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Métodos Fronteiriços

objetos míticos, insólitos e imaginários

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Heloísa Helena Siqueira Correia
Valdir Aparecido de Souza
Osvaldo Duarte

Métodos Fronteiriços

objetos míticos, insólitos e


imaginários

Poiesis Editora
Marília
2016

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©Poiesis Editora 2016
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Tatiana Mesquita Nunes (USP/São Paulo, Brasil)
Vera Teresa Valdemarin (UNESP/Araraquara, Brasil)
Walter Omar Kohan (UERJ/Rio de Janeiro, Brasil)

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Índice

Apresentação: Entre objetos, métodos e fronteiras•9

Parte 1•Amazônia: território híbrido da história e da literatu-


ra•17
1•O insólito na literatura e na história: a Amazônia em ques-
tão•19
2•Razão e estranhamento na representação da natureza na
literatura amazônica no início do século XX•41
3•A persistência do discurso mitificador na Amazônia Oci-
dental•57
4•Insolitudes acreanas: realidades imaginadas, relações híbri-
das e fronteiriças•81
5•O utópico A. R. P. Labre•97
Parte 2•Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos
e textos•113
6•O insólito na literatura brasileira•115
7•Concepções e métodos de pesquisa sobre o insólito na
literatura•155
8•Literatura fantasma: qual linguagem, qual método?•173
9•O poeta que apelou para o futuro. Tecnociência e insólito
na poesia de André Carneiro•193

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10•Pequeños y raros gigantes. Fronteras de lo insólito, lo
híbrido y lo vampiresco en el bestiario uruguayo de Lautréa-
mont y Horacio Quiroga •215
11•Zack: una distopía urbana en el Uruguay•225
Parte 3•Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais•237
12•Objetos míticos americanos: livros dos povos tradicionais
e experiências de leitura da autoria indígena no Brasil•239
13•Los libros del Tío Lino. Tradición impresa, libro de la
comunidad y mitos andinos•255
Apresentação dos autores•275

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Entre objetos, métodos e
fronteiras

Heloísa Helena Siqueira CORREIA


Valdir Aparecido de SOUZA
Osvaldo DUARTE
Nosso tempo se caracteriza pela promoção da uniformidade sem
forma. Vivemos empenhados em derrubar as fronteiras de nacio-
nalidade, raças, classe, gêneros, geração, cultura, ao mesmo tem-
po em que somos premidos pela descontinuidade: tudo o que nos
acerca, se movido por algum nível de reflexão, mostra-nos como
a ambiguidade do gênio individual, o interesse de classe, os ges-
tos empenhados das minorias, a intransigência difusa das opini-
ões hodiernas, encaminha-nos para a luta e, consequentemente,
para uma contradição entre a ideia de unidade e a angústia de
aceitação do outro. Sim, é possível aceitar esse estado de desinte-
gração como mera constatação do presente. É possível, contudo,
tomar posse dele pelo seu aspecto de ambiguidade e contradição,
como fatores capazes de movimentar a reflexão sobre o presente e
seus modos de manifestação. Entre esses modos, este livro – que
surge como resultado do Primeiro Congresso Métodos Fronteiri-
ços: objetos míticos, insólitos e imaginários, realizado na Univer-
sidade Federal de Rondônia, com o apoio da Capes e do CNPq
– optou por tratar das manifestações de ordem simbólica e algu-
mas maneiras de abordagem dessas manifestações.
O Primeiro Congresso Métodos Fronteiriços: objetos míticos, in-
sólitos e imaginários reuniu pesquisadores brasileiros, peruanos e
uruguaios que estudam as literaturas e os mitos da região amazô-

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Métodos Fronteiriços

nica e suas múltiplas fronteiras, ampliadas por temas correlatos e


mais abrangentes como o imaginário, o insólito, o fantástico, to-
mados a partir de diferentes formas de expressão, múltiplas pos-
sibilidades de abordagem e em duas perspectivas: uma com foco
na Amazônia e outra de caráter geral. Na perspectiva amazônica,
o objetivo do congresso, que se reproduz no livro, foi refletir sobre
a Amazônia latino-americana, sua literatura escrita e oral e seus
mitos, chamando a atenção para a miríade de objetos raros, cuja
natureza (evanescente) cria, inversamente, realidades concretas e
históricas. Tendo-se isso em vista, pode-se discutir as possibili-
dades metodológicas capazes de sustentar pesquisas situadas nos
marcos fronteiriços da racionalidade, reconhecendo as imbrica-
ções entre a dimensão estética, histórica e política dos grupos e
comunidades, como forma de estimular o compartilhamento de
saberes, práticas, experiências socioculturais e conhecimentos
a respeito dos discursos de legitimação simbólica e política dos
colonizadores sobre a Amazônia. Na perspectiva geral, o propó-
sito foi refletir sobre as possibilidades metodológicas advindas da
fenomenologia da imaginação literária e da antropologia do ima-
ginário, ou ainda, do campo dos estudos literários propriamente
ditos, delineados por teorias do fantástico e seus desdobramentos
(neofantástico, insólito, etc.) que podem se constituir em ferra-
mentas mais ou menos seguras para o estudo da literatura. Dis-
cute-se, portanto, os pressupostos e desdobramentos político-i-
deológicos dos métodos, leva-se em conta que os objetos míticos,
insólitos e imaginários são elementos que povoam o território da
literatura e materializam-se na ação histórica, ao tempo em que
atuam como constituintes da vida social. A questão a se saber é
como métodos eminentemente ocidentais se aproximam de obje-
tos situados nas fronteiras da racionalidade (ocidental), base de
nossa ciência e investigação. Nesse sentido, a suspeita em relação
à ordem do discurso predominante nos centros de pesquisa da
região Norte – que tem a história como testemunha e talvez deva
ter, finalmente, a autocrítica como condição sine qua non – evi-
denciou a exigência dos pesquisadores por um abrir-se para fora
de si a fim de perguntarem sobre os modos como os pesquisado-
res do norte leem a si mesmos, e também como leem o Brasil e o
mundo, e como com eles dialogam.

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Apresentação

No que diz respeito à emblemática relação entre o eu e o outro


procura-se refletir sobre o afã e a hostilidade do animal humano
para com outros animais, humanos e não humanos e em relação
ao mundo, como forma de exercício sobre o “sair de si”, práti-
ca eternamente imberbe no ego imantado das civilizações. Aqui,
mais uma vez, o foco de atenção é a Amazônia, onde essa relação
esteve sempre marcada por diferentes modos de violência: pelo
insurgimento contra os animais humanos e não humanos, pela
devastação do ecossistema, pelo aniquilamento de crenças, cos-
tumes, mitos e pela miséria que isso acarreta.
Comprometidos com uma epistemologia de fronteira, aproxi-
mando métodos, disciplinas e temas, os pesquisadores presentes
no congresso rasuraram divisas, transitando, de permeio, por
natureza e cultura, mito e realidade, sólito e insólito, literatura
e ciência, razão e devaneio, civilização e barbárie, grupo e indi-
víduo, desenvolvimento e violência, dimensões da realidade, vá-
rias amazônias, ocidente colonizador e outros incidentes, que de
alguma maneira estão comtemplados no livro.
Fica patente também o esforço para mostrar que somos herdeiros
de tradições – Aruak, Tupi, Guarani, Asteca e Inca – que há mui-
to se tenta apagar, mas que a todo tempo se manifestam (mesmo
massacradas em sua nobre sutileza) nos saberes, nos falares, na
gastronomia, no estilo de vida. Por isso, entre outras coisas, ca-
minha em direção a um pensamento mestiço, latino-americano,
nativo, a ser pensado como encontro de culturas e não como pro-
jeção negativa de uma idealidade europeia a ser alcançada. Trata-
se de uma perspectiva que procura redescobrir o encontro de ci-
vilizações e o que dele resultou como ganho e como perda. Serve,
ainda, para lembrar, o respeito que se deve aos modos de vida que
a duras penas se constroem na Amazônia, já que a mercê de de-
mandas nacionais invasivas, que mesmo em face da degradação,
persistem – a história, a antropologia, a arqueologia, a ficção – na
memória idílica da “primeira” Amazônia.
Os textos aqui reunidos permitem ao leitor um percurso livre,
compondo o seu próprio mosaico: literatura, história, mito, cul-
tura, Amazônia, América Latina, etc., em variado trajeto e cruza-
mento de diálogos, cuja ordem proposta se estrutura em quatro
eixos: “Amazônia: território híbrido da história e da literatura”,

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Métodos Fronteiriços

“Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos” e


“Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais”.
O texto que abre o livro, O insólito na literatura e na história: a
Amazônia em questão pertence a Antônio Roberto Esteves, que
investiga, por meio da aproximação entre literatura e história, o
modo como o insólito se faz presente em narrativas que se ocu-
pam em descrever a realidade amazônica. Para tanto, considera a
heterogeneidade discursiva de relatos históricos e literários, nos
quais tanto a literatura como a história exercem formas variadas
de contrabandos mútuos.
Alexandre Pacheco, em Razão e estranhamento na representação
da natureza na literatura amazônica de inícios do século XX, traça
as linhas de força da crítica literária de Francisco Foot Hardman
e de Allison Leão sobre a literatura amazônica do início do século
XX. Desses perfis, emerge, entre outras conclusões importantes,
as notações de Hardman de que nos autores por ele examinados
o imaginário sobre a Amazônia seria construído como voragem
da história e como conciliação entre o assombro, e o anseio civili-
zatório, ao passo que Allison Leão, em sua leitura de Alberto Ran-
gel demonstraria o esforço esbatido desse autor, ao tentar adaptar
sua concepção da realidade amazônica ao positivismo, recaindo
em frouxo romanticismo.
Valdir Aparecido de Souza, em A persistência do discurso mitifi-
cador na Amazônia Ocidental demonstra como o discurso con-
quistador sobre as populações amazônicas foi incorporado pelos
intelectuais. Dialoga, primeiramente, com a obra The Armature of
Conquest (1992) de Beatriz Pastor que se ocupa das narrativas de
conquista da América, passando às analises de Antônio Esteves
acerca de obras literárias cujo espaço diegético se desenvolve na
Amazônia, concluindo com análises de excertos do poema épico
A Muhuraída ou o triumpho da Fé, de João Henrique Wilkens
(1789), Caiari de Emanuel Pontes Pinto (1986), e Desbravadores
vol. I e II, de Vitor Hugo (1959;1993).
Os dois textos que fecham a primeira seção do livro são Insoli-
tudes acreanas: realidades imaginadas, relações híbridas e frontei-
riças, de Francisco Bento da Silva, e O utópico A. R. P. Labre, de
Hélio Rodrigues da Rocha. O primeiro toma três características:
híbrido, raro e fronteira, a partir das quais delineia aspectos do

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Apresentação

espírito e da cultura acreana. O segundo texto historiciza os 30


anos que o coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre, chegado do
Maranhão, passa na região do Purus, onde desenvolve estudos et-
nográficos relevantes para o conhecimento dos povos indígenas.
O texto que abre a segunda seção do livro é O insólito na literatura
brasileira, de Maria Cristina Batalha, que realiza um detalhado
e oportuno mapeamento da ficção fantástica no Brasil – seus
autores, suas vertentes – desde os primórdios, em meados do
século XIX, até os dias de hoje. Em seguida, Flavio García, em
Concepções e métodos de pesquisa sobre o insólito na literatura
tece considerações acerca da ficção do insólito, perscrutando
concepções e métodos de pesquisa úteis ao estudo do gênero. O
autor inicia com uma análise do termo, passando em seguida ao
registro da incidência do termo em estudos de críticos brasileiros
e espanhóis e à exemplificação sincrética dos aspectos por meio
dos quais uma narrativa se inscreveria no conjunto da ficção do
insólito.
Heloisa Helena Siqueira Correia, em Literatura fantasma: qual
linguagem, qual método? analisa a obra Viagem a Andara, o livro
invisível (1988), e os Manifestos Curau I e II de Vicente Franz
Cecim, em que o autor paraense desenvolve, na primeira, desde
1979, a proposta de uma literatura fantasma e, em Curau I e II a
urgência da feitura de uma outra história, cuja realidade só se
constituiria pela posse do imaginário do homem e da região.
Osvaldo Duarte, em O poeta que apelou para o futuro - tecnoci-
ência e insólito na poesia de André Carneiro, apresenta o mago da
ficção científica no Brasil sob uma perspectiva nova, mostrando
como esse escritor transpõe, em sua poesia, “na fronteira entre
poesia lírica e ciência” o universo fantástico e insólito da ficção
científica.
Fechando a segunda seção, apresentam-se dois críticos uru-
guaios: Marcelo Damonte e Virginia Frade, ambos, pesquisadores
da Universidad de la Republica Oriental del Uruguay. O primeiro,
com o texto Pequeños y raros gigantes. Fronteras de lo insólito, lo
híbrido y lo vampiresco en el bestiario uruguayo de Lautréamont
y Horacio Quiroga, reflete sobre o tema do sangue e, mais espe-
cificamente, sobre a presença de criaturas hematófagas na obra
Los cantos de Maldoror (1867), do conde de Lautréamont, esta-

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Métodos Fronteiriços

belecendo diálogo entre o universo fantástico presente na obra


desse autor e a temática do conto El almohadón de plumas (1907)
de Horacio Quiroga. Marcelo Damonte demonstra ser possível
entrever uma “una geografía de borde”, tensa, híbrida e mesti-
ça, manifesta em franco conflito com o canônico já que os seres
(pequenos, gigantes, monstruosos) presentes nas duas obras – o
piolho, o ácaro, a sanguessuga – afastam-se da monstruosidade
arquetípica de corte europeu, para habitarem uma margem fron-
teiriça que divisa com o imaginário crioulo do Uruguai. Já a pes-
quisadora Virginia Frade, com o texto Zack: una distopía urbana
en el Uruguay examina o caráter distópico de Zack, romance de
Ana Solari, demonstrando como esse traço se configura estilisti-
camente na obra.
A seção Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais, que
encerra o livro, compõe-se de dois textos: Objetos míticos ame-
ricanos: livros dos povos tradicionais e experiências de leitura da
autoria indígena no Brasil, de Cynthia de Cássia Santos Barra, e
Los libros del Tío Lino. Tradición impresa, libro de la comunidad
y mitos andinos, de Elías Rengifo de la Cruz, professor da Uni-
versidad Nacional Mayor de San Marcos, no Peru. No primeiro
texto, a autora, trata de livros de autoria indígena publicados no
Brasil nas últimas décadas, especialmente Shenipabu Miyui: his-
tórias dos antigos (1995; 2000; 2008), de autoria de professores
indígenas Kaxinawá, Antes o mundo não existia (1980; 1995), de
Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhríri, da etnia Desana; e
Hitupmã’ax (2009), livro de saúde dos Maxakali, escrito por pro-
fessores Maxakali em conjunto com uma equipe multidisciplinar.
Três livros, três desafios: são objetos poéticos heteróclitos, insó-
litos e estranhos em seus discursos e narrativas. Constituem-se
como um complexo epistêmico que põe permanentemente em
questão as nossas formas de construir teorias sobre o outro e so-
bre o discurso do outro.
Em Los libros del Tío Lino - tradición impresa, libro de la comu-
nidad y mitos andinos, Elías Rengifo de la Cruz estuda os livros
de comunidade, examinando várias versões dos contos de Tio
Lino, herói cultural e mítico da região andina. Esses livros, as-
sim considerados organicamente constituídos e por se revelarem
como referentes escriturais de uma cultura local “son textos de
orientación ética, estética y conductual”, plenos de lendas e mitos

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Apresentação

conectores da relação entre literatura oral, cultura letrada e as


novas modernidades.
Pensado inicialmente como desdobramento da discussão espe-
cializada sobre o insólito na literatura encaminhada pelo Grupo
de Pesquisa Vertentes do Insólito Ficcional da ANPOLL e como
exercício de exteriorização do Grupo de Pesquisa em Estudos
Literários, do Centro de Estudos Interdisciplinares sobre o Ima-
ginário Social, do Grupo de Pesquisas Mapa Cultural - Centro In-
terdisciplinar de Estudos em Cultura e Artes e dos Programas de
Mestrado em Estudos Literários, e em História e Estudos Cultu-
rais da Universidade Federal de Rondônia, a franca abertura para
o encontro com pesquisadores latino-americanos e o acolhimen-
to de reflexões sobre a Amazônia deram ao congresso e dão a este
livro um valor próprio à medida que objetos míticos, insólitos e
imaginários puderam ser pensados na perspectiva Amazônica e
sob o desafio de se refletir sobre a possibilidade de métodos capa-
zes de operar em zonas de permeio, entre disicplinas, epistemolo-
gias, conceitos, visões do que se devia chamar realidade.
O livro se lança, então, sob a suspeita de que é no espaço sem
nome e incômodo das fronteiras que o pensamento crítico pode
melhor se constituir como tal.

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Parte 1

Amazônia: território híbrido da


história e da literatura

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1 O insólito na literatura e
na história: a Amazônia
em questão

Antônio R. ESTEVES1

“Se o senhor me entendesse na minha fala eu contava melhor.” (palavras


de um índio huitoto a Mário de Andrade)
“¿Pero qué es la historia de América toda sino una crónica de lo real
maravilloso?” (Alejo Carpentier)
“América. Todo es ansia, jugo, sangre, savia, jadeo, sístole y diástole, ali-
mento y estiércol, en el implacable ciclo de leyes cósmicas que parecen
recién establecidas.” (Abel Posse)
“El mundo, desgraciadamente, es real.” (Jorge Luís Borges)

A modo de Overture
A grandiosidade da Amazônia me faz recorrer a outras vozes para
poder achegar a seu universo. Como modo de abertura incorpo-
ro o discurso de Todorov, da clássica obra que trata da perple-
xidade do europeu, e sua reação, ao ter diante de si a diversa e
monumental realidade americana. Faço minha a primeira pessoa
discursiva do pensador francês nascido na Bulgária:
Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso.
Mal acabamos de formulá-lo em linhas gerais já o vemos subdividir-
se em categorias e direções múltiplas e infinitas. Pode-se descobrir

1 Docente da FCL-UNESP-Assis, Graduação e Pós-Graduação, doutor em


Letras.

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Métodos Fronteiriços

os outros em si mesmo, e perceber que não é uma substância homo-


gênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo: eu é
um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como
eu. Somente meu ponto de vista segundo o qual todos estão lá e eu
estou aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso
conceber os outros como uma abstração, como uma instância da con-
figuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem
em relação a mim.
Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não perten-
cemos. Este grupo, por sua vez, pode estar contido numa sociedade:
as mulheres para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para
os “normais”. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que,
dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo
se aproximam de nós, no plano cultural, moral ou histórico, ou des-
conhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão
estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a
uma mesma categoria. (TODOROV, 1983, p. 3, grifos meus)
Faço também um parêntese (auto)biográfico. Coloquei os pés na
Amazônia, pela primeira vez em Porto Velho, em uma tarde úmi-
da de dezembro de 1981, e daqui me dirigi à vizinha Humaitá,
de Álvaro Maia, onde realizei um estágio, primeiro contato com
essa realidade insólita. Desse modo, ao longo dessas três décadas,
às vezes com mais frequência, às vezes mais esporadicamente, a
região tem habitado meu imaginário. Por isso a gratidão ao voltar,
uma vez mais, ao tema, e à região. Para tal, insuficientes as pala-
vras minhas, valho-me das palavras de outrem, embora diante de
meus olhos corram as outras águas do mesmo Madeira, trazendo
em seu bojo algo da terra dos Andes em sua busca incessante pelo
Oceano. Um oceano que é o fim de todos nós, como dizia o poeta
medieval espanhol Jorge Manrique, para falar de outras vidas, de
outros rios e de outros mares, que afinal de contas correm para o
mesmo fim. O Madeira, enfim. Rio que cruzei quando coloquei
os pés na região, naquela longínqua tarde, o mesmo rio navegado
por Mário de Andrade décadas antes. O tão conhecido rio de Ál-
varo Maia, o escritor com o qual fecho este texto, uma espécie de
visita memorialística em minhas relações com a Amazônia.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

O caminho a ser percorrido


Literalmente, método significa o “caminho a ser seguido”. O Di-
cionário Houaiss, entre outras acepções, define método assim:
1- procedimento, técnica ou meio de se fazer alguma coisa, esp. de
acordo com um plano. [...]
2- processo organizado, lógico e sistemático de pesquisa, instrução,
investigação, apresentação, etc. [...]
10- Fil. Conjunto sistemático de regras e procedimentos que, se res-
peitados, em uma investigação cognitiva, conduzem-na à verdade.
[...]
10.3. No pensamento de Edgar Morin (1921), atitude intelectual que
busca a integração das múltiplas ciências e de seus procedimentos
cognitivos heterogêneos, tendo em vista o ideal de um conhecimento
eclético e complexo. [...]
Método científico: reunião organizada de procedimentos racionais
utilizados para investigar e explicar os fatos e fenômenos da natureza
por meio da observação empírica e da formulação de leis científicas.
(HOUAISS, 2001, p. 1910)
O conhecimento eclético buscado neste contexto nos aproxima
do pensamento do filósofo francês Edgard Morin. Trata-se da
busca da atitude intelectual que pretende integrar diversas ciên-
cias e seus procedimentos cognitivos heterogêneos.
Nesta mesma direção, proponho um caminho menos reto, labi-
ríntico como a própria selva, na maranha de seus rios, lagos e
igarapés, maranha que acaba refletindo em um dos nomes de seu
rio principal: Maranhão. Um caminho menos simplificado, uma
vez que a matéria discursiva é ampla e intrincada, entrecruzando-
se em diversos pontos e apontando em várias direções.
No contexto em que localizamos nossos estudos, considerando a
heterogeneidade discursiva que envolve a questão, prefiro pensar
em redes, uma vez que, de acordo com Deleuze & Guatari (1995,
p. 15), “o pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma
matéria enraizada nem ramificada [...] É mais uma erva que uma
árvore”. Uma grama que se expande em todas as direções. Assim,
para os autores:
Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e

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Métodos Fronteiriços

deve sê-lo. É muito diferente da árvore. A árvore linguística à maneira


de Chomsky começa ainda em um ponto S e procede por dicotomia.
Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente
a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda a natureza são aí
conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas,
políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes
de signos diferentes, mas também estatutos de estados e coisas.” (DE-
LEUZE & GUATARI, 1995, p. 15, grifo meu)
Romper com a ideia de árvore pode parecer um paradoxo, sobre-
tudo em se tratando da selva que sempre construiu sua identida-
de considerando as copas altas das árvores. No entanto, perma-
nência, estabilidade, continuidade, experiências que se somam
inerentes à imagem da árvore, cronotopo da cultura ocidental,
são insuficientes para contar uma história “carregada de tensão e
de conflito”. (MACHADO, 2007, p. 54) Como é a história em ge-
ral e mais particularmente a história dos povos dominados, mar-
ginalizados, excluídos muitas vezes, quase sempre instalados na
periferia do sistema que nos narra a partir de um centro distante
e alheio à nossa realidade.
Nossa história se escreve sob o signo do provisório, do fragmen-
tário, e da constante reinvenção. Urge que se rompa com a visão
monolítica e homogênea da realidade e da história. Assim, é ne-
cessário estabelecer novas relações, com o desenvolvimento de
redes nas quais os pontos se espraiem em várias direções. Como
no rizoma, “os bulbos vão se disseminando, se espraiando e se
reconectando, formando aquilo que nós, trabalhadores da cultu-
ra, podemos pensar como pontos de vista”. (MACHADO, 2007,
p. 54) Algo que possa se espraiar como os infinitos igapós, lagos,
igarapés, rios, como ocorre na região e não algo que deva crescer
ordenadamente em direção ao céu como a garbosa castanheira
ou a hévea altaneira. Árvores que de algum modo acabam arras-
tadas pelas torrentes instáveis dos rios, reconfigurando de modo
constante novas margens, como as desse Madeira que nos vigia.
Sugiro, desta forma, apoiado nos pensadores franceses, a ideia
do rizoma, da rede, da água que se espraia. Assim meu discurso
é rizomático, para tratar de uma história que não é fixa nem é
imutável, e pretende captar “diferentes vozes, diferentes enuncia-
dos, diferentes formas de perceber o mundo social, o mundo da

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

política, da cultura, e diferentes processos de construção de iden-


tidades sociais”. (MACHADO, 2007, p. 55)
Demando apenas que, diante deste universo de narrativas frag-
mentadas, o leitor estabeleça as conexões que lhe fizer melhor
sentido, entretecendo-as com sua própria narrativa, sua visão
particular de mundo e de história, tão válida quanto qualquer
outra.

Fronteira & entre-lugar


Etimologicamente fronteira vem de frons, frontis, que também
dá origem a frente e a fronte. Assim, a mudança do ponto de vista
é necessária. Não mais a atalaia distante, a última fortaleza diante
do território inimigo, mas um cara a cara. Estar frente a frente,
frente à frente, frente à fronte, fronte a fronte, não com o inimigo,
mas com o outro, que afinal de contas pode em seus olhos, refletir
nossos desejos. Olhar o outro, ser olhado pelo outro. Desejar o
outro, ser desejado pelo outro. Um outro que muitas vezes está
dentro de nós e que só pode ser identificado pelo olhar de outro.
Ou, de modo invertido, como na imagem do espelho.
A fronteira deixa, então, de ser uma linha divisória para tornar-
se um lugar de comunicação (SANTOS, 1995), um espaço in-
termédio. Cria-se uma zona de intercâmbios, de negociação, de
construção de outra realidade mestiça, híbrida, babélica. Nela os
contatos se pulverizam e se ordenam segundo micro hierarquias
poucos suscetíveis de globalização. Nela são imensas as possibili-
dades de identificação e de criação, todas igualmente superficiais
e igualmente passíveis de subversão.
Além de abarcar amplos domínios, as fronteiras são porosas, per-
meáveis, flexíveis. Marcadas pelos deslocamentos, elas constroem
entre-lugares discursivos, especialmente, mas também culturais;
ferramentas metodológicas interessantes para a leitura da reali-
dade amazônica da qual tratamos de nos acercar.
Uma vez mais, prefiro citar diretamente, que parafrasear o ori-
ginal. As entrelinhas dos fragmentos também têm significados
discursivos. Neste contexto, o conceito de entre-lugar de Silvia-
no Santiago (1978) “torna-se particularmente fecundo para re-
codificar os limites difusos entre o centro e a periferia, cópia e

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Métodos Fronteiriços

simulacro, autoria e processos de textualização, literatura e uma


multiplicidades de vertentes culturais que circulam na contem-
poraneidade e ultrapassam fronteiras, fazendo do mundo uma
formação de entre-lugares”. (HANCIAU, 2005, p.125)
Independente da nomenclatura particular a ideia de Silviano San-
tiago predomina no conto “A terceira margem do rio”, de Guima-
rães Rosa. Repito as palavras de Núbia Hanciau:
Entre-lugar (Santiago), lugar intervalar (Glissant), tercer espacio ( Mo-
reiras), espaço intersticial ( Bhabha), the trird space (revista Chora),
in-between (Mignolo e Gruzinski), caminho do meio (Bernd), zona
de contato ( Pratt) ou de fronteira (Pizarro e Pesavento), o que para
Régine Robin representa hors-leieu, são algumas, entre as muitas va-
riantes para denominar, [...] as zonas criadas pelos descentramentos,
quando da debilitação dos esquemas cristalizados de unidade, pureza
e autenticidade, que vêm testemunhar a heterogeneidade das culturas
nacionais no contesto das Américas e deslocar a única referência atri-
buída à cultura europeia”. (HANCIAU, 2005, p. 127)

O insólito: crise da mimese/Mimese da crise


Faço neste ponto uma homenagem a Lenira Marques Covizzi
(1978). Em sua premiada Dissertação de Mestrado, defendida na
USP em 1970, sob a orientação de Antonio Candido, e publicada
em 1978, ela prefere falar de insólito, discutindo a crise na análise
da mimese da crise. Seu trabalho é praticamente contemporâneo
do conhecido estudo de Todorov sobre o fantástico, datado de
1968, editado na França em 1970, só publicado traduzido no Bra-
sil em 1975. De O insólito em Guimarães Rosa e Borges (Crise da
Mimese/Mimese da Crise), retomo alguns fragmentos:
À tendência racionalista no mundo da ficção, da qual Flaubert é pa-
radigma, opõe-se a tendência marcadamente irracionalista [...] Con-
tata-se a referida desintegração, seja na nova maneira de usar seu
instrumento expressivo (língua, sons, cores) seja na nova maneira de
escarar o constante ponto de referência (a realidade). [...]
À expressão ficcional, que é representação da realidade subordinada
ao conhecimento perceptual, opõe-se, no nosso século, uma expres-
são que, arbitrariamente, subverte aquele tipo de conhecimento. (CO-
VIZZI, 1978, p. 35-6)

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

[...] Hoje não há mais centro. [...]. Hoje o leitor é solicitado a comple-
mentá-la [a obra de arte], a participar dela, a entrar por suas aberturas
com ou sem fundo, atividade com que também o autor se identifica.
(COVIZZI, 1978, p. 31)
[...] A tendência irrealista ou de realismo mágico na literatura oci-
dental de nosso século corrobora a dúvida sobre a realidade de tudo,
encarando-se como realidade a padronização que se convencionou
chamar de realidade. (COVIZZI, 1978, p. 42, grifo meu)
[...] E essa inadequação [da realidade perceptual e sua representação
artística] é tanto mais perturbadora quanto se a reconhece não como
simples variante dentro de uma cultura, mas como oposição radical
(estrutural) à forma do pensamento e à práxis do homo occidentalis: a
mimese. (COVIZZI, 1978, p.46)
Apesar de longa, vale a pena repetir sua definição de insólito, visível a
partir da constatação da mimese em crise:
A aludida constante, que batizamos de insólito, no sentido do não-a-
creditável, incrível, desusado, contém manifestações congêneres que
englobamos como tal:
-ilógico – contrário à lógica; não-real; absurdo.
-mágico – maravilhoso; extraordinário; encantador.
-fantástico – que apenas existe na imaginação; simulado; aparente; fic-
tício; irreal.
-absurdo – que é contra o senso, a razão; disparate; despropósito.
-misterioso – que não nos é dado a conhecer completamente; enig-
mático.
-sobrenatural – fora do natural ou comum; fora das leis naturais.
-irreal – que não existe; imaginário.
-supra-real – o que não é apreendido pelos sentidos; que só existe ide-
almente; irrealidade; fantasia. (COVIZZI, 1978, p.36)
Dispenso, por reiterativa, qualquer outra definição do insólito.
Nessa categoria incluo outras formas de ver o mundo, como o
fantástico, o mágico, o realismo mágico, o real maravilhoso, te-
orizadas e discutidas à exaustão. De alguma forma representam
modos de reiterar a crise da mimese, que é mais antiga do que
desejaria o pensamento positivista do século XIX. Elas estão pre-
sentes, com mais constância, no pensamento do século XX, es-

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Métodos Fronteiriços

pecialmente no âmbito das artes. A mimese da crise, no entanto,


não habita apenas o mundo das artes. Após fenecer o positivismo
rankeano, também acabou por fazer-se presente na historiografia,
especialmente na segunda metade do século XX:
Finalmente, os historiadores reconhecem que a história não é um
campo isolado, separado dos demais por uma vala, mas uma práti-
ca interdisciplinar, um cruzamento de objetos e de temas, conheci-
mentos, metodologias e técnicas. [...] a história (sobretudo, mas não
apenas a do presente) deixou de ser monopólio dos historiadores, já
que no marco da disciplina aparecem importantes publicações de so-
ciólogos, economistas e jornalistas. Observa-se também um crescente
apagamento das fronteiras entre a história e outras áreas do conhe-
cimento. Através da interdisciplinaridade constitutiva, a nova forma
de ver a história participa plenamente na cultura pós-moderna, na
qual a dissolução entre os limites entre diversas práticas é uma das
características fundamentais. Não resta duvida de que, os sujeitos,
objetos e métodos da história contemporânea se conjugam no plural.
(PERKOWSKA, 2008, pp. 81-82, trad. minha)
Assim, a superação dos modelos realistas do século XIX tem ori-
gem na Europa nas primeiras décadas do século XX com os mo-
vimentos de vanguardas que se seguem a um período de profun-
da crise econômica e social. Essas ideias atravessam o Atlântico e
se espalham pelo continente americano onde encontram terreno
fértil, destruindo os frágeis pilares da narrativa da época, baseada
num modelo exógeno que confundia a realidade com a descrição
da exótica paisagem local e das complexas relações sociais herda-
das dos modelos coloniais implantados.
A meta passa a ser superar os cânones europeus criando uma lite-
ratura e, sobretudo, uma narrativa que focalize a crise do homem
americano numa sociedade complexa que ao mesmo tempo que
deseja ingressar na era industrial e tecnológica e em seu universo
urbano, ainda vive em um mundo rural e agrário, salpicado por
relações econômicas e sociais medievais, num período em que a
Europa discute formas de superação do capitalismo.

