo irredutível dos diversos sistemas de
valores) é a expressão. Isto não significa de maneira nenhuma que exista uma
fatalidade do despotismo mas sim que a sobrevivência da liberdade autêntica,
se ela pressupõe a preservação das liberdades e dos “direitos do homem” (“que
dão a cada um a oportunidade de viver uma existência autêntica fora do lugar
que ele ocupa dentro da organização racional”, Aron, 1967, pág. 563), repousa
também sobre a preservação de uma criatividade que permanece no fundo
irracional.

A TRADIÇÃO, A BUROCRATIZAÇÀO E O CARISMA

Dentro da sociologia weberiana, o problema da mudança social é


pensado através de uma dupla oposição: entre tradição e racionalidade, de
um lado, e entre “quotidiano” e extraordinário, de outro. É o que explica a
importância central do tema do carisma dentro de Economia e socie­
dade: “A dominação carismática, por ser também extraordinária (Ausserall-
tágliche), opõe-se tanto à dominação racional, burocrática em particular,
quanto à dominação tradicional, em particular patriarcal e patrimonial, ou à
de uma ordem. As duas últimas são formas quotidianas específicas de
dominação, a dominação carismática (autêntica) é o contrário dela” (Weber,
1955, pág. 141, trad., 1971, pág. 251).
As análises de Weber, para quem o carisma é, primeiro, “a grande
potência revolucionária das épocas ligadas à tradição" (pré-racionalistas) (We-

1281
ber, 1955, pág. 142, trad., 1971, pág. 252), sugerindo assim que, dentro da
política moderna, o ascendente carismático do chefe poderia ser uma al­
ternativa para o anonimato e para o cinza burocráticos. Elas suscitaram
numerosas controvérsias, que colocam em questão a sensibilidade política de
Weber (Mommsen, Fleishmann) ou a importância heurística de sua classifica­
ção (Merquior, 1980).
De nossa parte, parece-nos que as análises de Weber têm uma força
sugestiva inegável no que concerne a três problemas não-negligenciáveis: 1) as
rupturas não-racionais da tradição (profetismo etc.), 2) os fenômenos revolu­
cionários (liderança carismática, milenarismo), 3) a “rotinização do carisma” e
as formas diversas de “retorno à normalidade" após uma dominação carismá­
tica (tradicionalização ou racionalização legalista).
No que concerne à posição do carisma dentro da "tópica” das formas de
dominação, parece que não se pode contestá-la a não ser com a condição de
recolocar em questão a análise das formas de atividade e do vir a ser da
racionalidade: se o carisma é importante é porque, “liberto de regras”, ele pode
ser inovador sem ser necessariamente racionalizador; se, no mundo contempo­
râneo, ele conserva uma sedução própria, é porque aparece como antídoto da
cinzenta burocracia.
O próprio Weber sugere no entanto, às vezes, outras possibilidades; em
um de seus Escritos políticos (1958), o ensaio sobre o governo e o parlamento
na Alemanha, ele mostra efetivamente, a propósito da Alemanha bismarquia-
na, os limites da racionalidade burocrática, do ponto de vista da própria
eficacidade, e sobretudo reatualiza um modelo saído da Aufklarung que,
valorizando a irresponsabilidade induzida nos políticos pela dominação buro­
crática, evoca a possibilidade de uma racionalidade propriamente política,
irredutível à burocratização.
Em Economia e sociedade, em compensação, a análise da burocracia e
do capitalismo sugere sempre a ambivalência da racionalidade dentro de uma
reconstrução sbciológica e histórica que retoma os grandes temas das análises
políticas liberais do século XIX: relação entre o crescimento do poder e a
democratização da sociedade (destruição dos privilégios, rebaixamento dos
notáveis etc.), continuidade do Estado moderno, do absolutismo às revoluções
democráticas, ambivalência, enfim, da política e do direito modernos — ao
mesmo tempo fontes da emancipação dos indivíduos e da sociedade civil e
promotores da burocratização.

MAX WEBER ATUALMENTE

Ao longo de todo este estudo, nós nos esforçamos em mostrar a forte


coerência interna da arquitetura sistemática e conceituai de Economia e
sociedade. Isto não deve, entretanto, nos fazer negligenciar o que dá também
valor à obra de Max Weber e, em todo caso, sua beleza: a capacidade do autor
de tornar flexíveis seus conceitos ou suas tipologias até que restituam a
significação das instituições sociais mais diversas, sem para tanto ceder à

1282
ilusão retrospectiva da necessidade. Se, todavia, não insistimos sobre a origi­
nalidade e a riqueza científicas das análises dele, é porque o destino de
Economia e sociedade, como obra de pensamento político e como momento
da modernidade, nos parece só pode ser compreendido se se reconstruir seu
pano de fundo conceituai e filosófico.
As controvérsias contemporâneas sobre a obra de Weber situam-se
porém exatamente sobre esse plano: quer se interrogue sobre a possibilidade,
para o individualismo metodológico, de compreender culturas “hostis" como
a da índia (Stern), quer se critique a subestimação por Weber dos fenômenos
de “disfuncionamento” dentro dos organismos burocráticos (Merton, 1968), ou
quer se tente ultrapassar o “decisionismo” weberiano (Habermas, 1973,1983)
é sempre ao sistema de categorias de Economia e sociedade que se é remetido.

• W irtsch a fí u n d G esellsch afl (1922), Tubingen, Mohr, A- ed., 1955, trad. fr. parcial em
E c o n o m ie e t so c iété, primeira parte, caps. I a VI, Paris, Plon, 1971; La ville (cap. XVI, de
W irtscafl u n d C esellsch a ft ), Paris, Aubier-Montaigne, 1982, trad. inglesa em E c o n o m y a n d
S o c ie ty , Berkeley e Los Angeles, Califórnia, University o í Califórnia Press, 1968; G esa m m elte
A u fs ã tz e z u r W issen sch a ítsleh re, Tubingen, Mohr, 2“ ed., 1951, trad. parcial em L e s a v a n t e t
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P o litis c h e S ch riflen , Tubingen, Mohr, 2 - ed., 1958.

► R. Aron, L e s é ta p e s d e la p e n s é e so cio lo g iq u e, Paris, Galiimard, 1967; Idem, La philosophi-


que critique d e 1’histoire (1938), Paris, Le Seuil, reed. 1970; ldem, L a s o c io lo g ie a lle m a n d e
c o n te m p o r a in e (1935), Paris, PUF, reed. 1981; Eugène Fleishmann, De Weber a Nietzsche, em
A rc h iv e s e u r o p é e n n e s d e so c io lo g ie , t. V, 1964; Jurgen Habermas, L e g itim a tio n s p r o b le m e im
S p â tk a p ita lism u s, Frankfurt am Main, Surkhamp, 1973, trad. em R a iso n e t lég itim ité . Paris,
Payot, 1978; T h eo rie d e s k o m m u n ik a tiv e n H an deln s, Frankfurt am Main, Surkhamp, 1981;
José Cuilherme Merquior, R o u sse a u a n d W eber. T w o s tu d ie s on lhe th e o r y o f L e g itim a c y ,
Londres, Routledge and Kegan Paul, 1980; Robert K. Merton, S o c ia l th e o r y a n d s o c ia l
stru ctu res, Nova York, Free Press, 1968; Arthur Mitzmann, The Iron Cage. A n h isto r ic a l
I n te rp r e ta lio n o fM a x W eber, Nova York, Knopf, 1970; WolfgangJ. Mommsem, M ax W eber u n d
d ie d e u tsc h e P o litik , Tubingen, Mohr, 1959; Philippe Raynaud, M ax W eber e t le p r o b lè m e de
1’h isto r ic is m e , Archives de Philosophie du droit, Paris, 1985; Henri Stern, R e lig io n e t so c ié té
en In d e se lo n M ax W ber: A n a ly se c ritiq u e de 1'h in dou ism e ei du b o u d d h ism e, Information en
Sciences sociales, 10 (6); Ferdinand Tõnnies, C o m m u n a u té e t s o c ié té (1887), trad., Paris, PUF,
1944; Jean-Marie Vincent, F é tic h ism e e t so c ié té , Paris, Anthropos, 1973.

