PRÓ-REITORIA DE PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E ARTES – PPGLA
Manaus
2017
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E ARTES – PPGLA
Manaus
2017
Agradeço, primeiramente, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas –
FAPEAM – instituição histórica fundada devido à luta de diversos pesquisadores, pela concessão
da bolsa de estudo para a viabilização deste trabalho, embora o processo de sucateamento e
desmonte das políticas públicas voltadas à pesquisa, à ciência e à tecnologia ter se aprofundado
na então gestão do Governo do Estado nesse período, expressando-se, por exemplo, nos
constantes e longos atrasos de pagamentos das bolsas, dificultando em demasia a presente
pesquisa.
Agradeço, de modo especial, à minha companheira de vida, Anne Lucy, e ao meu filho nascido
nesse período, Benjamin Gael, pelo amor (esse imenso estranho onde se encontra tudo) e pelo
compartilhamento da atenção e da aprendizagem necessária para, como nos ensinou Italo
Calvino, reconhecer no inferno cotidiano que nos rodeia quem e o que não é inferno, e preservá-
lo, para abrir espaço para um desmedido direito básico e revolucionário: a alegria.
Agradeço aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras e Artes da UEA pelas aulas,
sugestões, bibliográfias e debates, especialmente, à Juciane Cavalheiro, ao Mauricio Matos e ao
Allison Leão, e ainda aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras da UFAM Nicia
Zucolo e Leonard Costa.
Agradeço, de modo especial também, ao meu orientador Allison Leão pelas orientações, leituras,
conversas, debates e sugestões.
Agradeço imensamente aos meus familiares, especialmente à Vanja Borges, ao Roberto Borges,
ao Vagner Costa, à Roberta Borges, ao Filipe Xavier, ao Diego Borges, à Nathália Borges, à Zila
Lima e à Júlia Barbosa, pelo constante apoio, em diversas situações, e pelo incentivo, mesmo
que na forma de construção de mais obstáculos para a conclusão deste trabalho.
Agradeço aos meus amigos Alfredo Monte e Vinícius do Amaral pelas leituras e sugestões
iniciais imprescindíveis, ao Antonio Pereira Oliveira (o Neto), pela camaradagem nas lutas e na
vida, além da importantíssima solidariedade financeira e agradeço, finalmente, ao meu imenso
amigo Arcângelo Ferreira, primeiramente, pela responsabilidade, em certa medida, de minha
inserção na literatura, segundo, pela apresentação da obra de Manuel Scorza, terceiro, pelas
leituras e sugestões em todos os meus textos, sejam acadêmicos ou literários, e, por último, e
mais importante, pela amizade que rachou meu mundo, tornou-o “diafáno” e borgiano.
à tradição dos vencidos
RESUMO
Este estudo apresenta uma interpretação da composição estética de Bom dia para os defuntos
(1972), Redoble por Rancas (1970) em original, do escritor peruano Manuel Scorza, primeiro romance da
pentalogia La guerra silenciosa, que recriou ficcionalmente as lutas travadas pelos camponeses indígenas
dos Andes Centrais peruanos contra latifundiários e uma mineradora norte-americana nas décadas de
1950 e 1960, situado no contexto do boom da narrativa latino-americana. Nele procurei responder a dois
problemas fundamentais interligados: como se construiu a significação da violência e da história
mimetizada na forma romanesca; e qual estratégia cultural se realizou no âmbito da relação conflituosa
entre as instâncias pré-moderna e moderna própria da condição sociocultural peruana. Nesse sentido, no
primeiro momento, analisei a representação da violência a partir de sua aproximação com o conceito
benjaminiano de violência mítica, uma vez que as lutas camponesas estão inseridas na relação entre as
esferas do direito, do poder e da violência, possibilitando evidenciar uma ordem mítica do direito que
dispõe como condição para os viventes indígenas uma mera vida peculiar em contrapartida à dimensão
soberana de decisão da vida histórica. No segundo momento, procurei compreender a paradoxal inserção
estética do romance, que se inscreve ao mesmo tempo no indigenismo peruano e na nova narrativa
hispano-americana, como um caso singular para o funcionamento do realismo maravilhoso, propiciando,
por meio da conjunção sêmica entre a ordem real e maravilhosa, a inserção da racionalidade do mito na
ordem sobrenatural como armadura do porvir dos vencidos andinos para o efeito de sentido da História
mitificada. No terceiro momento, proponho ler a imagem geral da narrativa como mônada, em resposta à
violência da forma do contéudo, no sentido de apresentação da história dos vencidos andinos em sua
reescritura estética através de uma imagem dialética conforme a perspectiva conceitual benjaminiana. Em
seguida, considero a antropofagia, no que concerne à devoração transcultural enquanto solução estética,
como estratégia de realização do romance, visto que se evidencia uma digestão criadora e selvagem da
cultura moderna a partir da infiltração de elementos pré-modernos, tornando, assim, inteligível a
contraditória inserção estética da obra. Por fim, cogito a possibilidade de uma politização da estética do
realismo maravilhoso em Bom dia para os defuntos, tensionando a vocação história do boom, de
substituição da política pela estética, conforme a perspectiva crítica de Idelber Avelar (2003).
Este estudio presenta una interpretación de la composición estética de Redoble por Rancas
(1970), del escritor peruano Manuel Scorza, la primera novela de la pentalogía La guerra silenciosa, que
recrea a través de la ficción las luchas de los campesinos indígenas los Andes Centrales del Perú contra
los grandes propietarios de tierras y una empresa estadounidense de minería en los años 1950 y 1960,
situada en el contexto del boom de la narrativa latinoamericana. Lo busqué dar respuesta a dos problemas
fundamentales relacionados: cómo se construyó el significado de la violencia y de la historia mimetizada
en la forma novelesca; y qué estrategia cultural se llevó a cabo bajo la relación de confrontación entre las
instancias premodernas y modernas de las condiciones socio-culturales propios del Perú. En este sentido,
en un primer momento, analicé la representación de la violencia de su enfoque de concepto de violencia
mítica de Walter Benjamin, ya que las luchas campesinas están incrustados en la relación entre las esferas
del derecho, del poder y del la violencia, permitiendo evidencia una orden mítica del derecho que dicha
como condición para los vivientes nativos una mera vida peculiar en contraste con la dimensión de
decisión soberana de la vida histórica. En un segundo m omento, me trató de comprender la inserción
estética paradójica de la novela, que cae al mismo tiempo en el indigenismo peruano y en la nueva
narrativa hispanoamericana, como un caso especial para la operación del realismo maravilloso,
proporcionando, a través de la combinación sémica entre el orden real y maravilloso, la inserción de la
racionalidad del mito en el orden sobrenatural como coraza del porvenir de los vencidos andinos para el
efecto de sentido de la historia mitificada. En un tercero momento, propongo leer la imagen general de la
narrativa como mónada, en respuesta a la violencia del la forma del contenido, como presentación de la
historia de los vencidos andinos en su reescritura estética a través de una imagen dialéctica según la
perspectiva conceptual de Benjamin. En seguida considero la antropofagia, en lo que se refiere la
devoración transcultural en cuanto solución estética, como estrategia para la realización de la novela, ya
que muestra una digestión creativa y salvaje de la cultura moderna desde la infiltración de elementos
premodernos, lo que hace inteligible la inserción estética contradictoria de la obra. Por último, cogito la
posibilidad de una politización de la estética del realismo maravilloso en Redoble por Rancas, causando
una división en la vocación historia del boom, de reemplazo de la política por el estético, según la
perspectiva crítica de Idelber Avelar (2003).
Nada mais original, nada mais intrínseco a si que se alimentar dos outros. É
preciso, porém, digeri-los. O leão é feito de carneiro assimilado.
INTERLÚDIO .....................................................................................................................................89
APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A VALIDADE DOS PRESSUPOSTOS DO BOOM E DO
REALISMO MARAVILHOSO NA CRÍTICA LATINO-AMERICANISTA E UMA HIPÓTESE DE
TRABALHO GERAL
CAPÍTULO 2 ..................................................................................................................................... 121
A SINGULAR E PARADOXAL INSERÇÃO ESTÉTICA DE BOM DIA PARA OS DEFUNTOS:
ENTRE O ROMANCE SOCIAL INDIGENISTA E “A MÁQUINA DE SONHAR” REALISTA
MARAVILHOSA
2.1 O ROMANCE SOCIAL: A TRADIÇÃO INDIGENISTA PERUANA E O CASO DE HETEROGENEIDADE DA
NARRATIVA SCORZIANA ................................................................................................................... 122
2.2 A MÁQUINA DE SONHAR: O FUNCIONAMENTO DO REALISMO MARAVILHOSO NA NARRATIVA
SCORZIANA ...................................................................................................................................... 157
2.3 LIMIAR II: ENTRE O REALISMO E O MITO, OU O MITO COMO ARMADURA DO PORVIR DOS VENCIDOS NO
EFEITO DE SENTIDO DA HISTÓRIA MITIFICADA .................................................................................. 190
Este estudo investiga uma obra contextualizada no chamado boom da literatura latino-
americana, cujo ápice ocorreu por volta de 1960, época histórica marcada por convulsões
políticas e sociais, onde grande parte dos países latino-americanos sofreram golpes sucessivos de
Estado. A violência predominou no período, seja a violência de uma ditadura civil-militar ou a
dos conflitos socioideológicos com relação ao imperialismo. Naturalmente, os mecanismos
relacionados à mimese na literatura recriam a marca de uma época, assim, de forma notável, a
narrativa latino-americana representou ao seu modo essa violência. Esse é um dos pontos que irei
analisar.
Antes de ser tornar romancista, Manuel Scorza já era um poeta e editor conhecido no
Peru. Em 1946, ao ingressar na Universidad Nacional de San Marcos, em Lima, aos dezoito
anos, Scorza começaria a se dedicar a área de Letras e Filosofia. Na Universidade, participou
1
Compartilho da ideia de fragilidade teórica do termo “realismo mágico”; como veremos, de acordo com Chiampi
(2012, p. 43), “convém justificar porque abdicamos da expressão ‘realismo mágico’ [...] nossa opção deve-se, antes
de tudo, ao desejo de situar o problema no âmbito específico da investigação literária. Maravilhoso é termo já
consagrado pela Poética e pelos estudos crítico-literários em geral, e se presta à relação estrutural com os outros
tipos de discursos (o fantástico, o realista). Mágico, ao contrário, é termo tomado de outra série cultural e acoplá-lo
ao realismo implicaria ora uma teorização de ordem fenomenológica (a ‘atitude do narrador’), ora de ordem
conteudística (a magia como tema).”
13
ativamente do movimento estudantil, tendo aderido à militância de esquerda. Na época, fez parte
das fileiras do APRA – Alianza Popular Revolucionaria Americana, mais conhecido como
Partido Aprista Peruano, um partido de centro-esquerda fundado por Víctor Raúl Haya de la
Torre, principal ideólogo da esquerda aprista. Entre os anos de 1945 e 1948, o partido aprista
tinha intervenção direta na coalisão do governo de Bustamante Rivero, que era composto
também pelo Partido Comunista e outros partidos de esquerda. Devido às tensões sociais geradas
pelo governo de coalisão, em 1948, o Peru sofreu um golpe militar liderado pelo general Odría,
que comandou o país até 1956. Manuel Scorza foi preso durante nove meses devido à resistência
na Universidade, depois viajou por vários países da América Latina, morando definitivamente no
México durante o exílio. Sem conseguir concluir os estudos na Universidade, o que seria seu
primeiro livro de poemas Acta de la remota agonia foi destruído nesse período, de acordo com
Dunia Gras Miravet (2003, p. 25).
Nos anos 1950, Scorza rompeu com o partido aprista, depois de um giro à direita do
dirigente Haya de la Torre, que abriu mão do princípio anti-imperialista, deixando claro sua
posição na entrevista concedida para a revista americana Life, em espanhol. O rompimento se
deu através de uma carta pública ironicamente intitulada “Good-bye, Mister Haya”. Em 1956, ao
cabo da ditadura do general Odría, o liberal Manuel Prado foi eleito presidente. No mesmo ano,
Scorza ganhou o Prêmio Nacional de Poesia do Peru pelo seu livro de poesia, publicado ainda no
exílio, Las imprecaciones (1955). De volta a seu país, Scorza se tornou um poeta reconhecido,
tendo publicado os seguintes livros de poesia: Rumor en la nostalgia antigua (1948), Canto a los
mineros de Bolivia (1952), Los adioses (1960), Desengaños del mago (1961), Réquiem por um
gentilhombre (1962), Cantar de Túpac Amaru (1969) e El vals de los reptiles (1970). Marcada
por imagens fortes, a poesia scorziana já carregava a marca do compromisso político que
apareceria fortemente em sua prosa.
Como editor, Manuel Scorza foi um dos grandes responsáveis pela democratização do
livro na América Latina, depois de trazer do México, onde havia a grande influência dos pocket
books norte-americanos, a ideia dos livros de bolsos com baixo custo graças à introdução da
tecnologia de impressão offset, antes mesmo da força editorial que o boom proporcionaria.
Scorza publicava clássicos da literatura e vendia diretamente ao leitor através dos Festivais de
Livros em praças públicas. De 1958 até 1960, organizou Festivais em diversos países: Peru,
Colômbia, Venezuela, Equador e Cuba. Sempre preocupado com a qualidade dos livros, tinha
como objetivo a promoção cultural na América Latina.
14
A partir de 1956, Scorza começaria a se interessar cada vez mais pela questão do
campesinato indígena, devido às mobilizações e os levantes dos camponeses que ocorriam nas
comunidades e províncias do Peru, principalmente em Cuzco. O governo de Prado havia
experimentado uma mudança brusca positiva no desenvolvimento econômico. Com o
crescimento rápido, os grandes proprietários de terras ligados ao gamonalismo 2 – sistema arcaico
de manutenção do poder latifundiário peruano – ficaram debilitados, possibilitando a
organização e mobilização campesina. De 1959 até 1961, sobrevieram conflitos intensos no
departamento de Cerro de Pasco e Junín, após a mineradora mais importante do Peru, a
multinacional norte-americana Cerro de Pasco Corporation, entrar para o campo pecuniário e se
apropriar cada vez mais das terras de comunidades tradicionais de origem quéchuas 3, por meio
da ampliação de uma cerca que dividia o gado dos camponeses, culminando na organização do
Movimento Comunal do Peru, do qual Manuel Scorza, depois de viajar a Cerro de Pasco e
participar das mobilizações em 1960, seria o secretário de política, conforme assegura Miravet
(2003, p. 31):
2
Bethel sintetiza, por meio de uma análise do Mariátegui, no seguinte trecho, como funcionava o sistema autoritário
e arcaico do gamonalismo peruano: “Mariátegui opinaba que había una contradicción básica en la organización de la
tenencia de la tierra: entre el persistente ayllú co-munalista y los latifundios feudales. Estos últimos habían creado
una compleja estructura política para la explotación parasitaria cuyo punto fundamental era la institución del
gamonalismo. El gamonal (terrateniente y cacique) se había convertido en el punto de articulación entre la
burocracia local y el sistema político y permitía y protegía el funcionamiento de instituciones tales como el yanaco-
nazgo (equivalente de la servidumbre medieval) y el enganche (mano de obra contratada). Así pues, el liberalismo y
el capitalismo eran una simple ficción: la clase terrateniente había resultado totalmente incapaz de convertirse en
una burguesía nacional.” (BETHELL, 1997, p. 213)
3
Etnia indígena localizada nos Andes Centrais, principalmente no Peru, que se comunica através da língua quéchua.
4
Tradução minha: “se fundó em septiembre de 1961 el Movimiento Comunal del Perú, uma pequena organización
que concentraba a los principales líderes de los Andes Centrales, y de la cual formó parte Scorza como secretario de
política, aparecendo como un personaje ‘ilustre’ que daba su apoyo a la lucha campesina. Esto se devia a que, em
estos años, Scorza, paralelamente a su trayectoria poética, había desarrollado uma importante actividad como editor,
que le reporto uma gran popularidade por la difusión de los libros que llegó a publicar.”
15
em Rancas, no episódio ficcionalizado por Scorza, que se deflagrou a ação mais violenta. Genaro
Ledesma, advogado que liderava as mobilizações campesinas de Cerro de Pasco, tempos depois,
deu testemunho da participação de Manuel Scorza nas manifestações:
[Scorza, então,] pega seu carro e vai para Cerro de Pasco; chega quando nós estamos
promovendo uma série de recuperações de terras (...). A agitação é muito grande, há
muito campesinato e, às vezes, muita polícia. Nesse momento, a presença de Scorza é
valiosa, como era um escritor conhecido por seus poemas, o prefeito de Cerro e o
Ministro tiveram a precaução de não incomodá-lo, de não detê-lo, ou seja, de tratá-lo
com respeito. E ele, por sua vez, serviu de proteção para os dirigentes sindicais, os
dirigentes das comunidades, e a quem falasse. (...). Scorza está um bom tempo em Cerro
de Pasco; Ele participa das manifestações dos camponeses, nas manifestações dos
mineiros pela cidade; está interessado enormemente pelos eventos (...)5. (LEDESMA
APUD MIRAVET, 2003, p. 34, inclusão no original)
Além do interesse político pelas lutas andinas, Scorza, durante o tempo em que ficou em
Cerro de Pasco participando dos movimentos camponeses pela terra e contra os latifundiários do
gamonalismo e a mineradora Cerro de Pasco Coporation, intentava documentar os fatos para
posteriormente escrever artigos ou ensaios sobre a situação para os jornais. Registrou tudo que
era possível, através de fotografias e entrevistas, como assegurou na nota introdutória do
romance: “As fotografias que serão publicadas em volume à parte e as gravações em fita
magnética que registram estas atrocidades demonstram que os excessos deste livro são pálidas
descrições da realidade6” (SCORZA, 1972, p. 2). Depois de expulso de Cerro de Pasco, foi
residir em Paris em meados de 1968. Levando os materiais recolhidos, por algum motivo, Scorza
abandonou a ideia original de escrever ensaios jornalísticos e resolveu, numa reviravolta,
escrever romances. Nesse contexto, surgiria Bom dia para os defuntos, o presente objeto de
estudo, e posteriormente, a pentalogia A guerra silenciosa, conforme sustenta Miravet (2003, p.
41):
Scorza traz consigo todos os materiais que havia recolhido sobre as rebeliões
campesinas no Peru: documentação, fitas, fotos, entrevistas, etc., disposto a escrever
algo importante sobre seu país, que valeria a pena ser lido. Não está claro em que
momento Scorza considerou a possibilidade de transformar sua história em um romance
e, mais tarde, em um ciclo romanesco. Talvez tenha sido então, a partir de 1968, uma
vez instalado em Paris, ao examinar com calma todo o conjunto de materiais que havia
5
Tradução minha: “[entonces Scorza] agarra su coche y se va a Cerro; llega cuando estamos nosotros ejecutando
una serie de recuperaciones de tierras (...) La agitación es muy grande, hay mucho campesinado y a la vez mucha
policía. En estos momentos llega Scorza y su presencia es valiosa porque como era un escritor conocido por sus
poemas, entonces el Prefecto de Cerro y el Ministro tuvieron la precaución de no molestarlo, de no detenerlo, de
tratarlo con respeto, y él, a su vez, nos sirvió de amparo a los dirigentes sindicales, a los dirigentes de las
comunidades, y a quien habla. (...) Scorza está um buen tiempo en Cerro de Pasco; él participa en las marchas de los
campesinos, en la marcha de los mineros por la ciudad; va interesándose enormemente por los sucesos (...).”
6
Scorza não chegou a publicar esse “volume à parte” com as fotografias das lutas campesinas dos Andes peruanos.
Contudo, quatro anos depois, em 1974, a revista argentina Crisis, número 12, publicou algumas fotos cedidas por
Scorza, as quais constam no anexo deste estudo.
16
recolhido. Em todo caso, o que parece claro é que a intenção original de Scorza não era
escrever uma novela, e sim um ensaio, como já havia antecipado:
‘Em Paris, escrevi um informe sobre Rancas. Reli-o e li para todos os amigos. Vi que
faltava coração; não via o que tinha visto. Então, um dia joguei tudo isso e sonhei a
realidade, como se eu estivesse lá dentro. E escrevi Redoble por Rancas.’7
De imediato, Scorza indica, desse modo, que a história dos camponeses indígenas
peruanos se inscreve no romance de modo diverso do discurso histórico clássico, isto é,
apresenta-se esteticamente a partir de duas dimensões imbricadas: de um lado, da liberdade
7
Tradução minha: “Scorza trae consigo todos los materiales que havia estado recogiendo sobre las rebeliones
campesinas en el Perú: documentación, cintas, fotos, entrevistas, etc., dispuesto a escribir algo importante sobre su
país, que mereciera la pena de ser leído. No está claro en qué momento concibió Scorza la posibilidad de
transformar su historia en una novela y, más tarde, en un clico novelístico. Tal vez fuera entones, en 1968, una vez
instalado en París, al examinar com calma todo el conjunto de materiales que había recogido. En todo caso, lo que sí
parece claro es que la intención original de Scorza no era escribir una novela, sino um ensayo, como ya se há
anticipado:
‘En París escibí un informe de Rancas. Lo releí y se lo leí a amigos y todo. Vi que le faltaba el corazón; no veia lo
que yo había visto. Y entonces un día lo que hice fue arrojar todo esto y soñar la realidade, como si yo estuviera
adentro. Y escribí Redoble por Rancas.’”
8
Em nota, Hamílcar de Garcia explica sua solução tradutória, afirmando que os problemas da tradução “começam
com o título. Redoble por Rancas é intraduzível: ‘Rufo (fúnebre) de tambores pela povoação de Rancas’.
Escolhemos, no contexto, Bom dia para os defuntos, por ter a mesma consonância fúnebre e irônica do livro.”
(SCORZA, 1972, p. xiii e p. xiv).
17
ficcional, de outro, de sua atuação testemunhal. Nesse sentido, Scorza termina o trecho
supracitado da nota introdutória afirmando que “os protagonistas, os crimes, a traição e a
grandeza, quase têm aqui os seus nomes verdadeiros” (1972, p. 1, ênfase minha), e, no último
parágrafo, finaliza assegurando que “certos fatos e a sua situação cronológica, certos nomes,
foram excepcionalmente modificados para proteger os justos contra a justiça.” (ibid., p. 2, ênfase
minha). É precisamente dentro da condição desse “quase” e desse “excepcionalmente
modificados” que Scorza “sonhou a realidade”, dando significação, portanto, à literatura como
uma instituição anti-instituição, por assim dizer, que possui por princípio “o poder dizer tudo”,
conforme sustentou Derrida (2014, p. 51), inclusive de poder reescrever esteticamente a
história9.
Portanto, este estudo parte do pressuposto de que a história da luta dos camponeses
quéchuas contra o imperialismo da Cerro de Pasco Corparation e o regime arcaico dos
latifundiários peruanos se configura no romance não simplesmente como uma “crônica
exasperantemente real” no sentido de um reflexo da realidade, mas naquilo em que a verve
produtiva da arte internaliza e imobiliza da realidade social na própria forma romanesca, ou, nas
palavras de Antônio Candido (2000, p. 4), naquilo em “que o externo (no caso, o social) importa,
não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”. Nesse sentido, cabe se perguntar por
que e qual função o realismo maravilhoso desempenhou na internalização da violência na
ficcionalização da história dos camponeses andinos em Bom dia para os defuntos.
Assim, em síntese, este estudo procurou responder, de maneira geral, dois problemas
fundamentais interligados: como se construiu a significação da violência e da história
9
Nesse sentido, parece-me fora de propósito trabalhos, como alguns citados no decorrer deste estudo, que procuram
estabelecer um mero juízo histórico do romance scorziano sem levar em consideração a estética da elaboração de
(re) leitura da história a partir da ficção, uma vez que o romance não possui como princípio uma relação direta com
a realidade, mas que, ao mesmo tempo, não nega o estabelecimento de uma relação indireta, carregando
consequências éticas e políticas importantíssimas, inclusive para a leitura da própria História, como veremos.
18
formulado por Irlemar Chiampi. Nesse sentido, analisei a paradoxal inserção estética de Bom dia
para os defuntos – que se inscreve ao mesmo tempo na tradição do romance social do
indigenismo peruano, sendo um caso particular de heterogeneidade narrativa, considerando a
inserção de resíduos orais quéchuas por meio de uma diglossia cultural, e na renovação estética
da nova narrativa hispano-americana – como um caso singular para o funcionamento do
realismo maravilhoso, na medida em que, por meio da conjunção sêmica entre a ordem real e
maravilhosa no plano enunciativo, propiciou a inserção da racionalidade e da estrutura do mito
na ordem sobrenatural, em referência ao universo mimetizado quéchua, construindo como
função ideológica uma espécie de armadura do porvir dos vencidos andinos para a constituição
do efeito de sentido da História da violência dos latifundiários e da mineradora Cerro de Pasco
Corporation em consórcio com o Estado peruano como História mitificada. Dito de outro modo,
procurei demonstrar que o realismo maravilhoso scorziano produziu um limiar entre o realismo e
o “mito” como modo estético de mitificar a História.
renovação narrativa.
No terceiro e último capítulo, proponho ler a imagem geral de Bom dia para os defuntos
como uma mônada, de acordo com a perspectiva conceitual benjaminiana, na qualidade de
resposta estética à violência significada na forma do contéudo, no sentido de apresentação da
história dos vencidos andinos em sua reescritura estética através de uma imagem dialética, que se
conforma na imobilização de dois tempos diacrônicos numa imagem única por meio de uma
sincronia entre o presente da ação diegética e a imagem mnêmica de um passado rememorado,
possibilitando, assim, verificar na luta singular dos camponeses quéchuas uma expressão do
todo, levando em consideração a representação da violência da estrutura arcaica do gamonalismo
e do imperialismo norte-americano como constitutivo da relação desigual e combinada do
capitalismo tardio. Em outras palavras, procurei ler a irrupção dos elementos externos dos
antagonismos sociais na composição do romance a partir da ressignificação de Walter Benjamin
do conceito leibniziano de mônada, onde na obra de arte se constitui numa coerência interna
imanente de imobilização dialética da realidade social em sua própria configuração estética por
meio de uma imagem dialética em que irrompe uma ambiguidade terminante, como um “mundo
em miniatura” que carrega um momento de verdade na forma mesma. Em seguida, considerei a
antropofagia de herança oswaldiana como uma espécie selvagem de elaboração da
transculturação narrativa, na acepção de Ángel Rama, no que concerne à devoração
intercultural enquanto solução estética, como estratégia de realização do romance, visto que se
evidencia uma digestão criadora e selvagem da cultura moderna a partir da infiltração de
elementos pré-modernos, tornando, assim, inteligível a contraditória inserção estética da obra
que impulsionou a singular realização do realismo maravilhoso scorziano. Por fim, cogitei a
possibilidade de uma politização da estética do realismo maravilhoso em Bom dia para os
defuntos como resultado do limiar entre a demanda aurática e a condição pós-aurática do projeto
de modernização literária do boom, sugerindo uma estética do jogo e da participação como
vocação lúdica, tensionando a vocação história do boom, de substituição da política pela estética,
conforme a perspectiva crítica de Avelar (2003).
Este estudo está estruturado, portanto, com três capítulos e um interlúdio, contendo como
particularidade um arranjo comum pautado na ideia de limiar que atravessa o romance de
diversas maneiras, como veremos. Nesse sentido, nomeio “Limiar” a cada seção final dos
capítulos, tendo como parâmetro uma zona intermediária entre duas categorias, geralmente
opostas, ou dois campos conceituais em conflito com delimitações claras nas suas oposições. Isto
21
Assim, mesmo ambos sendo amparados como metáforas espaciais, não se confunde o
conceito de fronteira (limite) com o de limiar. Enquanto o primeiro remete a uma demarcação
inviolável, como num território soberano, constituindo em violência o translado não autorizado,
o segundo se efetua sem limites claros, num movimento entre demarcações, como se
conformasse uma ponte entre dois territórios. O limiar, portanto, remete a operações intelectuais
e espirituais que se inscrevem no, segundo Gagnebin (2014, p. 36), “registro de movimento,
registro de ultrapassagem, de ‘passagens’, justamente de transições”. Por isso, os ritos de
passagens, como transição de um estado ao outro, são experiências limiares. Por outro lado, não
necessariamente um limiar pressupõe um ponto de chegada. Pode, ao contrário, significar um
estancamento, uma espécie de morada numa zona indeterminada, como observou Gagnebin
(ibid., p. 44), em relação à leitura de Franz Kafka feita por Benjamin:
2014, p. 45). Dito isso, as seções finais dos três capítulos desenvolvem na discussão crítica ora o
primeiro sentido ora o segundo, conforme poderá se verificar adiante. Ademais, de maneira
metalinguística, as últimas seções se configuram num limiar entre os capítulos desta dissertação,
naquilo que concerne à ressonância teórica para a configuração da leitura de Bom dia para os
defuntos como mônada antropofágica, propondo, assim, certa transgressão quanto à forma
estanque que os limites da burocracia acadêmica permitem à leitura das pesquisas por meio de
partições com fronteiras claras entre os capítulos.
CAPÍTULO 1
Bom dia para os defuntos e a violência mítica: entre a condição de homens-
toupeiras e homens-que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-a-luta
A realidade ficcional de Bom dia para os defuntos possui como enredo principal o
surgimento e o avanço vertiginoso de uma cerca nas terras dos camponeses indígenas quéchuas
das comunidades do altiplano de Junín, nos Andes Centrais peruanos, acarretando violência de
diversas ordens. Quando a cerca invade a comunidade de Rancas, personagem coletivo central,
forma-se um foco de resistência que acabará massacrado ao final da narrativa. O romance,
contudo, é composto por dois subenredos: o núcleo narrativo [1] centrado na luta de Héctor
Chacón, o Olho-de-Coruja, e seus companheiros da comunidade de Yanacocha contra o
poderoso latifundiário e juiz de direito Dr. Dom Francisco Montenegro; e o núcleo narrativo [2]
marcado pela resistência dos camponeses de Rancas liderados por Dom Fortunato contra a
opressão da empresa mineradora norte-americana Cerro de Pasco Corporation, proprietária da
cerca, e da Guarda de Assalto republicana, representante do Estado peruano.
Desse modo, para analisar essa dinâmica na forma de contéudo do romance, recorrerei,
neste capítulo, ao conceito benjaminiano de violência mítica como instrumento teórico mediador,
possibilitando verificar a rede de domínio dos viventes andidos enredada pelas forças
exploradoras e opressoras. Em seguida, usarei os conceitos de mera vida e vida histórica,
enquanto conceitos-consequências da força mítica do direito, para compreender a significação da
ambiguidade crítica dos camponeses indígenas frente ao destino de violência, quando se colocam
numa espécie de limiar entre a resignação e a resistência sem alcançar totalmente o despertar da
consciência histórica de luta como única saída da ordem diabólica do direito. Para tanto, vejamos
como se desenrola e se articula o enredo de Bom dia para os defuntos.
desenvolve nos capítulos ímpares, enquanto o último capítulo compõe o subenredo [2], que se
desenvolve nos capítulos pares. Em termos de enredo, o primeiro capítulo é o único fragmento
da narrativa que possui autonomia em relação aos núcleos narrativos, ou seja, não precisa
necessariamente de complemento de outro fragmento, estruturando-se como se fosse um conto10.
Por outro lado, ele também anuncia a temática central do romance e, a despeito de compor o
subenredo [1], relaciona-se com o núcleo narrativo [2] ao apresentar os limites temporais da
diegese. A interpenetração dos núcleos narrativos na abertura do romance se justifica porque os
povoados do altiplano de Junín são vizinhos demasiado próximos, sendo inclusive circunscritos à
mesma jurisdição, do departamento de Cerro de Pasco. Nessa perspectiva, o primeiro capítulo do
romance se configura não apenas como enunciador do tema, mas também como ponto de
referência para o leitor reorganizar os segmentos e assim compor cada subenredo. Portanto, antes
de analisar cada núcleo narrativo, primeiramente investigarei a relação entre o direito, o poder e
a violência no capítulo inicial, verificando como o conceito de violência mítica tangencia a
representação dessa relação numa de suas manifestações básicas: a coerção fundada na ameaça
do uso da força.
Bom dia para os defuntos inicia com uma anedota irônica ao redor de uma moeda perdida
pelo juiz e grande proprietário rural Dom Francisco Montenegro, expondo a dimensão do poder
coercivo do direito a serviço da classe dominante. O capítulo 1 – Onde o astuto leitor ouvirá
falar de certa moeda famosíssima – faz referência de imediato à violência que encerra o livro, o
massacre na comunidade de Rancas, quando menciona a fundação do cemitério de Chinche, o
mesmo cemitério referenciado no seu subtítulo – O que aconteceu dez anos antes de o Coronel
Marruecos fundar o segundo cemitério de Chinche. Abaixo a abertura do capítulo:
Pela mesma esquina da Praça de Yanahuanca por onde, correndo os tempos, surgiria a
Guarda de Assalto para fundar o segundo cemitério de Chinche, um úmido entardecer
de setembro soltou um terno preto. O terno, de seis botões, ostentava um colete
atravessado pela corrente de ouro de um Longines autêntico. Como em todos os
entardeceres dos últimos trinta anos, o terno desceu a praça para dar início aos sessenta
minutos do seu imperturbável passeio11. (BDPD, p. 5)
10
De fato, Scorza chegou a publicar uma primeira versão desse capítulo como um conto nos Cuardernos
Semestrales del Cuento em 1969. SCORZA, Manuel (1969): “Cierta célebre moneda”, Cuadernos Semestrales del
Cuento, vol. 3, n.º 5, p. 35-38 [primera versión del capítulo I de Redoble por Rancas].
11
A partir daqui, usarei nas citações a sigla BDPD para se referir ao livro Bom dia para os defuntos, de Manuel
Scorza, primeira edição brasileira, tradução de Hamílcar de Garcia, Ed. Civilização Brasileira, 1972, Rio de Janeiro.
26
A partir desse momento, ninguém do povoado ousou tocar na moeda do Dr. Montenegro:
“– É o sol do doutor – diziam emocionados – Gravemente instruídos pelo Diretor da Escola –
‘Espero que nenhuma imprudência leve os seus pais à cadeia!’” (BDPD, p.06). Com extrema
temeridade, como descreve ironicamente o narrador, a comunidade seguiu sua rotina
aparentemente normal com a moeda no mesmo local durante doze meses exatos. Ninguém se
atreveu a tocar nela, exceto um bêbado que o fez em um dia sem ter a mínima noção das
consequências, mas, uma vez sóbrio, lembrou que a devolveu ainda sonâmbulo para sua posição
original. A “famosíssima moeda” ficou conhecia em outras províncias, o único que ignorava a
fama do sol era “Dom Paco”, pelo menos até o dia em que a moeda completou um ano no
segundo degrau da escada. Quase na mesma hora do dia em que perdera, julgando-se carregado
de “boa sorte”, o Dr. Montenegro, ao pisar o famoso degrau, a encontrou. Então, ao cabo do
capítulo, enfim, “a província suspirou” (BDPD, p. 9), depois da saga da “moeda destinada a
provar a honradez da altiva província” (BDPD, p. 7).
“terno preto” garante a ordem da província pela permanente ameaça à violência implícita ao
exercício do direito e explícita ao papel social do latinfundiário. O sentido dado a essa coerção
social se aproxima demasiado de um tipo específico de violência, em uma de suas manifestações,
denominada por Walter Benjamin de violência mítica.
Nessa perspectiva, para Benjamin, o que funda e garante as relações sociais do direito é a
violência. Primeiro a violência enquanto meio fundante da lei, violência originária, ou seja,
instauradora do direito, razão da existência de um poder, através da vitória de uma força sobre
outra. Por conseguinte, emerge a violência mítica, porque além de instaurar o direito, ela também
reclama para si, automaticamente, a manutenção desse direito. Isto é, ao usar a violência como
meio para fundar um novo direito, este não abdica da violência quando o alcança, pelo contrário,
usa da violência para se manter. Assim, o que é fundado acaba tendo como fim o próprio direito
28
e não o que foi instaurado como direito. Consequentemente, a violência é utilizada de forma
permanente e necessária para preservação do direito, constituindo seu caráter cíclico e, portanto,
mítico. Em outras palavras,
No primeiro capítulo de Bom dia para os defuntos, fica nítida a alegoria do direito
representada na figura do Dr. Francisco Montenegro, quando, para recorrer às forças que o
acompanham e que ele representa, o narrador utiliza o sintagma, ao mesmo tempo, simbólico e
genérico: “terno preto”. Além do efeito estético irônico que a prosopopeia proporciona, ao
atribuir qualidades humanas a uma roupa, “o terno desceu a praça para dar início aos sessenta
minutos do seu imperturbável passeio” (BDPD, p. 5), o esvaziamento da individualidade na
metonímia “terno preto” evidencia a força mítica ligada ao direito, quando sugere que o uso da
força coerciva independe do sujeito que veste o traje símbolo do poder, uma vez que este era
inusual para os camponeses quéchuas.
quando o narrador faz menção a futura fundação do cemitério de Chinche depois do surgimento
da Guarda de Assalto na praça de Yanahuanca para desalojar a comunidade vizinha de Rancas,
evidenciando uma clara manifestação da violência predatória para conservar o direito
republicano do Peru como diretiva política do poder dos latinfundiários, de modo semelhante à
dinâmica conceitual da dimensão mantenedora do direito da violência mítica.
tendências, pois, ao mesmo tempo em que a corporação policial institui normas através de
decretos diversos, também protege as já vigentes. Quanto a este último tópico é preciso
acrescentar que as intervenções mais brutais, como as semelhantes ao massacre anunciado no
início do romance, reatualizam a força fundadora da violência e são geralmente exigidas quando
o Estado, enquanto poder soberano, não consegue mais garantir a ordem jurídica dos vencedores.
A máxima “por razões de segurança” se torna, assim, a frase típica de justificação da ação
policial truculenta.
Até mesmo essa dissimulação dos objetivos da polícia pode ser encontrada nas páginas de
Bom dia para os defuntos: acionada para defender os interesses da Cerro de Pasco Corporation,
a Guarda de Assalto alega ter atacado a população de Rancas por “razões de segurança”, como
veremos, para manter válido o registro de propriedade de terras da mineradora norte-americana.
Assim, o primeiro capítulo do romance se configura como enunciador da temática central da
narrativa, traduzida aqui pelo conceito benjaminiano de violência. Vejamos agora como cada
subenredo se desenvolve com ênfase na construção de sentidos semelhantes às características
seminais da violência mítica.
Ao longo da vida, Héctor Chacón acumulou diversas razões para lutar contra tudo o que
representa o Dr. Montenegro. O primeiro desejo de acabar com o juiz surgiu ainda na infância
pelos abusos cometidos contra seu pai. Dinamitando rochas a mando de “Dom Paco”, o pai do
Olho-de-Coruja, Juan Chacón, ficou com audição profundamente prejudicada, ficando conhecido
desde então como “o Surdo”. No dia do aniversário da pátria peruana, Juan Chacón havia
acertado sem querer, enquanto brincava com seu filho Héctor, uma bola de pano no rosto do Dr.
Montenegro, quando este voltava da corrida de cavalo na comemoração em Yanahuanca. Como
punição, o juiz mandou colocar a família de Chacón ao relento enquanto “o Surdo” cercava um
pasto de trezentos metros de lado. Juan Chacón precisou de cento e noventa e três dias para
terminar o cerco: “Foi a primeira vez – tinha nove anos – que a mão de Héctor Chacón, o Olho-
de-Coruja, sentiu sede da garganta do Montenegro” (BDPD, p. 52).
31
O segundo desejo de acabar com o juiz sobreveio, tempos depois, quando Héctor Chacón
chegou à maturidade, por causa de diversas violências cometidas contra ele e a comunidade,
comandadas pelo “terno preto”. O Olho-de-Coruja relata, no capítulo 19 – Onde o leitor se
distrairá com uma partida de pôquer, por meio de uma narrativa paralela que interrompe
periodicamente o relato do pôquer de noventa dias entre o Dr. Montenegro e Dom Migdônio –
dono da fazenda O Estribo – os abusos que sucederam antes de sua prisão em Huanúco. Primeiro
prenderam seus cavalos sem justificativa alguma, inclusive Lucanco, o equino favorito. Depois,
devido às reclamações, o Dr. Montenegro mandou colocar os animais de sua fazenda para
destruir o batatal de Chacón em Yanaceniza. O Olho-de-Coruja reclamou novamente ao juiz,
mas não obteve resposta positiva. No outro dia, decidiu fazer uma denúncia dos animais na
prefeitura, mas acabou recebendo voz de prisão de dois guardas-civis por suposto roubo de
equinos. Após sete dias detido, recebeu o “perdão” do juiz. O doutor, no entanto, mandou
expulsar todos os camponeses das terras de Yanaceniza, inclusive a família de Chacón, incluída
sua mãe, a valente Sulpícia. Na saída da prisão, o pai de Chacón lembrou que os camponeses
não valem nada para o “terno preto”. O amigo Carbajal, em seguida, assegurou o poder do
doutor como autoridade suprema. Então, Requis, o agente municipal, concluiu o caráter mítico
da violência executada pelo latinfundiário: “– O Juiz – curva-se Requis – está pronto a meter-nos
todos na cadeia. Não se pode fazer nada. Força é força” (BDPD, p. 117, ênfase minha).
cinco anos. Depois de libertado, sabendo das novidades da província e dos abusos do “terno
preto”, Chacón sonhou literalmente com o fim da violência do Dr. Montenegro. Nesse sonho,
“uma cantiga solitária (...) convocava os homens: dez, cem, duzentos, quinhentos, mil, quatro mil
homens avançaram pelo mesmo caminho cantando a canção inaudita” (BDPD, p. 61). Esses
homens cavalgaram para a província em direção à casa do “terno preto”, os guardas-civis,
temerosos, fugiram; os peões então derrubaram o portão da fazenda, o doutor ainda tentou
escapar, mas não conseguiu. Na praça fizeram um julgamento público para o Dr. Montenegro:
“Há alguém que não tenha sido insultado por este homem? Ninguém se levantou. (...) Ninguém
perdoou o doutor. Montaram-no num burro e o expulsaram da província, entre músicas e
foguetes.” (BDPD, p. 62). Depois do sonho, Héctor Chacón acordou tenso e desejou então pela
segunda vez acabar com o Dr. Montenegro, mas neste dia desejou de verdade.
Dom Migdônio, ao sentir seu poder ameaçado por um grupo de camponeses da fazenda
que planejava fundar um sindicato, conseguiu o feito de registrar no atestado de óbito de quinze
peões o primeiro e único “infarto coletivo” da história, depois de tê-los envenenados. O episódio
é narrado no capítulo 15 – Curiosíssima história de um mal-estar de corações não nascido da
tristeza. O Estado peruano tinha solicitado que Dom Migdônio enviasse alguns de seus melhores
homens para servir à pátria, o grande fazendeiro os escolheu levando em consideração “as cinco
melhores dentaduras: Encarnación Madera, Ponciano Santiago, Carmen Rico, Urbano Jaramillo
e Espíritu Félix.” (BDPD, p. 84). Na volta à fazenda, Espírito Félix, depois de saber que existia
um “escrito misterioso” chamado constituição que “afirmava que grandes e pequenos eram
iguais”, e que “nas fazendas do Sul um homem chamado Blanco 12organizava sindicatos de
camponeses” (BDPD, p. 84), tomou a frente do movimento de organização popular.
12
Personagem em referência histórica ao dirigente campesino trotskista Hugo Blanco.
33
– Nesta província – quase não se percebia seu ressentimento – existe alguém que nos
tem debaixo dos pés. Nas cadeias já vi delinquentes rogar a Jesus Cristo Coroado: os
assassinos e os filhos da puta se ajoelham e rezam chorando a oração do Justo Juiz. O
35
senhor Jesus Cristo se aplaca e perdoa-os, mas nesta terra há um juiz que não se aplaca
com palavras nem com orações. É mais poderoso do que Deus. (BDPD, p. 15)
A comparação parece exagerada, mas ilustra muito bem o grau de vulnerabilidade dos
trabalhadores: carentes, no entendimento do personagem, tanto no plano material quanto
metafísico, para no fim evidenciar o caráter mítico em que consiste a violência do “terno preto”.
Na reunião, os membros ventilaram a ideia de simular uma briga na qual a morte do doutor fosse
entendida como resultado de uma confusão. Sacrificariam para isso a vida do Menino Remígio,
de Isaías Roque e Tomás Sacramento, traidores da comunidade, para não desconfiarem de nada.
Preocupado, Abígeo perguntou sobre as consequências do assassinato, Chacón respondeu que
acarretaria cinco anos de cadeia, mas que “sabendo aproveitar o homem encarcerado sai mais
homem.” (BDPD, p.16). Com todos convencidos, finalmente, Chacón se ofereceu para matar o
juiz pelo povoado.
Robles prossegue revelando o caráter autoritário de seu pensamento legalista quando afirma que
a violência somente pode ser utilizada com “autorização” das “autoridades”. Como o Estado
peruano possui o monopólio da violência, porque, em consonância com a violência mítica,
procura de todas as formas retirar a violência da mão dos indivíduos nos domínios da ação que
julga ameaçadora para a ordem, apenas as autoridades que encarnam o direito podem decidir
sobre a vida ou a morte de alguém. Esse poder do Estado sobre a vida e a morte dos viventes que
o procurador Robles descreveu, pode se mostrar mais terrível se, a partir da semelhança
estabelecida com o conceito benjaminiano, clarificarmos o seu sentido nos termos da violência
mítica. Para Benjamin, “seu sentido não é o de punir a infração do direito, mas o de instaurar o
novo direito. Com efeito, mais do que em qualquer outro ato de cumprimento do direito, no
exercício do poder sobre a vida e a morte é a si mesmo que o direito fortalece” (2013, p. 134),
como no caso da pena de morte. É nesses casos, precisamente, que se revela a podridão do
direito enquanto violência mítica. Nessa lógica, na narrativa scorziana, só quem poderia autorizar
a morte de alguém seria o próprio “terno preto” como alegoria do direito.
O plano de matar o Dr. Montenegro, enquanto violência como meio para pôr fim a
injustiça, pode ser considerado, inicialmente, nos termos de Benjamin, como violência mítica.
Para tanto, a morte do juiz deveria promover a derrubada do direito e instauração de um novo
direito, pois, de acordo com Benjamin, toda violência como meio é instauradora ou mantenedora
de direito. Para Slavoj Zizek (2014, p. 24), contudo, dentro desse campo conceitual, a violência
insurgente contra a violência mítica, ou violência objetiva, que se constitui “sob a forma dessa
violência subjetiva e irracional”, parece se tratar de uma autêntica violência. “É esta violência
que parece irromper ‘do nada’ que corresponde, talvez, àquilo que Walter Benjamin, em seu
‘Para uma crítica da violência’, chamou de violência pura, divina.”
Para Benjamin, a violência divina ou violência pura, aquela que se caracteriza apenas
como fim, constitui-se como violência destruidora de toda ordem de direito, de toda força mítica.
Um de seus exemplos, referindo-se a luta de classes, é a greve geral proletária, que se constitui
por um não-fazer que possui um poder como fim, uma violência pura não-sangrenta, o de
aniquilar o poder do Estado e, por conseguinte, de toda ordem mítica do direito. Nesse sentido,
também é justificado designar essa violência também como aniquiladora; ora, ela o é
apenas de maneira relativa, com respeito a bens, direito, vida e que tais, nunca de
maneira absoluta como respeito à alma do vivente. (...) e ela será contestada com a
observação de que, segundo suas deduções, ela permitiria também, condicionalmente,
aos homens o uso da violência letal uns contra os outros. Isto, entretanto, não pode ser
admitido. Pois a pergunta ‘Tenho permissão para matar?’ recebe irrevogavelmente a
37
Zizek (2014, p. 155) interpreta a violência subjetiva insurgente como violência divina na
medida em que o domínio da violência pura “é o domínio da soberania, o domínio em que matar
não é nem uma expressão de patologia pessoal (de uma pulsão idiossincrática e destrutiva), nem
um crime (ou sua punição), nem um sacrifício sagrado”. Portanto, sem qualquer dimensão
relativa ao religioso, a violência divina, quando envolve sangue, como no caso do assassinato,
mostra-se, assim como na legítima defesa, o estabelecimento da justiça. Nas palavras de Zizek
(2014, p. 157), a violência divina acontece “quando os que se encontram fora do campo social
estruturado ferem ‘às cegas’, reclamando e impondo justiça/vingança imediata”.
sacrificados junto com o doutor, precisamente no sentido dado por Benjamin ao conceito (2013,
p. 152, inclusão minha), quando afirma que “a violência divina e pura se exerce contra toda a
vida, em favor do vivente. A primeira [a violência mítica] exige sacrifícios, a segunda os aceita.”
No mesmo instante, Rigoberto, filho mais velho de Chacón, chegou e avisou ao pai que
na praça todos já estavam sabendo do plano para matar o “terno preto”, souberam também da
reunião em Quencash, onde ocorreu a conspiração. O juiz havia acabado de receber o aviso,
minutos antes de descer para ir à audiência na praça de Huarautambo, conforme o capítulo 21 –
Onde, gratuitamente, o não fatigado leitor verá o Dr. Montenegro empalidecer, por meio da
mão do comuneiro Lala Cabieses que chegou gritando com o comunicado urgente. O papel dizia
que Hectór Chacón iria matá-lo na audiência. O juiz resolveu fugir para as cordilheiras
acompanhado de peões e de guardas-civis. Ficaram seis horas cavalgando, depois voltaram à
fazenda e reforçaram a segurança. O Dr. Montenegro ficou trancafiado em seu escritório vários
dias, despachando da fazenda. A fim de “acariciar” a orelha de Chacón, mandou Amador
Leandro, o Corta-Orelhas, trazer-lhes as orelhas do Olho-de-Coruja. Mas quem terminou
morrendo na missão foi o Corta-Orelhas. Chacón matou Amador Leandro em legítima defesa, já
que este o mataria, e pela traição à comunidade, ao descobrir ter sido Amador o autor do aviso da
conspiração contra o Dr. Montenegro.