Crônica e história
Não pretendo reiterar a forma como os europeus, conquistadores
ou viajantes viram esse Novo Mundo e os “outros” que eram os

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

americanos, pois mesmo entre os viajantes houve muitos con-


quistadores, Todorov (1983). O livro já aludido e citado faz um
interessante estudo da forma como o conquistador se apropria-
va não apenas das novas terras com todas as suas riquezas, mas
principalmente, como criavam discursivamente outra realidade.
Como demonstra o mesmo Todorov, em outro texto (1993, p. 98),
é claro que o “outro” narrado acaba tendo menor importância
que o eu que narra.
Assim, ao longo dos mais de três séculos que constituem o cha-
mado período colonial americano, europeus de diversas origens
e categorias, com diferentes objetivos, produziram grande quan-
tidade de textos geralmente conhecidos por “crônicas coloniais”,
um discurso híbrido geralmente localizado entre a história e a
ficção. Mesmo depois da independência dos países latino-ameri-
canos e durante o longo período de construção das novas nações,
no qual levamos dois séculos, viajantes de variadas procedências,
nacionais ou estrangeiros, também por diferentes razões, conti-
nuaram escrevendo relatos em que tentam colocar-se em relação
ao outro e em relação a si próprios, tentando responder uma in-
finidade de perguntas.
Com a Amazônia não foi diferente. Uma das últimas fronteiras
do orbe, a região atualmente situada em território brasileiro por
contingências históricas, sempre fez parte do imaginário global.
Envolvido pela magia, seu território foi palco de inúmeras aven-
turas que buscavam localizar em seu interior misteriosos reinos
habitados por seres fantásticos. Nasceu sob um signo de um mito,
e a fantasia sempre regeu a mente de quem ousou a penetrar no
emaranhado de seus rios em busca da utópica idade de ouro.
A história de sua exploração, iniciada pelos espanhóis, a quem
cabia a região de acordo com o Tratado de Tordesilhas, e de sua
posterior ocupação pelos portugueses que romperam aqueles li-
mites e foram plantando marcos ao longo de seu vasto território,
está recheada de fantasia. É praticamente impossível separar a re-
alidade da fantasia nesses cinco séculos em que foi visitada pelo
homem branco, na maioria das vezes mais em busca de riqueza
fácil que de simples aventuras.
No processo de sua inclusão no imaginário europeu estão pre-
sentes dois mitos resultantes da projeção da fantasia europeia em

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Métodos Fronteiriços

seu vasto território, misterioso e exótico: o reino das Amazonas


e o reino do El Dorado. Ambos fomentam e ao mesmo tempo se
reiteram nos textos escritos a partir da experiência da primeira
viagem feita por europeus em seu interior.
Como se sabe, a primeira viagem por todo o curso do rio atual-
mente chamado rio Amazonas realizou-se em 1541 pela expedi-
ção de Francisco de Orellana. Saindo de Quito em busca do “país
da Canela” e do “Reino de El Dorado”, um grupo de espanhóis,
não sem poucas peripécias, percorreu todo o rio até chegar à
ilha de Cubágua, no mar do Caribe, ao norte da atual Venezuela.
Acompanhava a expedição o frade domincano Gaspar de Carva-
jal a quem coube a tarefa de relatar o sucedido na viagem. Seu
texto, conhecido como Descobrimento do Rio das Amazonas, em-
bora tenha sido publicado integralmente apenas no século XIX,
foi muito divulgado em sua época e em todo o período colonial,
sendo copiado ou mencionado por todo aquele que se referisse
à região.
Deve-se a ele a referência às tais bravas guerreiras, projeção do
mito grego clássico à realidade local, que acabaram dando o
nome ao rio e às terras por ele cortadas. Trancrevo abaixo o frag-
mento, repetido ad infinitum, que se refere a elas:
Quero que saibam a razão porque os índios lutavam dessa maneira.
Acontece que eles são súditos e tributários das amazonas e sabendo
da nossa vinda, pediram socorro a elas que mandaram de dez a doze,
pois nós as vimos. Elas estavam lutando como líderes na frente dos ín-
dios e lutavam tão decididamente que os índios não ousavam nos dar
as costas, pois aqueles que fugissem de nós elas matavam a pauladas.
Sendo esta a razão porque os índios se defendiam tanto. Estas mulhe-
res são muito brancas e têm longos cabelos trançados e enrolados na
cabeça, são musculosas e andam nuas em pelo, cobrindo as vergonhas
com os arcos e as flechas nas mãos lutando como dez índios. (CAR-
VAJAL, 1992. p.79-81)
O frei também faz uma descrição da terra:
[...] a terra é tão boa e fértil como na nossa Espanha. [...] É terra tem-
perada de onde se colherá muito trigo e dará todas as fruta; está apa-
relhada para criar o gado, porque nela há muitas ervas como em nossa
Espanha, como o orégano e cardos pintados e rajados, ervas muito
boas. Os montes desta terra tem azinheiras e sorcreiros com bolotas,

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

porque nós os vimos, e carvalhos. A terra é alta e tem morros cober-


tos de savanas, com ervas que apenas chegam aos joelhos e há caças
de todo o tipo. (CARVAJAL, 1992, p. 83)
Não me alongo nos detalhes, mas pode-se constatar no fragmen-
to o modo como a realidade local acaba adquirindo cores euro-
peias em um procedimento reiterado nesses textos. Para narrar e
descrever o desconhecido, o cronista se vale de sua experiência
e faz comparações com sua realidade. Assim, o cronista enxerga
às margens dos rios amazônicos orégano, azinheiras, cardos ou
carvalhos, do mesmo modo como tinha enxergado as mulheres
guerreiras.
Pouco adiante, Orellana interroga um nativo aprisionado e este
dá as informações que se perpetuariam sobre as “mulheres guer-
reiras”: são guerreiras e vivem a sete jornadas da costa, em se-
tenta aldeias; vivem sem a presença de homens; trazem homens
da vizinhança com o objetivo de engravidarem; quando nascem
os filhos, matam os meninos e devolvem aos pais e criam as me-
ninas com muito orgulho; suas casas são de pedra, com portas
de madeira; há estradas calçadas entre as aldeias e há postos de
guardas nas entradas das aldeias; sua rainha se chama Conhori;
possuem muita riqueza em ouro e prata e elaboram uma fina ce-
râmica; na capital há belos edifícios, os templos dedicados ao sol
são ricamente adornados; nessa terra há camelos que as carregam
e outros animais de pata fendida; elas usam roupas finas tecidas
de lã de ovelhas vindas do Peru; há duas lagoas de água salgada,
da qual extraem o sal. (CARVAJAL, 1992, p. 85-89)
Esses dados, nunca comprovados empiricamente, acabaram per-
petuados e repetidos ao longo dos tempos, muitas vezes sem ne-
nhuma discussão.
Quase um século mais tarde, um grupo de portugueses sob o
comando de Pedro Teixeira, sai de Belém do Pará e sobe o mes-
mo rio chegando a Quito de onde são devolvidos à origem. Os
espanhóis, ainda sob o impacto de ver um português viajar tão
lépido e tranquilo por territórios que de acordo com o Tratado de
Tordesilhas estava sob o domínio deles, embora Portugal ainda
fizesse parte da Coroa espanhola, enviaram em uma expedição o
jesuíta Cristóbal de Acuña, uma espécie de espião, com o objeti-
vo de fazer um relato. A viagem aconteceu sem incidentes entre

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fevereiro e dezembro de 1639. Tendo o padre Acuña escrito uma


crônica que teria melhor sorte que a do frei Carvajal: publicada
em Madri já em 1641.
Mais amplo que o texto de Carvajal, o Novo descobrimento do rio
Amazonas, do padre Acuña, incorpora, como era comum ao gê-
nero, o texto quase literal de outros viajantes que tinham estado
na região ou escrito sobre ela, textos que nessas alturas já existiam
bastante. Incluo abaixo, o capítulo LXXI, titulado “Dão notícias
das amazonas”, que trata do encontro com as célebres guerreiras:
Com o que também disseram esses Tupinambá, confirmamos as lon-
gas notícias que por todo o rio trazíamos das afamadas amazonas, das
quais o rio tomou o nome desde seus primórdios, não o conhecendo
por nenhum outro, senão por este, os cosmógrafos que dele trataram
até hoje. [...] Uma das principais coisas que asseguraram era estar o
rio povoado por uma tribo de mulheres guerreiras que, sustentando-
se sozinhas, sem varões, com os quais apenas durante certo tempo
mantinham coabitação, viviam em suas aldeias, cultivando suas ter-
ras e conseguindo com o trabalho de suas mãos todo o necessário
para seu sustento. [...] Só lanço mão do que ouvi com meus próprios
ouvidos e com cuidado averiguei desde que colocamos os pés neste
rio. E não há em termos gerais coisa mais comum, que ninguém igno-
ra, que dizer que nele habitam estas mulheres, dando informação tão
particulares e coincidindo todas, não se pode acreditar que pudesse
uma mentira ter se infiltrado em tantas línguas em tantas nações com
tantas cores de verdade. (ACUÑA, 1994, p. 177-179)
Como se pode constatar, mesmo em leitura ligeira, trata-se de
uma mera repetição do que tinha dito Carvajal um século an-
tes. Da mesma forma, o livro de Acuña está também preocupado
com as riquezas da terra, alertando as autoridades espanholas
para a necessidade de ocupar a região:
XXXIV- Riquezas deste rio
Além de que, se o lago Dourado tem o outro que a opinião geral lhe
atribui, se as amazonas habitam, como testemunham, entre as maio-
res riquezas do planeta; se os Tocantim são tão afamados pelos france-
ses, pelas pedras preciosas e a abundância de ouro [...], neste Grande
Rio está tudo encerrado: o lago Dourado, as amazonas, os Tocantim
e os ricos Omágua, como adiante se dirá. Nele, finalmente, está depo-
sitado o imenso tesouro que a majestade de Deus em guardado para

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

enriquecer, com ele, a de nosso grande rei e senhor Felipe Quarto.


(ACUÑA, 1994, p. 103)
No entanto, o jesuíta também se deixa levar pela fantasia dos re-
latos que circulavam sobre a região, registrando fragmentos que
no século XX, seriam os preferidos dos escritores que trouxeram
tal magia para seus romances:
LXIII- O rio dos gigantes.
Dez léguas adiante do referido sítio tem fim a província dos Yoriman,
e transcorridas duas léguas, desemboca na margem sul um famoso
rio que os índios chamam de Cuchiguará. [...] De acordo com infor-
mações de pessoas que os viram e que se ofereciam para levar-nos a
suas terras, são eles gigantes de dezesseis palmos de altura, muito va-
lentes, andam nus e trazem grandes pátenas de ouro nas orelhas e nos
narizes. Para chegar a suas aldeias são necessários dois meses contí-
nuos de viagem desde a boca do Cuchiguará. (ACUÑA, 1994, p. 155)
[...]
LXIX- Notícias que deram os tupinambá.
Dizem eles que próximo a sua terra, pela parte do sul, em terra firme,
vivem, entre outras, duas nações: uma de anões tão pequenos como
crianças muito novas, que se chamam Guayazi; a outra de uma gente
que todos têm os pés ao contrário, de modo que aqueles que, não os
conhecendo, queira seguir seu rastro caminhará sempre ao contrário
deles. (ACUÑA, 1994, p. 175)

Sempre as mulheres guerreiras


Dentre os vanguardistas que nas primeiras décadas do século XX
decidiram, em seu afã redefinir a nacionalidade e a cultura bra-
sileira, talvez Mario de Andrade (1893-1945) seja quem mais se
dedique à Amazônia, região pela qual viajou em 1927, quando a
exploração da borracha dava seus últimos estertores e cujos es-
tudos foram usados na composição de seu canônico Macunaíma,
publicado no ano seguinte. Sobre as amazonas, valendo-se antro-
fagicamente dos cronistas coloniais, Mario compõe uma espécie
de poema que os organizadores de seu livro de viagens O turista
aprendiz, publicado postumamente, incluem o momento em que
ele trata do rio Madeira:
De como vi as Amazonas (sátira à mulher moderna).

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Só as encontro no rio Madeira, donde de-fato elas tiravam o nome


esse chamavam as Paus.
Gostavam de falar palavras-feias que era um jeito ostensivo de mos-
trar liberdade e independência.
Estavam numa fase de transição abandonando a lei antiga. Mas ainda
não tinham uma lei moderna, e era aquela meleca.
Gostavam de mostrar erudição. Esportivas demais e fortíssimas. Só
não queimavam um seio agora, mas não tinham seio nenhum como
Antinous.
A filosofia, a sociologia, a psicanálise. Eram totalmente complexentas
e não acreditavam na existência de Deus.
De antigamente só conservavam o exercício da lágrima, não porque
não conseguissem dominar essa frequente prática feminil, mas por
comerciantes, melhor dominar.
Os filhos. Os filhos davam-nos às avós e aos avôs, mas gostavam de
criar animais, todo especial afeto pelos candirus incandescentes.
Detestavam os romances, mas algumas eram poetisas e outras con-
tistas.
As Paus em geral têm muito medo de baratas, razão pela qual muitas
emigram. Indo naturalmente para São Paulo. (ANDRADE, 1976, p.
137)
Dentro dos princípios da antropofagia oswaldiana, o quase-poe-
ma faz uma leitura crítica do texto colonial deglutido pela psica-
nálise, apresentando uma visão irônica da sociedade brasileira da
época, em especial as elites paulistanas, sempre abertas à cultura
europeia e pouco interessadas pela realidade brasileira.

História e memória
Entre maio e agosto de 1927, Mário de Andrade, acompanha-
do de Olívia Guedes Pendeado (1872-1934), a “rainha do café”,
e duas jovens da elite paulista, realiza uma “viagem etnográfica”
pelas regiões norte e nordeste do país. Durante a viagem o escri-
tor faz uma espécie de diário, além de tomar notas para futuras
crônicas jornalísticas. Durante certo tempo dedica-se ao projeto
de compor um livro de viagens que deixou incompleto e que foi
organizado posteriormente por Telê Porto Ancona Lopez, sendo

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

publicado em 1976. Com o título escolhido pelo próprio Mário,


O turista aprendiz, inclui notas e relatos da viagem de 1927 e da
viagem posterior ao nordeste ocorrida entre novembro de 1928 e
fevereiro de 1929.
O subtítulo, pensado pelo escritor para a viagem amazônica, é
uma paródia das crônicas de viagem, bastante conhecidas dele:
“Viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia
e por Marajó até dizer chega”. O percurso em barco, de subida
e posterior descida do Madeira, ocorre entre 03 e 20 de julho.
Eles chegam a Porto Velho em 11 de julho e seguem de trem de
Madeira-Mamoré até Guajará-Mirim. Retornando a Porto Velho,
posteriormente descem o Madeira em 15 de julho.
Abaixo, um fragmento do diário do escritor, relatando a viagem
pelos trilhos da Madeira-Mamoré:
14 de julho – Partida de Guajará Mirim, seis horas. Enfim estamos
definitivamente “voltando”. Parada às onze para visitar a cachoeira do
Ribeirão. Passeio esplêndido sobre as pedras. Fotos. Almoço no trem.
[...] E desce um luar sublime sobre a terra. Tudo em volta do trem é
de uma luminosidade encantada, cheia de respeito e de mistério. E eu
canto, canto tudo o que sei, desamparado. Canto ao luar, desabalada-
mente em puro êxtase descontrolado, com a melhor voz que jamais
fiz na minha vida, voz sem trato, mas com aquela natureza mesmo,
boa, quente, cheia, selvagem mas sem segunda-intenção, generosa. O
que eu sinto dentro de mim! Nem eu sei! Não poderia saber, nem que
pudesse me analisar, estou estourando de luar, tenho este luar como
nunca vi, me... em mim, nos olhos, na boca, no sexo, nas mãos in-
discretas. Indiscretas de luar, nada mais. Sou luar e de-repente me
agacho, fico quietinho, pequenino, vibrando, imenso, fulgurando por
dentro, sem pensar, sem poder pensar, só.
Chegada a Porto Velho, meia noite. Sono de pedra. (ANDRADE,
1976, p. 153-154)
Como se pode constatar, o estilo do diário é bastante poético,
aproximando-se do ficcional. O caminho trilhado é o entre-lugar
entre história e ficção, entre poesia e prosa, entre viagem etnográ-
fica e introspecção. Pode-se ver que o eu viajante, não apenas se
limita a registrar dados referenciais da viagem, mas, neste frag-
mento faz um mergulho intimista, tratando de apresentar senti-
mentos e sensações. A cena, plena de elementos eróticos, pratica-

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Métodos Fronteiriços

mente uma masturbação, escapa ao referencial frio que costuma


habitar esse tipo de discurso.
Talvez por isso mesmo o escritor Márcio Souza, décadas mais
tarde, retoma como num palimpsesto essas páginas do diário do
modernista em sua leitura da realidade amazônica, particular-
mente de Porto Velho, no romance que trata da saga da constru-
ção da Madeira-Mamoré.

Romance e história
Desde seu primeiro romance, Galvez, imperador do Acre (1976),
o amazonense Márcio Souza vem se dedicando aos delírios da
tentativa de ocupação da região amazônica pelo capital interna-
cional. Em sua primeira investida, ele recria, em um clima paró-
dico e onírico, a trajetória amazônica do aventureiro espanhol e
o episódio, que parece mais fantasia que história, da fundação
do Estado Independente do Acre, em 1899, em pleno período
da exploração do ouro negro amazônico. Encontrada a chave do
sucesso, uma vez que a obra foi traduzida para várias línguas e
publicada em mais de vinte países, Souza não abandona mais o
gênero. (ESTEVES, 2010, p. 215)
Quatro anos depois publica Mad Maria (1980), romance sobre
a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, cuja ação se
concentra em 1911. Repetindo o velho chavão, pode-se dizer que
se trata da história de uma estrada que vai de lugar algum a parte
nenhuma. Os vários focos fazem cruzar vários tempos e espa-
ços, tratando de mostrar, de modo debochado, a insensatez que
a cultura ocidental pode encenar na Amazônia. Em sua tarefa de
proporcionar uma releitura crítica da história, o romance dialoga
com textos de viajantes, entre outros. Um dos textos com os quais
dialoga são os diários do escritor Mario de Andrade, um dos visi-
tantes mais ilustres da Ferrovia Madeira Mamoré, quando visitou
a região em 1927, conforme comentamos no item anterior. Vale a
pena citar o fragmento completo, retomado pelo romance:
No dia 11 de julho de 1927, um poeta vestindo terno escuro, chapéu,
gravata, camisa de punhos e calças brancas, sentou-se sobre um trilho
da Madeira-Mamoré e sorriu. Na foto, o poeta sorri. O poeta sorri
porque tem uma razão muito forte para fazer isto. É um homem feliz.
[...] Mas o poeta sorri porque duas borboletas amarelas entraram no

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

campo da fotografia e volteiam em torno dele. [...]


O poeta chamava-se Mário de Andrade. [...]
No outro dia, Mário de Andrade andou pela estrada de ferro, até Gua-
jará-Mirim. Conheceu coisas interessantes. [...] Durante a noite, não
quis ir ao baile com Dona Olívia Penteado e as moças. Saiu ao luar.
Hoje é difícil saber o que o poeta sentiu ao luar de Guajará-Mirim.
Talvez o poeta estivesse cheio de contradições, suspeitando das pru-
dentes situações romanescas que o luar parecia convidar. Quem sabe
não sentia mesmo alguma coisa impiedosa na atmosfera, pois somen-
te um homem de grande sensibilidade como ele poderia estar em
Guajará-Mirim naquela noite do ano de 1927, cheio de suspeitas e
contradições. E o poeta perguntaria mais tarde em seu diário:
– O que eu vim fazer aqui!... Qual a razão de todos esses mortos in-
ternacionais que renascem na bulha da locomotiva [...]. Tudo que era
nariz e pele diferente andou por aqui deitando com uma febrinha na
boca-da-noite para amanhecer no nunca mais.
Amanhecer no nunca mais é um diabo de expressão, poeta! (SOUZA,
s.d. p. 341)
Deixo para o leitor a tarefa de preencher as lacunas que o roman-
ce histórico propositalmente deixa em sua releitura da história,
neste caso não apenas a história do delírio da ocupação amazô-
nica, mas também a história da própria literatura que trata desse
tema, em contraponto com a história brasileira e a história da
literatura brasileira. Diálogo de escritores, diálogo de escritas.
Metaficcão historiográfica pode-se dizer.

Romance e história: a grande jornada da América


Em Daimón (1978), o argentino Abel Posse, traz para a ficção
Lope de Aguirre, o aventureiro espanhol que no século XVI na-
vegou o Amazonas em todo o seu curso chegando até a ilha Mar-
garita, no Caribe, disseminando terror e pânico depois de ter-se
rebelado contra o todo poderoso Felipe II, soberano espanhol
sob cujos domínios o sol nunca se punha.
Nesse romance, Lope de Aguirre aparece submerso em um delí-
rio em que mistura espaços e tempos. Predomina o tempo cícli-
co primitivo ou tempo mítico, em um claro esforço de negar o
tempo progressivo da cultura ocidental, tratando de fazer uma

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Métodos Fronteiriços

releitura crítica da história. O tecido narrativo dialoga com as


tradicionais crônicas coloniais, textos em que realidade e fantasia
se misturam na tentativa de descrever a insólita realidade ameri-
cana para a qual as palavras das línguas europeias e a categorias
do pensamento eram insuficientes.
Abel Posse trata de reconstruir a surpresa do homem europeu
diante do fantástico universo americano. Nesse universo em for-
mação, mostrado no romance, há muitas cataratas, vulcões, flores-
tas incomensuráveis, espécies exóticas, novos pássaros e animais
desconhecidos. São páginas e páginas descrevendo uma zoologia
fantástica: borboletas multicoloridas; vampiros do tamanho de
uma perdiz; macacos homossexuais, desterrados de seu bando;
regimentos de formigas encouraçadas, com olhos panorâmicos e
antenas noturnas; homens anfíbios; humanoides vegetais que se
alimentam do aroma de flores; lúbricos tatus gigantes, de outras
eras, com uma carapaça em forma de catedral, de vinte passos de
tamanho; monstruosas serpentes que aguardam escondidas no
lodo as vítimas que serão devoradas.
Em determinado momento Aguirre e seus homens chegam ao
lugar que tanto tinham ambicionado e temido. Ao mesmo tempo,
sofrem com o delírio de guerreiros sem mulher: o doce e perigo-
so reino das Amazonas. A linguagem é irônica e descreve as “mo-
rosas manhãs” dessa nova temporalidade experimentada por eles:
[...] Cada manhã chegava só com gerúndios. […] Aqueles homens
que sempre tinham galopado em silêncio e com certa fúria vingati-
va o corpo das mulheres, como quem trata de se desvencilhar delas,
agora descobriam um novo tempo para os corpos. Já não se sentiam
obrigados a se vestir e sair rapidamente. (POSSE, 1989, p. 65, tradu-
ção minha)
[…] Elas manejavam o tempo e a ciência do amor. Ensinavam a usar
pomadas de uso externo e interno. Sabiam incitar com uma grande
variedade de perfumes. Sabiam gritar ou morder de forma tão parti-
cularmente estudada, que nem se notava o artifício. Tudo parecia ser
feito do único modo possível. (POSSE, 1989, p. 66, tradução minha)
Como faria Márcio Souza poucos anos depois, Posse também
propõe uma reescrita da história incorporando o insólito em sua
plenitude, única forma de se aproximar dessa realidade onírica
chamada Amazônia, ou América, se preferir.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

A voz local
Álvaro [Botelho] Maia (1893-1969), político amazonense (Hu-
maitá, seringal “Goiabal”), foi secretário da superintendência do
território federal de Guaporé (Porto Velho) e várias vezes inter-
ventor e/ou governador do Amazonas no período da decadência
da borracha. Também se dedicou às letras, como faziam os polí-
ticos de seu tempo. Deixou várias obras, exemplos de um gêne-
ro híbrido, onde se cruzam a alta cultura e a cultura popular, a
oralidade e a escrita, a narrativa, a crônica e os relatos populares.
Entre elas, Gente dos seringais (1956) e Beiradão (1958).
O próprio escritor informa que as narrativas que compõem Gente
dos seringais têm como cenário a região do médio rio Madeira,
na confrontação com os rios Maici, Machado e Jamari, à margem
direita, e com rios menores como o Puruzinho e o Mucuim, à
margem esquerda. É um espaço recorrente na obra do escritor.
(LIMA, s.d.)
Nesse volume há três conjuntos de textos (contos/crônicas/rela-
tos) dedicados ao insólito, na vertente mágico/fantástica dos rela-
tos populares das ribeiras do Madeira:
1- Lendário ameríndio (09 textos). Vale a pena deter-se, entre ou-
tros, a “Eutanásia ameríndia”, relato dramático sobre o suicídio
coletivo praticado pelos parintintin, etnia praticamente em ex-
tinção, que ocupa duas áreas indígenas da região, diante da cons-
cientização da inutilidade da resistência ante o avanço do branco
na época da borracha. Márcio Souza retoma este tema em Mad
Maria (1980).
2- Lendário bárbaro (09 textos). Aborda a violência, em geral.
Vale a pena retomar “Vingança de escravos”, sobre a resistência à
escravidão, tema pouco tratado na Amazônia.
3- Lendário místico (12 textos). Aborda os elementos mágicos tra-
dicionais da região, como a cobra-grande, o boto, entre outros.
Praticamente esquecido, Álvaro Maia carece ser relido. Sua obra,
apesar de datada, com pesada verborragia parnasiana, prenhe de
certo saudosismo, por isso mesmo pode suscitar interessantes re-
leituras. Vale a pena revisitar sua visão peculiar da fronteira: “A
terra é uma, pertence a todos; os nacionalistas estéreis erguem
marcos de pedra, mas não podem impedir o abraço dos que, se-

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Métodos Fronteiriços

parados por um acidente geográfico ou uma ficção, tem a mesma


ânsia de liberdade, os mesmos respeitos pela dignidade humana”.
(MAIA, 1956, p. 103).
É como se o evitar “discussões sobre raças e pátrias” desses ha-
bitantes da fronteira, fosse uma espécie de consciência avant la
lettre de que raças e pátrias são construções discursivas homoge-
neizadoras que interessam a um determinado centro mais preo-
cupado em garantir hegemonias econômicas e políticas que real-
mente discutir questões culturais ou modos de vida muito mais
humanos e equilibrados.

Para finalizar sem concluir (obviamente)


Não poderia concluir estas notas senão com a página de apre-
sentação deste evento, pensado e realizado desde o espaço ama-
zônico:
Uma visada sobre a região amazônica latino-americana, sua literatura
escrita e oral e seus mitos, permite perceber a existência de uma mirí-
ade de objetos raros, cuja natureza evanescente inversamente cria re-
alidades concretas e históricas. Métodos advindos da fenomenologia
da imaginação literária e da antropologia do imaginário, ou ainda, do
campo dos estudos literários propriamente dito, delineados por teo-
rias do fantástico como gênero, como modo literário e sua renovação
em termos do neofantástico e do insólito são trabalhados há muito
pelos estudiosos e pesquisadores. (FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE
FEDERAL DE RONDÔNIA, 2015)
Tendo as águas do Madeira como testemunhas, com sua impas-
sível paciência de quem desafia os avatares da história e as ima-
gens construídas por viajantes de vários tempos, e se espraiam
terra adentro, corroendo as margens e arrastando, desde tempos
imemoriais troncos da floresta, fecho meu texto canarana, com
a esperança de que tombado pela torrente, poderá reerguer-se
e seguir seu rizomático destino, nas fronteiras da racionalidade
ocidental e do insólito universo amazônico. Aquático, terres-
tre, vegetal, mineral. Onírico, sobretudo. Entre-lugar simbólico,
cujos discursos assentados em bases nacionais e transnacionais,
“reconhecem e valorizam a resistência dos saberes e da cultura
local”.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

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2 Razão e estranhamento na
representação da natureza
na literatura amazônica
no início do século XX

Alexandre PACHECO1
Trataremos, neste texto, de uma breve exposição da crítica literá-
ria de Francisco Foot Hardman e Allison Leão sobre a literatura
amazônica de Euclides da Cunha e Alberto Rangel no início do
século XX. Neste sentido, nosso objetivo será demonstrar como
estes críticos compreenderam certos traços ficcionais da narrati-
va dos autores, focalizando quando se apropriaram da natureza
amazônica.
Começaremos com Francisco Foot Hardman.
Segundo Francisco Foot Hardman a ideia da Amazônia vista pelo
imaginário das forças da civilização se fez presente nas visões de
vários cientistas, viajantes, religiosos, historiadores e literatos que
procuraram descrevê-la. Neste sentido, percebemos os indícios
desse imaginário na descrição que esse autor realiza em seu livro
A vingança da Hileia sobre a literatura constituída na região no
final do século XIX e início do século XX. Já que a Amazônia
surgiria a partir dessa produção literária como voragem da Histó-
ria, dos impasses contidos em suas representações e que em con-
junto a retratariam como o produto de uma gênese incompleta.
(HARDMAN, 2009, p. 25)
Foot Hardman nos dá exemplos de autores como Franklin Távora
1  Doutor em sociologia e professor do Departamento de História da Univer-
sidade Federal de Rondônia/UNIR - Campus Porto Velho.