Philippe RAYNAUD.

1283
WEIL, Eric, 1904-1977
F ilosofia política, 1 9 5 6

O pensamento político de Eric Weil ocupa um lugar singular dentro da


configuração de idéias que caracteriza, nesta matéria política, a primeira
metade de nosso século. Essa singularidade manifesta-se no fato de que ela se
inscreve dentro de um quadro mais amplo, o de uma filosofia sistemática e
pretendendo ao Verdadeiro - devidamente exposta numa dissertação bem
definida publicada seis anos atrás, Lógica da filosofia (Logique de la philoso-
phie) - da qual se proclama a “aplicação" dentro de um campo determinado;
mas que no momento em que sublinha essa inserção num sistema, ela afirma
altamente a autonomia da política como teoria e como prática. Essa singulari­
dade aparece também nisto que, professando um realismo, até mesmo um
cinismo abertamente inspirados pelas interpretações mais "maquiavélicas” do
Prefácio a Princípios da filosofia do direito de Hegei, ela não cessa de manter
com força os direitos e as exigências do Ideal. Ela é marcada, enfim, pela
vontade de sublinhar que só há um lugar da ação humana coletiva que é a
história, conjugada com a preocupação de recusar todo historicismo e toda
tentação de se inclinar diante do fato consumado simplesmente porque ele está
consumado.
Na verdade, a demonstração concernente à autonomia da política é uma
peça essencial da obra weilliana, que funda a própria idéia de filosofia política.
A Lógica da filosofia inscreve-se dentro da grande linha disso que se chama
de o "idealismo alemão”, notadamente de Kant e de Hegei. Ela propõe aos
filósofos e ao público culto dos anos 1950 o que foram, na ótica de Hegei, a
Fenomenologia do espírito e a Ciência da lógica para o período de 1815-
1820: um texto de articulações rigorosamente ligadas desenvolvendo em um
discurso sistemático o vir a ser do projeto filosófico e das principais categorias
que o pensador elaborou em seu esforço de inteligibilização do real. Eric Weil
toma como ponto de partida três “dados” irrecusáveis: o fato de que o homem
—que não é racional —é no entanto razoável, de que ele é possuído pela
exigência de se conciliar, não somente com os membros da comunidade
histórica à qual pertence, mas também consigo mesmo, e de que precisamente
ele procura e encontra a satisfação dentro de uma conduta que é conforme ao
mesmo tempo a esses acordos e às prescrições da Razão.
Nem louco nem sábio - razoável —, só (quando tem de decidir), mas não
solitário - membro de uma comunidade histórica nem voluptuoso nem
asceta - mas em busca de uma satisfação razoável em todos os domínios - , o
homem obstina-se em manter com seus semelhantes relações que o satisfaçam
da mesma forma que satisfazem os outros..Eric Weil dedica-se a analisar
segundo as normas da racionalidade filosófica as condições nas quais pode ser
pensada essa conduta do indivíduo dentro da Filosofia moral (1956). A
"dedução" da Lógica da filosofia a essa última não coloca nenhum problema,
na medida em que a própria idéia do Saber implica a definição da prática que

1284
corresponde a ela. Da mesma forma, a passagem para a Filosofia política se
realiza sem verdadeiros obstáculos, já que a idéia de comunidade histórica está
implicada desde o princípio do jogo na idéia mesma de exercício da racionali­
dade como meio de se tornar razoável e que essa idéia de comunidade abre o
caminho para a de história universal como médium em que se efetua a ação
política, portanto como universal concreto ou prático...
Todavia, Eric Weil aplica-se em precisar os momentos dessa dedução,
pois é para ele uma oportunidade de sublinhar a significação e o alcance da
autonomia que a seus olhos deve possuir a Ciência Política. Ciência política:
a expressão é muitas vezes utilizada por Weil. Como se verá, o substantivo deve
ser compreendido como o entendia Hegel. A Ciência é o Saber, na acepção
filosófica do termo e de maneira nenhuma na ótica positivista que predominará
posteriormente. Entretanto, não é esse aspecto que o filósofo deseja colocar
em evidência primeiro: ele quer estabelecer antes a diferença existente no
âmbito do sistema entre as considerações morais e o pensamento da política.
Seu objetivo é duplo, parece. É indispensável para ele, em primeiro lugar,
mostrar em que sua pesquisa é outra coisa diferente de um simples adaptação-
repetição da análise política de Hegel cento e trinta anos mais tarde. Trata-se
de lembrar a extrema importância dos princípios práticos (morais) estabe­
lecidos por Kant que não somente constituem a introdução a toda reflexão
política, mas ainda trabalham no âmbito da política como o fermento na massa.
Nesse sentido, com relação ao hegelianismo político, Eric Weil faz valer o
caráter fundamental do criticismo, que Hegel nunca reconheceu.
Porém importa também notar, no começo do texto, que a moral e a
política são dois domínios diferentes e que toda confusão nessas matérias é
enormemente prejudicial. Kant demonstrou o caráter puramente formal da lei
moral. O princípio segundo o qual o sujeito moral deve poder universalizar a
máxima que governa sua ação significa que a vontade moral enquanto tal se
desvia de toda motivação empírica, que ela é essencialmente “desinteressada”.
Toda tomada em conta da felicidade e da infelicidade empírica está excluída.
Está portanto dentro do princípio dessa vontade não se preocupar com as
circunstâncias, renunciar a descobrir no ato que ela realiza qualquer traço do
caráter moral da intenção que está em sua origem. Assim, para o indivíduo, “a
moral não é... princípio de ação positiva e o respeito da humanidade em si
mesma e em todo homem limita-se a uma reflexão sobre a ação a evitar” (Ph.
pol, 7, pág. 20). Entretanto, exceto essa norma “negativa” ou restritiva, a moral
tal como Kant a concebe ensina alguma coisa à política na medida em que
estabeleceu que o princípio de toda ação (que se quer inoral) é a vontade de
razão e de universalidade: "A partir desse princípio..., torna-se possível
estabelecer uma meta para a ação política: a vinda de um mundo em que a
razão inspira todos os outros humanos: (ibidem). Infelizmente, esse princípio
é vazio e não fornece nenhum meio que permita atingir esse fim. Além disso,
observando a realidade empírica, os homens razoáveis em princípio agem na
maioria das vezes de maneira insensata; são a presa de interesse e de paixões
múltiplas.