Depois de matá-lo, Héctor Chacón foi imediatamente para casa e convocou a família
inteira: Inácia, sua mulher, e seus filhos Rigoberto, Fidel e Juana. Seu filho Hipólito estava
ausente. Então confessou: “– Matei um homem! (...) – Filhos, matei um homem abusador. Assim
que amanheça a polícia virá buscar-me. Tenho de ir embora nesta mesma noite.” (BDPD, p.
166). Alguns ficaram assustados e permaneceram em silêncio, outros soluçaram. Perguntaram
quando ele voltaria. O Olho-de-Coruja explicou o por que a situação se agravara, expondo as
manifestações de violência ordenada pelos latinfundiários, e revelou sua decisão em formar um
grupo armado contra a tirania do doutor:
– Estas violências nasceram das pastagens, filhos. Se Montenegro nos tivesse deixado
um pedacinho de terra com pasto, tudo seria igual, mas agora é demasiado tarde. Falo
sério. Posso morrer a qualquer momento. Se eu cair nas mãos da polícia me matarão.
– Acaba com a raça dos fazendeiros, papai – disse Rigoberto comendo as lágrimas. –
Nem que morras, acaba com eles. Torce o pescoço deles. (...)
A vela amareleceu os olhos do Olho-de-Coruja. Esse seria o rosto de que Rigoberto se
lembraria. Passados os anos, quando se perdesse nos labirintos dos trabalhos obscuros,
não recordaria os sorrisos dos dias bons, mas aquela cara laqueada de rancor.
– Haja o que houver, Montenegro terá seu fim. Estou decidido a formar um bando para
libertar-nos da opressão. Tenho amigos dispostos a beber-lhe o sangue.
– Está bem, papai – disse Rigoberto. – Acaba com os mandões.
– Eu não cairei sozinho. Eu também matarei. Se eu viver, voltarei; se eu morrer,
39
Chacón decidiu lutar contra a opressão, a violência e os abusos do “terno preto” e dos
latifundiários com um grupo armado, formando por fora da ordem do direito uma força para
acabar com o juiz e derrocar o próprio direito, revela-nos o capítulo 27 – Onde o absorvido leitor
conhecerá, sempre por conta da casa, o despreocupado Pis-Pis, caracterizando um combate de
campos opostos de violência, que, em semelhança com os conceitos benjaminianos, a partir da
leitura de Zizek, pode-se afirmar que seria um combate entre a violência mítica e a violência
divina.
Em sua fuga de Yanahuanca, Chacón sonhou com a revolta armada no caminho da casa
do valente indígena que conhecera na prisão: Pis-Pis, o “do sorriso de ouro”, especialista em
ervas que curavam e envenenavam. Sabia que não poderia enfrentar sozinho as injustiças, por
isso sonhou com um bando de homens armados preparados para expulsar os latifundiários. “Pis-
Pis o ajudaria. O do sorriso de ouro tinha jurado morte aos abusadores. Ele próprio o tinha
ouvido no cárcere a desfiar a meada dos abusos. Pis-Pis não era um homem qualquer.” (BDPD,
p. 180). Ao encontrar Pis-Pis, bebendo com amigos em sua casa, Chacón expôs os abusos e as
violências do “terno preto”. Depois argumentou abertamente sua intenção: “– Penso recuperar a
minha terra a bala. Com os fazendeiros não há meias medidas. Penso começar uma luta de
sangue.” (BDPD, p. 182). Pis-Pis perguntou o que o procurador e o presidente da comunidade
pensavam sobre as violências. Quando Chacón respondeu que estavam todos presos, acusados
injustamente pelo doutor por terem linchado até a morte o Corta-Orelhas, o Magro, amigo de
Pis-Pis, afirmou categoricamente que não se devia tolerar tantos abusos:
– Héctor está com a razão – disse Pis-Pis. – É mentira dizer que somos livres. Somos
escravos. A única forma de ir adiante é matando.
– Isso é o que se pode fazer na província Daniel A. Carrión, senhores – disse Chacón.
Devemos começar a morte dos ricos em Yanahuanca. Estou pronto a dar a minha vida.
Podes ajudar-me, compadre?
Olhou para Pis-Pis timidamente.
Pis-Pis caramboleou os seus olhos brincalhões.
– Eu te apoio, compadre. De que precisas?
– Carabinas e conselhos, compadre.
– Temos que enfrentar estas injustiças com sangue – disse o Magro, entusiasmado. –
Isto deve ser uma revolução.
– Eles virão armados – disse Pis-Pis.
– E nós iremos armados – continuou o Magro. – Eu sou bacharel. Há muitas maneiras
de fazer frente a uma tropa.
– Vamos começar por Montenegro – disse Chacón.
– Eu estou pronto, compadre.
As mãos miúdas de Pis-Pis acariciaram e a seguir desvirginaram outra garrafa. (BDPD,
p. 182)
40
Seis homens desafiaram a violência do Estado peruano representada pelo “terno preto”
como alegoria do direito e representante dos latifundiários no departamento de Cerro de Pasco,
mais especificamente nos arredores das comunidades de Yanococha e Yanahuanca, jurisdição do
Dr. Montenegro: Héctor Chacón, Abígeo, Ladrão de Cavalos, Pis-Pis, o Magro e o homem de
Choras. Nessa situação, os camponeses se assemelham também com o que Benjamin alcunhou
de “o grande criminoso”. Para Benjamin (2013, p. 131), “Na figura do grande criminoso entra
em cena, confrontando o direito, essa violência que ameaça instaurar um novo direito – ameaça
que, embora impotente, faz, nos casos significativos, estremecer o povo”, colocando em cheque
a ordem do direito estabelecido, sua violência e seu poder. Em sentido similar, relata o narrador,
no início do capítulo 29 – Da insurreição universal de eqüinos tramada pelo Abígeo e mais o
Ladrão de Cavalos, que o Dr. Montenegro “vivia guardado pelos fuzis da Benemérita Guarda-
Civil, e pela desconfiança de quatrocentos compadres. Poderiam vencê-los cinco homens? (...).
Efetivamente, eram cinco varões contra setecentos armados, mas eram cinco machos especiais.
(BDPD, p. 188). “Machos especiais”, não apenas por desafiarem a violência estatal, mas também
por possuírem poderes míticos, compondo os episódios do realismo maravilhoso analisados no
próximo capítulo deste estudo, como enxergar nitidamente de dia e de noite – poder do Olho-de-
Coruja; prever acontecimentos em sonhos – dom de Abígeo; e conversar com equinos – façanha
do Ladrão de Cavalos.
Abígeo recorreu aos sonhos, mas não revelavam nada. O sumiço do juiz estava abortando
a estratégia dos “machos especiais”. O juiz não saía do seu escritório nem para caminhar. “O Dr.
Montenegro privou a província do seu terno preto. (...) O pacífico secretário ia todas as manhãs à
casa do Juiz com uma montanha de documentos, entrava pela porta carrancudamente vigiada por
nuvens de mal-encarados.” (BDPD, p. 212). Decidiram então ver a sorte no milho como descreve
o capítulo 31 – Das profecias que os senhores milhos fizeram. Pis-Pis preparou os milhos na mão
e fez o procedimento. Os milhos avisavam que o Olho-de-Coruja teria um traidor na família,
alguém iria denunciá-lo. Desconfiado, Pis-Pis repetiu o procedimento, o resultado permaneceu o
mesmo. Chacón não acreditava. Resolveu ir à casa de sua mãe. Sulpícia avisou que a Guarda
Civil não descansaria até encontrá-lo. Como os guardas estavam de prontidão em toda a parte e o
doutor resolvera se trancafiar na fazenda, era impossível matá-lo. Então o Olho-de-Coruja teve
uma ideia: se disfarçar de mulher para poder entrar na fazenda. Sulpícia riu, mas, em seguida,
aceitando, resolveu perguntar à folha de coca sobre o futuro. “O que pergunta com o coração
limpo, a coca antecipa a sua sorte. Se a coca machuca a boca avisa o perigo; se amolece numa
bola adocicada, não há risco.” (BDPD, p. 214). A coca de Chacón e de Sulpícia estava doce,
sinalizando não haver risco. No entanto, ao ir à praça, Sulpícia foi abordada pelo sargento
Cabrera da Guarda Civil perguntando sobre o paradeiro de Chacón. Na volta, a mãe desistiu da
42
ideia e pediu para Héctor fugir. Mas o Olho-de-Coruja resolveu ir primeiro a sua casa. Em casa,
conversando com Inácia, afirmou que continuaria com o plano: “– Não posso abandonar esta
luta, Inácia. Já é preciso lutar de frente, com bala de sangue.” (BDPD, p. 216). Depois da
conversa, Chacón resolveu descansar. Inácia saiu para comprar algo. Quando o Olho-de-Coruja
acordou, a Guarda Civil já estava de prontidão ao redor da casa. Atiraram, demonstrando a força
da ordem estabelecida. Nesse momento, o narrador coloca em dúvida quem de fato entregou
Héctor à polícia, se Inácia ou a filha Joana. Após os tiros, cercado, Chacón resolveu se entregar:
Cumprindo a profecia do milho, o subenredo [1] termina com a segunda prisão de Héctor
Chacón para o alívio da ordem de violência representada pelo Dr. Francisco Montenegro. A
semelhança da figura do Olho-de-Coruja como o “grande criminoso” volta à tona no desfecho
desse núcleo narrativo pela expressão de inveja do próprio sargento que o prende como se
verifica no trecho supracitado. Por fim, sem conseguir libertar as comunidades da exploração e
da opressão, Chacón e os demais camponeses são novamente vencidos pela violência ordenada
pelo “terno preto”, como alegoria do direito e representante dos latifundiários, mostrando, assim,
como o direito peruano, através da violência e pela violência, mantém no poder a classe
dominante do gamonalismo peruano, os grandes proprietários rurais, em nível local, expressando
um ponto de contato preciso com o conceito de violência mítica formulado por Benjamin.
O subenredo [2], por sua vez, narra o “nascimento” de uma cerca nas imediações da
comunidade de Rancas “devorando” os pastos dos comuneiros, ocasionando violência de
diversas ordens, responsável pelo conflito central da diegese. A cerca pertence à mineradora
norte-americana com o mesmo nome do departamento peruano do romance: Cerro de Pasco
Corporation, tratada pelos indígenas como A Cerro ou A Companhia. O velho camponês Dom
Fortunato, o “Cara de Sapo”, torna-se o principal ranquenho na linha de frente da luta contra a
violência da cerca, que contará com a ajuda do procurador da comunidade de Rancas Dom
Alfonso Rivera, resistindo todo momento contra seu avanço, combatendo cotidianamente a
patrulha de segurança. A luta se intensifica quando Fortunato descobre que a cerca era
43
A “Cerca”, como um dos personagens centrais do núcleo narrativo, é grafada com a letra
44
inicial em maiúscula e abordada inicialmente numa perspectiva mítica, como se fosse um animal
monstruoso, recebendo o codinome “lagarta de arame”, sendo tratada por alguns ranquenhos
como um castigo de Deus. Sem aviso prévio, a Cerca surgiu imperceptivelmente. Fortunato não
presenciou seu “nascimento”, nem o procurador Alfonso Rivera, conforme o narrador nos relata
no capítulo 6 – Sobre a hora e o lugar em que pariram a Cerca:
Em que dia nasceu? Numa segunda ou numa terça-feira? Fortunato não assistiu o
nascimento. Nem o Procurador Rivera, nem as autoridades, nem os homens que se
retardaram nas pastagens viram chegar o trem. (...) Fazia muito que as autoridades
suplicavam à Companhia que os trens, ao menos por cortesia, parassem em Rancas. (...)
Finalmente, agora, um trem se detinha. Se o soubesse, a Procuradoria teria organizado
uma recepção. (...) infelizmente, os ranquenhos pastoreavam quando o trem começou a
vomitar desconhecidos. Os moradores de Ondores, de Junín, de Huayllay, de Vila de
Pasco, são gente conhecida. Mas aqueles sujeitos metidos em jaquetas de couro preto
ninguém identificava. Desembarcaram rolos de arame. Terminaram à uma, almoçaram e
começaram a cavar buracos. A cada dez metros enterravam um poste.
Assim nasceu a Cerca. (BDPD, p. 28)
Dom Teodoro Santiago, comuneiro de forte religiosidade que, por meio de sua visão
mítica, sempre enxergava sinais de desgraças, havia anunciado o caráter demoníaco da Cerca
como catástrofe iminente: “– Essa cerca é coisa do demo. Vocês vão ver. Aqui anda alguém ao
lado do Chifrudo. (...). Dom Santiago sempre anunciava desgraças. Disse que o campanário
cairia. Caiu? Predisse que viria uma peste. Veio? Dom Santiago é um homem de luto.” (BDPD,
p. 29). O “homem de luto” dessa vez acertara quanto ao caráter catastrófico da Cerca,
reconheceria Fortunato. Dias depois, a “lagarta de arame” já havia “engolido” dezenas de terras.
A comunidade de Rancas, que no início ria da Cerca, começou a sentir a violência causada pelo
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seu avanço constante. Não sabiam ainda a quem pertencia e nem qual era seu objetivo. O
procurador da comunidade, Dom Alfonso, assustou-se quando certo dia a Cerca já estava em
Yuracancha impedindo a passagem dos pastos: “para entrar em Rancas, os rebanhos tinham que
andar mais uma légua. Rancas começou a murmurar. Que é que a Cerca queria? Que destino
ocultava? Quem ordenava essa separação? Quem era o dono do alambrado? De onde vinha?”
(BDPD, p. 41). Preocupado, Dom Alfonso decidiu pedir explicação aos homens que faziam a
segurança da Cerca, mas, mesmo como procurador de Rancas, não obteve nenhuma informação,
sendo tratado de modo repressivo pelos seguranças:
Assim foi: levantou-se cedo e vestiu a sua roupa preta. Para encontrar a ponta da Cerca,
caminhou quinze quilômetros. De chapéu na mão, foi andando. Homens de espingarda
lhe mandaram que parasse.
– Não pode passar!
– Senhores, sou o Procurador Legítimo de Rancas. Com quem tenho o prazer?
– Não pode passar!
– Tomo a liberdade de dizer-lhe, senhores, que estão em terras pertencentes à
comunidade de Rancas. Gostaríamos de...
– Não temos ordem de informar. Vá voltando! (BDPD, p. 41)
Dom Fortunato estava construindo uma tenda para vender café, próximo ao cemitério de
Yanacancha, comunidade na fronteira de Rancas, quando notou a Cerca pela primeira vez. A
“lagarta de arame” havia surgido ao redor do cemitério no caminho de Huánuco. Achou muito
esquisito aquele alambrado. Em conversa com Dom Marcelino, quando este levantou a hipótese
da Cerca ser algo dos engenheiros, Fortunato respondeu categórico: “– E quando é que os
caminhos tiveram cercas. Uma cerca é uma cerca. Uma cerca significa um dono, Dom
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Marcelino.” (BDPD, p. 55). Desde então, a Cerca avançaria rapidamente aos olhos do velho,
que ficaria de “boca aberta” com sua velocidade, como relata:
A Cerca engolia Cafepampa. Assim nasceu essa cadela, num dia chuvoso, às sete da
manhã. Às seis da tarde tinha uma idade de cinco quilômetros. Pernoitou na fonte
Trinidad. No dia seguinte correu até Piscapuquio: ali celebrou os seus dez quilômetros.
Conhecem os cincos olhos-d’água de Piscapuquio? Para quem chega, beber é uma
delícia. Para quem parte é uma doçura recordá-la. Já ninguém pôde enternecer-se com
esses mananciais. No terceiro dia, a Cerca cumpriu outros cinco quilômetros. No quarto
atravessou as lavagens de ouro. Nesses esqueletos de pedra levantados pelos antigos, os
espanhóis lavavam o seu ouro. (...) Ali pernoitou a Cerca: de madrugada rastejou para o
itararé por onde afunda a estrada de Huánuco. Dois metros intransponíveis vigiam o
desfiladeiro: o avermelhado Pucamina e o enlutado Yantacaca, inacessíveis até para os
pássaros.
No quinto dia a Cerca derrotou os pássaros. (BDPD, p. 55)
A invasão da Cerca sobre as terras camponesas se tornava cada vez mais vertiginosa,
como descreve o capítulo 12 – Sobre o caminho por onde viajava a lagarta, apresentando uma
contagem da violência gerada pela “lagarta de arame”: “Nove cerros, cinquenta pastos, cinco
lagoas, quatorze mananciais, onze cavernas, três rios tão caudalosos que nem no inverno se
congelam, cinco povoados, cinco cemitérios, engoliu a Cerca em quinze dias.” (BDPD, p. 64). O
alambrado começou a invadir povoados inteiros deixando famílias sem nenhuma opção de
moradia e subsistência. A Cerca “engoliu” a comunidade da Vila de Pasco, Bela Vista, Ladeira
dos Porongos e Yarusyacán. Antes “devorava terra, mastigava lagoas, comia morros, mas não se
atrevia a entrar nos povoados.” (BDPD, p. 66). Ninguém conseguia mais dormir, um
comerciante alertava:
Senhores, esta Cerca não é só nas terras de pastagem. Este alambrado caminha por toda
a terra. Engole distritos inteiros. Em certos lugares as pessoas, encerradas, morrem de
fome e sede. Vi a estrada de Huánuco fechada. Outro arrieiro, a quem dei as minhas
tunas – estavam apodrecendo – me notificou que adiante de Huariaca há centenas de
caminhões bloqueados. Os passageiros morrem e as mercadorias apodrecem. (BDPD, p.
66)
Com a mesma agilidade de seu crescimento, a Cerca começou a matar os rebanhos das
comunidades. Milhares de ovelhas morreram nas proximidades de Rancas por causa da Cerca,
como descreve o capítulo 14 – Sobre as misteriosas enfermidades que atacaram os rebanhos de
Rancas. Na estrada de Cerro de Pasco, os camponeses registraram cem quilômetros de ovelhas e
gados prestes a morrer sem pasto, resistiram duas semanas comendo raspas do verde na beira da
estrada, “na terceira o gado começou a morrer. Na quarta semana faleceram cento e oitenta
ovelhas; na quinta, trezentos e vinte; na sexta, três mil.” (BDPD, p. 79). Os comuneiros no início
acreditavam que as mortes eram de responsabilidade de alguma praga. Dom Teodoro, no
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– A nossa hora chegou – dizia Valentim Robles. – Já falta pouco para que cerquem o
povoado. Agora sim, agora vamos comer-nos uns aos outros. O pai comerá o filho; o
filho comerá a mãe.
– Se pudéssemos iríamos mendigar em outros povoados, mas não podemos. Em cima da
terra só tem ar.
– É melhor que levem tudo. Tomara que o muro entre povoado adentro. Tomara que
morramos todos. Mortos, não pediremos água.
– Já está chegando o dia terrível. A Cerca é apenas um sinal. Hão de ver: não fugirão só
os animais: os mortos também se escaparão. (BDPD, p. 80)
Um homem gordo, de cara meio pálida, salpicado de barro, falou do vão da porta:
– Não é Deus, papaizinhos, é a Cerro de Pasco Corporation.
Era Pis-Pis, um huanuquenho que todos os anos visitava Rancas oferecendo
mercadorias estranhas: cinturões magnéticos, unguento contra bruxaria, xarope de pata-
de-vaca para fascinar os homens, pomadas contra pesadelos. Nesse ano estava
oferecendo cordas de violão. Em cada povoado sempre há um violão imprestável por
falta de uma corda. O dono está disposto a pagar um despropósito. Resultado: nunca
faltava cerveja ao Pis-pis.
– A Cerca – informou Pis-pis – tem mais de cem quilômetros.
(...)
48
A Companhia que queria cercar o mundo chegou em Cerro de Pasco em 1903, depois da
gargalhada de um engenheiro norte-americano de olhos azuis que descobriu a poderosa jazida da
cidade. A Cerro de Pasco é a última cidade do altiplano de Junín, a mais alta do mundo, com
uma das maiores jazidas do Peru, onde garimpeiros do mundo inteiro iam atrás de fortuna. Desde
a época dos reis, exploraram a cidade, conforme o capítulo 16 – Das diversas cores das caras e
corpos dos Cerrenhos. Depois da instalação da Cerro de Pasco Coporation, a cidade sofreria
novamente com a espoliação dos minerais em detrimento do lucro recorde da Companhia:
Depois de quatrocentos anos de enriquecer reis e vice-reis, Cerro de Pasco era virgem.
A própria cidade, um lugarejo mortiço, erguia as suas tristes casinhas em cima do mais
estrondoso veeiro do Peru. As casas maltratadas e sem pintar, as calvas praças sem
árvores, as ruas enlameadas, a Prefeitura ameaçando cair, a única escola, era a casca de
uma riqueza delirante.
Em 1903, veio a estabelecer-se a Cerro de Pasco Corporation. Mas isso é farinha de
outro saco. A Cerro de Pasco Corporation Inc. in Delaware, conhecida aqui
simplesmente como A Cerro ou A Companhia, demonstrou que o escultor da formidável
gargalhada, o lendário barba de bode, sabia muito bem de que ria. A Companhia
construiu a estrada de ferro, transportou máquinas mitológicas e ergueu mil metros mais
abaixo, La Oroya, uma fundição da qual só a chaminé asfixiava os pássaros num raio de
cinquenta quilômetros. (...) Os balanços da Cerro de Pasco Corporation demonstraram
que, na realidade, o de barba crepuscular só se permitiu uma risadinha. Em poucos mais
de cinquenta anos, a idade de Fortunato, a Cerro de Pasco Corporation desentranhou
mais de quinhentos milhões de dólares de lucro líquido. (BDPD, p. 91-92)
Depois de morrerem mais de trinta mil ovelhas, com os povoados chorando imobilizados,
os ranquenhos decidiram lutar contra a Cerca. O Procurador de Rancas, Dom Alfonso Rivera só
deixou a visão mítica de lado após ouvir do padre Chasán que a Cerro de Pasco Corporation era
a proprietária do alambrado: “– A Cerca não é obra de Deus, meus filhos. É obra dos
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americanos. É preciso lutar. A cara de Rivera azulejou. – Como é que se pode lutar contra a
‘Companhia’, padrezinho? Ela é dona dos polícias, dos juízes, dos fuzis, de tudo.” (BDPD, p.
100-101). Alfonso Rivera percebeu a força da Cerro. A Companhia era “dona das polícias, dos
juízes, dos fuzis, de tudo” porque era “dona” do poder, do direito, da violência estabelecida. A
Cerro de Pasco Corporation representava a classe articuladora da violência enquanto poder
ordenado pelo direito, ou seja, em aproximação com a conceituação de Benjamin, representava a
classe vencedora da violência mítica. Para resistir, então, Dom Alfonso Rivera se reuniu na praça
com os “varões” do povoado de Rancas. Decididos a lutar, os ranquenhos arrebentaram a Cerca e
colocaram gados, ovelhas e cordeiros para pastar nas terras cercadas depois de enfrentarem os
guardas da Cerro. Sem medo das rondas, toda noite repetiam o procedimento, como se pode
verificar nesse trecho:
As vacas que entravam nas áreas cercadas eram pisoteadas a mando de Egoavil. A
violência, no entanto, começou a atingir os camponeses, a Cerca começava a derramar sangue
humano, manifestando uma violência sangrenta em consonância com a dimensão predatória da
violência mítica. Os ranquenhos encontraram a cabeça do comuneiro Mardoqueu Silvestre sem o
corpo. Por causa disso, o medo atingiu o povoado, começaram a desistir de lutar. Nem os mais
valentes ousaram mais combater, sobretudo, depois que a escolta da Cerca não era feita apenas
por guardas da Companhia, mas também, “por motivo de segurança”, pela Guarda Civil. “Um
dia os vigias apareceram uniformizados. E desde então um pelotão da Guarda Republicana
escoltou as rondas. Atacá-la era atacar a Força Armada.” (BDPD, p. 102). O único que continuou
a resistir e a lutar foi o velho Fortunato:
Fortunato era reprimido todos os dias pelos guardas, mas não desistia. O Procurador
Rivera e os filhos do Cara de Sapo pediram para que parasse de lutar, pois sozinho não
adiantava, acabaria morrendo, mas o velho persistia. Fortunato caía e levantava, mesmo
ensanguentado, continuava na luta. Enfrentava obstinado a guarda e a ronda cotidianamente.
Egoavil no começo se divertia com o velho, até o dia em que passou a sonhar com ele. A voz e o
rosto de Fortunato lhe perseguia, através de um retrato no seu quarto. Enlouquecido, tentou
retirar a foto da parede, mas sempre surgia uma nova debaixo da fotografia anterior, aparecia
“Fortunato rindo, Fortunato mostrando-lhe a língua, Fortunato chorando, Fortunato piscando-lhe
um olho, Fortunato com cara azul, Fortunato com cara esburacada, Fortunato sal-e-pimenta. E
sonhou pior: Fortunato apareceu-lhe crucificado.” (BDPD, p. 104).
No sonho, Egoavil comparou Fortunato a Jesus Cristo; o velho, no entanto, como “Nosso
senhor de Rancas” (BDPD, p. 104) não padecia na cruz. Com uma vela na mão, Egoavil tentou
se esconder, mas o crucificado o reconheceu e disse para não fugir que se encontrariam amanhã.
O chefe da ronda acordou gritando. No mesmo dia, ao encontrar Fortunato na sua obstinada
resistência contra a Guarda Civil, lembrando-se da agonia do sonho do dia anterior, Egoavil lhe
assegurou: “– Aqui não há ninguém que seja homem como o senhor. (...). Para que continuar
essa luta? O senhor sozinho não pode nada, Dom Fortunato. A Cerro é poderosíssima. Todos os
povoados se entregaram. O senhor é o único que insiste. Para que continuar, Dom Fortunato?”
(BDPD, p. 105). Sem dar ouvidos, o velho Cara de Sapo insultou e golpeou Egoavil, enquanto
esse lhe bateu com “golpes de lã” por ver em sua face o rosto de Cristo, conforme o narrador
relata no final do capítulo 18 – Sobre os combates anônimos de Fortunato.
Fortunato não compreendia que “a Cerro de Pasco Corporation jogava com um capital
de quinhentos milhões de dólares” enquanto ele só tinha “uma trintena de ovelhas, ódio e dois
punhos” (BDPD, p. 125). Depois que Egoavil passou a sonhar que o velho era o Jesus Cristo de
Rancas mandou um dos capangas avisar ao Cara de Sapo que ele estava cansado de brigas e que
poderiam colocar as ovelhas e os gados para pastar à noite nas terras cercadas. Fortunato reuniu
os ranquenhos para levar os animais, “convencido de que nessa noite dissipariam o terror.”
(BDPD, p. 127-128). No outro dia, entretanto, os animais amanheceram degolados. Egoavil e a
Cerro haviam lhe enganado. Fortunato chamou toda a população de Rancas por meio do sino do
campanário. Os ranquenhos rodearam o corpo de uma ovelha em frangalhos. Apesar do medo, os
ranquenhos começaram a reativar a coragem extinta para enfrentar o poder e a violência da
Cerro de Pasco Corporation, quando Fortunato, renovando a necessidade de lutar, afirmou:
51
O que o narrador quer dizer com “uma corda de terror imemorial”, que interliga de vices-
reis a presidentes da república, é precisamente essa violência impetrada pela ordem, como
violência sistêmica, emergida do próprio âmago do direito enquanto mecanismo de poder, que no
caso da diegese é a violência inerente à ordem republicana peruana, em outras palavras,
constitui-se numa dinâmica de violência de maneira análoga aos pressupostos conceituais da
violência mítica, conforme verificamos no decorrer da descrição dos subenredos.
O procurador Alfonso Rivera concordou imediatamente com o Cara de Sapo que era
preciso lutar. Fortunato colocou uma ovelha morta nos ombros, nesse instante, o procurador se
lembrou de uma gravura de Jesus Cristo quando carregou uma ovelha antes de pregar a perdição,
trazendo à tona a visão mítica do velho novamente. Fortunato solicitou que todos recolhessem as
ovelhas mortas para reclamarem à prefeitura de Cerro de Pasco. Depois de cada um recolher uma
ovelha, caminharam mais de dez quilômetros pela avenida Carrión com as animais
ensanguentados nas costas. Os camponeses de Cerro de Pasco abriam passagem para o cortejo.
Fortunato aproveitou para dizer aos curiosos:
– Vejam o que a Cerro nos faz! – gritou Fortunato. – Não se conforma com cercar as
nossas terras. Matam os nossos animais com os seus cães. Daqui a pouco nos matam.
Mais um pouco e não ficará ninguém. Outro pouquinho e cercam o mundo! (...)
– Cercaram Rancas! Cercaram Vila de Pasco! Cercaram Yanacancha! Cercaram
Yarusyacán! Fecharam o céu e a terra. Não haverá mais água para beber nem céu para
olhar!
– Não é direito!
– É abuso!
– Esses gringos de merda não têm o direito de enxotar-nos da nossa terra! (BDPD, p.
130)
reprimir, mas não deram conta da pirâmide de cabeças de ovelhas ensanguentadas que cresceu na
porta da prefeitura, “sob o escudo desbotado que proclamava que ali, naquele edifício de dois
andares, de oito janelas verdes, residia o representante político do Senhor Presidente da
República, Dom Manuel Prado.” (BDPD, p. 132). Com os despojos das ovelhas mortas pela
violência da Companhia, os ranquenhos fizeram uma pirâmide na prefeitura como forma de
reclamação, no sentido de uma pequena violência simbólica, semelhante à dimensão da violência
divina benjaminiana, quando de maneira não sangrenta procuravam aniquilar o poder e a
violência da Cerro, autorizados pela ordem republicana do Peru; não é coincidência, nesse
sentido, o fato do narrador mencionar que na prefeitura residia o representante político do
Presidente. Na volta a Rancas, Fortunato foi levado por guardas civis para explicar o acontecido.
O prefeito perguntou ao velho se a prefeitura era um matadouro, Fortunato respondeu que queria
apenas mostrar-lhe o abuso da Companhia. Após uma ameaça de prisão, o velho argumentou: “–
Está bem. Já sei que é delito mostrar o abuso – disse o velho ansioso por beber a sua milenar taça
de humilhação”, o prefeito retrucou: “– Escute, seu imbecil, mostrar o abuso não é delito. Delito
é sujar a porta da Autoridade.” (BDPD, p. 134-135). Fortunato então saiu da prefeitura com a
ordem de limpar a praça com o caminhão de lixo do departamento.
suínos parou com trezentos e quatro porcos na divisa com a Cerro. Mesmo os guardas
ameaçando atirar, os ranquenhos soltaram os porcos no pasto. Os guardas não conseguiram
matar todos os trezentos e quatro porcos famintos que comiam o pasto da mineradora. No outro
dia, “a Cerro de Pasco Corporation abandonou mil e quatrocentos hectares.” (BDPD, p. 146).
Contudo, depois que mataram todos os porcos, a Cerro retomou o pasto e seguiu avançando com
a Cerca, “depois de engolir quarenta e dois morros, oitenta lombadas, nove lagoas e dezenove
cursos de água, a Cerca leste rastejou ao encontro da Cerca oeste. A altiplanície não era infinita;
a Cerca, sim.” (BDPD, p. 159).
O Procurador Rivera, Dom Fortunato e outros ranquenhos resolveram então fazer uma
queixa ao juiz de Cerro de Pasco contra a Cerca da Companhia. Expondo o caráter da violência
como forma de poder ordenada pelo direito, em conformidade com o conceito de violência
mítica, o narrador ironicamente questionou: “De onde o Procurador tirou a ideia de que a
profissão de um juiz é exercer a justiça?” (BDPD, p. 160). Chegando a Cerro de Pasco, o Dr.
Parrales, percebendo a ingenuidade dos camponeses indígenas de Rancas quanto ao caráter
público de um juiz, cobrou dez mil sóis de honorários para fazer supostamente a reclamação do
abuso. Resolvem promover uma quermesse para arrecadar o dinheiro. Ao pedirem ajuda do
Alcaide de Cerro de Pasco, Genaro Ledesma, a única autoridade a reconhecer os abusos da
“serpente invisível”, descobriram que foram subornados pelo juiz. O Alcaide se comprometeu
em ajudar, contudo, não por meio da doação de dinheiro para pagar o suborno do juiz, mas
denunciando o Dr. Parrales e a violência da Cerca. Assegurou ainda que o assunto da Cerro era
muito grave, o mais grave que se via no departamento, “É preciso denunciá-lo, amigos. É a única
maneira de solucionar este problema. Hoje mesmo vou falar pelo rádio e vou denunciar esses
desmandos. E em primeiro lugar vou denunciar o Dr. Parrales.” (BDPD, p. 164).
Queriam aumentar o valor da energia elétrica e cobrar a dívida da prefeitura de Cerro de Pasco,
ameaçando suspender a energia da província. A entrevista acabou com o Alcaide se irritando
frente ao poder econômico da mineradora. Dias depois, Cerro de Pasco amanheceu sem energia,
permanecendo na escuridão por vários meses.
Ignorantes de que o Código Militar prescreve que ‘o indivíduo ou indivíduos que ousem
atacar a Força Armada se tornam passíveis de um Conselho de Guerra sumário e
que...’, os comuneiros dançavam. A tempestade não cedia. O caminho se acabava
debaixo da raiva do granizo. O procurador cuspiu um dente e mandou trazer picaretas e
vergalhões. Sob a granizada se atiraram a derrubar os postes. Arrancaram os quebra-
pernas. Trezentos metros de arame sentiram uma vertigem. Gritavam e dançavam,
possessos. Rompiam a Cerca, meteram as últimas ovelhas exaustas. Marcelino Muñoz –
terceiro lugar na escola regional – teve a ideia de perpetrar um espantalho. Já no roxo do
entardecer enfiou o espantalho no montão de quebra-pernas vencidos. Na luta, os
guardas tinham abandonado um abrigo e um gorro. Marcelino pediu licença para
uniformizar o espantalho de republicano. O Procurador Rivera deu-lha. (BDPD, p. 195,
ênfase minha)
ameaça de violência. Por essa razão existe um Código Militar que prevê um Conselho de Guerra,
caso uma força por fora do ordenamento ameace o direito, para, por meio da violência
predatória, conservar o poder nas mãos da classe dos vencedores, conforme Benjamin (2013, p.
130): “a violência da guerra procura, antes de tudo, chegar a seus fins de maneira totalmente
imediata, e enquanto violência predatória”. No caso particular da narrativa, a Guarda Civil foi
requerida para garantir a propriedade privada da Companhia sobre as terras do povoado de
Rancas. Como os camponeses resistiram, jogando pedras nos guardas, estes ameaçaram usar o
Código Militar como modo de acionar a violência predatória para manter o direito. Desse modo,
apresenta-se a ação mítica do direito peruano ao conceder a Cerro de Pasco Corporation os
instrumentos jurídicos e de força para a ampliação de suas propriedades sobre a terra de
populações tradicionais, configurando o domínio de poder consoante à violência mítica.
Fortunato, o Cara de Sapo, reaparece na diegese. Chegando a Cerro de Pasco, após sair da
prisão, ficou sabendo que o desalojamento de Rancas seria naquele mesmo dia. A narrativa
segue de modo fragmentário, intercalando a ação de Fortunato com relatos de várias batalhas
perdidas pelo Peru. Nessa altura, o velho corre desesperado em direção a Rancas, com a intenção
de lutar pela comunidade a que pertencia: “Nessa altiplanura onde o homem é consolado por tão
poucas horas de sol, Fortunato tinha crescido, amado, trabalhado, vivido.” (BDPD, p. 210). No
fim do capítulo, o narrador faz uma espécie de extrato da violência peruana contra a vida dos
próprios indígenas andinos em contraposição às guerras perdidas pelo Peru com o extrangeiro,
na mesma medida em que narra a corrida de Fortunato para chegar em Rancas. O comandante
Guillermo, ao cabo, distingue em sua mira a comunidade a ser desalojada.
O velho divisou os telhados de Rancas. Parou junto a um penhasco. Cinquenta mil dias
antes o General Bolívar tinha-se detido ali: na manhã da sua entrada em Rancas. Bolívar
queria Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Que engraçado! Deram-nos Infantaria,
Cavalaria, Artilharia. Fortunato avançou, afogando-se na ruazinha. No gesso da sua
cara viram a desgraça.
– Já vêm . A Guarda de Assalto está chegando! (BDPD, p. 219, ênfase minha)
O trecho acima apresenta a violência como meio para a instauração de um novo direito,
na época, a ordem republicana do Peru, e a violência como meio de manutenção desse direito,
representada por um de seus pilares, a propriedade privada, no caso, das terras abarcadas pela
“lagarta de arame” da Cerro de Pasco Corporation. Com humor e revolta, o narrador ironiza as
insígnias da revolução francesa, marco da ordem republicana, para mostrar o caráter mítico do
poder que nasce, como vimos no trecho, pela violência e para a violência, e não para aquilo que é
57
instaurado como direito, precisamente como a dinâmica teórica fundamental da violência mítica.
O narrador segue, assim, descrevendo o avanço da Guarda de Assalto ao mesmo tempo em que
relata a memória da Batalha de Junín:
Os empavonados rostos dos guardas de Assalto avançavam para Porta de Santo André.
Coisa de cinquenta mil dias antes tinha atravessado essa entrada a vanguarda do General
Córdova, cinco dias antes que seu regimento fundasse nessa altiplanície a república do
Peru. Avançaram os de Assalto. A uns trinta metros empunharam as metralhadoras. Os
ranquenhos contemplaram fascinados, a atroz, a compassada beleza da marcha. Dom
Mateus Gallo – logo o enfardariam como uma múmia – achou que as bocas das
metralhadoras ficavam maiores que as dos canhões que uma vez vira desfilar no Campo
de Marte: um aniversário da Batalha de junín. (BDPD, p.221)
No seguimento da trama, Dom Alfonso Rivera, pálido e com voz fraca, saiu à frente para
perguntar ao alferes da Guarda Civil qual era o motivo da chegada de assalto. Ele ainda tentou
argumentar, mas perdeu a voz. Mesmo sendo procurador de Rancas, Rivera foi reprimido pela
Guarda Civil. Com medo, não conseguiu articular nenhum dos argumentos possíveis: do direito
natural sobre a terra para os tradicionais habitantes do local; da improdutividade do solo do
território; e até dos antigos títulos. Fortunato, então, entrou em ação:
incendiar as casas dos ranquenhos. Fortunato não se redimiu ao ver as labaredas nas choças, ao
contrário, com raiva, reclamou novamente enquanto o alferes contava com uma arma em punho:
“– Não é para abusar que o Governo paga os senhores. É para proteger-nos. (...) Nunca
desrespeitamos uma farda.” (BDPD, p. 222). Insensível, após contar os últimos minutos, o
alferes atirou em Fortunato. Advém, então, o massacre da população de Rancas.
O narrador, no entanto, não o descreve de modo realista, nesse momento entra em cena o
elemento insólito do desfecho: a conversa entre os defuntos, principalmente entre Fortunato e
Dom Alfonso Rivera. Por meio dessa conversa, os camponeses mortos (e o leitor) descobrem o
que aconteceu depois, colhendo informações com os novos mortos que chegam sem parar do
‘outro lado da vida’. No fim, quando Dom Teodoro chegou e reconheceu que não era Jesus
Cristo quem castigava Rancas, mas os americanos, descobre-se que os latifundiários
aproveitaram a investida da violência predatória da mineradora para também impor abusos
maiores, como afirmou Teodoro: “– Os fazendeiros querem acabar com as comunidades. Viram
que a Cerro nos massacrou como quis. Excedem-se.” (BDPD, p. 227).
1.2 A ordem demoníaca do direito: destino, culpa e mera vida na narrativa scorziana
Bom dia para os defuntos é um romance carregado pela ideia de destino e culpa. De um
lado, o juiz e latifundiário Dr. Francisco Montenegro é sempre apresentado como mandatário do
59
destino; do outro, os camponeses indígenas são sempre os personagens assinalados pela culpa
nas relações narradas na diegese. O destino dos viventes andinos, nesse sentido, é
ininterruptamente ordenado pelo “terno preto”, ou seja, ditado pelo direito, se pensarmos na
construção alegórica da metonímia. Nessa perspectiva, existe a representação de uma
racionalidade mítica no direito peruano que faz com que o poder dos grandes proprietários rurais
do gamonalismo e da Cerro de Pasco Corporation sobre os camponeses indígenas do altiplano
seja preservado, mesmo que por meio da blindagem da Guarda Civil.
Inicialmente, pode-se assinalar que Walter Benjamin, nos escritos de juventude, como
Para uma crítica da violência e Destino e caráter, e nos de maturidade, como Escritos sobre
Goethe, possui uma concepção peculiar de “mito”. Profundamente metafísico, ligado mais à
tradição teológica judaica do que à dialética hegeliana e marxista, o mito benjaminiano se opõe à
história – entendida nesse contexto como o surgimento da esfera ético-política de liberdade
humana regulada pela decisão soberana do indivíduo que responde ao transcendente – e não
tanto ao logos como o faz a tradição grega. Por este ângulo, de acordo com Benjamin, o que
caracteriza fundamentalmente o mito é a concepção de destino.
Assim, o direito não teria como objetivo a punição de uma culpa praticada por um
indivíduo, antes, é o direito que cria a culpa para poder punir e mostrar sua própria força. Por
isso, o homem em si não possui verdadeiramente um destino, não há um sujeito deliberado. O
destino pode ser vislumbrado em qualquer parte pelo juiz, dado que, ao punir, prediz “às cegas”
um destino, que não necessariamente atinge o homem, mas enreda aquele que está imbricado na
malha da infelicidade e da culpa natural. Desse modo, de acordo com Benjamin (2013, p. 94-95),
o homem culpado “pode estar associado tanto às cartas quanto aos planetas, e a vidente serve-se
da simples técnica que consiste em, por meio das coisas próximas e calculáveis, próximas e
certas (...), empurrar o vivente em direção ao nexo da culpa”.
Desse modo, por meio da aproximação temporal do tempo cósmico com o tempo da
resignação dos camponeses em relação à moeda do doutor, a associação narrativa do astro sol
com o sol do “terno preto”, metonímia alegórica do direito, procura apresentar o tempo circular
como tempo mítico do destino enquanto espécie de ordenamento demoníaco enredado pela
violência do juiz para os viventes das comunidades andinas. Nesse sentido, quando os
comuneiros de Yanahuanca, assim como os planetas, giraram acovardados ao redor do sol do
doutor, em consonância com o giro dos planetas em torno do astro-rei solar, comprovou-se a
aderência dos camponeses à rede do destino, ditado antes pelo poder do prefeito Dom Herón de
los Ríos: “ninguém toque nela!”, empurrando os viventes da província ao nexo da culpa natural:
“todas as casas da província de Yanahuanca sentiram um calafrio com a notícia” (BDPD, p. 6).
13
Tradução minha, exceto citação em itálico, a qual recorri à tradução de Halmicar de Holanda (BDPD, p. 8): “No
sólo ha intervenido la casualidad en el nombre de la moneda, el sol. El narrador lo deja bien claro al escribir: El
invierno, las pesadas lluvias, la primavera, el desgarrado otoño y de nuevo la estación de las heladas circunvalaron
la moneda (1, 18). La anécdota narrativa (pérdid/recuperación del sol) se desarrolla en um círculo temporal de
magnitud cósmica (el movimiento planetario). Puede establecerse el paralelismo siguiente:
Sol-astro / a su alrededor gira / el Planeta
sol-moneda / a su alrededor giran /los habitantes de Yanahuanca”
63
Esse ponto de convergência se realiza tendo em vista que o poder, para Benjamin, como
instauração mítica do direito através da violência, somente pode se manter pelo eterno retorno da
violência e, portanto, como destino. Por isso, o próprio ordenamento designa a queda e a
transgressão dos viventes, procurando mostrar seu poder e seu caráter, isto é, o direito,
instaurado pela violência, como violência e para a violência. Em suma, o direito como
manifestação da violência a favor de si própria. Dessa maneira, o destino como âmago do direito
favorece e fortalece o agente da violência mítica, ou seja, nos termos da luta de classes, a classe
dominante em detrimento da classe subalterna.
No mesmo fragmento em que se narra os abusos do doutor para com o pai de Chacón, o
capítulo 9 – Sobre as aventuras e desventuras de uma bola de pano, há um relato que demonstra
de forma irônica a força do “terno preto” em ditar o destino: a corrida de cavalo promovida em
Yanahuanca, pelo prefeito Dom Herón de los Ríos, para a comemoração do aniversário da pátria.
O Triunfante, cavalo do Dr. Montenegro, foi um dos inscritos na corrida. O destino da prova
estava marcado: Triunfante trazia no nome a vitória. Vários camponeses pediram para retirar
64
seus cavalos da corrida quando souberam da inscrição do cavalo do Magistrado, acuados pela
infelicidade da previsível derrota. O prefeito, representando a ameaça típica da violência estatal
como ordem mítica, imediatamente protestou, empurrando aos camponeses indígenas o nexo de
culpa: “Que é isso? (...) Quer desmoralizar publicamente o juiz? Está cansado da sua liberdade?
Onde está o seu espírito esportivo? Caralho! O primeiro que se retirar deixo que apodreça na
cadeia! Somente essa oportuna alusão ao espírito olímpico reteve os candidatos.” (BDPD, p. 45).
O aniversário da pátria seguiu o ritual de presentificação da violência originária da república
peruana na simbólica Praça das Armas, consoante à ideia de violência mítica: “– Uma música
patriótica, gentileza da Municipalidade, acordou Yanahuanca no dia vinte e cinco de Julho. Oito
guardas apresentaram armas ao Pavilhão Nacional.” (BDPD, p. 45). No final da corrida, mesmo
o cavalo Beija-flor chegando em primeiro lugar e Triunfante em segundo, o destino estava
traçado pela força: a comissão julgadora anulou a vitória do Beija-flor e anunciou o Triunfante
como sendo o vencedor, conforme havia antecipado o pronunciamento do prefeito Dom Herón,
antes de iniciar a corrida, pautado na força do destino e do sagrado como aspectos intrínsecos ao
exercício do direito:
pode-se interpretar o destino enredado pelo “terno preto” relacionado à ideia de infelicidade,
como explanei acima. Numa lógica similar à apresentada na diegese, Benjamin (2013, p. 150)
assegura ainda que o conceito de destino como sendo o “conhecimento que se torna inevitável”,
a partir de uma formulação de Hermann Cohen, torna possível concluir que “o princípio
moderno de que o desconhecimento das leis não exime da punição dá prova desse espírito do
direito”. Assim, o destino se conforma como um arranjo de ordem mítica gerido pela violência,
enredando um conhecimento inescapável e sufocante para o vivente capturado em sua teia.
Portanto, para os camponeses enredados no destino ditado pelo “terno preto”, não há
utilidade a “luta contra o fado”, pois contra “o destino ninguém pode” uma vez entrado em suas
malhas. Submersos na culpa, a condição de ação contra o destino é desativada das decisões dos
viventes andinos, nenhuma dimensão da vida serve para o direito, representado pelo juiz, além
da mera sobrevivência para o trabalho. Assim, o Dr. Montenegro mantém uma rede de
submissão enredando a maioria dos camponeses no decorrer do romance até o momento da
revolta de Chacón explodir. Essa condição de redução das dimensões ativas da vida dos
comuneiros indígenas, promovida pelo arranjo do poder e da violência do Dr. Montenegro como
latinfundiário e como juiz de direito, tangencia o conceito-consequência da violência mítica, isto
é, o conceito de mera vida.
66
Para Benjamin (2013, p. 93), quando “uma ordenação cujos únicos conceitos
constitutivos são os de infelicidade e culpa”, onde “não há nenhuma via pensável de libertação
(pois na medida em que uma coisa é destino, ela é infelicidade e culpa)”, evidencia-se uma
condição singular dos viventes engendrada pela força das leis e do direito, uma vez que esta
procura erigir “as leis do destino, da infelicidade e da culpa à condição de medida da pessoa”.
Nesse sentido, como resíduo do plano demoníaco na existência humana, o direito prediz e requer
uma condição que reduz ao máximo a vida do vivente para a ordem natural, como modo de ser
controlada a todo o momento pela força jurídica em sua performance enquanto força sobre-
humana, ou seja, quando o vivente está sob as rédeas do destino ditado pelo direito e, portanto,
condenado à culpa, a vida se constitui como uma simples vida, tão-somente como um pulsar
biológico natural, na condição de uma pobre existência, quer dizer, de uma ‘mera vida’.
A vida reduzida a mera naturalidade, sem nenhuma dimensão moral livre pautada na
decisão, que o destino e a culpa condicionam, serve às forças míticas do direito como joguete
para a manutenção da lógica do poder. Em outras palavras, é no domínio da simples
sobrevivência, do homem em sua dimensão de vida natural como uma mera existência que a vida
humana pode ser reduzida às normas jurídicas. É essa condição do vivente que Walter Benjamin
denomina de mera vida14. Ela incide na medida em que os homens, nas malhas do destino e da
culpa, submetem-se à força da natureza por negligência, levando-os à queda, anulando qualquer
possibilidade de construção de uma vida superior, sobrenatural e histórica. Assim,
Não se trata aqui de culpa moral – (...) – mas sim de culpa natural, na qual os homens
incorrem não por decisão e ação, mas sim por suas omissões e celebrações. Quando, não
respeitando aquilo que é humano, eles sucumbem ao poder da natureza, então sua vida é
arrastada para baixo pela vida natural, a qual, ligando-se logo a uma vida superior, já
não conserva mais no homem a inocência. Com o desvanecimento da vida sobrenatural
no homem, sua vida natural torna-se culpa, mesmo que em seu agir não cometa
nenhuma falta em relação à moralidade. Pois agora está no território da mera vida, o
qual se manifesta no ser humano enquanto culpa. O ser humano não escapa ao
infortúnio que a culpa chama sobre ele. Assim como cada movimento dentro dele
14
Poderia desenvolver aqui um dialógo teórico com o conceito de “vida nua” de Giorgio Agamben, o qual foi
formulado a partir dos textos benjaminianos, não o fiz por duas razões: primeiro, porque estenderia demasiadamente
o objetivo deste estudo; segundo, porque acredito que o conceito de “vida nua”, que abarca a discussão teórica da
biopolítica contemporânea, afasta-se muito do sentido ético-político da oposição entre o destino da “mera vida” e a
decisão soberana da “vida histórica”, ou, para dizer juntamente com Gagnebin (2014, p. 55-56), “A discussão de
Benjamin se desenrola num contexto diverso do atual sobre a biopolítica. Para ele, trata-se muito mais de distinguir
rigorosamente a ordem da vida natural, onde reinam as forças da Natureza e do mito, e a ordem da vida histórica,
onde prevalecem as decisões tomadas e assumidas pelos homens para agir moral e historicamente, ainda que essas
decisões custem sua vida. Benjamin se inscreve de maneira clássica na moral kantiana da autonomia; de maneira
teológica e judaica, ele sustenta que somente a vida humana que pode ser definida como resposta do sujeito ao
Sujeito supremo – uma vida que implica, portanto, responsabilidade e transcendência – constitui uma vida
verdadeira, em oposição à mera vida e à mera sobrevivência natural, condenadas por sua vacuidade a ser o joguete
do destino ou do mito.”