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Métodos Fronteiriços

que no prefácio2 ao livro O Cabeleira, de 1876, retratou a Ama-


zônia em sua imensidão e natureza complexa, por meio da pers-
pectiva de que toda e qualquer representação artística, científica,
política sobre a região deveria ser realizada considerando o pro-
cesso civilizatório, e as leis do progresso que o desenvolvimento
da economia da borracha lá instaurou e fez com que a Amazônia
se transformasse em uma nova fronteira para a expansão do capi-
talismo. (HARDMAN, 2009, p. 25)
No manifesto citado Franklin Távora delineia a Amazônia como
um mundo que seria objeto dos mais variados anseios civiliza-
tórios, tanto em termos de sua retratação literária como tam-
bém em termos de sua inserção junto à cultura de elite do país.
(HARDMAN, 2009, p. 25)
Essa perspectiva em relação à Amazônia, por outro lado, não evi-
tou que Távora também olhasse para a região como um “territó-
rio distante, remoto no tempo e no espaço, envolto nos mistérios
de seus rios, florestas, línguas ‘sem história’, enfim, no império de
uma violência naturalizada, na fúria ancestral de uma natureza
indômita.” (HARDMAN, 2009: p. 25)
Essa visão da natureza violenta e bárbara, por outro lado, con-
figurou-se em um verdadeiro fundamento do lugar-comum das
narrativas que tiveram a Amazônia como foco central, podendo,
inclusive, ser encontrado em autores de países vizinhos como o
romancista colombiano José Eustasio Rivera, em sua obra La vo-
rágine, de 1924. (HARDMAN, 2009, p. 26)
Diante de nossa discussão, entretanto, cabe ressaltar que esse fun-
damento de lugar-comum também pôde ser percebido a partir
do final do século XIX e início do século XX, nas narrativas fic-
cionais de autores como Inglês de Souza, em obras publicadas
entre 1876 e 1893, como O cacaulista, História de um pescador,
O coronel sangrado, O missionário e Contos Amazônicos. Obras
que se baseiam nas imagens presentes das memórias de tapuios,
caboclos e cabanos da região de Óbidos, no Pará, possibilitando
a descrição por parte de Inglês de Souza da resistência cultural
dessas populações contra a violência dos coronéis. (HARDMAN,
2009, p. 27-28)
2  Espécie de manifesto naturalista constante em sua obra romântica, segun-
do Foot Hardman.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

A partir dessa abordagem da literatura ficcional de autores como


Franklin Távora e Inglês de Souza, Foot Hardman definiu Eucli-
des da Cunha como um dos principais autores do realismo na-
turalista que passou a predominar como esteio da representação
literária da Amazônia durante o século XX. (HARDMAN, 2009,
p. 28)
Conquanto não fosse a ficção no sentido da literatura que dis-
cutimos acima, podemos notar também, a partir das análises de
Foot Hardman de obras como À Margem da História, o quanto
esse realismo naturalista também incorporou o fundamento de
lugar-comum que constantemente procurou descrever a Amazô-
nia como um território violento e bárbaro. Isso, sobretudo, na
narrativa que Euclides teceu para descrever a experiência dos se-
ringueiros em constante luta e adaptação à natureza da floresta
amazônica nos longínquos seringais do Acre.
Nesse sentido Foot Hardman descreve a Amazônia a partir de
Euclides da Cunha. A herança das faltas, das incompletudes já
percebidas pelo escritor fluminense também incorporam e repre-
sentam em boa medida a racionalidade capitalista que nos últi-
mos cinquenta anos têm assolado a região. Racionalidade que a
passos largos está descortinando a região ao mesmo tempo em
que promove sua impiedosa destruição.
Dessa forma, a reflexão sobre a Amazônia de Euclides em A vin-
gança da Hileia possui um movimento que para Jaime Giznburg
se daria a partir de categorias negativas. Categorias voltadas ao
estabelecimento de fios condutores feitos por Foot Hardman para
explicar o movimento que Euclides realizou em seus escritos so-
bre a região, e que são reveladores de imagens apocalípticas, trá-
gicas, violentas, de deslocamentos e ruínas. (GIZNBURG, 2010,
p. 414-415)
Em A vingança da Hileia temos uma amadurecida crítica sobre
as obras de Euclides da Cunha, já que Foot Hardman, de acordo
com Giznburg, expõe não só os aspectos internos da complexa
e diversificada produção do autor de Os Sertões, mas também as
linhas de continuidade que existiriam entre elas. Daí o entendi-
mento do significado de Amazônia a partir da reflexão de como
o autor de A Margem da História teria mobilizado recursos ficcio-
nais inerentes ao seu realismo naturalista, sobretudo a partir de

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Métodos Fronteiriços

imagens representativas de um estranhamento diante das agru-


ras impostas pela natureza amazônica. Esta projeção de estranha-
mento acabou por moldar aspectos ficcionais de sua obra.
De acordo com Jaime Giznburg:
Quando Hardman descreve o estranhamento que Euclides vivencia
em sua experiência no espaço amazônico - ponto que já havia propos-
to em Trem-fantasma -, sinaliza, em fragmento, um estranhamento
que impregna a relação da Amazônia com o Brasil, a ambiguidade
de sua inserção, sua enormidade impactante, suas precariedades, sua
constituição com tensões. Ao mesmo tempo, apresenta a percepção
inteligente e inquieta com que, em diversos gêneros textuais e ado-
tando variados procedimentos formais, Euclides elaboraria imagens
críticas e perturbadoras de seu tempo. (GIZNBURG, 2010, p. 415)
Segundo Giznburg, A Vingança da Hileia, ao retomar a crítica
sobre a obra de Euclides procurou eximi-lo de classificações con-
vencionais ao perseguir as relações de Euclides com o contexto
histórico, sobretudo o amazônico. Fato que percebemos se mani-
festar dentro do que Giznburg se refere como sendo uma poética
das ruínas:
Essa poética das ruínas se coloca contra a totalização estética. Nes-
se sentido, um problema fundamental enfrentado, para uma crítica
estética e política de imagens do Brasil, é a análise de imagens unifi-
cadoras, mitos de unidade nacional. Cito o autor: “Na construção de
uma cultura brasileira unitária, apagam-se rastros da violência sob
forma de massacre, batismo silenciador ou incorporação dos tiranos
ancestrais da sujeição voluntária”. Mais adiante, dentro da mesma li-
nha de reflexão: Unificações forçadas e unidades interessadas contra
as diferenças socioculturais e contra restos e rastros a serem elimina-
dos da memória, ou então, a serem cristalizados como figurações de
um passado já suplantado, ficam fora do grande arcabouço de uma
coletividade de destinos superpostos...
A mistificação da unidade nacional configura o apagamento da vio-
lência, elimina diferenciações, simula homogeneidades e manipula a
memória coletiva. Contra a unidade forçada, a interpretação propõe
a leitura textual de inspiração benjaminiana, que admite o fragmen-
to como força histórica de teor crítico.
Em lealdade às teses sobre história de Benjamin, que refletem sobre
catástrofe histórica, Hardman avalia o trabalho de Euclides da Cunha

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

examinando o problema de como narrar o massacre. Formula o im-


passe rigorosamente: “Como escrever essa história, como representar
a catástrofe sem apagá-la? [...] Mas o narrador não a transcreve. Este
é o seu limite”. Assim como não cabe uma totalização da cultura bra-
sileira, que representaria uma unidade homogênea autoritária, não
cabe uma narrativa totalizadora de Canudos, que poderia amenizar
o impacto catastrófico do que ocorreu. É no caráter problemático da
narração que se observa a desmedida na relação entre a linguagem e
a experiência. (GIZNBURG, 2010, p. 415-416)
Dessa forma, semelhante a Canudos que se constituiria a partir
de componentes aterradores, a Amazônia também se constituiria
a partir dos excessos, daquilo que se manifestaria como desmedi-
do, de forma que Hardman, de acordo com Giznburg sustentaria
essas imagens a partir da percepção de um Euclides aterrorizado
ao se confrontar com a magnitude dos rios e da grande floresta.
(GIZNBURG, 2010, p. 416)
Um Euclides bem diferente, por exemplo, do Euclides-herói des-
crito por Leandro Tocantins. Diante da grandiosidade apocalípti-
ca da região em que a percepção necessita de uma nova modula-
ção frente à natureza hiperbólica, a linguagem convencional não
parece conseguir captar de forma justa a manifestação de fenô-
menos ligados ao homem e à natureza que ali vivem.
Diante de tudo isso, a Amazônia não se constituiria mais do que
um fantasma na memória de Euclides, assim como também se
constituiria como um fantasma na história do Brasil que passou a
civilizar-se, sobretudo a partir do início do século XX.
Creio haver em A vingança da Hileia um movimento similar ao que
Hardman atribui a Rodrigues Ferreira, uma vez que categorias nega-
tivas - apocalipse, tragédia, violência, deslocamento, ruína - estabele-
cem fios condutores da reflexão. A ênfase interpretativa, inteiramente
consistente com uma leitura competente de Os sertões, é encontrar
imagens de catástrofe em diversas produções literárias. A sustentação
dessa ênfase está no princípio de que “verifica-se que a barbárie é
aspecto constitutivo inerente à vida civilizada moderna. Barbárie ci-
vilizada (pelas leis e aparelhos policial-militares do Estado) é o que se
tem como prática cotidiana e secular”. Isto é, a violência tem um papel
não casual ou incidental, mas constitutivo dos processos históricos e
sociais em pauta. (GIZNBURG, 2010, p. 415)

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Métodos Fronteiriços

Por tudo que já foi dito, podemos perceber que o Euclides de Foot
Hardman, em A Vingança da Hileia, constituir-se-ia enquanto
um personagem tocado por um estranhamento e assombrado
pela tarefa de ter de descortinar tamanha região representada
pela Amazônia. Região, enfim, que tem na incompletude de sua
natureza e na incompletude da própria relação do elemento hu-
mano com ela, a sua característica histórica fundamental.
Ao contrário do escritor destemido Leandro Tocantins nas pá-
ginas de Euclides da Cunha e Paraíso Perdido, Francisco Foot
Hardman em seu livro A Vingança da Hileia revela um Euclides
assombrado com os horrores que os efeitos da modernidade im-
puseram aos modos de vida de populações inteiras da Amazônia.
Sobretudo daquelas que estiveram sob o jugo da economia da
borracha.
De acordo com Foot Hardman a Amazônia diante de sua trágica
inserção à racionalidade do capitalismo nacional e internacional
não teria lugar para heróis, mas apenas para escritores interessa-
dos em revelar as tragédias e as destruições em um mundo que se
mostra difícil de ser apreendido, a partir de uma suposta unidade
de análise que possa virtualmente possuir. (HARDMAN, 2009, p.
25-26).
Neste sentido, a Amazônia surgiria como voragem da História,
ou seja, como o produto de um realismo naturalista que incor-
porou o “fundamento do lugar-comum” que sempre descreveu
a Amazônia como um território violento e bárbaro, incluindo a
literatura de Euclides. (HARDMAN, 2009, p. 25)
Perspectiva literária que pode ser vista no capítulo “Uma prosa
perdida: Euclides e a literatura da selva infinita”, de A vingança
da Hileia.
Neste capítulo Foot Hardman selecionou alguns trechos do ar-
tigo “Os caucheiros”, de À margem da história, para relatar o
assombro de Euclides diante da visão de um indígena doente e
que foi abandonado em uma tapera de uma antiga propriedade
senhorial produtora de borracha de caucho. Episódio ocorrido
quando o escritor fluminense subiu uma das barrancas do rio Pu-
rus ao seu encontro no rio Chambuiaco. 3
3  Cremos que esse encontro com o indígena em Chambuiaco ocorreu na
subida do rio Purus, pois é relatado por Leandro Tocantins em Euclides da

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Vejamos o relato:
Piro, amahuaca ou campa, não se lhe distingue a origem. Os próprios
traços da espécie humana, transmudava-lhos a aparência repulsiva:
um tronco desconforme, inchado pelo impaludismo, tomando-lhe a
figura toda, em pleno contraste com os braços finos e as pernas esmir-
radas e tolhiças como as de um feto monstruoso.
[...] Esta cousa indefinível que por analogia cruel sugerida pelas cir-
cunstâncias se nos figurava menos um homem que uma bola de cau-
cho ali jogada a esmo, esquecida pelos extratores – respondeu-nos às
perguntas num regougo quase extinto e numa língua de todo incom-
preensível. Por fim, com enorme esforço levantou um braço, estirou-
-o, lento, para a frente, como a indicar alguma coisa que houvesse
seguido para muito longe, para além de todos aqueles matos e rios; e
balbuciou, deixando-o cair pesadamente, como se tivesse erguido um
grande peso:“Amigos”. (CUNHA, 1909, p. 98-99 apud HARDMAN,
2009, p. 45-46)
Vemos nesse sentido, como a narratividade de Euclides incor-
porou a partir de seu estranhamento da natureza e do humano
em relação a ela certos recursos literários expressivos, como por
exemplo, quando comparou o homem abandonado a um feto
monstruoso ou a uma bola de caucho, produzindo a partir de
imagens mitológicas como estas, imagens apocalípticas da Ama-
zônia. Imagens apocalípticas que formam fios condutores para o
entendimento não só da obra amazônica de Euclides, mas tam-
bém de sua obra mais ampla, de acordo com Foot Hardman.
Veremos, agora, a análise de Allison Leão sobre Alberto Rangel.
No capítulo “Inferno verde: razão e delírio, técnica e assombro
na origem de uma tradição”, do livro Amazonas: natureza e ficção,
Allison Leão analisa a literatura de Alberto Rangel do livro Infer-
no Verde que foi publicado em 1908.
Semelhante ao caminho tomado por Foot Hardman, Allison
Leão se debruçou sobre a obra de Alberto Rangel no intuito de
perceber como ela teria se constituído dentro de uma tradição
literária, ou seja, “[...] dentro de uma tradição literária da repre-
sentação da natureza na ficção amazonense.” (LEÃO, 2011, p. 25)
Cunha e o Paraíso Perdido que Euclides da Cunha à frente da Comissão de
Reconhecimento do Alto Purus constantemente subia as barrancas para co-
nhecer as comunidades peruanas ao longo do rio.

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Métodos Fronteiriços

E neste sentido uma das características da literatura de Rangel foi


a de apresentar imagens negativas semelhantes as já descritas por
Foot Hardman sobre Euclides. Categorias representativas da im-
possibilidade da apreensão da grandiosidade da Amazônia ou do
Amazonas a partir da contradição entre pressupostos racionalis-
tas e a experiência do estranhamento provocado por essa mesma
grandiosidade. De acordo com Allison Leão:
[...] a intenção de Rangel de enquadrar a realidade amazônica ao pen-
samento positivista do qual era adepto esbarra continuamente numa
realidade que o impede a reprocessar seu discurso ou até mesmo con-
tradizer-se, como quando reedita comportamentos românticos em
relação à natureza. (LEÃO, 2011, p. 25)
É importante frisarmos que associados a tais representações da
natureza também estariam representações sociais das pessoas
que também vivem nela.
Voltaremos, entretanto, ao problema da representação da natu-
reza.
De acordo com Leão, o livro Inferno Verde seria a continuação de
uma tradição narrativa sobre a Amazônia que viria desde cronis-
tas como Frei Gaspar de Carvajal a Euclides da Cunha. Sendo que
uma das características dessa continuidade estaria justamente no
caráter geofísico que a narrativa também possui para a descrição
da região, e que seria notada a partir da representação do próprio
título da obra de Alberto Rangel. Título que procuraria abarcar a
floresta em sua totalidade. (LEÃO, 2011, p. 55)
Dessa forma, a partir de Marcos Frederico Krüger, Allison Leão
afirma, de um lado, haver uma imposição do meio natural ao ho-
mem, e, de outro, uma superação da tradição literária a partir da
técnica utilizada por Rangel por meio da forma como realiza a
construção de sua linguagem. (LEÃO, 2011, p. 55).
Temos desse modo, na obra de Rangel uma forma de construção
literária do espaço natural que inaugura clichês que estão presen-
tes na literatura do Amazonas do século XX, culminando no que
Kruger denomina como “geografismo literário”. Algo que segun-
do Euclides da Cunha, citado por Allison Leão, foi possibilitado
pelo traço eloquente de sua escrita e pelo realismo que teria como
característica não alterar a natureza, mas copiá-la no momento
de sua descrição. (LEÃO, 2011, p. 55)

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Mas o que interessa a Allison Leão é a percepção de como o es-


paço natural amazônico se impõe ao discurso de Rangel, ou seja,
“[...] como o espaço amazônico fratura o projeto literário, político
e social do autor, ou ainda, como o contato entre o discurso lite-
rário e esse espaço é profundamente tenso, não havendo sobre-
pujança daquele sobre este. Este contato seria mais do choque, da
convulsão, do contraditório.” (LEÃO, 2011, p. 55-56)
Tensão, entretanto, que também se transferiu para a forma como
o elemento humano foi inserido no ambiente amazônico em In-
ferno Verde e a decorrente imaginação sobre um projeto de nação
que essa relação poderia revelar a partir do positivismo de Alber-
to Rangel. Aspecto que pode ser notado, de acordo com Allison
Leão, em contos como “O tapará” de Inferno Verde. Conto em que
o autor procurou a por meio de seu narrador realizar uma des-
crição desoladora de um curso d’água que conduz ao lago Tapará
e que no período de estiagem no Amazonas se transformou em
um “[...] filete d’água repleto de pútrida matéria orgânica”. (LEÃO,
2011, p. 56)
A narração que conduz essa descrição do curso do filete é propo-
sitalmente lenta não só como resultado da dificuldade de loco-
moção, mas também pela necessidade do narrador de compre-
ender a paisagem em seus mínimos detalhes, compreender os
movimentos dos animais e também expor suas opiniões sobre o
ambiente. (LEÃO, 2011, p. 56)
Essa exaustiva descrição da paisagem, segundo Leão, alinharia
Rangel a nomes como La Condamine, o casal Agassiz e Alexan-
dre Rodrigues Ferreira que sempre procuraram exaltar em seus
escritos um espírito naturalista. (LEÃO, 2011, p. 56-57
Em outros contos do livro, no entanto, Rangel passou a descrever
o elemento humano que habitaria o ambiente descrito de forma
minuciosa a partir de duas perspectivas: a pedagógica e a voltada
à suposta recepção de um leitor ideal de sua literatura. (LEÃO,
2011, p. 57)
Na perspectiva pedagógica os dramas humanos são descritos a
partir de uma narrativa que se constitui como uma extensão do
que Allison Leão afirmar ser “a outra narrativa”, ou seja, aquela
que tem como descrição a natureza. Fato que pode ser notado no
conto “Obstinação” que tem como mote a imagem de um apui-

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zeiro, espécie de parasita que se enrosca nas árvores levando-as


ao sufocamento e morte como forma de comparação dos confli-
tos vividos pelos personagens Gabriel, um caboclo e Roberto, um
coronel. Conto em que Gabriel teme que suas terras sejam toma-
das por Roberto. O apuizeiro representava então “[...] esse duelo
vegetal, espetáculo perfeitamente humano. Roberto, o potentado,
era um apuizeiro vegetal.” (LEÃO, 2011, p. 57)
Na outra perspectiva sobre a narração da natureza e do elemen-
to humano, segundo Allison Leão, temos o esforço por parte de
Rangel para tornar-se reconhecível para seu leitor - que seria, so-
bretudo, o leitor que vivia nas cidades - a natureza indômita mui-
to distante dele e de sua imaginação. (LEÃO, 2011, p. 57)
Dessa forma, segundo Leão, Rangel exercitou a estruturação de
uma linguagem capaz de mediar extremos opostos, ou seja, a na-
tureza amazônica e o homem da cidade distante. Esta caracterís-
tica de sua linguagem aproximaria Rangel da tradição da crônica
de viagem a partir de dois aspectos, de acordo novamente com
Leão:
[...] ser fiel à realidade/referente e, por outro lado, ter de lhe imprimir
uma tradução, uma tentativa de familiarização daquele leitor-modelo
ao que lhe é tão estranho, além de buscar, antes de qualquer coisa, ele
mesmo, cronista, esta familiarização, como se traduzindo para o lei-
tor, traduzisse para si mesmo essa realidade, que, afinal, também lhe é
um outro. (LEÃO, 2011, p. 57-58)
Haveria então uma tradução que envolveria interferências sobre a
natureza-referente, sendo o idioma uma das principais intromis-
sões sobre ela. Aspecto que foi notado por Cornejo Polar, citado
por Allison Leão, desde as primeiras crônicas de viagem sobre a
América. E apesar da substituição das línguas nativas por línguas
estranhas terem estabelecido uma diminuição da intromissão do
idioma, ainda assim a linguagem sobre o referente sofre interfe-
rências a partir do caráter dominador de tais línguas, como tam-
bém da escrita literária. (LEÃO, 2011, p. 58)
Em inferno verde, a dualidade mediadora, se a puder chamar assim, é
visível na tentativa de equilíbrio entre um variado arsenal de expres-
sões regionais, arranjadas ao longo dos textos – desde a nominação
dos elementos da flora e da fauna até o detalhamento de práticas dos
trabalhadores da floresta em sua lide -, e um cabedal erudito de epí-

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

grafes – Machado de Assis, Heinrich Heine, Tristan Corbiére, Byron,


Musser, entre outros-, além de comparações de fundo mediador [...].
(LEÃO, 2011, p. 58)
A linguagem de Alberto Rangel, entretanto, se mostrou como
mediadora entre o mundo da natureza e o mundo de seu leitor
ideal, por meio de uma escrita rebuscada, capaz de engendrar
metonímias sobre a realidade amazônica. É a partir desse aspec-
to da linguagem do autor que podemos detectar as mesmas di-
ficuldades representativas da impossibilidade de compreender a
grandiosidade da natureza amazônica a partir de pressupostos
racionalistas em conflito com a experiência do estranhamento
que essa natureza sempre impôs aos escritores que desejaram
descrevê-la. Aspecto também percebido na linguagem de Eucli-
des por Foot Hardman.
Se de acordo com Leão a floresta se apresenta como um mistério
a ser decifrado e sua domesticação é quase impossível, esta reali-
dade se refletirá de forma desafiadora na linguagem arcaica que
irá informá-la. Antes dessa linguagem ser uma tentativa de fuga
em efetivamente decifrar a natureza amazônica, ela, em verdade,
se constituiria como um simulacro fechado assim como a flores-
ta-enigma, já que tal fuga pela linguagem não se consolidaria:
[...] em momento algum, pois o referente (Amazônia) atravessa o dis-
curso como ponto nodal da pergunta que a todo instante a obra se
faz: como resolver o impasse entre o arcaísmo da realidade amazôni-
ca – arcaísmo tanto pelas barreiras concretas que o ambiente natural
impunha como pelas formas de as sociedades locais lidarem com a
natureza, diversa da mentalidade cientificista – e as luzes de progres-
so que o projeto de nação exposto no livro pretendia jogar sobre os
confins? (LEÃO, 2011, p. 59)
Os efeitos do positivismo de Rangel na projeção modernizadora
que sua obra possui podem ser representados a partir do olhar
lançado sobre a natureza primitiva da região. Entretanto, para
Leão o que a linguagem realmente realizaria em Inferno Verde
seria a tentativa da imposição de “comparações e reflexões” entre
os elementos hiperbólicos da natureza amazônica e a linguagem
arcaica do escritor. (LEÃO, 2011, p. 59)
Para Allison Leão, ocorre o seguinte em Inferno Verde: Em pri-
meiro lugar, a obra mira o leitor da cidade que está muito dis-

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Métodos Fronteiriços

tante da realidade amazônica. Ainda que este possa contar com a


tradução que Rangel realize dela, um mundo estranho continua
sendo imposto a este leitor não só devido aos atributos hiperbó-
licos da Amazônia em si, mas também devido à mediação que a
linguagem da obra realiza dessa referência. Em segundo lugar, há
o entrelaçamento entre as “[...] narrativas sobre o não humano e
o humano, aparentemente distintas, mas que se cruzam constan-
temente, dando sentido uma à outra, num jogo de alusões cujo
fim tanto é didático quanto pedagógico.” (LEÃO, 2011, p. 59).
Para Rangel a Amazônia seria um espaço estranho, fato, inclusi-
ve, percebido por Euclides da Cunha, ao afirmar no prefácio de
Inferno Verde que o escritor não reprimiu a partir de sua escrita
seu assombro diante da grandiosidade perturbadora da região.
(LEÃO, 2011, p. 59)
É aqui novamente que a nossa análise comparativa sobre as his-
tórias literárias de Hardman e Leão exerce novamente uma in-
cursão sobre certas marcas oriundas da temporalidade e que se
assemelham, ou seja, há a preocupação em lançar um olhar sobre
o passado que busque encontrar nas obras de Euclides da Cunha
e Alberto Rangel as relações que existiram entre razão e estra-
nhamento.
Se para Foot Hardman Euclides teria se incomodado com os hor-
rores impostos pela natureza amazônica e as relações sociais que
surgiram na tentativa de domesticação dessa natureza indômita,
sobretudo, a partir das economias do caucho e da borracha e que
também produziram horrores, Alberto Rangel não teria tido rea-
ção muito diferente de Euclides, pois:
Assombro, espanto, vertigem: é precisamente aqui que o espaço ama-
zônico interfere na escrita; deixa de ser aquela categoria meramente
manipulável [...], para se tornar elemento de choque e fratura no
discurso literário de Rangel. Pois seu espírito racional, sua formação
de engenheiro – a mesma de seu narrador itinerante nos contos,
técnico agrimensor -, alinhados com a estética crítico- analítica do
Naturalismo brasileiro do início do século XX, deixa-se impingir por
uma característica mais fortemente relacionada ao Romantismo: o
sublime. (LEÃO, 2011, p. 59-60)
Para Allison Leão esse sentimento do sublime esteve presente na
literatura de Rangel justamente porque o fascínio pelo indomável,

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

insondável, selvagem remete ao próprio mito romântico do gênio,


como aquele de caracteres originais, não domesticados, não culti-
vados. (LEÃO, 2011, p. 60)
Na continuação de sua crítica, Allison Leão chega ao cerne do
que chama de “fratura discursiva de Inferno Verde” e que está
relacionado ao “[...] choque entre o projeto moderno e integrador
da nação presente no livro e o ambiente que Rangel encontra no
Amazonas.” (LEÃO, 2011, p. 60)
O projeto de Rangel, segundo Leão, se oporia frontalmente à
ideia da manutenção do extrativismo herdado do passado colo-
nial como forma de integração da fronteira amazônica ao res-
tante da nação. Essa representação se faz presente, por exemplo,
no personagem Souto de Inferno Verde, que assim como Euclides,
também critica as bases precárias e temporárias da economia dos
extratores peruanos de caucho.
Sem dúvida, concomitantemente ao evidente mal estar físico que o
ambiente provoca nos personagens-viajantes, como Souto, há em In-
ferno verde uma representação da natureza que extrapola o aspecto
material – seja da natureza como inferno físico, seja do seu potencial
mercadológico -, e se funda muito mais numa concepção simbólica,
da natureza como reserva simbólica da nação; ou deveria dizer: re-
serva da nação republicana e liberal. Conceber um sistema racional
do uso da natureza seria, assim, também uma questão de afirmação
política e ideológica. p. (LEÃO, 2011, p. 61)
Dessa forma, seria necessário uma transformação cultural do re-
gime extrativista herdado do passado, de acordo com a crítica à
mentalidade capitalista e colonial da economia da borracha na
região amazônica. (LEÃO, 2011, p. 61)
E como vimos anteriormente, Foot Hardman destaca o horror
presente no expressionismo de Euclides na descrição de um ex-
trator de caucho doente e abandonado em uma propriedade se-
nhorial no meio da floresta. Como produto de sua crítica perce-
bemos o tipo de sociedade que se formou nas selvas do Peru em A
Margem da História, também vemos o mesmo ocorrer em Rangel.
Ettore Finazzi-Agró, citado por Leão, classificou o conto “A deca-
na dos muras” como uma denúncia do choque que haveria entre
o projeto de nação implícito em Inferno verde e a condição mise-
rável e horrorosa de uma remanescente da tribo dos muras aban-

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donada em meio à selva. Perspectiva em que Ettore Finazzi-Agró,


citado por Leão, enxergaria como “[...] emblema físico duma na-
ção destinada a chorar sem fim ‘a falta que a institui, abraçada ao
fantasma de sua identidade indígena”. (LEÃO, 2011, p. 61)
Mas diferente de Foot Hardman, o crítico Allison Leão não dei-
xou de ver as contradições por trás do projeto literário de Rangel,
sobretudo no que diz respeito à descrição de como os diferentes
grupos étnicos se relacionavam com a natureza, além dos julga-
mentos do escritor sobre estes grupos. (LEÃO, 2011, p. 61)
O caboclo é admirado pela paciente sabedoria com que lida com a flo-
resta e os rios, e por sua insistência em permanecer num meio hostil,
segundo o narrador. Em “Terra caída”, conto que expõe o fenômeno
em que o rio arrasta e liquida grandes quantidades de sua margem,
podemos ler: “A terra podia desaparecer, o caboclo ficava. Acima das
convulsões da natureza, acima da fraqueza da terra, estava a alma do
nativo com tranqüilidade e fortaleza”. O indígena, por seu turno, é
reverenciado em tom lutuoso como marco zero humano nesse espaço,
conforme se nota no já citado “A decana do muras”. O nordestino é
reconhecido como desbravador e um novo bandeirante a legitimar
fronteiras que, neste caso, o caucheiro castelhano outrora palmilhava,
como se comenta no conto “A teima da vida”. Mas todos esses gru-
pos são, num momento ou noutro, depreciados por certa inapetência
que teriam frente às demandas progressistas da ideologia positivista.
Um exemplo que os reúne, ponto de vista negativo, e o conto “Pirites”,
onde, após imaginar que tem nas mãos grande tesouro em pedras
preciosas, conseguidas depois de ter assassinado o portador original
das pedras – o igualmente iludido caboclo Vicente – um cearense vê
seu sonho de riqueza desmoronar ao saber, por um ilustrado “doutor”
de Manaus, que o minério não passa de ouro de tolo. [...]. (LEÃO,
2011, p. 61-62)
Rangel, de acordo com Leão, no conto Inferno verde (último con-
to que dá nome obra), não veria, no entanto, nas ações dessas
raças a possibilidade para superação do atraso da região frente ao
restante do país, já que para ele essa seria uma tarefa para “[...] as
raças superiores, tonificadas, vigorosas, dotadas de firmeza, inte-
ligência e providas de dinheiro.” (LEÃO, 2011, p. 62)
Assim, no final do capítulo “Inferno verde: razão e delírio, técnica
e assombro na origem de uma tradição”, da obra Amazonas: na-

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

tureza e ficção, Allison Leão retoma a discussão sobre as fraturas


presentes no discurso de Rangel em Inferno Verde, justamente
pelas contradições implícitas nesse tratamento dado as diversas
etnias no espaço amazônico.
A fratura desse discurso ocorre porque, de um lado, o narrador pos-
tula que somente aquelas raças positivas e esclarecidas merecerão essa
terra. No entanto, elas ainda são virtuais, vindouras: mesmo para ele,
elas são ainda um projeto, pois a república, que prometia trazê-las,
fracassara até então. De outro lado, ele, o narrador, reconhece que, no
plano real, os grupos que habitam tradicionalmente a região e que são
por ele criticados, cada um ao seu modo, criaram condições próprias
de vivência e sobrevivência neste meio. E as criaram neste espaço que,
apesar das extensas digressões, seu discurso não consegue superar
como problema. A esfinge não o devora, mas tampouco é por ele de-
cifrada. (LEÃO, 2011, p. 63–64).
Para finalizar nossa análise após o que foi exposto, vimos como
Euclides da Cunha e Alberto Rangel expressaram razão e estra-
nhamento na tentativa de compreender e explicar as condições
da natureza amazônica frente ao projeto de modernização pro-
palado, sobretudo pelos positivistas da Primeira República no
início do século XX.
Estas expressões, entretanto, foram decisivas para a presença de
imagens literárias sobre a Amazônia. Imagens que sempre foram
instauradas por meio de fraturas que a natureza dessa região im-
pôs à tentativa dos dois autores de vislumbrarem a possibilidade
de realização desse projeto modernizador no espaço amazônico
no início do século XX.

Referências bibliográficas:
CUNHA, E. À margem da História. São Paulo: Ed. Martin
Claret, 2006. 234 p.
HARDMAN, F. A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a
Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Editora UNESP,
2009. 375 p.
LEÃO, Allison. Amazonas: natureza e ficção. São Paulo: Anna-
blume; Manaus: FAPEAM, 2011.

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Métodos Fronteiriços

GIZBURG, Jaime. “Euclides da Cunha, a Amazônia e a barbárie.”


Estudos Avançados. São Paulo, v. 24, n.69, 2010.
TOCANTINS, L. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. 5 ed.
Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1992. 280 p.

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3
A persistência do discurso
mitificador na Amazônia
Ocidental

Valdir Aparecido de SOUZA1

“A Amazônia emerge, na atualidade, ainda amalgamada por visões for-


matadas no Medievo, recolhidas no Renascimento, tematizadas pelo
Iluminismo voltaireano, romanticamente cristianizadas, dilaceradas
pelo capitalismo. Mitificada, foi o humus marioandradiano modernista 
e, imediatamente acusada no processo maniqueísta de inspiração natu-
ralista. Sua natureza é ficcionalizada. Praticamente composta de mato
e água, ocasionalmente o nativo demonizado ou piedosamente retrata-
do, é incluído no quadro edênico/infernismo. Ainda é, muitas vezes, um
intruso no processo de invenção da Amazônia. (g.n.).” Neide Gondim.

Introdução
Neste ensaio buscaremos demonstrar a persistência do discurso
conquistador2 encampado pelos intelectuais sobre as populações
autóctones da Amazônia. Para isso seguiremos um caminho line-
ar e nesta trajetória nos apropriamos basicamente da análise de
Beatriz Pastor (1992) sobre as narrativas de conquista da Améri-
ca em The Armature of Conquest. A seguir nos apropriamos das

1  Doutor em História e Sociedade – UNESP. Professor Adjunto do Programa


de Mestrado em História e Estudos Culturais NCH-UNIR. Líder do Centro
de Estudos do Imaginário Social – UNIR.
2  Discurso de conquista, discurso do fracasso e discurso da rebelião são ca-
tegorias criadas por Beatriz Pastor para compreender as narrativas escritas
produzidas no encontro dos dois mundos europeu e americano.