1285
Será portanto preciso renunciar a agir moralmente e abandonar o
campo histórico-empírico ao mal radical? ou só intervir de uma maneira
quase quietista esperando que se opere uma “realização progressiva do reino
dos fins dentro do mundo” (ibidem, pág. 31)? Eric Weil —sem eliminar nada
de sua adesão à moral kantiana — recusa a renúncia assim como os
subterfúgios; é preciso agir politicamente. A “consciência moral” que se
retira em si é condenada seja a abster-se de toda ação (por definição, má):
ela é suprimida, então, da comunidade histórica e será logo declarada ingrata
e louca; se ela consentir em qualquer ação, ela se exporá seja a ser tida como
criminosa se essa não for conforme ao consenso, seja a desaparecer dentro
de um conformismo inconsistente. O princípio moral assim como a inserção
dentro da comunidade exigem portanto, por motivos diferentes, intervir
politicamente. Desde a origem da filosofia, Sócrates mostrou o caminho:
membro da coletividade ateniense, ele decide obedecer até o fim a suas leis
- mas não se abstém de julgá-las, de criticá-las em nome precisamente da
Razão universal.
O objetivo do Saber político - da filosofia política - desenha-se, desde
então, mais nitidamente: tomar o indivíduo moral face à exigência absoluta e
levá-lo a compreender o que é a ação. Pois não se trata de raciocinar
moralmente ou de perorar sobre o que deveria ser o mundo. A ciência política
se dá por tarefa determinar pela reflexão (conceitualmente) e na prática
(historicamente) a política que faça com que as normas positivas em uso se
reaproximem tanto quanto possível das prescrições universais da Razão. Dessa
forma, a “realização progressiva do reino dos fins dentro do mundo” não será
somente o objeto de uma esperança, mas também o princípio de ações
combinadas. Esse gênero de atividade arrisca-se a colocar o indivíduo em
conflito com as normas do direito histórico: o indivíduo jogará aí sua vida e
recusará àquilo que infringe o princípio moral; mas ele trabalhará sem
fraquejar para a realização política desse último: “O homem descobre que a lei
moral deve informar uma lei positiva: a liberação do homem, de todo homem,
deve realizar-se dentro do mundo se é que a vida moral e razoável não deve
permanecer um sonho” (ibidem, pág. 34).
Vê-se bem aqui tudo o que separa esse Saber político das ciências sociais
chamadas também, erradamente, de ciências humanas. As críticas que se dirige
a essas últimas e que falam em geral sobre seu caráter não-científico, por não
serem objetivas, são muito freqüentemente injustificadas. O problema que se
coloca a esse respeito concerne menos à sua posição do que a seu campo de
aplicação. Quanto ao primeiro, a prova é feita de tal maneira que, em certos
limites, elas satisfaçam aos critérios que fixou o exercício das ciências naturais.
Mas, se elas são muito úteis para permitir a definição de idéias e de regulari-
dades indispensáveis à explicação do funcionamento das sociedades (notada-
mente em economia política e em sociologia), elas não têm de maneira
nenhuma os meios para definir o que deve querer a vontade política tal como
ela acaba de ser analisada dentro dessas ou daquelas circunstâncias. Como as
ciências naturais elas fornecem por meio de observação e de experimentação

1286
(ou de seus equivalentes) o conhecimento das condições da ação razoável, não
sua definição. Não é possível aceitar a substituição dessa por aquela...
O contorno da filosofia política é preciso. Dentro de sua ótica, a política
é definida como ciência da ação razoável: “Ela promete a todos os homens a
felicidade, a satisfação, a obtenção de seu lugar natural dentro de um mundo
perfeitamente organizado” (ibidem, 2, pág. 11). Ora, essa promessa se choca
com dois obstáculos: o primeiro foi assinalado há muito tempo e colocou em
evidência a relação essencial existente no âmbito do trabalho filosófico entre
o exercício do pensamento e seu ensino - já que o filósofo não é rei (e não
pode sê-lo), então ele é filósofo e educador. O segundo concerne à possibilidade
de enunciar as condições de realização dessa promessa: o filósofo pretende que
lhe é permitido fazê-lo já que ele dispõe da Razão universal, que é ao mesmo
tempo o campo e o instrumento graças aos quais ele concebe seu sucesso. Se
o negócio é assim tão simples, como é possível —senão por algum inverossímil
azar - que essa promessa não tenha sido realizada antes de ontem, ontem, por
que não desde hoje? É precisamente pelo fato de que, antes de ontem, ontem
e hoje, agirem insensatamente, que eles não conhecem como convém os
diversos níveis nos quais intervém a vontade de Razão, em quais cálculos de
interesse e de dominação ela se empenha e se diversifica, contra quais
sentimentos —que ela engendrou - ela se choca. A Razão, agindo, diversifica-
se, freia-se e contradiz-se no interior dela mesma. Em resumo, ela tem uma
história contingente, que não entrega imediatamente suas chaves. A Filosofia
política dá-se como tarefa fazer conhecer esses obstáculos, quais são os
essenciais, quais não o são mais, e que probabilidade conserva o projeto do
filósofo.
Como se vê, o projeto weilliano — que é o da própria filosofia,
“aplicada” à política —desmente a interpretação correntemente dada pelo
ativismo leninista à XI tese sobre Feuerbach, de K. Marx: o filósofo sempre
quis transformar o mundo, isso é, de revelar as estruturas do mundo em vista
da realização da liberdade razoável". Ora, é esforçando-se para esse co­
nhecimento que ele descobre um primeiro aspecto do obstáculo que não
cessa de comprometer a instauração da racionalidade e a realização da
satisfação universal. Ele conhece com efeito, em primeiro lugar, a comuni­
dade histórica que é a sua. Ora, essa se manifesta a ele, assim como a todos
seus membros, primeiramente como sociedade, isto é, como uma certa
organização de indivíduos. O que caracteriza a sociedade humana é que ela
se constitui como comunidade de trabalho, segundo Eric Weil. Ora, na época
moderna, o trabalho é essencialmente compreendido como luta coletiva
contra a natureza tendo como fim a dominação sempre maior dessa nature­
za. A conquista da natureza é o sagrado da modernidade. O problema está
aí precisamente: é importante saber “se o político (a ação universal em vista
da liberdade razoável) pode ser levado de novo ao social (à luta com a
natureza exterior)” (ibidem, 20, pág. 67).
Pois se é verdade que o mundo inteiro está unificado em torno do
princípio da conquista, se é verdade que todas nossas sociedades obedecem

1287
finalmente às normas do cálculo, do interesse e do “materialismo” - mesmo
quando podem admitir, ao lado dessa, outras sacralídades, mesmo quando
algumas chegam até a simular condená-los - , é verdade também que a
unidade do princípio encobre uma grande diversidade entre as comunidades
e engendra distorções no âmbito dessas comunidades... Essas últimas estão
na origem do que se costuma chamar de “a questão social”. As sociedades
organizadas em torno do projeto de dominação e de exploração da natureza
não podem deixar de utilizar mecanismos visando assegurar sua eficácia
nesse empreendimento: elas elaboram dispositivos (os cálculos, planos,
projetos etc.) nos quais cada um deve participar à sua maneira. Porque ela
é organização da luta da comunidade com a natureza exterior, a sociedade
não concede ao indivíduo nenhum papel, senão o do combatente, isso é, o
de uma força bruta ou inteligente para opor à natureza não-humana. “Desde
então, só há para o indivíduo uma única norma”: contribuir para os sucessos
da luta, valorizar-se, “tornar-se precioso para os outros” e mostrar-se o
melhor dentro da competição, “que é a regra de conduta” das sociedades
modernas (cf. 24, págs. 76 e segs.).
A Filosofia política toma como equivalentes as sociedades que se chama
de capitalistas e as que se dizem socialistas: “Sob essa relação, é contudo sem
importância o fato de que o trabalho social de uma comunidade moderna seja
organizada de maneira "liberal" ou “dirigista”: o indivíduo encontra-se sempre
submetido “à pressão das circunstâncias”, se bem que as circunstâncias
possam diferir e que suas diferenças, de um outro ponto de vista, possam ser
da maior importância. No nível presente da análise, a ameaça do desemprego,
da falência ou da retirada da indenização de desemprego eqüivale à do campo
de trabalho forçado ou do processo de sabotagem" (ibidem, págs. 77-78).
Essa distorção maior - que é constitutiva da modernidade —encontra-se
agravada por um dado: os fatores históricos, contingentes, irredutíveis que
pesam sobre cada comunidade. Estas comunidades, diferentes umas das
outras, opõem-se umas às outras. Dessa forma, à natureza exterior se junta
uma outra natureza: cada comunidade deve velar por sua eficácia, a fim de
preservar sua independência, sua sobrevivência, face aos apetites potenciais de
todas as outras. Os mesmos mecanismos funcionam, os que privilegiam as
individualidades fortes e "competitivas”, os que condenam o irrealismo das
pessoas "desinteressadas” e os que, de uma certa maneira, lisonjeiam os
violentos a serviço da comunidade. Esses fatores históricos têm um outro
efeito, mais difícil ainda de sobrepujar. É claro que sociedades que permane­
cem no final das contas baseadas sobre o cálculo, sobre o egoísmo, sobre o
rendimento, apesar de participarem da vontade de razão em seu projeto
unitário, não poderiam ser hit et nunc racionais: "Pelo fato de ela não ser
completamente racional, a sociedade particular é dividida em grupos e em
camadas.” Ora, “é dessa divisão que nasce nos membros da sociedade particu­
lar o sentimento da injustiça social”.
Assim, mesmo quando se admite o princípio da competição - que só pode
ser recebido dentro de uma concepção moral, mas que convém aceitar se se