67
No mesmo momento em que a vida humana se reduz ao estado natural, como nos animais
irracionais e nos vegetais, é o momento em que o vivente adquire o estatuto de uma vida sagrada,
como se a mera existência biológica carregasse em si um valor além de uma existência histórica.
Para Benjamin (2013, p. 154), a “tese da sacralidade da vida” é falsa, “pois o homem não se
reduz à mera vida do homem, tampouco à mera vida nele mesmo, nem à de qualquer de seus
outros estados e qualidades, sim, nem sequer à singularidade de sua pessoa física”. Nessa
acepção, a violência mítica, por meio do destino e da culpa, torna a vida humana sagrada para
que ela possa ser sacrificada, na medida em que o direito, por intermédio do monopólio da
violência do Estado, possui o poder sobre a vida e a morte dos seres humanos como modo de
manter o eterno retorno da violência e do poder, por isso “o sangue é o símbolo da mera vida”
(ibid., p. 151). Assim, “aquilo que aí é dito sagrado é, segundo o antigo pensamento mítico, o
portador assinalado da culpa: a mera vida” (ibid., p. 154).
Passada a ressaca, pelos lábios de gesso da sua mulher Encarnación percebeu no dia
seguinte a bárbara extensão de sua coragem. Entre portas que se fechavam apressadas,
correu tropeçando para a praça, lívido como a vela de cinquenta centavos que sua
mulher acabava de acender diante da imagem de Nosso Senhor Milagreiro. Somente
quando se deu conta de que ele mesmo, sonâmbulo, tinha depositado a moeda no
primeiro degrau, foi que recuperou a cor. (BDPD, p. 07-08)
maneira prepoderante que a submissão do povoado ao destino ditado pelas autoridades locais,
pela ordem de ninguém tocar na moeda do doutor, que era “equivalente a cinco bolachinhas
insossas ou um punhado de pêssegos, significaria algo pior que uns dias na cadeia” (BDPD, p.
6), é expressada pela província de Yanahuanca como uma “honradez”. Mais ainda, de maneira
irônica, o narrador apresenta a vida natural dos camponeses não apenas em relação a uma
insignificante moeda, mas também quando expõe a “coragem” – qualidade essencialmente fora
do domínio de uma vida resignada – dos camponeses a favor da condição de uma vida culpada.
Por exemplo, quando Consagración defendeu a “honradez” da província contra um visitante que
tentou apanhar a moeda. O forasteiro, com sarcasmo, tinha perguntado como andava a “saúde”
da moeda, Consagración mandou-lhe calar a boca, já que este não vivia na província, o
forasteiro, em contrapartida, respondeu, sorrindo, que vivia onde quisesse e avançou para perto
da moeda. Consagración, “que trazia o destino no nome” (BDPD, p. 9), fechou a rua devido a
seus dois metros de altura. “Atreva-se a tocar nela – trovejou. O do sorrisinho congelou-se.
Consagración, que no fundo era um cordeiro, retirou-se confuso. Na esquina, foi cumprimentado
pelo Prefeito: – Assim é que se faz: muito bem!” (BDPD, p. 9). Assim, ao cabo, o destino a uma
vida culpada é representada com a celebração do prefeito.
Em todo o subenredo [1], da revolta de Hector Chacón contra o Dr. Montenegro, a vida
reduzida ao estado natural, resignada ao poder, como uma mera vida é representada pela
submissão dos camponeses de Yanahuanca e Yanacocha às violências do “terno preto”. Sempre
de maneira irônica, o narrador expõe a condição de vida culpada dos comuneiros quando estão
imersos no destino, como no capítulo 5 – Das visitas que das mãos do Dr. Montenegro recebiam
certas caras: “Quem ofende o Dr. Montenegro com uma palavra maliciosa, com um sorriso
importuno ou sem entusiasmo, pode dormir tranquilo: será esbofeteado publicamente.” (BDPD,
p. 21). Todos os viventes da comunidade podem ser um dia esbofeteado publicamente pelo
doutor por estarem condenados à culpa pelo destino, assim como “Todos foram afrontados e
todos lhe pediram perdão.” (BDPD, p. 21). Ninguém escapa à mão pesada do “terno preto”, até o
Subprefeito de Yanahuanca, por não o cumprimentar como deveria em público, foi esbofeteado
pelo doutor, mostrando o caráter da vida resignada dos camponeses da comunidade.
nenhum campesino sabia exatamente quando seria “visitado pela mão” do juiz, como aconteceu
com o Subprefeito, “Curvado sob o peso da sua culpa, o Subprefeito atravessou trinta vezes a
praça; trinta vezes voltou ao seu escritório com os ombros curvados.” (BDPD, p. 22-23). Nessa
perspectiva, nas condições de uma vida natural e resignada, quem teria coragem de ofender o
“terno preto”, o mandatário do destino? Ninguém ousava afrontar o Dr. Montenegro, nem sequer
reclamar. Quem o fizesse sabia que conheceria a mão pesada do juiz, representando a violência
sancionada do Estado, que visitava sempre vários rostos de camponeses a fim de esbofeteá-los.
Todos são “esbofeteado[s] publicamente. Durante os trinta anos que o doutor favoreceu o
Juizado com suas luzes, a sua mão visitou muitas caras altaneiras. (BDPD, p. 21, inclusão
minha). Assim, o “terno preto” esbofeteou desde o diretor de escola até o sargento da polícia.
Depois todos ainda tinha que pedir perdão a ele, porque o
Dr. Montenegro fica ressentido com a pessoa que o força a castigá-la. A partir do
instante em que suas mãos designam alguém, o escolhido por seus dedos pode tentar os
mais rasgados cumprimentos: para o doutor é invisível. O perdão atemoriza mais que o
castigo. Para merecê-lo é preciso que amigos e parentes intercedam. Os castigados
organizam festas; só no verão de maio o terno preto consente em perdoar. O castigo e o
perdão são públicos. A província fica inteirada de que as mãos do doutor estão
morrendo por uma cara. Isso é tudo: ninguém sabe quando o insolente receberá a
estalada carícia. Na saída da missa? No clube? Na praça? Na porta da sua casa? O
designado pelas mãos do terno preto rala-se de impaciência. (BDPD, p. 21-22)
Quando a vida dos camponeses se reduz ao mero biológico, o vivente se enche de medo e
se acovarda, aceitando tudo que é ditado pelo destino do poder do juiz, exatamente como decorre
no conceito de mera vida. Os camponeses que participaram da corrida de cavalos em
comemoração ao aniversário da pátria peruana, por exemplo, resignaram-se quando souberam
que não poderiam sair da disputa quando o cavalo do juiz concorreria e, consequentemente,
ganharia de alguma maneira. Quando o prefeito de Yanahuanca os advertiu, deram uma amostra
exemplar do “espírito olímpico” da condição da vida acorvadada continuando na disputa ao
serem ameaçados de prisão.
Hector Chacón também esteve sob as rédeas do destino, submerso numa vida resignada
como uma espécie de mera vida, antes de desejar matar o Dr. Montenegro pela segunda vez.
Quando compreendeu a antiga condição, vislumbrou sua vida reduzida como a de um mero
cachorro: “O sol raiava na praça. Passaram uns meninos correndo. Um cachorro os perseguiu
colérico. Eles se voltaram e o cachorro fugiu. Assim era eu: um cachorro que fugia cada vez que
os fazendeiros viravam a cara.” (BDPD, p. 115). A condição de uma vida reduzida ao mero
estado natural era compartilhada por muitos, inclusive por um agente municipal, amigo do Olho-
70
de-Coruja, o que acabava reforçando a vida culpada ordenada pelo direito: “– O juiz – curva-se
Requis – está pronto a meter-nos todos na cadeia. Não se pode fazer nada Força é força.”
(BDPD, p. 117). A representação da vida resignada à disposição da força que constrói o destino e
imputa a culpa no vivente é demonstrada também por meio dos julgamentos que o Dr.
Montenegro profere, na fazenda O Estribo, durante a partida de pôquer de noventa dias com
Dom Migdônio no pátio da casa grande: “– És culpado ou inocente? – perguntou o juiz
folheando o expediente. – Como o senhor quiser, doutor. O doutor soltou uma gargalhada.”
(BDPD, p. 119).
Por fim, outro exemplo de um comuneiro do subenredo [1] que expõe características
semelhantes à condição de mera vida é Dom Teodoro, irmão de Hector Chacón. Quando o Olho-
de-Coruja formou um grupo armado para lutar contra o “terno preto”, o juiz mandou prender
todos os cavalos do seu irmão. Teodoro não reclamou ao doutor, foi fazê-lo com a mulher de
Chacón. Quando Inácia o recebeu em casa, por coincidência, Chacón estava no local. Ouviu a
reclamação escondido, depois apareceu ao irmão e perguntou por que não fizera a reclamação ao
juiz, então demonstrou o medo comum a uma vida em estado natural e resignada:
Teodoro humilhou-se.
– Eu sei que você trabalha para o bem da comunidade, mas eu é que aguento com a
vingança. Héctor, a mão do doutor é pesada. Onde é que vamos parar?
– Vamos parar onde nossos pés quiserem.
– Tenho medo de reclamar, não me animo a ir ao Posto.
Interrompeu-se e saiu subitamente. Na porta ouviram-se os seus soluços. (BDPD, p.
198)
Quanto ao subenredo [2], a significação da vida dos camponeses indígenas como que
reduzida ao estado natural e resignada ao poder, ou seja, como uma espécie de mera vida se
efetua em todo o desenvolvimento do enredo quando os comuneiros não estão resolvidos a lutar
contra a Cerca, apresentando uma visão mítica com relação ao alambrado, encarando o problema
como se fosse um castigo divino, terminando por não agir no começo. Em certo momento
diegético, pode-se pensar um ponto de contato entre a inserção da culpa na vida dos viventes
71
andinos, ditada pelo destino do direito peruano na forma de obediência para com a Cerca da
mineradora, com a visão mítico-religiosa representada, principalmente, pela visão de Dom
Teodoro Santiago: “– Essa cerca é coisa do demo. Vocês vão ver. Aqui anda alguém ao lado do
Chifrudo” (BDPD, p. 29), como analogia à ordem demoníaca do direito, fazendo com que os
ranquenhos ficassem resignados ao avanço da violência da Cerca: “O aramado não deixava ver
os santos. Os ranquenhos são de poucas palavras. Não disseram nada, mas sentiram um tapa no
rosto” (BDPD, p. 28). Nessa lógica, quando sobrevém o “Grande Pânico”, a narrativa mostra a
condição de resignação dos camponeses que são absorvidos pela culpa ligada à visão mítico-
religiosa (que na verdade é ordenada pelo direito peruano como se pode verificar no decorrer da
diegese):
Alguém teria comunicado aos animais que a Cerca enclausurava o mundo. Os homens
já o sabiam. Fazia semanas que a Cerca tinha nascido nos capinzais de Rancas. Corria,
temendo ser alcançado por aquele verme que sobre os humanos levava uma vantagem:
não comia, não dormia, nem se cansava. Os ranquenhos, os yanacochanos, os
vilapasquenhos, os yarusyacanos, souberam, antes que os corujões ou as trutas, que o
céu desabaria. Mas não podiam fugir. A Cerca fechava os caminhos. Só podiam rezar
nas praças, aterrados. Já era tarde. Mesmo que o alambrado não proibisse os pastos,
para onde fugiriam? Os habitantes das terras baixas podiam embrenhar-se nas selvas ou
subir as cordilheiras. Mas eles viviam no telhado do mundo. Acima do chapéu de cada
um deles pendia um céu opaco às súplicas. Já não havia escapatória, nem perdão, nem
regresso. (BDPD, p. 13)
Assim, os ranquenhos imersos na vida culpada não expressam nenhuma atitude frente à
violência provocada pela mineradora. Dom Teodoro Santiago ratificou essa condição por meio
da visão mítico-religiosa: “– Vocês têm a culpa! Por suas línguas podres e seus desejos sujos,
Deusinho está cuspindo em cima de Rancas!” (BDPD, p. 79). O “Deus” que “cuspia” sobre
Rancas era a violência ordenada pelo Estado peruano em consórcio com a mineradora norte-
americana em consonância com aquilo que Benjamin denominou de violência mítica, conforme
se verificou anteriormente. Somente depois de morto, na conversa entre os defuntos do desfecho,
Dom Teodoro reconheceria que a Cerca era de propriedade da Cerro de Pasco Corporation.
conduzir o desalojamento de Rancas. Guillermo era ‘louco pelo sangue humano’, insígnia do
conceito benjaminiano de mera vida. No dia do desalojamento, os ranquenhos perceberam o
mais profundo sentimento da vida reduzida ao natural quando ficaram amedrontados com a
possibilidade real de morte, como se fossem um simples animal feito um cachorro ou uma
mosca, em semelhança com a condição de mera vida:
Embora grande parte dos camponeses andinos se deixe enredar pelo destino ditado pelo
“terno preto” e pelo Estado peruano, representando em sua semelhança a ordem demoníaca da
violência mítica, que os fazem cair na condição de uma vida composta apenas pelo estado
natural, designando como diretriz uma “ação” de resignação frente ao poder instituido,
representando uma espécie de mera vida; no decorrer da diegese, contudo, principalmente nos
73
O sentido da resistência dos comuneiros na diegese adquire uma dimensão histórica para
além do estado natural, na medida em que entra na zona ética e política de decisão soberana das
ações sem a interferência de uma força sobre-humana, que denomino aqui, tendo em vista a
proximidade com a discussão conceitual benjaminiana, de vida histórica. No entanto, vários
episódios evidenciam uma espécie de oscilação dos camponeses quéchuas entre a inserção nos
domínios da vida histórica ou a permanência na condição de mera vida, demonstrando a
dificuldade de um rompimento completo das rédeas da ordem demoníaca do direito peruano.
Assim, os camponeses parecem adentrar numa zona intermediária entre a espécie de mera vida
dos viventes andinos e a condição de uma vida história. Esse limiar, como veremos, possui como
particularidade a condição social e cultural dos camponeses indígenas, que continuam a enfrentar
repressões de caráter colonial para além da recebida pela ordem do direito republicano, fazendo
com que seja necessária a criação de dois novos conceitos para analisar as condições próprias
significadas no romance, a saber, o de homens-toupeiras e o de homens-que-sustentam-que-bom-
que-afinal-comece-a-luta, expressões retiradas do romance.
Nesse sentido, antes de seguir a análise, primeiro preciso formular o que aqui chamo de
homens-toupeiras e homens-que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, aquele se
referindo ao conceito de mera vida e este, em oposição, ao de vida histórica. No entanto, ambos
alocam mais componentes conceituais que os propostos por Benjamin na sua formulação.
Proponho, assim, construir, a partir do próprio romance e do ponto de contato com os conceitos
benjaminianos, o que Deleuze e Guattari, em O que é filosofia?, denominaram de sensações de
conceitos ou afectos de conceitos.
15
Para Deleuze e Guattari (1992, p. 86), “o personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o
contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os
intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os ‘heterônimos’ do filósofo,
74
filosófico do direito e da violência, com o conceito de violência mítica e mera vida. Entretanto,
pensar não é privilégio da filosofia; para Deleuze e Guattari (1992, p. 253-254), a arte e a ciência
o fazem ao seu modo, esta por intermédio de funções, aquela por sensações. “Pensar é pensar por
conceitos, ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é melhor
que um outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais sinteticamente ‘pensado’.” Assim,
a arte, como a literatura, retiram da realidade sensações que nos fazem pensar. Por isso, a arte é
“um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos.” (ibid., p. 213, ênfase
minha). Os perceptos não se confundem com as percepções, assim como os afectos com as
afecções, apesar de partir deles. As sensações são seres que extrapolam o vivido, existem na
ausência do homem, enquanto um ser de sensação como um romance. Desse modo,
Nessa acepção, a obra de arte para Deleuze e Guattari é um monumento que não necessita
tanto da memória quanto do presente para arrancar os perceptos e afectos das percepções vividas
enquanto ser de sensações que conserva algo de histórico e universal, na diferença e semelhança
com o referente. Assim, “é verdade que toda obra de arte é um monumento, mas o monumento
não é aqui o que comemora o passado, é um bloco de sensações presentes que só devem a si
mesmas sua própria conservação, e dão ao acontecimento o composto que o celebra.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 218). Por fim, enquanto a filosofia faz pensar através dos
conceitos, dentro de um plano de imanência e pelo personagem conceitual, a arte faz pensar por
meio dos perceptos e afectos, através do plano de composição que ancora um monumento sob a
ação de figuras estéticas. Por vezes, esses pensamentos se misturam, interceptam-se, numa rede,
o plano filosófico com o plano artístico (e o plano científico), ou o inverso, podendo formar ricas
correspondências culminando, por exemplo, o conceito em conceito de sensação, ou a sensação
em sensação de conceito (ou afecto de conceito) como precisamente no presente caso. Assim,
estabelecerei dois afectos de conceitos correspondentes ao romance: o de homens-toupeiras e o
de homens-que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-a-luta.
A partir desse momento, a narrativa constrói uma alegoria da espécie de mera vida dos
viventes do departamento ao mostrar a “escuridão” e a “treva” da Cerro de Pasco numa conexão
76
sutil com a imobilidade causada pela “epidemia oftalmológica”, fazendo com que quase ninguém
enxergasse a Cerca como se devia, inclusive as próprias vítimas. A “escuridão” guarda, assim,
um duplo sentido: de modo óbvio, como sendo a ausência de energia elétrica; de outro modo,
enquanto ausência de uma razão investida de decisão, ou, em outros termos, como omissão
moral, como resignação ao destino, como uma espécie de mera vida. Além disso, podemos
perceber que a condição de “escuridão” dos viventes andinos em Cerro de Pasco vem de longe:
A construção alegórica da “escuridão” dos viventes andinos evidencia que não é apenas a
condição de uma vida culpada que é enredada aos trabalhadores rurais ditada pelo “terno preto”
como destino, representando o poder republicano e a violência mantenedora dessa ordem numa
época específica entre os anos de 1950 a 1960, outra dimensão também incide na conformação
da representação do destino e da espécie de mera vida do direito republicano peruano: o fato dos
camponeses serem indígenas de origem quéchua. Porquanto, antes de um tipo de mera vida
republicana do Peru ser engendrada pela violência representada pelo Dr. Montenegro, que
alcança tanto os trabalhadores peruanos rurais como os citadinos, os camponeses andinos ainda
são compelidos a ter que comprovar que fazem parte do gênero humano, isto é, persiste a
representação da mera vida de outra época histórica, de um outro poder estabelecido, um forte
resquício racista da época da colonização, como confirma o próprio narrador:
A começar pela Conquista, os filósofos espanhóis discutiram não seis horas mas
sessenta anos se os índios pertenciam ao gênero humano. Não se chegou até a sedia
gestatoria para que, brandindo as chaves do reino, um papa afirmasse, ex-cathedra, que
esses seres descobertos nas Índias com corpo, gestos e feições pasmosamente parecidos
com os homens eram, efetivamente, seus próximos? (BDPD, p. 187)
Desse modo, percebendo os afetos envolvidos nas lutas andinas das décadas de 1960 em
77
Cerro de Pasco, Manuel Scorza capturou esse afecto mítico quando escreveu o romance. A
condição de continuidade da opressão colonial na República peruana sobre viventes indígenas,
em termos de referências históricas, é confirmada por José Luis Rénique (2009, p. 17), quando,
ao discorrer sobre as ideias enraizadas entre os revolucionários peruanos, afirmou que “a
‘república crioula’, fundada em 1821, era esse “passado” a ser combatido, por se tratar,
fundamentalmente, de um mero prolongamento do colonialismo espanhol.”.
Em Cerro de Pasco submergiam nos túneis: não emergiam nunca mais. Sentinelas
armadas os retinham nos úmidos poços. Viviam e morriam nas galerias. De tempos em
tempos os capatazes traziam um homem-toupeira para a luz: ele próprio suplicava que o
devolvessem às trevas. Tão profundamente os feria a luz! Tudo o que os homens-
toupeiras conseguiram foi a autorização de mandar baixar os seus parentes. Famílias
inteiras, inclusive cachorros, desceram a viver nos socavões. Milhares de homens-
toupeiras trabalhavam, comiam, fornicavam numa povoação subterrânea tão vasta como
a própria Cerro de Pasco. Uma raça de olhos especiais, a dos meninos-toupeiras, crescia
nas galerias, sem acreditar nas fábulas de um sol diferente das tochas das galerias.
Nunca se saberá quantos viveram lá. Não estão enterrados no cemitério de Cerro de
Pasco, mas num campo-santo subterrâneo. No ano sessenta as coisas não chegaram a
tanto. (BDPD, p. 174, ênfase minha)
Em contrapartida, há aqueles indígenas que não aceitam essa ordem e condição, que
tentam por fora das rédeas de qualquer destino escolher de maneira livre o horizonte de luta.
Nesse sentido, a partir da semelhança com a formulação de Walter Benjamin, pode-se afirmar
que esses camponeses se inscrevem na ação da vida histórica. Como sustentado anteriormente,
Benjamin contrapõe o “mito” à “história”. Da mesma maneira que a mera vida está para o
“mito”, a vida histórica está para a “história”. Se aquela se inscreve na ordem do destino,
condenando à culpa e à infelicidade; esta carrega a liberdade da decisão moral livre, espaço da
bem-aventurança e da felicidade, como advento de responsabilidade humana que responde ao
sobrenatural. Para Benjamin, o “logos” ou o “esclarecimento” (Aufklärung) estaria em segundo
plano na oposição ao “mito”, já que o próprio “esclarecimento” quando derrotou as antigas
forças míticas, com o advento do direito, sucumbiu ao “mito”16. Isto porque, o reino da justiça
tinha sido confundido com o do direito, sendo este o resquício do plano demoníaco, no “qual os
princípios jurídicos não determinam apenas as relações entre os homens, mas também destes
com os deuses”. Assim, o direito “manteve-se para além do tempo que inaugurou a vitória sobre
os demônios.” (BENJAMIN, 2013, p. 93). A vida histórica, nessa lógica, consagra a força
sobrenatural no homem, onde reina a ordem histórica como decisão suprema, ligada à violência
divina, aquela que justifica a vida justa e, portanto, a existência humana, diferentemente da mera
vida. Para Benjamin, segundo Gagnebin (2014, p. 56), na ordem da vida histórica,
16
De imediato, esse argumento lembra a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, sugerindo, segundo
Gagnebin (2014, p. 52), que os autores “não retomam somente a visada messiânica da filosofia da história das
famosas “teses” de Walter Benjamin, mas também uma concepção de mito profundamente metafísica que atravessa
tanto os textos de juventude de Benjamin como seus ensaios de crítica literária.”
79
seguimento do relato, depois da Cerro de Pasco ficar nas “escuras”, advém o tumulto do
povoado, de tal maneira que “o povo furioso se dividiu entre os que diziam para-que-porra-
fomos-nos-meter-com-os-gringos e os que sustentavam que-bom-que-afinal-comece-a-luta.”
(BDPD, p. 174, ênfase minha). No fim do capítulo, com humor e ironia, o narrador sustenta
ainda que nasceram várias crianças geradas de adultérios devido à escuridão: “a Cerro traduziu-
se no aumento da curva demográfica. Pares agradecidos sonharam em batizar os novos cidadãos
com o nome de Harry. Mas a Cerro de Pasco Corporation não soube aproveitá-lo.” (BDPD, p.
175). Assim, o afecto de conceito homens-que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-a-luta
agrega como componente característico uma espécie de vida histórica, no sentido de um duplo
rompimento com os destinos impostos pelos resíduos da ordem colonial na ordem republicana do
Peru.
No subenredo [1], o personagem protótipo de significação desse limiar, que depois rompe
de vez com a condição de homem-toupeira para a entrada permanente na condição de homem-
que-sustenta-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, é Hector Chacón, o Olho-de-Coruja. Na
trajetória de Chacón, a condição de homem-toupeira apareceu desde a infância a partir do
exemplo do pai: primeiro, quando Juan o “Surdo” mostrou-se altamente submisso ao “terno
preto” no momento da própria perda de audição devido aos desmandos do juiz: “dinamitando
rochas por ordem do doutor, tinha perdido o ouvido” (BDPD, p. 49-50); segundo, quando, no
80
episódio da bola de pano, “o Surdo” sem intenção acertou o magistrado quando brincava com
Chacón, tendo como punição cercar, com a família ao relento, uma terra de trezentos metros de
lado durante cento e noventa três dias. O pai de Chacón na condição de homem-toupeira só sabia
agradecer: “– Obrigado, patrão!” (BDPD, p. 51). Nesse momento, mesmo criança ainda, Chacón
desejou acabar com o juiz devido aos abusos: “foi a primeira vez – tinha nove anos – que a mão
de Héctor Chacón, o Olho-de-Coruja, sentiu sede da garganta do Montenegro” (BDPD, p. 52).
Assim, começava a entrar no limiar dos afectos de conceitos descritos acima.
Depois de adulto, com os abusos do doutor atingindo diretamente sua existência, Chacón
se insere definitivamente nesse limiar, na ambiguidade entre, de um lado, a resignação e o medo,
de outro, a coragem e a vontade de lutar, ou seja, entre a condição de homem-toupeira e homem-
que-sustenta-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, como no dia em que o Dr. Montenegro mandou
acabar com a plantação de Chacón depois da reclamação contra a prisão de seus cavalos. O
Olho-de-Coruja teve coragem de reclamar novamente, dessa vez diretamente ao doutor. O “terno
preto” respondeu ditando-lhe o destino de um homem-toupeira, mas Chacón não aceitaria o fado:
“– Estou gostando! – gritou. – Estou gostando que os meus animais acabem com a tua chácara.
És um peão insolente, um índio de merda. Se te portares mal, pior para ti. Tu não entendes
palavras. És teimoso como uma mula. Vais ver o que te acontece.” (BDPD, p. 114). Em seguida,
Chacón seria detido por sete dias depois de prestar queixa contra os animais do doutor que
estavam destruindo suas terras. O “terno preto” então mandou soltá-lo com a condição de sair
das terras de Yanaceniza. No limiar entre as condições, Chacón resolveu ouvir familiares e
companheiros que compartilhavam a mesma terra, conforme se verificar neste trecho:
morrer sozinho.” (BDPD, p. 120). Palacín, o capanga da fazenda, tentou colocá-los “nos seus
lugares” de homens-toupeiras respondendo ofensivamente: “– Chacón é um joão-ninguém e não
tem nada que ver com coisa nenhuma – disse o capataz Palacín.” (BDPD, p. 120).
Nesse momento, o Olho-de-Coruja decidiu comprar uma arma para proteger a terra.
Durante um ano, as batatas cresceram sem interferência do juiz. Mas depois os guardas-civis
apareceram com uma ordem de prisão para Chacón devido a um suposto roubo de cavalos. O
Olho-de-Coruja ficou cinco anos preso. Depois que saiu da prisão, vendo o quanto havia
crescido os abusos do doutor, desejou pela segunda vez acabar com o doutor, mas agora havia
desejado de verdade: “tinha-o mordido o segundo desejo de matar o Dr. Montenegro. Nessa
madrugada, sentiu ânsias de matá-lo de verdade.” (BDPD, p. 62). Assim, Chacón saiu do limiar e
rompeu definitivamente com a condição de homem-toupeira, procurou agir, desse momento em
diante, de acordo com a ação histórica pautada na decisão moralmente livre conforme um
homem-que-sustenta-que-bom-que-afinal-comece-a-luta. Diversos comuneiros permaneceram no
limiar, enquanto outros se colocaram permanentemente como homens-toupeiras. Ao cabo, a
comunidade de Yanacocha em geral, como personagem coletivo, localiza-se na significação da
zona intermediária entre as condições. Chacón ainda lutou para mudar essa condição,
convocando um conciliábulo para conspirar contra o “terno preto”, como se pode ver no trecho:
– Nesta província – quase não se percebia seu ressentimento – existe alguém que nos
tem debaixo dos pés. Nas cadeias já vi delinquentes rogar a Jesus Cristo Coroado: os
assassinos e os filhos da puta se ajoelham e rezam chorando a oração do Justo Juiz. O
senhor Jesus Cristo se aplaca e perdoa-os, mas nesta terra há um juiz que não se aplaca
com palavras nem com orações. É mais poderoso do que Deus.
– Jesus, Maria! – benzeu-se Sulpícia.
– Enquanto ele viver, ninguém tirará a cabeça da merda. Em vão reclamamos as nossas
terras. Por puro gosto é que o Procurador apresenta recursos. As autoridades não passam
de zés-ninguéns graúdos. (...)
– Vocês vão ver – riu Chacón. – O Dr. Montenegro vai limpar o cu com as citações.
Para os que se metem com ele esse homem tem duas cadeias: uma na sua fazenda e
outra na província. (BDPD, p. 15)
Abígeo, o amigo de Chacón que possui o dom da premonição pelo sonho, nesse
momento, mostra-se também no limiar: “o Abígeo coçou a cabeça. – E o que acontecerá com os
assassinos?” (BDPD, p. 16), acreditando que “não havia remédio” para as dificuldades, afirmou
com medo: “– No dia em que esse homem morrer – tremeu o Abígeo depois de um silêncio
meditativo – a polícia matará e queimará Yanacocha.” (BDPD, p. 16). Sulpícia, por sua vez,
respondeu ao Abígeo, no sentido libertador do ato para a comunidade: “– Se esse homem morrer
– falou Sulpícia com dureza – ninguém dirá ‘Yanacocha é minha’.” (BDPD, p. 16). Numa
82
Quando o procurador afirmou que a audiência não seria mais pública, “– Só irão as
autoridades – confirmou, confuso, o Procurador. Seus olhos estavam encharcados de medo e
confusão.” (BDPD, p. 98), Chacón não suportou e saiu a galope para casa. Admitiu então à
família que estava resolvido a matar o doutor de qualquer maneira como um homem-que-
sustenta-que-bom-que-afinal-comece-a-luta: “– Vou matar Montenegro – disse o Olho-de-
Coruja. – Amanhã acabo com esse abusado. Para haver pastagens, esse homem não pode
existir.” (BDPD, p. 36). O filho Fidel, depois de fazer algumas perguntas, afirmou no mesmo
tom: “– Acabe com os fazendeiros, papai. Eu ajudo. Pra ninguém desconfiar, eu levo as armas
debaixo do meu poncho.” (BDPD, p. 37). No outro dia, a filha Joana, com medo, perguntou a
Chacón se Fidel estava dizendo a verdade, se mataria o doutor naquele mesmo dia; o Olho-de-
Coruja, com calma, explicou: “– Para que os animais terem onde pastar [sic], preciso cometer
esse crime – disse Chacón suavemente.” (BDPD, p. 38). Nesse momento, a narrativa sugere que
Chacón, com o assassinato, acabaria com a violência da força mítica, evidenciando a alegoria do
83
direito na expressão “terno preto”: “Matarei a sua cara, matarei o seu corpo, matarei as suas
mãos, matarei a sua sombra, matarei a sua voz.” (BDPD, p. 38). O Dr. Montenegro, no entanto,
depois de ter sido avisado, não foi à audiência, como também decidiu não sair mais da fazenda
até matarem Chacón.
Nesse contexto, o Olho-de-Coruja resolveu montar um grupo armado para fazer uma
revolução, não temendo a morte conforme assegurou aos filhos, que registrariam na memória a
imagem do pai nesse dia, o qual demonstrou como age um vivente andino na condição de
homem-que-sustenta-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, conforme o seguinte trecho:
– Estas violências nasceram das pastagens, filhos. Se Montenegro nos tivesse deixado
um pedacinho de terra com pasto, tudo seria igual, mas agora é demasiado tarde. Falo
sério. Posso morrer a qualquer momento. Se eu cair nas mãos da polícia me matarão.
– Acaba com a raça dos fazendeiros, papai – disse Rigoberto comendo as lágrimas. –
Nem que morras, acaba com eles. Torce o pescoço deles.
– Não fales assim com teu pai – repreendeu Inácia.
A vela amareleceu os olhos do Olho-de-Coruja. Esse seria o rosto de que Rigoberto se
lembraria. Passados os anos, quando se perdesse nos labirintos dos trabalhos obscuros,
não recordaria os sorrisos dos dias bons, mas aquela cara laqueada de rancor.
– Haja o que houver, Montenegro terá o seu fim. Estou decidido a formar um bando
para libertar-nos da opressão. Tenho amigos dispostos a beber-lhe o sangue.
– Está bem, papai – disse Rigoberto. – Acaba com os mandões. (BDPD, p. 167)
– Héctor está com a razão – disse Pis-Pis – É mentira dizer que somos livres. Somos
escravos. A única forma de ir adiante é matando.
– Isso é o que se pode fazer na província Daniel A. Carrión, senhores –disse Chacón.
Devemos começar a morte dos ricos em Yanahuanca. Estou pronto a dar a minha vida.
Podes ajudar-me, compadre? (...)
– Temos que enfrentar estas injustiças com sangue – disse o Magro, entusiasmado. –
Isto dever ser uma revolução. (...)
– Vamos começar por Montenegro – disse Chacón. (BDPD, p. 182)
toupeiras: “– Perdão, Dom Santiago! – Não peçam perdão a mim, sacrílegos. Roguem a Deus!”
(BDPD, p. 79-80). Até o procurador de Rancas, Dom Alfonso Rivera, sustentou essa visão
mítica. Mas o padre Chásan os convocou para a ação, apontando o caminho de entrada à
condição de homem-que-sustenta-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, quando revelou que a
Cerca não pertencia a Deus, e sim a Cerro de Pasco Corporation, como podemos observar:
– Padrezinho – perguntou o Procurador – quando terminou a missa – por que Deus nos
manda este castigo?
O padre respondeu:
– A Cerca não é obra de Deus, meus filhos. É obra dos americanos. É preciso lutar.
A cara de Rivera azulejou.
– Como é que se pode lutar contra a “Companhia”, padrezinho? Ela é dona dos polícias,
dos juízes, dos fuzis, de tudo.
– Com a ajuda de Deus tudo se pode.
O Procurador Rivera pôs-se de joelhos.
– A bênção, padrezinho.
O padre Chasán traçou uma cruz.
Começaram a lutar. Às quatro da manhã Rivera bateu em todas as portas dos varões.
Reuniram-se na praça. Geava. Pulavam nas pedras para não endurecerem de frio.
Armaram-se de porretes e fundas. Repartiram-se três garrafas de cachaça. Ainda escuro,
acaçaparam-se à espera da ronda da Companhia. (BDPD, p. 100-101)
Levantaram-se alarmados quando uma bola rolou aos seus pés. Era a cabeça de
Mardoqueu Silvestre.
Os homens começaram a rarear. Os últimos que se atreviam a lutar, voltaram de rastos.
Em vão o Procurador batia nas portas obstinado. Em fins de setembro nem os valentes
ousaram combater. Um dia os vigias apareceram uniformizados. E desde então um
86
Combatendo a Cerca todos os dias, o velho começou a receber cada vez mais súplicas
para voltar à condição de um homem-toupeira, especialmente, do procurador Dom Alfonso
Rivera: “– Não insista, Dom Fortunato (...) – Sozinho, o senhor não pode. Um homem não pode
lutar sozinho contra quinhentos.” (BDPD, p. 103), e também dos familiares, como o fizeram suas
filhas quando souberam da peleja do pai, “– Vão te matar, papaizinho – soluçavam as suas filhas.
– Vivo nos ajudas; morto, não darás nem água” (BDPD, p. 103). Não admitindo os conselhos,
Fortunato seguiu lutando sozinho contra a Cerca. Até o dia em que os seguranças da Companhia
começaram a matar os animais da comunidade. Fortunato então convocou os habitantes de
Rancas a fim de discutir a violência abarcada pela Cerca. Por meio de seu discurso, o velho
conseguiu movimentar os camponeses para mais próximo da esfera dos homens-que-sustentam-
que-bom-que-afinal-comece-a-luta dentro do limiar entre as condições, como se entrever neste
trecho:
O Procurador Alfonso Rivera, mesmo depois de saber que a Cerca era da mineradora,
aparentou, em determinados momentos, estar circunscrito no limiar mais próximo à esfera do
homem-toupeira: “– Um grande mal caiu sobre este povo, irmãos. – torceu os dedos. – De
nossos pecados nasceu um grande sofrimento. A terra está doente. Um grande inimigo, uma
companhia poderosíssima, determinou a nossa morte.” (BDPD, p. 143). Mas, em seguida,
pensando um pouco mais, recolocou-se mais próximo ao campo dos homens-que-sustentam-que-
bom-que-afinal-comece-a-luta: “– Rancas é pequena, mas Rancas lutará. Uma picada pode
acabar com um animal. Uma pedra no sapato machuca o pé do homem (...) – Não há inimigo
pequeno! – gritaram dois olhos onde também pelejavam, como cães, o medo e a coragem.”
(BDPD, p. 143). Assim, como podemos observar, esses trechos exibem dois sentimentos
opostos, o medo e a coragem, que caracterizam os campos contrários dos afectos de conceitos,
corroborando com a topologia do limiar proposto aqui para a análise da significação das
condições dos viventes andinos frente à violência do poder.
Por fim, no desfecho do romance, quando a Guarda de Assalto desceu em Rancas para o
desalojamento, evidencia-se uma situação exemplar de significação do limiar dos comuneiros
entre as condições de homens-toupeiras e homens-que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-a-
luta: “vieram os ranquenhos tensos e resolvidos a lutar mas os vagões vomitaram guardas
republicanos e cem homens da Companhia.” (BDPD, p. 193). Hesitando, colocaram-se a discutir
a situação com nervosismo. Fortunato, na ação de oportunidade histórica, mostrou novamente o
rompimento do limiar, ao se colocar completamente na significação da condição de homem-que-
sustenta-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, conforme assegura o trecho abaixo:
Assim, os camponeses indígenas quéchuas de Bom dia para os defuntos, em sua maioria,
tanto do subenredo [1] quanto do subenredo [2], colocam-se no limiar entre a significação da
condição de dupla mera vida e da condição de vida histórica, ou, nos termos aqui propostos,
entre a qualidade de homens-toupeiras e de homens-que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-
a-luta, reconhecendo a ordem demoníaca do direito republicano do Peru, tanto na expressão de
poder local com o Dr. Montenegro como na expressão de poder mundial com a Cerro de Pasco
Corporation. Esse reconhecimento, no entanto, ao cabo, não se tornou suficiente para a
aniquilação de tal ordem.
89
INTERLÚDIO
Apontamentos críticos sobre a validade dos pressupostos do boom e do realismo
maravilhoso na crítica latino-americanista e uma hipótese de trabalho geral
90
apesar de não distinguir os sintagmas distintos e suas respectivas formulações teóricas 17, utiliza-
se da conceituação do realismo maravilhoso de Irlemar Chiampi como uma escrita da não-
disjunção, isto é, uma escrita onde a contradição não-sincrônica procura se dissolver como
contradição (ou, para utilizar a lógica aristotélica, o terceiro excluído como princípio da
contradição de opostos, no caso de racionalidades opostas, não funciona na narrativa latino-
americana, sendo possível a conjunção textual de A e não-A), para no final propor que o
realismo mágico se estabelece precisamente ao contrário: como uma escrita radical da disjunção.
o que Arguedas fez foi desfazer o realismo mágico e seu sistema de representação. Se a
tendência mesma do realismo mágico é buscar desfazer a si próprio (ao familiarizar o
não-familiar), a destruição da possibilidade dele mostrará ser o momento de sua
efetividade máxima.
Por meio dessa estratégia de leitura, além do realismo mágico, Moreiras procura
demonstrar também a derrocada da transculturação narrativa enquanto sistema de representação
e “máquina epistêmica”, já que o realismo mágico é apenas um “instrumento técnico dentro de
um aparato maior e mais abrangente de representação transculturadora” (MOREIRAS, 2001, p.
222). Distinguindo a transculturação antropológica, ferramenta etnóloga produzida pelo
antropólogo cubano Fernando Ortiz para estudar a mistura cultural, da transculturação literária,
ferramenta crítica produzida a partir desta última pelo crítico uruguaio Ángel Rama para se
referir ao uso “autoconsciente, da combinação cultural como um instrumento para a produção
estética ou crítica” (ibid., p. 222), Moreiras reconhece, entretanto, que a transculturação literária
como uma espécie de plasticidade cultural respondeu efetivamente à modernização de maneira
ativa, estabelecendo-se, portanto, como uma ferramenta crítica. Por isso, a denomina como
transculturação orientada.
Nessa perspectiva, a transculturação orientada atingiria com o seu fim uma “des-
orientação”, e, para Moreiras (2001, p. 226), “apenas o uso des-orientado da transculturação tem
o potencial de ser utilizado para uma crítica ao Império – ao passo que seu uso orientado passa a
agir de acordo com as articulações ideológicas deste”. Assim, contra a tese otimista de Rama, do
fim da transculturação somente com a superação da modernização, Moreiras sustenta que a
teoria transculturadora não admite um significado para ser encontrado, ao revés, é uma máquina
de implosão do significado por intermédio da impossibilidade aporética aberta na tentativa de
apropriação e conciliação de dois mundos. Arguedas, com Los Zorros, confirmaria essa hipótese:
A tese que quero propor é que a transculturação crítica – que vai até o fim de si mesma
e explora, como tem de fazer através de sua lógica, seu próprio excesso em relação a si
mesma – não consegue prosseguir e sofre um colapso. José María Arguedas deu-nos
talvez um exemplo paradigmático na tradição latino-americana desta transculturação
final da transculturação – sua derrocada, que vem a ser, em última análise, sua
possibilidade teórica mais própria. (MOREIRAS, 2001, p. 228)
Desse modo, Moreiras recorre à Los Zorros para argumentar o fim do realismo mágico e
93
da transculturação literária como paradigma crítico, isto é, a narrativa de Arguedas serve para o
crítico dos Estudos Subalternos como obra basilar para provar a abertura de uma nova
possibilidade crítica para o latino-americanismo, que se efetivaria no momento exato do fracasso
das ferramentas modernas. Assim, antes de retomarmos a operação teórica da hipótese de
Moreiras, faz-se necessário uma breve referência à Los Zorros.
Romance inacabado, Los Zorros é uma narrativa sui generis em diversos aspectos.
Escrito entre 1966 e 1969, Los Zorros possui três estratos discursivos distintos: os diários de
Arguedas, parte testemunhal; a história de Chimbote como uma conformação imperialista de um
parque pesqueiro, parte realista; e as raposas e suas intervenções, construídas a partir do mito
quéchua de Huarochirí, parte mágica ou maravilhosa. A narração de Chimbote revela a face
degradada e caótica da modernização, enquanto a narração mítica das raposas de cima e de baixo
pode ser lida como signo da esperança frente ao terror anunciado pelo parque pesqueiro. Por fim,
quanto aos diários, a possibilidade de suicídio insurge a todo o momento na narrativa, seja nas
primeiras palavras do diário que abre o romance: “Em abril de 1966, há pouco mais de dois anos,
tentei me suicidar. Em maio de 1944, tive crises de uma doença psíquica contraída na infância e
estive quase cinco anos neutralizado para escrever19”; seja no último trecho da obra, quando
pronuncia a decisão do dia do suicídio, em 28 de novembro de 1969: “Escolho este dia porque
não perturbará tanto o funcionamento da Universidade. Acredito que a matrícula estará
concluída. Os meus amigos e autoridades poderão perder o sábado e o domingo, que pertencem a
eles e não à Universidade20.”
A partir dessa complexidade narrativa, Moreiras elabora uma leitura de Los Zorros
articulando-o com o suicídio de Arguedas para anunciar o fim do realismo mágico. Para tanto,
utiliza-se dos diários como contraponto aos estratos narrativos que compõem a obra, na intenção
de verificar a disputa travada entre a força apropriadora do relato e a força desapropriadora dos
testemunhos e do suicídio do narrador. Moreiras confronta, dessa maneira, as teses de
apropriação e representação transculturadora dentro do latino-americanismo. Nesse sentido, ele
argumenta que
19
Tradução minha: “En abril de 1966, hace ya algo más de dos años, intenté suicidarme. En mayo de 1944 hizo
crisis una dolência psíquica contraída en la infância y estuve casi cinco años neutralizado para escribir.”
(ARGUEDAS, 1996, p. 7).
20
Tradução minha: “Elijo este día porque no perturbará tanto la marcha de la universidad. Creo que la matrícula
habrá concluído. A los amigos y autoridades acaso les hago perder el sábado y domingo, pero es de ellos y no de la
U.” (ARGUEDAS, 1996, p. 255).
94
Apesar de concordar com a última sentença, para Moreiras, no entanto, Moretti e Rama,
em que pese a divergência no sentido crítico, compartilham o mesmo endereço teórico ao
conceberem o realismo mágico como uma máquina de apropriação. Na procura de exaustão da
diferença, Moreiras propõe colocar a máquina de apropriação contra si própria, ou seja, fazer
uma leitura do realismo mágico contra si enquanto possibilidade de apropriação epistêmica,
como nos assegura:
Mas será possível voltar o realismo mágico contra si próprio, ou usá-lo de outra
maneira? E se um texto latino-americano, como El Zorro, nos tivesse dado os meios
para entender uma possibilidade diametralmente oposta dentro do realismo mágico, pela
qual seu aparato pudesse mostrar que é não apenas uma máquina de apropriação, mas
seu oposto? O jogo crítico seria expandir nossa noção de realismo mágico e fazê-lo se
abrir para uma articulação mais profunda. (MOREIRAS, 2001, p. 232)
elo direto entre o texto e a realidade, de acordo com Alberto Moreiras (2001, p. 232), uma vez
que “no texto de Arguedas, (...), o som duplo da pólvora e do chumbo, a cicatriz fatal que
aparece ao fim de sua escrita como signo e assinatura da identidade entre escritor e o texto,
tragicamente cumprem o momento teórico do real mágico como evento textual”. Por
conseguinte, o suicídio de Arguedas seria não apenas uma assinatura, como também o efeito real
mágico por excelência, concebendo a realidade brutal da morte do narrador dos diários como
uma espécie de continuação textual de Los Zorros.
Não acho que a realização histórica de Arguedas contra toda e qualquer transculturação
– a saber, um texto em que a racionalidade não-hegemônica pode supostamente explicar
a própria modernidade, isto é, pode oferecer o próprio princípio da razão da
modernidade –, sobre a qual nunca teremos pensado o bastante, possa ser lida acima,
além ou à parte do suicídio literal, textual, do autor. No momento em que a tensão
interior do autor lhe tornou possível levar a máquina real-mágica à sua posição mais
apropriada, naquele momento a contradição sincrônica se inverteu, e a suspensão se
seguiu. O resultado foi, é claro, não um momento pontual de não-contradição, mas uma
falha aporética de sentido se abriu, e a disjunção ofereceu uma perda incalculável, uma
suspensão final de produtividade.
pois ela mesma se dá como testemunho de um conflito violento das culturas, que nunca
desaparecerá pela mediação. A morte de Arguedas é uma fissura no sentido textual que
paradoxalmente organiza a plenitude de sentido do texto: o significado, neste romance,
resulta da implosão absoluta do significado. Como um evento da escrita, colocado entre
o fracasso do romance e o outro lado do fracasso, abre-se uma fenda, uma falha, um
buraco de bala de disjunção total: logo que surge o significado, ele precisa ser rasurado
de novo. Ou melhor, o significado é aqui a necessidade de rasura. Para Podestá, Los
Zorros testemunha ‘a emergência, entendendo-a como a aparição inesperada, da
condição pós-moderna no Peru’ (“El Zorro”, 101). (MOREIRAS, 2001, p. 245, ênfase
minha)
Por este ângulo, os pressupostos teóricos que permitem Moreiras desenvolver tal
metodologia crítica, a saber, fazer uma ligação direta entre a problemática decisão de suicídio de
Arguedas com sua última narrativa, e a partir daí concluir e generalizar a impossibilidade teórica
de dois conceitos, devem ser questionados. A discordância a ser desenvolvida aqui, portanto,
ultrapassa a hipótese do fim do realismo maravilhoso enquanto escrita da não-disjunção, tem
origem, evidentemente, em seus pressupostos teóricos, sobretudo na utilização do conceito de
Império, desenvolvido por Michael Hardt e Antônio Negri, já que este fundamenta e se articula,
como veremos, com os demais pressupostos que sustentam o seu projeto crítico.
Ora, se, para Moreiras (2001, p. 247), de um lado, a consumação mais intensa do
realismo mágico foi o suicídio de Arguedas, porque levou “o realismo mágico à sua efetivação”,
rompendo, paradoxalmente, com o realismo mágico enquanto escrita não-disjuntiva, ativando,
assim, “com toda a força do paradoxo, (...) a possibilidade de uma crítica verdadeira do
Império”, de outro lado, portanto, o realismo mágico antes de Los Zorros, por meio de seu uso
orientado, agia “de acordo com as articulações ideológicas deste” (ibid., p. 226), então a relação
estabelecida pelo objeto literário com o Império constitui o mais importante critério estético-
político da crítica em questão. À vista disso, cabe perguntar como as fundações do conceito de
Império, e suas consequências, sustentam e orientam a hipótese de Moreiras e sua articulação
crítica.