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Métodos Fronteiriços

análises do crítico Antônio Esteves sobre as obras literárias brasi-


leiras que tomam, por objeto central, a região amazônica tecendo
alguns comentários a partir de suas observações. E por fim no
terceiro tópico analisaremos alguns versos selecionados do poe-
ma épico A Muhuraída ou o triumpho da Fé, de João Henrique
Wilkens (1789), além de partes da obra Caiari de Emanuel Pontes
Pinto (1986), e ainda os livros Desbravadores vol. I e II de Vitor
Hugo (1959;1993) que elegemos por expressar a persistência do
discurso de conquista da Amazônia, especificamente em sua por-
ção extremo ocidental.
Desde o início de sua exploração a Amazônia foi representada pe-
los exploradores a partir dos seus próprios interesses. À medida
que as demandas no mundo europeu iam se transformando em
novas necessidades e cada vez de maiores proporções, as repre-
sentações sobre a Amazônia iam acompanhando refletidamente
essas mudanças na sociedade europeia.
No início da exploração precisavam de um paraíso terreno, a
América e, por extensão, a Amazônia seria um destes locais per-
didos, um paraíso físico a ser encontrado. As narrativas são nada
ortodoxas e em certa medida clareiam a dicotomia entre a visão
do paraíso na busca por El Dorado e Manoa na expedição de
Pizarro. Os sobreviventes quando perguntados sobre as rique-
zas, diziam que não as encontraram, mesmo sendo decantadas
nos relatos dos autóctones. Ao contrário, afirmavam que o rio de
Orellana não passava de igarapés, furos, lagoas, poços, vegetação
densa e labiríntica, a que todos eles se referiram pelo termo ma-
rañas. Desta expressão resultou também o nome do rio em seu
lado espanhol alcunhado de Marañon, e a associação de boatos
sem fundamento, narrativas de fortunas fáceis e riquezas abun-
dantes, entre os falantes de espanhol na América, ficaram defini-
das pelo termo maraña.
Entretanto, mesmo em meio à decepção, na inócua busca por ri-
quezas, as Relaciones de Carvajal, Rojas e Acuña são riquíssimas
fontes para se compreender a construção histórica e literária des-
te espaço, que viria a se consolidar pela etimologia de Amazônia.
Por meio dos relatos de Acuña se constata que havia uma enor-
me densidade populacional, descrita no capítulo denominado La
multitud de gentios. Entretanto, aquela multidão não se encaixava

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

no projeto conquistador português conforme se cristalizou no


imaginário do Baixo Madeira dos povos que habitavam a região.
Como exemplo acusavam o povo Mura que resistiu até sua
completa extinção. Como os Mura não cediam aos projetos de
conquista impostos pelas reduções franciscanas e jesuítas, estas
mesmas missões deram o seu aval para que os “colonos conquis-
tadores” os exterminassem. Este extermínio foi exaltado em ver-
sos pelas forças portuguesas e passou a ser o padrão civilizatório
na região do Baixo e Alto Madeira.
Os elementos simbólicos desse genocídio foram retratados no
poema do militar português João Henrique Wilkens, glorificado
no extermínio deste povo. A constatação desse episódio ressurge
na literatura, no início do século XX, condensado em uma velha
índia Mura maltrapilha e doente. Ela personificava o derradei-
ro destroço de uma nação de grandes guerreiros submetidos à
violência para a civilização, no conto “A decana Mura” de Alber-
to Rangel em sua coletânea livro de contos Inferno Verde (2001).
Perversamente, a apologia à conversão dos bárbaros, pela desi-
gualdade de forças da superioridade bélica revela-nos, em um
olhar mais detido, a própria barbárie do processo dito como civi-
lizatório (Benjamin, 2012).
Nas primeiras explorações do século XVII, o frei jesuíta Christo-
bal Acuña afirmava que o argumento da guerra “justa” justificada
pela prática do canibalismo era falso. Essa calúnia inventada a
partir dos interesses econômicos pelos portugueses escondia a
mais cruel e desumana escravidão a que já havia presenciado.
E que ninguém diga que o fato destes índios não quererem vender
seus escravos seja porque os têm para comê-los em suas bebedeiras,
como dizem sem fundamento os portugueses, que andam metidos
neste negócio e com isto querem encobrir sua injustiça. (...) O que
quero convencer é de que não existem em todo este rio açougues pú-
blicos onde o ano todo se pesa carne de índios, como propalam aque-
les que, argumentando querer evitar semelhante crueldade, praticam
crueldades ainda maiores, transformando com seus rigores e ameaças,
em escravos aqueles que não o são. (Apud Martins, p. 47) 3

3  Esse tema do despovoamento da Amazônia nos relatos dos missionários é


o objeto central das narrativas analisadas por Maria Cristina Bohn Martins.
Para uma leitura mais aprofundada desta temática veja o artigo “Descobrir

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Métodos Fronteiriços

A mesma denúncia se segue no relato do Pe. Samuel Fritz ao criti-


car a ambiciosa sanha escravista dos portugueses sobre os povos
Omáguas na região do rio Napo:
Los portugueses, despues que partieron, fueron á Guapapaté, un día
rio abajo, y enfrente de la aldea se detuvieron diez dias tirando allí en
tierra firme zarzaparilla. También hicierón allí (…) un desmonte (…)
deciendo que allá habían de venir à poblarse, y no dudo que así lo ha-
ran, por lo mucho que codiciam por esclavos los indios de acá arriba;
á más que discurren que por acá han de hallar puerta para entrar al
Dorado, que sueñan no estar muy distante. (Apud Martins, p. 48)
Ressalvo os escusos interesses em transformar os nativos em vas-
salos para renda da coroa, dos nobres conquistadores e das or-
dens religiosas espanholas, os missionários observavam que os
portugueses exerciam demasiada violência e crueldade com os
nativos. Talvez isso possa ser explicado pelo fato das categorias
encomienda, encomendero e encomendado, no qual, os nativos
prestavam serviços e geravam renda para os conquistadores não
estivessem disponíveis por causa da concorrência dos portugue-
ses. Segundo a literatura, em troca dos serviços dos índios, os
encomenderos deveriam proteger, alimentar, abrigar seus enco-
mendados e cuidar de sua educação espiritual. Prática que, ali-
ás, pouco se tem conhecimento entre os espanhóis. Eles também
buscavam escravizar a mão de obra aborígene, entretanto possu-
íam uma economia mais rentista entre si.
No entanto, estas categorias de servidão pouco foram observadas
na Amazônia brasileira. Aos nativos que não serviam para o tra-
balho e resistissem à doutrina católica, poucas opções restavam.
Sobrava a única “conversão” possível, em uma visão rasa da eco-
nomia, se não se submetessem à escravidão deviam ser extermi-
nados.
O extermínio pelas armas, o contágio criminoso e as epidemias
trazidas pelos portugueses aos poucos foram produzindo um va-
zio na região. Pesquisas arqueológicas recentes desmentem um
dos postulados mais aceitos do senso comum, quanto ao vazio de

e redescobrir o grande rio das Amazonas. As relaciones de Carvajal (1542),


Alonso de Rojas SJ (1639) e Christóbal de Acuña SJ (1641)” in Revista de His-
tória nº156. São Paulo, 2007, pp. 31-57.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

gente na Amazônia (Heckenberger, 2014)4. Corroborando estas


pesquisas temos os relatos, citados anteriormente, dos missioná-
rios cronistas que informam sobre a superpopulação que habi-
tava as margens dos grandes rios. Como exemplo destes relatos
temos as relaciones de Carvajal, Rojas e Acuña, dos séculos XVI,
XVII e XVIII. E ainda as obras dos jesuítas padres Samuel Fritz e
João Daniel (XVIII e XIX).
Não bastasse o fenômeno concreto sangrento, o poeta português
ainda tinha de registrar esse ato de “bravura” em Muhuraída. Este
texto épico não é semelhante a uma odisseia aos moldes gregos
(Ilíada) e romanos (Eneida) e não tem como objetivo glorificar
o expansionismo de um povo. Muhuraída, não teve como tema
o avanço das fronteiras, e sim o extermínio de outro povo, a po-
pulação Mura. Conforme já dito no testemunho de Acuña, havia
“una multitud de gentes”, isto sem considerar que muitos povos já
haviam sido dizimados em cem anos de conquista.
Todo este novo mundo (...) está habitado por bárbaros de variadas
províncias e nações, das quais posso dar boa fé enumerando-as por
seus nomes e indicando sua localização, algumas de vista e outra por
informações de índios que nelas estiveram, passam de cento e cin-
quenta, (...) tão extensas e tão ocupadas por moradores como a que
vimos por todo o trajeto, (....) Tão seguidas estão umas das outras que,
dos últimos povoados de uma, em muitos casos se pode ouvir lavrar
a madeira na outra … (ACUÑA, Capítulo XVI)
O extermínio seria o resultado de uma conquista utópica, diante
disso exploraremos as raízes desses discursos sobre a Amazônia.
Tentaremos neste breve ensaio demonstrar que essa construção
do vazio amazônico está bem mais próxima da literatura fantás-
tica que da realidade dos ameríndios, primeiros colonizadores
desta grande planície. Acreditamos que essas raízes possam ser
constatadas em apreensões mais abrangentes como a descoberta
do novo continente, que viria a se chamar América.
4  Em 1996 o arqueólogo e professor da Universidade da Flórida Michael He-
ckenberger descobriu inúmeros vestígios de antigas civilizações na região do
Xingu. Ele afirma que a Amazônia abrigou grandes populações organizadas
em cidades jardins, as florestas seriam ao invés de selvagens, pomares produ-
zidos pelos seus habitantes pré-colombianos e estas cidades teriam sistemas
de comunicação complexos. “As cidades perdidas da Amazônia” in Scientific
American Brasil, 2014.

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Métodos Fronteiriços

As contradições na invenção da América


Conforme O’Gorman (1992) a América foi inventada, e como in-
venção ela permitia todas as projeções hiperbólicas, do paraíso
terreno aos monstros medievais. A realidade da América Latina
se iniciava a partir da distorção, um discurso feito pelos cronistas
justamente para prestar contas ao rei, neste sentido era necessá-
rio agradar aos superiores. A expectativa de encontrar riquezas e
construir um reino cristão renovado motivava boa parte destes
conquistadores. Tudo isso foi registrado e mediado pela escrita
que criou um valor novo, nunca antes visto no continente. A che-
gada do conquistador foi uma clivagem que contrapôs tradição
oral versus registro escrito moderno do mundo, marcando sig-
nificativamente a história do continente e a identidade dos seus
antigos ocupantes e novos conquistadores.
Segundo Beatriz Pastor, a América que os europeus buscavam
era um misto de mitos medievais e seu primeiro porta-voz fora
o próprio líder da expedição, Cristóvão Colombo. E basicamente
três obras compunham seu baú de imagens sobre o novo conti-
nente, que acreditava ser o Oriente: as Viagens de Marco Polo, a
Imago Mundi, e Historia Rerum gestarum em sua versão italiana.
Neste sentido, conforme a pesquisadora e crítica literária, Co-
lombo tinha uma ideia preconcebida do continente por meio da
literatura que o havia influenciado e identificou paripassu, os lu-
gares pelos quais passava como os mesmos locais visitados pelo
mercador veneziano Marco Polo. Todos os seus cálculos e rotas
baseavam-se nas explorações do navegador que o precedera em
viagens e glórias.
O tópico “A Real World Disregarded” versa sobre a maneira como
Colombo teria desvirtuado sua interpretação do novo continente
encontrado, em virtude de dois elementos principais dentre ou-
tros de menor relevância. Primeiro, a influência sofrida pelas na-
vegações conhecidas por meio dos textos, e segundo, porque lhe
interessava pessoalmente narrar a coroa espanhola, as mesmas
ocorrências de riquezas encontradas por Marco Polo no extremo
oriente. Além de se autoproclamar um navegante predestinado,
pessoalmente por Deus, para encontrar o novo continente. Se-
gundo Pastor, essa invenção inaugurou a literatura latino-ameri-
cana, distorcida do real, fantasiosa, maravilhosa e fantástica.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

The central meaning of the term “to discover”, that is, to unveil or to
make known, does not describe the actions and conceptualizations of
Columbus, whose method of inquiry, informed by his need to iden-
tify the newly discovered lands with preexisting sources and models,
was a mixture of invention, misrepresentation, and concealment.
(Pastor, p. 10)5
Conforme a autora, a descoberta de Colombo poderia ser carac-
terizada como a invenção do novo mundo conforme as suas con-
tingências históricas. Produzindo uma visão extremamente dis-
torcida desta nova realidade, ele não a enxergava, em si, como ela
se apresentava, e sim, como ele a via. Até mesmo o conhecimento
e a língua dos nativos foram desprezados, principalmente quan-
do as informações fornecidas pelos autóctones vinham a conflitar
com a sua “interpretação” das novas terras.
Colombo chegara ao extremo do contrassenso, ao afirmar que
os próprios aborígenes não sabiam pronunciar os nomes dos lu-
gares que supunha ter encontrado, tampouco sequer pronunciar
corretamente suas próprias línguas. Um episódio citado por Pas-
tor ilustra muito bem suas distorções representativas. Colombo
desembarcou em uma ilha denominada pelos nativos de Sobo e
disse que era a mesma ilha de Sheba do Rei Salomão. Diante da
negativa ameríndia ele improvisou uma “aproximação” linguísti-
ca para que esta se encaixasse no roteiro que estava procurando:
“Upon disembarking, Columbus and his men ask the inhabitants
what the name of the island is, and the answer they are given is
Sobo. At this, says Cuneo, ‘the Admiral said that the word was
the same, but that the natives did not know how to pronounce it’
(Pastor, p. 35-6, g. a.)6.
Ainda conforme a análise de Pastor, além da negligência à pro-
núncia e conhecimento local ele procurava itens prioritários. Em
5  O sentido preciso do termo “descobrir”, isto é, revelar ou tornar conhecido,
não abarca as ações e conceitualizações de Colombo, qual seu método de
investigação, muito mais constituído por sua necessidade de identificar as
recentes terras descobertas a partir de fontes e modelos preexistentes, isto era
uma mistura de invenção, distorção e deformação. (tradução nossa)
6  Ao desembarcar, Columbus e seus homens perguntaram aos habitantes
qual era o nome da ilha, e eles deram a resposta que se tratava de Sobo. Nisto,
diz Cuneo “O Almirante disse se tratar da mesma palavra, mas os nativos
ameríndios não sabiam como pronunciá-la”. (tradução nossa)

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Métodos Fronteiriços

seus relatórios buscava relatar as seguintes ocorrências: ouro, pe-


dras preciosas, pimentas, e outras de menor importância econô-
mica como ruibarbo, canela, temperos variados e plantas medi-
cinais.
Somando a essa busca, há vários momentos nos quais reproduz
fielmente trechos bíblicos como no caso das lendárias viagens
dos súditos do Rei Salomão saindo com seus barcos de Jerusalém
para as Terras de Sheba e Ofir e retornando abarrotados de péro-
las, marfim, âmbar, almíscar, peles, pedras preciosas e madeiras
nobres para a construção do templo sagrado. Colombo distorceu
como pode o novo continente para adaptá-lo às imagens produ-
zidas pela sua sociedade naquele contexto histórico. Encontrar o
paraíso perdido dos europeus era a sua missão, conferida direta-
mente a ele por Deus.
Em outra passagem fica perceptível que Colombo estava vivendo
uma ficção fantástica, ao se deparar com a agitação no encontro
das águas do Orenoco com o mar lançou mão de uma explicação
literária e textual ao invés de observar o fenômeno natural diante
de si. Conforme as palavras de Pastor:
He decides on the latter uses his habitual sources from the Bible [...] it
prove that: (1) the earth is shaped not like a sphere but like a pear of
the breast of a woman, (2) the nipple of the breast is in the region of
Paria, and (3) the Terrestrial Paradise is on the nipple, together with
the original sources of the Tigris, Euphrates, Ganges, and Nile. Using
the same line of reasoning, he attributes the gentleness of the climate,
the kindness of the people and the lushness of the landscape to the
proximity of the mythical garden. He believes that the whirlpools
produced in the bay of Orinoco are the original source of fresh water
for the four great rivers. These, according to d’Ailly, start in Paradise
and rush down a high mountain (the nipple), making a great commo-
tion. (Pastor, p. 28)7
7  Ele resolve usar suas fontes habituais da Bíblia […] para provar que: (1) a
terra não tinha forma de esfera, e sim de uma pera como os seios da mulher,
(2) o bico do seio é a região de Paria, e (3) o paraíso terrestre está localizado
no bico, juntamente com as fontes originais do Tigre, Eufrates, Ganges, e
Nilo. Usando a mesma linha de raciocínio, ele atribui a gentileza do clima, a
bondade das pessoas e da exuberância da paisagem à proximidade do jardim
mítico. Ele acreditava que os redemoinhos produzidos na baía de Orinoco
eram a fonte original de água fresca para os quatro grandes rios. Estes, [...]

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Outro elemento revelado nos relatos de viagem é que não se tra-


tava de homens eruditos. Seus diários inauguravam uma forma
intimista, havia muitas observações pessoais que destoavam das
histórias de santos e épicos de cavalaria, no qual o narrador es-
tava implícito. Estes exploradores eram conhecedores das letras,
mas nem de longe poderiam ser confundidos com filósofos ou
cientistas.
Por se tratarem de narrativas hiperbólicas carregadas de simbo-
lismo pode-se tomá-las muito mais como literárias, que precisa-
mente descrições objetivas da nova sociedade encontrada. Seus
registros prenunciavam um gênero que iria se tornar bastante
comum alguns séculos mais tarde como o romance de aventura.
Essas crônicas eram um misto de relatório oficial com muita fic-
cionalidade movida pela imaginação em torno do desconhecido.
Esta ficcionalidade, ainda segundo Pastor, resultaria na inaugu-
ração da América, na sua identidade híbrida e em uma literatura
germinal preenchida com elementos fantásticos.
Poderíamos continuar citando indefinidamente centenas de
exemplos fornecidos por Pastor, mas este não é o objetivo deste
texto. Buscamos exemplificar as contradições no que até há pou-
co tempo era considerado como fonte histórica para a América
Latina, para perceber que além dos elementos históricos, trata-se
também de uma fonte literária e ficcional. Tomamos empresta-
da a análise de Pastor e de outros autores sobre a conquista da
América hispânica, para tão somente analisar a visão dos povos
nativos da Amazônia Ocidental e demonstrar que apesar dos
“enganos” de Colombo e de outros exploradores que enxergavam
tão somente aquilo que vieram procurar, mesmo após 500 anos
do descobrimento, em pleno século XXI, ainda se reproduz esta
visão “distorcida” sobre os ameríndios do extremo ocidente ama-
zônico.
A exemplo de Colombo, os novos conquistadores do século XIX
e XX, que se autodenominavam pioneiros, tinham interesses se-
melhantes e o principal deles era legitimar o saque das terras
dos seus legítimos proprietários. Neste sentido, os intelectuais
representantes desses grupos dominantes reprisavam, de forma

iniciavam no Paraíso e corriam abaixo de uma montanha alta (o bico), fazen-


do uma grande agitação (tradução nossa).

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extenuante, o discurso do vazio demográfico, justamente para le-


gitimar o saque às terras indígenas. No período da “colonização”
agrária, o Presidente General Garrastazu Médici eternizou um
jargão que fazia referência a esta legitimação, “Homens sem terra,
para uma terra sem homens”.
A partir desta constatação percebe-se que a retórica destorcida da
conquista passou a ser entabulada pelas camadas dominantes do
novo continente. Disso depreendemos, nesta linha de raciocínio,
que seus habitantes primevos passaram a viver uma realidade que
não era a deles, imposta por meio da força, uma realidade fictícia.
Poderíamos estender esta leitura e dizer que este cotidiano, inau-
gurado na “descoberta” de Colombo como uma peça de ficção, e
da invenção conforme O’Gormman (1992) perdura infelizmente
até o presente, além da realidade do encontro dos mundos que foi
e continua sendo omitida e desprezada.
Assim como a América foi definida e constituída mais a partir
dos mitos medievais em torno do extremo oriente: terras de Ci-
pango, terras do Grande Khan, da Cochin China, Paraíso Terreal,
a Ilha de HiBrazil8 e outros. A Amazônia foi constituída a partir
das visões europeias de mundo, e de sujeitos imperantes naquela
sociedade. Filósofos e outros pensadores com suas análises in-
consistentes passaram a definir o homem e a região amazônicos.
O cientista social Renan Freitas Pinto descortina essa construção
fictícia ao refletir sobre o fenômeno, que ele descreve por “viagem
das ideias”, e que embasa e cristaliza visões não realistas sobre a
Amazônia. A partir desta apreensão o pesquisador propõe:
[...] Nessa perspectiva, queremos sugerir que o processo de formação
do pensamento que construiu a Amazônia como um espaço natural
e cultural vem, ao longo dos últimos cinco séculos, produzindo e
continuamente reinventando, a partir de um conjunto relativamente
limitado de ideias, as percepções que se tornaram as mais persistentes,
dentro certamente do quadro mais amplo e diversificado da geografia
do Novo Mundo. (2005, p. 97)
Pinto refere-se às ideias de Montaigne, Rosseau, Hobes, Lock e
Buffon. Em relação a este último filósofo, ele demonstra a grande
influência das ideias sobre o mito da inferioridade evolutiva dos
8  CAMILO, J. Mapa, mito e fronteira. I Encontro de Cartografia Histórica.
Parati, 2011.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

povos americanos, especialmente, aqueles mais próximos da na-


tureza preservada. De acordo com Renan Freitas Pinto, as ideias
de Buffon foram adotadas para legitimar todos os processos de
conquista. Segundo este pensamento linear todos os povos deve-
riam evoluir, pois não deveriam permanecer no estágio primitivo
no qual se encontravam.
Ao se referir a grupos de indígenas da Amazônia, Buffon é atraído,
sobretudo, por sinais que identificam esses grupos como portadores
de costumes selvagens. E de um ponto de vista evolutivo são classifi-
cados entre os povos mais primitivos. O parâmetro da civilização é o
do homem branco europeu. […] Para Buffon, os índios do Brasil são,
em sua grande maioria, primitivos e resistentes aos valores da civili-
zação, a não ser os poucos grupos que passaram a manter relações de
comércio com os portugueses. (2005, p. 100)
Esse modo de ver os povos nativos da Amazônia influenciará di-
versas gerações, segundo Pinto, até os dias atuais. Nos séculos
XVIII e XIX vários exploradores reproduziram as ideias de Bu-
ffon, como por exemplo, o “cientista filósofo” baiano Alexandre
Rodrigues Ferreira. Pinto ao analisar o trânsito de ideias que fun-
dam uma visão monolítica sobre a região, afirma:
Vamos encontrar também nas anotações sobre os povos indígenas do
brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira – Viagem filosófica – exem-
plos e argumentos igualmente inspirados nas ideias de Buffon, ou seja,
na caracterização negativa das terras e gentes da Amazônia, propon-
do o estudo dos povos indígenas como um ramo da história natural.
(2005, p. 101)
Ainda segundo este autor, os missionários cronistas, principal-
mente os da ordem jesuíta, influenciaram conjuntamente a visão
sobre a região com suas descrições e pareceres baseados na asce-
se católica, sobre o potencial econômico e a cultura dos nativos
amazônicos. Ele prioriza duas obras que em sua opinião foram
fundamentais para se entender as ideias e visões formuladas so-
bre a região Amazônica até os dias de hoje. São elas o Diário de
Viagem do Padre Samuel Fritz e Tesouro descoberto no máximo
rio das Amazonas do padre João Daniel, ambos jesuítas. Observa
o cientista, “João Daniel institui o que poderíamos reconhecer
como um novo padrão científico de interpretação da Amazônia
que dificilmente será atingido por autores até mesmo da atuali-

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Métodos Fronteiriços

dade”. (2005, p. 105)


A soma daquele quadro de proposição racionalista dos filósofos
europeus, mais os relatos dos missionários que exploraram a re-
gião seriam a base para representar a região do limiar da Procla-
mação da República à derrota do populismo varguista nos anos
de 1960. O projeto dos modernistas para a Amazônia, ora a in-
corporavam como berço da moderna identidade brasileira como
declara Bopp, ora como terra de primitivos que deveria evoluir
até chegar à modernidade como afirma Monteiro, ou ainda como
um sertão inóspito que jamais poderia se modernizar e não pas-
saria de um Inferno Verde, ou no máximo de um Paraíso perdido.

A Amazônia incorporada ao modernismo


Se os portugueses e espanhóis foram os principais responsáveis
pelo extermínio físico dos nativos, com suas enfermidades, pestes,
modo de vida exótico e pela força das armas, Euclides da Cunha
contribuiria para a construção simbólica do vazio na literatura
sobre a Amazônia. Segundo Foot Hardman (2007) haveria uma
vertigem ao vazio anunciado na incapacidade assumida do autor
de Os sertões de descrever e ainda analisar a região devido à sua
grandeza descomunal. O trecho do preambulo de Paraíso Perdido
nos elucida sobre sua consciência diante de tal desafio.
Este Euclides compara a tarefa hercúlea ao trágico mito grego do
Édipo Rei; “Imagine-se, entretanto, uma inteligência heroica, que
se afoite a contemplar, de um lance e temerariamente, a Esfinge.
Titubeará na vertigem do deslumbramento” (CUNHA, Preambu-
lo, 1976). A esfinge de Euclides seria o deslumbramento e o pa-
vor, diante de uma floresta densa, extensa e intrincada que pouco
revelava o seu conteúdo, os mistérios e riquezas provavelmente
estariam lá dentro também.
Entretanto de forma ambígua lá estão endemias desconhecidas,
natureza inóspita, animais e povos desconhecidos. Diga-se de
passagem, engenheiro, acostumado ao ambiente urbano, que
apesar de haver tido uma experiência arrebatadora ao presenciar
um genocídio de proporções épicas, em Canudos, no sertão da
Bahia, não estava acostumado a uma floresta tão grandiosa e de-
safiadora.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Todavia, não se pode deixar passar que seu olhar citadino e mo-
derno, percebia o entorno como uma matéria que seria deco-
dificada, controlada e explorada racionalmente. Essa vertigem
diante do “vazio” era basicamente a sensação de um explorador
que negava as populações tradicionais e este modo de vida não
caberia mais em seu mundo desencantado. Paradoxalmente ele
próprio se rende diante da imensidão que acredita ser impossível
de ser sintetizada pelas gigantescas proporções e grande diversi-
dade, porém sempre desconsidera os saberes locais que convivem
com a esfinge. Para as populações nativas não havia esfinge algu-
ma desafiando o seu modo caboclo de interagir com a floresta e
seus recursos.
De início a influência incidiu diretamente sobre o engenheiro Al-
berto Angel, amigo pessoal, ao nomear a sua coletânea de contos
no termo emblemático, “Inferno Verde”. Neste sentido, o paraíso
perdido descrito por Carvajal, Rojas e Acuña, mantido por La
Condamine e Humboldt se esvaía na pena de Euclides. Diante da
imensidão assustadora ele se diz incapaz de traduzir a região, e
esse pessimismo vai sendo estabelecido pouco a pouco e a região
passa a receber outras designações que reforçavam a ideia de in-
fernismo.
Nos anos 20 passou a ser “Sibéria Tropical” para onde a capital
federal enviava os rejeitados sociais, os amotinados da Revolta
da Chibata e outros incômodos para o governo federal. Nos anos
30 passa a se tratada como área insalubre para o desenvolvimen-
to racional e, portanto, deveria ser transformada por meio de
investimento na sanitarização dos portos e vilas, drenagem de
pântanos, criação de agrovilas para fixar o homem no campo,
pavimentação de vias públicas e construção de canais e estradas
ligando as cidades.
A demonização das populações nativas construída entre os sé-
culos XVII e XVIII retornava com toda a força, pois além das
endemias, do clima, da imensidão da hileia, da imensidão de suas
águas, somavam-se outros elementos inibidores da submissão da
natureza amazônica, como suas feras e os povos indígenas que
ocupavam as terras. Reforçava-se assim a tradição histórica na
legitimidade do massacre aos aborígenes, um dos fortes empeci-
lhos em vingar o Inferno Verde, na visão euclidiana.

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Métodos Fronteiriços

No afã moderno de submeter homens e natureza, outro projeto


no campo representativo também corroborava essa visão, porém
com uma particularidade em relação ao caboclo. Um híbrido ge-
rado na violência do encontro entre o conquistador e sua presa,
uma menina índia vítima da “civilização”, a própria Iracema ge-
rando Moacir, o filho da dor. Este ser híbrido foi dominado pelo
ocidental e separado do seu grupo por meio das reduções jesuíti-
cas e franciscanas na região.
O projeto modernista de Raul Bopp visava incorporar esse ser
híbrido9 (CANCLINI, 2005) como símbolo da raiz identitária
nacional. O caboclo que tomava a forma de uma grande serpente
seria a síntese do primitivo, filho da Cobra Grande e do Sol, e do
moderno, pois destruiria seu pai-mãe, uma espécie de mito her-
mafrodita que simbolizaria o pai símbolo da fertilidade e também
a mãe por ser o repositório da cultura, para salvar de suas garras
uma princesa medieval, (um tributo do poeta à Cervantes?).
Este herói tem o ímpeto de salvar a cultura ocidental, princesa
filha da Luz, do embotamento na cultura tradicional amazôni-
ca. Se Euclides se sentiu impotente diante da imensidão, Bopp
buscava os elementos mais primitivos para traduzir a brasilidade
moderna, visava domar a natureza incorporando-a a poética do
nosso nascimento moderno. Nessa linha de raciocínio, a Amazô-
nia seria o reduto de nossas raízes, pois casando-se com a prince-
sa filha da Rainha Luzia, símbolo da cultura europeia, haveria a
síntese entre o primitivo e o moderno, o índio e o europeu.
Conforme Esteves, em sua leitura ampliada das possibilidades de
interpretação de Cobra Norato, a insistência nos mitos de criação
como Cobra Grande e Cobra Norato teria o papel de expurgar
a culpa cristã em relação à reprodução, “Daí a escolha do mito
ameríndio. [..] Esse mergulhar nas raízes de sua cultura não re-
presenta uma negação do componente europeu de nossa forma-
ção […] Ela é libertada da Cobra Grande e passa a conviver com
o herói, casada, portanto pronta para reproduzir” (1988, p. 80).

9  Tomamos aqui o conceito de hibridismo cultural de Canclini por se tratar


de uma diversidade tão dispare que qualquer conceito que não permita a fle-
xibilidade. Este é o caso do hibridismo, pois fica difícil de operar, em termos
de América Latina, as suas diversas clivagens e oposições entre erudito e po-
pular, tradicional e moderno versus de massa e popular etc.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Ainda segundo as considerações de Esteves, o poema significaria


para o Movimento Modernista a tentativa de síntese da cultura
brasileira com bases modernas.
Utilizo também algumas considerações do pesquisador e crítico
Esteves sobre a obra de um escritor paraense Benedicto Monteiro.
Segundo Esteves o autor buscava em sua tetralogia Amazônica
dividida em: Verde vagomundo, O minossauro, A terceira mar-
gem e Aquele um, dar um sentido ao viver amazônico, de forma
evolucionista, do plano aquático e primitivo, passando ao pla-
no terrestre, aéreo até chegar ao plano literário. Sua saída para
a compreensão da Amazônia só poderia acontecer pela arte e
especificamente pela literatura. Utilizando essas considerações
de Esteves, concluímos que na visão colonialista de Monteiro,
as tradições orais deveriam ser incorporadas pela representação
moderna e ocidental. Não haveria possibilidade de sentido sem
o domínio dos seres e dos corpos, não haveria salvação sem a
“civilização”.