1288
consente em intervir dentro do mundo histórico - poder-se-ia esperar, depois
de Aristóteles, por exemplo, que se aplicasse aí uma distribuição racional e
justa. Ora, a “competição que deveria ser o procedimento mecanicamente
justo, que designa, em cada carreira, os candidatos mais bem qualificados” é,
sabe-se bem, porque causalidades históricas não cessam de agir aí, “um
mecanismo... continuamente falso” (ibidem, 26, pág. 85). Essa situação gene­
raliza-se: estende-se a cada comunidade tomada como um todo. 0 sentimento
da injustiça engendra uma rivalidade interior entre os grupos sociais, na qual
cada um se esforça em fazer triunfar sua concepção “histórica” da justiça que
ele tem como a única... justa. Face a essas lutas e a essas reivindicações, a
sociedade, quando nela agem plenamente os mecanismos reguladores, é
conduzida a fazer desaparecer as injustiças mais gritantes, a suprimir as
distorções mais prejudiciais. Resta que se projete constantemente a ameaça da
violência... "A luta social, inevitável em toda sociedade particular, mostra ao
indivíduo, ao mesmo tempo, a necessidade do trabalho social e o caráter
insensato desse. Ela lança o indivíduo de novo sobre ele mesmo e lhe mostra
ao mesmo tempo que esse mesmt» é um termo desprovido de significação...”
(ibidem, pág. 91).
No mundo moderno, “o indivíduo... é essencialmente insatisfeito” (ibi­
dem, 27, pág. 93). O futuro de racionalidade e de satisfação que se promete a
ele, ele não chega a realizá-lo. Ele se declara isento se lhe permitem de se
arranjar como pode. A lição é severa: a sociedade contemporânea, como tal, é
incapaz de dar um sentido à vida. Ora, sublinha Eric Weil, essa situação é
insuportável. O indivíduo não pode renunciar a sua vontade de Razão, a seu
projeto da universalidade, a sua exigência de conciliação com ele mesmo e com
os outros. O filósofo educador lembra então que a parte calculista e egoísta
que é o Estado (ou o governo) no âmbito da modernidade não é todo o Estado,
que esse é também um universal concreto enquanto é “o conjunto orgânico
das instituições da comunidade histórica" (ibidem, 31, pág. 131). Saído da
contingência histórica, o Estado como princípio (ou como forma) sintetiza e
ultrapassa o caráter particular da comunidade ou do povo, fazendo dele a
expressão da própria humanidade.
A Filosofia política, a esse respeito, aparece como um apelo para
reativar o exercício da cidadania e para reencontrar a significação do Estado.
Com Hegel, Eric Weil considera que o Estado concebido como princípio
racional, organizando e dinamizando a comunidade histórica estruturada
como sociedade, é a invenção decisiva do mundo moderno, que pode
permitir ir além das desordens e das desilusões, que são como que o tributo
a pagar à prática da eficácia. A racionalidade encontra nela mesma a
ultrapassagem dos males que engendra. Mas ela não sabe disso. Os cidadãos
não conhecem mais o Estado hoje em dia, assim como não o conheciam em
1821. Pode-se perguntar se, dentro dessa ótica, o filósofo educador não se
fixa como objetivo denunciar, com discreção e firmeza, os erros não só dos
cidadãos mas também dos políticos e dos “especialistas” que, como por

1289
prazer, multiplicam problemas e debates, estatísticas e pesquisas e ignoram
as riquezas do conceito.
Conhecer o Estado, na ordem atual, é primeiro reconhecer e com­
preender o sentido das duas dimensões específicas que o constituem: “O fato
de que a lei aí é formal e universal, de que ela se aplica a todos os cidadãos
e não sofre exceção” e o fato de que “para a deliberação e a execução, o
governo se apóia sobre a administração” (ibidem, 34, pág. 148). A primeira
dimensão designa, de fato, o Estado de direito, aquele que se define também
como possuindo o monopólio da violência (e colocando essa sob o controle
rigoroso da racionalidade formal); ela significa que “no nível político, a lei é
a forma na qual o Estado existe pensando-se” (ibidem, 33, pág. 144). A
segunda precisa a atualidade da Razão governamental, a que delibera e que
decide. Nesse nível da análise, Eric Weil, que elabora esse texto no momento
em que o pensamento está justamente sob o golpe dessas inexpiáveis
crueldades que têm o nome de hitlerismo e stalinismo e em que os ambientes
políticos repercutem fragores da “Guerra Fria", coloca de certa forma seu
ponto de honra especulativo em reduzir oposições julgadas dominantes a
diferenças específicas no interior de um mesmo gênero. As contradições
políticas das quais se alimenta a modernidade devem ser julgadas a partir do
lugar maior ou menor que essa ou aquela comunidade histórica contempo­
rânea concede, em função da sociedade que produziu, à administração. Na
verdade, nota a Filosofia política, os estatismos (julgados tecnocratas ou
socialistas), os antiestatismos (anarquistas ou utopistas) e os liberalismos
só se distinguem uns dos outros pela quantidade de administração que
admitem (ou requerem): “O simples o fato de que o Estado moderno não
poderia ser nem sem administração, nem pura administração. Pura adminis­
tração ele só seria se os homens se tornassem máquinas... e se todas suas
relações fossem puramente técnicas. Sem administração, ele só poderia
subsistir se os homens não tivessem nem desejos nem necessidades nem
paixões (e não teriam mais o que fazer de um Estado qualquer que ele fosse)”
(ibidem, 44, pág. 151).
Entre os Estados modernos, opera-se uma outra distinção, que se deve,
não à administração mas às instituições políticas e à lei: entre o Estado de tipo
autocrático e o de tipo constitucional. A autoridade sem controle e a ausência
de uma lei fundamental caracterizam o primeiro; o segundo, ao inverso,
define-se por duas disposições: “Independência dos tribunais e... participação,
requerida pela lei, dos cidadãos na legislação e na tomada de decisões
políticas”, de um lado, existência “de um parlamento que, exprimindo os
desejos e a moral vigente da sociedade-comunidade particular, permite e
controla a ação racional e razoável do governo e dá a este a tarefa de educar
o povo”, de outro lado (ibidem, 37, pág. 160, e 38, pág. 167). Deve-se observar
que os governos constitucionais nasceram da recusa de certas comunidades
históricas em obedecer a regimes autocráticos que haviam sido sua sina
durante longos períodos; e que repousam sobre um círculo que, se bem que
vicioso, não hipoteca de maneira nenhuma sua dinâmica liberadora: pois sua