Antes, uma observação: como não é objetivo deste estudo fazer uma crítica sistemática à
noção de Império de Hardt e Negri, até porque já existe bibliografia abundante com esse
propósito21, farei brevemente apontamentos críticos aos dois principais pressupostos diretamente
reivindicados por Moreiras22, a saber: primeiro, da proposição de suposta desterritorialização e
21
Entre algumas das elaborações críticas destaco: Farias (2005), Foster (2001), Bonnet (2002), Borón (2002) e
Petras (2004).
22
Certamente, seria impossível para escopo deste estudo fazer uma crítica a todos os pressupostos do projeto crítico
98
A partir de Hardt e Negri, Moreiras (2001, p. 49) defende que estaríamos situados no
contexto político-econômico de passagem para o Império, quer dizer, para a sociedade global de
controle. Por conseguinte, não estaríamos mais vivendo sob a ordem do imperialismo,
experimentaríamos, portanto, uma mudança no modo de produção econômica com suas
respectivas consequências culturais. Associado à experiência de passagem da sociedade
disciplinar para a sociedade de controle, o Império se caracterizaria, conforme Moreiras (p. 50,
ênfase do autor), pela “tendência à liberação de referências espaciais e geo-espaciais: o espaço
estriado da modernidade construiu lugares que estavam continuamente envolvidos em um jogo
dialético com seus exteriores”, enquanto o Império, ao revés, está fundado em um espaço
regular, onde o exterior submerge no interior, e vice-versa. Em outros termos,
O Império como um poder global transcendente, sem centro, sem nenhuma instituição
estatal dominante, modulado por uma força horizontal difusa, sem qualquer localização
territorial, sem qualquer relação dialética de poder entre os estados. Nessa perspectiva, se antes,
no imperialismo, ou, na sociedade disciplinar, guardada a devida distância conceitual (isto é,
àquele se referindo ao conceito marxista relacionado ao modo de produção, este ao conceito
foucaltiano relacionado aos dispositivos de poder daquele), lidávamos com o paradigma de certa
topologia (a base, a superestrutura, o Estado, a soberania nacional, o centro, a periferia, etc.,
de Moreiras, uma vez que sua leitura, para dizer junto com Heloisa Buarque de Hollanda, é “comprometida por um
cacoete pós-moderno. Tomando o lugar da antiga exibição de erudição do intelectual moderno, surge agora o
scholar museológico. Aquele que revela sua compulsão pela atualização bibliográfica (o book snob, diriam as más
línguas novayorkinas). Aquele cujo texto tem que ser capaz de conter todas as referências possíveis e que nos
contamina com sua ansiedade de nunca ter sido suficientemente exaustivo. O texto, como em todo ato compulsivo,
perde então sua liberdade de movimentos e a possibilidade de fruição de seus sabores e texturas críticas. O que é
irrelevante diante da riquíssima pauta de questões que nos oferece.” Disponível em:
<http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/a-exaustao-da-diferenca-a-politica-dos-estudos-culturais-latino-
americanos/>. Acesso em: 29 de out. 2016.
99
Primeiro, parece um contrassenso imaginar uma única autoridade difusa para administrar
o “arco-íris imperial global”, ou, como contrapartida, e mais absurdo ainda, imaginar uma
estrutura de poder global sem nenhuma autoridade reconhecível como inimigo. Conforme Hardt
100
e Negri (2001, p. 12-13, ênfase dos autores), na nova supremacia imperial “os Estados Unidos
não são, e nenhum outro Estado-nação poderia ser, o centro de um novo projeto imperialista. O
imperialismo acabou. Nenhum país ocupará a posição de liderança mundial”, por consequente,
na esteira de um poder econômico regulado por um biopoder transcendente, “o inimigo é, ao
contrário, um regime específico de relações globais que chamamos de Império” (ibid., p. 64-65).
Nessa lógica, os conflitos nacionais, como os mimetizados pelos romances do boom, não
caracterizariam os interesses de países imperialistas como o EUA e suas multinacionais; levado a
cabo pelos Estados latino-americanos como sócios menores do imperialismo, ao contrário, estas
lutas encobririam os mecanismos de poder do Império. Assim, “as massas oprimidas e
exploradas do mundo são convocadas para uma batalha final contra um regime de relações
globais23” (BORÓN, 2004, p. 42). Afinal, como conclusão, insurge, para usar a imagem sugerida
por Atilio Borón, na sua leitura crítica ao conceito de Hardt e Negri em Império e Imperialismo,
o divertido Dom Quixote novamente, depois de séculos, para lutar contra os moinhos de ventos
do Império.
23
Tradução minha: “las masas oprimidas y explotadas del mundo son convocadas para una batalla final contra un
régimen de relaciones globales.”
101
Isto quer dizer que, por meio de pressões de diversos tipos, o conglomerado de países
capitalistas desenvolvidos foi o responsável direto pelo surgimento das dívidas no Terceiro
24
Tradução minha: “Dicho en sus propias palabras, “en los últimos cuarenta años el crecimiento del gasto público
en las economías avanzadas ha sido persistente, universal y contraproductivo’”.
25
Tradução minha: “si este refuerzo de la organización estatal se verifica en el corazón de los capitalismos
desarrollados, la historia en el mundo de la periferia es completamente distinta. En la reorganización mundial del
sistema imperialista que tuvo lugar bajo la égida ideológica del neoliberalismo los estados fueron radicalmente
debilitados y las economías periféricas sometidas cada vez más abiertamente, y casi sin la mediación estatal, a los
influjos de las grandes empresas transnacionales y las políticas de los países desarrollados, principalmente los
Estados Unidos. Este proceso no tuvo nada de natural y fue el resultado de las iniciativas adoptadas en el centro del
imperio: el gobierno de los Estados Unidos, en el papel rector, acompañado por sus fieles perros guardianes (el FMI,
el Banco Mundial, la OMC, etc.) y respaldado por la militante complicidad de los gobiernos del G7.”
102
Mundo, como pela aplicação das políticas do “consenso de Washington”, conforme Borón
(2004, p. 100-101), fazendo a economia girar ao redor do interesse deles, sobretudo, dos Estados
Unidos. Os interesses empresariais norte-americanos e europeus adentraram no mercado latino-
americano arruinando o setor público, desestruturando o Estado, reduzindo o máximo de gastos
públicos, atingindo educação, saúde, etc., para o efetivo envio de remessas cada vez maiores de
juros da dívida pública de cada país. Sempre com políticas voltadas para o ajuste fiscal,
privatizações, abertura unilateral da economia e desregulação dos mercados financeiros, como
hoje continua acontecendo, por exemplo, no Brasil e na Argentina. Dessa maneira,
Por fim, outro aspecto importante, seguindo Borón (2004, p. 103-104) e Farias (2005, p.
33), refere-se à confusão que Hardt e Negri fazem entre as formas estatais e as tarefas dos
Estados. Como o Estado é uma instituição histórica, não um ente metafísico, construído e
mobilizado pelas forças sociais e pela luta de classes, suas formas não podem ser lidas como
“essências imanentes brotando por cima do processo histórico. Consequentemente, as formas do
Estado democrático nos países capitalistas avançados têm mudado. Em que sentido? Houve um
verdadeiro recuo democrático” (BORÓN, 2004, p. 103). Entre os indicadores do recuo, Borón
enumera a crescente desresponsabilização dos governos; o detrimento de poder dos congressos e
parlamentos e sua contrapartida no executivo; o crescimento de espaços de tomada de decisões
26
Tradução minha: “En su conjunto, estas políticas tuvieron como resultado un fenomenal debilitamiento de los
estados en la periferia, cumpliendo el sueño capitalista de mercados funcionando sin tener que de hecho fuesen los
conglomerados empresariales más fuertes los que se encargaban de “regularlo”, obviamente en provecho propio. Y
como decíamos antes, estas políticas no fueron para nada fortuitas ni producto del azar, toda vez que el
desmantelamiento de los estados aumentó significativamente la gravitación del imperialismo y de las firmas y
naciones extranjeras en su capacidad para controlar no sólo la vida económica sino también la vida política de los
países de la periferia. Por supuesto, nada de esto hallamos en Imperio. Lo que sí encontramos, en cambio, son
reiteradas declaraciones en el sentido de que las relaciones imperialistas se han acabado, pese a que la visibilidad
que éstas han adquirido en las últimas décadas es tan destacada que hasta los sectores menos radicalizados de
nuestras sociedades no dudan en reconocerlas.”
103
secretos; e a autocracia dos mercados, controlados por oligopólios por meio das agências
imperialistas retirando o poder da soberania popular. Isto se processa tanto nos centros imperiais
como nas periferias, como no caso da América Latina. Aqui, sustenta Borón (ibid., p. 104),
temos sido privados de quase todos os atributos da soberania popular, pois “nenhuma decisão
estratégica, em matéria econômica ou social, adota-se no país sem uma prévia consulta com – e
aprovação de – alguma agência relevante de Washington”. Por isso, o agente político principal
da globalização continua sendo o Estado, mais que isso, parece que o capital não apenas tem
necessidade deste como tem acentuado seu uso estratégico. Nesse sentido,
27
Tradução minha: “los mercados globales potencian la competencia entre las gigantescas corporaciones que
dominan la economía mundial. Dado que estas firmas son transnacionales por su alcance y el rango de sus
operaciones pero siempre poseen una base nacional, para tener éxito en esta lucha sin cuartel requieren del apoyo de
“sus gobiernos” para mantener a sus rivales comerciales en raya. Conscientes de esta realidad, los estados nacionales
ofrecen a “sus empresas” un menú de posibilidades entre las que se incluyen las siguientes: la concesión de
subsidios directos a las empresas nacionales; gigantescas operaciones de rescate de firmas y bancos costeadas, en
muchos casos, con impuestos aplicados a trabajadores y consumidores; imposición de políticas de austeridad fiscal y
ajuste estructural encaminadas a garantizar mayores tasas de ganancias de las empresas; devaluar o apreciar la
moneda local, a fin de favorecer a algunas fracciones del capital en detrimento de otros sectores y grupos sociales;
políticas de desregulación de los mercados; “reformas laborales” orientadas a acentuar la sumisión de los
trabajadores, debilitando su capacidad de negociación salarial y sus sindicatos; garantizar la inmovilidad
internacional de los trabajadores al tiempo que se facilita la ilimitada movilidad del capital; “ley y orden”
garantizados en sociedades que experimentan regresivos procesos sociales de reconcentración de riqueza e ingresos
y masivos procesos de pauperización; la creación de un marco legal adecuado para ratificar con toda la fuerza de la
ley la favorable correlación de fuerzas que han gozado las empresas en la fase actual; establecimiento de una
legislación que “legaliza”, en los países de la periferia, la succión imperialista de plusvalía y que permite que las
superganancias de las firmas transnacionales puedan ser libremente remitidas a sus casas matrices. Estas son algunas
de las tareas que realizan los estados nacionales y que la llamada “lógica global del imperio” tan exaltada en los
104
Por todo o exposto, torna-se evidente não apenas o papel central do Estado como agente
de gerenciamento dos negócios e do poder do capitalismo tardio, como também deixa clara a
existência dos centros imperialistas em sua relação dialética com seus sócios menores em tempos
de globalização. Para por fim à crítica ao suposto aspecto de desterritorialização e
descentralização geral do capitalismo globalizado, trago à tona a Guerra do Iraque, em 2003,
como um acontecimento a posteriori da publicação de Império (2000), entre outros tantos, em
que a realidade faz questão de derrubar as hipóteses erguidas por Hardt e Negri, e mobilizadas
por Moreiras como fundamento para seu projeto crítico. Segundo Borón (2004, p. 13),
análisis de H&N no puede garantizar si no es a través de esta todavía imprescindible mediación del estado-nación
(Meiksins Wood, 2000: p. 116-117).
28
Tradução minha: “Si hay algo que demostró la agresión descargada sobre Irak fue el carácter meramente ilusorio
de estas concepciones tan caras a los autores de Imperio, a las cuales Bush desmintió con los rudos modales del
cowboy tejano. Una de las primeras lecturas que podemos hacer de los acontecimientos de Irak es que –
seguramente haciendo oídos sordos de la conceptualización de Hardt y Negri – la superpotencia solitaria se ha
asumido plenamente como imperialista, y no sólo no intenta ocultar esta condición, como ocurría en el pasado, sino
que hasta hace gala de ella. Intervino militarmente en Irak, como seguramente lo hará en otras partes, obedeciendo a
la más grosera y mezquina defensa de los intereses del conglomerado de gigantescos oligopolios que configuran la
clase dominante norteamericana, intereses que gracias a la alquimia de la hegemonía burguesa se convierten,
milagrosamente, en los intereses nacionales de los Estados Unidos. Los hombres de la industria petrolera que hoy
transitan por los salones de la Casa Blanca se abalanzaron, bajo absurdos pretextos, sobre un país para apoderarse de
las enormes riquezas que guarda en su subsuelo. Dicho de manera lisa y llana, la ocupación militar de Irak es pura
conquista territorial a cargo del actor central de la estructura imperialista de nuestros días. No hay allí nada
‘desterritorializado’ o inmaterial. Es la vieja práctica reiterada por enésima vez”.
105
do Capital’, de Willy Thayer, Moreiras (2001, p. 120) defende que, na transição para sociedade
global de controle, a divisão social do trabalho chega ao seu fim devido à incorporação cada vez
maior do trabalho intelectual no trabalho físico, isto é, da imbricação radical entre trabalho
material e imaterial, dissolvendo qualquer distinção entre as categorias na produção de valor,
como marca do capitalismo financeiro. Dessa feita, insurgiria um novo modo de produção
planetário que sustentaria o Império, a economia informacional, nos termos de Hardt e Negri.
Baseado nisso, Moreiras (ibid., p. 120-121) afirma, como consequência, que
Preliminarmente, devo indicar que concebo a forma do trabalho como parte do trabalho
social, que no capitalismo tardio, acompanhando Antunes (1999, p. 119, ênfase do autor), “é
mais complexificada, socialmente combinado e ainda mais intensificado nos seus ritmos e
processos”, devido às novas exigências nas relações entre o trabalho e a teoria do valor na
reestruturação produtiva. Por isso, por exemplo, para obter maior fluxo da mais-valia, o
capitalismo tardio recorre cada vez mais à diversificação das formas de trabalho parcial e
terceirizado ao mesmo tempo em que necessita cada vez menos do trabalho estável.
A articulação entre trabalho vivo e trabalho morto é condição para que o sistema
produtivo do capital se mantenha. A tese da eliminação do trabalho abstrato,
considerado dispêndio de energia física e intelectual para a produção de mercadorias,
não encontra respaldo teórico e empírico para a sua sustentação nos países capitalistas
avançados, como os EUA, o Japão, a Alemanha, e muito menos nos países do chamado
Terceiro Mundo. E tem como principal problema analítico o fato de desconsiderar as
interações existentes entre – para usar a bela síntese de Francisco de Oliveira – a
potência constituinte de que se reveste o trabalho vivo e a potência constituída presente
no trabalho morto. (ANTUNES, 1999, p. 120, ênfase do autor)
108
Entre diversos exemplos, Antunes (1999, 122-123) expõe o fracasso do projeto Saturno,
desenvolvido pela General Motors, no que concerne a minimização do trabalho em favor da
ciência. As máquinas não puderam substituir os trabalhadores, ao contrário, o projeto criou a
necessidade de operários cada vez mais especializados, que ao transferir os atributos do trabalho
109
intelectual para as máquinas tornou o processo produtivo mais complexo. Essa interação, no
entanto, não levou ao aniquilamento do trabalho vivo, nem à sua “potência constituinte sob o
sistema de metabolismo social do capital”. De modo totalmente diverso, fez com que o processo
experimentasse uma imperiosa necessidade, em sua reestruturação produtiva, de “encontrar uma
força de trabalho ainda mais complexa, multifuncional, que deve ser explorada de maneira mais
intensa e sofisticada, ao menos nos ramos produtivos dotados de maior incremento tecnológico”
(ANTUNES, 1999, p. 122-123, ênfase do autor). Nessa acepção, a mutação fundamental na
morfologia do trabalho, acionada pela reestruturação produtiva,
Dessa maneira,
essas tendências, presentes nos núcleos de ponta dos processos produtivos, não podem,
sob o risco de uma generalização abstrata, ser tomadas como expressando a totalidade
do processo produtivo, onde a precarização e a desqualificação do trabalho são
frequentes e estão em franca expansão, quando se toma a totalidade do processo
produtivo em escala mundial. Mas generalizar falsamente a vigência das formas dadas
pelo trabalho imaterial, entretanto, me parece tão equivocado quando desconsiderá-las.
(ANTUNES, 1999, p. 125, ênfase do autor)
Por este ângulo, analisando a divisão social do trabalho dentro do capitalismo tardio,
levando em conta o trabalho manual e intelectual em suas novas formulações, é possível
localizar, de um lado, uma expansão do primeiro na forma precarizada e terceirizada em diversos
setores, sobretudo nos países do Terceiro Mundo, de outro lado, conforme Antunes (1999, p.
126), uma tendência oposta, isto é, a inserção do segundo no campo de ação do trabalho
produtivo, sobretudo, dessa vez, nos países centrais do imperialismo. Entretanto, de maneira
alguma, os dois movimentos se restringem aos campos de desenvolvimentos capitalistas citados.
Assim, “o caráter desigualmente combinado do sistema global do capital diferencia a incidência
dessas tendências, que, entretanto, se encontram presentes, ambas, em praticamente todos os
países com núcleos de produção industrial moderna” (ibid., p.126).
Nessa perspectiva, cabe, por fim, assegurar que, devido ao exposto, o trabalho material na
contemporaneidade continua predominante, no que se refere à produção de valor, no capitalismo
tardio globalizado, e, portanto, a tese do “Império” de Hardt e Negri, baseada na economia
informacional como mudança de modo de produção global, ou a tese do “momento da real
subsunção do trabalho no capital”, formulada por Thayer, baseada no fim da divisão social do
trabalho por causa da suposta transformação do trabalho intelectual numa exterioridade da ação,
ambos defendendo, de maneiras distintas, a ciência como a principal força produtiva, isto é, a
substituição da produção de valores de troca pelo campo comunicacional, ou do trabalho pela
ciência, não condiz, a meu ver, com as tendências indicadas pela reestruturação produtiva
ocorrendo no mundo em tempos de capitalismo global.
A partir dos pressupostos acima questionados, Moreiras conclui que a crítica latino-
americanista, ou o terceiro latino-americanismo, na cisão formulada por ele, a partir dos Estudos
Subalternos, deve se imbuir numa espécie de topologia movente, quer dizer, deve efetuar uma
crítica metodologicamente deslocada, procurando a negatividade radical dos outros dois latino-
americanos, isto é, dos “pontos fixos e identidades” de ordem epistêmica disciplinar, fundamento
último do primeiro latino-americanismo, e da “neodiferença” com base na repetição e no
simulacro de ordem epistêmica do controle, fundamento último do segundo latino-americanismo,
porque ambos morrem como aparatos críticos ao serem integrados ao Império.
em todas as suas diferenças e identidades” (MOREIRAS, 2001, p. 47); o segundo, por sua vez,
morre porque, enquanto aparato anti-representativo, promove a destruição completa “de suas
estratégias de representação em relação ao objeto epistêmico latino-americano” (ibid., p. 48),
pois depende em última instância do aparato da representação, constituindo-se como um
substrato negativo do primeiro latino-americanismo. Dessa maneira, Moreiras propõe
Desse modo, esse outro latino-americanismo constrói uma razão crítica volúvel, mutável e
performativa linguisticamente, sem um compromisso com a ideia de conhecimento enquanto
captura e apropriação, negando assim qualquer possibilidade de representação e construção
identitária, procurando negar tanto o aparato epistêmico com base no lugar como no não-lugar,
propondo uma espécie de razão crítica enquanto movimento descontínuo resistente a qualquer
localização, que Moreiras denomina de atopia suja, conforme assegura:
o pensamento localizado deve ceder lugar a uma espécie de atopia suja, um suplemento
da localização, sem o qual a localização chega a seu próprio fim e se torna uma ruína
do pensamento. A atopia suja é aqui o nome para um programa não-programável de
pensamento que se recusa a buscar satisfação na expropriação, ao mesmo tempo que se
recusa a ceder a pulsões apropriadoras. É suja porque sua desincorporação não gera
pensamento; é atópica porque nenhum pensamento se esgota em suas condições de
enunciação. Isso não nos livra da crítica; pelo contrário, torna possível a crítica.
(MOREIRAS, 2001, p. 36, ênfase minha)
Enfim, Moreiras formula uma razão performativa, na perspectiva da atopia suja, em vista
do fim do latino-americanismo enquanto aparato crítico de representação e a abertura de
possibilidade crítica ao Império devido a sua permanente dissolução. Nesse sentido, assentado
nos pressupostos acima criticados, a razão proposta por Moreiras, de maneira performativa, pode
construir um discurso estabelecendo uma ligação direta entre um suicídio, que é concebido
pressupondo seus motivos ulteriores, e uma narrativa póstuma, incluindo os diários, para, ao
cabo, demonstrar, dedutivamente, a impossibilidade previamente estabelecida de uma técnica
112
literária em geral. Não existe uma preocupação com uma análise pautada na relação dialética do
artefato literário enquanto máquina de representação social, inserida em um contexto, e
estabelecido enquanto produto mercadológico. A razão performativa, portanto, trabalha pelo
puro ímpeto do “jogo crítico” que tem como teleologia a destruição do arsenal crítico moderno
do latino-americanismo, isto é, possui como finalidade estabelecer o próprio fim do latino-
americanismo.
Outro questionamento óbvio, mas que parece interessante nesse dissenso crítico levantar,
partindo de um articulação crítica do próprio Moreiras, é o seguinte: o aparato teórico da atopia
suja, aqui em questão, formulado pelo professor universitário Alberto Moreiras, expresso no
livro A exaustão da diferença, disponível no mercado mundial, debatido em círculos acadêmicos,
por acaso não se inscreve como “um conhecimento transmitido como descoberta em uma
totalidade de conhecimento universal do mundo”? E, portanto, não se configuraria, em suas
palavras, numa “instância da agência global”? E, ainda, o terceiro latino-americanismo não
acabaria sendo também um substrato negativo dos dois outros latino-americanismo, por sempre
se constituir, enquanto movimento anti-representação, como uma sombra, na medida em que faz
destes seus alvos teleológicos? E, para tanto, acaba lançando mão das ferramentas teóricas
destes? Enfim, para dizê-lo de outro modo, a razão performativa da atopia suja não destruiria a
si mesma ao destruir o latino-americanismo, mostrando-se, assim, como uma razão irracional, na
medida em que promove uma crítica tão absoluta que arrasta para a destruição a própria razão
que realiza a crítica?
Por fim, cabe afirmar que a razão performativa de Moreiras é construída enquanto
espetáculo persuasivo que tem como chave sempre a formulação de um paradoxo enquanto pedra
113
De modo diverso, penso ser necessário realizar dois movimentos críticos simultâneos, de
um lado, enxergar o artefato literário como uma mônada que internaliza em sua própria
constituição uma tensão de seu contexto, fugindo tanto de uma leitura imanentista quanto da
teoria do reflexo do texto ficcional, de outro, pensar o objeto literário como uma mercadoria, isto
é, como um objeto que pressupõe condições de produção, tanto imateriais como materiais. Desse
modo, deve-se analisar as tendências do literário no boom relacionando-as a suas condições
produtivas, conforme afirma Walter Benjamin (2012, p. 179), em A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, “a dialética dessas tendências não é menos visível na superestrutura
que na economia”. Mais que isso, tem que se investigar os impactos sofridos nas técnicas
literárias através de sua posição dentro das relações de produção. Ou, novamente, nas palavras
de Benjamin (2012, p. 131, ênfase do autor), em O autor como produtor,
literárias de uma época. Em outras palavras, ela visa de modo imediato à técnica
literária das obras.
tornou-se impensável fantasiar que a literatura fosse outra coisa que trabalho. Tratava-se
aqui, em outras palavras, de despedir-se das musas da boemia romântica. O sucesso do
escritor latino-americano implicou, então, uma perda: o preço a pagar pela autonomia
social foi o desaparecimento da aura.
Nessa linha interpretativa, Avelar (2003, p. 43), citando Benjamin, sustenta que de modo
similar à resposta da arte do século XX, com a doutrina da arte pela arte enquanto uma teologia
da arte, à ameaça sofrida pela chegada das recentes técnicas reprodutivas como a fotografia, o
boom, percebendo o declínio da aura religiosa no artefato literário, responde com uma
estetização da política, isto é, com uma substituição da política pela estética. Nesse cenário,
Avelar argumenta que antes, na América Latina,
a literatura não havia sido nunca secular nem autônoma no mesmo sentido em que a
literatura europeia havia evoluído a uma esfera separada, dotada de instituições
independentes, padrões de bom gosto e uma racionalidade comum. A escrita,
especialmente a definida como literária, havia sido sempre na América Latina uma sorte
de religião suplementar, e os letrados, ‘donos da escrita em uma sociedade
analfabeta...coerentemente procederam a sacralizá-la’. A dissolução da aura, levada a
cabo pelo desenvolvimento das forças de mercado e a profissionalização, daria origem a
um paradoxo desconcertante: o mesmo momento em que a literatura se faz
independente como instituição, o mesmo momento em que se realiza por completo em
sua autonomia, em que radicalmente se torna idêntica a si mesma, coincide com o
colapso irreversível de sua razão de ser no continente. (AVELAR, 2003, p. 43, ênfase
do autor)
Isto porque, com um Estado cada vez mais tecnocrático que dispensava a literatura, que
em outro momento era seu apêndice, as elites latino-americanas não conseguiam mais
instrumentalizar o campo literário para o domínio social devido à própria modernização,
perdendo, assim, conforme Avelar, a “produtividade disciplinadora da literatura”. Nessa lógica,
“o boom não é outra coisa que luto por essa impossibilidade, isto é, luto pelo aurático” (2003, p.
44, ênfase do autor). Esse luto pelo aurático se dá de maneira triunfante, num tom celebratório,
116
Além de recorrer aos escritos críticos dos autores mencionados acima, Avelar também
examina o papel central da estrutura da compensação nos romances Cem anos de solidão, de
Gabriel García Márquez, Os passos perdidos, de Alejo Carpentier, e A casa verde, de Mario
Vargas Llosa. Para Avelar (2003, p. 44-45), a vontade compensatória se inscreve nos romances
por meio dos narradores que se constituem como fundadores demiurgos de cidade através da
escrita, sem a interferência das determinações sociais. Melquíades, de Cem anos de solidão, e o
narrador-personagem, de Os passos perdidos, conformam uma alegoria oportuna do próprio
boom, pois, como escritores que fundam uma pólis, apresentam um paralelo ficcional à
autoproclamação e auto-representação presentes nos escritos críticos do boom. Assim, ao
rechaçar a tradição, os narradores tentam “retornar ao momento prístino em que a escrita
inaugura a história, em que nomear as coisas equivale a fazê-las ser – uma vindicação da escrita
literária dentro de uma modernização galopante que cada vez mais prescindia dela” (ibid., p. 45).
Assim, o narrador-demiurgo efetua a política da substituição quando nega o passado com a
criação da pólis através da escrita.
A economia do luto é ativada quando o boom não consegue restaurar a aura, aniquilada
pela primeira vanguarda moderna, em contraposição a um mundo modernizado. Nesse contexto,
conforme Avelar (2003, p. 46), incide uma integração cada vez maior ao mercado mundial,
devido ao avanço da modernização capitalista e à autonomização do campo literário. No entanto,
paradoxalmente, a demanda pelo aurático resiste, uma vez que o próprio projeto do boom
encarna o caráter religioso com a escrita. Assim, “a aura já não era possível, mas estruturalmente
não podia desaparecer. A literatura seria postulada como a depositária desta aura fantasmática”
(ibid., p. 46, ênfase do autor). Por isso, os escritores não reagiam bem quando o êxito editorial
era mencionado, tendo em vista que o mercado representa a dissolução da aura.
Nessa perspectiva, Avelar (2003, p. 46) chega à conclusão que o boom se define através
de uma disjunção: a impossibilidade de reconciliação entre uma identidade latino-americana e a
necessidade de modernização, isto é, entre duas racionalidades e tempos distintos, a saber, entre
o tempo mítico-circular e o tempo progressivo-linear. Ou, em outras palavras,
Portanto, de maneira concisa, Avelar (2003, p. 47) argumenta que é factível entre o boom
a junção do discurso de diferença latino-americana enquanto processo identitário e a inserção
triunfante no mercado mundial. Com o advento do luto pela aura num mundo pós-aurático, o
boom criou uma mitologia via literatura pautada na coexistência ou reconciliação entre “as
fábulas de identidade e as teleologias da modernização”, concebendo o campo literário como
espaço propício para a construção da identidade latino-americana. Entretanto, “nenhum modelo
econômico disponível podia harmonizá-las, mas ‘nossa’ literatura era irredutivelmente ‘latino-
americana’, e ao mesmo tempo ‘moderna’, ‘avançada’, em nível de Primeiro mundo” (ibid., p.
47). Assim, a literatura do boom oferecia uma narrativa sobre o pré-moderno concebido
modernamente, como uma “ficção retrospectiva”.
Diante disso, desviando desse cenário, proponho uma nova hipótese, que este estudo
somente pode proporcionar o horizonte de sua formulação e o começo de sua investigação:
pensar o realismo maravilhoso, enquanto escrita da não-disjunção, como uma maquina
transculturadora que se constitui numa tensão interna crucial: de um lado, a tendência de
estetização da política, isto é, de substituição da política pela estética como vocação
compensatória do boom, proposta por Avelar, e, de outro, a tendência de politização da estética,
isto é, de uma estética do jogo e da participação proporcionada por outra articulação do valor
de exposição do pós-aurático com a demanda aurática, evocando uma imagética da tradição
dos vencidos como vocação lúdica do boom. A derrota histórica, que tem como alegoria e
emblema a queda de Salvador Allende, colocou em evidência a primeira tendência como marca
119
A devoração antropofágica, desse modo, constitui-se como uma estratégia de guerra que
postula outro universal, portanto, outra modernização. Nega veemente um universal com trono e
com uma edificação pré-moldada onde se capturam as particularidades. Demanda, ao revés, um
universal como um habitat aberto enquanto plano não-diferencial onde coabitam identidades
diferenciais em suas correlações. Isto é, para dizer junto com Raúl Antelo, contrapondo o
particularismo culturalista de Ernesto Laclau,
Para finalizar, Manuel Scorza parece ser um dos autores cuja obra indica essa tensão
constitutiva do realismo maravilhoso, ao revelar a segunda tendência de politização da estética,
como poderemos verificar no desenvolver deste estudo, que pretende apenas iniciar a
investigação dessa hipótese. Nessa acepção, a derrota levada a cabo pelos regimes militares, “um
período histórico no qual as ditaduras esvaziariam a modernização de todo conteúdo
progressista, libertador” (AVELAR, 2003, p. 48, ênfase do autor), trouxe as condições de
impossibilidades e fez também com que acendesse, dentro da derrota, a vitória da primeira
tendência da tensão interna do realismo maravilhoso sobre a segunda, suspendendo-a, abrindo,
assim, a possibilidade, em retrospectiva, da homogeneização crítica. Cabe, portanto, investigar
essa tensão e, sobretudo, reativar criticamente a tendência em suspensão. Afinal, a partir dessa
hipótese de trabalho, ao contrário da tese de uma escrita de disjunção radical de Los Zorros,
pondo fim ao realismo maravilhoso, defendida por Alberto Moreiras, a obra de Arguedas pode
ser cotejada de outra maneira, mais rica e intensa, como uma escrita de não-disjunção
incompleta, aberta, fissura pelo momento exato de tensão entre as duas tendências em disputa no
realismo maravilhoso.
121
CAPÍTULO 2
A singular e paradoxal inserção estética de Bom dia para os defuntos: entre o
romance social indigenista e “a máquina de sonhar” realista maravilhosa
Na América Latina, as tradições literárias citadinas que possuem como atributo principal
a tematização do ameríndio geralmente são compreendidas a partir da cisão básica entre
indianismo e indigenismo. Seguindo essa formulação crítica geral, as narrativas indigenistas,
surgidas no começo do século XX em diversos países latino-americanos, como Bolívia, Equador
e Peru, são expressões da modernização ficcional em rompimento com as narrativas nativistas do
século XIX, que tematizavam os índios numa perspectiva exótica, romântica e idealista. Essas
narrativas nativistas do período romântico se inserem no que ficou conhecido pela crítica como
indianismo. O indigenismo surge, por outro lado, com um forte apelo social, assentado na
denúncia da situação indígena na América Latina, representando o mundo ameríndio de maneira
mais verossímil que a tradição anterior. Dessa maneira, em síntese, grande parcela da crítica
latino-americana distinguiu o indianismo do indigenismo. Há, contudo, como veremos,
importantes críticos literários que propõem outras formulações.
política de um povo e de uma tradição, que, por sua vez, representava a maioria da população
peruana, expressando-se, nos tempos de Mariátegui, em torno de “3 ou 4 milhões de homens da
raça autóctone no panorama mental de um povo de 5 milhões”. Nesse sentido, sustenta
Mariátegui, “os ‘indigenistas’ autênticos (...) colaboram, conscientemente ou não, em uma obra
política e econômica de reivindicação – não de restauração nem ressurreição.” (2010, p. 315).
Quanto a sua natureza, o indigenismo literário não pode ser confundido com uma
literatura indígena. Assentada, de um lado, na relação dialética entre o pré-moderno e o moderno
que perpassa toda a formação socioeconômica e cultural do Peru e, de outro, no conflito entre o
neocolonianismo e as novas forças sociais surgidas no início do século XX, a literatura
indigenista, devido ao fato de ser produzida pela cidade letrada tendo como referência o universo
cultural andino, constituiu-se como uma literatura transculturadora; diferente, portanto, de uma
literatura produzida pelos próprios autóctones. Isto não deve, contudo, ser motivo de
depreciação:
O termo “mestiço” não tem aqui uma acepção puramente biológica ou racial, nem cabe
tampouco interpretá-lo em exclusiva relação com a figura do autor; alude, antes, a toda
124
O romance peruano Aves sin nido (1889), de Clorinda Matto de Turner, é considerado,
por grande parte da crítica peruana, a obra inaugural do indigenismo. Por esse motivo, faz-se
necessário uma breve análise dessa novela. Aves sin nido relata, em síntese, a vida da família
criolla Marín em estadia na serra andina fictícia chamada Kíllac, a qual o casal escolheu para
investir em uma mina. Os Marín, representantes da burguesia liberal urbana, ficam indignados
quando tomam conhecimento da exploração sofrida pelos índios quéchuas por parte das
autoridades locais: religiosa, jurídica e política. Então, decidem proteger os índios, mas ao cabo
são vencidos pelos poderosos de Kíllac. Antes de regressar à cidade, no entanto, a família Marín
resolveu adotar os dois filhos da família indígena Yupanqui, Margarita e Rosalía, depois da
morte de seus pais por terem defendido a casa de seus protetores criollos. A adoção se efetua,
desse modo, como forma de compensação, ou, como argumenta Cornejo Polar (1994, p. 131),
“os portadores da civilização não conseguem modificar a implacável ordem social andina, mas
ao menos salvam dela Margarita e Rosalía 30”. Assim, Aves sin nido incorpora a reivindicação do
indígena com uma visão precária da realidade andina a partir do protagonismo de personagens da
cultura citadina.
Cornejo Polar, em Escribir en el aire, propõe uma leitura alegórica de Aves sin nido
como suporte ideológico para uma ideia de nacionalidade plasmada no Peru no século XIX. Para
o crítico peruano, o romance, por privilegiar os espaços familiares como o dos Marín e o dos
Yupanqui, produz “uma complexa alegoria da nação e de seus problemas através da imagem da
família e das relações interpessoais que a fundam e a rodeiam31” (1994, p. 131). O espaço da
família também se enuncia como lugar privilegiado para a representação dos conflitos étnicos do
mundo andino. Dessa maneira, Aves sin nido, ao enunciar a derrota indígena em Kíllac e a
compensação com o processo de adoção, sugere uma reflexão social fatalista em relação à
população indígena. Em última instância, o romance somente vislumbra “soluções” individuais
30
Tradução minha: “Los portadores de la civilización no logran modificar el implacable orden social andino, pero al
menos salvan de él a Margarita y Rosalía”.
31
Tradução minha: “una muy compleja alegoría de la nación y sus problemas a través de la imagen de la familia y
de las relaciones interpersonales que la fundan y la rodean”.
126
para “o problema do índio”, por meio da aculturação, isto é, nos termos de Polar,
Desse modo, Aves sin nido, por meio do processo educativo dos filhos indígenas
adotados com o objetivo radical de transformação de Yupanqui em Marín, sugere um significado
perturbador subjacente, de acordo com Polar (1994, p. 132, ênfase do autor), de que no romance
“a salvação do índio depende de sua conversão em outro, em criollo, com a conseguinte
assimilação de valores e usos diferenciados; e depende também, como fica claro, da
generosidade de quem torna essa metamorfose étnico-social possível33”. A ideia do poder da
educação como meio transformador da sociedade, em voga na época de Aves sin nido, mesmo
como forma de ocidentalização do outro, possui sua raiz ideológica, conforme Polar, no
Discurso en el Politeama, do escritor anarquista e ideólogo peruano Manuel González Prada,
precursor do realismo peruano e do modernismo americano: “Ensiná-lo a ler e escrever [ao
índio] e verá se em um quarto de século se levanta ou não a dignidade do homem 34” (PRADA
APUD POLAR, 1994, p. 133).
O crítico peruano Tomás Escajadillo, em contrapartida, não considera Aves sin nido como
a primeira narrativa indigenista, apesar do forte sentimento de reivindicação social nela contida.
Para Escajadillo, Aves sin nido compõe a última fase do indianismo, porque ainda carrega muitos
elementos exaltados por essa tradição, como afirma no artigo El indigenismo narrativo peruano:
32
Tradução minha: “la novela relata la muerte o el sufrimiento continuado e inevitable de los indios, la adopción de
Margarita y Rosalía implica de manera tangencial, pero muy expresiva, que Aves sin nido efectivamente no logra
percibir ningún futuro para la raza indígena, pero que es algo menos escéptica si se trata de la suerte de algunos
individuos aislados. Ciertamente la adopción, con el consiguiente cambio de apellido (de Yupanqui a Marín), es una
figura especialmente vigorosa de la construcción de una nueva identidad y del carácter salvador de este proceso. Por
supuesto, el acto de la adopción es seguido por un proceso educativo que deberá concluir con la adopción de los
rasgos de la primera identidad.”
33
Tradução minha: “la salvación del indio depende de su conversión en outro, en criollo, con la consiguiente
asimilación de valores y usos diferenciados; y depende también, como es claro, de la generosidad de quienes hacen
posible esa metamorfosis étnico-social.”
34
Tradução minha: “Enseñadle a leer y escribir [al indio] y veréis si en un cuarto de siglo se levanta o no a la
dignidad del hombre.”
127
reivindicação social e, no entanto, seus sinais são tão desfocados (‘corpo de índio e
alma de branco’, para utilizar uma frase de Sánchez), sua paisagem tão artificial e, além
disso, a novela mostra tantos elementos românticos (situações narrativas, tópicos
temáticos e linguagem exaltada e sentimentalista), que nos leva a considerá-la não a
primeira novela indigenista, mas uma das últimas indianista; quer dizer, novela onde
confluem muitos (demasiados para meu gosto) elementos de uma tradição anterior do
tratamento do tema indígena, a tradição romântica (que precisamente tem sido muito
bem documentada por Concha Meléndez), com os elementos novos, os de denúncia dos
abusos que se cometem contra o índio. No entanto, os novos elementos oscilam entre a
mera informação, a documentação não dramatizada de um abuso típico (os empréstimos
compulsórios, por exemplo), e estes abusos são tingidos por situações ou linguagens
sentimentais35. (ESCAJADILLO, 1989, p.119-120, ênfase do autor)
Da tradição indianista, Escajadillo (1989, p.125) menciona como exemplo Los hijos del
sol (1921), de Abraham Valdelomar, e os contos de Ventura García Calderón em La venganza
del cóndor (1924), como parte do indianismo modernista. Essa tendência possuiria como
características básicas a substituição da modalidade de “geografia exótica” pela modalidade de
“histórico exótico” do americano, tratando-se, pois, em termos miméticos, de uma fuga da
realidade; e, em outros casos, em virtude da tematização indígena, caracteriza-se pela mera
descrição da paisagem e do suposto homem americano, configurando-se, portanto, como um
estrato “nativista” sem nenhuma reivindicação social. Por outro lado, Escajadillo menciona os
livros de Narciso Aréstegui e Avis sin nido, de Clorinda Matto de Turner, como parte do
indianismo romântico-realista-idealista, movimento precedente ao indigenismo, que teria como
35
Tradução minha: “La novela de la Matto de Terner es un libro en donde se percibe un fuerte ‘sentimiento de
reivindicación social’ y, sin embargo, sus indicios son tan borrosos (‘cuerpo de indio y alma de blanco’, para utilizar
una frase de Sánchez), su paisaje tan artificial y, además de ello, la novela muestra tantos elementos románticos
(situaciones narrativas, tópicos temáticos y lenguaje exaltado y sentiemntalista), que nosllevan al considerarla no la
primera novela ‘indigenista’ sino una de las últimas ‘indianistas’; es decir, novela donde confluyen muchos
(demasiados para mi gusto) elementos de una tradición anterior del tratamiento del ‘tema indígena’, la tradición
‘romántica’ (que precisamente ha sido muy bien documentada por Concha Meléndez), con los elementos ‘nuevos’
elementos oscilan entre la mera ‘información’, la ‘documentación’ no dramatizada de un atropello típico (los
préstamos forzosos, por ejemplo), y estos abusos teñidos por situaciones o lenguaje sentimentales.”
128
atributo principal uma excessiva distância narrativa frente ao mundo indígena e, por conseguinte,
uma idealização romântica do autóctone. A partir desses pressupostos, Avis sin nido se
inscreveria na tradição anterior, caracterizando-se, portanto, como uma obra precursora do
indigenismo e não inaugural.
A partir dessa divisão conceitual, interessa aqui saber quais as condições indispensáveis
para que uma obra venha a ser classificada como indigenista. Para Escajadillo (1989, p. 118),
além do sentimento de reivindicação social do indígena, a narrativa indigenista deve superar a
visão romântica do mundo quéchua e andino, e o narrador deve, na enunciação da obra, mostrar
suficiente proximidade com o mundo narrado, isto é, o mundo do autóctone e o universo andino.
Essas três exigências caracterizam as narrativas do chamado indigenismo ortodoxo, o qual a
maioria das obras, da época da articulação crítica de Escajadillo, insere-se. Vejamos brevemente
cada um dos pré-requisitos que funda o indigenismo ortodoxo.
36
Tradução minha: “ ‘indigenismo’ a secas: términos al que se pretende conferir una ‘flexibilidade’ o ‘elasticidade’
tal que le permita referirse a obras tan obviamente disímiles entre sí como El Padre Horán (1848) y Los ríos
profundos (1958); El alma de la quena (1917) y La agonia de Rasu Ñita (1962); Aves sin nido (1889) y Todas las
sangres (1964), La venganza del condor (1924) y La tumba del relâmpago (1979).”
37
Tradução minha: “el indigenismo nace como una necesidad político-cultural-social de tratar de solucionar lo que
en tiempo de Mariátegui se llamaba ‘el problema del indio’”.
129
ultrapassa o campo literário no Peru, por isso difere do “nativismo” ou “criollismo” uruguaio,
uma vez que a população uruguaia possui certa unidade, fazendo com que a experiência literária
uruguaia, semelhante ao que aconteceu na argentina, efetua-se como experiência cosmopolita, de
acordo Maríategui (2010, p. 313). Nessa acepção, o indigenismo é compreendido por Escajadillo
(1989, p. 119) como uma entidade múltipla, heterogênea e interdisciplinar. Portanto, a
reivindicação do autóctone no indigenismo literário é, em última instância, motivado pela
condição política e econômica da população quéchua dos Andes peruanos. Dito de outro modo,
O ‘indigenismo’ de nossa literatura atual não está desconectado dos demais elementos
novos dessa hora. Ao contrário, encontra-se articulado com esses. O problema indígena,
tão presente na política, na economia e na sociologia, não pode estar ausente da
literatura e da arte. (MARÍATEGUI, 2010, p. 312)
A superação da visão romântica do mundo indígena, por sua vez, deve estar assentada na
resolução de reivindicação social do indígena para poder uma obra se situar no indigenismo.
Assim, não é possível apenas o sentimento de reivindicação atrelado a uma mera emoção exótica
e idealista do indígena, porque tal tratamento literário se insere fortemente na tradição anterior, o
indianismo. Por isso, Escajadillo afirma que Aves sin nido não faz parte do indigenismo.
A partir dessa conceituação, Escajadillo propõe que a primeira obra peruana que sustenta
todas as qualidades acima apresentadas é Cuentos andinos (1920), de Enrique López Albúgar.
Uma vez que, em suas narrativas, visualiza-se o rompimento com a tradição de personagens
indígenas distantes do mundo andino, quase sempre estilizados ou idealizados, ou, para dizê-lo
de outro modo, verifica-se nas narrativas de Albúgar a construção de “índios de carne e osso”, de
acordo com a expressão de Ciro Alegría Apud Escajadillo (1989, p. 120). Além disso, os
protagonistas das narrativas são os próprios indígenas, diferente, por exemplo, dos personagens
130
centrais de Aves sin nido, o casal criollo Marín. Nessa perspectiva, rompendo com o passado
romântico-idealista e, portanto, narrando o sentimento de reivindicação social suficientemente
próximo ao mundo indígena, Cuentos andinos se configuraria como a obra inaugural do
indigenismo ortodoxo peruano. Escajadillo recorre, para reforçar sua hipótese, ao fato de
Maríategui não mencionar Aves sin nido como primeira obra indigenista em O processo da
literatura. Ao contrário, Mariátegui argumenta que
38
Tradução minha: “ acercarse al mundo andino, calar profundamente en la psicología de su habitante y, sobre todo,
ha sabido darnos en El mundo es ancho y ajeno (1941), con la mayor fuerza y grandeza posibles, la dimensión épica
de su tragedia colectiva”.
39
Tradução minha: “un acceso tan profundo al alma indígena, nunca antes se pudo fusionar o compenetrar tanto el
‘yo’ del narrador con el ‘ellos’ (los indios), nunca se recreó el universo andino tan radicalmente ‘desde dentro’”.
131
as diferenças saltitantes que existem entre ‘seus’ diversos mundos andinos nos diz
eloquentemente da mutação, da evolução desse indigenismo. Precisamente, penso que
uma das qualidades que explica ou caracteriza o processo, a evolução do ‘indigenismo’,
é sua penetração cada vez maior no ‘mundo total’ do habitante andino. Deste ponto de
vista, López Albújar, Ciro Alegría e José María Arguedas significam três níveis, cada
vez mais profundos, de compenetração com o índio, sua alma, seus sonhos, o drama de
sua exploração, a visão de seu destino futuro. Contudo, formam parte da mesma escola,
da mesma tradição40. (ESCAJADILLO, 1989, p. 124, ênfase do autor)
40
Tradução minha: “las diferencias tan saltantes que existen entre ‘sus’ diversos mundos andinos nos hablan
elocuentemente de la mutación, de la evolución de ese ‘indigenismo’. Precisamente, pienso que uno de los rasgos
que explica o caracteriza el proceso, la evolución del ‘indigenismo’, es su cada vez mayor penetración en el ‘mundo
total’ del habitante andino. Desde este punto de vista López Albújar, Ciro Alegría y José María Arguedas significan
tres niveles, cada vez más profundos, de compenetración con el indio, su alma, sus sueños, el drama de su
explotación, la visión de su destino futuro. Pero forman parte de la misma escuela, de la misma tradición”.
41
Tradução minha: “se percibe todavía la fractura, el deslinde, entre los campos rigurosamente diferentes de lo
132
Escajadillo traz esses exemplos para fazer algumas comparações com o realismo maravilhoso de
Arguedas em Los Ríos profundos:
López Albújar nos fala de ‘toda essa acumulação irracional com que parece vir o índio
ao mundo’; Rosendo Maqui pensa – nos informa o narrador onisciente de El mundo es
ancho y ajeno – que talvez seus antecessores sejam condores; pelo contrário, para o
Ernesto de Los Ríos profundos, as pedras de Cusco se movem e falam ao coração; o
Wamani (‘Deus da montanha que se apresenta em figura de condor’) passa dos ombros
de dansak’Rasu Ñiti aos de seus discípulos Atok’sayku quando finalmente vem a
chiririnka, a mosca azul que anuncia a morte. Os indigenistas ‘ortodoxos’, ao contrário,
adotam quase invariavelmente uma das duas atitudes. Aqueles que, como López
Albújar, sentem-se muito afastados do índio, e não entendem seu estrato mágico e,
portanto, o condenam42. (ESCAJADILLO, 1989, p. 129, ênfase do autor)
E aqueles que vacilam, geralmente por meio da voz ilimitada de um narrador onisciente,
frente a um acontecimento “mágico”, e preferem não opinar, distanciando-se, assim, desse
estrato discursivo, sempre associado declaradamente ao mundo andino e a crença indígena, como
no caso de Ciro Alegría. A partir da contemplação da “magia” indígena, essa atitude se deixa
entrever como uma espécie de “tolerância benevolente” do narrador onisciente, que procura
separar profundamente a “magia” do rigor da “realidade”, visando com isso à cumplicidade do
leitor. Desse modo, há dois tratamentos dados aos estratos míticos, enquanto camada fora da
realidade, pelo indigenismo ortodoxo: a condenação e a indiferença. Portanto,
‘real-mágico’ y lo ‘real-real’; no hay todavía una fusión plena de los dos estratos”.