As obras literárias e históricas do Extremo Amazônico


Ocidental
A partir de agora iremos expor o nosso principal objeto de in-
vestigação, que são as obras literárias e “históricas” dos escrito-
res regionais da Amazônia Ocidental. Estas obras não causarão
estranhamento em relação as suas representações das popula-
ções nativas. Pois estas buscam demonizar o povo Mura, e por
extensão qualquer outro povo. Estilo inaugurado com o épico da
Muhuraída ou o Triumpho da Fé (1789), e reatualizado em Caiari
(1986) e Desbravadores I e II (1959; 1993). Ambos ao reproduzir
o mesmo padrão do fantástico maravilhoso com suas viagens mi-
rabolantes de judeus e fenícios a serviço de Salomão, atribuir aos
povos nativos as características de monstros antropófagos, cruéis,
ferozes, necrófilos e outros termos inomináveis apenas, ressalvo
o contexto diferenciado e regionalismo, rendem os mesmos tri-
butos à Colombo.
Neste sentido, se a narrativa latino-americana ao menos teve suas
primeiras fases divididas em discurso mitificador sintetizado por
Colombo, discurso da derrota protagonizado por Cabeza de Vaca
e discurso da rebelião personificado em Lope de Aguirre. No caso

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Métodos Fronteiriços

regional ainda é bastante marcante o discurso colombino da con-


quista.
As tentativas modernistas de Euclides, Bopp e Monteiro passaram
ao largo destas paragens do mundo real amazônico, e se foram
ouvidas foram mal recebidas, ou distorcidas por interesse pró-
prio. O Padre Vitor Hugo ao escrever sobre a “história” da missão
salesiana na região, usava uma lógica de raciocínio que visava re-
produzir o discurso da conquista dos “selvagens” para a fé católi-
ca. Disto resulta uma cópia fiel dos discursos feitos pelos jesuítas
do XVIII e XIX, como sua necessidade de alçar os missionários
jesuítas e franciscanos como os únicos e verdadeiros desbrava-
dores, ao invés dos exploradores espanhóis. Em sua concepção a
região estava sob o controle do demônio, sob o domínio de pajés
e curandeiros, e aqueles missionários “salvaram” os “selvagens”.
Além de ser uma cópia fac-símile dos relatos dos jesuítas e fran-
ciscanos, o padre salesiano Vitor Hugo reproduz, após dois sécu-
los e em pleno século XXI, o poema épico Muhuraída que canta
a vitória da fé católica, pela força das armas, sobre os aguerridos
Mura que habitavam o Vale do baixo Madeira.
Sua narrativa é uma tentativa clara em demonizar os nativos por
meio de observações que poderiam ser consideradas na legisla-
ção atual, verdadeiros crimes contra grupos e pessoas. O objetivo
seria o contraponto de enaltecer o papel da missão salesiana, da
qual fazia parte, no “salvamento” dos aborígenes infiéis.
É que os Mura, levavam vida desordenada e má; entregavam-se a dan-
ças tão lascivas e cantavam cantigas tão impuras, [...] prática crimino-
sa de tantas abominações. [...] cegos e surdos, os Mura não queriam
nem crer no mal que praticavam [...] enquanto mais quente fervia a
orgia […] Infelizmente serpeavam os vícios: umas oito vezes por ano
aquelas povoações entregavam-se a bacanais [...]. (Hugo, 1959: p. 80;
125)
Guardada as devidas proporções este trecho de Desbravadores I
é a cópia, com algumas licenças poéticas, do épico escrito por
Wilkens (1789). Neste poema, o autor, para legitimar o extermí-
nio do povo Mura, o acusava de canibalismo, promiscuidade se-
xual e necrofilia:
A mesma foge às vezes consternada,

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Vendo infernal abuso de impiedade,


Que até no frágil sexo exercitada
Depois da morte, extinta a crueldade,
Do modo mais sensível ultrajada,
Que aos tiranos lembrou, em toda idade,
Transforma a mesma barca de Aqueronte
Em templo da lascívia, altar e fonte (CALDAS, 2007: 252-3)
Além disso, as imagens que integram as duas obras (Caiari e
Desbravadores) são emblemáticas e sintetizam as visões dos dois
autores (Pinto e Hugo). Estas imagens ressaltam a dita “primiti-
vidade” dos povos autóctones. Essas imagens teriam o papel de
reforçar no público leitor os torpes argumentos contra os verda-
deiros proprietários da região, legitimando o saque sobre seus
corpos e seus bens.
Ou mesmo se formos questionar
a razão de uma tribo inteira ser
massacrada, como assim cente-
nas de almas em pleno século
XX eram assassinadas e o padre
não escrevia sequer uma frase
Pinto, p. 65. sobre esta barbaridade? Por ou-
tro lado, ao retratar a defesa do seu território invadido e que re-
sultara na morte de apenas um seringueiro a imagem foi imorta-
lizada num texto sobre a história da Igreja e da Missão Salesiana
na região do Alto Madeira. Poderíamos esperar isso de um padre
em tese humanista, mesmo que fosse para legitimar a “nobre atu-
ação” dos salesianos junto às tribos?
Já o escritor seringalista e mi-
nerador, como suas origens e
interesses revelam, o discurso
colombino lhe cai muito bem,
pois assim como o Almirante
Colombo, ele mesmo se auto-
declarava um aventureiro em
Seringueiro Morto à Flechadas - busca de justiça. E teria vindo
Arquivo da Prelazia de Porto Velho
(APPV) (Hugo, vol. II, p. 72)
para a região em busca de ri-
quezas, da mesma forma que

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Métodos Fronteiriços

Colombo procurava ouro, pedras preciosas, pérolas, metais e ma-


deiras nobres. Procurou tão bem que as encontrou e se transfor-
mou em um dos primeiros e grandes produtores de cassiterita da
região, mineral básico para a indústria de base brasileira. Sua
obra Caiari: Lendas, Proto-história e História está recheada de
aventureiros em busca de riqueza fácil.
Nestas aventuras os perigos viriam dos selvagens. Estes foram re-
tratados por Pinto como animais ferozes, cruéis, canibais, piratas
e traiçoeiros. E dubiamente, tergiversava sobre o retrocesso da
alta cultura dos povos indígenas que em um momento anterior
já seriam evoluídos o bastante para comercializar com o Rei Sa-
lomão. Este sagrado monarca buscava estas riquezas nos reinos
de Tarchisch, Parvaim e Ofir. Algumas vezes os termos Manoa
e Sheba também aparecem. Colombo também se refere aos tex-
tos bíblicos para fundamentar a sua tese de que esta terra já fora
importante antes dos índios não evoluídos e desprezíveis para a
nação.
Seu texto inaugurou um novo momento na história da região,
pois havia sido criada uma nova unidade da federação, Rondônia
(1981). Porém não havia um discurso de memória e de sentido
para fazer parte da nação como unidade autônoma. No seu afã
de fazer uma entrada pomposa na corte dos estados10, ele atri-
buiu alguma glória à região. Pois em sua opinião, suas populações
tradicionais não possuíam as credenciais necessárias para fazer
parte deste grande país11.
Os navegantes fenícios saíam do mar Mediterrâneo pelo estreito de
Hércules e rumavam para o Ocidente até o longínquo reino dos En-
chem ou dos Crentes, que ficava além das grandes ilhas, depois das
regiões das calmarias, das tormentas e das correntes, no centro de
uma mesopotâmia, em região tropical onde foram erguidas três gran-
10  Essa argumentação está assentada nos trabalhos de Neide Gondim em A
invenção da Amazônia e no artigo de Carlos Haag intitulado “O sonho do El
Dorado amazônico” in Pesquisa Fapesp, nº 160. São Paulo, Fapesp, 2009. pp.
78-83. Segundo Haag, o sonho da Amazônia comportar antigas civilizações
clássicas como gregos, fenícios e outros vem desde o Segundo Império, foi
reavivado pela República Velha, dividiu correntes da arqueologia norte ame-
ricana e segue em alta até o presente.
11  Essa linha de raciocínio é aprofundada no capítulo “em minha tese Rondô-
nia, uma memória em disputa. Assis, UNESP, 2011.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

des cidades – Ofir, Tarschisch e Parvaim – e lá eles chegavam depois


de muito navegar por um mar de água doce, com inúmeras ilhas e
afluentes. [...] Falavam os marinheiros que Manoa, capital desse im-
pério sertanejo, era calçada de ouro ‘onde não havia menos de três mil
operários empregados na Rua dos Ourives e a suntuosidade do palá-
cio imperial impressionava. [...] A rota dos argonautas dos mares ex-
ternos foi perdida e os cataclismos sumiram com muitas ilhas que lá
existiram. As comunicações entre os povos que viviam nos extremos
do mundo foram rompidas. Nunca mais hebreus, fenícios e outros
povos tiveram notícias do fabuloso reino dos Inin e de suas cidades de
Ofir, Tarschisch e Parvaim. Elas ficaram perdidas até para a História.
(PINTO, 1986, p. 48-51)
Para complementar sua argumentação Pinto elaborou uma carta
de localização destes reinos, colocando como território de fundo
o mapa político moderno da região Amazônica, seguindo o mo-
delo do jesuíta Acuña que havia dado as coordenadas geográficas
exatas de seu encontro com as lendárias guerreiras Amazonas.
Do mesmo modo que a ilus-
tração há várias passagens em
Caiari bastante emblemáticas,
em primeiro lugar sobre a su-
posta inferioridade dos povos
nativos, mais uma reprodução
da postura de Colombo que
tenta inferiorizá-los e desauto-
rizar seu protagonismo.
[...] o indígena brasileiro regrediu sensivelmente (após o cataclismo
que extinguiu a avançada civilização precedente), mas este fato não
fez desaparecer a possibilidade de ter abrigado esta região setentrio-
nal, antiga civilização, e os vestígios dela aí estão, expressos por um
erudito, a desafiar as críticas e conclusões de outros (1986, p. 86)
Há no Uaupés uma enorme quantidade de sinais rupestres, [...] dando
evidente testemunho de que aquela região abrigou povos de outras
paragens, com uma cultura superior à dos naturais (1986, p. 110-9).
Em relação a sua selvageria e outros termos pejorativos existentes
em seu texto citamos alguns trechos, mas que basicamente são o
esteio de grande parte da sua narrativa, “[...] selvagens que mas-
sacraram a tropa e os demais membros da missão” e ”[...] havia

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Métodos Fronteiriços

uma perigosa tribo de índios que trucidavam todos os brancos,


[...]” (1986, p. 160; 234). Além dessas passagens curtas, porém,
emblemáticas em seu texto há sua visão sobre a superioridade de
outras civilizações e a primitividade ou “involução” dos nativos.
Podemos aventar que legislava em causa própria, pois o escritor
havia sido um grande seringalista, dono de empresa de minera-
ção e deputado federal no Território Federal de Rondônia. Todas
as suas propriedades haviam sido tomadas aos naturais. Essa pos-
tura legitima todos os seus atos “civilizatórios”.
Por fim, percebe-se que os memorialistas, escritores regionais e
historiadores não são os genuínos criadores do discurso de con-
quista, ou pioneiros. Eles os reproduzem em pleno século XX,
permeados por constituições democráticas baseadas em direitos
civis, em um momento em que se discutia a demarcação das ter-
ras indígenas, por se tratar de uma garantia aos seus legítimos
proprietários. Constatamos que este discurso perdura até o pre-
sente momento. Assim como a ilustração, a Editora da Universi-
dade Federal de Rondônia publicou recentemente um romance
de um político local. O romance A flecha, do atual governador
Confúcio Moura reproduz fielmente o discurso mitificador de
Colombo (1530), porém com algumas pitadas do fracasso de Ca-
beza de Vaca (1580). Como se percebe estamos avançando em
nossa literatura, mesmo que a passos lentos.

Considerações finais
Até mesmo na poética, no campo da representação, é negado ao
Outro ser ele mesmo. Ele só pode existir se for um elemento de
formação da identidade nacional, ou seja, deve deixar de existir
enquanto Outro, para ser incorporado à realidade brasileira. Pois
ao se atrair e se apaixonar pela princesa europeia assume a sua
necessidade de troca e fusão com essa cultura dominante que está
avançando sobre o seu mundo. A cultura europeia metaforizada
na filha da Luz pode ainda significar a salvação daquele elemento
tradicional resgatado de sua primitividade, pelo esclarecimento
trazido pela racionalidade.
Ao inverter os papéis de dominante e dominado nas relações de
gênero somente ocorreu o contrário, pois foram exterminados
os homens aborígenes e raptadas suas esposas e filhas. Esta seria

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

também uma forma de expurgar a violência da civilização destas


populações. Violência esta que não cabia no projeto romântico
moderno.
Aproveitamos para fazer algumas questões a partir desta reflexão
inicial. Colombo ao retirar qualquer possibilidade de voz e im-
por a sua fala como única aos ameríndios que encontrou, não
exterminou as possíveis soluções para o encontro/confronto? Eu-
clides e Bopp não teriam feito o mesmo ao anexar as mitologias
locais de forma antropofágica sem conferir voz aos protagonistas
e criadores destes mitos? Euclides não estaria os negando com-
pletamente ao desconsiderar qualquer possibilidade de ação pro-
ativa por parte destes? Bopp não teria incorporado os elementos
daquele universo subjugando-os à formação da identidade bra-
sileira ao colocá-lo como protagonista principal daquele mundo
enquanto um mero seduzido pela modernidade envolvente? E
por fim Monteiro não acreditava na possibilidade de evolução
deste sujeito a partir de seu amansamento ou adaptação à mo-
dernidade?
Resumindo, de uma maneira mais nobre ou mais violenta não
estariam reproduzindo a fala de Colombo, inventando o Outro,
mas não lhe concedendo existência e protagonismo? Ou ainda
em plena República Velha ou saindo dela, todos os três guar-
dando as devidas contingências e linguagens de sua época, não
teriam atribuído à Cobra Grande e Miguel dos Santos Prazeres,
“Afilhado do Diabo” os mesmos predicados dados pelos escritores
hispânicos das outras Américas, como no caso do Calibã, selva-
gem e bárbaro?
Em relação à Cobra Norato, o geógrafo, o major e o próprio escri-
tor não representariam os ideais civilizatórios modernistas pelos
quais Miguel (Monteiro) precisa fazer a travessia se os comparar-
mos ao Próspero? Os conteúdos bárbaros de Calibã não estariam
presentes no Matadero de Echevarría, ou ainda os ideais civiliza-
dos e modernos de Próspero não percorreriam a obra Facundo
de Sarmiento? Ou ainda, como não reconhecer a popularização
e a circularidade dessas clivagens entre selvagem e moderno nas
falas do líder espiritual do Santo Daime Mestre Raimundo Irineu
Serra nos confins do extremo da Amazônia, ao exigir como rito
de passagem de seus discípulos, que primeiro os Cabras deveriam

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Métodos Fronteiriços

servir ao Exército para se tornarem gente e somente depois disso


poderiam adentrar a nova religião e beber a Ayahuasca? Como
dissemos anteriormente, colocamos estas questões para suscitar
novas discussões, pois para demonstrar estas especulações de-
mandaria um grande esforço de nossa parte.
Poderíamos refletir sobre a crítica da professora Amarilis Tupias-
sú (2005) ao denunciar que por trás do exotismo, e do maravilho-
so se mascara a violência e a miséria pela qual passam atualmente
índios, caboclos, ribeirinhos e outros povos da floresta. Contra-
ditoriamente a escassez dos descendentes dos legítimos donos
convive com a riqueza real da fauna, da flora, e do subsolo que
lhe foram solapadas12.
É no mínimo irônico e até mesmo bizarro pensarmos que as re-
presentações históricas e literárias da Amazônia e dos amazôni-
das, as quais se propõem, a serem objetivas e realistas são na ver-
dade compostas de muita ficção. E que o único espaço, que sobra
para as denúncias, está no gênero burlesco do pícaro, como no
caso de Márcio Souza. Diante de tal inversão de visões nos pare-
ce que falar de coisas sérias e verdadeiras só é possível de forma
satírica e irônica. Diante de tal desafio, neste momento propomos
uma comemoração também ao estilo do escritor amazonense.
Viva a Amazônia, viva os índios (desde que) civilizados!!!

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mapa, a fronteira.” in I Encontro de Cartografia Histórica. Pa-
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12  “Obstante uma Amazônia não mítica, povoada por legiões de brasileiros
muito pobres e que guarda na cultura, na fisionomia e na intimidade com os
elementos da floresta, a memória viva do índio ancestral, hoje o quase índio
ou quase nada, o errante dos lugarejos encravados no íntimo da mata, em
margens sem registro em nenhuma carta, nas beiras de rios, igarapés; ontem
destribalizado com violência, deculturado, hoje o desgarrado, a pairar num
tempo sem calendas, a gente dos entrançados de verdes e águas, caudais do
superlativíssimo rio Amazonas. É esta Amazônia da escassez que convive
com o el dorado real, de fauna, flora, riqueza, cujas contas do inventário ja-
mais se fecharam.” Tupiassú (2005, p. 299)

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4
Insolitudes acreanas: reali-
dades imaginadas, relações
híbridas e fronteiriças

Francisco Bento da SILVA1

“cada lugar es la frontera de otro lugar, cada ser humano es la frontera


del otro”. Fernando Ainsa

Preâmbulo
Este pequeno artigo deriva de minha palestra ocorrida em 10 de
abril de 2015, no Teatro Banzeiro, em Porto Velho, durante a re-
alização do I Congresso métodos fronteiriços: objetos míticos, insó-
litos e imaginários, organizado pelos professores da Universidade
Federal de Rondônia. A mesa da qual fiz parte chamou-se Obje-
tos raros, objetos híbridos: o que há nas fronteiras? Fui instigado
pelos organizadores do evento a falar de um Acre insólito.
Desta forma, resolvi partir dos três aspectos realçados no nome
dado à mesa redonda para discutir algumas questões relaciona-
das ao Acre em períodos de tempo distintos. Parto do entendi-
mento de que esses três elementos, ou objetos, podem ser pensa-
dos transitando no terreno pouco seguro da indeterminação: eles
trazem, entre outras ideias, a de escassez, misturas (sejam elas
homogêneas e heterogêneas) e transitoriedade.
Algo que é raro se apresenta como pouco usual e difícil de ser
1  Professor Adjunto da Universidade Federal do Acre – UFAC. Doutor em
História pela UFPR. Atua nos cursos de graduação em História (bacharelado
e licenciatura) e no Programa de Pós Graduação em Letras: Linguagens e
Identidades da mesma instituição.

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Métodos Fronteiriços

encontrado, cujo horizonte de sua manifestação é incerto. A


hibridez traz a ideia de algo misturado, que pode ser raro, mas
também de alguma coisa sem identidade ou cara definida. Já a
hibridez, carrega geralmente a polaridade dos elementos que
compõem sua existência e manifestação. Por fim, a fronteira é o
local de transição, dúbio, de mudança, de passagem para outro
terreno. Front significa lugar de encontros e confrontos, posições
e oposições. Tem uma latente perspectiva belicosa.
Tudo isso é insólito, um adjetivo polissêmico que significa algo
anormal, incomum, extraordinário que parece vir da mesma raiz
semântica de solitude, solidão, solitário. Aqui, as duas palavras
latinas solitudine e insolitu se aproximam. Lugares insólitos às
vezes são também narrados como espaços de solidão, de apatia,
de falta de algo, incompletos. Nesta seara, o desafio feito a mim,
pelos colegas que me convidaram como realçado, foi que falasse
sobre um Acre insólito.

O Acre insólito
Partindo da premissa de que existe um Acre insólito, como seria
expor essa insolitude do Acre sem cair no lugar comum do exó-
tico e do caricato? Não sei bem, confesso. Mas a tentativa inicial,
de desbravar um caminho não palmilhado é algo instigante para
o pesquisador e qualquer curioso diletante.
Começo falando de um Acre, que antes de ser Acre era uma re-
gião desconhecida pelo olhar do colonizador. Por isso a região foi
nomeada como “tierras no descubiertas” durante a maior parte
do século XIX em mapas diversos. Partindo desta perspectiva, se
compreendia que havia um Acre a-histórico, espaço anacrônico,
destituído de história, a margem do olhar colonizador.
Um Acre que na virada do século XIX para o XX, torna-se obje-
to de desejo da Bolívia com a pretensão de ocupar o território e
exercer sua pretensa soberania e desejado domínio. Contudo, a
república andina nunca exerceu ali de forma consistente e firme
qualquer uma das duas formas de controle. A soberania era só
legal, mas não real, em um território boliviano palmilhado por
visitantes não convidados de outras nacionalidades.
O domínio, do latim domus, poder sobre a casa, nunca foi efeti-

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

vado na região acreana pelos bolivianos. Quando tentaram, este


domínio foi rechaçado por aqueles que a historiografia local
chamou de intrépidos seringueiros nacionalistas que tornaram
o Acre “brasileiro por opção”. Algo que hoje é mimetizado em
slogans governamentais do tipo: “orgulho de ser acreano”; “Acre,
um só coração” e por aí vai. Essa tentativa e intencionalidade
de colonizar a região da fronteira, já hibridizada pela presença
de diversos grupos indígenas e da chegada constante de “outros”
sujeitos: sejam eles brasileiros, peruanos, bolivianos, europeus,
judeus, árabes e demais adventícios foi algo concreto. Diante da
fragilidade que a Bolívia tinha sobre o Acre, a saída que as autori-
dades desse país encontraram foi adotar o modelo das Chartered
Company de persistente signo colonial (TOCANTINS, 2000).
Nos dois mapas a seguir temos a cartografia imaginária, baseada
nas escalas e nas narrativas que não são feitas essencialmente por
meio de palavras, mas de signos diversos: números, graus, meri-
dianos, paralelos, linhas de divisão, etc. Esse discurso precisa de
um lugar onde possa emergir e também determinar para quem se
direciona. Desenhar um mapa é sempre cristalizar certas ideias
e informações disponíveis em um dado momento (ZUNINO,
FERREIRA & ORIHUELA, p. 57). O mapa é por definição um
artefato de poder, uma carta que diz a quem um determinado
espaço pertence.
A partir desta ideia, te-
mos um Acre pensado
dentro da ótica colonial,
território de riquezas
que deveria servir aos
interesses imperialistas
e subalternamente aos
das elites dirigentes bo-
livianas. Ou seja, nessa
ótica da conquista e da
exploração econômica
e humana, há um Acre
Mapa 01: Las vias terrestres y fluviales que inicialmente não é
que conducen al Territorio Nacional de de ninguém; Um Acre
Colonias, Enero de 1903, La Paz. Fonte:
Biblioteca de Harvard (http://vc.lib.harvard. que está “lá”, geografica-
edu/). Latin American Pamphlet Digital mente falando, espe-
Collection.
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Métodos Fronteiriços

rando ser descoberto; um Acre boliviano de direito de acordo


com o Tratado de Ayacucho de 1867; um Acre ocupado majorita-
riamente pelos brasileiros do Acre, mas que a Bolívia queria se
apoderar; um Acre litigioso quando o Barão do Rio Branco entra
em cena; E, por fim, um Acre brasileiro a partir de 1903 com o
Tratado de Petrópolis.
É somente no alvorecer do século XX que o Acre ganha as pági-
nas da imprensa e dos meios diplomáticos da capital da Repúbli-
ca brasileira, em La Paz, ecoa em Londres, Nova York e outras
cidades importantes do cenário econômico mundial e nacional.
Fazendo uma alusão a Eni Orlandi (1990, p. 50), é um Acre que
não fala, o Acre é essencialmente falado.

Mapa 02: Acre litigioso, por Horacio E. Williams (1905). Fonte: Biblioteca
Nacional, Brasil. (bndigital.bn.br).
O Acre torna-se assim pretexto para o discurso do outro, que o
traduz e o mostra muitas vezes como a imagem invertida de si.
Há um Acre onde de forma recorrente se evidencia o aparente, o
folclorizado, o exótico, o amargo, o vazio, o mortífero, o distante,
a selva selvagem, entre outros epítetos de negatividade tão recor-
rentes ao longo do tempo. Esse é o Acre da colonização à gandaia
e do povoamento tumultuário, de acordo com Euclides da Cunha
em A Margem da História. Um Acre de macieza e aspereza que

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

também é meu, nos dizeres adocicados de Mário de Andrade em


seu poema Acalanto do seringueiro (1927). Acre que o margina-
lizado Lima Barreto sonhava em conhecer algum dia, com afir-
ma em seu Diário íntimo; Acre em que Nelson Rodrigues, no
conto A morta publicado na obra A vida como ela é, interna seu
personagem Quincas, assassino que mata uma mulher no Rio de
Janeiro e vai se esconder no Acre e ao lá chegar sua fixação é
encontrar alguma mulher disponível para aplacar seus desejos.
Por fim, local que Olavo Bilac sugere na crônica Menor perverso
(1909), como adequado para o desterro de um menor assassino
de 09 anos que matou outro de apenas 03 anos na capital da repú-
blica (BILAC, 2005, p. 109).
Como podemos perceber, o Acre atrai manifestações de apreço,
de repulsa, de distanciamento, de curiosidade, vozes externas e
até ausentes. São representações carregadas de múltiplos valores.
São referências de épocas distintas, assim como os exemplos de
insolitudes que selecionei a seguir.

Insólito I – a piada, o problema

FONTE: Revista O Malho, 1909, nº 380, p. 44.


Neste pequeno texto acima, publicado na revista humorística O
Malho, temos a “informação” de uma aludida entrevista publica-
da em um jornal indeterminado de um ex-prefeito do Acre cujo
nome também é oculto. A veracidade ou não da informação não
tem importância. Ela, seja real ou fictícia, é apenas um expedien-
te utilizado para a construção de outra narrativa/discurso.
O título faz alusão a canhões e o texto à decantada rarefação de

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Métodos Fronteiriços

mulheres no Acre como um problema enfrentado pelos homens


que ali viviam, algo tão crítico que preocupava até as autorida-
des ali estabelecidas. Constituindo desta forma uma sociedade
masculinizada e fálica, cuja vazão aos desejos carnais é obliterada
num local onde a mulher é um bem valioso e rarefeito. A figura
feminina é uma espécie de objeto insólito disputado por homens
diversos.
Isso aparece em obras de cunho literário, mas também está pre-
sente em obras historiográficas. Essa ausência anunciada permite
as mais variadas soluções: envio para o Acre de mulheres acusa-
das de prostituição no Rio de Janeiro para se tornarem honra-
das no Acre, segundo as autoridades, como ocorreu entre 1904
e 1910. Fictícias prostitutas decadentes de Manaus que chegam
ao Acre e tornam-se objetos de desejo, como a personagem Con-
chita, presente na obra Coronel de Barranco, de Cláudio Araú-
jo Lima. Casos de zoofilia como o cometido pelo seringueiro
Agostinho e narrado na obra A Selva, de Ferreira de Castro, se
agregam aos relatos de homossexualismo e pedofilia como saídas
para o abrasamento sexual masculino diante da falta de mulhe-
res. De mulheres índias capturadas em correrias para servirem de
esposas, concubinas e escravas sexuais dos “brancos” que ali vão
se estabelecendo. Essas questões já são bastante conhecidas pela
produção historiográfica local e também fazem parte de uma cer-
ta memória coletiva herdada.

Insólito II – a charge, a solução


Esse discurso da ausência, da carência, onde beleza não se põe
na mesa e os valores morais imperam com elasticidade ou são
estilhaçados, permitem ironias como a da charge mostrada na
página seguinte (CHARGE 01).
Nesta charge temos três mulheres e elas são identificadas como
as três graças. É uma ironia aberta, direta, que ao mesmo tempo
remete aos seus possíveis nomes de batismo. O que a charge quer
realçar é a feiura das três solteironas, cuja tábua de salvação que
resta para elas é ir para o Acre de homens solitários. As graças
sem graças seriam ali naquela zona mulheres disputadas. Portan-
to, se temos homens colonizando a fronteira e homens subordi-
nados a esta colonização de gandaia, temos mulheres colonizadas

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

mais ainda pelo poder do gênero oposto.

CHARGE 01: As três graças... FONTE: Revista O Malho, 1909, nº 380, p. 44.
Como bem expressa Anne McClintock (2010), na fantasia de des-
coberta do Novo Mundo e de ocupação de regiões considerada
inóspitas, essas áreas são tornadas femininas e tudo é “espacial-
mente exposto a exploração masculina” (p. 47). Ela conclui sua
análise dizendo: “figuras femininas eram plantadas como fetiches
nos pontos ambíguos de contatos, nas fronteiras e orifícios das
zonas disputadas” (ibidem).
É tão forte essa imagem que as terras inexploradas colonialmente
seriam chamadas de virgens, a mata é também dita virgem e a
natureza “espera” os seus exploradores desvirginadores que um
dia chegariam para fincar os alicerces “civilizatórios”. Chegam
com seus canhões reais ou metafóricos, para ocuparem o que é
narrado como vazio, selvagem e virginal. Há aí uma erotização
do espaço colonial, inseminado pela conquista discursiva, bélica,
política e econômica do “civilizado” para que este espaço possa
ser dominado e explorado de forma justificada pelo adventício.

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Métodos Fronteiriços

Insólito III – fronteiras e identidades diluídas

FOTOS 01 e 02:
Outdoor na fronteira entre Brasiléia (BR) e Cobija (BOL). FONTE: Acervo
de Francisco Bento, 2006.
Nesta imagem acima e na seguinte temos um outdoor na mar-
gem esquerda do rio Acre, na fronteira Brasil – Bolívia. Aí fica a
cidade boliviana de Cobija, capital do Departamento de Pando,
ao fundo temos o quartel da marinha boliviana. Isso por si só já
é muito insólito, a Bolívia, junto com mais seis países no mun-
do todo tem marinha, mas não tem mar. Mas voltando a placa e
sua mensagem: ela foi fincada ali em 2006, próximo à ponte que
divide as cidades de Brasiléia e de Cobija, e fazia referência ao
centenário da cidade boliviana na fronteira. Quem ali passava era
recepcionado pelo outdoor com a chamativa frase: “Bienvenidos
a Cobija, la perla del Acre”.
Esse Acre ali referenciado é o que: rio? estado? região? todos es-
ses elementos juntos? a indeterminação e a leitura multifacetada
parecem ser a marca da frase. É uma frase que remete ao orgulho
ou a perca dele, diante das feridas não cicatrizadas do passado
conflituoso com brasileiros? O polissêmico, ambivalente e inde-
finido Acre citado na placa, acaba sendo o vértice que aproxima
brasileiros e bolivianos nas fronteiras. Mas é uma aproximação
que não tem a capacidade de fusão ou homogeneidade. Pelo
contrário há nas fronteiras heterogeneidade, separação, conflitos
latentes e abertos, comércio e relações de trabalho desiguais, lín-

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

guas misturadas e preconceitos em tons irônicos.


Cobija é uma cidade hibridizada pela presença constante de bra-
sileiros comprando produtos importados, quase todos chineses,
sendo atendidos por muitos brasileiros empregados no comércio
local e quase todos ostentando-se como patrícios. Patrício, por
sinal, é um tratamento que esconde fissuras, conflitos e diferen-
ças culturais nessa zona de contato e de fricção. Há as mulheres
indígenas em seus trajes étnicos vendendo comidas e bebidas nas
ruas, discriminadas muitas vezes de forma dupla por brasileiros
e bolivianos que se acham elitizados.
Mas de que Acre Cobija é considerada uma pérola? Seria uma
raridade? Um objeto insólito e de fronteira? Na imagem a seguir
(FOTO 03), temos novamente a mesma referência colocada na
outra via de acesso pelo Brasil à cidade de Cobija. Esta frase está
fixada em uma espécie de portal logo após a ponte entre Epita-
ciolândia e Cobija, próximo ao posto aduaneiro boliviano. Apa-
rentemente dá boas vindas aos visitantes brasileiros e anuncia aos
acreanos, maioria que cruza a ponte na ida, que irão encontrar
do outro lado a “pérola do Acre”. Encontramos também algumas
vans que fazem o transporte coletivo local, carregando fixadas em
suas laterais a mesma frase que transita entre o viés do confronto,
do orgulho e do irônico.

FOTO 03: Placa de boas vindas na ponte fronteiriça entre Epitaciolândia


(BR) e Cobija (BOL). FONTE: Acervo de Francisco Bento, 2015.
Essa retórica do confronto é exaltada na imagem do número

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100 (FOTO 02), onde um indígena aponta uma flecha incendi-


ária para o outro lado do rio Acre. Esse índio Tacana/boliviano
mimetizado no outdoor chama-se Bruno Racua. Ele é uma “per-
sonagem de fronteira” (PRATT, 1999, p. 59). Heroificado pelos
bolivianos devido seus aludidos feitos gloriosos em uma das ba-
talhas vencidas pelos patrícios durante “La guerra del Acre”, em
outubro de 1902.
Sua posição desafiadora, preparado para o ataque serve para
lembrar da permanência de um passado não resolvido, de um
Acre do passado, amargo para o “outro” derrotado e despossuí-
do do seu antigo território. Na imagem a seguir temos a estátua
de Bruno Racua situada em uma praça central próxima a zona
comercial de Cobija. A imagem na placa mostrada anteriormen-
te remete a este monumento cívico dos pandinos, cuja placa de
bronze (FOTO 05) fixada no pedestal, atesta a qualidade vigorosa
e inusitada de um soldado indígena, flecheiro e incendiário.

FOTO 04: Estátua do soldado indígena FOTO 05: Placa na base da


Bruno Racua em Cobija (BOL) estátua de Bruno Racua.
FONTE: http://colunamiolodepote.blogs- FONTE: Acervo de Francisco
pot.com.br/2010_07_01_archive.html Bento, 2015.

Na imagética produzida pelo outdoor, portal e estátua, há a pre-


dominância do retórico sobre o factual que acaba por lhes dar
sentidos. Há um passado imaginado sobre uma região também
imaginada, ou seja, construído socialmente e mutável de acor-
do com o lugar de onde discursivamente ele emana. São, nestes
casos mostrados, imaginários coletivos em confronto, disputas
pelo passado que melhor convém a quem é instigado a se posi-
cionar sobre ele. É um Acre que não foi doméstico aos bolivianos
e nem domesticado pelos bolivianos. Mas que a cidade de Cobija,

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

através de suas autoridades, expressa o artefato mais valioso no


dístico posto entre duas pontes voltado para o lado brasileiro. O
público leitor, a quem se dirige a mensagem não é o boliviano:
mas o acreano. Esse discurso da conveniência, exagerado, pen-
sado para um determinado público, é o nosso próximo e último
objeto insólito.