1290
fundação repousa sobre a garantia do povo; mas, precisamente, é pela media­
ção de uma lei que um povo é instituído como povo... Do ponto de vista da
história, o Estado de direito é finalmente tão arbitrário quanto o governo
autocrático. É apenas de um ponto de vista filosófico que ele assegura sua
superioridade, na medida em que segrega, pela educação de todos, com a
legitimação de seu projeto e as condições de sua sobrevivência, o triunfo da
"Razão razoável" dentro do universo concreto da história. Eric Weil considera
porém que as discussões concernentes ao “melhor regime” são ao mesmo
tempo legítimas (por causa da especulação e das considerações morais) e
abstratas (por causa da ação e do conhecimento a políticos). Ele está nesse
ponto muito mais próximo de Aristóteles do que de Hegel: o passado da
comunidade histórica como dado singular e o que ela implica hoje em dia no
domínio social e institucional contam muito mais do que as sutis hipocrisias
constitucionais. E dentro do mesmo espírito que devem ser consideradas as
questões no tocante à ordem internacional: o que importa é menos a bela
ordenação de tudo do que a salvaguarda da particularidade de cada comuni­
dade histórica e "a satisfação dos indivíduos no interior de Estados particulares
livres” (ibidem, 41, pág. 240).
A Filosofia política, a realidade política analisada do ponto de vista de
Sirius? De Sirius ou do alto do “pensamento” de Sócrates? Sim. Mas com um
aspecto capital. Atualmente, a crueldade do passado recente e as ameaças
pesando sobre o futuro próximo certamente, mas também uma obstrução
nascida dos excessos de propagandas e das mídias multiplicam os discursos
apocalípticos, o pathos e a exageração pretensiosa. Essa colocação à distância,
essa vontade de conceitualizar e de trazer de novo os julgamentos para dentro
do razoável às quais procede Eric Weil constituem, como tais, uma crítica da
agitação atarefada dos tecnocratas e do ativismo dos profetas de todos os
gêneros —a crítica mais viva, mais realista, uma crítica filosófica.

• L o g iq u e d e la p h ilo so p h ie, Paris, Vrin, 1950; P h ilo so p h ie p o litiq u e , Paris, Vrin, 1956;
P h ilo s o p h ie m o ra le, Paris, 1961; P ro b lèm e s k a n tien s, Paris, 1963; E ssa is e t C o n íéren ces,
Paris, Plon, 2 vols., 1970-1971, um outro volume a ser publicado.

► Número especial dos A rc h iv es d e P h ilo so p h ie, consagrado a Eric Weil, 1970; Paul Ricoeur,
La philosophie politique d’Kric Weil, E spril, outubro de 1957.

François CHÂTELET.
WOLFF, Christian, 1679-1754
Princípios do direito da natureza e das pessoas, 1758

Tradução e adaptação de Formey, para o editor holandês de Rousseau,


de extratos do Jus naturae et gentium, esta obra permanece - com as
Institutions du droit de la nature et des gens—a única apresentação em língua
francesa da filosofia wolffiana do direito, do qual pode-se apenas imaginar, hoje
em dia, a influência considerável que ela exerceu entre 1720 e 1800. Até o
início do século XIX, era realmente o sistema wolffiano que se ensinava em
quase todas as universidades alemãs a gerações de juristas, ao ponto de existir
até mesmo uma imprensa wollfiana, e Herder, Goethe, Lessing, Humboldt,
Kant e mesmo Hege! conheceram dessa forma, em suas formações, uma
importante contribuição wolffiana (Kant cita cento e vinte e sete vezes Wolffi).
A difusão das idéias de Wolff iria ampliar-se ainda mais por meio da Suíça, onde
os três mais célebres jurisconsultos de língua francesa, Barbeyrac, de Vattel
(cujo Direito das pessoas, abertamente inspirado em Wolff, conheceu vinte e
duas edições em francês) e Burlamaqui expuseram e adaptaram as teses
wolffianas. Não é surpreendente, então, que o pensamento de Wolff, vulgariza­
do por Formey e pelo Abrégé de philosophie wolffienne do Abade Deschamps,
tenha impregnado profundamente a Encyclopédie, na qual oitenta e um
artigos pelo menos confessam encontrar sua fonte em Formey.
Essa extraordinária sorte da filosofia jurídica de Wolff explica-se em grande
parte por sua contribuição para a teoria do “absolutismo esclarecido”, que se
estendia então por toda Europa ocidental: inscrevendo-se dentro da tradição do
direito natural, Wolff uniu efetivamente a moral e o direito às únicas autoridades
que o Príncipe mais absoluto era forçado a reconhecer acima dele, a saber, a
Razão e Deus, acreditando assim na idéia de um direito e de uma moral
plenamente estabelecidos fora do poder temporal. Havia chegado a hora dessas
teses e, da mesma forma, os tratados iriam marcar com seu sinal característico,
por muito tempo, a reflexão sobre o direito, em um triplo ponto de vista: primeiro,
quanto ao método demonstrativo que se utilizava, aplicando a dedução matemá­
tica ao direito (F. Wieacker: “A influência desse método wolffiano dificilmente '
pode ser subestimada”, e isto “até em nossos dias”); em seguida, através da teoria
do direito das pessoas, Wolff tendo produzido uma das primeiras sistematizações
da idéia de um direito internacional supra-estatal (H. Kelsen: Wolff, “Fundador
da primazia do direito internacional sobre a ordem jurídica do Estado”) e uma
das primeiras construções rigorosas da idéia de civitas maxima, antecipação da
noção de Sociedade das Nações que abria o caminho para as correntes cos-
mopolitistas; enfim, pela tentativa de uma fundação filosófica particularmente
escrupulosa da idéia dos “direitos do homem é sobre esse ponto sem dúvida
que o sistema jurídico de Wolff merece ainda nossa atenção hoje em dia, se é
verdade que, pouco original por seu conteúdo (retomado no essencial de Grotius,
Thomasius e Pufendorf), a teoria wolffiana do direito natural é em compensação
uma das últimas (segundo J. Ritter: a última) e mais sérias (segundo M. Thomann,

1292
Christian Wolff, pág. 248: “a mais científica”) tentativas para enraizar o tema dos
direitos do homem na filosofia prática, determinando, a partir de uma com­
preensão da natureza humana, a que ações o homem é obrigado por sua natureza
e, correlativamente, que direitos deduzem-se dessas obrigações. Na medida em
que o abandono posterior (em todo caso: posterior ao idealismo alemão) de tal
esforço de fundação contribuiu pouco a pouco para tornar confuso o próprio
tema dos direitos do homem e para esvaziá-lo, em parte, de sua substância, a
dedução wolffiana dos direitos do homem merece consideração, quer seja por
seu caráter exemplar ou (aí começa o trabalho de interpretação) através das
dificuldades que poderiam ser significativas, negativamente, dos requisitos de
uma fundação plenamente satisfatória.
Wolff inscreve o direito natural, como foi dito, na filosofia prática, com a
ética, a economia e a política: se a filosofia prática estabelece efetivamente “os
princípios gerais que devem dirigir as ações livres", o direito natural, que
“separa umas das outras as ações boas das ações más”, “expõe o critério das
ações livres”, a saber, a conformidade à natureza do homem, filosofia prática
geral, o direito natural determina assim quais ações em geral um homem tem
o direito de realizar sem negar sua própria essência —essa determinação geral
devendo em seguida ser particularizada segundo os três registros da existência
ética, econômica (=doméstica) e política (Philosophia practica, 1, 3-6). A
dedução de um direito natural, definido dessa maneira, realiza-se então em
quatro etapas:
1) O ponto de partida é uma definição a priori da dupla natureza do homem
(Phil. pr., I, 162): segundo a "natureza comum” (aos homens e aos animais), o
homem é um ser cujas ações são “naturais”, isto é, determinadas por causas
naturais antecedentes (ações mecânicas); segundo sua “natureza própria”, ele é
um ser cujas ações são livres, isto é, determinadas por causas finais e supondo
portanto a consideração racional dos fins: o homem é um ser provido de razão.
2) Deduz-se daí a lei da natureza, lex naturae (Príncipes, I, pág. 29) - lei
universal (comum a todos os viventes) e perfectiva (Jus naturae, 68); todo vivente
age segundo uma lei por assim dizer estrutural, que lhe prescreve buscar as ações
em que sua natureza tenda para sua perfeição (enteléquia) e de fugir daquelas
que impediriam a natureza de se realizar plenamente. Sendo dado que Wolff
chama de felicidade, segundo a tradição aristotéiica, o alcançar a perfeição (a
realização da essência) a lei natural que rege as ações de todos os viventes os
impele portanto a buscar a felicidade (Príncipes, l, págs. 21 e segs.). Para os
animais, cujas ações são “naturais", a ordenação à lei é mecânica (as ações são
necessáriamente ordenadas à lei natural), enquanto para o homem, cujas ações
procedem de uma livre escolha, a atividade não está necessariamente ordenada
à busca da felicidade, portanto à realização da essência: a obediência à lei natural
vai, por conseguinte, proceder, para o homem, de uma necessidade moral e não
natural, isto é, de uma obrigação moral.
3) Assim, da lei natural comum aos viventes, deduz-se para o homem a
obrigação moral (ou, já que ela tem sua razão suficiente na natureza do
homem, obrigação natural) (Jus naturae, 38) de fazer o que realiza sua