42
Tradução minha: “López Albújar nos habla de ‘todo ese cúmulo de irracionales con que parece venir el indio al
mundo’; Rosendo Maqui piensa – nos informa el narrador omnisciente de El mundo es ancho y ajeno – que quizás
sus antecesores sean cóndores; por el contrario, para el Ernesto de Los Ríos profundos las piedras del Cuzco se
mueven y hablan al corazón; el Wamani (‘Dios montaña que se presenta en figura de cóndor’) pasa de los hombros
del dansak’Rasu Ñiti a los de su discípulo Atok’sayku cuando finalmente viene la chirikinka, la mosca azul que
anuncia la muerte. Los indigenistas ‘ortodoxos’, por el contrario, adoptan casi invariablemente una de dos actitudes.
Aquéllos que, como López Albújar, se sienten muy lejanos del indio, y no entienden su estrato mágico y por tanto lo
condenan”.
43
Tradução minha: “en las obras del ‘indigenismo ortodoxo’ siempre podremos distinguir y diferenciar el estrato de
133
Nessa perspectiva, ninguém conseguiu utilizar o realismo mágico, como na descrição dos
rios e montanhas, como José María Arguedas, de acordo com Escajadillo (1989, p. 130). Os
escritores como Eleodoro Vargas Vicuña e Zavaleta compreenderam com Los ríos profundos
como se aplicava no indigenismo a nova forma de entender o mundo a partir do realismo
mágico; embora, cronologicamente, Vicuña e Zavaleta produzissem narrativas neo-indigenistas
antes de Arguedas. Escajadillo reforça sua argumentação, a partir da terceira edição de Historia
de la novela hispanamericana, do professor Fernando Alegría, sugerindo que “Arguedas é o
representante máximo do novo realismo mágico hispano-americano44” (ALEGRÍA APUD
ESCAJADILLO, 1989, p. 130). Defende, entretanto, que existe outro modo peculiar de
realização do “realismo mágico” como o praticado por Manuel Scorza na importante pentalogia
La guerra silenciosa, ou seja, em Redoble por Rancas (1971) até La tumba del relâmpago
(1979), que se caracterizaria como
lo ‘mágico’ del estrato de ‘la realidad’; aunque intenten presentarse juntos, siempre veremos la ‘costura’ que une (o
separa) el estrato de lo ‘real maravilloso’ del estrato de lo ‘real-real’. El ‘realismo mágico’, que implica una
‘aceptación’ u ‘adopción’ del estrato de lo mágico-mítico-religioso (en cualquier tipo de combinaciones) como algo
que se da en el mundo con la misma naturalidad que los ‘fenómenos naturales’, sea a través del lente del narrador
omnisciente o mediante el punto de vista de un personaje, brinda inmensas y nuevas posibilidades de una
penetración más profunda y auténtica en el horizonte del habitante andino, para quien, precisamente, la ‘realidad’ es
distinta a la de un lector ‘occidental’: para él la ‘realidad’, además de ríos, montañas, árboles y toros, diríamos
‘normales’, está compuesta por wamanis, por jircas que fueron guerreros, aukis tutelares que intervienen en el
destino humano; ríos que hablan al corazón, que traen mensajes de lejanas tierras; toros que son dioses, como el
Misitu, sin dejar de ser toros; árboles que retienen, a través de los tiempos, un mensaje, que saben y ven y sienten y
sufren.”
44
Tradução minha: “Arguedas es el representante máximo del nuevo realismo mágico hsipanoamericano.”
45
Tradução minha: “un ‘realismo mágico’ más próximo a Macondo – pero no un Macondo de ‘copia y calco’ sino
uno de ‘creación heróica’, como diría Mariátegui - : los caballos hablan, los hombres son invisibles o nunca
duermen, los ríos y lagos suspenden su curso, la gente vive en el fondo de los lagos, arcángeles se presentan en la
Sierra Central Perú, etc. El mundo de Scorza, a diferencia del de Arguedas es más mestizo que propiamente indio y
en él la fantasía pura, (…), se entrelaza con la concepción mágico-religiosa que el indígena tiene de la realidad.”
134
Diferente de Juan Loveluck apud Escajadillo (1989, p. 131), que chegou a sustentar que o
indigenismo documental e denunciatório teve seu último apogeu em Ciro Alegría e que,
portanto, outra forma de indigenismo, apenas com cunho poético, havia surgido – o
“neoindigenismo” – como no caso de Arguedas, Escajadillo argumenta que a intensificação
poética do neo-indigenismo não esvaziou o tom denunciatório do indigenismo ortodoxo, nem é o
único sinal que explica sua insurgência; ao contrário, bastaria lembrar-se da “monumental
‘denúncia’ que implica a pentalogia La guerra silenciosa de Scorza, para não seguir falando de
Arguedas46”. Além disso, a premissa de Loveluck, de que no indigenismo ortodoxo não haveria a
inserção do poético, é equivocada. Ciro Alegría, por exemplo, como grande representante do
indigenismo ortodoxo, sempre inseriu o poético em suas narrativas, contudo, sem a mesma
intensidade presente nas obras posteriores da nova tradição indigenista. Enfim, trata-se da
intensificação do lirismo e não seu aparecimento.
46
Tradução minha: “en la monumental ‘dennuncia’ que implica la pentalogía La guerra silenciosa de Scorza, paro
no seguir hablando de Arguedas.”
47
Para Escajadillo (1989, p. 123-124), em termos de desenvolvimento dentro da cisão conceitual do indigenismo, há
pelo menos dois Arguedas: o dos primeiros livros, como Agua e Yawar Fiesta, e o autor de Los ríos profundos e La
agonia de rasu Ñiti, sem falar nos demais. Ainda sugere a possibilidade de um terceiro Arguedas, o autor de El
sexto, Todas las sangres y El zorro de arriba y el zorro de abajo. Justifica: “Arguedas trabaja dentro de una
tradición ‘indigenista’, dentro de una escuela o movimiento que se transforma, que evoluciona, que pasa por un
proceso de mutaciones o cambios (y precisamente Arguedas es el escritor que más contribuye a que dicha tradición
evolucione).”
135
uma atualização dos levantamentos da tese, nas décadas seguintes ao seu doutoramento,
Escajadillo sustenta que as novas narrativas do indigenismo não produziram uma transformação
radical de ampliação e complexidade da técnica narrativa, tornando, assim, válida sua proposta
conceitual do neo-indigenismo.
48
Tradução minha: “más que una ‘ampliación’ una ‘cancelación’ del indigenismo.”
136
Nessa acepção, Escajadillo afirma que as narrativas de Zavaleta e Yauri, escritas décadas
depois de Todas las sangres, representam uma espécie de “novelas bi-polares” para não dizer
“novelas totais”, porque os protagonistas, em maioria serranos e não indígenas, frequentam tanto
as serras andinas como a capital Lima. Essas narrativas, conforme Escajadillo (1989, p. 135),
enunciam exatamente o que indicou Arguedas: a reafirmação dos valores humanos excelsos da
população autóctone, portanto, também podem ser qualificadas de neo-indigenistas. Para
finalizar sua argumentação, Escajadillo faz referência a Ciro Alegría, que compreende o
indigenismo como um movimento que luta em favor dos índios e valoriza, ou revaloriza, a
capacidade intelectual do homem indígena, citando o seguinte trecho:
49
Tradução minha: “A diferencia de los escritores indigenistas tradicionales, Arguedas, no se sujeta a un conflicto
limitado en el tiempo y el espacio: sus obras presentan esa versión global característica de la novela americana
contemporánea.”
50
Tradução minha: “Me parece que en Todas las sangres hemos rebasado el tema estrictamente indigenista o
tradicionalmente llamado indigenista.”
51
Tradução minha: “Finalmente, la narrativa peruana intenta, sobre las experiencias anteriores, abarcar todo el
mundo humano del país en sus conflictos y tensiones interiores, tan complejos como su estructura social (…). En ese
sentido la narrativa actual, que se inicia como indigenista, ha dejado de ser tal en cuanto abarca la descripción e
interpretación del destino de la comunidad total del país, pero podría seguir siendo calificada de indigenista en tanto
que continúa reafirmando los valores humanos excelsos de la población nativa”.
52
Tradução minha: “el indigenismo me parece que tiene dos aspectos bien claros: uno es el de la lucha y el de la
reivindicación, y éste posiblemente pase, tarde o temprano, cuando llegue una nueva situación social; pero hay otros
137
meu)
A partir desse locus conflitivo, isto é, do duplo estatuto sociocultural, Cornejo Polar
propõe articular a concepção geral do indigenismo com um de seus conceitos críticos mais
importantes: a heterogeneidade ou as literaturas heterogêneas. Ao contrário da ideia de uma
literatura nacional, com um corpus supostamente autônomo e homogêneo, produzida por uma
tradição unitária e estável, a literatura indigenista se situa no cruzamento conflituoso entre duas
sociedades e duas culturas distintas. Por esse ângulo, Cornejo Polar direciona sua articulação
crítica para a formulação do conceito de heterogeneidade a partir da seguinte indicação deixada
por Mariátegui em O processo da literatura, um dos Sete ensaios de interpretação da realidade
peruana: “o dualismo quéchua-espanhol do Peru, ainda não resolvido, faz da literatura nacional
um caso de exceção que não é possível estudar com o método válido para as literaturas
organicamente nacionais, nascidas e crescidas sem a intervenção de uma conquista”
aspectos del indigenismo que es el que va a valorizar y ha estado descubriendo las calidades humanas del mundo
indígena que han existido siempre y han existido heroicamente a través de siglos de opresión, porque el indio ha
tratado de afirmar su cultura tradicional tercamente y la ha traído hasta nosotros en muchos aspectos”.
138
análise de Noé Jitrik sobre El reino de este mundo. Para Jitrik apud Polar (2000, p. 163), a
narrativa de Alejo Carpentier representa um relato no contexto do sistema de produção colonial,
mas é produzido num sistema historicamente posterior, isto é, existe uma “fratura de unidade
‘mundo representado’ e ‘modo de representação’”. Ambos os exemplos de estudos citados por
Polar, a partir de narrativas isoladas, possui o realismo maravilhoso como solução estética de
fundo.
Por fim, explorando outra perspectiva da heterogeneidade, Polar traz um trecho do estudo
de Ángel Rama sobre toda a produção de José María Arguedas, pautada nas formas literárias e
seu processo produtivo:
‘verdade’, mas, ao mesmo tempo, tem de submetê-lo a uma interpretação que o faça inteligível
para uma ótica estranha, começando pelo do próprio cronista” (POLAR, 2000, p. 164).
a menção destes outros níveis não faz mais que enfatizar a natureza conflituosa das
crônicas, pois é óbvio que não existe coincidência entre os interesses expressos pelos
cronistas e os que, no horizonte da realidade, pertencem ao referente. Seria errôneo,
entretanto, extrair destes fatos uma condenação global do gênero cronístico e de seus
autores. No fundo, as crônicas limitam-se a reproduzir, nos termos que especificamente
lhes correspondem, o que é um acontecimento histórico inevitável, a conquista, e a
marcar o início do que Mariátegui chamava as literaturas não organicamente nacionais.
(POLAR, 2000, p. 165)
neste, ao contrário, o referente pode impor certas condições e gerar uma modificação na estrutura
formal das crônicas” (POLAR, 2000, p. 166). Portanto, Cornejo Polar chega à conclusão de que
as crônicas não são categorias neutras, ao revés, estão intrinsecamente ligadas ao curso da
heterogeneidade na literatura da América Latina. Por isso,
modernas, o indigenismo se apresenta, conforme Polar (2000, p. 171), sobre o pano de fundo da
desagregada constituição, quanto aos estratos de condicionamentos sociais, da realidade peruana.
Dessa maneira,
A partir da clareza dessa base heterogênea, Ángel Rama defende que o indigenismo
surgiu por meio da ascensão dos setores baixos da classe média, e que estes viam na causa
indígena uma via de legitimação de suas próprias demandas na luta contra classe dominante,
conforme destaca Polar (2000, p. 172). Com o desenvolvimento econômico do capitalismo na
América Latina, inevitavelmente, devido à característica própria das camadas médias, esse grupo
de escritores adquiriu certa mobilidade social, fazendo com que, de acordo com Rama apud
Polar (ibid., p. 172), estendesse suas reivindicações “a todos os demais setores sociais
oprimidos”, fazendo-se intérpretes “de suas reclamações, que entende como suas próprias,
engrossando assim o caudal de suas magras forças com contribuições multitudinárias”. De fato,
existia uma solidariedade desse grupo com as reivindicações indígenas, mas, para Rama, isso
também não deixava de servir como uma máscara, dado que a injustiça secular para com os
indígenas não se compara com a injustiça relacionada aos setores médios; além disso, as
comunidades indígenas peruanas forjaram uma cultura original no passado, algo impossível de
ser reivindicado pelo grupo de escritores enquanto membros da classe média urbana. Por isso,
“essas multidões, por serem silenciosas, eram, se é possível, mais eloquentes, e de qualquer
maneira comodamente interpretáveis por aqueles que dispunham dos instrumentos adequados: a
palavra escrita, a expressão gráfica” (RAMA APUD POLAR, 2000, p. 172).
Apesar de concordar com Rama, Cornejo Polar (2000, p. 173) pondera que a razão de ser
da heterogeneidade do indigenismo é, precisamente, o fato de este ser produzido por escritores
oriundos de setores médios que incorporam os interesses do campesinato indígena em suas
narrativas. Nesse sentido, Polar recorda que a interiorização por parte de uma categoria da classe
143
média dos interesses de outra classe social indica que o movimento indigenista se correlaciona
com o ideário do socialismo, tendo em vista a confluência entre seus interesses, na tentativa de
romper com a difícil cisão constitutiva do Peru, para isso recorre novamente a Mariátegui com a
seguinte citação:
Para Polar, Mariátegui não pretendia anular a contradição inerente à base social do
indigenismo; ao revés, a explicação da condição heteróclita propõe uma direção ideológica que a
problemática contemporânea imputava. Arguedas, como discípulo intelectual de Mariátegui, por
exemplo, foi um dos escritores que demonstrou uma produtividade criativa a partir do
permanente conflito intrínseco ao indigenismo. Desse modo, o indigenismo realiza
inevitavelmente a heterogeneidade, e a partir dela encontra as melhores possibilidades
ideológicas e literárias, de acordo com Polar (2000, p. 173). Portanto, o indigenismo não apenas
incorpora as reivindicações do campesinato indígena, mas também assume, “em grau diverso,
tímida ou audazmente, certas formas literárias que pertencem organicamente ao referente”. Ou
seja,
Como exemplo dessa autenticidade, Cornejo Polar recorda do idioma inventado por
Arguedas, por meio de uma matriz sintética do quéchua que se realiza lexicalmente em espanhol,
tornando-se um procedimento literário muito mais autêntico, com base no referente, do que as
interpolações esporádicas com palavras quéchuas como acontece no indigenismo ortodoxo. Essa
144
autenticidade não deixa de ser, no entanto, conflituosa, visto que é capaz de revelar aspectos
relevantes do referente não se dissociando do conflito que lhe imanente: a emergente
constituição cindida de uma sociedade e cultura que só pode revelar-se num diálogo conflituoso
e trágico, depois de séculos de convivência no mesmo espaço. A constituição conflituosa desse
diálogo intersocial e intercultural, por sua vez, é a própria essência do indigenismo. E, afinal,
como uma espécie de máquina reprodutora do que há de mais significativo no mundo andino, o
indigenismo, de maneira radical, se compromete “com o curso histórico das nações que guardam
o vigor dos povos que a conquista não pôde liquidar. Se esta pluralidade nunca deixa de ser
conflituosa, é também, e com maior intensidade, esplendidamente enriquecedora”. (POLAR,
2000, p. 174-175).
Essa contradição, em termos editoriais, em certo sentido, foi compreendida por Manuel
Scorza, que na década de cinquenta já era um poeta reconhecido no Peru, fazendo com que se
transformasse num editor de sua geração com a criação dos Festivais do Livro e da editora
Populivros. Desse modo, de acordo com Polar, o trabalho editorial de Scorza deve ser entendido
como uma contribuição pessoal para uma tarefa coletiva de resposta às exigências e urgências de
sua época: “criar uma indústria editorial moderna (implanta o offset para edições literárias) e
convocar um numeroso público leitor; vale dizer, fundar as bases dessa nova literatura escritas
por profissionais” (2000, p. 107). Visando, dessa maneira, acabar com o arcaísmo da base de
produção editorial e literária do Peru. Por fim, a empreitada de Scorza como editor, como já
assinalei em outro momento, apesar das grandes dimensões editoriais em diversos países da
América Latina, acabou rapidamente, perdurando apenas alguns poucos anos.
Cabe agora analisar como se realizou a inserção de Manuel Scorza no indigenismo, ou,
para dizê-lo a partir da cisão de Escajadillo, no neo-indigenismo. Considerado um caso à parte,
Cornejo Polar afirma que Manuel Scorza ingressou na tradição indigenista pela via da nova
narrativa hispano-americana, fazendo-o, por meio da pentalogia La guerra silenciosa, pelo
circuito internacional. Outro fator determinante da inserção se encontra na matéria mimetizada: o
levante do campesinato quéchua dos Andes Centrais do Peru nas décadas de 1950 e 60. Para
Polar (2000, p. 109), a matéria histórica não pode ser desligada como estímulo real “do tipo de
escritura escolhida para relatar esses fatos”, já que Scorza decidiu virar romancista justamente
para revelar e denunciar a luta trágica dos indígenas numa guerra silenciosa nas comarcas mais
esquecidas do Peru. Portanto,
Nessa perspectiva, Redoble por Rancas, isto é, Bom dia para os defuntos, sendo a
primeira balada de La guerra silenciosa, assim como os outros romances do ciclo, inscreve-se
na tradição dos romances sociais do indigenismo que procuraram recriar revoltas camponesas,
denominados de “romances da rebelião camponesa”, como o fez Reyna em El amauta Atusparia
(1929), Ciro Alegría em El mundo es ancho y ajeno (1941) e José María Arguedas em Todas las
sangres (1964). De acordo com Polar (2000, p. 109), a tradição de “romances de rebelião
camponesa”, apesar de específica, incorpora-se no grande curso do indigenismo. Por outro lado,
146
Bom dia para os defuntos, e toda narrativa de La guerra silenciosa, insere-se também na nova
narrativa hispano-americana, marco da modernização e internacionalização da literatura latino-
americana. Portanto, o ciclo narrativo de Manuel Scorza se localiza em um duplo espaço
estético: o indigenismo peruano e a nova narrativa hispano-americana. Cornejo Polar afirma,
expondo uma contradição dos condicionamentos básicos dessa dupla inserção, que o
indigenismo, como tradição anterior, sobretudo no concerne a sua principal característica de
intensa motivação social, foi colocado em discussão e negado pelo boom. Recorda, por exemplo,
que “Todas las sangres foi recebido muito friamente pela crítica favorável à nova narrativa,
inclusive por aqueles que haviam aplaudido, alguns anos antes, Los ríos profundos” (2000, p.
109-110).
Com efeito, os condicionamentos dessa dupla inserção não deixem de ser contraditórios:
se, por um lado, dentro do indigenismo, a partir de uma grande motivação social, a narrativa de
Scorza rasura suas características principais ampliando e tornando mais complexo o espaço
narrativo indigenista, por meio da mimetização da luta de classes contemporânea no Peru,
aplicando inovações formais como o realismo maravilhoso, por outro lado, a nova narrativa
hispano-americana, que possibilitou os experimentalismos e a modernização técnica, exige um
compromisso social mais abstrato e palatável para ser consumido no mercado mundial, ou seja,
nega qualquer vínculo com a tradição indigenista. Talvez por isso, Cornejo Polar (2000, p. 109-
110) sustenta que seria inútil solucionar o entrelaçamento da dupla inserção pela denominação de
“neo-indigenismo” sem analisar o que significa concretamente esta última versão do indigenismo
nos romances de Scorza.
realidade.
Cornejo Polar (2000, p. 110) afirma que em La tumba del relâmpago, por meio de
personagens do mundo urbano, como o próprio Scorza, e de instituições modernas do Peru,
como partidos políticos e confederações dos trabalhadores, há uma intervenção das forças
modernas no mundo andino, diferente dos romances anteriores do ciclo narrativo, oferecendo
outro significado para a ampliação romanesca. No último romance, as instâncias modernas
mencionadas procuram interpretar e indicar soluções para os acontecimentos nos Andes
Centrais, em relação ao movimento campesino, propondo ações políticas-sociais para poder
obter a vitória dos oprimidos no futuro. Polar reconhece que já há algo do tipo em romances
como El mundo es ancho y ajeno e em Todas las sangres, contudo, estas investidas partiam de
personagens camponeses transculturados por alguma experiência citadina.
diferente das soluções “ensaiadas” por Alegría e Arguedas, Scorza nega narrativamente, em La
tumba del relâmpago, o mito como capacidade mobilizadora, baseado na ideia de que a
insurreição vitoriosa precisa do suporte de uma racionalidade moderna. Nesse sentido, dentro da
pentalogia, o último romance expõe o limite da função do mito como resistência ao processo de
exploração e degradação do capitalismo. No entanto, Cornejo Polar afirma que,
Cornejo Polar defende, portanto, que a contradição entre tradição e modernidade que
perpassa todo o ciclo romanesco de La guerra silenciosa é, em termos decisórios, mais
enfrentada em La tumba del relâmpago, já que neste último há claramente um posicionamento à
favor da racionalidade moderna, nos marcos de táticas e estratégias revolucionárias, contraponto-
se as limitações do pensamento mítico, em vista de recompor os recursos ideológicos ocidentais
a partir das experiências andinas, apesar da distância entre os dois universos, como única solução
possível no horizonte da problemática andina na representação literária scorziana. Desse modo,
para Polar (2000, p. 112), em termos ideológicos, a racionalidade mítica indígena em La guerra
silenciosa é tingida de ambiguidade, ora reivindicada ora recusada, num jogo cambiante, que não
deixa de ser plasmada na reformulação ideológica da ideia de revolução, caso contrário, as
rebeliões camponesas indígenas e o pensamento revolucionário se desarticulariam. No entanto,
essa ambiguidade não se localiza no nível enunciativo da narrativa, ao contrário, a racionalidade
mítica marca todo o ciclo narrativo, mais ainda, grande parte das narrativas só pode ser
compreendida a partir dela.
Nesse seguimento, de acordo com Polar, nos cinco romances o narrador procura se
apresentar como o anunciador dos mitos que circunda os acontecimentos diários dos personagens
149
indígenas, frente aos quais não demonstra ceticismo, ao revés, enuncia as ações acriticamente e,
por vezes, com entusiasmo, “atitude que somente muda no final, quando se comprova que com
esses instrumentos não se pode ganhar a guerra contra a Cerro de Pasco” (2000, p. 113). Antes
de finalizar sua argumentação, Cornejo Polar faz questão de esclarecer que essas construções
míticas desdobradas por Scorza, em La guerra silenciosa, não condiz com os mitos efetivamente
vividos pelo povo quéchua, salvo o caso particular do mito de Inkarri, quer dizer, os
acontecimentos míticos são construções livres elaboradas pelo narrador a partir da estrutura geral
desse tipo de racionalidade, com o intento de internalizar sua dinâmica mental para utilizá-la de
modo diverso na narrativa. De qualquer maneira, para Polar, os mitos construídos por Scorza
“não harmonizam com o caráter realista e mesmo testemunhal dos outros setores do relato. E
novamente salta à vista a dupla inserção de La guerra silenciosa, no que se refere a seus
ancestrais literários” (ibid., p. 113), isto é, de um lado, o realismo mágico, como expressão da
nova narrativa hispano-americana, e, de outro, o romance social, pertinente ao indigenismo.
Finalmente, Cornejo Polar (2000, p. 113) conclui que a dupla inserção dos romances de
Scorza não resolve a heterogeneidade característica do indigenismo, ao contrário, torna-a mais
conflituosa e complexa. Além do tensionamento do referente no caso do romance social do
indigenismo ortodoxo, o neo-indigenismo de Scorza adiciona uma nova tensão com a utilização
do realismo mágico, que representa a modernização literária e um novo afastamento do seu
referente. Apesar do processo de modernização atingir a realidade do mundo andino nos últimos
anos do boom, esta não se efetivou na magnitude da renovação da nova narrativa hispano-
americana. Como a desagregação sociocultural do mundo andino não desapareceu, ainda que
reformulada, a literatura que procura trabalhar esse caráter, portanto, tem sua razão de ser. E,
nesse sentido, La guerra silenciosa representa um esforço estético para problematizar e colocar
na ordem do dia a fratura reformulada que ainda constitui e define o mundo andino. Assim,
Cornejo Polar reforça a importância e a posição contraditória e enriquecedora das obras
romanescas de Scorza para a tradição indigenista, dizendo que
O ciclo de Scorza reproduz, dentro de uma tradição que começa com as velhas crônicas
da América, a constituição atual da heterogeneidade andina. Em outras palavras: se este
ciclo se insere na modernidade mais exata e se refere ao arcaísmo da sociedade
indígena, é porque essa modernidade e esse arcaísmo continuam coexistindo,
contraditoriamente, no interior de um mesmo espaço nacional. Não é pouco mérito de
La guerra silenciosa haver colocado o problema sobre o eixo da contemporaneidade.
(POLAR, 2000, p.114)
caso particular dentro da tradição indigenista, constitui-se como uma literatura heterogênea que
reproduz a contradição essencial entre a tradição e a modernidade a partir de certa reformulação
contemporânea da realidade peruana, sugiro que Bom dia para os defuntos aprofunda essa
heterogeneidade na representação literária a partir do que Lienhard (2003, p. 147) denominou de
diglossia cultural, isto é, a coexistência de duas normas linguísticas numa mesma formação
social que possuem prestígio desigual devido às consequências de uma conquista. Com efeito,
assim como Guamán Poma de Ayala compõe certa diglossia em suas crônicas por meio da
linguagem gráfica e da utilização de palavras da língua quéchua, e como José María Arguedas
que, em seus romances indigenistas, fez também inserções léxicas do quéchua além de inventar
uma língua como aludida anteriormente (somente para ilustrar dois exemplos de diferentes graus
e variantes da heterogeneidade na literatura peruana), Manuel Scorza igualmente compõe certa
diglossia cultural em Bom dia para os defuntos a partir da inserção da oralidade dos camponeses
quéchuas das comunidades andinas. No entanto, diferente de Guamán Poma e de Arguedas,
Scorza insere a cultura oral dos camponeses indígenas por meio do espanhol, não cabendo
interpolação diretamente em quéchua, devido à recriação mimética das lutas camponesas de
comunidades indígenas nas décadas de 1950 e 1960, isto é, devido ao que a tradição realista
denomina de ficcionalização da História de comunidades indígenas em processo cambiante de
transculturação, com a inevitável dinâmica de etnogênese desembocada pela Conquista e
permanentemente atualizada até a modernização capitalista.
envolvidas no processo de diglossia. Assim, “a diglossia não deve ser vista, portanto, como uma
simples oposição dicotômica entre duas línguas nem como um sistema estável. Através do
contato, o idioma europeu e o autóctone podem sofrer certas modificações 53” (LIENHARD,
2003, p. 147-148).
53
Tradução minha: “La diglosia no debe ser vista, por lo tanto, como una simple oposición dicotómica entre dos
lenguas ni como un sistema estable. A través del contacto, el idioma europeo y el autóctono pueden sufrir ciertas
modificaciones”.
152
54
Tradução minha: “si enfocamos el contacto lingüístico a partir de la situación de los bilingües cuyo idioma
primero o principal es el de origen prehispánico – campesinos, sectores urbanos periféricos –, el cuadro se modifica
sustancialmente. Su idioma materno no beneficia de ningún prestigio oficial, ni siquiera cuando predomina a escala
regional. Tampoco posee instituciones eficientes para reproducirse conservando sus formas tradicionales. Muy
variable, el dominio del idioma europeo resulta, en estos sectores, inferior al que demuestran los miembros del
sector hegemónico. Al esforzarse a hablar el idioma europeo, el hablante del idioma ‘indígena’ tiende a traducir,
palabra por palabra, un discurso pensado en su idioma materno. De este modo, en mayor o menor grado, el idioma
europeo se tiñe de particularidades léxicas, morfológicas e sintácticas del idioma indígena. Destinada, en un
principio, a la comunicación con los sectores hegemónicos, esta práctica traductora puede desembocar a la larga,
sobre todo si se restringe o se va perdiendo el uso del idioma ‘indígena’, en la aparición de lenguajes o sociolectos
mixtos más o menos estables. Así, unas investigaciones realizadas en el valle de Mantaro (sierra central de Perú)
revelaron la existencia de un sociolecto español fuertemente quechuizado que se va reproduciendo no a partir de una
práctica auténticamente bilingüe o diglósica, sino como medio de expresión de un sector que ya no dispone de otra
lengua para expresarse (AND, Cerrón Palomino, 1972).”
153
juntamente com Consuelo Hernández (1995, p.150), “Scorza (...) assumem o papel de incorporar
conteúdos e formas indígenas na construção de ficções transculturadoras”. Afinal, relembro aqui,
oportunamente, que Scorza não apenas participou ativamente das reivindicações e dos levantes
dos camponeses quéchuas da comunidade de Rancas e comunidades adjacentes, como também
agenciou depoimentos, entrevistas e fotos que serviram de base para a produção do romance.
Em Bom dia para os defuntos, Scorza constrói as linhas narrativas de modo que o leitor
possa distinguir, como argumenta Oswaldo Estrada (2002, p. 157), a identidade indígena ou não
indígena dos personagens por meio de suas diferenças sociais, diferenciando-se de outras
narrativas do indigenismo carregadas de elementos etnográficos como acontece em Arguedas,
isso porque os aspectos culturais estão circunscritos ao papel central das ações. Desse modo, a
distância que separa os personagens “indígenas daqueles que não o são se faz visível quase que
exclusivamente quando os personagens que vêm de um mundo oral se encontram, por meio de
uma língua híbrida, com aqueles que pertencem a um mundo letrado 55” (ibid., p. 158). Por isso, a
partir da parte testemunhal da produção do romance,
Em Bom dia para os defuntos, de imediato, por meio dos títulos dos capítulos, o leitor é
convidado a ‘ouvir’ as histórias por um narrador que, por vezes, transfigura-se numa voz coletiva
dos camponeses indígenas. O capítulo inicial não apenas anuncia a temática geral da narrativa,
conforme verificamos no primeiro capítulo desta dissertação, como também antecipa o conteúdo
oral do romance, deixando evidente isso no título: Onde o astuto leitor ouvirá falar de certa
moeda famosíssima57. Assim, como se o leitor fosse um ouvinte, o narrador conta, mimetizando
55
Tradução minha: “indígenas de aquellos que no los son se hace visible casi exclusivamente cuando los personajes
que provienen de un mundo oral se encuentran, a través de un lenguaje híbrido, con aquellos que pertenecen a un
mundo letrado”.
56
Tradução minha: “Scorza recalca la oralidad de los Andes Centrales, en contraposición a la expresión escrita de
los letrados nacionales e internacionales, que es precisamente lo que condujo a los binarismos débiles de novelas
indigenistas anteriores. Al llevar a cabo esta tarea innovadora, el autor construye un universo diglósico que conserva
la oralidad indígena así como el lenguaje propio de los letrados. Sólo dentro de ese mundo de dicotomías, podemos
escuchar con mayor volumen la voz silenciada del indio peruano, una voz que proviene de su mundo mestizado
(Escajadillo 108).”
57
A partir desse momento, até o final do item 2.1, as citações do romance, em solução tradutória de Hamílcar de
154
a cultura oral das comunidades andinas, o episódio opressivo da famosa moeda do doutor
Montenegro, de maneira anedótica e irônica. Para Estrada, a história inicial no povoado de
Yanahuanca traz uma voz narrativa capaz de fazer o leitor ‘ouvir’, a partir da hibridização do
romance scorziano, “uma série de sons que, pouco a pouco, se convertem ‘na música de fundo’
(Bakhtin 278) de um setor social distinto da classe dominante aqui do Peru, e, portanto, numa
espécie de contraponto musical que compreende várias perspectivas sociais 58” (2002, p. 158).
Garcia, estarão disponíveis em sua versão original em nota de rodapé devido à discussão crítica do caráter oral da
narrativa dentro da problemática da diglossia cultural no neo-indigenismo scorziano. Título original do primeiro
capítulo: donde el zahorí lector oirá hablar de certa celedérrima moneda (SCORZA, 1973).
58
Tradução minha: “una serie de sonidos que, poco a poco, se convierten en ‘la música de fondo’ (Bakhtin 278) de
un sector social distinto a la clase dominante, aquí del Perú, y por ende en una especie de contrapunto musical que
abarca varias perspectivas sociales”.
59
Título no original: Sobre la universal huida de los animales de la pampa de Junín (SCORZA, 1973).
60
Título no original: De la cantidad de munición requerida para cortarle el resuello a um humano (SCORZA,
1973).
61
Trecho no original: “un espesor de alas abyectas susurró sobre los techos del pueblo” (SCORZA, 1973, p. 19).
62
Trecho no original: “diciembre tronaba por las cordilleras” (SCORZA, 1973, p. 45).
155
Montenegro. Essas canções constroem, conforme Estrada (2002, p. 159), uma espécie de
dialogismo. Isto é, além dos ruídos de tambores, proposto pelo título original Redoble por
Rancas, e das canções patrióticas que ‘ouvimos’ com o passar da narrativa, “Scorza introduz
referências e fragmentos musicais que denotam as divisões sociais do povo peruano, o
determinismo indígena e a desigualdade que existe em um país supostamente democrático 63”.
Assim, a representação da oralidade camponesa na narração se enriquece com a inserção dessas
músicas. Nesse sentido, em diversos momentos,
o narrador permite que seus personagens indígenas passem de uma língua a outra, de
uma letra do opressor ao mundo oral do oprimido. Precisamente, o contato intencional
que surge entre esses dois registros linguísticos resulta na hibridização bakhtiniana do
discurso neoindigenista (360). Dito de outro modo: a voz dos camponeses andinos se
enfrenta com a voz de seus opressores num sentido dialógico, e desde aí surgem os
problemas. (ESTRADA, 2002, p. 161)
Oito guerras perdidas com o estrangeiro; mas, em compensação, quantas guerras ganhas
contra os próprios peruanos? Ganhamos a guerra não declarada contra o índio
Atuspária: mil mortos. Não figuram nos textos. Constam, em compensação, os sessenta
mortos do conflito de 1866 com a Espanha. O 3.º de Infantaria ganhou sozinho, em
1924, a guerra contra os índios de Huancané: quatro mil mortos. Esses esqueletos
fundaram a riqueza de Huancané: a ilha de taquile e a ilha do Sol afundaram meio metro
com o peso dos cadáveres. Nessa altiplanura onde o homem é consolado por tão poucas
horas de sol, Fortunato tinha crescido, amado, trabalhado, vivido. Corria que corria. Em
1924 o capitão Salazar encerrou e queimou vivos os trezentos habitantes de Chaulán. À
distância, fulguraram os telhados de Rancas. Em 1932, o Ano da Barbárie, cinco oficiais
foram massacrados em Trujillo: mil fuzilados pagaram a conta. Os combates do sexênio
de Manuel Prado também os ganhamos: 1956, combate de Yanacoto, três mortos; 1957,
combates de Chin-Chin e Toquepata, doze mortos; 1959, combates de Casagrande,
Calipuy e Chimbote, sete mortos. E nos poucos meses de 1960, combates de
Paramonga, Pillao e Tingo Maria, dezesseis mortos64. (BDPD, p. 209-210)
63
Tradução minha: “ Scorza ensarta alusiones y fragmentos musicales que denotan las divisiones sociales del
Pueblo peruano, el determinismo indígena y la desigualdad que existe en un país supuestamente democrático”.
64
Trecho no original: “Ocho guerras perdidas con el extranjero; pero, en cambio, cuántas guerras ganadas contra los
propios peruanos. La no declarada guerra contra el indio Atusparia la ganamos: mil muertos. No figuran en los
textos. Constan, en cambio, los sesenta muertos del conflicto de 1866 con España. El 3.º de Infantería ganó sólito,
156
Desse modo, Scorza conseguiu extrair do seu contexto original, amparado nas
documentações recolhidas durante sua militância política junto com os camponeses quéchuas,
resíduos do sistema oral das comunidades andinas para transladar mimeticamente ao texto
literário, seguramente com reduções e imprecisões de constituição semiótica e cultural da
oralidade quéchua transculturada devido à retirada de sua materialidade e ao caráter e natureza
heterogênea da produção do romance social indigenista 66, entretanto, certamente, serviu como
estratégia literária, além de se verificar como catalizador das vozes camponesas indígenas na luta
pela terra contra os dois modos de exploração responsáveis pela guerra silenciosa nos Andes
Centrais peruanos, o gamonalismo e o imperialismo. Assim, a diglossia cultural em Bom dia
en 1924, la guerra contra los indios de Huancané: cuatro mil muertos. Esos esqueletos fundaron la riqueza de
Huancané: la isla de Taquile y la isla del Sol se sumergieron medio metro bajo el peso de los cadáveres. En esa
pampa donde al hombre lo consuelan tan pocas horas de sol, Fortunato había crecido, amado, trabajado, vivido.
Corría y corría. En 1924 el Capitán Salazar encerró y quemó vivos a los trescientos habitantes de Chaulán. En la
lejanía fulguraron los techos de Rancas. En 1932, el Año de la Barbarie, cinco oficiales fueron masacrados en
Trujillo: mil fusilados pagaron la cuenta. Los combates del sexenio de Manuel Prado también los ganamos: 1956,
combate de Yanacoto, tres muertos; 1957, combates de Chin-Chin y Toquepala, doce muertos; 1959, cambates de
Casagrande, calipuy y Chimbote, siete muertos. Y en los pocos meses de 1960, combates de Paramonga, Pillao y
Tingo María, dieciséis muertos” (SCORZA, 1973, p. 270)
65
Tradução minha: “como todo escritor que tarde o temprano tiene que decidir sobre el lenguaje que debe utilizar
para la (re)presentación de um mundo indígena, señala: ‘los indios que están em mis livros, piensan correctamente,
deben hablar correctamente’ (Aldaz 42).”
66
É impossível imaginar que uma ficção produzida e direcionada para a instância moderna, em que pese à força
irruptiva do referente pré-moderno andino impondo elementos de sua cultura, possa mimetizar o complexo sistema
oral, mesmo que transculturado, de origem de outra instância cultural. Na verdade, se levarmos em conta a natureza
heterogênea e conflituosa do romance social indigenista, além da localização ideológica e da solução estética
escolhida por Scorza, chega-se a conclusão que isso não constitui o objetivo.
157
Para finalizar, apesar da evidente inserção de Bom dia para os defuntos no neo-
indigenismo, a distensão promovida pelo romance social scorziano no estreito espaço conceitual
formulado por Escajadillo, devido a todas as qualidades até aqui discutidas, indica, ao mesmo
tempo, como sugeriu Cornejo Polar, paradoxalmente, o rompimento com a tradição indigenista,
inserindo-se, por sua vez, em outra tradição, a da nova narrativa hispano-americana, por meio
da renovação da técnica narrativa do realismo que, entre outras modificações, incorporou à
diegese o ‘mágico’, o ‘maravilhoso’ e o ‘mito’ como elementos da realidade. Por outro lado, essa
espécie paradoxal de rompimento-permanência de Bom dia pra os defuntos na tradição
indigenista, por meio precisamente das qualidades que fazem da narrativa de Scorza um romance
social indigenista, insere elementos importantes desta tradição no modo de formalização do
funcionamento do realismo maravilhoso, tornando singular, por exemplo, a função do
‘maravilhoso’ na constituição dessa técnica narrativa na obra scorziana. Em outras palavras, o
caso à parte da heterogeneidade da narrativa de Scorza dentro do indigenismo, com a diglossia
cultural como catalizador da “voz” andina em luta e resistência à “voz” arcaica do sistema de
exploração latifundiária e à “voz” modernizante do progresso imperialista, incorpora na nova
narrativa hispano-americana realista maravilhosa uma função peculiar para o ‘maravilhoso’ e o
‘mito’, como veremos adiante.
camponesas até então silenciadas pelos principais jornais peruanos, numa reviravolta, certamente
respirando o contexto inicial do boom da nova narrativa hispano-americana, decidiu mudar
drasticamente de estratégia quanto à forma de escritura sobre os conflitos nas terras camponesas
dos Andes Centrais peruanos: escolheu, ironicamente, a ficção.
Na forma romance, Scorza encontrou o ímpeto que lhe faltava: a liberdade de dizer o que
se quer numa forma de comunicação que possui como característica básica uma relação indireta
com o real, abrindo espaço para não apenas questionar o silêncio dos conflitos andinos como
também a própria realidade trágica, possibilitando, assim, paradoxalmente, uma proximidade e
uma diferença com a representação social e, com isso, a vantagem de representar outra realidade
que intervém em sua postura estética, e não apenas é condicionada, perante o mundo (LIMA,
1980, p. 78). No entanto, a forma realista do romance social indigenista não satisfaria, de um
lado, as exigências do momento, como a necessidade de uma literatura cosmopolita a partir do
processo de desauratização e profissionalização do escritor e, por consequente, de uma vontade
de rompimento com o caráter regionalista do indigenismo, nem, de outro lado, as exigências do
próprio Scorza, como a vontade de mimetizar a estrutura de pensamento andino como parte
constitutiva da realidade peruana na tentativa de construir um universo ficcional que
tangenciasse a resistência ativa dos camponeses quéchuas por meio da infiltração de elementos
de suas cosmovisões nas ferramentas narrativas modernas; como ele reconhece, de certo modo,
em 1984, no jornal El Observador, recordando do processo de produção de Bom dia para os
defuntos: “Em Paris, escrevi um informe de Rancas. Reli-o e li para todos os amigos. Vi que
faltava coração; não via o que tinha visto. Então, um dia joguei tudo isso e sonhei a realidade,
como se eu estivesse lá dentro. E escrevi Redoble por Rancas67” (SCORZA APUD MIRAVET,
2003, p. 41, ênfase minha).
O termo ‘realismo mágico’, seguramente o mais difundido, foi empregado pela primeira
vez na crítica literária latino-americana, em 1948, por Arturo Uslar Pietri, em Letras y hombres
de Venezuela, a partir da apropriação de uma análise da produção pictórica do pós-
expressionismo alemão pelo crítico de arte Franz Roh, quando analisou os contos venezuelanos
dos anos trinta e quarenta, verificando como característica fundamental “a consideração do
homem como mistério em meio aos dados realistas. Uma adivinhação poética ou uma negação
poética da realidade. O que a falta de outra palavra poderia se chamar um realismo mágico68”
(PIETRI APUD CHIAMPI, 2012, p. 23). Chiampi aponta dois problemas nessa definição,
pautada na ambiguidade da ontologia da realidade e da fenomenologia da percepção: primeiro,
por indefinir a realidade, considerada como “mágica” (aqui há uma falha metalinguística de
Pietri no emprego do termo “realistas” ao invés de “reais”); segundo, por colocar o problema
68
Tradução minha: “la consideración del hombre como misterio en medio de los datos realistas. Una adivinación
poética o una negación poética de la realidad. Lo que a falta de otra palabra podría llamarse un realismo mágico”.
160
para fora do texto, no ato criativo, pois, assim, caberia ao narrador adivinhar a realidade ou negá-
la, tornando vacilante sua atitude, conforme Chiampi (2012, p. 23).
Já o termo “real maravilhoso americano” foi empregado por Alejo Carpentier, no mesmo
ano em que Uslar Pietri colocou em circulação o ‘realismo mágico’, no famoso prólogo de El
reino deste mundo, para nomear a unidade dos objetos e acontecimentos singulares da América
Latina. Isto é, sem ter como objeto as invenções do narrador, Carpentier procurou formular, de
acordo com Chiampi (2012, p. 32), “uma ideia da América como repositório de prodígios
naturais, culturais e históricos”, produto da conjunção de elementos provenientes de culturas
distintas dando origem a uma realidade heterogênea, desafiando assim a racionalidade ocidental,
como no caso do afrancesamento e do sincretismo no reinado de Henri Christophe mimetizado
161
em seu célebre romance. Dessa maneira, associado pela crítica ao realismo mágico, o real
maravilhoso americano também circulou como conceito que abarcaria a renovação narrativa em
atividade, de tal modo que o famoso prólogo chegou a ser considerado um espécime de
manifesto da nova narrativa latino-americana.
A teoria do real maravilhoso americano foi construída por Carpentier com a intenção de
manifestar seu rompimento definitivo com os surrealistas franceses, tomando os prodígios reais
da América como diferença essencial da imaginação e fantasia europeia. De acordo com
Chiampi (2012, p. 33), a polêmica da ruptura se desenvolveu em dois níveis na definição do real
maravilhoso americano: o primeiro, e mais explícito, refere-se ao modo de percepção do real por
parte do autor, por vezes, apresentada como única definição do conceito; o segundo se refere à
relação estabelecida entre a narrativa ficcional e os elementos maravilhosos da realidade
americana. Desse modo, Carpentier sugere no prólogo, por intermédio de verbos como “alterar”
e “ampliar”, de um lado, e “revelar” e “iluminar”, de outro, que o maravilhoso surja ora como
resultado de uma percepção deformadora do sujeito, ora como parte constitutiva da realidade, ou
seja, sua explicação conceitual gira em torno da oscilação entre o ponto de vista fenomenológico
(percepção modificadora do real) e o ponto de vista ontológico (percepção reveladora do real). O
modo de escrita de Carpentier, amalgamando num mesmo parágrafo os distintos verbos, tentou
passar a impressão de uma aparente resolução da contradição entre os níveis.
No entanto, de acordo com Chiampi, essa definição não rompe em definitivo com a
proposta dos surrealistas, visto que, no Primeiro Manifesto, André Breton já propunha encontrar
o maravilhoso por meio do sonho e da loucura, e depois, no Segundo Manifesto, o coloca como
elemento imanente ao real, consoante ao primeiro nível de conceituação do real maravilhoso
americano. Ou seja, mesmo com as restrições formuladas, que atacam somente os ideários
construídos pelos surrealistas e não suas fórmulas de fantasias e oníricas de ficção, Carpentier
dispõe a fé – enquanto elemento de pré-reflexividade – como componente necessário para
encontrar o maravilhoso imanente ao real, de maneira similar, portanto, como os surrealistas
propuseram a “iluminação” em suas teorizações. Assim, conforme Chiampi (2012, p. 34), parece
ser inegável que a “iluminação” surrealista serviu como modelo contundente para a teorização do
real maravilhoso americano.
aos objetos e fenômenos da realidade americana, diferente da proposição do primeiro nível que
deixa a cargo da percepção do escritor o acesso ao maravilhoso. À vista disso,
A relação entre o signo narrativo (no caso, o romance El reino de este mundo) e o
referente extralinguístico (o real maravilhoso da história haitiana) é postulada com uma
perspectiva realista, ou seja, o relato deverá conter essa combinatória imanente ao real.
Não se trata, Carpentier o frisa bem, de um “regresso a lo real” pretendido pela
literatura engajada politicamente [10], mas de expressar uma ontologia da América, ou
sua essência como entidade cultural. Assim, o conceito do real maravilhoso se resolve
narrativamente pelas constantes intersecções do Mito na História (CHIAMPI, 2012, p.
37, ênfase do autora).
Ao se referir aos eventos maravilhosos de El reino deste mundo, Chiampi frisa que o
termo ‘maravilhoso’ não alude apenas a coisas belas, mas sim, e sobretudo, a violência, a
crueldade, a terrível operação do poder, etc, como integrantes dos prodígios americanos. No
entanto, a consciência de Carpentier da complexidade da América não esconde uma similitude
com a atitude deslumbrada das crônicas do Novo Mundo, não apenas na reapropriação do termo
“maravilha”, mas, sobretudo, na recorrência ao uso do modelo ocidental como ferramenta de
comparação. O que não significa, para Chiampi, um simples “europeísmo” do escritor cubano,
pois múltiplos fatores determinam tal atitude, de modo que
Por fim, além dos motivos expostos, Chiampi considera mais adequado apropriasse do
termo ‘maravilhoso’, para juntá-lo com o termo da tradição literária realista, porque remete
historicamente ao sentido que a América impôs aos conquistadores no que concerne ao modo de
resolução do código racionalista para nomeação da estranheza e complexidade do Novo Mundo.
A partir dessa base introdutória, Chiampi formula a teoria do realismo maravilhoso, por
meio da observação dos princípios que regem as obras da nova narrativa hispano-americana,
164
Por intermédio do uso da razão, o leitor tem como base as leis naturais, as noções do
mundo empírico de tempo e espaço, as leis da causalidade, as convenções sociais, etc, quer dizer,
a estrutura “estável” do leitor se fixa nas normas de referência da noção de mundo real (por
exemplo, sabemos que o curso de um rio não se altera e que os mortos não retornam à vida).
Assim, qualquer elemento insólito que ameaça essa “estabilidade” causa medo e temor,
colocando em cheque certa segurança. Portanto, baseado no fundamento sociocultural do medo
pelo desconhecido, a narrativa fantástica procura reproduzir a estrutura dessa atmosfera fazendo
do evento sobrenatural um registro intratextual de medo como modalidade virtual. É
precisamente nesse cenário que irrompe o fantástico. Para Júlio Cortázar (2008, p. 179), “o
verdadeiramente fantástico não reside tanto nas estreitas circunstâncias narradas, mas na sua
165
Desse modo, o efeito emotivo da narrativa fantástica é caracterizado pelo medo do não-
sentido, responsável pelo estranhamento inicial de uma significação ausente, enquanto o efeito
intelectual se define pela dúvida diante de um acontecimento irreal. O leitor, juntamente com o
narrador, é levado à hesitação quanto à via de explicação da natureza do evento insólito, se de
ordem natural ou sobrenatural, podendo o desfecho apresentar uma das duas alternativas ou
suspender a explicação para manter o mistério. Portanto, as normas dos acontecimentos na
narrativa fantástica são irreconciliáveis, fazendo com que, de uma maneira ou de outra, a dupla
inquietação quanto à natureza do evento (natural/sobrenatural) ameace as duas normas de
referência, conformando, assim, uma antinomia constitutiva.
cria qualquer dúvida em relação aos eventos sobrenaturais de suas transformações em animais,
ao contrário, são naturalizados diegeticamente. De maneira semelhante, acontece em Cien años
de soledad, de García Márquez, quando o narrador relata naturalmente os eventos prodigiosos,
como a levitação do padre Reyna, as várias ressurreições de mortos, a volatização de armênio na
feira, a ascensão de Remedios – a Bela, etc., sem que qualquer personagem se assombre ou
vacile diante dos episódios. Assim, o narratório, no caso dos dois exemplos, articula-se de modo
a construir uma contiguidade entre as normas natural/sobrenatural, gerando uma causalidade
interna que suscita um efeito discursivo de encantamento.