Insólito IV – a megalomania

FONTE: http://www.valor.com.br/arquivo/1000052370/acre-quer-ser-a-fin-
landia-brasileira-diz-governador. Acessado em 15 de março de 2015.
Temos acima uma manchete onde o então governador do Acre,
Jorge Viana, declara em 2002 ao jornal Valor Econômico que o es-
tado do Acre almejava ser o equivalente a Finlândia nos quesitos
qualidade de vida e proteção ao meio ambiente. Na sua entrevista,
os acreanos e seu governo estariam irmanados rumo ao progres-
so material e consciência ambiental explorando racionalmente a
natureza. Exalta o acordo com o Banco Interamericano de Desen-
volvimento - BID e destaca a contribuição acreana nesse quesito
como algo marcante no Brasil do século XXI. Não é megaloma-
nia somente. Há uma boa dose de altivez rombuda, adoçada com
muito mascaramento da realidade social e econômica do estado.
O Acre é alçado à condição de protagonista de um milênio que
mal tinha começado. Seria apenas piada se alguns dados apresen-
tados não colocassem no chão esse discurso etéreo, vazio. Diri-
gido notadamente ao grande centro do país através de um jornal

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Métodos Fronteiriços

de circulação restrita ao centro sul e ao público ligado ao mundo


dos negócios e da economia nacional.
O Acre aí é um produto sendo vendido, cuja comparação precisa
ser feita com um “outro” que simboliza sucesso naquilo que o
Acre quer se destacar. Os acreanos, sem serem consultados são
alçados à pretensão de “caboclos querendo ser finlandeses”. Mary
Pratt usa o termo auto-etnografia para definir o indivíduo colo-
nizado que se apropria dos discursos e os signos do colonizador
para criar sua identidade nos termos do outro (p. 33).
Parece ser um caso análogo, pois há uma tentativa – não importa
se sincera ou não – de reinventar o Acre e apresentá-lo no cenário
nacional. Isso tudo articulado com a ideia de progresso, desenvol-
vimento e inserção do Acre nos parâmetros dos países chamados
de primeiro mundo e ambientalmente responsáveis. Mas dados
oficiais e de entidades ambientais desconstroem com facilidade
essa tentativa de criar uma imagem irreal, concreta.
Ironicamente o
slogan do gover-
no de Jorge Viana
era à época, como
está destacado na
matéria da revista
Veja ilustrada
pelo gráfico aci-
ma, “governo da
FONTE: Revista Veja, abril de 2007, com dados do floresta”. O dis-
IMAZON. curso da proteção
ambiental e da ex-
ploração racional da natureza é colocado em xeque e foi descons-
truído. Pois os dados apresentados põem por terra o discurso
megalomaníaco e fantasioso dado em forma de entrevista ao jor-
nal Valor econômico pelo governador. Também se cria durante
esta administração o discurso de que no Acre tínhamos em vez
de “democracia” “florestania”, algo como cidadania na floresta,
dos “povos da floresta”. Este termo nada mais é do que um neolo-
gismo carregado de abstração, vazio e de conteúdo político. No
Acre, parte desta Roma tropical (Brasil) que fazia alusão Darcy
Ribeiro, tentou-se até substituir o dístico católico-romano urbi et

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

orbis por silva et orbis. Contudo, a dureza dos dados oficiais tei-
mam em nos dizer que o Acre está longe de ser o melhor lugar
para se viver na Amazônia; de ter saúde de primeiro mundo; de
ter a tal da florestania ou democracia substanciais para a maioria
dos acreanos.
Vejamos a seguir outros dados, de acordo com o IBGE (2013) e
a Agência Nacional de Águas – ANA (2010): O estado do Acre
ocupa na federação brasileira o 23º lugar em saneamento básico;
o 19º lugar na coleta de esgoto e fossa séptica; é o 21º colocado na
coleta de lixo domiciliar e somente a 26º colocação no tocante às
residências com rede de abastecimento de água tratada. Nesses
dois casos insólitos apresentados acima, temos o exemplo de dis-
cursos voltados para um público externo e com o intuito de criar
factoides, narrativas de efeitos e que chamem a atenção. Discurso
que vende uma imagem falsa da chamada realidade em que vive
a população acreana.
A imagem do Acre foi muito cristalizada sob o espectro da negati-
vidade, chegando a ser durante a virada do XIX para o XX como
um lugar, vazio, de morte, isolado, selvagem, enfim, uma Sibéria
tropical como na charge que vem a seguir. Talvez isso em parte
explique essas tentativas de dizer ao “outro” que o Acre já é su-
perlativamente o melhor em alguma coisa, e no futuro servirá de
exemplo ao Brasil e ao mundo. Esses dois campos de representa-
ções diametralmente opostos e exagerados, dualistas e manique-
ístas, só servem para reforçar mitos e fantasias, pouco ajudando a
compreensão mais acurada do que somos e podemos ser.
Comentários finais
Partindo para as considera-
ções finais, gostaria de realçar
que ainda hoje o discurso e o
sentimento de Acre isolado
é algo presente na cabeça de
muitos. Vide a cheia do rio
Madeira em 2014, quando o
acesso ao Acre pela BR-364
tornou-se impossível. O Acre
FONTE: Jornal do Brasil, nº 334,
como solidão, que nasce isola-
29 de novembro de 1904. Biblioteca do e que continua isolado por
Nacional
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Métodos Fronteiriços

obra da natureza e do homem que sempre aparece quando é útil


ou quando é insuflado por vozes de certos grupos ou indivíduos.
Em 2015 a cheia do rio Acre de 2014 já foi esquecida, pois agora
tivemos “a maior cheia de todos os tempos”, segundo as autorida-
des e os meios de comunicação locais. Como afirma Kiening (p.
97), “colocar o estranho como mais ou menos incomparável sina-
liza a possibilidade de um novo saber e possibilita a inserção do
discurso”. Ao longo desse período aqui aludido, esses discursos
circularam e circulam nos jornais, panfletos, rádios, TV, fontes
institucionais, trabalhos acadêmicos, redes sociais e memoria-
listas. Confrontos, encontros e desencontros são realidades nas
zonas de contatos, às vezes são necessários e, às vezes, inevitáveis.
Aimé Cesaire, em seu livro Discurso sobre o colonialismo, já dizia
que uma civilização que se encerra em si mesma não tem futuro,
que povos e culturas devem se encontrar. O que ele critica é o dis-
curso da superioridade, da subjugação, da negação do outro. Ele
alerta que a colonização não é a melhor maneira de se estabelecer
o contato, pois a colonização desciviliza e embrutece o coloniza-
dor. Essa passagem pode dar vazão para uma interpretação que
justifique as barbaridades da colonização, como na história “ilha
da consciência” situada em algum ponto da Amazônia.
Contudo, o importante a ser ressaltado é a mensagem de que não
podemos viver em ilhas, reais ou mentais. Neste sentido, o Acre
nunca esteve isolado, vazio e indiferente ao “outro” e para o “ou-
tro”. O Acre é multifacetado na sua concretude e nas suas repre-
sentações, sejam elas geográficas, históricas, políticas, culturais,
linguísticas ou econômicas.
Assim, quero encerrar minha explanação fazendo alusão a um
poema de Vinícius de Moraes e dizer que se perguntarem o que
é o Acre direi, não sei. De fato não sei, só sei que o Acre é o sal
em longas lágrimas amargas. Mas também é adocicado, pois a
história doce, oficial, hegemônica, heroica, como diz Durval Mu-
niz (2014), é mais palatável e tem mais sabor para ser consumida,
deglutida e ruminada. O Acre são os acres, tantos os reais quanto
os inventados.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Referências bibliográficas
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Métodos Fronteiriços

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pp. 49-92. In PEREIRA, Diana Araujo (org.). Cartografia imagi-
nária da tríplice fronteira. São Paulo: Dobra editorial, 2014.

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5
O utópico A. R. P. Labre

Helio ROCHA1
“Nenhum povo pode ater-se apenas ao presente para realizar-se, crescer,
multiplicar-se, realizando-se efetiva e permanentemente.” Arthur César
Ferreira Reis.

Inicio este texto valendo-me da epígrafe que o antecede; portanto,


referindo-me às ideias expressas por Arthur César Ferreira Reis
no texto “Apresentando dimensões do Brasil”, na introdução de
Um Paraíso Perdido, do geógrafo, engenheiro, e escritor Euclides
da Cunha (1866-1909) que durante 1905, como chefe da comitiva
de Alto Reconhecimento do Rio Purus, passou pela única “célula
da civilização naquele rio” (como escreveria mais tarde) – Lábrea
– uma colônia de povoamento fundada pelo maranhense Antônio
Rodrigues Pereira Labre, grande explorador e colonizador da-
quela região do sul do estado do Amazonas na segunda metade
do século XIX.
A epígrafe, tomada emprestada do grande político e historiador
amazonense Ferreira Reis (2000), faz parte do conjunto de enun-
ciados que dá forma ao discurso nacionalista daquela época. Uma
nação, sob esse paradigma de pensamento, é construída pelo es-
forço e governança de seus cidadãos que visando ao futuro de-
vem conhecer e preservar o passado, mas sem esquecer as ações
dos seus antecessores, que exploraram as longínquas extensões
de seu território e garantiram a posse das terras dos extremos da
região amazônica ao Brasil. O utópico Labre foi um desses filhos
da Amazônia.
Antônio Rodrigues Pereira Labre, o A. R. P. Labre, como assinava

1 DLE/UNIR.

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Métodos Fronteiriços

seus escritos, foi um indivíduo intrépido, amante dos perigos, de


estirpe sertaneja, empreendedor e visionário, que passou trinta
anos de sua vida no rio Purus. Este texto pretende sumariar essa
passagem prolongada de Labre por aquela região do Amazonas
buscando contribuir, desse modo, com a historiografia da região,
trazendo para a discussão acadêmica, a figura desse homem celi-
batário, que se encontra, no atual momento, relegado à margem
da história da colonização desse rio cujo nome:
deriva-se de Purúpurú, que quer dizer pintado (ou myra purú purú,
gente pintada, em língua geral). Em tempos idos assim a gente do
Amazonas e rio Negro chamavam os selvagens da nação Pamary, mo-
radores neste rio, por serem eles pintados, ou manchados de brancos;
e com o andar dos tempos denominou-se o rio – Purus –, simplifi-
cando-se a palavra. O nome primitivo dado ao rio pelos Pamary era
– Wany –; e os outros selvagens, que o habitam, dão-lhe diferentes
nomes conforme o seu dialeto. (LABRE, 1872, p.05)
Grande entusiasta da política brasileira durante o período de
1871 - 1901, Labre, no vigor de suas forças próprias da juventude,
saiu de São Luís/MA e rumou para Belém/PA e dali viajou para
a cidade de Manaus, capital da Província do Amazonas e, após
alguns contatos, viajou para o Purus, rio de grandes riquezas na-
turais, destacando-se na hevea brasiliensis, escolhendo Labre um
local de terra firme para a fundação de sua colônia extrativista.
No jornal Comércio do Amazonas de 25 de dezembro de 1870 há
uma notícia sobre um passageiro de nome Antonio R. P. Labre
que havia embarcado no vapor Belém, no Pará, e desembarcado
em Manaus no dia 24 do mesmo mês. Contudo, apesar da publi-
cação desta notícia nesse jornal da capital da Província do Ama-
zonas, não era a primeira viagem de Labre ao Amazonas, pois o
seu opúsculo Itinerário de exploração do Amazonas à Bolívia, pu-
blicado pela tipografia da Província do Pará (1887), afirma que:
O desejo de conhecer a região amazônica, apreciar a grandeza e a
magnificência de seus rios, a prodigiosa riqueza natural que encerra,
levou-me, em dezembro de 1869, a ser passageiro do vapor Purus, na
viagem com que a Companhia Fluvial do Alto Amazonas inaugura-
va a navegação daquele importante tributário do Amazonas, que deu
nome ao primeiro vapor da linha regular, que n’essa época estabele-
cia-se. (LABRE, 1887, p.01)

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Antonio José Souto Loureiro, em sua obra Síntese da História do


Amazonas (1978), exatamente no capítulo “Origens das cidades
amazonenses”, afirma que:
Em 1871, o coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre, com colonos
maranhenses, fundou na terra firme de Amaciari uma povoação que,
em 1873, tomou o nome de Nossa Senhora de Nazaré do Ituxi, tor-
nando-se em vila no ano de 1881 e cidade em 1894, com o nome de
São Luís de Lábrea. (LOUREIRO, 1978, p. 155)
Antes de fazer algumas considerações sobre Labre, devo escla-
recer que não desenvolvi pesquisas sobre a vida e o tempo de
A. R. P. Labre apenas por questões relacionadas à historiografia
regional, mas, principalmente, impulsionado pela paixão e pela
necessidade de revisitar o passado em busca de compreensão
de inúmeras questões sociais, políticas, econômicas, etnográfi-
cas, antropológicas e identitárias dessa comunidade amazônica
fincada ali nas margens do rio de águas esbranquiçadas. Além
do desejo de investigar o processo de colonização do rio Purus.
Um dos seus principais colonizadores, “onde, a 1º de fevereiro de
1871 assentava os fundamentos da atual Vila da Lábrea, a sede do
município e comarca do Purus criado pela lei provincial n. 523,
de 14 de maio de 1881 a que tenho consagrado todo esforço de
minha atividade”. (LABRE, 1887, p. i) E essa é a viagem que jun-
tos devemos realizar agora, como um guia nas águas deste texto
historiográfico.
Viajando até o último ponto do povoado de não indígenas deno-
minado Tauaruã, cerca de 684 milhas da foz do Purus, onde Ma-
noel Urbano Filho acabava de construir um barracão destinado
à indústria extrativa e comércio da borracha, Labre esclarece que
teve a oportunidade de verificar a incalculável riqueza que o Pu-
rus oferecia à atividade humana, na enorme zona até então pouco
conhecida e explorada, pois “a população, além de muito peque-
na, era disseminada e não tinha ao seu alcance as facilidades que
a navegação regular oferece atualmente”. (LABRE, 1887, p. 02)
Foi assim que regressando no mesmo vapor, Labre desembarcou
em um lugar chamado Canutama – feitoria de Manoel Urbano
da Encarnação & Filhos – a fim de estudar as condições da zona
banhada pelo Purus, pois já se “achava dominado pela ideia de
fundar ali um estabelecimento, tal o entusiasmo que despertou

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Métodos Fronteiriços

essa viagem”.(LABRE, 1887, p. 02)


Hospedado no barracão do então ancião Manoel Urbano da En-
carnação, “o primeiro e mais antigo habitante do rio Purus, que
hoje conta com cerca de 90 anos de idade”, Labre afirma que obte-
ve informações detalhadas sobre a região explorada por Urbano
da Encarnação e, mais tarde, estas informações foram confirma-
das pelas excursões que o próprio Labre fizera. Ele resolveu fun-
dar seu estabelecimento em terras indígenas dos Paumari abaixo
da foz do rio Ituxy, uma extensa faixa de terra firme denominada
Amaciary, ou Maciary, que na língua geral significava “terra do-
entia, ou doente eu caio” (KROEMER, 1985), devido à insalubri-
dade daquelas paragens no período de inverno.
O lugar escolhido para a construção da vila de Labre, batizada
pelo próprio explorador de Lábrea em seu opúsculo Rio Purus,
publicado em São Luís do Maranhão pela tipografia e imprensa
M. F. V. Pires (1872) – acredito que o referido registro pode e
deve ser considerado pela historiografia regional como certidão
de nascimento da cidade de Lábrea, como também o primeiro
documento escrito por um brasileiro que descreve o rio e seus
habitantes nativos, tendo em vista que os primeiros registros fo-
ram escritos por um geógrafo inglês, William Chandless, cinco
anos antes da chegada de Labre ao Purus – foi justamente uma
terra alta de granito vermelho, que enchera a mente colonialista
de Labre, à margem direita do Purus, habitada pelos Paumari e
Apurinã que, após o contato, passaram a ser fornecedores de pei-
xes e principalmente de tartarugas e peixe-boi.
A imensidade do Purus; a distancia em que se achava de Manaus,
a cujo município e comarca pertencia, formando uma extensão de
2.000 milhas; a impossibilidade, portanto, que tinha a sua população
de conseguir recursos e garantias á vida social; o desenvolvimento de
sua riqueza, acelerada pela navegação sempre crescente, tudo isso fez-
me preferir o lugar que hoje se chama vila da Lábrea, e que deveria ser,
como é, o centro das autoridades da comarca. (LABRE, 1887, p. 03)
Decidido a fixar-se neste lugar, Labre ordenou que seus escravos
abrissem uma clareira e fixassem as bases de sua colônia levan-
tando um barracão e algumas casas, uma capela ao centro e um
roçado para a plantação de milho, arroz, mandioca, etc. Uma de-
cisão extremamente acertada por A. R. P. Labre foi a de ingressar

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

na política e ser eleito deputado da Província do Amazonas para


poder, de forma legal, lutar pelo progresso de seu empreendi-
mento colonialista. Assim é que:
achando-me então na assembleia provincial apresentei um projeto,
pedindo auxílio de 25:000&000 réis para realizar os trabalhos, e não
foi sem grandes desgostos para mim a oposição que encontrei ines-
peradamente de amigos, para levar a efeito a aprovação do projeto de
exploração da estrada da Lábrea ao Beni (LABRE, 1887, p. 32).
Além desse projeto apresentado à Assembleia Legislativa Provin-
cial, Sebastião Antônio Ferrarini, na obra Lábrea: 1881 ontem
- hoje 1981, cita outros projetos e discursos de autoria do coro-
nel Lábrea, tais como: projeto de criação e instalação da vila de
Lábrea; criação do município de Lábrea; projetos de estradas de
rodagem e futuramente ferrovias; apresentação de duas conferên-
cias na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro em 1888; a pri-
meira intitulada “Viagem exploradora do rio Madre de Dios ao
Acre, Vias de comunicação entre os rios Purus, Madeira e Beni:
o rio Acre e Madre de Dios: entre o Madeira e Guaporé pelo rio
Jamary”, e a segunda “Exploração do rio Ituxy”.
Ao descobrir as potencialidades dos campos naturais nas imedia-
ções da vila de Lábrea – localizados a 60 km de distância da vila
– o já Coronel Labre, conforme noticiou o jornal O Liberal do Pará
de 26 de junho de 1874 – solicitou ao governo provincial um em-
préstimo para abrir fazendas de gado nos campos dos rios Passiá
e Pussiari. Eis o termo de autorização:
LEI Nº 334 de 25 de maio de 1875.
Autoriza o presidente da Província a mandar dar por empréstimo ao
Coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre a quantia de nove contos
de réis, para montar uma fazenda de gado vacum e cavalar nos cam-
pos entre os rios Pussiari e Paschiam; (...)
Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, Capitão de Mar e Guerra re-
formado da Armada Nacional, Oficial da Imperial Ordem da Rosa,
Cavaleiro das de S. Bento de Aviz e Christo e Vice-Presidente da Pro-
víncia.
Faço saber a todos os habitantes que a Assembleia Legislativa Provin-
cial decretou e eu sancionei a Lei seguinte:
Art. 1º O Presidente da Província fica autorizado a mandar dar pelos

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cofres provinciais por empréstimo, ao coronel Antônio Rodrigues Pe-


reira Labre, como auxílio, para montar uma fazenda de gado vacum
e cavalar nos campos que demoram entre os rios Pussiari e Paschiam,
a quantia de nove contos de réis logo que as finanças da província
comportarem tal despesa; (FERRARINI, 1981, p. 112).
Na conclusão de seu opúsculo Itinerário de Exploração do Ama-
zonas à Bolívia, Labre esclarece:
Os meus primeiros trabalhos de exploração tiveram começo em 1872,
por um reconhecimento, que fiz, verificando a existência dos campos
da Lábrea ás margens do Pucyary, afluente do Ituxy, subindo ele em-
barcado, cuja exploração noticiei pela imprensa.
Prossegui nestes trabalhos, ora por água e ora por terra, até o ano de
1881, em que estendi os meus estudos práticos em serviço de picada a
uma extensão de 200 quilômetros pelo planalto, que demora entre o
Purús, Madeira e Ituxy. (...).
Para melhor auxiliar nesta empresa, com muita dificuldade e despe-
sa, havia fundado em 1876 uma pequena criação de gado vacum e
cavalar nos primeiros campos, á qual dei o nome de - Fazenda dos
Campos – que conservei até o ano citado de 1881, da ultima explora-
ção; e, na verdade, era um ponto de apoio e serviu até então de grande
auxiliar, provando praticamente a boa qualidade das pastagens para
criação e engorda do gado. (LABRE, 1887, p. 31)
A historiografia brasileira mostra que nos últimos anos do Se-
gundo Império (1841–1889), o pensamento social brasileiro era
marcado por problemas advindos da necessidade de delimitação
do território nacional e pela formação de um país politicamente
e economicamente independente da metrópole portuguesa. As-
sim, principalmente devido às extensões territoriais brasileiras,
iniciou-se um discurso – entre os homens de comércio, política e
ciência – sobre a questão de desenvolvimento, ordem e progres-
so marcado pelo pensamento positivista. Esse discurso nacional
partia, muitas vezes, de vontades de grupos provinciais, como se
pode perceber em alguns dos trechos dos escritos de autoria de
A. R. P. Labre.
Como um homem esclarecido, Labre atuou como um defensor
do recém-nascido pensamento republicano, e até mesmo defen-
deu, judicialmente, um grupo de escravos em São Luís (MA), pois
havia se graduado em Ciências Sociais e Jurídicas na capital do

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império, o Rio de Janeiro. Nesse sentido, inflamado pelo discurso


de nacionalidade da época, como acredito, é que Labre elaborou
seu projeto de exploração extrativista e de colonização do Purus.
Seguindo as ideias da época do nascente Partido Republicano no
Brasil (1870), o coronel viveu em um período em que se anun-
ciavam projetos de exploração da Amazônia e de modernização
para o Brasil como um todo (entre eles estavam as estradas de
ferro, como por exemplo, as tentativas malogradas de construção
da Madeira-Mamoré, em 1872 e em 1878), “ao mesmo tempo em
que”, de acordo com Assis (2010):
se anuncia a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei Áurea (1888), ambas
estabelecendo o discurso e as metamorfoses do trabalho escravo para
o trabalho assalariado enquanto um bem constitucional e de liber-
dade liberal. Esse contexto é marcado ainda pela transformação do
comércio brasileiro, criando rotas de vapores que passam a atingir
tanto a Europa, bem como, os Estados Unidos na América do Norte.
(ASSIS, 2010, p. 02)
Durante suas viagens de exploração nesse “novo mundo”, Labre
– já conhecedor dos trabalhos de exploração do rio Purus execu-
tados por William Chandles, durante 1864-1866 – faz registros
dos recursos naturais, do solo, da terra, dos principais rios e seus
afluentes, além das diversas tribos indígenas, pois:
Este país é sem dúvida um novo mundo, onde se acha a raça do pai
Adão por aqui dispersa, e ainda com os mesmos hábitos e costumes
do velho papá, pois ainda não foram expulsos do seu paraíso; não
conhecerão ainda a nudez, em que vivem; o seu éden é bem fornecido
de frutos e animais, por isso não têm necessidade do trabalho e do
invento (LABRE, 1872, pp. 14-15).
A visão idílica de Labre em relação aos indígenas é marcada por
um desejo de tirar essa raça do pai Adão do estado natural em
que ainda se encontrava, os arregimentando para um núcleo ur-
bano, ou seja, para a Vila de Lábrea, e ensinando o caminho da
civilização e cristianidade. Para Labre:
Impropriamente esta gente tem a denominação de - Índios -. São eles
os aborígenes, ou habitadores naturais deste país, vivendo em tribos,
ainda no estado selvagem, o que é para admirar no século 19, cha-
mado o século das luzes! Passados são 1871 anos da era cristã, e mais
de três séculos e meio da descoberta da América; e o Brasil onde falo,

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sendo todo cristão, e fazendo do cristianismo religião d’estado, dorme,


dorme a bom dormir com os seus discípulos.
Onde está o poder da igreja cristã? Infelizmente para a humanidade, o
cristianismo desviou-se de seu caminho, esquecendo-se do apostola-
do, sua única e exata missão na terra, desvirtuando-se com a política
profana do governo temporal.
O país regado pelo Purus pertence parte ao Brasil, e à Bolívia no mais
alto Purus; é povoado por mais de trinta nações selvagens, que levam
a vida nômade, falando cada povo o seu dialeto diferente, tendo cos-
tumes peculiares. (LABRE, p. 15)
Labre, mesmo sem romper com a religião católica, critica a atu-
ação política da Igreja Apostólica Romana atrelada ao Império,
pois, a seu ver, a igreja desviou-se de sua verdadeira pregação
cristã. Labre demonstrou dessa forma, seu pensamento positivis-
ta republicano, que defendia a separação Igreja-Estado.
Com o pensamento fixo em sua ideia de progresso, o coronel as-
severa que convinha ao governo envidar todos os esforços para
arrancar os selvagens dessa degradação, colonizando-os, pois
“poderiam prestar valiosos serviços à lavoura, e serem cedidos a
particulares, que os quisessem por contratos, mediante algumas
vantagens”. (LABRE, 1872, p. 25) Essa ideia capitalista está bem
assentada na introdução do Rio Purus (1872), estabelecendo de
fato um convite à exploração das riquezas naturais da região.
Este escrito é destinado ao povo, e especialmente, aqueles que quise-
rem se estabelecer no Purus, já com o fim de explorar e colher partido
das fontes de riqueza naturais, em que abunda este país, e já para aufe-
rir vantagens da indústria agraria, onde as terras são de uma fertilida-
de prodigiosa. Aos homens de ciência, a quem acato como divindades
terrenas, peço desculpa dos defeitos e faltas d’este acanhado e humil-
de fruto de meu trabalho. (LABRE, 1872, p.i)
Entretanto, isso não significa que ele era contra a incorporação
do indígena no processo desenvolvimentista, como se pode per-
ceber no trecho citado anteriormente, pois defendia a expansão
e não simplesmente a exploração do natural a qualquer custo.
Como ele mesmo professa, “Para o bom resultado seria muito
conveniente transportá-los para outros colonizadores, em outras
províncias; no fim de três gerações estariam os seus descendentes
civilizados, na lavoura, e o Estado teria homens úteis e aproveitá-

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veis” (LABRE, 1887, p. 12).


Ao evocar as riquezas das terras amazônicas situadas às margens
do rio Purus, o discurso de A. R. P. Labre está, obviamente, asso-
ciado ao discurso colonialista, como não poderia, provavelmente,
deixar de ser, tendo em vista que entendia o valor da terra me-
diante o seu cultivo. Imprimindo, dessa forma, uma perspectiva
do espaço a ser colonizado, ou seja, o discurso de Labre chama
atenção para a necessidade de ocupação regular dessas terras di-
tas devolutas, entretanto, repletas de índios, porque, segundo ele,
“é povoada por mais de trinta nações selvagens, que levam a vida
nômade, falando cada povo o seu dialeto diferente, e tendo cos-
tumes peculiares”. (1872, p. 08)
Embalado pelo discurso colonialista, Labre acreditava e profes-
sava que “É provável que haja minas de prata e ouro, porém em
território boliviano para as serras e montes, em que têm origem
as cabeceiras do Purus, e seus afluentes da direita a contar das do
Acre inclusive para cima, segundo algumas informações pouco
claras, colhidas dos índios pelos mais antigos do lugar”. (LABRE,
1872, p. 08)
Em todos os seus escritos, como procurei demonstrar, Labre ex-
põe suas ideias acerca do processo de colonização dos povos nô-
mades do Purus, e também registra todos os esforços que ele pró-
prio fizera para a fundação de sua fazenda e de uma vila em uma
das curvas do “Cuxiuara, o Purus dos indígenas”. Nesse sentido,
torna-se relevante um estudo investigativo de suas ideias em seus
estudos etnográficos e em suas ações “civilizadoras” em meio aos
vários povos nômades por ele descritos. A seguir, transcrevo al-
gumas passagens de seu estudo descritivo sobre alguns povos in-
dígenas do baixo, médio e alto Purus.

Tribos do Baixo Purus


Múra. Estão meio civilizados, falam a língua geral, o português,
não esquecendo a sua língua; trabalham, vestem-se, e fazem co-
mércio; já estão mui diminuídos; são mui ciumentos de suas
mulheres.
Curuhaty. São mui perversos e guerreiros, e moradores do Pa-
ranapichuna (e são supostos Jumas); vão logo em busca da presa,

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pilhagem e assassinato; são corpulentos e reforçados; têm por


distintivo a bolça dos testículos branca, ou inteiramente alva;
parte da glande do membro viril é aparada em corte vertical.
Simaniry, Catuqina e Cipó. Vivem nas matas do rio Tapahua,
e são pacíficos; dizem haver também Rarahantys, porem não
conhecidos.

Tribos do Médio Purus


Pamanan, Simarunan, e Caripuna. Habitam o rio Mucuhy, e
são pacíficos.
Catauichys. Demoram nos rios Mucuy, Mary, e Pacihan e terras
altas; são pacíficos por índole, bonitos, limpos, bem feitos, e cla-
ros; são cultivadores e fabricam louça de barro, que pintam e de
que fazem comércio mui limitado.
Pamary. Habitam todo o médio Purus, viveram outrora no
baixo Purus; alguns falam português, em grande parte falam
língua geral; tem negação à língua portuguesa, como em geral
os índios do Purus. Vivem nos rios e lagos, alimentam-se espe-
cialmente de peixe e tartaruga; as suas cabanas são feitas nos
lagos em jangadas ou balsas, pelo que são habitações são flu-
tuantes. São destros remadores, entregando-se ao trabalho de
mar,; são verdadeiros canoeiros, suas pequenas montarias (cas-
co, ou escaler) são feitas por eles, e tem o nome de ubá, sendo
quase cones ambas as extremidades. Fazem algum trabalho na
extração dos produtos naturais., que trocam por mercadorias, e
bebidas, especialmente cachaça, pela qual dão a vida. Não plan-
tam, e são preguiçosos, como o comum dos índios. Aqueles, que
estão mais em contato com a gente civilizada, andam vestidos,
porem voltando para as selvas vivem nus. São os selvagens mais
conhecidos por não arredarem-se da margem do rio e lagos;
uma parte deles é meio civilizada, apesar de viver no paganismo,
como outras tribos. São asquerosos e repelentes, pelas moléstias
de pele, que sofrem, as quais se têm tornado hereditárias; tor-
nam a pele escabrosa, produzindo uma comichão horrível. São
manchados ou pintados de branco, tornando-se foveiros, espe-
cialmente as mãos e pés. Estas asquerosas moléstias passam pelo
contato. Temem muito as tribos guerreiras; nunca se batem, por
evitarem o seu encontro.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Jamamandy. Tem os mesmos hábitos e costumes, e vivem em


terras altas, e nas mesmas condições que os Cathauichys; são
agricultores; não fazem comércio, e são medrosos por índole
fugindo do contato civilizado.
Pamanan. Vivem nas terras altas do rio Ituxy; parecem ser os
mesmos do rio Mucuhy; porem varia o seu dialeto; são pacíficos,
preguiçosos, e medrosos.
Caxarrary e Uatanary. Habitam o alto Ituxy, vivendo em gran-
des aldeãs; são plantadores e pacíficos.

Tribos do Alto Purus


Jubery. Demoram no alto Purus, são pintados como os Pamarys,
tem os mesmos hábitos e costumes; varia porem o seu dialeto.
Ipurinan. Habitam desde o médio até ao alto Purus, são mui
numerosos, e de índole perversa, e mãos instintos; são verdadei-
ros antropófagos; entregam-se exclusivamente aos negócios e
práticas da guerra, pilhagem e assassinato. Vivem em diferentes
tribos espalhadas em grande extensão do Purus, e seus afluen-
tes, a contar-se da foz do Sipatiny para cima mais de trezentas
milhas. Apesar de sua malvadez não atacam a gente civilizada, a
quem procuram falar; matam porem traiçoeiramente para rou-
bar, e comer os mortos. Fazem muito pouco comércio em troca
de salsa, seringa, e óleo, que já vão aprendendo colher com a
gente civilizada.
Manetinery e Canamary. São mui numerosos, pacíficos e agri-
cultores; sobressaem pelos seus trabalhos e tecidos de algodão
(com que começam a cobrir-se) e pela beleza e modéstia de suas
mulheres , que são mui claras e de olhos grandes. Desejam o
contato civilizado, pedem e instam mesmo para que os tirem
do estado selvagem. São trabalhadores, tem boas plantações de
frutos e gêneros alimentícios, e até mesmo de algodão, como
já se disse; porém julga-se que pertencem ao alto território do
rio Purus; não podem descer por medo dos Ipurinans. Em 1863
eles desceram em duas canoas carregadas com os seus tecidos e
mercadorias; atacados pelos malvados Ipurinans, foram mortos
e roubados, segundo noticia o Sr. W. Chandless, que o soube pe-
los mesmos Ipurinans. Consta haver ainda as tribus – Auaina-

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mary, Cujigenery, Catianam, Cachapan, Umainauan, Ispinó,


Cuxixiniary, Carunan, Cigananery, Turumaty, Paicycy, Xia-
purininy, Miriximandy, Mamury, Ximaniry, e Araras para o
interior; além destas há outras, de cujos nomes não se sabe, nos
afluentes do Purus não explorados. Todo este vasto país é habi-
tado por selvagens até ás ramificações das cordilheiras andinas
(LABRE, 1872, p. 16-17).
Estudar os primórdios das nações indígenas do Baixo, Médio e
Alto Purus, a partir dos registros de A. R. P. Labre pode ser de
grande relevância para os núcleos de estudos e assuntos indíge-
nas, antropologia, etnologia e historiografia. É de suma impor-
tância a divulgação dos escritos do Coronel Labre que segundo a
Grande Enciclopédia da Amazônia, de Carlos Rocque:
tem discursos que ornam a Assembleia Provincial do Amazonas.
Fundou a colônia que é hoje a cidade de Lábrea. Passou trinta anos no
Purus, sendo o primeiro explorador dessa região. Em 1888, proferiu
conferência na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, ressaltando
que os campos existentes na região prestavam-se para a pecuária. Na
vida política agiu sempre com honestidade e desinteresse. Celibatário,
morreu paupérrimo, e em sua terra natal. (ROCQUE, 1968, p. 980)
Apesar da assertiva de Rocque acerca do Coronel Labre – era co-
ronel da guarda nacional – o primeiro explorador do rio Purus,
a historiografia regional afirma que a primeira expedição orga-
nizada para penetração no rio Purus, onde hoje se encontra o
município de Lábrea, deve-se a Tenreiro Aranha, presidente da
Província do Amazonas, criada em 1850 e estabelecida em janei-
ro de 1852. Há também notícias sobre a penetração anterior por
João Cametá, Pedro Coriana e Manuel Urbano da Encarnação e
seus filhos, todos em datas diversas, mas anteriores ao coronel
Labre. De acordo com o ensaio etno-histórico de Kroemer, “antes
de 1689 já havia casas de moradores portugueses no rio Purus,
que faziam comércio com os índios, facilitando as excursões das
tropas de resgate”.(KROEMER, 1985, p. 23)
Finalizando este texto, convém sumariar que A. R. P. Labre es-
creveu notícias geográficas, geológicas e etnográficas de tão vasto
território, sob os títulos seguintes: Rio Purus (1872); A seringuei-
ra: syphonia cahucha ou chiringa em língua geral (1873), “ofere-
cida à consideração daqueles que desejam fazer fortuna rápida”;

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

Achy ou os catauchys, estudos etnográficos de alguns selvagens


do Purus – publicado em forma de folhetim em vários exempla-
res do jornal Comércio do Amazonas no decorrer de 1880, im-
possibilitando, assim, de se reunir todas as partes.
Resta afirmar que o coronel Labre, ao começar a colonização do
rio mais sinuoso do mundo e de uma beleza ímpar, possuía uma
soma considerável de dinheiro que aplicou em seus projetos por
acreditar no sonho de uma grande nação, do contrário, teria gas-
tado sua fortuna em São Luís ou Europa, já visitada por ele em
sua juventude. A sua maior característica enquanto intrepidez foi
a abertura de estradas ligando Lábrea à Humaitá, tendo explora-
do, portanto, a região entre os rios Purus, Madeira, Beni, Madre
de Dios e Acre. Em outra empreitada dirigiu-se ao Beni, em 34
dias de viagem, com trabalhos e incômodos insanos; de lá saiu
no rio Acre e desceu para a vila de Lábrea novamente, viajando
dali para Manaus, conforme registrara em seu opúsculo de 1887.
O projeto gigantesco da comunicação da Lábrea com o Beni, na
Bolívia, e com o rio Madeira, foi por ele admiravelmente bem
explorado, comprovando ter feito uma logística considerável do
potencial da região. Na conferência que realizou, em 1888, na So-
ciedade de Geografia do Rio de Janeiro, explicou que:
Os campos de criação dos gados da Exaltação, Sant’Anna e Reyes,
prolongando para o norte, vêm terminar nas proximidades do lugar
Correnteza, por onde se transportará gado vacum para o Madeira e
Purus com grande proveito para o comércio e indústria pastoril; pode
transportar-se por enquanto 10.000 cabeças anualmente, pois tem o
departamento do Beni 400.000 cabeças de gado, ou mais, conforme
afirmaram-me diversos criadores notando-se entre eles o Senador
Vaca-Diez.
Na vida política da cidade de Lábrea do Purus, o coronel Antonio
Rodrigues Pereira Labre agiu sempre com absoluto desinteresse,
mostrando honestidade e zelo em seus projetos. Somente que-
brantando o espírito altivo, após acertos com o novo presidente
da Província, José Lustosa da Cunha Paranaguá, que lhe prome-
tera mandar fazer os estudos da referida exploração da estrada
da Lábrea ao Beni, cujos trabalhos o coronel Labre deveria fazer
parte por ser autor da ideia, e conhecer a topografia local. Ele
recebera a notícia de que um engenheiro seguira para o Madeira,

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sob ordem do presidente, para estudar o traçado da estrada da


foz do Beni à Lábrea, por assim o governo ter pensado melhor,
causando-lhe essa notícia uma decepção, “uma coisa incrível e
desesperadora”. Todavia, Labre sabia que do esforço de um ho-
mem pode advir o progresso industrial e comercial de um país.
Os que vivem na herança desse velho sábio, município de Lábrea,
batizada com seu nome, parecem não compreender que nada
melhor dele ficou que o projeto agigantado da via de comuni-
cação das margens do Purus às do Beni e a abertura da estrada
de rodagem ligando Lábrea a Humaitá, este projeto foi realizado,
mas ainda precisa de pavimentação e demais cuidados.
Por fim, o Coronel Labre foi um dos únicos imigrantes explora-
dores do Purus que não procurou levantar e acumular riquezas,
como fez seu amigo e cofundador da cidade de Lábrea, coronel
Luís Gomes da Silva. Ao contrário, porém, gastou toda a sua for-
tuna, herdada de seus maiores, na realização de seus projetos,
confiante no desenvolvimento e progresso do Purus.
É possível que continue o silêncio e os descasos sobre o trabalho
desse velho operário, e que a vontade de acumular capital muito
depressa através da pilhagem das riquezas naturais do Purus im-
peça aos seus cidadãos a realização dos ideais do pai de todos os
labrenses.