1293
essência, mesmo quando outras escolhas parecem possíveis (Príncipes, I, pág.
2): sem estar naturalmente ligado, como é o caso do animal, o homem é
naturalmente obrigado a deixar de fazer certas ações e a cometer algumas, e
a adotar conseqüentemente um princípio de escolha para discernir, entre as
possíveis, aquelas que devem ser retidas. Esse princípio enuncia-se assim: é
moralmente impossível o que contém uma contradição com a natureza do
homem como “agente racional”, é moralmente possível o que não contém essa
contradição, é moralmente necessário aquilo cujo oposto é moralmente
impossível e a que o “agente racional” está portanto obrigado pela lei natural
(1, pág. 3; cf. também Institutiones juris naturae, 37).
4) O direito natural deduz-se também da lei natural (I, pág. 3): pois não
somente a lei natural é preceptiva (ela obriga a cometer as ações moralmente
possíveis e necessárias) e proibitiva (ela obriga a se desviar das ações moral­
mente impossíveis), mas ela é, além disso, permissiva —dá o direito de fazer
aquilo sem o qual seria impossível satisfazer a obrigação moral, pois “se a lei
da natureza nos obriga a um fim” (através do qual a natureza busca sua própria
realização), “ela dá também direito aos meios" (Inst., 46). O direito natural é
portanto deduzido como a condição de possibilidade da obediência à obrigação
moral (Príncipes, 1, pág. 5): assim o homem tem como exemplo um direito
natural para se alimentar, porque lhe é moralmente necessário conservar-se
em vida (1, pág. 4). Mais genericamente: “A lei natural nos concede o direito a
todas as coisas que são necessárias para adquirir, conservar ou aumentar nossa
felicidade” (I, pág. 28).
O direito natural, que tem portanto “sua razão suficiente na natureza e
na essência do homem” (já que ele é visto sem o quê o homem não poderia
realizar a obrigação moral de escolher as ações através das quais se atinge a
perfeição de sua essência) (Phil. pract., 1 ,162), será conseqüentemente duplo
em seu conteúdo: de um lado, o homem vai possuir um “direito natural
comum aos homens e aos animais”, a saber, os direitos aos meios sem os quais
ele não poderia realizar nele a natureza comum; de outro lado, ele possuirá
em “direito natural que é o próprio do homem ", correspondente aos meios
sem os quais não poderia realizar a perfeição de sua natureza propriamente
humana. Esse direito natural, cujo conteúdo particular é portanto deduzido
pela reflexão sobre as condições de possibilidade da moralidade (seja, para
nós, a partir da moral, mesmo quando, em si, ela a funda ou, pelo menos, a
torna possível), será descrito em termos de poderes-, constituirá tudo do que o
homem tem o poder ou a faculdade, sendo dado que sem esses direitos ele não
teria mais “a faculdade ou poder de agir moralmente” (Príncipes, I, pág. 3).
Estes direitos serão por definição universais (I, pág. 2): eles cabem na verdade
a “todo homem enquanto homem” e são portanto propriamente os “direitos
do homem”, dos quais Wolff tematiza explicitamente a noção: “Já que a
obrigação natural tem sua razão suficiente dentro da essência e da própria
natureza do homem e que é colocada com ela, visto que a natureza ou essência
está mesmo dentro do gênero humano inteiro, a obrigação à qual o homem
enquanto homem está preso é a mesma em todos os homens - e conseqüen-

1294
temente os direitos que cabem ao homem enquanto é homem são os mesmos
para todo homem. Daí aparece claramente que são dadas obrigações universais
e direitos universais” (Inst., 69).
Quanto ao conteúdo dos direitos do homem fundados dessa maneira, ele
próprio é deduzido da função desses direitos. Se os direitos do homem são isto
sem o que o agente racional não poderia satisfazer à obrigação moral, o
primeiro direito será o direito à "igualdade natural” (no sentido da igualdade
de obrigações e de direitos): "Os homens enquanto homens são naturalmente
iguais”, já que a obrigação moral é a mesma para todos e que, em conseqüên­
cia, os direitos sem os quais ela não teria nenhum sentido são também os
mesmos para todos (Príncipes, I, pág. 9). O direito à “liberdade natural” segue
a ele também imediatamente, como direito a atos independentes da vontade de
um outro homem, pois, fora esta liberdade, não há mais verdadeiramente
escolha entre as ações possíveis e o indivíduo pode então se ver impedido de
ser moral (1, pág. 15). Acontece o mesmo com os outros direitos - direito de
segurança (1, pág. 58), direito da guerra (1, pág. 69), direito de propriedade (1,
pág. 91) etc.: os direitos naturais garantem ao indivíduo a possibilidade de
realizar a perfeição de seu ser, segundo a perspectiva de um “eudonismo
individualista" (M. Thomann) em que a consideração das relações inter-
subjetivas só intervém negativamente, unicamente na medida em que o “outro”
pode privar o sujeito individual dos meios de atingir à perfeição de seu egoísmo
(Morale allemande, 19: “Faça o que favorece sua perfeição e evite o que a
prejudica”). Um tal “egoísmo jurídico”, que parece aqui inerente ao discurso
dos direitos do homem, pode parecer limitar seu alcance propriamente político;
porém Wolff fundamenta também por esse meio uma condenação possível de
todo direito positivo que entraria em contradição com um direito natural
reunindo nele os principais valores do individualismo e, como tal, suscetível de
servir de bloqueio a toda empresa absolutista de reabsorção do particular
dentro do universal (ou dentro do que parece o universal).
Os limites, quanto a seu alcance, da fundamentação wolffiana dos direitos
do homem, deixam-se, em compensação, perceber talvez dentro de suas
próprias modalidades. Como o sublinha J. Ritter, o mérito de Wolff situa-se no
esforço para enraizar o discurso dos direitos do homem dentro da filosofia
prática; mas —estima Ritter —esse enraizamento se efetua dentro de um saber
metafísico do homem, saber a priori, separado do real, que vai entrar, após
Wolff, em concorrência com teorias da natureza positiva do homem com
relação às quais a filosofia prática wolffiana parecerá formal, até vazia: a idéia
do direito natural arriscar-se-á desde então a ser tida como inseparável dessa
metafísica da qual Wolff tinha querido deduzi-la - ao ponto de o posith.smo
jurídico poder tanto mais facilmente se impor, sob a forma inicial da Escoia do
direito histórico, como que em reação a um jusnaturalismo do qual Wolff tinha
levado ao seu cúmulo o apriorismo. Assim, segundo Ritter, a teoria wolffiana
demonstraria bem a necessidade de uma fundamentação filosófica da idéia de
direito natural, mas também e a contrario, ela faria surgir a exigência de uma
fundamentação dentro de uma outra filosofia prática, menos preocupada com