Igualmente acontece com a revelação dos prodígios dos amigos de Chacón quando este
168
chega à praça de Yanahuanca, depois de sair de sua primeira prisão, e os reencontra, no episódio
do capítulo 11 – Sobre os amigos e amigalhões que Héctor Chacón, o Negado, encontrou ao sair
da prisão de Huánuco. De maneira realista, inicialmente, o narrador descreve como a
comunidade reagia aos visitantes que perguntavam pelo paradeiro do Olho-de-Coruja durante
sua prisão em Huánuco, em seguida, relata o reencontro de Chacón com o Ladrão de Cavalos e o
Abígeo, momento em que aparecem pela primeira vez na narrativa os elementos insólitos dos
amigos do Olho-de-Coruja, inseridos naturalmente no processo diegético sem que o narrador ou
os personagens vacilem diante dos fatos. No reencontro relatado, o leitor descobre
primeiramente a façanha do Ladrão de Cavalos:
– Héctor! Héctor!
O Olho-de-Coruja bateu nas coxas de alegria.
– Irmãozão, irmãozão.
– Eu sabia que você vinha – disse o gigante com um sorriso que não mostrou nenhum
dente pela simples razão de que não os tinha.
– Como soube, compadre?
– Pelos animais – sorriu o desdentado.
Os animais é que lhe adiantavam as notícias. O pai, um corcunda afeito a lidar com
pessoas complicadas com a Outra Banda, abandonou-o aos cinco anos deixando-lhe
como única herança a fala dos animais. Aos sete anos conversava com os potrinhos; aos
oito, nenhum animal lhe resistia; e a sua mãe teve que chicoteá-lo para evitar que
passasse a infância conversando com os únicos mestres que lhe ensinaram coisas sérias.
Cada três meses a necessidade, que é mais feia do que bater no pai, obrigava-o a subir
às cordilheiras. Não roubava: convencia os cavalos. Provido de notas novinhas, fingia-
se interessado na compra de cavalos e, aproveitando o descuido dos capatazes,
impotentes diante de tais artes, granjeava a confiança das tropilhas, dizia-lhes o nome
dos lugares onde o pasto era mais alto que os chifres dos touros e galopavam éguas de
traseiros colossais: os animais ouviam-nos com os olhos úmidos. O Ladrão de Cavalos
dizia-lhes que fossem encontrá-los no ermo, e eles, mais féis que mulheres, iam ao seu
encontro, e juntos largavam pelos socavões das anfractuosíssimas cordilheiras. Semanas
depois, aparecia em Canta, em La Unión ou Yauyos, oferecendo cavalos. Só os vendia
depois de ter referências sobre os compradores pela boca dos próprios equinos. (BDPD,
p. 58-59)
O Abígeo tinha o dom dos sonhos: muitos dias antes que as patrulhas pensassem em
169
como no caso em que Chacón pergunta sobre sua sorte à folha de coca e ao milho. Guamán
Poma, em Nueva Crónica y Buen govierno, por exemplo, já indicava e registrava a importância
da coca e do milho para a cultura inca e andina, como argumenta Varella (2008, p. 9), “Poma
aponta que os antigos ‘hechiceros’ dos tempos dos incas adoravam as grutas onde dormem de
passo, deixando coca e milho mascados emplastados nas paredes”, utilizando como hábito
idolátrico uma expressão característica para a caverna guardar a noite depois de mascar a folha
de coca.
Para Chiampi (2012, p. 64), uma das características que justifica a causalidade interna
dos relatos realistas maravilhosos é justamente “as profundas raízes autóctones de um povo, em
cujo universo cultural (ainda que dessacralizado) se desenvolve a ação”. Em Los ríos profundos
(1958), de Arguedas, o vocábulo de composição heterogênea (espanhol/quéchua) zumbayllu, que
designa um pião com poder encantatório, já presente no próprio cruzamento linguístico,
conforme Chiampi, ilustra a retomada de valores da cultura incaica interditos pela colonização
espanhola como motivo de desestabilização da referência real para o restabelecimento de um
outro sentido com a sua contiguidade com a ordem sobrenatural, produzindo um efeito de
encantamento no protagonista da obra no episódio em que expõe os meninos indígenas extraindo
o poder musicado do brinquedo zumbayllu, reavivando a memória da imagem dos rios e das
árvores.
Em Bom dia para os defuntos, por sua vez, Scorza utiliza os elementos culturais
quéchuas, na maioria das vezes, como ferramentas diegéticas em prol da luta dos camponeses
indígenas, assemelhando-se com a construção diegética de El reino de deste mundo, onde
Carpentier recorre à prática mágica da religião vodu para articular os eventos maravilhosos com
a função social e histórica de promessa de libertação na independência do povo haitiano.
Nesse sentido, Chacón pergunta à folha de coca se o plano de se disfarçar de mulher para
ter acesso à fazenda do doutor terá sucesso:
A folha de coca como elemento cultural andino se torna, desse modo, uma causa
transcendente que explica a ausência de vacilação, fazendo com que o leitor não opere uma
escolha de explicação entre as normas naturais ou sobrenaturais, mas questione e revise a
separação entre as zonas de significação. Chacón não chegou a comprovar a verdade da folha de
coca porque não se direcionou imediatamente à fazenda do Montenegro vestido de mulher,
primeiro resolveu ir a sua casa. Entretanto, o Olho-de-Coruja se esqueceu da revelação que havia
recebido dias antes, estando com o Pis-Pis na emboscada contra o terno preto em
Yerbanuenanaragrac, quando tinha perguntado sua sorte ao milho. De modo similar ao episódio
da folha de coca, o narrador e os personagens reagem com naturalidade frente ao maravilhoso da
situação:
O milho, afinal, estava certo. Chacón foi delatado por um membro da própria família.
Novamente recebe voz de prisão sem conseguir efetivar o plano de assassinar o doutor
Montenegro. Esse final do núcleo narrativo [1], de certa maneira, garante que tanto o milho
quanto a coca indicava corretamente certa previsão, já que a folha de coca parece garantir apenas
que o Olho-de-Coruja não morreria. Evidentemente esses elementos diegéticos reforçam a
contiguidade entre as normas, assegurando a legibilidade do maravilhoso enquanto natural,
proporcionando a ludicidade questionadora da separação de sentido entre as zonas com o efeito
discursivo de encantamento.
Para finalizar a análise do núcleo narrativo [1], em seu início, no capítulo 1 – Onde o
astuto leitor ouvirá falar de certa moeda famosíssima – não nos defrontamos com um caso de
inversão do sobrenatural em natural como nos episódios anteriores; ao revés, o episódio da
‘moeda do doutor’ ilustra bem como funciona a inversão do real em irreal, isto é, da
sobrenaturalização do natural que também caracteriza o realismo maravilhoso. De modo similar
172
como se realiza em Cien años de soledad, de García Márquez, em que o narrador recorre a
objetos reais como o gelo, a bússola, a fotografia, o ímã, a dentadura de Melquíades, etc, para
mostrar como os personagens ficam fascinados ou aterrorizados, em Bom dia para os defuntos, o
narrador recorre a uma moeda convencional de um sol peruano para mostrar como ela se tornou
um objeto insólito pelo simples fato de ser uma moeda perdida pelo doutor Montenegro. A
singela moeda de um sol adquire uma aura incomum, passando a ser vista ora com admiração ora
com temor, mas nunca colocada em dúvida quanto sua força “mágica”, já que ninguém podia
tocar nela:
Todos sabiam que na Praça de Yanahuanca havia uma moeda idêntica a qualquer outra
em circulação, um sol que no anverso trazia a árvore da quina, a lhama e a cornucópia
do escudo da República e no verso exibia a caução moral do Banco de Reserva do Peru.
Mas ninguém se atrevia a tocá-la. O repentino florescimento dos bons costumes
inflamou o orgulho dos velhos. Todas as tardes indagavam das crianças que voltavam
do colégio. ‘E a moeda do doutor?’ ‘Continua no seu lugar!’ ‘Ninguém mexeu nela!’
(BDPD, p. 8)
A ‘moeda do doutor’ chegou até a ser tratada feito um ser vivo como demonstra um
caixeiro-viajante que se deteve em Yanahuanca e perguntou: “como vai passando de saúde a
moeda?” (BDPD, p. 9). Assim, o elemento diegético que explica a causalidade interna do
capítulo, e que, portanto, permite o leitor ler o natural como sobrenatural, é a violência do doutor
Montenegro contra os comuneiros de Yanahuanca. Dessa maneira, diferente das construções de
García Márquez, que apela majoritariamente para certo exotismo na vivência do povoado de
Macondo para gerar o efeito discursivo de encantamento na inversão do natural em sobrenatural,
Scorza procura construir as inversões entre as normas relacionando-as de algum modo, conforme
estamos verificando, à luta dos camponeses quéchuas.
caminho para Huánuco começou a correr entre os cercados. A Cerca rastejou três quilômetros e
enfiou para as terras escuras de Cafepampa” (BDPD, p. 54). Por isso, em determinados
momentos, o narrador se refere à Cerca como uma “lagarta de arame” conforme, por exemplo, o
capítulo 10 – Sobre o lugar e a hora em que a lagarta de arame apareceu em Yanacancha.
a Cerca engolia Cafepampa. Assim nasceu essa cadela, num dia chuvoso, às sete da
manhã. Às seis da tarde tinha uma idade de cinco quilômetros. Pernoitou na fonte
Trinidad. No dia seguinte correu até Piscapuquio: ali celebrou os seus dez quilômetros.
(...). No terceiro dia, a Cerca cumpriu outros cinco quilômetros. No quarto atravessou as
lavagens de ouro. (...). Ali pernoitou a Cerca: de madrugada rastejou para o itararé por
onde afunda a estrada de Huánuco. Dois montes intransponíveis vigiam o desfiladeiro: o
avermelhado Pucamina e o enlutado Yantacaca, inacessíveis até para os pássaros.
No quinto dia a Cerca derrotou os pássaros. (BDPD, p. 55)
Nesse seguimento, enquanto a Cerca não chegava às povoações, ou, para dizê-lo com as
palavras do narrador, enquanto a Cerca “devorava terra, mastigava lagoas, comia morros, mas
não se atrevia a entrar nos povoados” (BDPD, p. 66), os camponeses continuavam a enxergá-la
como uma “lagarta de arame”, isto é, a construção diegética segue na sobrenaturalização do
natural. Depois que a Cerca chega às comunidades, vários comuneiros começam a perceber o
objetivo do alambrado: “senhores, esta Cerca não é só nas terras de pastagem. Este alambrado
caminha por toda a terra. Engole distritos inteiros. Em certos lugares as pessoas, encerradas,
morrem de fome e sede” (BDPD, p. 66). Então, a dinâmica narrativa se bifurca em dois
processos diegéticos distintos: mantém-se a sobrenaturalização da Cerca nos episódios em que
os camponeses e animais ainda incorporam essa visão; e a mudança da inversão, com a des-
sobrenaturalização da “lagarta de arame”, passando a ser abordada como uma simples cerca que
pressupõe um dono, no caso a Cerro de Pasco Corporation, e que, portanto, precisa-se lutar e
resistir. Esses processos não são dispostos linearmente, cabe ao leitor montar a cronologia
174
Scorza, desse modo, apropria-se da visão mítica da tradição quéchua dos animais e da
natureza para, a partir de uma criação livre dos elementos da cultura andina, construir um cenário
de pânico entre os animais das comunidades de modo que estes sejam personagens ativos na
175
resistência ao terror levado a cabo pela mineradora. Nessa perspectiva, o efeito de encantamento
e, simultaneamente, a problematização dos códigos sócio-cognitivos do leitor, sem instauração
de contradição no narratório entre as normas de referência, torna-se mais evidente quando não
somente os animais tentam fugir da “lagarta de arame” como também as árvores do local,
aprofundando, de maneira paradoxal, o efeito discursivo encantatório e a dimensão trágica do
acontecimento, como ilustra o seguinte trecho:
Toda semana notaram-se certos sinais. (...). Sinais houve, mas ninguém quis ver. Até na
véspera já dava para desconfiar do nervosismo dos cachorros. Alguém lhes teria
comunicado que o mundo estava sendo trancafiado. Fujam antes que seja tarde.
Alguém os teria avisado. E as árvores também se assustaram. Eu não vi. Aqui não há
árvores. Mas em Huariaca, mil metros mais abaixo, os eucaliptos enlouqueceram. Não
havia o menor vento: por isso chamou a atenção. O ar dormitava tranquilo quando os
chorões e as árvores-dos-incas tiveram um ataque epilético: se retorciam, tremiam,
agitavam, pobrezinhas, como se quisessem, pobrezinhas, pés para irem embora. Alguém
lhes teria sussurrado que a terra estava sendo fechada. Torciam-se, lastimavam-se,
fincavam-se os próprios espinhos. Padeceram a metade da tarde e anoite inteira.
Algumas árvores conseguiram arrastar-se uns metros. Amanheceram suando um leite
desconhecido. Mas ninguém se compadecia das árvores: os animais fugiam. (BDPD, p.
66-67, ênfase minha)
Nunca se soube por que uma epidemia açoitou Cerro de Pasco. Um vírus desconhecido
infeccionou os olhos dos habitantes. Aparentemente, as vítimas gozavam da integridade
da sua visão, mas um esquisito daltonismo lhes escamoteava alguns objetos. Um
enfermo capaz de indicar, por exemplo, as manchas de uma ovelha a dez quilômetros,
era incapaz de distinguir uma cerca a cem metros. Até os enfermeiros da Unidade
Sanitária compreenderam que tinham pela frente um caso sem precedentes na história
da medicina. Por infelicidade, Cerro de Pasco carece de oftalmologista. Nenhum
oftalmologista aceitava a vaga perpetuamente disponível no Hospital Operário. A altura
bárbara, o frio, a cornuda solidão os afugentavam. Disso tirava vantagem o Governo
para proclamar a existência de ‘emprego disponível’ no departamento. Mas
controvérsias políticas à parte, percebeu-se a inestimável perda que o desconcertante
vírus causava à oftalmologia. (BDPD, p. 170)
176
Em Cerro de Pasco [os mineiros] submergiam nos túneis: não emergiam nunca mais.
Sentinelas armadas os retinham nos úmidos poços. Viviam e morriam nas galerias. De
tempos em tempos os capatazes traziam um homem-toupeira para a luz: ele próprio
suplicava que o devolvessem às trevas. Tão profundamente os feria a luz! Tudo o que os
homens-toupeiras conseguiram foi a autorização de mandar baixar os seus parentes.
Famílias inteiras, inclusive cachorros, desceram a viver nos socavões. Milhares de
homens-toupeiras trabalhavam, comiam, fornicavam numa povoação subterrânea tão
vasta como a própria Cerro de Pasco. Uma raça de olhos especiais, a dos meninos-
toupeiras, crescia nas galerias, sem acreditar nas fábulas de um sol diferente das tochas
das galerias. (BDPD, p. 174, acréscimo meu)
Devido ao trabalho intenso e precarizado nas minas, outros agravos surgem aos
trabalhadores, e também aos moradores da pequena comunidade: as diversas doenças
relacionadas à ingestão de fumaças, produtos químicos e poeiras. O narrador, no entanto, procura
expressar essas graves consequências invertendo a ordem natural dos eventos em ordem
maravilhosa, construindo novamente uma cena irônica com a contiguidade entre as normas de
referências reais e irreais da violência da mineradora. Assim, sem hesitar em momento algum, o
narrador expõe o fenômeno das mudanças de cores dos rostos dos moradores de Cerro de Pasco,
tomando o que deveria ser um sintoma de uma doença como uma característica lúdica adquirida
com o advento da Cerro de Pasco Corporation, como se fosse algo natural:
Seis minutos antes do meio-dia de 14 de março de 1903 mudou, pela primeira vez, a cor
da cara dos cerrenhos. Até então os felizes habitantes da chuvosa Cerro de Pasco
ostentavam rosto acobreado. Nesse meio-dia o rosto mudou: um homem emergiu de
uma cantina onde bebia cachaça de alambique com a cara e o corpo azuis; no dia
seguinte outro varão, que se embriagava na mesma cantina, apareceu verde; três dias
depois um homem de rosto e mãos alaranjadas passeou pela praça Carrión. Faltavam
poucos dias para o carnaval: julgou-se que eram candidatos a ocupar o lugar de diabos-
rengos. Mas o carnaval passou e as pessoas continuam mudando de cor. (BDPD, p. 89)
177
– Você caiu, Dom Alfonso. Os guardas avançaram regando morte. As balas parecem
milho pipocando na panela. Parecem mesmo. Avançavam; de vez em quando paravam e
molhavam os telhados com gasolina. Vi a Vicentina Suárez cair. O pessoal se
enfureceu. Respondeu com pedradas. Caiu Dom Matteo Gallo.
– Era a única resistência?
– Não, não era a única. Os meninos da escola subiram a ladeira e trataram de empurrar
um pedrão.
– Mas o terreno não tem descida para aquele lado.
– Pois é isso. Fracassaram: as pedras não rolavam. Os guardas os correram a tiros. Ali
caiu o pequeno Maximino.
– Aquele que fez o espantalho?
– Esse mesmo, senhor procurador. Vi cair o menino e senti um queimar no sangue, tirei
a minha funda e soltei uma pedrada na cara de um dos guardas. Me disparou a sua
metralhadora. Caí de costas com a barriga aberta. (BDPD, p. 225-226)
de se ocultar, ao contrário, por meio dos atributos do “metatexto”, promove uma auto-
referenciabilidade, convocando a atenção do leitor não apenas para a história como também para
o próprio sujeito da enunciação, assegurando, assim, uma nova concepção da realidade.
Nessa perspectiva, de acordo com Chiampi (2012, p. 72), devemos analisar a voz do
narrador confrontando os mecanismos de questionamentos da enunciação com os de ocultamento
da tradição realista tradicional para verificar certo rompimento com o disfarce característico
dessa tradição que requer a confiança ingênua do leitor. Recorrendo a vários teóricos do relato e
variadas narrativas, Chiampi demonstra o caráter ideológico de diversas modalidades de
onisciência do ponto de vista e as de dramatizações (incluída o narrador em primeira pessoa) do
realismo, pautada na vontade de dominar o relato e na busca incessante de objetividade e
impessoalidade, levado a cabo pelo apagamento do autor como disfarce para o ato de narrar.
Desse modo,
A metadiegese explícita acontece, de acordo com Chiampi (2012, p. 80), quando a voz
constrói um segundo nível de significação para expor o processo da própria diegese, “seja pela
inserção em algum ponto do enunciado de uma ‘poética da narrativa’, seja pela disseminação ao
longo do enunciado de uma ‘crise da enunciação’ do narrador”. Já a metadiegese implícita incide
sem deixar muita marca do trajeto entre um nível narrativo para o outro, dissipando-se na
diegese. Chiampi argumenta que “esta voz discreta opera, contudo, transgressões da convenção
autoritária da representação romanesca, que não dissimulam totalmente o seu projeto de auto-
refencialidade”. Entre os procedimentos dessa voz discreta na renovação narrativa hispano-
americana estão: (a) distorção barroquista dos significantes; (b) multiplicação, mudanças,
cruzamentos ou superposição de perspectivas; e, por fim, (c) narração paródica, constituída pela
constante remissão do texto a outros textos, pelo jogo de pluralidade de vozes, pela quebra da
unidade de tom e da compostura do discurso. (ibid., p. 81)
Nesse sentido, diferente do conto Las babas del diablo, de Julio Cortázar, exemplo
levantado por Chiampi, onde a problematização do ato de narrar compõe o seu preâmbulo,
referindo-se ao dilema da escolha da pessoa verbal para contar o relato (se em primeira pessoa
ou em segunda), em Bom dia para os defuntos, a metadiegese explícita se apresenta quando o
narrador problematiza ou duvida de sua própria afirmação na perspectivação da história,
questionando de certa maneira o estatuto narrativo e a própria legitimidade do ato de narrar,
como se pode observar em diversos trechos, alguns com pequenas elaborações e intervenções de
segundo nível diegético, por exemplo, quando o narrador, descrevendo a teimosia de Fortunato
contra a Cerca, no núcleo narrativo [2], afirma, e ao mesmo tempo indaga-se, que “Um dia o
velho repousava – repousava? – estendido em cima do seu pelego.” (BDPD, p. 126, ênfase
minha), outros com longos processos de abertura de segundo nível diegético para a
problematização das fontes e da superfície narratológica da “visão por trás”, geralmente ligado à
perspectivação da história pelos vencedores, colocando em xeque sua autoridade narrativa, num
jogo lúdico de questionamentos dos “cronistas” do relato, conforme podemos verificar no
episódio do encontro de Dom Migdônio de la Torre, o dono da fazendo Estribo, com o Dr.
Montenegro, no núcleo narrativo [1], em que decidem sobre a veracidade oficial do “enfarto
coletivo” dos peões da fazenda Estribo:
Desse modo, em Bom dia para os defuntos, multiplicam-se exemplos de diálogos lúdicos
entre o narrador e o narratório, por intermédio da problematização das versões dos “cronistas”,
dos “historiadores” e das “testemunhas” da história narrada, como no seguinte trecho do episódio
de sorteio na quermesse, no núcleo narrativo [1], em que o Dr. Montenegro é o único vencedor:
“E aqui se confundem as versões. Certos cronistas afirmam que nem bem o doutor ouviu cantar
o número premiado, rasgou o seu bilhete e bateu na mesa gritando: ‘Isto é uma falcatrua!’.
Outros memorialistas discrepam afirmando que não bateu na mesa” (BDPD, p. 76, ênfase
minha); ou quando, no mesmo núcleo narrativo, o narrador relata o súbito carinho que emergiu
misteriosamente no coração do doutor Montenegro pelos filhos de Hector Chacón e Inácia:
“Aqui os escoliastas disputam. Certos cronistas sustentam que o doutor perguntou a Inácia
quantos filhos tinha e como se chamavam. Outros historiadores afirmam que o doutor
simplesmente tirou uma nota de dez sóis e entregou-a à estupefata Inácia.” (BDPD, p. 201,
183
ênfase minha); ou ainda quando o narrador indaga, no núcleo narrativo [2], qual seria a
perspectiva verdadeira (se a dos vencedores ou a dos vencidos) quanto à alcunha do famoso
comandante de desalojamentos Guillermo Bodenaco: “O comandante G. C. Guillermo
Bodenaco também é chamado de Guillermo o Carniceiro ou Guillermo o Cumpridor. Onde se
abriga a verdade? Os ordenancistas insistem em que ‘o dever é o dever’ e ajuntam ‘um oficial é
um oficial’” (BDPD, p. 204, ênfase minha). Em seguida, no mesmo episódio, o narrador, em sua
performance como voz no segundo nível diegético, resolve explicar a escolha simultânea dos
dois codinomes do comandante em sua atuação como foco narrativo, como se pode observar
nesse pequeno fragmento: “Guillermo o Carniceiro ou Guillermo o Cumpridor participou de
quase todos esses ‘desalojamentos’. Para conciliar definitivamente as discussões, o cronista
resolve designar o Comandante Bodenaco, alternadamente, por suas duas alcunhas” (BDPD, p.
205).
Para finalizar a análise da metadigese explícita, mais dois trechos são significativos. O
primeiro, pertencente ao núcleo narrativo [1], diz respeito ao episódio da morte do Corta-Orelhas
levado a cabo por Chacón, quer dizer, especificamente, à reação do Dr. Montenegro quando
soube do acontecido. Nesse episódio, representativo de outros, o entrelaçamento dos níveis
diegéticos (diegese/metadiegese) atravessado pelo jogo lúdico de questionamentos entre o
narrador e o narratório, quanto à veracidade dos acontecimentos narrados pelas fontes, expõe a
ausência de um narrador onisciente como um “deus”, sabedor de toda a dinâmica narrativa,
principalmente quanto aos acontecimentos relacionados aos vencedores, ao mesmo tempo em
que, sutilmente, revela uma crítica à autoridade suprema desse narrador-deus, como podemos
observar no seguinte trecho:
De modo similar, acontece com o segundo trecho, referente ao episódio final do núcleo
narrativo [1], quando Hector Chacón é preso em casa deletado por um membro da família, como
se pode analisar em seguida:
184
Desta vez foi Dom Migdônio de la Torre y Covarrubias del Campo del Moral quem se
prolongou no elogio dos prazeres da amizade. Tiraram uma pestana e, às doze,
recomeçaram a partida.
Jogaram noventa dias seguidos.
Mordi as mãos para não desgraçar-me.
Sai. O sol raiava na praça. Passaram uns meninos correndo. Um cachorro os
perseguiu colérico. Eles se voltaram e o cachorro fugiu. Assim era eu: um cachorro que
fugia cada vez que os fazendeiros viravam a cara. (BDPD, p. 115, ênfase no original)
185
Por fim, pelo barroquismo descritivo, por intermédio da mudança do signo apessoal
narrativo da “visão por trás” (onisciência) para o signo pessoal narrativo da “visão com”
(personagem-narrador), em pequenos trechos de alguns capítulos, sem qualquer ordem linear de
mudança, nem identificação clara de algum personagem responsável pelos relatos, como
acontece no capítulo 6 – Sobre a hora e o lugar em que pariram a Cerca:
– Essa cerca é coisa do demo. Vocês vão ver. Aqui anda alguém ao lado do Chifrudo.
Dom Teodoro Santiago subia e baixava incessantemente as sobrancelhas.
Riram-se. Dom Santiago sempre anunciava desgraças. Disse que o campanário cairia.
Caiu? Predisse que viria uma peste. Veio? Dom Santiago é um homem de luto. Para que
discutir?
Rir é o que não devíamos. Em vez de lambuzarmos a boca com palavras tolas, devíamos
ter atacado a Cerca, matá-la e espezinhá-la no nascedouro. Semanas depois, quando o
Grande Pânico apertou os queixos, Dom Afonso reconheceu que tínhamos dormido
bobamente. (BDPD, p. 29, ênfase minha)
É possível supor que esse narrador seja o M.S – Manuel Scorza – da nota introdutória do
romance, considerando a interpretação sem a intervenção da leitura dos outros romances da
pentalogia, que dá outra dinâmica hermenêutica ao narrador mais frequente da primeira balada
do ciclo narrativo, o único objeto de análise desta dissertação. Desse modo, Bom dia para os
defuntos se diferencia, por exemplo, do barroquismo descritivo de Cien años de soledad, de
García Márquez, que inicia com o narrador-deus apessoal e finaliza com o narrador-personagem
Melquíades. De todo modo, conforme Chiampi (2012, p. 84-85), o barroquismo descritivo,
enquanto estratégia narrativa inusitada para o diálogo narrador-narratório69, confere a narrativa
um duplo efeito de jogos invertidos: a “naturalização da ficção” e a “ficcionalização da
realidade”, formas de descodificação que registram o gesto lúdico da enunciação barroquista.
69
É importante observar que o diálogo entre o narrador e o narratório, acima explorado, nas relações pragmáticas,
pode ser definido, de acordo com Chiampi (2012, p. 95), “como diálogo linguístico, cujo sentido último é dado pela
natureza translinguística da narrativa poética, na medida em que envolve a troca dialógica que se propõe na
orientação vertical (signo–unidade cultural)”.
186
Nesse sentido, reconhecendo que o universo semântico capaz de unir atributos contrários
para nomear a realidade hispano-americana (onde o ‘real’ se junta ao ‘maravilhoso’ e o
‘maravilhoso’ se acomoda ao ‘real’) não traduz em sua completude o sistema complexo dos
fatos, já que “ao dizermos que a América ‘é o mundo do real-maravilhoso’ não estamos
apontando um referente, mas uma ideia sobre ele. A realidade, ao ser nomeada ou qualificada,
deixa de ser a realidade, para ser um discurso sobre ela” (CHIAMPI, 2012, p. 91, ênfase da
autora), Chiampi escolhe renunciar ao debate em torno da natureza ontológica da coisa em si, no
caso a realidade hispano-americana, porque desembocaria inevitavelmente na metafísica, para
retomar, assentada na ideia da linguagem como fenômeno social, o conceito de unidade cultural,
como sendo “qualquer entidade que a cultura individua: pessoa, lugar, coisa, sentimento, estado
de coisas, pressentimento, fantasia, alucinação, esperança ou ideia” (ibid., p. 92), proposto por
Umberto Eco a partir de Schneider, tendo em vista que o sistema de comunicabilidade das
mensagens, como a codificação ou a descodificação, não exige uma verificação da validade da
substância em si dos significantes.
Não se deve entender que uma unidade cultural conotada como ideologia transponha,
necessária ou mecanicamente, as suas funções sociais e políticas para o texto literário.
Ela pode ser, sim, o referente extralinguístico do texto, mas a sua forma de absorção
neste não corresponde a uma analogia de substâncias, mas a uma homologia estrutural,
que seleciona e problematiza as feições comunicacionais da mensagem ideológica.
Tampouco deve-se deduzir que todo referente extralinguístico seja uma ideologia.
(CHIAMPI, 2012, p. 94-95, ênfase da autora)
A importância desse aparato de ideologemas e seus traços estão assentados em seu caráter
supra-histórico, já que diversas unidades culturais são produzidas e reproduzidas de maneira
intertextual historicamente. No entanto, para a discussão da semântica no realismo maravilhoso,
é o ideologema da mestiçagem cultural, no que concerne ao caráter não-disjuntivo de suas
unidades culturais, que nos interessa aqui. Para Chiampi (2012, p. 133), o ideologema da
mestiçagem cultural carrega a ideia de se pensar a cultura hispano-americana como espaço da
união do heterogêneo, do que vem de fora com o que aqui está, a partir de um processo de
assimilação/recusa/nova formulação, isto é, de “síntese anuladora das contradições” e de
conjunção de culturas distintas e desiguais, como aparece na própria nomeação retórica dos
discursos críticos formulada pelos teóricos da “América mestiça”: no real maravilhoso
americano, de Capentier; no protoplasma incorporativo, de Lezama Lima; na cultura aluvional,
de Uslar Pietri; na Euríndia, de Ricardo Rojas; na cultura sinfônica, de Vasconcelos. Dentre
esses casos, apesar de todos incorporarem termos opostos em combinação para predicar a
América, Chiampi admite o sintagma real maravilhoso, de Carpentier, como a melhor forma de
se referir semioticamente ao referente projetado na narrativa do realismo maravilhoso. Justifica:
não que as reflexões de Carpentier sejam privilegiadas em justeza ou correção, mas pela
expressividade do oximóron que instala em seu significante o significado da não-
disjunção e pela correlação terminológica permitida para falar-se de um tipo de
narrativa dialógica, que nos anos cinquenta nasce na América Hispânica. Justamente
quando se fixa no discurso americano o ideologema da mestiçagem. (CHIAMPI, 2012,
p. 133-134)
É nesse cenário, por fim, que se inscreve a função ideológica peculiar do “sobrenatural”,
do “maravilhoso” e do “mito” frente ao “natural” e ao “realismo”, enquanto isotopias (efeitos de
sentidos) da poética da homologia, na articulação desse Outro sentido na modelização ou re-
modalização do referente cultural real maravilhoso. Essa função adquire mais força ainda nos
romances associados à ficcionalização da História na perspectiva realista. Nesse sentido, o
discurso narrativo de Bom dia para os defuntos, enquanto texto-ocorrência do realismo
maravilhoso, constitui-se como uma obra paradigmática na evidência do caráter problematizador
que a isotopia do mito pode adquirir diante da isotopia do realismo.
2.3 Limiar II: entre o realismo e o mito, ou o mito como armadura do porvir dos vencidos no
efeito de sentido da História mitificada
évitera les pôles neutres (ni...ni) ou complexes (et...et)” [438], porque estes introduzem
o jogo dos contraditórios e dos contrários, que problematizam a ordem natural.
(CHIAMPI, 2012, p. 146, ênfase da autora)
O capítulo de abertura do romance – Onde o astuto leitor ouvirá falar de certa moeda
famosíssima – começa com a construção de uma cena-tipo da tradição realista (a descrição de um
passeio da autoridade local numa praça), marcando a princípio um signo temporal; no
desenvolver da narrativa, no entanto, como observamos no primeiro capítulo desta dissertação, o
tempo é significado de modo circular, através do “giro” dos personagens ao redor da situação
opressiva representada pelo doutor Montenegro. Anunciando, assim, o sentido mítico da
violência republicana que será ressignificada no decorrer da diegese na relação constitutiva entre
o arcaico, com o gamonalismo, e o moderno, com o imperialismo norte-americano, construindo
como Outro sentido uma História mitificada.
Nesse rascunho de ensaio, Manuel Scorza defende que depois da Guerra Civil Espanhola
e da Segunda Guerra mundial surgiu um vazio de poder linguístico e literário na América Latina,
fazendo com que gerações de escritores, pertencentes às classes médias baixas, rompessem,
enfim, a barreira que separava a realidade americana de sua expressão. “Na década que se segue
a Segunda Guerra Mundial”, argumenta Scorza, “uma teoria de livros ilustres expulsa o ocupante
de uma língua [espanhola] onde já não tem localização: assim, a Literatura chega a ser o
Primeiro Território Livre da América 71” (SCORZA, 2006, acréscimo meu). De acordo com
Scorza, a literatura se constituiu como única ideologia livre porque todas as outras ideologias –
política (de direita ou de esquerda); religiosa; econômica ou científica – na América Latina
sempre conformaram meros mimetismos e cópias de ideologias oriundas de outras realidades.
Diversamente, devido à ocupação do vazio linguístico por escritores ligados às classes baixas e
70
Tradução minha: “Expulsados del tempo y del espacio, los sobrevivientes de las culturas precolombinas se
refugian en el único territorio posible: el mito. Porque un pueblo expulsado de la historia no puede retornar a la
historia a través de la historia, sino a través del mito. El mito es la coraza que protegerá su ser desvalido: la cáscara
que defenderá la pulpa de su futuro ser, la identidad que aguardan en el futuro. Porque en ciertos casos la historia de
un pueblo no está en el ayer sino en el mañana. En América, el mito no es un solicitación literaria: es una imperiosa
construcción histórica: una necesidad de existencia del ser: el esqueleto que sostendrá la carne de la Palabra
recobrada.”
71
Tradução minha: “una teoría de libros ilustres expulsa al ocupante de una lengua donde ya no tiene ubicación: así,
la Literatura llega a ser el Primer Territorio Libre de América.”
197
o único setor da ideologia latino-americana que reflete fatos: não se alimenta com
imagens de fatos deformados pelo presbitismo de imagens culturais colonizadas. No
entanto, existe mais: a literatura trabalha com os sonhos. Hegel disse que ‘a verdadeira
história de um povo seria a soma de todos os sonhos que esse povo tenha sonhado numa
noite’. Por isso, é que sua visão será sempre mais profunda que a visão ideológica, que
por definição exclui o irracional, esquecendo que ‘somente nos sonhos somos sinceros’
(Nietzsche)72 (SCORZA, 2006)
Nesse cenário, como única resposta possível, surgiu o mito enquanto contraponto dos
vencidos, como afirmou Scorza, em entrevista a Juan E. Gonzalez em 1980:
72
Tradução minha: “el único sector de la ideología latinoamericana que refleja hechos: no se alimenta con imágenes
de hechos deformados por la presbicia de imágenes culturales colonizadas. Pero hay más: la literatura trabaja con los
sueños. Hegel dice que ‘la verdadera historia de un pueblo sería la suma de todos los sueños que ese pueblo ha
soñado en una noche’. Por eso es que su visión será siempre más profunda que la visión ideológica, que por
definición excluye lo irracional, olvidando que ‘sólo en los sueños somos sinceros’ (Nietszche).”
198
lugar para os vencidos. Isso porque, para muitos dos conquistadores, os índios não
tinham alma e, apesar do Papa Paulo III ter afirmado o contrário, na célebre bula
Sublimis Deus, na prática negou-se e ainda hoje se nega a condição dos índios. Há
poucos anos, uma Corte de Justiça da Colômbia absolveu o responsável pela morte de
cem indígenas, aceitando a tese da defesa de que matar índios não é delito.
(SILVEIRA, 1980, p. 205)
Os índios possuem alma? São seres humanos ou bestas parecidas aos homens? Para
além do cinismo do encomendero ignorante e bestial, a interrogação é teológica,
metafísica. E a resposta é o drama a que se enfrentam os sobreviventes do Apocalipse
da Conquista. Porque a história que propõe a História é insuportável. Se se pode, em
última instância, aceitar o despojo absoluto de ter uma história, é impossível aceitar o
despojo do ser. E aceitar essa História, a única História, é uma ferida metafísica
insuportável: significa o desapossamento, a perda de identidade, a loucura. Porque os
mortos – embora seja um quinto da humanidade – são os mortos. ‘Os mortos se retiram
do jogo’ (Hegel). O drama maior não é o extermínio físico: é o saque metafísico dos
sobreviventes: sua loucura. Essa loucura é o fundo do leito por onde, depois, correrá o
aflitivo rio do ser americano73.
Desse modo, o mito surge como defesa contra a “loucura histórica”, isto é, como
ferramenta dos vencidos para contrapor a História dos vencedores. Como exemplo, Scorza
recorre a Crónica del buen gobierno, de Guamán Poma de Ayala, de 1600, considerado por
historiadores como um documento histórico e antropológico, para dizer que Guamán Poma
propõe o mito de que Jesus Cristo mandou o apóstolo São Bartolomeu predicar na América antes
de Colombo como forma de negar a história e sua terrível realidade, de modo similar como
fizeram os vencidos astecas como comprova o Manuscrito de Tovar, escrito pelo jesuíta
mexicano Juan de Tovar, que traz o mito do apóstolo São Tomás. Portanto, conclui Scorza,
73
Tradução minha: “¿Los indios tienen alma? ¿Son seres humanos o bestias parecidas a los hombres? Por encima
del cinismo del encomendero ignaro y bestial, la interrogación es teológica, metafísica. Y la respuesta es el drama al
que se enfrentan los sobrevivientes del Apocalipsis de la conquista. Porque la historia que propone la Historia es
insoportable. Si se puede, en última instancia aceptar el despojo absoluto en el tener es imposible aceptar el despojo
del ser. Y aceptar esa Historia, la única Historia, es una herida metafísica insoportable: significa la desposesión, la
pérdida de la identidad, la locura. Porque los muertos – aunque sean un quinto de la humanidad – son los muertos.
‘Los muertos se retiran del juego’ (Hegel). El drama mayor no es el exterminio físico: es el saqueo metafísico de los
sobrevivientes: su locura. Esa locura es el fondo del lecho por donde, en adelante correrá el angustioso río del ser
americano”.
74
Tradução minha: “¿Qué buscan estos mitos? Refutar la historia, discutir la historia, aniquilar la historia. Porque si
San Bartolomé y Santo Tomás cristianizaron América antes que Colón “descubriera” América, entones Colón es un
199
impostor, y la Conquista una colosal impostura. Así, el mito comienza a roer, a deteriorar, a aniquilar a la historia:
es la neblina que oculta la atrocidad del paisaje histórico. La lectura de Lévi-Strauss es justa: menos que un
acontecimiento histórico ubicable en esa cronología, el mito intenta anular la historia de los historiadores. Para que
la verdadera historia exista es necesario primero aniquilarla. Porque la historia no está ya ni en el pasado ni en el
presente: estará ya en el futuro”.
200
ressignificar a História pela narração ficcional ao perceber que a ficção permite, entre outras
coisas, incorporar certa força mítica como elemento questionador, revelando, assim,
paradoxalmente, a face mítica e catastrófica da História dos vencedores.
O problema da narração nesses dois campos, a literatura e a história, foi uma das
preocupações teóricas de Walter Benjamin. E essa preocupação teórica se converteu em diversas
análises literárias sobre a narração e sua relação com as forças míticas e as forças emancipatórias
históricas, no sentido dado na discussão do primeiro capítulo desta dissertação, isto é, na
identificação do mito no direito como desenvolvimento da ordem diabólica do destino na
modernidade em contraposição à atitude libertadora da vida histórica. No ensaio O narrador –
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, por exemplo, em que discute o declínio da
experiência na modernidade e, por conseguinte, a morte da possibilidade tradicional de narrar,
Benjamin afirma que um dos primeiros narradores verdadeiros foi o narrador do conto de fadas,
porque este sabia dar conselhos nos momentos de emergência por intermédio dos eventos
maravilhosos narrados. O mito era quem desencadeava essas emergências. De acordo com
Benjamin (2012, p. 232), “o conto de fadas revela-nos as primeiras medidas tomadas pela
humanidade para libertar-se do pesadelo que o mito havia infundido em nossos corações. Ele nos
mostra, no personagem do ‘tolo’, como a humanidade se ‘fez de tola’ para proteger-se do mito”.
Desse modo, o narrador do conto de fadas aconselhou a humanidade a enfrentar as forças míticas
com astúcia e arrogância, em vista da irrupção da força histórica e libertadora da humanidade.
Aqui o recurso literário retórico do “maravilhoso” não tem qualquer raiz fincada no mito de
alguma sociedade. Assim, o maravilhoso puro como discurso disjuntivo enfrentava o mito pré-
moderno em vista da vida histórica.
Em Bom dia para os defuntos, por sua vez, a narração do realismo maravilhoso revela
outra relação de enfrentamento da humanidade com o mito enquanto força antilibertadora.
Assentado no contexto do mito transfigurado na ordem do direito e, especificamente, na relação
imperial norte-americana de realização da força mítica moderna na América Latina, o romance
scorziano redimensiona as ferramentas literárias, se compararmos ao conto de fadas, para
compor o efeito de sentido narratológico no combate contemporâneo à força mítica. A conjunção
do real diegético com o maravilhoso, a partir de eventos em duas modalidades sêmicas (a
desnaturalização do real e a naturalização do maravilhoso), pautadas na referência cultural do
mito dos povoados de descendência indígena quéchua, forjou um revés: a força do mito pré-
moderno, a partir de criações livres com base nos povos de laços pré-colombianos, insertados na
201
construção das inversões do maravilhoso, possui como função isotópica o enfrentamento com a
força mítica do direito e da violência na ordem do progresso republicano. Assim, a poética da
homologia do realismo maravilhoso na obra scorziana utiliza certa força mítica pré-moderna
como resistência à força mítica moderna 75.
75
Poderia ainda desenvolver uma análise, em outros termos conceituais, conservando as semelhanças e
evidenciando as diferenças, em que o realismo maravilhoso na obra de Scorza rearticularia e rearranjaria a dialética
do esclarecimento, no que se refere à formulação básica de Theodor Adorno e Max Horkheimer. A pertinência deste
breve comentário está assentada não apenas na lembrança do texto fundamental dos autores frankfurtianos que essa
parte da investigação remete como em sua ressonância na própria passagem referenciada de Walter Benjamin em O
narrador. Entretanto, estenderia em demasia o foco desta dissertação.
76
Tradução minha: “En La Tumba del Relámpago prescindo del mito como núcleo del libro porque los personajes
llegan a una conciencia clara de la realidad y una comprensión rotunda de la realidad tiene que actuar en el campo
político de una manera clara y rotunda”.
202
CAPÍTULO 3
Bom dia para os defuntos como mônada antropofágica: imagem dialética e
devoração selvagem como resposta estética politizada à catástrofe
3.1 A mônada: a irrupção da imagem dialética como apresentação da história dos vencidos
andinos na estética scorziana
Como desdobramento conceitual, principalmente nos textos finais como o livro das
Passagens e o ensaio Sobre o conceito de história, a violência mítica encontra forte ressonância
na teoria do progresso subjacente à catástrofe que atravessa toda a crítica desenvolvida por
Benjamin às concepções evolucionistas e positivistas da História a partir do conceito de mônada
como teoria do conhecimento. À vista disso, a construção monadológica na forma de expressão
da composição do romance scorziano irrompe como resposta estética politizada à significação da
catástrofe enredada pela violência mítica na forma do conteúdo na ressignificação da História em
Bom dia para os defuntos, como veremos.
Fortunato trotava no interminável altiplano de Junín. No seu rosto azulava uma cor que
não era fadiga. Há duas horas que avançava de boca aberta. Os pés pulverizados reduziam
o trote, caminhavam e voltavam para a estrada. A qualquer instante, talvez agora, o
nevoeiro pariria os pesados caminhões, os rostos de couro que calçariam Rancas sob os
pés. Quem chegaria primeiro? O comboio que circundava a lentíssima curva ou
Fortunato, que suava sobre os pedregulhos? Cercada de milhares de animais moribundos,
Rancas cabecearia de torpor. Chegaria a tempo? E mesmo que avisasse, como se
defenderiam? Com porretes? Com fundas? Os outros avisariam um segundo antes de
atirar. Trotava com a boca aberta, engolindo o céu coalhado de abutres. Maus
pressentimentos galopavam atrás dele. (BDPD, p. 11-12)
Ou, como se pode verificar no capítulo 6 – Sobre a hora e o lugar em que pariram a
Cerca:
Fortunato parou e se alquebrou no seu pasto. Seu coração pulava como um sapo. Ergueu
meio corpo e conjeturou a curva nevoenta: a qualquer momento, talvez enquanto ele
arquejava, apareceriam os caminhões, mas os seus olhos não distinguiram nenhum
reflexo; enroscado como um gato, o caminho de Rancas dormitava. (BDPD, p. 29)
77
Conforme veremos mais à frente, a construção da história na acepção benjaminiana pressupõe a destruição dos
pressupostos das histórias positivistas.
207
78
Há fundamentalmente duas soluções tradutórias para o termo alemão Einfühlung no Brasil: empatia e
identificação afetiva. A esse respeito Löwy afirma que o “equivalente mais próximo seria empatia, mas que ele
próprio [o Benjamin] traduzira por ‘identificação afetiva’.” (2005, p. 71)
209
Por fim, apresentada as três tendências positivistas da história, cabe assinalar que, além
da ideia de progresso, o que aproxima as concepções de história do historicismo conservador, do
evolucionismo socialdemocrata e do marxismo vulgar é a percepção do tempo. Para Benjamin, o
dogma fundante dessas concepções de história é a ideia de um tempo homogêneo e vazio. É útil
novamente aludir aqui a concepção do passado e da história dessas tendências como uma espécie
de estante com uma única e interminável prateleira. Nessa metáfora, o tempo homogêneo e
vazio, em termos espaciais, seria a parte de dentro da estante, onde se poderiam depositar
indiferentemente os acontecimentos, pautado apenas na sustentação contínua da prateleira. Com
base nessa concepção de tempo, torna-se imprescindível a elaboração de um continuum na
história, no que se refere à relação entre o passado e o presente, assentada numa causalidade
estabelecida a partir da violência mítica levada a cabo pelos vencedores, ou para dizê-lo nos
termos das teses, apoiado no cortejo triunfal dos dominadores de todos os tempos. Assim,
79
Em carta a Adorno, em 22 de fevereiro de 1940, Benjamin afirma: “Acabo de terminar um certo números de teses
sobre o conceito de história. Por um lado, essas teses se aplicam às visões que se encontram esboçadas no capítulo I
do ‘Fuchs’. Por outro, devem servir como base teórica para o segundo ensaio sobre Baudelaire. Constituem uma
primeira tentativa de fixar um aspecto da história que deve estabelecer uma cisão inevitável entre nossa forma de ver
e as sobrevivências do positivismo que, na minha opinião, demarcam muito profundamente até os conceitos de
história que, em si mesmos, nos são os mais próximos e os mais familiares.” (BENJAMIN APUD LÖWY, 2005, p
.33, ênfase minha)
211
Benjamin (2012, p. 249) afirma, na tese XIII, que “a ideia de um progresso da humanidade na
história é inseparável da ideia de seu andamento no interior de um tempo vazio e homogêneo. A
crítica da ideia desse andamento deve estar na base da crítica da ideia do progresso em geral.”