Referências bibliograficas
ASSIS, R. J. S. de. A poética da desgraça: ideologias geográficas
na implantação da Estrada de Ferro de Baturité no Ceará (1870-
1912). In Anais XVI Encontro Nacional dos Geógrafos - Crise,
práxis e autonomia: espaços de resistências e de esperanças.
Espaço de Diálogos e Práticas. ENG, Porto Alegre, 2010.
CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido: reunião de ensaios
amazônicos. Sel e coord. Hildon Rocha, introd. Athur Cézar Fer-
reira Reis. Brasília: Senado Federal, 2000.
FERRARINI, S. A. Lábrea: 1881 ontem – hoje 1981. Imprensa
Oficial, Manaus, 1985.
KROEMER, Gunter. Cuxiuara, o Purus dos indígenas. São Pau-
lo: Edições Loyola, 1985.

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Parte 1. Amazônia: território híbrido da história e da literatura

LABRE. Antônio Rodrigues Pereira. LABRE, Antônio R. P. Itine-


rário de exploração do Amazonas á Bolívia. Belém, 1887.
_________Rio Purus. Diário do Amazonas, Manaus, 1872.
LOUREIRO, Antônio José Souto. Síntese da História do Ama-
zonas. Manaus: Imprensa Oficial, 1978.
ROCQUE, Carlos. Grande Enciclopédia da Amazônia. Belém:
AMEL, Amazônia Editora Ltda., 1968.

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Parte 2

Literaturas americanas, literaturas


insólitas: métodos e textos

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6 O insólito na literatura
brasileira1

Maria Cristina BATALHA2


Até há pouquíssimo tempo, a presença da ficção fantástica na li-
teratura brasileira, apesar de constante, diversificada e inovadora,
vinha sendo parcamente divulgada entre nós e, de modo mais ou
menos flagrante, também ignorada pela crítica e historiografia li-
terárias. Nosso intuito é o de rastrear alguns passos deixados pelo
gênero na série literária brasileira, dos seus primórdios, meados
do século XIX, aos dias de hoje. Esse percurso não pretende ser
exaustivo e nosso mapeamento está longe de abarcar a totalidade
dos contos fantásticos no Brasil. Nosso propósito é assim o de
evocar exemplos dessas manifestações ao longo dos dois últimos
séculos. Alguns autores que aqui figuram são consagrados pela
tradição literária brasileira, mas a parte fantástica de suas obras
ficou “esquecida” das antologias exatamente por fugir dos câno-
nes predominantes da época. Diante de um veto mais ou menos
explícito, um corpus narrativo da literatura fantástica consistente
e fixado na tradição das letras brasileiras não pôde, então, cons-
tituir-se de forma sólida. A irregularidade dessa produção não
se explica pela ausência nem pela sua baixa qualidade, mas sim
por uma política sistemática que deixava de lado outras leituras

1 Uma primeira versão desse texto foi publicada em Pelas veredas do fantás-
tico, do mítico e do maravilhoso, organização de Maria Celeste Tommasello
Ramos, Maria Cláudia Rodrigues Alves & Álvaro Luiz Hattnher. São Paulo:
Cultura Acadêmica; São José do Rio Preto, S.P.: HN, 2013.
2  Doutora em Literatura Comparada pela UFF; professora da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro; bolsista de produtividade do CNPq e do progra-
ma Prociência.

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Métodos Fronteiriços

de mundo e outras sensibilidades em favor do cânone realista,


construído pelas instâncias legitimadoras do valor e do gosto li-
terários em determinados períodos. Dessa forma, predominou
a exclusividade e a monocronia em detrimento da diversidade e
do plural.
Isso acarretou certo desconhecimento acerca do rico material e
da marginalização de autores ou parte da obra de alguns auto-
res mais conhecidos que se destacaram em outras estéticas, so-
bretudo as que articularam mimeticamente o texto literário e a
realidade social. Até a metade do século XX, podemos localizar
uma produção fantástica recorrente, mas seus autores foram ma-
joritariamente vinculados a outras correntes, notadamente o re-
alismo-naturalismo, deixando de lado essa parte importante de
sua ficção. É somente nesse momento, ou seja, por volta dos anos
1940 e 1950, que surgem dois nomes cuja obra é inteiramente
identificada como gênero fantástico: Murilo Rubião e J. J. Veiga.
Esses escritores publicam seus contos fantásticos em coletâneas
próprias e não têm seus nomes relacionados a outras estéticas,
embora tenham sido “desprestigiados” em sua escolha genérica.
O primeiro é comparado a Kafka e, por conseguinte, desqualifi-
cado nessa comparação; o segundo tem a sua obra lida como uma
alegoria denunciadora da crise social e política do país. O cará-
ter inovador da ficção fantástica de Rubião é desconsiderado e
praticamente ignorado pela crítica, e a literatura fantástica de J. J.
Veiga é lida como um “artifício” para driblar a repressão política
exercida pela ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970.
Até esse momento, os demais autores que cultivaram o gênero
não eram identificados como tal e tinham, nas antologias e cur-
sos de literatura, essa parte da sua produção ficcional obliterada
deliberadamente. É o caso, por exemplo, de Machado de Assis.
Leitor e apreciador dos contos fantásticos de E.T.A. Hoffmann,
com quem dialoga explicitamente nos contos “Sem olhos” e “O
capitão Mendonça” (Jornal das Famílias, 1870), além de ser o tra-
dutor de Edgar Allan Poe, Machado fez uma incursão bastante
significativa pela literatura fantástica. Somente em 1973 é que
Raymundo Magalhães Júnior organiza uma antologia de contos
fantásticos do autor: Contos fantásticos de Machado de Assis. Me-
nosprezando essa parte da produção do escritor, o crítico literário
Sílvio Romero comenta desdenhosamente que Machado “hoje

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

tem veleidades de pensador, e de filósofo, e entende que deve


polvilhar os seus artefatos de humor e, às vezes, de cenas com
pretensão ao horrível”. E acrescenta: “Quanto ao humor, prefiro
o de Dickens e de Heine, que era natural e incoercível; quanto ao
horrível, agrada-me muito mais o de Edgar Poe, que era realmen-
te um ébrio e louco de gênio, ou de Baudelaire, que era de fato
um devasso e epilético” (ROMERO apud MAGALHÃES Jr.,1973,
p. 23). Ou seja, Romero, além de desqualificar o gênero atribuin-
do-o à degeneração de seus autores, despreza o escritor brasileiro,
que considera inferior a seus pares estrangeiros.
O mesmo ocorre com a ficção de Guimarães Rosa, surgida na
década de 1940. Assim como Machado de Assis é classificado
segundo nossas histórias da literatura como “realista”, Rosa é en-
quadrado como “regionalista”. Para a crítica, é irrelevante que o
sobrenatural esteja presente em contos como “A terceira margem
do rio”, “A menina de lá”, “Um moço muito branco”, “O cavalo que
bebia cerveja” ou “Meu tio o Iauaretê”, entre tantos outros. Sem
tirar o mérito de sua linguagem criativa e o modo particular de
retratar os personagens e a geografia do sertão de Minas Gerais,
é curioso o fato que prevaleça na crítica apenas o aspecto do “re-
gionalismo” de sua obra. O crítico Antônio Cândido é um dos
poucos a destacar a importância da presença do fantástico em
sua obra. Para ele :
[Guimarães Rosa] tornou-se o maior ficcionista da língua portuguesa
em nosso tempo, mostrando como é possível superar o realismo para
intensificar o senso do real; como é possível entrar pelo fantástico e
comunicar o mais legítimo sentimento do verdadeiro; como é pos-
sível instaurar a modernidade da escrita dentro da maior fidelidade
à tradição da língua e à matriz da região (CÂNDIDO, 1987, p. 207).
Na “Apresentação” à coletânea de contos Sete monstros brasileiros
(2014), Braulio Tavares afirma que a tradição costuma associar a
literatura de fantasia baseada em nosso folclore à literatura infan-
til, embora, advirta ele, esta retrate “os nossos monstros de modo
mais divertido do que assustador”; e assim, diz ele, “essa literatura
infantil e mesmo a juvenil vê por vezes seus leitores como aqueles
que precisam ser protegidos do impacto potente desses monstros”
(TAVARES, 2014, p. 8). Desse modo, as figurações dos monstros
do nosso folclore ficaram circunscritos a sua feição adocicada e

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Métodos Fronteiriços

apareceram muito pouco na chamada literatura “séria”.


Em um pertinente estudo sobre o fantástico em Machado de
Assis, o crítico e também autor de ficção fantástica Flávio Car-
neiro observa que um dos contos mais conhecidos de Machado
é “O espelho” (Papéis Avulsos), publicado em 1882. Nesse conto,
a ironia provocadora machadiana já se explicita no subtítulo do
conto: “Esboço de uma nova teoria da alma humana”, em diálogo
crítico com o pensamento positivista dominante da época. Como
mostra Flávio Carneiro, a crítica não deu importância à presença
do fantástico em “O espelho”, preferindo uma leitura de cunho
mais sociológico. Entretanto, o mesmo não aconteceu com Gui-
marães Rosa, que escreveu um conto intitulado também “O es-
pelho”, publicado em Primeiras Estórias (1962), promovendo um
diálogo assumido com o conto de Machado, em “um exercício
de reescrita que se dá exatamente a partir do insólito – e da am-
biguidade que o cerca – percebido por Rosa na sua leitura do
conto machadiano” (CARNEIRO, 2009, p. XIX). Guimarães Rosa
opta por privilegiar, não o caminho da crítica social, e sim o da
imaginação, criando, ele próprio, uma história paralela em que o
personagem principal (e narrador da história) se depara com si-
tuação semelhante à do jovem do conto de Machado: ao se olhar
no espelho, em um momento delicado de sua vida, vê não mais
o seu rosto real, mas o de um monstro. Conforme destaca ainda
Flávio Carneiro (2009, p. XX):
[...] mais do que um escritor que busca, em boa parte de sua obra, tra-
balhar com o jogo da incerteza propiciado pelo fantástico, Guimarães
Rosa é um leitor fascinado por esse mesmo jogo. É obviamente a par-
tir do modo como lê Machado que o escritor Rosa ergue seu próprio
conto, como uma volta a mais na espiral do fantástico proposta pelo
conto primeiro.
Consciente do veto sistemático à literatura fantástica no Brasil e
da pouca credibilidade de que ela desfrutava, Machado de Assis,
no ensaio “A nova geração”, publicado em dezembro de 1879, na
Revista Brasileira, ironiza: “A realidade é boa, o realismo é que
não serve para nada”.
Assim, apesar dos desvios, dos equívocos da crítica, da predomi-
nância do projeto nacionalista romântico que era avesso ao fan-
tástico e da tendência à valorização do relato documental que se

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

atualizava através da estética realista, corre subterraneamente um


espaço reservado a uma literatura que se caracteriza pela cons-
trução ficcional da “sobrenaturalidade” e de uma “suprarrealida-
de”. Embora, nos dias de hoje, a ficção fantástica no Brasil tenha
obtido o reconhecimento da crítica e das instâncias legitimadoras
do “gosto”, podemos afirmar que a produção fantástica brasileira,
durante um grande tempo da nossa história literária, constituiu-
se como um percurso enviesado, à margem da matéria ficcional
posta a serviço da construção de uma sociedade nacional, fosse
ela laudatória ou crítica.
A primeira manifestação da literatura fantástica no Brasil reco-
nhecida pela crítica é a coletânea de contos Noite na taverna, de
Manoel Antônio Álvares de Azevedo, publicada postumamente
em 1855. Essa obra de inspiração byroniana inaugura uma esté-
tica alternativa para a ficção brasileira pelo viés da incerteza e da
ambiguidade. Álvares de Azevedo foi um dos únicos a encarnar
entre nós o espírito da ironia romântica, praticada pelos chama-
dos primeiros românticos alemães, e que se traduzia pela busca
incessante da forma ideal e pela hesitação genérica que essa busca
acarretava. Além disso, é conhecido o antinacionalismo do autor
em relação à identidade literária da literatura brasileira, mais um
motivo que o diferenciava de seus pares em sua época. Apesar de
ser um caso isolado e não ter conseguido impor-se como uma
“escola”, surgem outros exemplos esporádicos desse modelo de
fantástico de ambientação e temática góticas, com acentuada car-
ga de pessimismo inspirado em Byron, como o conto “As ruínas
da Glória”, de Fagundes Varela, publicado em folhetim no Cor-
reio Paulistano, de 1861; e “Trindade maldita”, de Franklin Távo-
ra, publicado no mesmo jornal e no mesmo ano, sendo que não
se tem notícia de publicação deste conto em livro. Esse é o caso
também de “As bruxas”, também de Fagundes Varela; de “Um so-
nho”, de Justiniano José da Silva (publicado na seção “Apêndice”
de O Chronista, 11/01/1838, nº 129)3; e de “Luísa”, de Pereira da
Silva (Jornal dos Debates: políticos e literários: Tipografia de L. A.
Burgain, 18/01/1838), precursores de Álvares de Azevedo. Cabe,
no caso dos escritores jornalistas citados, guardar uma certa re-
3  Esses contos estão compilados na antologia O fantástico brasileiro: contos
esquecidos, organizada por Maria Cristina BATALHA, Rio de Janeiro: Caetés,
2011.

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Métodos Fronteiriços

serva quanto à criação literária “pura”, pois os limites entre tradu-


ção de folhetins estrangeiros, notadamente franceses, adaptação
e autoria não estão suficientemente definidos nesse período. Por
outro lado, podia ocorrer também o inverso, ou seja, uma cria-
ção própria apresentada como “tradução do francês”, expediente
muito comum, utilizado como estratégia para vender mais jornal
por conta do prestígio dos folhetins franceses que aqui chegavam.
Justiniano José da Silva, que dirigiu o jornal O Cronista, publica,
em 1836, A luva misteriosa, “imitada” do texto de Balzac La peau
de chagrin. Essa obra fica inacabada, mas seu jornal publicou
várias narrativas que seguiam o modelo do texto adaptado por
Justiniano: As almas do outro mundo, O noivo d´além túmulo,
Prólogo infernal, Os três desejos, Memórias do diabo e O novo
Cagliostro. Tributária dos modelos importados nos quais predo-
minava o efeito de frisson, muitas vezes provocado pelo medo e
pelo horror, a literatura brasileira que se produziu nos primór-
dios do jornal era representativa da escola romântica. A maior
parte da produção fantástica que se desenvolve no século XIX no
Brasil carrega as marcas da sensibilidade, dos temas e dos proto-
colos genéricos característicos do período e dessa escola estética.
No esforço empreendido pelos estudiosos para elencar e catalogar
a contística brasileira, surgem as primeiras antologias. A primeira
delas, reunindo contos brasileiros, foi organizada por Alberto de
Oliveira e Jorge Jobim, em 1920. Mais tarde, em 1959, Jerônimo
Monteiro recolhe no volume número 8 da coleção Panorama do
conto brasileiro, a coletânea O conto fantástico, publicada pela Ci-
vilização Brasileira. Assim, pela primeira vez, aparece uma anto-
logia dedicada unicamente a contos fantásticos brasileiros. Dois
anos mais tarde, em 1961, Jacob Penteado organiza as Obras pri-
mas do conto fantástico, publicadas em São Paulo, pela Martins
Fontes, reunindo contos do mundo e incluindo alguns brasileiros.
Em 1981, Antonio Hohfeldt reserva um capítulo intitulado “con-
to alegórico” em sua coletânea Conto Brasileiro Contemporâneo.
Nessa rubrica, que ele descreve como “literatura não racionalista”,
insere Murilo Rubião, Roberto Drummond e Victor Guidice. Em
1985, o crítico e escritor José Paulo Paes publica Os buracos da
máscara, coletânea em que figuram contos do mundo inteiro e
alguns brasileiros também. Mais recentemente, em função da re-
tomada de interesse pela forma “conto” e, particularmente, pelo

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

conto fantástico, Flávio Moreira da Costa publica Os 100 melho-


res contos de crime e mistério da literatura universal (2002) e
Braulio Tavares, Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros
(2003) que, como indica o título, reúne somente contos brasilei-
ros. A essa última iniciativa de Braulio Tavares, somam-se outras
cinco compilações feitas pelo autor e crítico, entre 2005 e 2013.
Nas antologias organizadas, encontramos lado a lado contos es-
trangeiros e brasileiros e somente a de 2011, Páginas do futuro:
contos brasileiros de ficção científica, é dedicada inteiramente
à produção brasileira. Caberia destacar também a iniciativa de
Túlio Monteiro, organizador de uma Antologia de contos cearen-
ses, publicada pela Editora da UFC, em 2004. Nessa antologia,
podemos encontrar vários contos fantásticos, desde os seus pri-
mórdios até os mais recentes, produzidos por escritores cearenses
contemporâneos. E mais atualmente, merece louvor o trabalho
de pesquisa e compilação empreendido por Pedro Salgueiro, Sân-
zio de Azevedo e Alves de Aquino, que resultou na publicação
de O cravo roxo do diabo: o conto fantástico no Ceará, de 2011,
reunindo 173 contos fantásticos desse estado nordestino.
As primeiras tentativas de registro da produção ficcional fantásti-
ca brasileira esbarraram em dificuldades diversas. Na Introdução
a Páginas de sombra, Braulio Tavares adverte sobre a dificuldade
de reunir contos do gênero, dada a sua escassez em nossas letras.
Diz ele que, quando surgiu a ideia da antologia, pensou haver far-
tura de material, já que as histórias fantásticas de mistérios e “al-
mas penadas” são de agrado popular. Verificou, entretanto, que o
que havia por aqui era literatura traduzida, na sua maioria ingle-
sa. “Entre nós, afirma ele, parece que se dá o contrário: há muitas
lendas, superstições, assombrações por esse sertão, e há pouco
quem se aproveite do tema para escrever” (TAVARES, 2003, p. 1).
Na Introdução às Obras primas do conto fantástico, Jacob Pentea-
do desqualifica o gênero como criação estética e afirma que ele é
o resultado de um desvio moral ou comportamental do autor. Ele
considera que o fantástico “é gerado pelo sonho, pela superstição,
pelo medo, pelo remorso, pela superexcitação nervosa ou mental,
pelo álcool e por todos os estados mórbidos. Ele se alimenta de
ilusões, de terrores, de delírios. Assim, embora tenha florescido
em outras épocas, parece satisfazer plenamente ao paladar dos
leitores modernos” (1961, p. 1). Continua ele: “Entre os escritores

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Métodos Fronteiriços

que sofreram a influência do álcool e outros tóxicos, podemos


citar Edgar Allan Poe e Baudelaire. A grande afinidade que os
ligava no vício e no talento talvez tenha contribuído para que o
segundo divulgasse as obras e o gênero do escritor bostoniano,
na Europa, mercê de apuradas traduções em que se esmerou o
francês” (p. 3). E, com relação à produção brasileira, acrescenta:
“Temos notado que, nas antologias de contos fantásticos, os brasi-
leiros primam pela ausência” (p. 3-5).
No que concerne à tentativa de definição e/ou classificação do
gênero, o terreno permanece bastante movediço. Braulio Tavares,
na Introdução de sua antologia, hesita em definir o conceito de
fantástico e afirma que “não se deve esperar destas páginas sequer
uma tentativa de estabelecer uma teoria unificada do fantástico”
(2003, p. 7). Quando passa a referir-se especificamente ao fantás-
tico brasileiro, propõe então uma classificação para os contos: 1)
“o brasileiro místico”, narrativas de estrutura mitológica, próximas
da oralidade, sem hesitação entre a explicação realista e a sobre-
natural; 2) as narrativas que usam o Brasil como temática para
discussão do mundo e da realidade, aproximando-se do “realis-
mo mágico” latino-americano; 3) os contos inspirados nos ghost
stories, ou seja, os derivados do romance gótico e da vertente da
ficção científica e do horror (TAVARES, 2003, p. XX).
Foram, portanto, muito preciosas as contribuições de todas essas
antologias para orientar nossas escolhas e fornecer um primeiro
passo para o trabalho que aqui segue. Cabe mencionar que nossa
pesquisa nos levou a consultar algumas outras antologias de con-
tos e, em muitos casos, encontramos contos fantásticos reunidos
sob títulos diversos, como os seguintes contos da longa coletânea
Panorama do conto brasileiro , de 1960, organizada por Jerônimo
Monteiro: 1) sob a rubrica “Conto trágico”, no volume 9: “Acauã”,
de Inglês de Sousa (Contos amazônicos, 1893); 2) com o título de
“Histórias de crimes e criminosos”: “O crime do estudante Baptis-
ta”, de Ribeiro Couto (In: Edgard Cavalheiro e Raimundo Mene-
zes (Orgs.). Panorama do conto brasileiro, histórias de crimes e
criminosos. 1956), “O narciso em equação”, de João Pacheco, de
1942 (Negra a caminho da cidade; ibid.); “O crime daquela noite”,
de Menotti del Picchia (Contos. Ibid.); “História de gente alegre”,
de João do Rio (Dentro da noite. Ibid.); 3) e, finalmente, a clas-
sificação de “conto romântico”: As ruínas da Glória, de Fagun-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

des Varela, originalmente publicado no Correio Paulistano, 1861


(In: Cavalheiro, Edgard. (Org.). Panorama do conto brasileiro, O
conto romântico, vol. 2. 1961). Na antologia de contos policiais
brasileiros, organizada por Flávio Moreira da Costa, Crime feito
em casa (2005), encontrei, por exemplo, o meta-conto fantástico
“Círculo vicioso”, de Amílcar Bettega Barbosa (originalmente pu-
blicado em Os lados do círculo, 2004).
O cotejo dessas antologias nos ajudou a elencar alguns autores in-
suspeitos, por estarem sobejamente vinculados a escolas estéticas
distantes da ficção fantástica, abrindo-nos caminhos para a in-
cursão em novas obras e autores que vieram a contribuir signifi-
cativamente para alimentar esse panorama. Chamou-nos a aten-
ção a quantidade e a diversidade do conjunto. Porém, guardadas
as devidas proporções e poéticas particulares, existe certa coesão
no universo mental e imaginário da produção ficcional do século
XIX e início do XX, que vai além do caráter marginal comum que
a crítica havia reservado a essas obras. Observamos, por exem-
plo, que em seus primórdios, a narrativa fantástica apresenta-se
ainda presa aos modelos romanescos publicados em folhetins, de
inspiração gótica, passando gradativamente pela reflexão filosó-
fica, pela análise naturalista de obsessões mórbidas e da loucura,
ganhando feições mais modernas, nos moldes kafkianos, caso es-
pecífico – mas não o único – do conto “O máscara”4, de Nestor
Victor (1897), autor simbolista ainda muito pouco estudado en-
tre nós. Embora possamos registrar uma “evolução” constante do
gênero fantástico, temos que reconhecer que ele se desenvolveu à
margem das grandes correntes literárias, ou seja, desenvolveu-se
em paralelo ao romance romântico, ao romance histórico, ao ro-
mance realista, ao psicológico, ao transcendentalismo ou ao na-
turalismo. Contudo, a produção fantástica mais contemporânea
já aponta para o amadurecimento do gênero e começa a deixar o
seu lugar marginal na nossa série literária, ganhando destaque na
crítica, legitimidade nas academias e marcando um lugar garan-
tido em antologias e suplementos literários.
Caberia advertir ainda que, se discordamos da inclusão de mui-
tos contos apresentados como “fantásticos” nas antologias cita-

4  Esse conto consta da antologia O fantástico brasileiro: contos esquecidos,


organizada por Maria Cristina BATALHA, Rio de Janeiro: Caetés, 2011.

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das, não nos cabe aqui discutir nem polemizar a esse respeito, até
porque as definições teóricas do gênero são bastante cambiantes
e não existe unanimidade entre os críticos quanto aos limites do
que consideram “fantástico”, “maravilhoso”, “realismo mágico”,
“estranho”, entre tantos outros termos que nos remetem a gêne-
ros e subgêneros afins. Seria dessa forma mais prudente falarmos
de “fantásticos adjetivados”, que lhe completam o sentido e dão
formas mais perceptíveis ao gênero ou, como reivindicam alguns
críticos, a essa modalidade narrativa: grotesco, macabro, gótico,
alegórico, metafísico, fantástico mágico, fantástico surreal etc.
Conforme a predominância de um desses aspectos no texto fan-
tástico – terror, horror, sonho, melancolia, trágico ou grotesco
– desenvolveram-se as criações textuais e as teorias a respeito do
gênero.
Quanto às temáticas recorrentes, elas também são bastante vari-
áveis, mais ou menos exploradas em determinadas épocas, e re-
ceberam, a cada texto, um tratamento peculiar. Essas temáticas
oscilam entre a presença desconcertante das máquinas como sím-
bolo da modernidade incompreendida, como é o caso da maioria
dos contos de J. J Veiga, por exemplo. Outros contos recorrem ao
apoio de um objeto mágico: “O Espelho”, de Gastão Cruls (Histó-
ria puxa história, 1938); e “A luneta mágica”, de Joaquim Manoel
de Macedo (1869), narrativa em primeira pessoa, situada entre
o conto e a novela, e que relata a história de Simplício, míope
física e socialmente, a quem oferecem uma luneta mágica, com a
seguinte advertência: “Dou-te uma luneta mágica; verás por ela
quanto desejares ver, verás muito; mas poderás ver demais”.
A visão do futuro aproxima certos contos da ficção científica,
como nos casos de “A viagem de Caramuru”, em Quando o Brasil
amanhecia (fantasia e passado), de Alberto Rangel (1905); de “O
país das quimeras (conto fantástico)”, de Machado de Assis (O fu-
turo, 1982; republicado sob o título de “Uma excursão milagrosa”,
em Contos escolhidos de Machado de Assis, antologia organizada
por Raimundo Magalhães Jr., de 1973); de “A filha do inca”, de
Menotti del Picchia (1927); de “Amazônia misteriosa”, de Gastão
Cruls (1925); e de Zanzalá, de Afonso Schmidt (1936). Outra te-
mática recorrente é a presença do duplo: “Paulo”, de Graciliano
Ramos (Insônia, 1955), em que assistimos aos delírios de um mo-
ribundo que se vê dividido em um duplo seu, também escritor;

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

de “O duplo” e de “Meu sósia”, ambos de Coelho Neto (Contos


da vida e da morte, 1927). Ainda caberia destacar aqui o tema da
metamorfose, como em “Teleco, o coelhinho”, de Murilo Rubião
(Os dragões e outros contos, 1965); e de “Alguém dorme nas caver-
nas”, de Rubens Figueiredo (O livro dos lobos, 2009 [1994]).
No que concerne à definição do gênero fantástico, sabemos, como
vimos, que estamos em terreno minado, pois os gêneros, longe de
estarem fechados em compartimentos estanques, movimentam-
se em várias direções, e os textos são mais heterogêneos do que
gostariam os críticos e os teóricos. Os autores inventam cami-
nhos tortuosos, passagens caprichosas e brincam com as frontei-
ras que os especialistas insistem obsessivamente em determinar.
Por conseguinte, os traços que aqui destacamos num esforço clas-
sificatório são fluidos e cambiantes e não devem ser entendidos
como independentes uns dos outros; ao contrário, muitos deles
encontram-se mesclados a outros traços predominantes em ou-
tros textos, dialogando entre si e invadindo-se mutuamente. As-
sim, a tentativa de agrupamento que apresentamos aqui pautou-
se pela presença daquilo que nos pareceu mais evidente em cada
um dos contos, mas essas características estão longe de serem
exclusivas ou excludentes entre si. Esse trabalho de classificação
nos levou a dez grupos de contornos mais ou menos arbitrários,
que sugerimos a seguir.