1295
o a priori e com o universal abstrato - isto porque impor-se-ia (esta é pelo
menos a conclusão de Ritter) um retorno à filosofia prática de Aristóteles.
É permitido perguntar-se se uma análise opondo dessa forma fundamenta­
ção aristotélica e fundamentação wolffiana toca exatamente na verdadeira difi­
culdade do encaminhamento de Wolff: o que está de fato no âmago da funda­
mentação wolffiana é uma estrutura teórica que parece pouco compatível com a
idéia de direito (notadamente com sua função, propriamente política, de instância
crítica) —a saber, uma estrutura, anunciando a teoria hegeliana da “astúcia da
razão”, em que o direito é somente um momento do processo pelo qual o que
há de natural (racional) dentro do real consegue realizar-se plenamente; através
da maneira pela qual o sujeito jurídico, graças aos direitos naturais que lhe são
garantidos, realiza seus fins morais, é a natureza que realiza plenamente o fim
dela (produzir o máximo de perfeição possível) - o direito aparecendo, assim,
como o instrumento de uma "astúcia da natureza”. Se se concordar que uma
visão jurídica do mundo supõe a constituição dos sujeitos jurídicos em verdadei­
ros institutores da relação de direito, a fundamentação wolffiana, que reduz o
direito a ser apenas de certa forma a “superestrutura" de um processo utilizando
o homem como instrumento inconsciente de um desígnio supra-humano, anun­
cia estranhamente, mutatis mutandis (isto é, sobre o modo de um naturalismo
jurídico), as futuras dissoluções historicistas do direito. E, desse ponto de vista,
não é certo que a referência ao que, em Aristóteles, funcionava já como um
naturalismo jurídico, já centrado sobre o tema de uma “astúcia da natureza” (M.
Villey, Essais de philosophie du droit, pág. 64), abre o caminho mais fecundo
para a colocação de uma outra fundamentação.

• P r ín c ip e s d u d r o it d e la n a tu re e t d e s gen s, extraído da grande obra latina de C. Wolff por


M. Formey, em três tomos, Amsterdã, Ed. Mar-Michel Rey, 1758; Ju s n a tu ra e (1740-1748), reed.
Olms, Nova York, Hiidesheim, 1972, com uma introdução em francês de M. Thommann
(L 'in flu en ce d u J u s n atu rae), 8 t.; Ju s g e n tiu m (1749), reed. Olms, Nova York, Hiidesheim,
1972, com uma introdução de M. Thomann (Le Ju s g e n tiu m d e C h ristia n Wolfí)-, ln s titu lio n e s
ju r i s n a tu ra e e t g e n tiu m (1750), Halae Magde burgicae, trad. franc. (anônima) sob o título
in s litu tio n s d u d r o it d e la n a tu re e t d e s gen s, Leyde, Ed. E. Luzac, 1772; P h ilo so p h ia p ra c tic a
u n iv c rsa lis (1738), reed. Olms, primeira parte, cap. II (“Da obrigação e da lei naturais") e III
("Sobre Deus como autor da lei natural").

► Joachim Ritter, L e d r o it n a tu rel c h e z A ristote, C o n trib u lio n au re n o u ve a u d u d ro it n atu rel,


in A r c h iv e s d e p h ilo so p h ie , 1969, págs. 416-427: a fundação wolffiana; Mareei Thomann,
C h ristia n W o lfíe t so n tem p s, Paris, LGDF, e Nova York, Hiidesheim; Idem, C h ristia n W o lff e t
le d r o it su b jectif, in A rc h iv e s d e P h ilo so p h ie d u d ro it, 1964; Idem, Christian Wolff, em
S ta a ts d e n k e r in 17. u n d 18. Jah rh u n d ert, Frankfurt, A. Metzner Verlag, 1977, págs. 248-271;
Friedrich Wieacher, Z e ila lte r d e s V ern u n ftrech ts, em P riva lre ch tsg e sch ich te d e r N e u zeit,
Còttingen, reed. 1967, pág. 177 sq.

A lain RENAUT.

1296
ZOLA, Emile - 1840-1902
Eu acuso, 13 de janeiro de 1898

Nos dias 10 e 11 de janeiro de 1898 é submetido a Conselho de Guerra


o Comandante Esterhazy, verdadeiro autor da “lista” que foi, em 1894,
imputada a Alfred Dreyfus e fundamentou sua condenação. Tudo foi or­
ganizado pelo Estado-Maior para que o Comandante Esterhazy fosse absolvido:
desse modo a coisa seria “julgada duas vezes”, Dreyfus condenado, Esterhazy,
o verdadeiro culpado, inocente. E o processo se desenvolveu como previsto,
após um interrogatório fingido, a aparência de um debate, o comissário do
governo abandonou a acusação; em 11 de janeiro às 20:10 horas, leitura da
sentença. Por unanimidade, Esterhazy é absolvido. Foi carregado em triunfo.
Mais lúcido do que a maioria dos dreyfusianos, Emile Zola não se
espantou com essa absolvição, resultante de clara manobra do Estado-Maior.
Compreendeu logo que nada mais haveria a esperar das vias legais, restando
apenas recorrer à opinião pública. Era necessário, antes de tudo, um golpe que
pudesse modificar a ordem das coisas.
Nesse iníciodo ano de 1898, Emile Zola é um literato realizado, um
burguês tranqüilo e rico, que vive enfim feliz. Ele sabe que, comprometendo-se
violentamente, se arrisca a transformar sua vida, a se alienar da massa de seus
leitores, constituída de uma pequena e média burguesias, geralmente antidrey-
fusianas. Sabe que deverá sem dúvida renunciar à ambição, que acalentava,
havia muito tempo, de entrar para a Academia Francesa. Na verdade, ele já se
lançara à luta, publicando em 13 de dezembro de 1897 sua “Carta à juven­
tude”, destinada aos estudantes franceses, e, depois, em 7 de janeiro de 1898,
sua “Carta à França”, denunciando as “trevas da intolerância". Sem esperar o
veredito de absolvição, Zola começou a escrever em meio à febre e à cólera,
desde 10 de janeiro seu famoso Eu acuso (J'accuse). Trabalhou um dia e duas
noites para redigir as quarenta folhas de sua “Carta ao Presidente da Repúbli­
ca" que termina com as palavras que ficaram famosas: “Quanto às pessoas que
acuso, eu não as conheço, nunca as vi, não tenho contra elas nem rancor nem
ódio. Elas são para mim apenas entidades, espíritos de maledicência social. E
o ato que concluo aqui é só um meio revolucionário para apressar a explosão
da verdade e da justiça.” Zola havia pensado primeiro em publicar seu texto
em brochura, como sua “Carta à França”. Foi no último momento que lhe veio
a idéia de publicá-la em um jornal para lhe dar uma publicidade mais
retumbante. Ele leva seu trabalho a Ernest Vaughan, diretor de L Aurore. Mais
ainda do que Vaughan, Georges Clemenceau, redator-chefe, fica entusiasmado.
Na tarde da absolvição de Esterhazy, Zola faz uma leitura de seu texto quase
acabado. É aplaudido. Clemenceau imagina o título espetacular Eu acuso.
L Aurore faz uma tiragem de 300.000 exemplares, que distribui na manhã de
13 de janeiro nas ruas de Paris, graças ao deslocamento inabitual de várias
centenas de “pregoeiros” de jornais. E foi assim que Paris recebeu, como um
raio, o número especial de L Aurore onde flamejava, em letras graúdas, o título