A trinta quilômetros dos seus lutos, reclinado numa poltrona de couro, com uma carta
nas mãos, um homem ruivo, de olhos azuis, sonhava. Essa beleza que escalda a cabeça
de todos os que palmilham sonhos, iluminava, como uma lâmpada, o seu rosto saxão. A
carta que Harry Troeller, Superintendente da Cerro de Pasco Corporation, relia, viajava
com notícias vibrantes. Em Cleveland murmurava-se que a Cerro de Pasco Corporation
e a Picklands Mather Company iam fundir-se para consolidar um gigante: um dos
maiores produtores de minérios da América Latina. Troeller calculou: as vendas da
nova companhia superariam, largamente, os 500.000.000 de dólares. Mr. Koening tinha
razão. O mundo vivia na época dos megatérios. No universo dos gigantes, os fracos não
têm direito ao pasto. Seus olhos se irisaram. E se ele, Troeller, acrescentasse o ativo
desse fabuloso império, dono de dúzias de minas, estradas de ferro, fundições e portos,
um milhão de hectares? Não os quinhentos mil que aquele mestiço gordo do seu
advogado Carranza lhe afirmava que a cerca abarcaria, mas um milhão de hectares. E
sonhou com uma cerca infinita, vislumbrou uma nação encerrada por uma cerca mais
comprida que a neve. Um milhão de hectares no Peru? A Diretoria ficaria surpresa. Sim
senhor, diria Mr. Koening, e talvez se falasse, por um instante, em Harry, aquele rapaz
perdido nas anfratuosidades andinas. (BDPD, p. 193, ênfase minha)
Dito isso, o tempo diegético dos acontecimentos relacionados à ideia de progresso ora é
representado de maneira contínua ora de maneira circular, em pequenos fragmentos, até que
insurja uma quebra narrativa, uma interrupção, geralmente relacionado à outra história, a história
de luta dos camponeses quéchuas, como acontece em alguns capítulos, por exemplo, em todo o
capítulo 19 – Onde o leitor se distrairá com uma partida de pôquer. Em outras palavras, se, em
alguns capítulos e fragmentos, há uma breve representação linear ou circular do tempo para
evidenciar o caráter mítico da violência dos dominadores, como no caso da famosíssima moeda
do doutor Montenegro no primeiro capítulo, surge também, em contrapartida, um episódio de
choque com esse tempo, que pode se apresentar no mesmo capítulo ou em outro, como o caso do
episódio da saída de Hector Chacón da prisão, no capítulo 9 – Sobre as aventuras e desventuras
de uma bola de pano, que faz uma alusão contraproducente ao tempo mítico do episódio da
moeda, quando Chacón, ao retornar à Praça de Armas de Yanahuanca, rompe com imperturbável
passeio do “terno preto”, como se pode observar aqui:
lado sul cinquenta e cinco, o lado leste setenta e cinco e o lado oeste setenta e quatro:
duzentos e cinquenta e seis passos que o doutor repetia vinte vezes todas as seis da
tarde. O forasteiro começou a fumar. O Dr. Montenegro, míope para os peões,
prosseguiu. Héctor Chacón, o Olho-de-Coruja, começou a rir-se: sua gargalhada
construiu uma espécie de grito, uma contra-senha de animais conjurados, um segredo
aprendido com as corujas, espuma fustigada por uma risada seca como os disparos dos
guardas-civis e que caiu flagelada pelos espasmos de uma pavorosa alegria. Os
moradores assomaram as portas. No Posto, os guardas-civis arrecadaram os seus fuzis.
Meninos e cachorros pararam de perseguir-se. As velhas se benzeram. (BDPD, p. 52)
Ampliando para o painel geral dos subenredos, se tomarmos somente as derrotas dos
camponeses quéchuas em diversos episódios, a diegese parece conformar apenas uma
apresentação do tempo circular da violência mítica, evidenciando a vitória dos dominadores,
mas, em contrapartida, a apresentação se mostra fragmentada e descontínua, sempre com uma
interrupção pautada na resistência e força dos vencidos, interna e/ou externamente entre os
capítulos dispersos, como modo de contraposição temporal ao tempo circular e contínuo. Desse
modo, acontece, por exemplo, em alguns capítulos no decorrer do romance, com o momento de
irrupção da ação guia – a corrida de Fortunato em direção a Rancas para lutar contra o
desalojamento – da formação da grande imagem final da diegese.
Assim, o tempo diegético descontínuo de Bom dia para os defuntos se constitui num
contraponto ao modo de narrar vinculado à ideia de progresso. Caso o narrador tomasse a
posição dos vencedores, ou seja, narrasse pela empatia, o faria recorrendo somente aos grandes
acontecimentos relativos ao gamonalismo e à Cerro de Pasco Coporation, depositando
linearmente as ações num continuum diegético, onde as pequenas e ínfimas ações indígenas não
teriam importância, nem seriam mencionadas, e, caso as fossem, seriam apenas como butins.
Enfim, Bom dia para os defuntos detona o continuum temporal da representação do ponto de
vista da história dos vencedores. Primeiro, porque parte da perspectiva dos vencidos ao colocar
no centro da narrativa a ação dos camponeses quéchuas; segundo, porque o narrador, recolhendo
despojos e ruínas, narra os acontecimentos sem distinguir os grandes dos pequenos; e, por
último, porque confere, como critério para o ordenamento descontínuo do tempo diegético, o
caráter específico da luta dos vencidos andinos em cada acontecimento narrado.
reivindicar a perspectiva dos vencidos para Benjamin? O início da tese VIII pode ser uma chave
capaz de ajudar a elaborar uma resposta. Nele Benjamin (2012, p. 245) afirma que “a tradição
dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ (‘Ausnahmezustand’) em que vivemos é a
regra. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a esse ensinamento.” Ora,
se, de um lado, na tradição dos vencedores, a história é expressão do progresso da humanidade
porque corresponde a acumulação de vitórias das classes mais capazes, poderosas e, portanto,
melhores durante o transcorrer do tempo, de outro lado, na tradição dos vencidos, a história não
passa de um acúmulo de derrotas, que se expressa no presente como um estado de exceção
permanente. Portanto, a mudança fundamental se apresenta na forma como se configura o olhar
para o presente e para o passado a partir da experiência de localização do sujeito histórico na luta
de classes. Por isso, a tradição dos vencidos não consegue ver na história um progresso natural
da humanidade, mas uma catástrofe contínua.
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Nele está desenhado um anjo que
parece estar na iminência de se afastar de algo que ele encara fixamente. Seus olhos
estão escancarados, seu queixo caído e suas asas abertas. O anjo da história deve ter
esse aspecto. Seu semblante está voltado para o passado. Onde nós vemos uma cadeia
de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as arremessa a seus pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas
com tanta força que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o amontoado de
ruínas diante dele cresce até o céu. É a essa tempestade que chamamos progresso.
(BENJAMIN, 2012, p. 245-246, ênfase no original)
alguma novidade para o melhoramento humano; contudo, arregimenta, em vez disso, cada vez
mais ruínas sobre ruínas. Nessa lógica, as mortes e os massacres dos vencidos se constituem
como um “preço a ser pago” pelo processo de modernização da humanidade, ou nos termos de
Hegel, de acordo com Mate (2011, p. 30), “a história avança pisoteando as florzinhas na beira do
caminho”. O progresso se estabelece na história, portanto, como promoção de um futuro que
nada mais é que uma espécie de repetição do passado. Assim, na alegoria do “anjo da história”,
Os escombros (...) não são, como entre os pintores ou poetas românticos, um objeto de
contemplação estética, mas uma imagem dilacerante das catástrofes, dos massacres e de
outros ‘trabalhos sanguinários’ da história. Ao escolher essa expressão, Benjamin
continuava muito provavelmente um confronto implícito com a filosofia da história de
Hegel, essa imensa teodicéia racionalista que legitimava cada ‘ruína’ e cada infâmia
histórica como etapa necessária da marcha triunfal da Razão, como momento inevitável
do Progresso da humanidade rumo à Consciência da Liberdade: ‘Weltgeschichte ist
Weltgericht’ [‘A história universal é o tribunal universal’]. Segundo Hegel, a história
parece, à primeira vista, um imenso campo de ruínas, onde ressoam ‘as lamentações
anônimas dos indivíduos’, um altar em que ‘foram sacrificadas a felicidade dos povos...
e a virtude dos indivíduos’. Diante desse ‘quadro aterrorizante’, estaríamos inclinados a
‘uma dor profunda, inconsolável, que nada poderia apaziguar’, uma profunda revolta e
aflição moral. Ora, é preciso ir além desse ‘primeiro balanço negativo’, e se colocar
acima dessas ‘reflexões sentimentais’, para compreender o essencial, ou seja, que as
ruínas são apenas meios a serviço do destino substancial, do ‘verdadeiro resultado da
história universal’; a realização do Espírito universal. (LÖWY, 2005, p. 92)
A partir de uma forte herança romântica, Benjamin propõe uma volta ao passado como
modo de romper com a ideia de progresso e, assim, deter a catástrofe. Não se deve, contudo,
confundir a recusa benjaminiana do progresso como nostalgia de um passado pré-moderno como
preconizavam os românticos reacionários. Além disso, é importante frisar, Benjamin critica
categoricamente a ideia de progresso na história e não o progresso relativo ao conhecimento e à
técnica enquanto desenvolvimento intelectual e social coletivo, como se pode observar em
diversos ensaios, por exemplo, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Desse
modo, a visão de mundo romântica presente em Benjamin se inserta no chamado romantismo
revolucionário, que, de acordo com Löwy (2005, p. 18), pressupõe uma crítica cultural ao
capitalismo e à civilização moderna em nome de valores pré-modernos como forma de protesto
contra a mecanização degradável da vida, a coisificação das relações sociais, a dissipação da
comunidade e o desencantamento do mundo. Assim, “o objetivo não é uma volta ao passado,
mas um desvio por este, rumo a um futuro utópico” (ibid., p. 19, ênfase no original).
218
Duas alegorias benjaminianas são excelentes para expressar essa estratégia de trajetória
em busca do futuro revolucionário. A primeira retoma uma famosa alegoria de Marx, propondo
uma inversão no seu sentido, presente nos materiais preparatórios das teses sobre o conceito de
história: “Marx diz que as revoluções são as locomotivas da história universal. Mas talvez as
coisas sejam de outra maneira. Talvez as revoluções consistam no gesto, executado pela
humanidade que viaja nesse trem, de puxar o freio de emergência” (BENJAMIN APUD MATE,
2011, p. 398). Quer dizer, para interromper a catástrofe é necessário urgentemente interromper a
lógica do progresso da humanidade na história como motor da ação humana, para tanto, é
necessário à retomada de valores pré-modernos, como veremos com mais detalhes à frente, como
modo de cavar no passado a imagem inspiradora de um projeto inacabado. A segunda alegoria,
por sua vez, é mais explícita quanto à necessidade desse desvio ao passado como parte essencial
da trajetória para arrancar certo futuro. Dessa vez, a imagem alegórica construída se estabelece
em relação às trajetórias da navegação, quando Benjamin, para expressar como funciona o
método de interpretar a história de sua pesquisa do livro das Passagens, registra o seguinte
fragmento:
Comparação das tentativas dos outros com empreendimentos de navegação, nos quais
os navios são desviados do Pólo Norte magnético. Encontrar esse Pólo Norte. O que são
desvios para os outros, são para mim os dados que determinam a minha rota. – Construo
meus cálculos sobre os diferenciais de tempo – que, para os outros, perturbam as
‘grandes linhas’ da pesquisa. [N 1, 2] (BENJAMIN, 2007, p. 499, ênfase do autor)
Nessa acepção, Benjamin dedicou a primeira tese sobre o conceito de história para
explicitar o papel do messianismo por meio da alegoria do autômato enxadrista como sendo o
“materialismo histórico”, que ora é um fantoche comandado pela teologia, ora toma esta a seu
serviço81. Com o uso das aspas na referida tese, Benjamin indica que o “materialismo histórico”
receberá no decorrer das teses uma crítica e uma reformulação que tem como epicentro o
rompimento com a ideia de progresso, dispensando a crença em um télos inexistente na dinâmica
histórica. Desse modo, o “materialismo histórico” deve deixar de ser um autômato que
mecanicamente espera a máquina da história garantir a vitória do comunismo, para tanto, deve
“tomar a seu serviço à pequena e feia teologia”. Mas, qual propósito e efetividade,
especificamente, a teologia poderia proporcionar ao materialismo histórico? Fundamentalmente,
o de (re)estabelecer a potência e a força revolucionária da dimensão política do ocorrido para
intervenção no presente, por meio da rememoração e da redenção, devido à condição messiânica
de abertura do passado.
80
É nesse sentido que Benjamin, retirando uma frase de seu contexto original para inseri-la em outro com o objetivo
de insertar um novo sentido, procedimento caro à citação benjaminiana, traz o seguinte trecho de Hegel apud
Benjamin (2012, p. 242), como epígrafe da tese IV: “Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e em seguida
o reino de Deus virá por si mesmo”. Assim, é possível afirmar, na esteira de Löwy, que Benjamin “é marxista e
teólogo”, mesmo que essas concepções de mundo sejam aparentemente contraditórias, “ele as reinterpreta,
transforma e situa numa relação de esclarecimento recíproco que permite articulá-las de forma coerente. Ele gostava
de se comparar a Janus, que com uma das faces olha para Moscou e com a outra para Jerusalém. Mas se esquece
frequentemente de que o deus romano tinha duas faces mas uma única cabeça: marxismo e messianismo são apenas
duas expressões – Ausdrücke, um dos termos favoritos de Benjamin – de um único pensamento. Um pensamento
inovador, original, inclassificável, que se caracteriza pelo que ele chama, numa carta a Scholem de maio de 1926, de
‘paradoxal reversibilidade recíproca’ (Umschlagen) do político no religioso e vice-versa.” (LÖWY, 2005, p. 36-37,
ênfase do autor)
81
Tese I: “É conhecido que deve ter havido um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance
de um jogador de xadrez com um contralance que lhe assegurasse a vitória na partida. Um fantoche vestido à turca,
com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado sobre uma grande mesa. Um sistema de espelhos
criava a ilusão de que a mesa era totalmente transparente. Na verdade, um anão corcunda se escondia nela, um
mestre no xadrez, que dirigia com cordões a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse
mecanismo. O fantoche, que chamamos ‘materialismo histórico’, deve ganhar sempre. Ele pode enfrentar qualquer
desafio, desde que tome a seu serviço a teologia, a qual é hoje reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-
se diretamente.” (BENJAMIN, 2012, p. 241)
221
passado morto em dois sentidos: primeiro, como fato consumado; segundo, como uma escritura
hermeneuticamente fechada para as potências latentes de algo inacabado relativo à dimensão do
não-realizado. A primeira morte se completa, por meio da violência mítica, com o cortejo
triunfal dos dominadores, a segunda pela reconstrução histórica levada a cabo pelo historiador
com identificação afetiva com os vencedores. Em síntese, na perspectiva positivista, o passado é
reconstruído pelo presente como uma imagem eterna e acabada como modo de reforçar a
mesmidade da violência e do domínio dos vencedores, isto é, a vitória da catástrofe. Renegando,
assim, as dimensões revolucionárias não realizadas que podem ser trazidas à tona pela memória.
Ao contrário da ideia de uma causalidade forjada pela força dos vencedores, que
enredaria o presente dado ao passado imediato, e o passado imediato ao passado adjacente a este,
e assim ad infinitum, tendo como critério apenas a facticidade de grandes acontecimentos,
Benjamin afirma que cada ocorrido do passado, principalmente os pequenos acontecimentos
tidos como “irrelevantes”, possui um índice secreto relacionado ao não-realizado que incita a
construção de uma imagem com certo presente dado, não importando, para tanto, o tamanho da
distância entre o referido passado e o presente visado. Nesse índice secreto do ocorrido, há
asseverações condensadas reclamando seus direitos a esse presente visado, sobretudo, o direito
de realizar o projeto frustrado do passado das classes massacradas, que contém diversos desejos
e necessidades, podendo ser abreviado no direito à felicidade. Assim, quando um ocorrido do
passado reclama a certo agora do presente esse direito, formando uma imagem única e fugaz, é
porque foi assegurada à classe oprimida desse agora uma frágil força pelos vencidos do ocorrido
rememorado. Passando da análise da felicidade na psicologia individual para a análise da
felicidade no campo coletivo, como modo de revelar o conteúdo teológico do passado, Benjamin
sustenta exatamente isso na tese II, como se pode observar:
‘Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana’, diz Lotze, ‘está,... ao lado de
222
tanto egoísmo no indivíduo, uma ausência, no geral, de inveja de cada presente com
relação a seu futuro’. Essa reflexão conduz-nos a pensar que a imagem da felicidade que
nutrimos é totalmente tingida pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa
própria existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja existe apenas no ar que
respiramos com pessoas com as quais poderíamos ter conversado, com mulheres que
poderiam ter se entregado a nós. Em outras palavras, a imagem da felicidade está
indissoluvelmente ligada à da redenção. O mesmo ocorre com a representação do
passado, que a história transforma em seu objeto. O passado traz consigo um índice
secreto, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que
envolveu nossos antepassados? Não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos,
ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas
não chegaram a conhecer? Se assim é, então existe um encontro secreto marcado entre
as gerações precedentes e a nossa. Então, alguém na terra esteve à nossa espera. Se
assim é, foi-nos concedida, como a cada geração anterior à nossa, uma frágil força
messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado
impunemente. O materialista histórico sabe disso. (BENJAMIN, 2012, p. 241-242,
ênfase no original)
Para isto, deve-se conceber o passado numa dimensão teológica, a partir de uma incitação
materialista de injustiça do incidido, não apenas no aspecto fugidio e dinâmico de sua imagem,
mas no atributo de abertura do ocorrido, no que se refere a seu inacabamento para a história. Ou
seja, para Benjamin, o passado não deve apenas ser tratado como um objeto científico que, por
meio de procedimentos redutivos e parciais, produz um resultado positivo, negando, por sua vez,
os resultados negativos que exigem respostas no presente, como se fosse possível, por exemplo,
abstrair a vinculação dos sujeitos históricos do agora com os sujeitos do ocorrido, começando
pelo próprio historiador. Essa abertura do passado se torna possível por intermédio da
rememoração82. Nesse sentido, Benjamin dedica o seguinte fragmento do livro das Passagens
para fazer um comentário revelador dessa concepção a partir de uma crítica de Horkheimer
formulada numa carta:
82
Nos textos em português brasileiro, temos, principalmente, três soluções tradutórias para o termo em alemão
Eingedenken: rememoração, recordação e reminiscência. Utilizo, fundamentalmente, a primeira solução.
Ocasionalmente, as demais são utilizadas em algumas citações.
224
como injustiça.
Olhou entediado para a planura por onde avançava a tartaruguenta Guarda Republicana.
Era uma chateação. Mas aceitou-a filosoficamente, reclinou-se no jipe, puxou um
charuto, acendeu-o e soprou a fumaça.
Somos gente sossegada,
Queremos flores e luar;
Mas se quiserem trompada
Temos muita para dar.
trauteou Guillermo o Carniceiro recordando carinhosamente o escultor da celebérrima
valsa: o Major Karamanduka. Durante outra marcha, fazia quarenta anos, o rei do
pagode, concebeu a letra imortal: no dia em que a Guarda Republicana sob ordens do
Major Karamanduka viajou para massacrar os operários de Huacho que reclamavam
oito horas de trabalho.
A Republicana, tropa ruim, avançava a passo de formiga.
Me alcança a garrafinha,
Me alcança a garrafinha
cantarolou o Comandante Bodenaco. O homem de armas gosta de música. Onze guerras
já teve o Peru. O penhascal vomitou o Fortunato. Vestia umas calças manchadas de
graxa e uma suja camisa de quadrinhos. Ganhamos a guerra de 1827 com a Bolívia. O
passeio pelo Titicaca foi pago pelos perdedores. (BDPD, p. 207, ênfase no original)
O narrador continua apresentando a memória oficial das guerras a partir da canção dos
vencedores, intercalando a todo instante com a ação da chegada de Fortunato em Rancas, como
se observa no último parágrafo do trecho acima. Para os vencedores, houve apenas onze guerras
envolvendo o Peru. Disso resulta uma sequência alucinatória de citações memoriais de cada
guerra: a guerra com a Bolívia em 1827; a guerra com a Colômbia em 1828: “perdemos a guerra
de 1828 com a Grã-Colômbia: um general que chegou a Presidente atraiçoou outro general”
(BDPD, p. 207); a guerra de 1838 novamente com a Bolívia; a guerra contra o Chile em 1837:
“Ganhamos a guerra (...), mas o Peru permitiu que o exército chileno, já cercado, se retirasse
inteiro, entre marchas triunfais” (BDPD, p. 207); a guerra contra o Chile novamente em 1839:
“Perdemos a guerra de 1839, de novo com o Chile: está claro que entre os vencedores se
achavam dois futuros presidentes do Peru, Castilla e Vivanco” (BDPD, p. 207-208); de novo
outra guerra com a Bolívia: “tornamos a perder a guerra de 1841, de novo com a Bolívia: alguém
atirou pelas costas no Presidente Gamarra em plena batalha de Ingávi” (BDPD, p. 208); e, assim,
segue a enumeração das guerras, evidenciando a derrota do Peru em sua grande maioria.
imediatamente outro tipo de memória, troca-se a perspectiva da voz narrativa dos vencedores
pelo momento de contraposição da memória sufocada dos sem nomes. Começa, então, o trabalho
de rememoração. A memória dos vencidos evoca as guerras silenciosas no próprio território
nacional contra os trabalhadores peruanos e, principalmente, contra os indígenas quéchuas.
Assim, de maneira intercalada, continua a narração relacionando a ação presente de Fortunato
em Rancas com o passado de guerras, como demonstra o seguinte trecho:
Rancas, aquele ocorrido que fez emergir a memória involuntária e gerar o processo de
rememoração do narrador, a saber, a revolução republicana peruana, isto é, a Batalha de Junín.
É no campo da diferença entre história e memória que se localiza a cisão entre as duas
tradições citadas por Benjamin no decorrer de sua obra: a mera tradição, associada ao
tradicionalismo dos vencedores, e a tradição autêntica, associada à dinâmica revolucionária dos
vencidos. Se a tradição reconstrói a história, assentada na repetição fatídica da violência mítica,
engendrando um continuum como transmissão e perpetuação da catástrofe, de maneira
contraproducente, a tradição autêntica constrói a história na descontinuidade a partir da força
contida no ocorrido e transmitida à geração do agora pela imagem da história sufocada dos sem
nomes. Nas notas preparatórias para as teses, Benjamin apud Mate (2011, p. 410) afirma que “ao
passo que a imagem do continuum nivela tudo por baixo, a imagem do descontinuum é a base da
tradição autêntica”. Nesse sentido, o historiador benjaminiano procura na imagem do passado da
tradição autêntica, que designa um agora do presente não contíguo ao ocorrido, não a mera
contemplação ou pesquisa histórica da memória das injustiças pretéritas, mas a salvação dos
fenômenos do destino trágico conferido pelos vencedores e, com isso, arrancar a novidade capaz
de provocar a interrupção dessa tradição, conforme garante Benjamin, num fragmento das
Passagens, ao afirmar que os fenômenos são salvos não apenas “do descrédito e do desprezo em
que caíram, mas da catástrofe (...) São salvos pela demonstração de que existe neles uma ruptura
ou descontinuidade [Sprung]” [N 9, 4] (BENJAMIN, 2007, p. 515). Assim, há uma
Se, para Marx, os homens fazem sua própria história, e a emancipação dos trabalhadores
é obra dos próprios trabalhadores, sustenta Löwy, para Benjamin, similarmente numa versão
profana, “a redenção é uma autoredenção”. Todavia, além da dimensão teológica, há uma
diferença crucial entre Marx e Benjamin quanto à “importância da exigência que vem do
passado: não haverá redenção para a geração presente se ela fizer pouco caso da reivindicação
(Anspruch) das vítimas da história” (2005, p. 52). Portanto, a redenção dos oprimidos do
presente pressupõe a redenção dos vencidos do passado.
Caso se queira considerar a história como um texto, vale o que um autor recente diz dos
textos literários: que o passado depositou neles imagens que poderíamos comparar com
as que são captadas por uma placa fotossensível: ‘Só o futuro dispõe de reveladores
suficientemente potentes para fazer com que a imagem captada se torne visível com
todos os seus detalhes. Há páginas de Marivaux ou de Rousseau prenhes de um sentido
oculto que os leitores contemporâneos dos autores não puderam decifrar devidamente’
[Monglond (...)]. O método histórico é um método filológico e a esse método subjaz o
livro da vida. ‘Ler o que nunca foi escrito’, se diz em Hofmannsthal. O leitor no qual
230
trecho:
Ali [no Fragmento teológico-político] ele distingue uma ordem profana, que é a
felicidade dos vivos, e uma ordem messiânica, que também leva em conta a felicidade
dos mortos. Ambas as ordens estão representadas por flechas que se movem em
paralelo, mas em sentidos opostos: uma tende à felicidade e outra à redenção. O
importante nesta composição é a ideia de que a ordem da redenção (o destino da
felicidade dos fracassados) é fundamental para a felicidade dos vivos (ordem profana).
Se elas nada tivessem a ver uma com a outra, então seria preciso dar razão a Hegel
(quando diz que a história avança pisoteando as florzinhas na beira do caminho) ou a
Darwin (quando diz que só sobrevivem os melhores ou os mais fortes). Se os mortos
não importam, então, a felicidade não é coisa do homem, mas do sobrevivente. Se
importa a vida de todos, então, relacionaremos a vida frustradas dos mortos com os
interesses dos vivos, negando-nos a seguir um projeto que pressupõe o desprezo pelos
caídos. Quando damos o passo de esquecer a morte, perpetramos um crime
hermenêutico que se soma ao crime físico. Nada impede, então, que apliquemos à vida
individual ou coletiva o princípio darwinista de que o sentido é encarnado e sinalizado
pelos melhores ou mais fortes. Por isso, a ordem da redenção, que confere importância
hermenêutica às florzinhas do caminho, é decisivo para o destino dos vivos. (MATE,
2011, p. 30, inclusão dos colchetes minha)
Portanto, como um profeta do passado, de modo semelhante como “os adivinhos que
interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem
como vazio nem como homogêneo” (BENJAMIN, 2012, p. 252), o historiador materialista
histórico deve se voltar para o ocorrido, visando no passado interdito das gerações dos oprimidos
encontrar uma força capaz de interromper a catástrofe no agora. Nessa acepção, assim como “era
proibido aos judeus investigar o futuro” (ibid., p. 252), não cabe ao historiador revolucionário
232
procurar forças na imaginação da libertação das gerações futuras, como faziam os partidários da
socialdemocracia e do marxismo vulgar, pois igualmente como os frequentadores da Torá, que,
por intermédio da prece, desencantavam o futuro, vivenciando o tempo numa plenitude e
heterogeneidade peculiar capaz de prefigurar a possibilidade do Messias penetrar a “porta
estreita” do presente em cada instante transcorrido, assim deve ser experimentado o tempo da
rememoração da história para o historiador benjaminiano. Caso contrário, corta-se a
comunicação descontínua da frágil força messiânica dos vencidos, conforme Benjamin assegura
na tese XII:
A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio,
mas o preenchido de ‘tempo de agora’ (Jetztzeit). Assim, a Roma antiga era para
Robespierre um passado carregado de ‘tempo de agora’, que ele fez explodir para fora
do continuum da história. A Revolução Francesa via-se como uma Roma ressurreta. Ela
citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário do passado. A moda tem um faro
para o atual, onde quer que ele se oculte na folhagem do antigamente. Ela é um salto de
233
tigre em direção ao passado. Ele se dá, porém, numa arena comandada pela classe
dominante. O mesmo salto, sob o céu aberto da história, é o salto dialético da
Revolução, como concebeu Marx. (BENJAMIN, 2012, p. 249)
Com o passado – matéria da história – podemos fazer duas coisas muito diferentes:
construir e reconstruir. A reconstrução é a restauração do que alguma vez foi. A
construção, pelo contrário, é fazer com as ruínas uma criação, uma obra nova. O que
pode nos levar para um sentido ou outro é a atenção que prestamos ao agora que não é
mais do que aquilo que o passado ruinoso tem de novidade, ainda que seja em potencial.
A política, como a moda, se nutre do passado, cita o passado. A citação que a moda faz
não produz nada novo porque elege aqueles momentos que confirmam a segurança e o
conforto daqueles que ela veste. Também a Revolução Francesa citou o passado
romano, mas buscando com isso um estímulo para as novidades que queria aportar à sua
época. Em ambos os casos, um salto de tigre ao passado, só que um para divertir os que
mandam e o outro para mudar seu mandato. O salto produtivo, revolucionário, ao
passado é o que se apropria do que o passado tem de agora, isto é, de atualidade
pendente. (MATE, 2011, p. 291, itálico do autor e negrito meu)
Portanto, para captar o tempo de agora, o historiador benjaminiano precisa construir uma
imagem do presente, por intermédio da rememoração, a partir do gesto hermenêutico do salto de
tigre em direção ao passado, arrancando o ocorrido de seu contexto, no índice histórico capaz de
colocar o presente dado em xeque, ou seja, “a apresentação materialista da história leva o
passado a colocar o presente numa situação crítica.” [N 7a, 5] (BENJAMIN, 2007, p. 513).
Como um catador, que recolhe os desejos e cadáveres do passado, ou, com um colecionador, que
reúne as ruínas do pretérito, o historiador benjaminiano faz do gesto hermenêutico de salvação
do ocorrido “um gesto político: o historiador não suja as mãos em vão ao ter que recolher
dejetos, ruínas e cadáveres” (MATE, 2011, p. 300).
234
Nessa perspectiva, o tempo de agora só pode se apresentar numa imagem dialética, isto é,
quando a imagem do ocorrido encontra um agora no presente dado a partir da ambivalência
crucial de um índice histórico, construindo uma imagem única e fugidia carregada de tensões, a
qual aponta a possibilidade de redenção do passado e, ao mesmo tempo, de transformação do
presente. Nesse momento, “o presente (...) polariza o acontecimento em história anterior e
história posterior.” [N 7a, 8] (BENJAMIN, 2007, p. 513). Ou seja, nos termos de Benjamin, a
partir do seguinte fragmento do livro das Passagens,
O índice histórico das imagens diz, pois, não apenas que elas pertencem a uma
determinada época, mas, sobretudo, que elas só se tornam legíveis numa determinada
época. E atingir essa ‘legibilidade’ constitui um determinado ponto crítico específico do
movimento em seu interior. Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhe
são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a
verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir. (Esta explosão, e nada mais, é
a morte da intentio, que coincide com o nascimento do tempo histórico autêntico, o
tempo da verdade.) Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o
presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido
encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a
imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o
passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza
temporal, mas imagética. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas,
isto é, imagens não-arcaicas. A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da
cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso,
subjacente a toda leitura. [N 3, 1] (BENJAMIN, 2007, p. 504-505)
apenas como expediente, de acordo com Benjamin. Diferente de selecionar um objeto histórico
para reinseri-lo novamente no continuum emendado pela empatia do historiador oficial do
presente, o historiador materialista histórico “não escolhe aleatoriamente seus objetos”. Ele “não
os toma, e sim os arranca, por uma explosão, do curso da história. Seus procedimentos são mais
abrangentes, seus acontecimentos mais essenciais.” [N 10a, 1] (BENJAMIN, 2007, p. 517).
Nesse sentido,
83
Tradução minha: “El concepto de mónada enfatiza el carácter negativo de nuestra universalidad. La monadología
en Benjamin remite a una teoría del conocimiento, esto es, al encuentro entre un sujeto insatisfecho con su presente
(de ahí el concepto de necesidad que anima al ‘materialista histórico’) y un objeto que tampoco tiene lugar en este
presente (‘die unterdrückte Vergangenheit’). Desde el momento en que nuestro sujeto asume la razón del objeto, es
decir, cuando hace suyos los derechos insatisfechos de los vencidos, lo que está postulando es un tipo de presente o,
si se quiere, un tipo de quehacer político cuyo progreso no seguiría cobrándose víctimas sino que se articularía
teniendo en cuenta los intereses de los herederos de los vencidos de la história: los pobres y marginados. Es una
universalidad negativa porque lo que aquí se postula no es la mera alteridad, ni el mero reconocimiento del otro,
sino que el ego asuma la razón del otro, haga suya la causa del otro. Y puesto que estamos hablando en términos
históricos, en los que el otro es un ser desigual, de lo que se trata es de que el ego haga suya la causa del
237
Em Bom dia para os defuntos, a história da luta dos camponeses quéchuas inscrita na
estética romanesca scorziana se apresenta, como dito anteriormente, como uma grande imagem
após a montagem dos fragmentos do quebra-cabeça realizada pelo leitor. O núcleo duro dessa
imagem se forma após a leitura dos dois últimos capítulos do subenredo [2]: o capítulo 32 –
Apresentação de Guillermo o Carniceiro ou Guillermo o Cumpridor, ao gosto da freguesia – e o
capítulo 34 – O que Fortunato e o procurador de Rancas conversaram. Neles se apresentam o
momento da ação de tensão do desalojamento e, em seguida, o massacre dos camponeses de
Rancas. A imagem histórica do romance, no entanto, como vimos mais acima, não é formada
apenas por esse presente diegético, diversos estilhaços do passado andino se prefiguram tentando
penetrar o agora da história dos ranquenhos por intermédio da rememoração do narrador,
transfigurado numa voz coletiva andina. Contudo, somente uma imagem do ocorrido penetra o
presente da luta dos ranquenhos: a revolução republicana peruana dirigida por Símon Bolívar.
O narrador onisciente enquanto voz coletiva andina, por meio da rememoração das
guerras pretéritas, como um espécime de colecionador de materiais do passado, aproximando-se
injustamente desigual. Esa asunción, que conlleva la negación de sí mismo, es constitutiva de la universalidad (algo
más que mera moralina) pues sin ella no hay manera de romper la lógica luctuosa de la historia que sólo sabe
progresar cobrándose víctimas.”
238
Um cavaleiro aproximou-se.
– O inimigo está atravessando Reyes, meu General – disse um ajudante-de-campo
encanecido pela poeira.
Bolívar ensombreceu. Canterac esperava! No seu rosto pulverizaram-se mil quilômetros
de marcha inútil.
– Que pensa, meu General?
Sucre via-se pequeno, fatigado.
– É preciso provocar a luta de todas as maneiras – disse Bolívar entre-dentes. – A que
distância marcha a infantaria?
– A duas léguas, meu General. – O uniforme do General Lara não se via sob o poncho
escuro.
– Ataque com os hussardos – ordenou Bolívar.
Lara deu as ordens. Saíram em disparada os ajudantes-de-campo. Da abertura de
Cachamarca viu a cavalaria desenvolver-se. Os esquadrões ganhavam lentamente a
altiplanura. A três quilômetros a poeira levantada por Reyes se deteve. Canterac
mostrou a garupa. O horizonte se eriçava de ginetes vertiginosos. Mil e quinhetos
husssardos se abriram como as penas de um gigantesco pavão de morte. Os hussardos
gostaram da beleza da sua linha de batalha e avançaram trezentos metros a trote, e de
súbito picaram as esporas: a altiplanície exalou um relâmpago de patas com as lanças
baixas.
– Que aconteceu? Por que a nossa cavalaria não toma posição? – empalideceu Bolívar.
Quem não empalideceu foi Guillermo o Cumpridor. Olhou entediado para a planura por
onde avançava a tartaruguenta Guarda Republicana. Era uma chateação. Mas aceitou-a
filosoficamente, reclinou-se no jipe, puxou um charuto, acendeu-o e soprou a fumaça.
(BDPD, p.206, ênfase minha)
A partir da tensão entre o ponto culminante dos dois conflitos, quer dizer, do momento de
perigo para os combatentes da classe oprimida do ocorrido e do agora, a simultaneidade das
ações de dois tempos distintos num único espaço diegético constrói uma imagem onde, apesar da
diacronia temporal do ocorrido, apresenta-se um índice histórico do passado que estabelece uma
sincronia com o presente. Caso contrário, não haveria razão para a conformação dessa imagem.
A partir dessa constatação, cabe perguntar, então: por que o narrador apresenta um encontro
239
imagético entre um passado distante e o presente de luta diegético? O que se busca exatamente
nessa frágil imagem evocada entre o ocorrido e o agora? Enfim, qual o índice secreto que liga os
dois acontecimentos? Recorrendo aos fragmentos do romance se verifica que a resistência dos
camponeses quéchuas contra a violência dos latifundiários e da mineradora Cerro de Pasco
Corporation, principalmente quando os comuneiros se encontram no limiar entre a condição de
homens-toupeiras e de homens-que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, reside na
procura de coragem e força como grandeza humana, características desta última condição, como
modo de romper de vez com a primeira e, assim, poder construir uma grande luta contra a
violência representada no romance. Desse modo, no capítulo 30 – No qual se aprenderá a não
desdenhável utilidade dos quebra-pernas – após o conflito com a mineradora causado pela
instalação de quebra-pernas, para que não entrasse nenhum pasto dos camponeses, em um
terreno tradicional comuneiro abarcado pela Cerca, o narrador expressa a necessidade de buscar
a grandeza humana que estimula a luta depois que “os ranquenhos tensos e resolvidos a lutar”,
num primeiro momento, acabam desanimando quando “os vagões vomitaram guardas
republicanos e cem homens da Companhia” (BDPD, p. 193), como se pode observar a seguir:
Diante disso, onde encontrar “a centelha de uma grandeza” se não na própria tradição dos
oprimidos? E, nessa acepção, como encontrar a coragem e a força necessária para a luta se não
no choque imagético do encontro do ocorrido na Batalha de Junín com o presente da ação de
resistência à desapropriação de Rancas? Nessa perspectiva, em semelhança com os conceitos
benjaminianas, a imagem dialética formada pela rememoração do narrador traz consigo um
índice histórico pautado na coragem da grandeza das lutas pretéritas, apontando para o agora
diegético uma frágil força da tradição dos vencidos, conforme afirma Bolívar, na frase grifada na
citação mais acima, quando Sucre se sente pequeno e fatigado frente à tropa dos monarquistas
espanhóis: É preciso provocar a luta de todas as maneiras. Assim, por meio da apresentação da
imagem dialética, entre o dito e o não dito, na tensão crucial dos conflitos apresentados,
240
À vista disso, em mais um trecho do capítulo final do romance, quando Fortunato lança
um olhar apreensivo para entrada de Rancas no momento da chegada da Guarda de Assalto, o
narrador segue apresentando a imagem dialética por meio da polarização do acontecimento do
presente diegético em sua pré-história e pós-história, na esteira do historiador materialista
histórico benjaminiano, construindo uma ironia com as consignas da promessa de felicidade da
aplicação da revolução republicana no Peru:
O velho divisou os telhados de Rancas. Parou junto a um penhasco. Cinquenta mil dias
antes o General Bolívar tinha-se detido ali: na manhã da sua entrada em Rancas. Bolívar
queria Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Que engraçado! Deram-nos Infantaria,
Cavalaria, Artilharia. Fortunato avançou, afogando-se na ruazinha. No gesso da sua
cara viram a desgraça.
– Já vêm. A Guarda de Assalto está chegando!
Respirava com a boca aberta.
– Por onde?
– Por Paria!
Sentou-se, esgotado. Coisa de cinquenta mil dias antes o Major Razúri – cinco tardes
depois entestaria a carga dos Hussardos do Peru – tinha evitado ali o coice de um
cavalo xucro assustado por uma borboleta.
241
do narrador enquanto voz narrativa do capítulo anterior deste estudo, é possível perceber as
nuanças operadas pelo narrador com relação à posição narrativa para articular a construção da
imagem dialética esteticamente, já que há uma dinâmica própria entre o distanciamento e a
aproximação do narrador com a ação dos personagens. Assim, o narrador, como uma espécie de
cronista cinematográfico, ora apresenta o choque da imagem, ora nos coloca no centro da ação,
dissolvendo, às vezes, a distinção entre ação e comentário, mostrando que o índice de grandeza
humana trazido pela rememoração e pela formação da imagem dialética não alcança diretamente
os personagens. Esse movimento peculiar do narrador scorziano encontra similaridade com a
descrição feita por Adorno (2003, p. 61) sobre os procedimentos do narrador contemporâneo:
“no romance tradicional, essa distância era fixa. Agora ela varia como as posições da câmara no
cinema: o leitor é ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário até o palco, os
bastidores e a casa de máquinas”. Enfim, o procedimento do narrador scorziano na construção da
imagem dialética opera rompendo com a posição ilusória do romance tradicional, conforme
analisei anteriormente, exigindo do leitor uma participação ativa.
Assim, voltando à trama, o narrador nos leva de novo apenas ao palco do acontecimento
do presente romanesco, a ação de desapropriação de Rancas, depois de apresentar o índice
histórico dos vencidos do passado por meio da rememoração. Não tarda para a diegese colocar à
frente o massacre dos ranquenhos, apresentando a vitória novamente da catástrofe. Advém,
então, curiosamente, a conversa entre os defuntos, o evento diegético mais importante do
realismo maravilhoso do romance scorziano, pois, de certa forma, como veremos no último
ponto deste capítulo, o narrador constrói, com a conversa entre os viventes-mortos, uma imagem
significativa da memória política dos camponeses quéchuas, a memória de uma promessa não
cumprida e de um sofrimento inacabado, isto é, uma memória contra à catástrofe que pode
apontar um agora do futuro.
Dito isso, para finalizar, a partir da performance do foco narrativo como voz coletiva dos
andinos, o narrador, como um cronista benjaminiano, apresenta esteticamente a história dos
camponeses quéchuas na forma de expressão de Bom dia para os defuntos como uma mônada,
na acepção de Walter Benjamin, na medida em que, a partir da singularidade da história de luta
dos viventes andinos contra os latifundiários e o imperialismo da Cerro de Pasco Corporation
inscrita no romance scorziano, prefigura-se uma universalidade negativa da problemática do
capitalismo tardio na dimensão desigual e combinada em sua dinâmica nos países do chamado
“terceiro mundo”, sobretudo, os países latino-americanos.
243
Bom dia para os defuntos foi escrito em Paris durante os últimos anos da década de 60 do
século XX, quando Manuel Scorza havia deixado o Peru após a participação nas lutas
campesinas andinas como espécie de autoexílio. Nesse cenário, como analisado no segundo
capítulo deste estudo, os acontecimentos sociopolíticos dos camponeses quéchuas peruanos
foram plasmados ficcionalmente no contexto internacional do boom da nova narrativa hispano-
americana, por outro lado, paradoxalmente, manteve elementos de outra tradição estética, o
indigenismo peruano. Essa dinâmica de entrada no circuito global e, ao mesmo tempo, como
espécie de rompimento-permanência, compor ainda um movimento literário de caráter
eminentemente local pressupõe uma operação cultural também ambivalente a partir do diálogo e
conflito entre tradição e modernidade, ou seja, o romance scorziano pressupõe uma operação
cultural inscrita num entre-lugar do discurso latino-americano.
Nesse sentido, concebido transculturalmente como uma literatura heterogênea, Bom dia
para os defuntos pressupõe uma devoração selvagem das forças culturais ocidentais para a
plasmação ficcional da estância sociocultural andina, isto é, pressupõe uma operação cultural
antropofágica como solução que politiza a estética em resposta à catástrofe enredada pela
violência do capitalismo tardio na dimensão desigual e combinada entre o arcaico e o moderno.
Assim, como veremos, a antropofagia será utilizada aqui no sentido de uma estratégia cultural
que resulta numa transculturação narrativa, lembrando o conceito de Ángel Rama, considerando
que
244
No Manifesto Pau-Brasil, expondo pela primeira vez uma reivindicação estética com
base no primitivismo, Oswald articulou, de acordo com Nunes (1979, p. 33, ênfase do autor),
uma estratégia de liberação da originalidade nativa, que “compreendia os elementos populares e
etnográficos da cultura brasileira”, da repressão levada a cabo pelas forças doutorescas e
idealistas, ligadas à elite latifundiária, como forma de fazer brotar certa pureza dos elementos
nativos da vida social e cultural, atributo principal da poesia Pau-Brasil. Com isso, abria-se a
possibilidade de impregnação dos artefatos da “civilização técnico-industrial” com elementos
primitivos como modo de integrá-los às paisagens locais. Desse modo, “depois de
intelectualmente digeridos, tornar-se-iam também fatos de nossa cultura, esteticamente
significativos”. Assim, o primitivismo oswaldiano do Manifesto do Pau-Brasil se aproxima de
uma estética do equilíbrio, ou seja, “ele pretende realizar, na expressão, o mesmo acordo
harmonioso que se produziria na realidade, graças a um processo de assimilação espontânea,
245
entre a cultura nativa e a cultura intelectual, entre ‘a floresta e a escola’.” (ibid., p. 33).
84
Em Lei do homem. Lei do antropófago: o direito antropofágico como direito sonâmbulo, Alexandre Nodari, no
seguinte trecho, que podemos tomar aqui como síntese, explicita o direito antropofágico como direito sonâmbulo a
partir do Manifesto Antropófago: “A segunda menção é o exemplo de direito a ser seguido que Oswald encontra no
passado. Não se trata, porém, de um direito positivo, de um direito com certos preceitos, mas um outro modo de
ação do Direito: ‘Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na
Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós’ (grifo meu). Lembremos da
imagem ocidental da Justiça: alguém que tem de decidir, de aplicar a lei, mesmo estando com os olhos vendados. O
Direito ocidental está sempre de vigília, mesmo quando é incapaz de fazê-lo, mesmo sendo incapaz de vigiar – por
não poder ver. Essa é a verdade que se expressa no princípio basilar do Direito segundo o qual o juiz não pode
deixar de decidir, mesmo quando a lei for omissa. Um direito que dorme, um direito sonâmbulo é, ao contrário, um
direito em que Cristo pode nascer impropriamente na Bahia, em que a subsunção pode falhar. Juntando as três
referências do Manifesto Antropófago ao Direito, poderíamos dizer provisoriamente que, no Direito tal como existe,
mesmo o erro é imutável, faz coisa julgada, torna-se propriedade, tradição, se fixa, mesmo sendo um ou o Galli
Mathias. Ao contrário, no ‘direito sonâmbulo’, Cristo pode nascer simultaneamente na Bahia e em Belém do Pará. É
esta zona jurídica em que a subsunção entre norma e fato, entre lei e vida, entre prescrição e sanção, parece ceder,
dando espaço ao erro, ao falho, ao fictício, ao impróprio, que será sublinhada pelos antropófagos.” (NODARI, 2011,
246
peremptoriamente aquela que, de maneira paradoxal, deveria ser a única lei do mundo: “Só me
interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (ANDRADE, 1990, p. 47).
Como pressuposto, a devoração antropofágica requer a transformação dos tabus em totens, ou,
nas palavras de Oswald de Andrade, a partir do Manifesto Antropófago, a humanidade está
pautada na “luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição
permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista.
Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem” (ibid., p. 51). Assim,
diferente de Freud (devorando-o), Oswald sugere que o ser deglutidor da antropofagia se
transfigura ao transformar o “sagrado” e o “proibido”, valores dos ingredientes do inimigo
sacro, opostos à dinâmica da alteridade antropofágica, em valores favoráveis com a
“dessacralização” e a “liberação” para a dinâmica da devoração.
p. 133)
247
antropofágica num futuro próximo, por meio da negação da antítese, isto é, da negação da
negação. Assim, negando a monogamia, o Estado e a propriedade privada, a nova cultura
antropofágica se tornaria possível pelo próprio desenvolvimento técnico-industrial, porque
possibilitaria o ócio para o novo homem, que com o (re)encontro com os valores primitivos,
numa sociedade planificada, vivenciaria a existência, para além das necessidades essenciais,
numa dinâmica lúdica e criadora, ou nas palavras de Oswald, vivenciaria o tempo do homo
ludens. Em suma, do homem natural como tese, passando pelo homem civilizado como antítese,
chegaríamos, enfim, ao horizonte utópico antropofágico do homem natural tecnizado como
síntese final.
Para além da filosofia da história, o que mais interessa aqui é a dinâmica teórica da
devoração da alteridade, sugerida pela antropofagia oswaldiana, como modo de solução cultural
e política para a relação conflituosa entre o primitivo e o civilizado, o local e o universal, o pré-
moderno e o moderno no âmbito do imperialismo cultural. Desse modo, como tentativa básica de
definição, pode-se afirmar que o antropófago oswaldiano, por meio da digestão de elementos
díspares na devoração criadora da alteridade, transfigura-se em outro, não no inimigo sacro,
tampouco na afirmação identitária anterior, mas, num outro baseado na diferença e semelhança
com a alteridade.
Nessa acepção, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em Que temos nós com isso?,
prefácio ao livro Antropofagia – Palimpsesto Selvagem, de Beatriz Azevedo, sintetiza com
maestria a dinâmica do processo de devoração selvagem da antropofagia, como se verifica nesse
trecho:
Por fim, assentado em leituras sobre a antropofagia ritual, Oswald de Andrade conceituou
a antropofagia como metáfora cultural fundamentado numa espécie de intuição antropológica
248
que encontra ressonância comprobatória nos recentes estudos de Viveiros de Castro sobre os
Tupi, como se entrever no seguinte trecho a respeito da inconstância da alma selvagem em O
mármore e a murta:
era inconcebível aos Tupi a arrogância dos povos eleitos, ou a compulsão a reduzir o
outro à própria imagem. Se europeus desejaram os índios porque viram neles, ou
animais úteis, ou homens europeus e cristãos em potência, os Tupi desejaram os
europeus em sua alteridade plena, que lhes apareceu como uma possibilidade de
autotransfiguração, um signo da reunião do que havia sido separado na origem da
cultura, capazes portanto de vir alargar a condição humana, ou mesmo de ultrapassá-la.
Foram então talvez os ameríndios, não os europeus, que tiveram a ‘visão do paraíso’, no
desencontro americano. Para os primeiros, não se tratava de impor maniacamente sua
identidade sobre o outro, ou recusá-lo em nome da própria excelência étnica; mas sim
de, atualizando uma relação com ele (relação desde sempre existente, sob o modo
virtual), transformar a própria identidade. A inconstância da alma selvagem, em seu
momento de abertura, é a expressão de um modo de ser onde ‘é a troca, não a
identidade, o valor fundamental a ser afirmado’, para relembrarmos a profunda reflexão
de Clifford. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 206)
Dito isso, a partir das análises do capítulo precedente deste estudo, cabe explicitar as
relações que Bom dia para os defuntos suscita com os procedimentos antropofágicos quanto à
operação cultural de ficcionalização das lutas andinas engendrado por Manuel Scorza. Ou seja,
cabe identificar na poética scorziana, dada a relação peculiar entre a forma de expressão e a
forma de conteúdo de Bom dia para os defuntos, os principais aspectos de resolução estética e
política, frente à problemática relação entre a instância pré-moderna e a instância moderna, que
evidenciam uma devoração selvagem e criadora para a concepção do romance. Para tanto,
seguindo a releitura proposta por João Cezar de Castro Rocha, no artigo Uma Teoria de
Exportação? Ou: “Antropofagia como Visão do Mundo”, faz-se necessário, antes de tudo,
desnacionalizar e desoswaldianizar o Manifesto Antropófago como modo de atualizar e seguir a
herança oswaldiana para além do caráter nacional do modernismo brasileiro, lógica impressa
inclusive no próprio signo da devoração da alteridade enquanto pedra angular antropofágica.
