“Art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem
desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.”
1) Se, na prática do aborto, o feto nasce com vida e vem a morrer fora do útero
materno em decorrência da intentada abortiva, o crime ainda é de aborto. O bem
jurídico atacado pelo agente foi a vida intrauterina, e a morte extemporânea não
desconfigura o crime.
CRIME IMPOSSÍVEL?
A) Quando o feto já está morto, e o agente, sem saber disso, realiza uma manobra
pretensamente abortiva.
B) Quando a mulher se engana, pensando estar grávida, ou quando o resultado de
um exame é falsamente positivo, e o agente realiza um ato visando causar a
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OBS:
Quando o agente ataca mulher grávida, com a intenção de causar nela lesões
corporais, e acaba por causar aborto, a configuração do crime vai variar de acordo com
o dolo do agente e a previsibilidade deste resultados. Vejamos os seis casos:
1) - Se o agressor não sabia da gravidez, nem tinha condições de dela saber, responderá
apenas pelas lesões corporais intentadas.
2)- Se sabia da gravidez, mas não desejava o aborto, nem assumiu o resultado de
produzi-lo, cometerá apenas a lesão corporal qualificada pelo resultado aborto culposo.
3)- Se sabia da gravidez e desejava o aborto e a lesão, é claro que se trata de lesão
corporal e aborto em concurso formal impróprio, ou imperfeito.
4)-O agente que mata a gestante, que sabe grávida, querendo causar-lhe a morte e o
aborto, estará em concurso formal impróprio entre homicídio e aborto. Da mesma
forma, estará em concurso se mata a gestante, mesmo sem querer o aborto, mas sabendo
da gravidez: está em dolo direto de segundo grau quanto ao aborto, porque é
consequência necessária do homicídio da gestante1.
5)- Se mata a gestante sem saber e sem poder saber da gravidez, responde apenas pelo
homicídio.
6)- O agente que quer apenas causar aborto, e para tanto se vale de lesões corporais
contra a mãe – chutes na barriga, por exemplo –, responde apenas pelo aborto, tentado
ou consumado, pois o meio de cometimento do crime, as lesões, resta absorvido.
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Se, morrendo a mãe, o produto for expelido e não morrer, o aborto será tentado, pois não se ilidiu o dolo
direto de segundo grau.
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Quanto à questão do feto anencefálico, cabe aqui retratar apenas o que foi
pedido na petição inicial da ADPF 54, ação direta em que a permissão do aborto de
anencefálicos é o objetivo: A petição inicial contém o seguinte requerimento principal:
O plenário do STF, em abril de 2012, julgou procedente essa ADPF, ajuizada pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores, a fim de declarar a constitucionalidade da
interrupção da gravidez nos casos de gestação de feto anencéfalo. Tal conduta foi
considerada atípica e independente de autorização judicial, bastando a concordância da
gestante. Posteriormente, o CFM ( o Conselho federal de Medicina), em 14 de Maio de
2012, publicou a Resolução de nº 1.989 de 2012, regulamentando o procedimento em
casos de constatação de anencefalia.
O “crime de aborto” pode ser tido por gênero, havendo três modalidades típicas,
que serão abordadas de forma apartada. A estrutura das três é a mesma, variando apenas
quanto à titularidade do pólo ativo.
- aquele que pratica o aborto consentido pela gestante não se enquadra neste tipo penal,
mas sim no artigo 126 do CP, que será visto adiante. É uma das raras exceções dualistas
no nosso sistema penal.
- Se o agente externo pratica a conduta de execução do aborto, incorre no crime do
artigo 126, a ser abordado;
-se auxilia a gestante a executar o crime – fornecendo-lhe o medicamento para que ela
ingira e execute ao aborto, por exemplo – será partícipe no autoaborto, incidindo no
artigo 124, supra. Da mesma forma ocorre com o médico que receita o medicamento
abortivo: é partícipe.
- O agente que colabora com o executor do aborto consentido pela gestante não estará
incurso como partícipe do artigo 124: ele é partícipe do crime cometido pelo terceiro,
que, como visto, é capitulado no artigo 126 do CP, que será visto adiante.
1º QUESTÃO:
Uma instituição pró-aborto holandesa, pondo em prática sua defesa desta atividade,
enviava um navio ao território brasileiro para captar mulheres grávidas que desejassem
abortar, e saia com elas embarcadas para o alto mar, além do mar territorial brasileiro,
quando então realizava o aborto em todas elas. Tratadas, o barco privado holandês
retornava ao Brasil e as mulheres desembarcavam. Há crime?
O navio privado de bandeira holandesa em águas internacionais é considerado
território holandês – a territorialidade não permitiria a incriminação. As mulheres,
porém, são brasileiras, e a extraterritorialidade permite, em regra, a punição de
brasileiros que cometem crimes no exterior, como se vê no artigo 7°, II, “b”, do CP.