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"Eu acuso, carta ao Presidente da República por Emile Zola”. Em algumas
horas, mais de 200.000 exemplares foram vendidos. Foi, conta Léon Blum, “o
maior evento do problema”, aquele, em todo caso, que restituiu, no momento
desesperado, força e confiança aos dreyfusianos, aquele que ficou na memória
popular.
O texto de Zola contém numerosos erros: ele esqueceu de citar Henry, o
principal instrumento do crime, não percebeu a responsabilidade essencial do
General Mercier, Ministro da Guerra, que organizou em 1894 a condenação de
Dreyfus. Enganou-se sobre a hierarquia dos papéis. Mas Zola trabalhou rápido,
com poucos documentos e não pretendia fazer trabalho de historiador. “É
conscientemente, observa Mareei Thomas, que Zola aumenta, exagera, esque-
matiza, para impressionar a opinião. ”Eie corre o risco do erro e do exagero.
Mas o que é surpreendente é a força luminosa da intuição: além dos erros de
detalhe, Zola, que não tem nem tempo nem documentos, descobre a própria
substância do caso Dreyfus, o espírito de corpo dentro da “santa arca”, a
exasperação hierárquica, a paixão clerical, a razão de Estado, a conjuração da
multidão enganada e dos governos amedrontados, a obstinação criminal, as
perversidades cometidas e acobertadas para “salvar o Estado-Maior compro­
metido”. Será Eu acuso uma “obra-prima”, como escreveu Léon Blum? É, em
todo caso, um grande “artigo” e marcou uma data essencial da história do
jornalismo. A violência da expressão, as metáforas audaciosas, a repetição
intencional de certas palavras para dar um aspecto encantatório, o estilo
inflamado, enfim, a progressão ofegante até ao desafio final fazem dele um
texto admiravelmente concebido e escrito para sacudir a opinião pública.
Zola foi sem dúvida o primeiro, pois Bernard Lazare não tinha podido
dar a seu comprometimento essas dimensões, a fazer do combate para a
revisão do processo Dreyfus uma causa moral e um dever republicano. De
repente, ele deu à ação dos partidários de Dreyfus uma coerência nova que
ultrapassava a causa do deportado à Ilha do Diabo. “O partido da Justiça
havia nascido”, assegura Joseph Reinach. Da mesma maneira, Zola ajudou,
por meio de suas excomungações, os inimigos de Dreyfus a se conhecerem
entre si e depois a se agruparem. A primeira divisão foi a dos intelectuais:
de um lado aqueles que, em apoio a Zola, assinaram, em 4 de janeiro de 1898,
o Manifesto dos intelectuais, escritores, normalistas, sábios, artistas, poetas,
“semi-intelectuais”, segundo Barrès, “lógicos do absoluto”, “aristocratas do
pensamento”: “Chamando-nos de intelectuais, realçava Anatole France, joga­
va-se sobre a inteligência”; e do outro lado, os guardiães dos valores
tradicionais que se agruparam, alguns meses mais tarde, atrás de Lemaitre,
Brunetière, Sully Prudhomme, na “Liga da Pátria Francesa”. Porém Zola fez
mais do que dividir o campo literário: ele não deixou de ter influência sobre
c campo político. Em 1897, e ainda em 1898, Méline tinha sem dúvida razão
em dizer que não havia, em política, o caso Dreyfus. A quase-totaiidade do
inundo político era antidreyfusiano, por instinto, por prudência, por ignorân­
cia. E eram apenas, até então, individualidades como Scheurer Kestner,
como Trarieux, como Clemenceau, logo como Jaurès, que escapavam uma

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após as outras da convicção comum de que Dreyfus era culpado ou de que
ele devia sê-lo. Ao longo do ano de 1898 os profissionais da política, sofrendo
a influência dos intelectuais e dos jornalistas, começaram a se classificar,
lentamente, pois as eleições de maio de 1898 incitavam mais ainda à
desconfiança. A conjunção dos centros, que recusava o caso Dreyfus, não
resistirá: a divisão dos intelectuais ajudará a “formalizar” a divisão dos
políticos; e a divisão dos interesses e das idéias que se operará dentro do
mundo político, a partir do fim de 1898 e mais ainda em 1899, separando,
em geral, um esquerda dreyfusiana de uma direita antidreyfusiana, far-se-á
amplamente em torno das grandes oposições que o Eu acuso tinha assinala­
do e que ele simbolizava. "E a lógica do campo literário, constata Christophe
Charles, que cria este novo corte, redesenhando os contornos da direita e da
esquerda, dando de novo ideologias de combate aos partidos no poder com
suas idéias chegando ao fim: nacionalismo de um lado, anticlericalismo e
defesa republicana do outro.” Nisso, Zola não fez mais do que marcar o papel
dos intelectuais dentro da cidade, provocando pela primeira vez na França,
seu reagrupamento e seu comprometimento coletivo. Ele também indicou a
capacidade deles, da qual o século XX oferecerá outros exemplos, para
estabelecer inclinações políticas, para abrir caminho a reclassificações.
Além disso, Zola foi a primeiro a ter teorizado a caso Dreyfus, traçando,
a golpes de foice, a fronteira dos valores e das mentalidades que aí se opunham:
de um lado, a moral democrática, o respeito pelo direito, o ideal de justiça e
de verdade, o homem tido como medida de todas as coisas; do outro, as
virtudes tradicionais, das quais o exército se estimava o refúgio e o guardião,
a exaltação do sentimento nacional, o respeito por valores superiores ao
indivíduo, ordem estabelecida, organizações consagradas, coisas julgadas.
Certamente, o Eu acuso simplifica “o caso” ao mesmo tempo que o esclarece.
Ele impõe à França - ou às duas Franças - , no fim do século XIX, uma visão
ao mesmo tempo lúcida e sumária. Mas a carta de Zola continua, perto de um
século após sua publicação, a fixar a linha de divisão dos dois campos que se
confrontam e, talvez, ela designe duravelmente dois tipos de pensamento e de
atitudes, duas culturas, que encontraram, no decorrer do século XX, novas
razões para se confrontarem, dentro de uma "guerra civil que ainda perdura.”

► O bras g e r a is s itu a n d o o “Eu a c u s o ” d e /Cola d e n tro d e se u c o n te x to h istó rico . - Joseph


Reinach, H isto ire d e VAÍÍaire D reyfu s, 7 vols., Paris, l.a Revue blanche, 1901-1911, Fasquelle,
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prefácio de Pascal Ory; L 'o e u v re d e L é o n fílu m , Albin Michel, 1965, 1.1; Mareei Thomas,
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O bras e a r tig o s e sc la r e c e n d o m a is p r e c is a m e n te a g ê n e s e e a in flu ê n c ia do “E u a c u s o ” de
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1299
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zembro de 1961; idem, L’Afíaire Dreyfus, E n c y c lo p a e d ía U n iversalis.
Citar-se-á como evidentemente essencial: L e p r o c è s Z o la , resumo estenográfico in e x te n s o e
documentos anexos, 2 vots.. Paris, Librairie du Siècle, 1898; E m ile Z ola, 1'Affaire D reyfu s, la
v e rité en m a rch e, reedição, prefácio de Colette Becker, Paris, Carnier-Flammarion, 1969.

Jean-Denis b r e d in .

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