Nesse sentido, Viveiros de Castro apud Azevedo (2016, p. 16) afirmou que “a antropofagia não é
uma ideologia da brasilidade, da ‘identidade nacional’. Ela não surgiu no Brasil por acaso, sem
dúvida”. Por isso,
a generosa utopia de nossa antropofagia, mundializada como era seu destino e como
anunciava Oswald, sobreviva ainda, rexista nas revoltas indígenas na América Latina,
nas ocupações ‘selvagens urbanas que retomam o espaço público, no ativismo
ecopolítico que quer a terra, e a Terra, de volta? Pois como disse Oswald em seu
testamento: ‘Desta terra, nesta terra, para esta terra. E já é tempo. (VIVEIROS DE
CASTRO APUD AZEVEDO, 2016, p. 18-19, ênfase do autor)
249
maior contribuição [de Oswald] tem muito pouco a ver com o elogio de falsa
originalidade ou com a identificação hipotética da índole nacional. Eis a ‘novidade’
oswaldiana: a inversão do modelo das trocas culturais. É por isso que apenas
desnacionalizando e desoswaldianizando o Manifesto Antropófago faremos justiça à
sua complexidade. Entenda-se, contudo, o alcance da proposta. Não se trata de
desqualificar a obra de Oswald de Andrade, mas de recuperar sua potência, pois, numa
autêntica história literária antropofágica, a devoração do outro deve mesmo ser o
princípio norteador. (ROCHA, 2011, p. 659, ênfase do autor e inclusão minha)
À vista disso, Bom dia para os defuntos, por meio de seu caráter discursivo híbrido,
construído a partir do ponto de vista dos vencidos andinos, e de sua condição como literatura
heterogênea, revela uma operação cultural antropofágica como saída estética e política para a
problemática intercultural. Isto é, o procedimento de releitura das lutas dos camponeses
quéchuas para ressignificação estética da história, a partir da transformação das técnicas
narrativas modernas pela infiltração dos elementos da cultura andina referenciada, possível pela
heterogeneidade de sua produção, perfaz justamente a dinâmica de devoração selvagem e
criadora da antropofagia.
De acordo com Diana Camacho (2007, p. 143), a hibridez narrativa de Bom dia para os
defuntos se evidencia pelos elementos retóricos de diversos discursos narrativos como o
neoindigenismo, o romance testemunhal, a narração lírica, a crônica, o romance de cavalaria e o
discurso histórico e político. Nessa acepção, a hibridização discursiva do romance scorziano se
250
A devoração selvagem scorziana se torna paradigmática nos casos da criação dos títulos
dos capítulos. Se, de um lado, os capítulos evidenciam uma clara influência do uso retórico das
narrativas cavaleirescas, sobretudo, cervantinas, de outro lado, é também verificável uma
transfiguração e ressignificação desse uso pela penetração de elementos da oralidade dos
camponeses indígenas, como analisado no capítulo anterior deste estudo. Isso fica mais evidente
quando se apreende o sentido irônico de vários capítulos no decorrer do desenvolvimento
narrativo. Assim, de modo análogo, no decorrer do romance, Scorza promove uma apropriação
criadora do discurso narrativo ocidental a partir da força cultural insurgente do referente andino,
construindo, ao cabo do processo, uma expressão narrativa que transforma ambas as forças
culturais em interação e conflito. Nesse sentido,
É assim que num mesmo romance existe uma mistura de formas discursivas; por um
lado, está a tradição literária representada neste caso com o romance de cavalaria e, por
outro, as formas orais e culturais dos indígenas peruanos. A obra está carregada, nesse
aspecto, de diversas interações discursivas: enquanto a primeira concerne a uma forma
escrita, como é a literatura ocidental, a segunda está representada numa forma oral de
comunicação e conhecimento. Essa hibridização de discursos literários e extraliterários
confirma a vida ativa que tem um gênero num meio social, sobretudo numa sociedade
85
Tradução minha: “la correspondencia y retroalimentación de diversas formas culturales y literarias imbricadas en
el texto, formas orales en oposición y estrategias discursivas, fusionándose para trabajar en conjunto.”
86
Tradução minha, exceto o título do livro e do capítulo em referência, os quais sigo a tradução de Hamílcar de
Garcia (BDPD): “Tenemos las asociaciones con un sistema literario tradicional, como es la novela de caballería, con
sus formas pintorescas, su tono épico e incluso su forma narrativa. Redoble recurre a la titulación de los capítulos al
estilo caballeresco, los cuales están en estrecha sintonía con las novelas del Siglo de Oro, y particularmente con
Cervantes; por exemplo: “Donde el desocupado lector recorrerá el insignificante pueblo de Rancas”. Sin duda, estas
referencias literarias, unidas a la visión indigenista y vanguardista, encaminan la obra de Scorza a replantear las
convenciones del género. Por un lado, reconoce la trayectoria literaria en la que su novela se integra, y por otro,
revalora las tradiciones indígenas que han sido relegadas precisamente por esa tradición, en especial la
hispanoamericana.”
251
Ao se apropriar das narrações ocidentais tética e não tética, Scorza promoveu uma dupla
devoração: de um lado, do discurso realista a partir do elemento digestivo do caráter testemunhal
e cronístico emergido do referente, de outro lado, do discurso maravilhoso a partir do elemento
digestivo da estrutura mítica do mundo andino. Ao cabo, a digestão selvagem e criadora compôs
uma poética da homologia entre as isotopias realista e maravilhosa, com a incorporação da
diglossia cultural, evidenciando o efeito de sentido do “maravilhoso”, a partir da racionalidade
mítica, como armadura do porvir dos andinos, isto é, utilizou o mito como narração não tética
para desmitificar a história, conforme verificamos no capítulo anterior. Portanto, a
transculturação literária scorziana marca uma rebeldia política cara à operação cultural
antropofágica.
Assim, consoante à irrupção estética de sua época, Manuel Scorza promoveu uma
transculturação literária como solução para o conflituoso encontro cultural. No entanto, diferente
dos romances que concedem força à cultura moderna para efetuar uma estética compensatória,
inscrita narrativamente pela construção de um narrador demiurgo que concebe um mundo pela
escrita sem as interferências das determinações sociais, conforme Avelar (2003, p. 44-45),
referido no interlúdio deste estudo, Scorza concebeu um romance polifônico, em que o narrador
onisciente não se apresenta como um demiurgo, ao contrário, por meio da metadiegese implícita
– onde o narrador passa de um signo apessoal para um pessoal, mudando a distância estética,
mostra-se como uma espécie de voz coletiva andina, como já analisado anteriormente.
Por essas razões, não me parece adequado fazer uma leitura de Bom dia para os defuntos
no sentido em que faz, por exemplo, Roberto Ferro, em ¿Historia o Ficción? – La violencia en el
orden del referente y en el proceso de la escritura: las novelas de La Guerra Silenciosa, de
Manuel Scorza, quando afirma que
o tratamento que [os personagens] recebem nos romances de Scorza está tão distante do
imaginário dos povos quéchuas como os diálogos do Ladrão de Cavalos que se entende
com os animais, que mais bem revela sua descendência das peripécias de Gulliver de
Jonathan Swift. (...) Scorza instala o tópico do sonho adivinhatório que articula passado
com futuro, digamos que não seria demasiado arriscado mostrar a relação com as
87
Tradução minha: “Es así que en una misma novela existe una mixtura de formas discursivas; por un lado, está la
tradición literaria representada en esta ocasión con la novela de caballería y, por otro, las formas orales y culturales
de los indígenas peruanos. La obra está cargada, en este aspecto, de diversas interacciones discursivas: mientras la
primera concierce a una forma escrita, como es la literatura occidental, la segunda está representada una forma oral
de comunicación y conocimiento. Esta hibridación de discursos literarios y extraliterarios confirma la vida activa
que tiene un género en un medio social, sobre todo en una sociedad convulsionada como la referida.”
252
Para ser mais específico, Roberto Ferro ignora, no primeiro caso, a relação íntima da
cultura quéchua com a natureza, onde cada ser vivo, inclusive os animais, possui um espírito, um
jayni, como assegura Romero (2005): “os seres humanos, os animais, as plantas e as serras tem
suas jaynis89”, quando sugere que a construção dos episódios maravilhosos do Ladrão de
Cavalos é um mero tributo de Gulliver, sem supor a infiltração dessa estrutura mítica andina na
apropriação do discurso moderno, provocando uma rasura no modelo narrativo digerido para
plasmar a resistência dos camponeses indígenas. No segundo caso, dos sonhos adivinhatórios,
Roberto Ferro desconsidera, primeiro, que o próprio Freud devorou, entre outras coisas, os
saberes das culturas primitivas para formular suas diversas concepções relacionadas ao
inconsciente e aos sonhos, como fez com a própria cultura andina peruana em seus estudos sobre
a cocaína, para apresentar apenas um exemplo 90; segundo, estranhamente ignora o papel dos
sonhos, ou melhor, do musquy, na cultura quéchua em relação ao passado, presente e futuro,
88
Tradução minha: “el tratamiento que reciben en la novelas de Scorza está tan alejado del imaginario de los
pueblos quechuas como los diálogos del Ladrón de Caballos que se entiende con los animales, que más bien revela
su descendencia de las peripecias del Gulliver de Jonathan Swift. (...) Scorza instala el tópico del sueño adivinatorio
que articula pasado con futuro, digamos que no sería demasiado arriesgado mostrar la relación con los interrogantes
freudianos sobre los contenidos oníricos.”
89
Tradução minha: “Los seres humanos, los animales, las plantas y los cerros tienen sus jaynis.”
90
Deixo aqui como ilustração o seguinte trecho do texto Über coca: “Quando os conquistadores espanhóis
invadiram o Peru, descobriram que a planta coca era cultivada e tida em alta consideração naquele país, estando
intimamente ligada aos costumes religiosos do povo. A lenda afirmava que Manco Capac, o divino filho do Sol,
havia descido dos penhascos do lago Titicaca em tempos primevos, trazendo a luz de seu pai para os infelizes
habitantes do país; que lhes trouxera o conhecimento dos deuses, lhes ensinara as artes úteis e lhes dera a folha de
coca, essa planta divina que sacia os famintos, dá força aos débeis, e faz com que esqueçam os seus infortúnios.”
(FREUD, 2004, p. 102). Além disso, em Políticas canibais, Raúl Antelo (2001, p. 269) faz uma breve análise de
como Freud se apropriou e devorou a cocaína para situações modernas, chegando a conclusão que “para Freud a
cocaína é um valor que se troca e acumula no campo sexual (como posse), no profissional (como prestígio) e no
intercultural (como poder) e, nesse sentido, exaure toda noção de valor imanente, postulando-se a si própria como
fissura.”
253
Não é raro que nos sonhos o jayni remova o véu de muitos mistérios do passado,
presente e futuro; por isso, desde a infância, o homem quéchua aprende em cada manhã
a recordar, narrar e interpretar seus sonhos. O Inca Garcilaso de Vega, já imbuído pela
cultura cristã, zombava de seus conterrâneos: ‘... as brincadeiras ou zombarias que
aqueles índios fizeram, de que a alma de um deles saiu do corpo enquanto dormia, e que
o que via pelo mundo eram as coisas que dizemos ter sonhado. Para essa crença vã,
assim olhavam os sonhos e os interpretavam, dizendo que eles eram presságios ou
previsões’91
Roberto Ferro desconsidera, assim, toda uma rica oniromancia quéchua, como demonstra
outro trecho do artigo de Carranza Romero (2005):
Todo sonho, como afirmam os psicanalistas, tem uma etiologia, é um cordão umbilical
que conduz a uma fonte matriz, é um território para além das fronteiras da consciência.
Mesmo dentro da confusão de protagonistas, confusão de tempo e espaço, o universo
onírico oferece símbolos por decifrar ou desvelar; e o mundo andino tem sua
oniromancia ou interpretação dos sonhos. O cronista Waman Puma escreve sobre os
indígenas: ‘Abocioneros acreditam nos sonhos dos índios do tempo dos incas e deste
tempo [...] Quando sonha Qiroymi lloccin [Ele deixou um dente], que há de morrer seu
pai ou seu irmão’. Os que sabiam interpretar os sonhos (musquy qatiqkuna) e os que
recorriam ao sonho para saber o passado e o futuro (musquy kamayuqkuna) e os que
sabiam muito (yachaqkuna) foram perseguidos, capturados e processados pela igreja
católica por considerar que estavam em pacto com o diabo e por manter superstições
não cristãs. Uma mostra disso é o juízo contra o curandeiro indígena de Cajamarca,
Dom Juan Vazquez, em 1710, em Lima. Como o acusado havia confessado que tinha
tido um sonho, em que um ancião com uma cruz numa mão lhe mostrava as ervas
curativas, foi suspeito de ter relações diabólicas.92
Desse modo, a razão crítica de Roberto Ferro, procurando sustentar que a estética
scorziana não passaria de um simulacro das narrativas ocidentais, parece construir uma barreira
91
Tradução minha: “Tampouco es raro que en los sueños el jayni quite el velo de muchos misterios del pasado,
presente y futuro; por eso, desde la niñez el hombre quechua aprende cada mañana a recordar, narrar e interpretar
sus sueños. El Inca Garcilaso de Vega, ya imbuido por la cultura cristiana, se burla de sus coterráneos: ‘... las
niñeras o burlerías que aquellos indios tuvieron, que una de ellas fue tener que el alma salía del cuerpo mientras
dormía, y que lo que veía por el mundo eran las cosas que decimos haber soñado. Por esta vana creencia miraban
tanto en los sueños y los interpretaban, diciendo que eran agüeros o pronósticos’.”
92
Tradução minha: “Todo sueño, como dicen los sicoanalistas, tiene una etiología, es un cordón umbilical que
conduce a una fuente matriz, es un territorio más allá de las fronteras de la conciencia. Aun dentro de la confunsión
de protagonistas, confusión de tiempo y espacio, el universo onírico ofrece símbolos por descifrar o desvelar; y el
mundo andino tiene su oniromancia o interpretación de los sueños. El cronista Waman Puma escribe de los
indígenas: ‘Abocioneros creen en los sueños los yndios del tiempo del ynga y desde tiempo [...] Quando sueña
Qiroymi lloccin [Me ha salido un diente], que se a de murir su padre o su ermano’. Los que sabían interpretar los
sueños (musquy qatiqkuna) y los que recurrían al sueño para saber el pasado y el futuro (musquy kamayuqkuna) y
los que sabían mucho (yachaqkuna) fueron perseguidos, capturados y procesados por la iglesia católica por
considerarlos que estaban en trato con el diabo y por mantener supersticiones no cristianas.. Uma muestra es el
juicio contra el curandero indígena de Cajamarca, don Juan Vazquez, en 1710 en Lima. Como el acusado había
confesado que había tenido un sueño en que un anciano con una cruz en una mano le mostraba las hierbas curativas
fue sospechoso de tener relaciones diabólicas.”
254
para o acesso aos elementos culturais do referente transfigurados pelo processo de devoração.
Ferro (1998, p. 33) sustenta sua crítica por meio da constatação inequívoca de que Manuel
Scorza não reescreveu os mitos vividos pelos povos quéchuas, “recopilados por antropólogos ou
por ele mesmo”, salvo o mito de Inkarri, admitindo, inclusive, que as construções do discurso
maravilhoso tem como função “manifestar a identidade dos personagens involucrados em suas
histórias93”. Por isso, ao invés de mitos, refere-se às construções sobrenaturais do romance como
“fabulações”, não reconhecendo, assim, nenhuma intervenção, mesmo que ínfima, da cultura
referenciada. Concluindo, por fim, que a narrativa scorziana se realiza dessa maneira porque se
direciona para o leitor moderno ao invés do referente andino. Nessa acepção, Ferro afirma que
Diante disso, Roberto Ferro identifica corretamente que a produção e a recepção da obra
scorziana se localizam na cidade letrada e que, portanto, a narrativa traz o peso das ferramentas
modernas de ficção. No entanto, menospreza o papel que o referente pôde impor no processo de
produção da obra e, por consequente, nega a riqueza da condição contraditória das literaturas
heterogêneas. Nesse cenário, a partir das análises desenvolvidas até aqui, torna-se trivial
observar que a penetração da cultura pré-moderna não poderia se colocar de modo integral na
93
Tradução minha de fragmentos deste trecho: Pero es la poética de la novela indigenista la que funciona como
marco regulador del contrato de lectura, es decir, el programa que consiste en narrar los acontecimientos desde la
perspectiva de los indígenas oprimidos y de representar el mundo andino a partir de su versión del imaginario
constitutivo del referente. Condición que no se cumple, ya que el conjunto de fabulaciones que se despliega en el
ciclo de Scorza no pertenecen, salvo el mito del Inkarri, a los pueblos quechuas del centro del Perú. Manuel Scorza
no reescribe mitos existentes, recopilados por antropólogos o por él mismo que tuvieran por función manifestar la
identidad de los personajes involucrados en sus historias. Me refiero a fabulaciones, puesto que no es exacto
referirse a mitos en las novelas de Scorza, son construcciones que antes de apuntar a testimoniar el imaginario
mítico de los pueblos quechuas, apunta a los supuestos de los lectores.”
94
Tradução minha: “Aquellos componentes narrativos que aparecen como expresión del imaginario de los pueblos
oprimidos, o al menos como la modalidad más adecuada para llevarlo a cabo, pueden ser leídos como guiños y
señales dirigidos a los lectores. La supuesta configuración mítica de los relatos y los elementos sobrenaturales
incluidos en las tramas novelescas tienen como función la sistematización de creencias, es decir, apuntan a explicar
la realidad pero no en los términos de los protagonistas sino de acuerdo con el universo de representaciones de
quienes son los destinatarios. Las fabulaciones que se les atribuyen a los personajes y que en gran medida apuntan a
dar preeminencia al irracionalismo de sus imaginarios, no son más que un conjunto de motivos de la literatura
occidental, trastornados en algunos casos por los procedimientos del llamado realismo maravilloso.”
255
narrativa scorziana, isto é, como inscrição fidedigna dos mitos andinos, simplesmente porque
não é uma literatura indígena, mas uma literatura que se inscreve, ao mesmo tempo, de modo
paradoxal, na tradição indigenista e na nova narrativa hispano-americana. Ainda que Scorza se
referisse mais diretamente aos mitos andinos, a própria translação escrita de uma narrativa oral
mítica perde substância e vitalidade pela retirada de sua materialidade, que recebe atualização
cultural constante, e se plasmaria também como uma fabulação pela própria inventividade e
retórica caracetísticas da literatura moderna. Portanto, também deixaria de ser mito no sentido
stricto sensu antropológico.
Nesse sentido, Bom dia para os defuntos não sugere apenas “um conjunto de motivos da
literatura ocidental”, já que esses motivos estão contaminados por outros elementos diluídos na
narrativa, como os resíduos da tradição oral quéchua e os aspectos míticos em relação à natureza
e aos sonhos. Mais ainda, a estrutura do discurso maravilhoso se realiza em semelhança com a
racionalidade mítica do referente a partir de uma reformulação livre, como se pode verificar no
segundo capítulo deste estudo. Por isso, o maravilhoso scorziano não é uma “fabulação”
256
qualquer, como a fabulação feérica, mas uma “fabulação” mítica. Nessa acepção, o romance
scorziano evidencia uma diferença na plasmação da estética moderna pela infiltração da cultura
pré-moderna andina. Essa dinâmica rasura, deforma, transforma, os modelos, indicando,
portanto, uma apropriação transgressora das ferramentas literárias ocidentais a partir de
elementos quéchuas, resultando no realismo maravilhoso scorziano. Curiosamente, no último
parágrafo do trecho citado acima, Ferro (1998, p. 35, ênfase minha) deixa escapar uma fissura
em sua argumentação quando afirma que as fabulações são “um conjunto de motivos da
literatura ocidental, transformados, em alguns casos, pelos procedimentos do chamado realismo
maravilhoso.” Assim, o dissenso crítico com a perpectiva de Roberto Ferro serviu para
demonstrar que Manuel Scorza promoveu uma devoração selvagem na cultura letrada a partir da
cultura primitiva.
O sintagma selvagem utilizado aqui, para além de uma relação intrínseca com o
pensamento primitivo, significa, antes, uma racionalidade insubordinada, em estado selvagem,
na esteira da explicação de Eduardo Viveiras de Castro, a partir da conceituação de Lévi-Strauss,
como se pode verificar nesse trecho de uma entrevista concedida à revista “Com Ciência”:
O pensamento selvagem não versa sobre mitos indígenas, mas sobre certas disposições
universais do pensamento humano: ameríndio, europeu, asiático ou qualquer outro. O
‘pensamento selvagem’ não é o pensamento dos ‘selvagens’ ou dos ‘primitivos’ (em
oposição ao ‘pensamento ocidental’), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o
pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em
vista da obtenção de um rendimento. O pensamento selvagem não se opõe ao
pensamento científico como duas formas ou duas lógicas mutuamente exclusivas95.
Essa devoração antropofágica não é, como vimos, uma solução estética e política
harmoniosa e espontânea do conflito intercultural, há, evidentemente, contradições. Bom dia
para os defuntos é paradigmático também neste ponto. Se, em termos enunciativos da digese, o
discurso maravilhoso, na pescpectiva mítica, estabelece uma homologia com o discurso realista
na conjunção dos contrários característicos do realismo maravilhoso, por outro lado, em termos
ideológicos, apresenta-se uma contradição entre a racionalidade pré-moderna e a racionalidade
moderna, como observa Cornejo Polar, em análise de toda a pentalogia de A guerra silenciosa:
O narrador não pode nem quer ocultar sua admiração pela racionalidade mítica dos
indígenas, (...), e tem de reconhecer que, através dos atributos dessa racionaliadade, se
forja a identidade do povo quéchua e se rechaça o desígnio aculturador do imperialismo
e da burguesia nacional; ao mesmo tempo, contudo, é impossível, para ele, não perceber
95
Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista à revista Com Ciência, São Paulo, em 10/05/2009. Disponível em:
http://comciencia.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-76542009000400013&lng=pt&nrm=iso
257
que com esses atributos o povo indígena não poderá passar de uma situação de
resistência, esboçada fundamentalmente em termos de cultura, a outra de emergência
libertadora, obviamente definida em termos político-sociais. (POLAR, 2000, p. 111)
Além dessa ambiguidade, numa amplitude maior, a própria inserção estética paradoxal do
romance scorziano, entre o neoindigenismo e a experimentação moderna do realismo
maravilhoso, como se verificou anteriormente, realiza-se em consonância com o procedimento
de devoração selvagem. Isto é, a dinâmica de “rompimento-permanência” de Bom dia para os
defuntos com a tradição indigenista peruana em razão de sua inserção estética, pela via
internacional, na nova narrativa latino-americana encontra afinidade teórica com a proposta
antropofágica, pois, “no ‘antropofagismo’ tudo é contraditório, e tudo é significativo por ser
contraditório” (NUNES, 1979, p. 35). Isto porque, a ntropofagia procura não apenas devorar as
“técnicas e informações estrangeiras”, como afirma Beatriz Azevedo (2016, p. 75), mas também
atuar na “redescoberta das concepções ameríndias, ancestrais e modernas, nacionais,
americanas”. Nessa acepção, assim como Oswald, Scorza procurou “ver ‘com olhos livres’ as
complexas relações entre o arcaico e o moderno”. Estabelecendo, assim, uma outra relação
dialética entre o local e o universal, na esteira da proposta teórica de Raúl Antelo referido no
interlúdio deste estudo, a saber, na possibilidade de construção de um universal onde o singular
irrompe alargando seu espaço aberto e cindido, como uma espécie de anel partido, rompendo
com a ideia de um universal eurocêntrico pré-determinado e fechado. Em síntese,
Essa postulação de outro universal trazida à tona pela operação cultural antropofágica se
liga diretamente
à guerra, porém, não à guerra territorial, que podemos, sem maiores obstáculos,
reconhecer entre os indígenas da área andina. A guerra antropofágica pelo contrário
volta-se à recuperação de um habitat e de uma história a partir de confiscar valores da
própria cultura ou de culturas outras. Neste caso, em particular, estamos diante de
exocanibalismo. (ANTELO, 2001, p. 265, ênfase minha)
Assim, para finalizar, a rica e complexa operação antropofágica de Bom dia para os
defuntos, em sua paradoxal inserção estética, encontra fundamento no entre-lugar do discurso
latino-americano na acepção de Silviano Santiago. A partir do renascimento colonialista, com o
surgimento da sociedade dos mestiços no Novo Mundo, os conceitos de unidade e pureza da
cultura ocidental sofrem uma guinada radical, nas palavras de Santiago (2000, p. 14), são
contaminadas “em favor de uma mistura sutil e complexa entre o elemento europeu e o elemento
autóctone - uma espécie de infiltração progressiva efetuada pelo pensamento selvagem, ou seja,
abertura do único caminho possível que poderia levar à descolonização”. Essa transformação
afetou fundamentamente dois sistemas da cultura ocidental que entraram violentamente nosso
continente, conforme Santiago (ibid., p. 14): o código linguístico e o código religioso. Com a
perda do estatuto de pureza, estes códigos incorporam gradativamente “novas aquisições, por
miúdas metamorfoses, por estranhas corrupções, que transformam a integralidade do Livro Santo
e do Dicionário e da gramática europeus. O elemento híbrido reina.” Assim,
A partir das considerações explicitadas anteriormente, pode-se afirmar que Bom dia para
os defuntos constitui uma escritura estética contra a história, contra o processo de violência da
modernização capitalista, e contra a catástrofe, pressupondo um código que rompeu com a
assimilação passiva e com o silêncio, que possibilitou a construção de uma diferença a partir da
devoração das ferramentas literárias ocidentais, a saber, o realismo maravilhoso scorziano.
Assim, o realismo maravilhoso do romance scorziano, por meio da construção enunciativa
conjuntiva, inscreve-se, esteticamente, no limiar
Por fim, fazendo jus a uma geografia de assimilação e agressividade, a estética scorziana
em Bom dia para os defuntos, como rasura do modelo europeu de realismo, desvia-se da norma
260
da narrativa ocidental com o realismo maravilhoso para ressignificar a história dos vencidos
andinos, por meio da vocação antropofágica do entre-lugar do discurso latino-americano,
construindo uma narrativa onde o leitor deve participar ativamente da composição do painel do
romance e da imagem dialética, politizando, assim, a estética ao articular a demanda aurática
com a memória imagética dos vencidos andidos na condição pós-aurática da nova narrativa
hispano-americano, como veremos a seguir.
3.3 Limiar III: entre a demanda aurática e o pós-aurático como condição de politização da
estética ou a selvagem imagem dialética scorziana como resposta estética politizada à
catástrofe
A formação do grande painel de Bom dia para os defuntos, a partir da montagem dos
fragmentos cronologicamente dispersos nos capítulos pela participação ativa do leitor, e a
construção da imagem dialética como apresentação estética da história dos camponeses quéchuas
em luta, que traz ao centro do palco narrativo uma imagem mnêmica dos vencidos andinos da
Batalha de Junín por intermédio da rememoração do narrador, evidenciam, como veremos, uma
dinâmica de reinstalação do aurático no pós-aurático que ao invés de elaborar narrativamente
uma estrutura compensatória de substituição da política pela estética, de acordo com a
perspectiva crítica de Idelber Avelar (2003), articula uma estética do jogo e da participação, da
interrupção e do gesto, que coloca em cena uma politização da estética, tensionando a tendência
majoritária de estetização da política da vocação histórica do boom.
faculdades de literatura e filosofia haviam sido meios vitais de reprodução ideológica, mas agora
a ideologia levava a máscara neutra da tecnologia” (AVELAR, 2003, p. 43-44). Assim, o escritor
latino-americano se deparava com um horizonte ao mesmo tempo promissor, levando em
consideração a modernização literária, e desolador, devido à aniquilação do valor de culto do
fazer literário, devendo, portanto, se adequar a nova condição social da literatura enquanto
trabalho.
a instalação do aurático no pós-aurático se faz numa ambiguidade crucial, ora como estetização
da política ora como politização da estética – uma pergunta imediatamente deve surgir: onde se
localiza então a demanda aurática no romance pós-aurático scorziano? Fundamentalmente, como
veremos, na imagem mnêmica dos vencidos andinos na construção estética da imagem dialética.
Para tanto, precisamos recorrer brevemente à formulação do conceito de aura em Walter
Benjamin.
Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte perde o seu “aqui e agora”, destacando-se
do âmbito da tradição, “na medida em que multiplica a reprodução, ela substitui a sua aparição
singular pela sua aparição em massa. E na medida em que ela permite à reprodução vir ao
263
encontro do receptor em cada situação, ela atualiza o que é reproduzido” (BENJAMIN, 2013,
p. 284, ênfase no original). Desse modo, abala-se a tradição, pelo menos sua forma de
transmissão, alterando, por consequente, a forma de percepção devido à modificação sofrida pela
“estranha teia de espaço e tempo”. Em outras palavras, dá-se o declínio da aura. Em
contrapartida à estabilidade e à duração do artefato aurático, a obra de arte da era de reprodução
técnica adquire como atributos a volatibilidade e repetibilidade, anulando, desse modo, o
conceito de autenticidade. Assim, “a reprodutibilidade técnica da obra de arte a emacipa, pela
primeira vez na história universal, de sua existência parasitária no ritual” (ibid., p. 287),
substituindo o valor de culto pelo valor de exposição. Disso resulta uma transformação radical
na função social da arte, “no lugar de sua fundação no ritual, deve surgir sua fundação numa
outra práxis, a saber: sua fundação na política” (ibid., p. 288, ênfase no original).
96
Há pelo menos quatro versões do ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, uma em francês e
três em alemão. Utilizo aqui a segunda versão em alemão, traduzida por Daniel Pucciarelli, porque é a versão mais
completa e sem as alterações promovidas pelos editores do Instituto de Pesquisa Social Alemão.
264
Dito isso, saindo da órbita de uma interpretação unilateral da questão da aura, na esteira
de Gagnebin (2014), sigo uma leitura mais ambígua dos textos benjaminianos, que, como
veremos, sugere paradoxalmente a formulação de uma espécie de nova aura na obra de arte pós-
aurática. Nesse sentido,
Nessa acepção, se a obra de arte da era da reprodução manual, aurática por excelência,
mostrava-se como uma imagem próxima emoldurada pela presença do longínquo, isto é, uma
imagem estável e durável que respondia de algum modo ao olhar contemplativo humano,
gerando um culto ao seu caráter sagrado e belo, por outro lado, a obra de arte pós-aurática
evidencia uma imagem frágil e prófuga, sem qualquer durabilidade, que evade ao domínio
265
consciente, mas que carrega consigo uma verdade esquecida e/ou sufocada e, por isso, valiosa,
caracterizando-se como uma imagem mnêmica, uma imagem involuntária e inconsciente, para
dizê-lo nos termos de Proust e Freud, respectivamente, reintroduzindo, destarte, elementos
auráticos modificados, conforme Gagnebin (2014, p. 130). Assim, passa-se de uma imagem
duradoura controlada pelo consciente e valorada pelo culto para uma imagem transitória
controlada pelo insconciente e valorada pela exposição.
a revolução republicana do Peru. O longínquo da Batalha de Junín se torna uma imagem próxima
do conflito da desapropriação das terras do altiplano de Junín. Assim, penetra o atributo aurático
do tempo infinito na imagem mnêmica dos vencidos andinos.
O halo da imagem mnêmica da Batalha de Junín, por sua vez, como segundo atributo
aurático, forma-se precisamente a partir da referência local do momento de chegada da Guarda
de Assalto: a entrada de Rancas. Do mesmo modo em que o comandante Guillermo “se deteve
na encruzilhada do caminho entre Cerro de Pasco e Rancas” (BDPD, p. 205), aproximadamente
cinquenta mil dias antes, o General Bolívar “contemplou os verdosos telhados de Rancas”
(BDPD, p. 205). O halo, então, apresenta-se como o local preciso de um primeiro surgimento do
acontecimento, como uma pré-história do presente diegético, destacando a ação dos vencidos
rememorados em ligação aos camponeses em luta como comunicação descontínua da tradição
autêntica, diferentemente da moldura da memória individual proustiana.
A urgência da imagem mnêmica, de acordo com Gagnebin (2014, p. 170), advém de uma
transformação estética radical: da estética da visão e da contemplação para a estética do tátil e da
vibração. Em Proust, as imagens da memória involuntária não nascem do olhar à madeleine
mergulhada no chá, mas, antes, são provocadas pelo sabor, pelo tato com o biscoito frânces. Em
outras palavras, “não é a visão do biscoito ou de uma paisagem que provoca o estremecimento do
eu e a irrupção da lembrança, mas sim o contato, um tocar.” (ibid., p. 170, ênfase da autora).
Assim, ainda que as lembranças se formem como imagens, a intensidade primeira que faz
267
insurgir a memória involuntária está ligada às sensações primitivas como o tato e o olfato,
escapando à ordem da consciência, configurando-se, conforme Gagnebin, como uma “memória
do corpo”.
Em Bom dia para os defuntos, a imagem do passado dos vencidos andinos evidencia
justamente a fugacidade e fragilidade da imagem mnêmica benjaminiana, que, ao visar o
presente diegético para formar a imagem dialética, mostrando-se como uma imagem única,
imediatamente se defaz com o desenrolar da repressão responsável pelo massacre dos
ranquenhos, como vimos anteriormente. Quanto à “memória do corpo” como gatilho para o
surgimento da imagem mnêmica, diferente do narrador em primeira pessoa proustiano, o
narrador scorziano, transitando em pequenos momentos entre os signos apessoal para o pessoal,
não registra de maneira clara a sensação de estremecimento por não se configurar como um
personagem, mantendo o registro onisciente apessoal na maior parte da narração. No entanto, em
sua performance como voz coletiva andina, o narrador sugere seguir a sensação de
estremecimento de Fortunato na ação guia de formação da imagem dialética, quando se encontra
correndo em direção a Rancas no momento do desalojamento: “o velho Fortunato estremeceu: o
céu estava com a mesma cor de corvo que na manhão da fuga universal dos animais.” (BDPD, p.
10, ênfase minha). Assim, quando “o velho divisou os telhados de Rancas” e “parou junto a um
penhasco” (BDPD, p. 219), foi após o estremecimento causado pela corrida ao tocar com os pés
a terra a ser desapropriada pela Guarda de Assalto, na tensão do momento de urgência da luta
dos ranquenhos, que emergiu a imagem mnêmica: “Cinquenta mil dias antes o general Bolívar
tinha-se detido ali: na manhã da sua entrada em Rancas.” (BDPD, p. 219).
Numa longa nota da segunda versão da ‘Obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica’, que foi omitida (ou censurada?) tanto na versão francesa como na versão alemã
publicada pela Zeitschrift für Sozialforschung, Benjamin define o jogo (Spiel), o lúdico,
como a segunda metade da arte, entendida como comportamento mimético originário do
homem. (GAGNEBIN, 2014, p. 171-172)
A bela aparência como realidade aurática ainda preenche inteiramente (...) a criação de
Goethe. Mignon, Otília e Helena participam dessa realidade. ‘Nem o invólucro nem o
objeto velado por ele é o belo; o belo é o objeto em seu invólucro’ – eis a quintessência
da concepção artística tanto de Goethe como da Antiguidade. O seu declínio sugere
duplamente que viremos o olhar para a sua origem. Esta repousa na mímeses como o
fenômeno originário de toda atividade artística. O imitador faz o que faz apenas
aparentemente. E, de fato, a antiga imitação conhece apenas uma única matéria, na qual
ela se forma, a saber: o corpo próprio do imitador. Dança e linguagem, linguagem
corporal e labial são as mais antigas manifestações da mímesis. – O imitador torna sua
coisa aparente. Pode-se também dizer: ele representa a coisa, ele joga com ela. Assim,
depara-se-nos a polaridade só pode ser de interesse ao pensador dialético se ela possui
um papel histórico. E esse é de fato o caso, pois esse papel é determinado pelo
confronto histórico-universal entre a primeira e a segunda técnica97. A aparência é o
esquema mais reduzido, mas simultaneamente mais presente em todos os procedimentos
mágicos da primeira técnica, ao passo que o jogo é o reservatório inesgotável de todos
os procedimentos experimentais da segunda técnica. Nem o conceito da aparência, nem
o do jogo são estranhos à estética tradicional; e, na medida em que o par conceitual de
valor de culto e valor de exposição está contido no par conceitual mencionado, ele não
diz nada de novo. Isso se transforma subitamente, no entanto, assim que esses conceitos
perdem a sua indiferença face à história. Com isso, eles conduzem a uma visão prática.
Esta quer dizer: aquilo que acompanha a atrofia da aparência e o declínio da aura nas
obras de arte é um enorme ganho para o espaço do jogo. (BENJAMIN, 2013, p. 299,
ênfase no original)
Para Gagnebin, Benjamin assegura que a dissolução da aura da estética clássica não fez
surgir apenas um mundo desencantado, sem a bela aparência das obras de arte fincadas no culto
e no mágico, mas também um mundo pautado na práxis política por meio de uma tendência
97
A “primeira técnica” e a “segunda técnica” são ideias formuladas por Benjamin para descrever os procedimentos
relacionados ao domínio das forças da natureza, no caso da primeira, e a interação entre as forças humanas e
naturais, no caso da segunda, conforme Gagnebin (2014, p. 172-173), por isso, Benjamin afirma que “a primeira
técnica mobiliza o ser humano tanto quanto possível; a segunda, tão pouco quanto possível. A façanha técnica da
primeira técnica é, em certo sentido, o sacrifício humano, ao passo que a da segunda é da ordem dos aviões de
controle remoto, que não precisam de tripulação. O ‘de uma vez por todas’ vale para a primeira técnica (trata-se para
ela de uma falta que jamais poderá ser restabelecida, ou do eterno sacrifício substituto); o ‘uma só vez não é nada’
vale para a segunda (ela tem a ver com o experimento e a sua variação incansável das condições de
experimentação). A origem da segunda técnica deve ser buscada onde o ser humano passou, pela primeira vez e com
astúcia inconsciente, a tomar distância da natureza. Dito de outro modo, a origem está no jogo.” (BENJAMIN, 2013,
p. 290)
269
Essas considerações se aplicam precisamente à estética de Bom dia para os defuntos, não
apenas pela inserção de elementos auráticos na imagem mnêmica dos vencidos andinos, mas
também pela própria disposição descontínua dos capítulos, contendo como exigência básica para
o leitor a montagem dos fragmentos do quebra-cabeça romanesco para poder visualizar a ampla
imagem das lutas dos camponeses quéchuas, e ainda, principalmente, pelo caráter parodístico e
denunciatório que o realismo maravilhoso scorziano adquire com a isotopia do mito como
amadura do porvir dos vencidos andinos. Assim, Manuel Scorza constrói em Bom dia para os
defuntos uma estética do lúdico e do jogo, do gesto e da interrupção, como modo de “demaquiar”
o real e de promover um desmascaramento crítico e subversivo da realidade andina na dinâmica
desigual e combinada própria do capitalismo tardio nos países latino-americanos, ainda que
enunciativamente a poética da homologia do realismo maravilhoso possa sugerir uma espécie de
reencantamento do mundo com a conjunção dos elementos diegéticos real e maravilhoso.
Nesse sentido, a estética scorziana não somente destrói a “bela aparência” aurática
clássica, sem ceder espaço para reintroduzi-la por meio de um narrador-escritor-demiurgo, como
coloca no centro narrativo o lúdico como a outra dobra da mímeses, tanto na forma de expressão
como na forma de conteúdo de diversos episódios, por exemplo, quando surge alegoricamente no
desfecho, após a frágil e fugaz imagem mnêmica dos vencidos andinos da Batalha de Junín
desaparecer com o advento do massacre dos comuneiros de Rancas no âmbito da imagem
dialética, uma outra imagem mnêmica por meio do último episódio maravilhoso do romance: a
conversa entre os defuntos ranquenhos.
Ora, os dialógos entre Fortunato e Dom Alfonso Rivera, e demais viventes-mortos, a sete
palmos do chão de Rancas usurpado pela mineradora norte-americana, além de registrarem a
270
memória da violência mítica, introduzem um tempo infinito e abissal similar ao atributo da nova
aura. Depois dos personagens passarem pelo limiar entre a condição de homens-toupeiras e
homens-que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, a conversa entre os viventes-mortos
sugere uma semeadura do futuro, ou seja, o mito da vida após a morte se articula como armadura
do porvir, construindo uma metáfora da conversa como memória latente dos recentes vencidos
quéchuas, que parece ativar a possibilidade de visar um novo presente num momento de perigo
para ser apropriado pelos lutadores visados, deixando claro, de certo modo, conforme Benjamin
(2012, p. 244, ênfase no original), que “o dom de despertar no passado as centelhas da esperança
é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão em
segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” Em outras palavras, a
última imagem de Bom dia para os defuntos emerge como uma facies hipocratica dos vencidos
andinos, no forte sentido benjaminiano, em que o narrador como um alegorista, ver por trás dos
projetos de vida frustrados, das ruínas, dos escombros, da aparência da história petrificada de
derrota dos camponeses quéchuas um índice de vida que deve apontar para a reparação do
sofrimento no futuro.
aparato trazido à tona pelos adventos modernos, por meio desse desvio ao passado e pela criação
de uma mitologia moderna.” (ANDRADE, 2016, p. 4719). Assim, a ressignificação da história
na estética scorziana, a partir do próprio processo de mitificação da História oficial, pode ser lida
como uma dialética da devoração e uma devoração da dialética, para utilizar o título de um
artigo de Eduardo Sterzi (2011), em que analisa esteticamente a conexão entre a imagem
dialética e a “presença pura” na poesia Oswaldiana.
Por fim, a reinserção de uma nova aura na imagem mnêmica de Bom dia para os
defuntos, tendo em vista a diluição de elementos apropriados da cultura quéchua nas ferramentas
de modernização literária, plasmou-se por meio de uma devoração criadora antropofágica como
modo de responder as exigências estéticas e políticas da nova condição do fazer literário no
continente, determinadas pela vocação histórica do boom, no entanto, ao invés de propor uma
substituição da política pela estética, colocou no centro da narrativa uma exigência política da
estética: a ressignificação da história dos vencidos. Em outras palavras, a liberdade estética e
política, proporcionada pela autonomização do artefato literário latino-americano, conjungada
com o projeto de modernização narrativa do boom, constituído por uma demanda aurática numa
condição pós-aurática, possibilitou uma politização da estética em Bom dia para os defuntos,
apresentada, de um lado, pela isotopia do mito como armadura do porvir dos vencidos andinos
no efeito de sentido da História mitificada, de outro, pela construção de uma selvagem imagem
dialética como resposta estética politizada à catástrofe.
272
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse sentido, a resignação como destino dos camponeses andinos enredado pelo “terno
preto”, enquanto alegoria do direito peruano, apresentou na diegese uma significação de vida
natural desprovida de qualquer qualidade a não ser o próprio pulsar biológico e, em
contrapartida, a coragem de lutar de alguns viventes andinos demonstrou como sentido uma
condição de vida ativa pautada na decisão ética e política de retomada das rédeas do próprio
destino. A significação dessas duas condições, que caracterizam a ação ambígua dos camponeses
andinos, pôde se revelada pelo diálogo com os conceitos benjaminianos de mera vida e vida
histórica, respectivamente, possibilitando expor a especificidade da significação de acumulação
de opressão, no sentido dos resíduos de racismo da ordem de violência colonial contra a
condição humana dos indígenas inserida na própria violência da ordem republicana contra os
274
camponeses, configurando-se como uma espécie de dupla mera vida a partir do ponto de
encontro entre as significações diegéticas e o conceito benjaminiano. Nessa acepção, os
camponeses se mostraram ora na condição de homens-toupeiras, ora na condição de homens-
que-sustentam-que-bom-que-afinal-comece-a-luta, significações conceituais correspondentes,
respectivamente, a espécie de condição de dupla mera vida e de vida histórica dos viventes
andinos. Essa dinâmica de oscilação entre as ações conformou, ao cabo, o sentido de um limiar
que se mostrou capaz de produzir apenas uma pequena resistência, reconhecendo a ordem de
violência sem, contudo, conseguir combatê-la.
A partir disso, o presente estudo demonstrou a possibilidade de leitura de Bom dia para
os defuntos como uma mônada antropofágica, considerando a narrativa como uma reescritura
estética da história dos vencidos andinos a partir da condição do entrecruzamento de dois
universos culturais distintos. Primeiro, foi possível verificar a construção da forma de
apresentação estética da história como uma grande imagem que se aproxima do conceito
275
Desse modo, como uma espécie de “mundo em miniatura”, Bom dia para os defuntos
internalizou como momento de verdade na forma romanesca a história da violência dos vencidos
andinos como uma mônada, onde se pode visualizar esteticamente na significação do singular – a
luta dos comuneiros quéchuas das comunidades de Yanachoca contra o Dr. Montenegro e de
Rancas contra a mineradora Cerro de Pasco Corporation – certo domínio do todo – pela
representação da violência da estrutura arcaica de dominação dos latifundiários do gamonalismo,
em nível local, e a violência do imperialismo norte-americano, em nível global, ambos
associados ao Estado peruano, representando, assim, a dinâmica desigual e combinada do
capitalismo tardio. Assim, Manuel Scorza produziu uma estética em consonância com o método
monadológico de compreensão da história do “materialismo histórico” benjaminiano, conforme
podemos perceber com a leitura do seguinte fragmento dos livros das Passagens:
moderna, visto que se expõe na construção estética uma digestão criadora das ferramentas
modernas, como os motivos dos romances ocidentais e os procedimentos narratológicos da
tradição realista e maravilhosa transformados a partir da infiltração de elementos pré-modernos,
como no caso da racionalidade do “mito” na ordem sêmica “maravilhosa” e a inserção de
resíduos da oralidade quéchua, conformando como diferença o realismo maravilhoso.
Por fim, podemos concluir que a solução cultural romanesca de Manuel Scorza, para o
encontro conflituoso entre a tradição e a modernidade, promoveu como resultado, por meio do
limiar entre a demanda aurática e a condição pós-aurática do projeto de modernização da nova
narrativa hispano-americana, uma estética do jogo e da participação, na medida em que o
romance exige ao leitor a montagem da espécie de “quebra-cabeça” do grande painel das lutas
andinas, conformando, ao cabo, a imagem dialética que traz em seu bojo uma imagem mnêmica
dos vencidos andinos como elemento aurático, rompendo com a vocação compensatória do
boom. Isto é, o realismo maravilhoso de Bom dia para os defuntos sugere uma politização da
estética como vocação lúdica do boom em contrapartida à vocação compensatória de substituição
da política pela estética, formulada por Avelar.
Considerando que parte da crítica latino-americanista dos últimos anos procurou negar
qualquer potencial político desestabilizador na estética da nova narrativa hispano-americana,
conforme verificamos no interlúdio, promovendo uma espécie de homogeneização crítica
pessimista do boom, em contrapeso ao caráter eufórico da tradição crítica participante desse
contexto, busquei neste trabalho um caminho diferente desses campos, na medida em que
arranquei do conjunto da nova narrativa hispano-americana uma das obras mais esquecidas
passado o boom, tanto pelo mercado editorial quanto pela crítica acadêmica, para sugerir uma
tensão interna na constituição estética do realismo maravilhoso.
Nesse sentido, o objeto do presente estudo poderia ser considerado morto em dois
sentidos: primeiro, por fazer parte de uma estética incorporada às “articulações ideológicas” do
“Império”, conforme a perspectiva de Moreiras (2001, p. 226); segundo, pelo relativo
esquecimento editorial e crítico. Contudo, a partir do sentido crítico proposto pela epígrafe
acima, não compreendo a cultura e a crítica como uma herança intocável de um inventário
formado por imagens eternas cuja vida já se completou em sua época, ao revés, procuro entender
as obras de artes e as ferramentas críticas a partir de uma abertura, de um índice de vida, que se
acumula desde a produção – sua pré-história – até a recepção de qualquer presente – sua pós-
história – precisamente no sentido formulado por Benjamin, como se pode observar nesse trecho:
277
Seguindo esse direcionamento crítico, analisei a “vida” de Bom dia para os defuntos para
além de sua produção, tendo em vista que investiguei parte de sua pré-história e pós-história, a
278
Nessa perspectiva, pode-se concluir que este estudo também procurou colaborar para a
explosão de certo continuum da história do boom, no que se refere à homogeneização crítica do
caráter producente da estética da nova narrativa hispano-americana em favor das “articulações
ideológicas do Império”, reativando certa dimensão desestabilizadora suspensa de sua história,
ao mesmo tempo em que reconheceu a tendência de vocação compensatória do boom. Em outras
palavras, buscou-se começar a formulação e a investigação da hipótese de pensar a estética do
realismo maravilhoso, como escrita da não-disjunção, numa tensão interna fundamental: de um
lado, a tendência de substituição da política pela estética como vocação compensatória do boom,
conforme Avelar (2013), de outro lado, a tendência de politização da estética como vocação
lúdica da nova narrativa hispano-americana, onde cada tendência a seu modo procurou
responder ao limiar entre a demanda aurática e a condição pós-aurática do projeto de
modernização da literatura latino-americana. Portanto, considerando que a derrota levada a cabo
pelos regimes militares instaurou as condições de impossibilidades do realismo maravilhoso, na
medida em que “as ditaduras esvaziariam a modernização de todo conteúdo progressista,
libertador” (AVELAR, 2003, p. 48, ênfase do autor), fazendo ascender, dentro da derrota, a
vitória da primeira tendência da tensão interna do realismo maravilhoso em favor do
esquecimento da segunda, abrindo espaço, em retrospectiva, para homogeneização crítica, o
presente estudo tentou reativar criticamente a segunda tendência em suspensão.
98
Em anexo, seguem duas fotos de Manuel Scorza com Héctor Chacón, depois da libertação do presídio de Selpa,
na selva peruana.
279
então presidente do Peru, o general Juan Velasco Alvarado, por causa da grande repercussão de
Bom dia para os defuntos.
280
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ANEXOS
Numeradas de 1 até 13, as fotografias a seguir foram retiradas da revista argentina Crisis,
ano 1, n. 12, de abril de 1974. Pertenciam ao arquivo pessoal de Manuel Scorza. Exceto a foto
13, obviamente, todas foram capturas na época testemunhal da luta dos camponeses quéchuas.
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