Ocorre que o inciso II do artigo 7° do CP trata de casos de extraterritorialidade
condicionada, e, para que o brasileiro que comete crime no exterior seja punível no
Brasil, é preciso que preencha as condições do § 2° do mesmo artigo 7°:
Ocorre que, no caso, a Holanda não criminaliza o aborto, e por isso a condição
expressa na alínea “b” do § 2° não está preenchida – as mulheres não podem ser
punidas.
Veja que o embarque das mulheres em tal barco, com tal finalidade, não pode
sequer ser considerado início da execução de aborto consentido, porque a ligação deste
ato com a consumação é muito remota. O embarque é ato preparatório, e ainda assim é
remoto.
2º QUESTÃO:
Outro caso: a gestante percebe que está sofrendo um aborto espontâneo, e nada faz
para evitar que este ocorra, está cometendo algum crime? Esta gestante é
garantidora da vida intrauterina que carrega, e sua omissão é relevante, incidindo
portanto no crime do artigo 124 do CP por omissão. É claro que, para tanto, a omissão
deve ser relevante, porque se ficar claro que ainda que tomasse todas as providências a
seu alcance a morte do produto seria inevitável, não responderá.
EX: gestante, para qual é recitado medicamente absolutamente necessário para evitar o
aborto, que, querendo a superveniência do resultado, não o ingere.
Sujeito passivo deste crime é o produto da concepção, que é quem detém o bem
jurídico protegido, a vida intrauterina. A gestante, aqui, é sujeito ativo do crime, e não
vítima. E veja que a questão de ser o produto gestacional pessoa ou não, para fins de
titularizar direitos, é irrelevante ao Direito Penal: a vida intrauterina é o bem jurídico
protegido, e quem a possui é este produto.
Esta é a forma mais grave de aborto. Trata-se de crime comum, podendo estar no
pólo ativo qualquer pessoa, menos a própria gestante. No pólo passivo, figuram o
produto da concepção e a gestante, que não consentiu na interrupção da gravidez que ela
carregava.
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Como se antecipou, este artigo, coligado ao artigo 124 do CP, representa uma
quebra da teoria monista. O legislador, por política criminal, entendeu que a conduta do
agente que realiza o aborto com o consentimento da gestante deve figurar em tipo alheio
ao daquela, e receber pena maior, porque entendeu que sua conduta é mais reprovável
do que a da própria gestante.
O pólo ativo deste delito é comum, podendo qualquer pessoa praticar o crime. O
pólo passivo, aqui, é ocupado apenas pelo produto da concepção, eis que a gestante
incorre no artigo 124, como agente ativa, e não vítima.
Se a mulher que não tem capacidade para consentir no aborto, ou se de qualquer
forma o seu consentimento for viciado, o parágrafo único do artigo supra encaminha à
aplicação da pena do artigo 125 do CP, que se refere ao aborto praticado sem
consentimento da gestante. Esta previsão é um tanto estranha, sendo mesmo
dispensável, porque o agente que pratica aborto em gestante que não podia consentir, ou
cujo consentimento foi viciado, simplesmente praticou o aborto sem o consentimento
desta, e estaria incurso, originariamente, no artigo 125. Pela previsão deste parágrafo, o
agente que assim atua será capitulado no artigo 126 do CP, mas receberá a pena do
artigo 125.
a mãe consente no aborto porque o pai da criança conta para ela que seu filho nascerá
com síndrome de down, o que é mentira. Esta circunstância não consiste na fraude a que
se refere o artigo: a fraude que eiva o consentimento da vítima, levando ao
reconhecimento legal de que não houve consentimento, é a que induz a vítima a crer que
o aborto é permitido – e o aborto do filho com doença mental, chamado aborto
eugênico, não é permitido. No exemplo dado, o pai responde pelo artigo 126, caput, se
executa o aborto, ou se participa da execução por terceiro; ou responde como partícipe
do artigo 124, eis que induziu a gestante ao aborto consentido. A mãe, responde sempre
pelo artigo 124 do CP.
inválido. Neste caso, ela não responderia por crime algum, e ele incidiria no parágrafo
único do artigo 126, respondendo com a pena do crime de aborto não consentido.
5. Aborto agravado
“Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de
um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para
provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas,
se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.”
A lesão grave e a morte que agravam o aborto só podem ser culposas: trata-se de
resultado preterdoloso, pois se houver dolo não haverá incidência deste dispositivo, e
sim o concurso com o crime resultado, lesão ou homicídio. Guilherme Nucci, de forma
pouco técnica, defende isoladamente que este resultado pode ser tanto culposo como
doloso, incidindo neste dispositivo de qualquer forma.
Porque o resultado só se imputa a título de culpa, a seguinte situação pode
ocorrer:
- a gestante que sofre o aborto tem que ficar por quarenta dias de repouso, o que
implicaria em lesão grave, na forma do artigo 129, § 1°, I, do CP:
“Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
(...)”
O delito intentado foi o aborto, mas não se consumou; a morte da mulher foi
causa de aumento, culposa; assim, a capitulação fica sendo o crime de aborto
tentado (consentido ou não), majorado pela morte. Capez, porém, discorda, e
entende que deve ser aplicado o raciocínio da súmula 610 do STF:
2º entd) Outra corrente, de Hungria e grande parte da doutrina, entende que se trata de
homicídio culposo, além da participação no autoaborto.
Entenda: para esta perspectiva clássica, aquele que de qualquer forma colabora
para que a pessoa se coloque em uma situação de risco juridicamente proibida deve
responder pelo resultado de tal colocação em risco. È similar ao exemplo em que um
agente instiga outro a dirigir com imprudência, e um acidente ocorre, vindo apenas o
instigado a morrer: para a corrente clássica, este perigo causador da morte foi decorrente
da instigação, e há o crime; para a corrente mais moderna, trata-se de auto exposição da
vítima, o que afastaria a responsabilidade do incitador.
Esta dinâmica diz respeito ao concurso de pessoas em crimes culposos, que é
questão bastante polêmica. Se duas pessoas, de forma imprudente, colaboram para um
resultado danoso, há que se cogitar se há a participação de uma na inobservância do
dever de cuidado da outra, ou se há dois crimes isolados, eis que cada um inobservou o
próprio dever de cuidado – inexistindo, neste caso, concurso. Há inúmeras discussões
sobre o tema, mas a corrente que entende inexistente o concurso, havendo crimes
separados, é forte, justamente porque cada um tinha seu dever de cuidado a ser
observado, e não o fez; e se o crime é culposo, é impossível se falar em liame subjetivo.
No caso do aborto, aquele que instigou a gestante a praticar o autoaborto está
fomentando a colocação da agente em risco proibido, e sua ação é imprudente; a da
gestante também é imprudente; sendo assim, ambos incidiram na conduta culposa em
relação à morte, e resta o crime de homicídio ao instigador supérstite.
6. Abortamentos legais
É causa própria porque não se pune o aborto praticado por médico, somente,
como se vê no caput do artigo; e é excludente de ilicitude especial porque encontra-se
na parte especial do código penal, dedicada apenas a um delito ou grupo de delitos.
Vejamos cada um dos casos eleitos pelo legislador.
O direito brasileiro não contempla regra permissiva do aborto nas hipóteses em que os
exames médicos pré-natais indicam que a criança nascerá com graves deformidades
físicas ou psíquicas. Não autoriza, pois, o aborto eugênico ou eugenésico. O fundamento
dessa opção é a tutela da vida humana no mais amplo sentido. O Direito Penal protege a
vida humana desde a sua primeira manifestação. Basta a vida, pouco importando as
anomalias que possa apresentar. Como lembra Nélson Hungria em relação ao
homicídio, em citação perfeitamente aplicável ao crime de aborto:
Lesão corporal praticada contra grávida com o dolo de matar o feto: como tipificar
essa conduta?
Maria, grávida de 7 meses, estava dormindo. João, marido de Maria, com a intenção de
matar o feto, desfere soco no lado direito da barriga de sua esposa, local onde o exame
de ultrassom indicara que estava a cabeça do nascituro.
• Lesão corporal grave em decorrência da aceleração de parto (art. 129, § 1º, IV, do CP),
tendo como vítima Maria; e por
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• Homicídio doloso com duas qualificadoras (art. 121, § 2º, II e IV), tendo como vítima
o bebê que morreu com 20 dias de vida.
O réu pode responder por homicídio mesmo que, no momento da ação, o bebê ainda
estivesse dentro da barriga da mãe?
O que deve ser verificado para a definição do delito, segundo a Relatora, é o resultado
almejado.
Na ação praticada pelo réu, seria possível identificar o suposto dolo de matar, tanto no
delito de aborto quanto no de homicídio. Assim, como a consumação do crime ocorreu
após o nascimento, deve-se adequar o enquadramento penal de aborto para homicídio.
A Relatora afirmou que seria o mesmo raciocínio que se utiliza quando uma pessoa
pratica tentativa de homicídio e que, depois de algum tempo, a vítima vem a falecer.
Aquela conduta que era classificada como tentativa de homicídio passa a ser tipificada
como homicídio consumado.
Não haveria bis in idem no fato de o réu responder por lesão corporal e também por
homicídio?
NÃO, não há bis in idem. Segundo foi decidido, o que se verificou no presente caso foi
um concurso formal imperfeito, ou seja, aquele no qual o agente, com uma só ação ou
omissão, pratica, com desígnios autônomos, dois ou mais crimes.
O réu, com uma só conduta, gerou não apenas a lesão corporal na mãe, mas também,
como resultado, a morte da criança. Assim, não poderia a análise do delito se limitar à
lesão corporal, sob pena de se negar tutela jurídica ao segundo resultado.