Conto fantástico gótico


Fazendo apelo a fantasmas, espectros, almas penadas e outras
aparições aterrorizantes, os enredos desses contos desenrolam-se
no quadro clássico dos castelos assombrados, das florestas tene-
brosas e dos ambientes sombrios e escuros. Trata-se de uma lite-
ratura de índole satânica, expressão paroxística de paixões infeli-
zes e de amores amortalhados, fazendo do binômio amor e morte
uma recorrência. Sob diferentes aspectos, os textos góticos tra-
zem à tona uma série de significantes: o castelo como lugar acima
da lei, a não ser a sua própria; os outros como vítimas naturais
prontas para satisfazerem os desejos do senhor; e a maldição que
os atinge, ligada à extinção de sua raça. É o caso dos contos reuni-
dos em Noite na taberna que segundo ensaio de Antônio Cândi-
do, vincula-se à propensão do autor para uma pedagogia satânica,

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Métodos Fronteiriços

desenvolvendo o lado obscuro do homem, metaforizado pelo sig-


no da noite, referindo-se não apenas à ambientação exterior, mas
também a um estado da alma voltado para a torpeza e a morbidez
(CÂNDIDO, 1987, p. 18). Ainda como representantes desse ro-
mantismo exaltado, temos os contos “As ruínas da Glória” (1861)
e “As bruxas” de Fagundes Varela que mencionamos acima; “Um
sonho”, de Justiniano José da Rocha (1838); “Luísa”, de Pereira da
Silva (1838), no qual figura o tema do amor que leva à morte, re-
metendo ao mito de Tristão e Isolda; e de “A noiva”, de Humberto
de Campos (O monstro e outros contos, 1937).
A ambientação gótica está fortemente vinculada ao grotesco e ao
macabro, presentes na mesma atmosfera de horror e de medo
exacerbado, predominante no período romântico, mas não ex-
clusivo a ele. A atração dos românticos pelo grotesco explica-se,
primeiro, porque se inicia a partir dessa reflexão uma ruptura
com a tradição que o rejeitava; segundo, porque ele assume os
atrativos do excluído ameaçador e do “pária glorioso”, conforme
a expressão de Elisheva Rosen (1991, p. 39), tornando-se uma
linguagem capaz de dar conta do inédito, ou daquilo que não se
encaixava nos parâmetros definidos pela tradição. É da própria
essência do grotesco a associação entre o cômico e a feiura, a li-
gação entre o riso e o sofrimento, e a presença, em um mesmo
personagem, da felicidade e da infelicidade. No grotesco, impera
a poesia do estranho e do mórbido, promovendo um jogo com o
“medo”, com o horror e, muitas vezes, com o repugnante. O conto
“Bocatorta”, do escritor Monteiro Lobato (Urupês. Obras comple-
tas de Monteiro Lobato, vol. 1, 1951a), coloca em cena o perso-
nagem monstruoso, que dá nome ao conto, como “uma curiosi-
dade da fazenda”, filho de uma escrava e que “nasceu disforme e
horripilante como não há memória de outro” (p. 180-181). Com
efeito, neste conto fantástico, Lobato, ao invés de trazer à cena de-
mônios ou espíritos, nos acena com um monstro caricatural que
provoca repulsa e escárnio. Assim, o riso ambíguo presente no
grotesco da figura de Bocatorta está vinculado a uma experiência
do horror, identificado, muitas vezes, com a particularidade dos
episódios de violência vividos no campo brasileiro. Sua presença
grotesca subverte a lógica dos senhores do poder e chama a aten-
ção para as contradições da realidade social brasileira.
Nesse grupo de contos, encontramos uma acentuada presença do

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

elemento escatológico exemplificado na figura do cadáver, do es-


queleto, da doença e da degeneração, que remetem ao elemento
macabro e ao grotesco. Para citarmos alguns exemplos, podemos
evocar os contos “A dança dos ossos”, de Bernardo Guimarães
(Lendas e Romances, 1871); “Circo de cavalinhos”, de Viriato Cor-
rea (Histórias ásperas, 1928); vários contos do “naturalista” Alu-
ísio Azevedo, como “Imã”, “Niobe” (com o tema da deformação
pela lepra, vivida como uma fatalidade que recai sobre uma fa-
mília sem explicação plausível),“Último lance”, “O impenitente”
(no qual aparece o tema – comum a vários outros contos fan-
tásticos – do religioso que não consegue conter seus desejos
carnais, trazendo mortas ressuscitadas e cadáveres do fundo da
noite solitária de um convento) e “Vingança” (Pegadas, 1897). Do
mesmo período, lembramos também os exemplos de “O Esque-
leto”, de Machado de Assis (Contos esquecidos); “De além-túmu-
lo”, Magalhães de Azeredo (Alma primitiva, 1895); “Gapuiador”,
de Peregrino Júnior (História da Amazônia, 1936); “A podridão
viva”, de Amâncio Sobral (Contos exóticos, 1934); e “Os olhos que
comiam carne”, de Humberto de Campos (O monstro e outros
contos, 1937).
Pontuando ainda a permanência do fantástico gótico, que não
fica circunscrito apenas ao período romântico ou ultrarromânti-
co, poderíamos citar ainda “O satanás de iglawaburg”, de Adelpho
Monjardim (1944); “Os donos da caveira”, de Ernani Fornari (En-
quanto ela dorme e A Guerra das fechaduras, 1951), este com es-
tilo e referências explícitas a Álvares de Azevedo; “Alma das aves”
e “Pelo caiapó velho”, explorando o motivo da doença, como a le-
pra, ambos de Hugo de Carvalho Ramos (Tropas e boiadas, 1965);
abordando a temática do canibalismo, “Úrsula”, de Breno Accioly
(Os cataventos, 1962); “O crime daquela noite”, de Menotti del
Picchia (Contos, 1946), com a exploração do motivo da obsessão
e da loucura, trazendo a mesma temática do negro como excluí-
do, monstruoso, obsceno, disforme e um pária social.
Dentro desse grupo que rotulamos de “gótico”, é necessário desta-
car a contística de João do Rio, notadamente em “A mais estranha
moléstia” e “O bebê de tarlatana rosa”, ambientado no carnaval
do Rio de Janeiro (Dentro da noite, 1910); e a obra de Monteiro
Lobato, como o conto ao qual nos referimos acima, além de “Meu
conto de Maupassant” (Urupês) e de “Bugio Moqueado” (Negri-

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Métodos Fronteiriços

nha, 1925), em que se destaca o motivo do canibalismo na arqui-


tetura da vingança do temido coronel de Mato Grosso. E, mais
recentemente, cabe destacar a coletânea de contos de Braulio Ta-
vares, Sete monstros brasileiros (2014), onde há vários contos que
exploram esse viés, com seu cortejo de vampiros, zumbis e outras
assombrações que circulam pelo imaginário popular da região
do Nordeste.

Conto fantástico maravilhoso


O gênero cuja fronteira mais se aproxima do fantástico e cuja de-
finição teórica esteve a ele vinculada até estudos relativamente
recentes é o maravilhoso. No universo do conto maravilhoso, fa-
das, magos, gênios do bem e do mal encontram-se “naturalmente”
misturados aos vivos e simples mortais. Desconsiderando nes-
se estudo a classificação pontuada por Todorov, no conjunto de
contos maravilhosos a metamorfose é a regra geral, como ocorre
nos contos “Os Curiangos”, de Valdomiro Silveira (Os caboclos,
1920); de “O meu tio Iauaretê”, de Guimarães Rosa (Estas histó-
rias, 1962); e de “Teleco, o coelhinho”, de Murilo Rubião (Contos
reunidos, 1965), embora, é bom que se esclareça, os três contos
citados pudessem pertencer ao gênero fantástico puro, conforme
a categorização todoroviana, baseada na hesitação do leitor.
Nesse grupo de contos que propomos aqui, nem sempre ocorre
como nos contos de fadas, que ao final, príncipes casam-se com
camponesas, cavaleiros vencem os dragões e os pobres desco-
brem-se donos de reinos e fortunas inimagináveis. Como fica es-
tabelecido que os acontecimentos, aparentemente inexplicáveis,
são produzidos por deuses, mágicos e gênios, o saber sobre sua
origem é deixado de lado: ele se funda na aceitação dessas pre-
missas de base, que, às vezes, respondem por convenções míticas,
folclóricas e/ou alegóricas que não são questionadas. Sustentan-
do a nossa posição teórica, lembramos que na década de 60, an-
tes, portanto, da obra de Todorov, alguns autores estabeleceram
uma distinção entre “feérico” e “fantástico”, como duas espécies
do “maravilhoso”. Assim, o maravilhoso rose seria o feérico e o
maravilhoso noir seria o fantástico (VAX, 1974 [1960]). Na sua
grande maioria, os contos fantásticos brasileiros que estão nessa
categoria são baseados em lendas e mitos regionais, como por

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

exemplo “A feiticeira” e “Acauã” (Contos amazônicos, 1893), ave


agourenta da floresta amazônica que come cobra, do contista
Inglês de Souza.
Nesse conjunto, agrupamos também aquilo que poderíamos de-
nominar de “realismo mágico”, termo utilizado por Jorge Luis
Borges, em Ficciones (1944), para designar o tipo de ficção que se
produzia na América Latina. É o caso de “Luvibórix”, de Carlos
Emílio Corrêa Lima (1986), prosa poética, de leitura alegórica,
que promove o questionamento do sentido do mundo, fazendo
um misto de ficção científica e absurdo; e de “Um estrangeiro
muito estranho”, de Elias José (Um pássaro em pânico, 1977).
Como assinalamos, nessa categoria do chamado “realismo má-
gico” também impera a confusão teórica, pois entendemos que
narrativas do tipo “maravilhoso” e “fantásticas”, em termos de To-
dorov, vêm abrigar-se sob o mesmo rótulo, embora estabeleçam
pactos de leitura bastante diferentes. Se formos nos ater à pers-
pectiva todoroviana, ou seja, cernindo o fantástico em seu sen-
tido stricto, no conjunto de contos que retratam lendas e mitos
brasileiros encontramos os seguintes contos “fantásticos”: “Pedro
barqueiro”, de Afonso Arinos (Pelo sertão: histórias e paisagens,
1898); “Pelo caiapó velho”, de Hugo de Carvalho Ramos (Tropas
e boiadas, 1965); “Na tapera de Nho Tido”, de Valdomiro Silveira
(Os caboclos, 1920); “Contas brabas”, de Gastão Cruls (História
puxa história, 1951); “Navio das Sombras” e “Sonata”, de Érico
Veríssimo (Contos, 1987); “O cemitério” e “Sua Excelência”, de
Lima Barreto (Histórias e sonhos,1920); “Assombramento”, de
Afonso Arinos (Pelo Sertão: histórias e paisagens, 1898); e “Flor,
telefone, moça”, de Carlos Drummond de Andrade (1951).
Paralelamente, nesse mesmo grupo, encontramos contos de con-
figuração puramente “maravilhosa”, como é o caso de “Maria
Bambá”, de Luiz Canabrava (Sangue de Rosaura, 1954); “A ca-
deira”, de Veiga Miranda (Pássaros que fogem, 1980); “A Rita do
Vigário”, de Viriato Corrêa (Contos do Sertão, 1912); e “Hirano e
Garbha”, de Nestor Victor (Signos, 1897), conto maravilhoso de
valor alegórico, surpreendentemente moderno.
Com efeito, os mitos do interior do Brasil que povoavam a ima-
ginação do sertanejo foram incorporados à contística de vários
escritores, recebendo um tratamento narrativo que ora sugere o

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Métodos Fronteiriços

fantástico “puro”, ora aponta mais para o maravilhoso. Eles estão


fortemente presentes, por exemplo, na obra de Monteiro Lobato,
como em “Lobisomem”, “O saci” e “A mula-sem-cabeça” (Viagem
ao céu e O Saci, 1951c). O motivo do saci, negrinho de uma perna
só, com o gorro vermelho e fumando seu cachimbo, conhecido
por sua astúcia e malandragem, inspirou também o conto “O saci”,
de Hugo de Carvalho Ramos (Tropas e boiadas, 1965). O mesmo
acontece com o mito do lobisomem, que alimenta o fantástico
em diversos países e em diferentes momentos da história , como
por exemplo, o conto “O Lobisomem”, de Raymundo Magalhães
Jr. (Ilustração brasileira, abril/1923). Gastão Cruls, nascido no
Rio de Janeiro, em 1888, filho de um cientista belga aqui radi-
cado, escrevia na Revista do Brasil sob pseudônimo e também
foi o autor de vários contos sobre lendas e mitos do Brasil, entre
eles “Mãe d’água” (História puxa história, 1951) e “Noturno nº 13”
(Coivara, 1920). O contista Simões Lopes Neto resgatou em sua
obra uma série de lendas do sul do país, como o conto “O negri-
nho do pastoreio”, em Contos gauchescos e lendas do Sul (1964).
Enfim, o maravilhoso que recortamos aqui está ancorado em
um fundo legendário, calcado em crenças reais e profundas, cuja
permanência se deve à tradição popular, e que são vividas coleti-
vamente. Submetido a tratamentos literários diversos, esse vasto
material cultural do país veio alimentar uma longa tradição do
conto brasileiro, notadamente o conto fantástico, que aqui, como
explicitamos, abriga igualmente as categorias de “maravilhoso” e
de “realismo mágico”.

Conto fantástico filosófico, metafísico


Metafísica e fantástico interessam-se pelos mesmos objetos: a per-
cepção extrassensorial, aparições, visão através de corpos opacos,
entre outros temas afins. Porém, a metafísica tem a pretensão de
ser uma ciência e para isso faz uso de técnicas científicas. O au-
tor fantástico não procura saber se os fenômenos paranormais
existem ou não; ele tende, ao contrário, a negá-los e a exibir sua
impossibilidade, que, “todavia acontece”. Assim, se fantástico e
metafísico têm o mesmo ponto de partida, eles se orientam em
direções diametralmente opostas. Quando as velhas superstições
foram postas em xeque, propiciaram o nascimento de duas disci-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

plinas opostas e complementares, visando satisfazer a necessida-


de de saber e a necessidade de sentir (VAX, 1974, p. 24).
Sabemos que qualquer que seja o curso que a referencialidade
externa venha a tomar no texto, a ancoragem na realidade cons-
titui uma etapa obrigatória na narrativa fantástica. Ora, no final
do século XIX, a psiquiatria tornava-se uma ciência médica au-
tônoma e autores como Guy de Maupassant, Edgar Allan Poe e
Prosper Mérimée produziram discurso simétrico e interpelador
desse saber pelo viés da literatura. No Brasil, cuja literatura estava
fortemente marcada pelo modelo europeu, sobretudo o francês,
o pensamento positivista tomou conta das mentes e dos corações
da época. Assim, o fantástico, como modo de reação ao otimismo
excessivo do pensamento científico, às pretensões da razão e aos
meios de conhecimento que a suportam, ao priorizar o subjetivo,
traduz uma crise de percepção que evidencia o descompasso de
um mundo que está longe de ser ordenado por uma lógica racio-
nal. A escritura do sobrenatural encena justamente esses instan-
tes em que a natureza parece escapar à consciência.
Em novembro de 1974, a revista Planeta publicou sete contos iné-
ditos, em caderno especial dedicado ao conto fantástico brasilei-
ro; entre esses contos, consta “Os Mensch(s)”, de Flávio Moreira
da Costa, que por ser um conto minimalista, nos permitimos re-
produzir aqui em sua quase totalidade:
Os menschs saem de dentro do corpo e só voltam a ele para se ali-
mentarem. O primeiro que comem é o estômago, quando novamente
dentro do corpo. [...] Quando um mensch volta a seu corpo uma vez
mais, come o cérebro. Depois, abandona o corpo e desaparece. Sete
dias leva o cérebro para crescer de novo. E o estranho ser volta e come
as entranhas, cada vez que volta come uma parte: o fígado, os rins, os
intestinos etc., e em cada sete dias o fígado, os rins, os intestinos etc.
nascem de novo. O tipo de alimentação dos menschs é conhecido
como autociclagem. No entanto, o que a ciência ainda não conseguiu
descobrir é para onde vai o mensch cada vez que abandona seu corpo
(COSTA, 1974, p. 69).
O texto se constitui pela enunciação de uma certeza seguida pela
apresentação de um questionamento. O texto descreve a rotina
dos menschs, suas práticas alimentares e o modo de regeneração
dos órgãos atacados por eles. No final, é apresentada a incerte-

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Métodos Fronteiriços

za atual sobre o destino do mensch uma vez fora do corpo. Ora,


nomear e descrever são a prática da ciência. Em “Os mensch(s)”,
os protocolos discursivos do método científico são seguidos à
risca, mas ao final da leitura, o fenômeno descrito permanece
inalcançável. A dimensão paródica do texto é, pois, evidente, as-
sim como o desmonte da certeza que toda ciência se propõe a
veicular. O questionamento pela incerteza, premissa fundamen-
tal do fantástico, dirige-se ali, ao próprio processo de formação
do conhecimento. Desse modo, a curtíssima narrativa de Flávio
Moreira da Costa insere-se plenamente no espírito que animou a
literatura fantástica desde os seus primórdios no século dezoito,
ou seja, o questionamento dos saberes e do sentido da vida forne-
cidos pelos grandes discursos totalizantes, enveredando-os pelo
caminho da incerteza e da desestabilização.
Esse tipo de conto marcou sua presença desde o início daquilo
que se pode chamar de “literatura brasileira”, isto é, desde os me-
ados do século XIX. Em “O imortal”, publicado originalmente em
A Estação (1882), e “A segunda vida” (Histórias sem data; Gazeta
Literária, 1884), Machado de Assis trata o problema da loucu-
ra e do sentido da vida, questionando-se se podemos ou não ter
uma segunda vida na terra. A relação entre a vida e a morte e o
sentido de ambas também são discutidos no conto filosófico e
alegórico “Delírio”, de Afonso Schmidt (Curiango, 1935), assim
como a loucura proveniente de um trauma é tratada no conto “O
soldado Jacob”, de Medeiros e Albuquerque (Um homem prático,
1898). No conto “O homem que morreu”, Medeiros hesita entre a
narrativa fantástica em primeira pessoa, o relato de um homem
possuído e a expressão de um sentimento espírita. Há no conto,
duas instâncias narrativas: uma, em primeira pessoa, que incor-
pora o discurso do louco, em contraposição ao do médico e ao da
sociedade a respeito do mal que lhe acomete; uma outra instân-
cia em terceira pessoa que intervém, entre parênteses, ao final da
narrativa, e como narrador extradiegético, que observa a maneira
como o outro escreve a carta e encerra o conto, ou seja, o momen-
to da possessão e da morte. O narrador de Medeiros, que afirma
em certo momento, “eu sou o homem que morreu...”, lamenta não
poder revelar sua visão de além-túmulo sem sofrer o desdém da
amada, do médico, da sociedade e até dos outros alienados ali
internos. Assim, o estigma social, portanto, é o que martiriza o

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

louco de Medeiros e Albuquerque. A temática da falta de sentido,


do desgosto da humanidade e do absurdo da existência estão pre-
sentes nos contos “O mensageiro”, de João Alphonsus (Eis a noite,
1943), “A Gargalhada”, de Orígenes Lessa (Passa Três, 1935) e em
“A escuridão”, de André Carneiro (Diário da nave perdida, 1963).
A ciência e suas contradições, incapazes de trazer respostas para
as inquietações do homem, são motivo recorrente na contística
do “naturalista” Aluísio Azevedo: “Demônios” (1893), “Vícios”,
ambos de vocação acentuadamente naturalista; no segundo conto,
Azevedo nos mostra as taras de família e a relação doentia entre
um pai viciado, atormentado pela culpa, e um filho que adoece
em consequência dos vícios do pai, entregando-se à dependência
da morfina; “Heranças”, dialoga também com a estética natura-
lista, conforme sugere o próprio título, e descreve, à moda folhe-
tinesca e com arrebatamento dramático, as brigas entre marido,
mulher e filho, nas quais imperam o ódio e o ressentimento; o
conto termina fechando o ciclo de uma fatalidade trágica, ou seja,
o peso inexorável de uma herança maldita (AZEVEDO, Pegadas,
1897).
O mesmo ocorre com “A eutanásia” (Ao embalo da rede, 1951), de
Gastão Cruls, conto em que impera a crueldade; ao expor a ciên-
cia e suas contradições, o conto estrutura-se na oposição entre o
saber da ciência e a fatalidade do destino. Um pouco mais tarde,
“Máquina de ler pensamentos” (Monstros gênios, 1965), de Lília A.
Pereira da Silva, apresenta o relato de uma experiência científica,
aproximando-se da ficção científica.
Pela modernidade e originalidade do tratamento, à maneira dos
“fragmentos”, reproduzimos aqui o conto minimalista “Visão
de Nietzche”, de Monteiro Lobato (Mundo da Lua e Miscelânea,
1951b), em que o autor dialoga com o filósofo alemão, endossan-
do a visão desencantada e cética da humanidade que marcou a
sua filosofia:
Não forma um conjunto a humanidade, quer Nietzsche, e sim multi-
plicidade indissolúvel de fenômenos vitais, ascendentes e descenden-
tes – sem mocidade a que suceda maturidade e sem velhice. As cama-
das confundem-se, superpõem-se – e após milhares de anos poderão
surgir tipos de homens mais jovens do que os de hoje. A decadência
existe em todas as épocas: por toda parte há resíduos e materiais em

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Métodos Fronteiriços

decomposição; o processus vital elimina esses elementos de regressão


– dejecta. (p. 26, grifos do autor)

Conto fantástico esotérico


Na narrativa fantástica, os temas e os motivos arrolados são tri-
butários de contextos particulares que podemos facilmente dis-
cernir. O ocultismo, ao final do século XIX, é ao mesmo tempo
um saber e uma prática, denunciando o interesse da época pelo
mistério, o paranormal e o esotérico. Este, como todas as formas
de esoterismo, definiu-se a partir de uma crise: aquela que, nesse
fim de século, opõe uma sociedade voltada maciçamente para o
naturalismo e o positivismo a um expressivo número de pensado-
res preocupados em devolver ao homem uma alma e inscrever a
vida humana em outras esferas que não as de um evolucionismo
biológico. Se a pesquisa mística orienta dessa forma os autores
para um mundo invisível, embora natural, ligado a um incons-
ciente coletivo do qual não fazem senão explorar as ressonâncias
poéticas, uma certa pesquisa científica, pretensamente livre de
interrogações religiosas, vai demonstrar a possível existência de
um universo paralelo e um espaço até então desconhecidos. O
espiritismo é encarado como ciência e muitos dos membros de
associações são pessoas cultas e/ou cientistas, e estudam o fenô-
meno à luz das ciências. O ocultismo terá como tarefas desvelar e
gerenciar todos os mistérios, sobretudo os que até então tinham
alimentado o imaginário fantástico, num contexto de crise espi-
ritual. O ocultismo seguirá duas direções diferentes: a primeira,
de essência psicológica, repousa sobre a noção de inconsciente; a
segunda tenta captar cientificamente um universo paralelo, cujo
inconsciente se afigura como uma de suas manifestações percep-
tíveis.
Os contos “Confirmação”, de Gonzaga Duque (Horto de mágoas,
1914) e os contos de Coelho Neto “O raio de sol”, “Trovoadas se-
cas”, “Conversão” e “O herdeiro” (Contos da vida e da morte, 1927)
remetem todos ao espiritismo, tratado como doutrina científica,
mas deixam dúvidas sobre acreditar ou não em sua existência.
Nos casos citados, trata-se do ocultismo kardecista, com exem-
plos de almas que retornam ao mundo dos vivos, espíritos que se
reencarnam e relatos de experiência científica com a transplanta-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

ção de almas. A discussão sobre acreditar ou não na imortalidade


da alma está presente em “Impregnação”, outro conto de Coelho
Neto (1927), e a especulação a respeito dos limites e poderes da
homeopatia é ficcionalizada por Machado de Assis em seu con-
to “O imortal” (1882). Muitos dos contos que formam a segunda
parte do livro Histórias para lembrar dormindo (2013), de Braulio
Tavares, e que o autor denomina “Antimatéria”, em oposição à
primeira parte da coletânea, “Matéria”, podem ser elencados nes-
se rubrica.

Conto fantástico parodístico


O conto fantástico de humor veicula um discurso negativo e pa-
rodia os referenciais do mundo da realidade. São narrativas que
se apoiam no paradoxo e no absurdo, exibindo assim o avesso
dos discursos das certezas e verdades, os quais tentam dar con-
ta dessa mesma realidade. Aparentemente são excludentes, pois
quando rimos de uma história de terror, espera-se que esta se
dissipe. Mas essa relação pode ser bem mais sutil, pois existe um
parentesco secreto entre o riso e o medo. Afinal, as máscaras do
Carnaval não representavam primitivamente a face da morte? Da
mesma forma, como vimos aqui, o riso diante do grotesco não é
o mesmo do diante do cômico.
O grande mestre da ironia no Brasil é, sem dúvida, Machado de
Assis, notadamente em “As academias de Sião” (1884), em que o
autor se utiliza de uma situação de sobrenaturalidade para fazer
crítica irônica dos debates acadêmicos de sua época de seus pares,
que por conta de um ainda incipiente público leitor, animavam a
vida literária promovendo intermináveis e infrutíferas discussões
nas academias e clubes literários. Em “O anjo das donzelas” (Jor-
nal das Famílias, 1864), conto ao qual Machado atribui o epíteto
de “fantástico”, vemos o exagero folhetinesco anunciado logo no
início do texto, onde o autor alerta o leitor: “Cuidado, caro leitor,
vamos entrar na alcova de uma donzela”. O mesmo exagero e a
presença de clichês folhetinescos aparecem no conto “Um sonho
e outro sonho” (A Estação, 1892), paródia do tom melodramático
que os romances-folhetim imprimiam aos seus enredos, imitan-
do a retórica e o ritmo da literatura “frenética”, tão ao gosto de
alguns escritores franceses do século XIX. Nos contos “Aos vinte

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Métodos Fronteiriços

anos”, “Uma lição” e “Como o Demo as arma” (Demônios, 1893),


Aluísio Azevedo brinca com a figura do demônio, inspirado nas
leituras mal digeridas dos contos de Théophile Gautier – que é
citado explicitamente – feitas por uma moça ingênua e romântica,
sem a menor capacidade de discernimento.
Baseado no lançamento vitorioso, nos Estados Unidos, de Or-
gulho, preconceito e zumbis (2009), livro de Seth Grahame-Smith,
no qual os sempre atuais “mortos-vivos” invadem o cenário do
clássico de Jane Austen, o suplemento Megazine, do jornal O Glo-
bo, pediu a autores brasileiros que repetissem a ideia, tomando
como base para os mash-ups literários os clássicos da literatura
brasileira. Parodiando então a obra Memórias póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis, Fernando Ceylão escreve o conto
“Memórias nunca póstumas de um vampiro” (Megazine, O Globo,
24/04/2010). Em diálogo crítico com o famoso personagem do
defunto-autor, as memórias de um “morto-vivo” não poderiam
jamais ser “póstumas” por força da sua condição, e o vampiro
moderno passa a ser um voraz devorador de mulheres e de livros.
A partir daí, Ceylão reatualiza a obra de Machado, evocando
personagens femininas da literatura nacional e universal, trans-
formadas em personagens de novelas televisivas brasileiras com
forte apelo popular. Insere-se nessa rubrica o conto “Os mortos-
vips”, de Braulio Tavares (Sete monstros brasileiros, 2014), cuja in-
tenção parodística fica logo evidenciada na título.
Sem anular o efeito de fantástico que um texto possa produzir, o
humor pode ser evidenciado pela contradição entre duas ordens
possíveis com as quais um gênero trabalha. Pois, como lembra
Milan Kundera, “o humor, então, não é o riso, a caçoada, a sáti-
ra, mas um tipo especial de comicidade que, segundo Paz, ‘torna
ambíguo tudo que atinge’” (KUNDERA, 1994, p. 5). E acrescenta
mais adiante: “O humor: centelha divina que descobre o mundo
na sua ambiguidade moral e o homem em sua profunda incom-
petência para julgar os outros: o humor: embriaguez da relativi-
dade das coisas humanas; estranho prazer nascido da certeza de
que não há certeza” (p. 30).

Conto fantástico cruel


A crueldade, prática do comportamento humano que se opõe à

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

compaixão e à generosidade, está presente em vários contos fan-


tásticos. Às vezes, é o seu excesso que torna um relato fantástico,
como é o caso do conto “Causa secreta” (Várias histórias, 1896),
de Machado de Assis. A perversão, invenção humana, é levada ao
extremo e Machado busca situá-la no mundo animal, associando
a ideia de que existe uma animalidade em cada homem. Nesse
conto, o Outro é visto como objeto e não como sujeito, e o fan-
tástico está ligado à loucura e aos distúrbios da mente; seu efeito
surge a partir de um olhar novo sobre o real. A perversão aqui é
a do sujeito que goza com seu ato, implicando a relação complexa
entre dominante e dominado; daí o horror que provoca – é sabi-
do que os pervertidos sexuais sofrem com sua própria perversão.
Da mesma época, podemos evocar o conto “Gavita”, do simbolis-
ta Nestor Victor, em Signos, de 1897.
A crueldade que o seu exercício supõe torna-se um enigma, uma
patologia, e tem a ver com loucura e obsessões. Este é o caso
do conto “O telegrama de Artaxerxes”, de Aníbal Machado (Vila
Feliz, 1944), que retrata uma obsessão levada ao extremo, provo-
cando a desgraça de toda a família e de todos que a rodeiam; e
de “Circuito da Gávea”, de Gastão Cruls (História puxa história,
1951), conto fantástico associado ao grotesco, em que a figura do
louco assume proporções descomunais.
Na série Panorama do conto brasileiro, organizada por Jerônimo
Monteiro, o volume 9 é dedicado ao “Conto trágico”. Aí, encon-
tramos vários contos cruéis que podemos aproximar do fantásti-
co, seja pelo excesso de morbidez e crueldade, seja pela presença
de forças sobrenaturais. São eles: “Estaqueado”, de Alcides Maia
(Tapera, 1911); “Possessão”, de Domício da Gama (Histórias cur-
tas, 1901); “Miss Elkins”, de Léo Vaz (Ritinha, Monteiro Lobato
e cia..., 1923). Evocando o tema da loucura, o conto “O hóspe-
de”, de Lúcio de Mendonça (Horas de Bom Tempo: Memórias e
Fantasias, 1901), exibe o tema da morte do filho, assassinado por
engano pelos pais gananciosos, quando estes tentam roubar-lhe
durante a noite, confundindo-se. Na mesma coletânea, há ain-
da “João Peba”, de Luiz Cannabrava (Sangue de Rosaura, 1954),
em que a crueldade está associada ao grotesco; “Uma escrava”, de
Magalhães de Azeredo (Alma primitiva, 1895), conto cruel, que
retrata o problema da escravidão; “O presente de bodas”, de Veiga
Miranda (Pássaros que fogem, 1908), que encena o peso inexorá-

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Métodos Fronteiriços

vel da fatalidade; “A besta”, de Viriato Correa (Contos do Sertão,


1912); e “Mau sangue”, de Coelho Neto (Banzo, 1912), trazendo a
temática do mau-olhado, que se manifesta sem justificativa plau-
sível.
Na obra de vários autores brasileiros como Valdomiro Silveira,
sobretudo em Os caboclos, de 1920; Hugo de Carvalho Ramos,
em Tropas e boiadas, 1965; e Gastão Cruls, em Contos reunidos:
Coivara, Ao embalo da rede, Quatuor e História puxa história, de
1951, também podemos elencar uma significativa presença da
crueldade em vários contos, seja pela exibição da violência social,
notadamente a que acontece no campo brasileiro marcado pelas
relações de exploração, seja pela temática da loucura e da dege-
neração pela doença.
Os contos de Humberto de Campos, reunidos em O monstro e
outros contos, de 1937, exploram fartamente a crueldade ligada ao
macabro, ao escatológico, à morbidez e à fatalidade, assim como
é o caso de Viriato Correa, em Novelas doidas (1921) e Histórias
ásperas (1928). Também na contística de Medeiros e Albuquer-
que, encontramos vários exemplos que exploram a temática liga-
da à crueldade : “Mãe Tapuia”, “Bichaninha”, “Joaquina da onça” e
“Ide, fazei o bem” (Um homem prático, 1898).
Mais recentemente, temos os casos de Breno Accioly, em “Os
cata-ventos”, da obra de mesmo título, de 1962; de Adelino Ma-
galhães, em Casos e impressões, de 1963; e, nos dias atuais, des-
taca-se a contística de Sérgio Sant’Anna, sobretudo em O voo da
madrugada (2003).

Conto fantástico absurdo-existencial


Aos contos que suscitam uma reflexão sobre o sentido e o lugar
do homem no mundo, perdido em uma engrenagem que não
compreende e sujeito à lógica do puro acontecimento, chamamos
aqui de conto absurdo-existencial. São textos nos quais surge a
problematização da crise do sujeito moderno, a consciência da
coisificação do homem e da perda da individualidade, dissolvida
na “modernidade líquida”, como designa Zygmunt Bauman.
É praticamente um consenso entre os críticos que Kafka é o ins-
taurador do fantástico moderno. Foi com Kafka que o esquema

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

tradicional do fantástico que, segundo Todorov, resumia-se à he-


sitação entre o natural e o sobrenatural, incorporou a alegoria.
Como argumenta José Paulo Paes:
Nos textos kafkianos, o lógico e o absurdo, o racional e o irracional, o
real e o alegórico se amalgamam tão intimamente que para conceitu-
ar-lhes a “fantasticidade” é mister construir um outro quadro teórico
de referência capaz de subsumir-lhe a radicalidade. O ponto de par-
tida para tanto seria inverter a direção habitual da leitura e, em vez
de ler o texto a partir do mundo de que ele se inculcaria a mimese
ou representação, ler o mundo a partir do texto, quando então outros
possíveis da realidade que não o possível unívoco imposto pelo senso
comum poderão revelar-se-nos. Com isso, a fantasticidade estará no
próprio ato de inversão do sentido da leitura, inversão que subverte
inclusive as noções tradicionais de alegórico ou poético, na medida
em que anula o postulado da anterioridade e subordinação do mundo
e do texto, conferindo a ambos estatuto de equivalência (1985, p. 16).
Apesar de, na Introdução à sua antologia, Braulio Tavares desta-
car a dificuldade de uma definição para o fantástico, ele nos for-
nece uma caracterização bastante pertinente sobre o gênero. Diz
ele: “A narrativa fantástica é uma forma de fazer com que o que
até então não tinha sido tocado possa despertar. Há um antigo
postulado da linguagem cinematográfica: ‘O ator não ilumina-
do não existe’” (TAVARES, 2003, p. 14). Assim, longe de ser um
simples ornamento retórico, a literatura fantástica é a expressão
do mal metafísico do ser e da ordem insólita do mundo, que so-
mente a irrupção do fenômeno estranho permite revelar. O fan-
tástico moderno encontra seu fundamento em tudo que gravita
em torno e dentro do próprio homem e o deixa paralisado e in-
capaz diante da força de uma consciência esvaziada pela angústia.
Um impensável social ou um inconsciente pessoal deixa-se então
desvelar, confusamente, e segundo uma lógica arbitrária regida
pelo acontecimento em sua essência. Citando David Roas, Elton
Honores afirma que: “Lo que caracteriza a lo fantástico contem-
poráneo es la irrupción de lo anormal en un mundo en aparencia
normal, pero no para demonstrar la evidencia de lo sobrenatural,
sino para postular la posible anormalidad de la realidad” (ROAS,
2001, apud HONORES, 2010, p. 61).
Na ficção brasileira, destacamos aqui o caso de “O Máscara”, de

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Métodos Fronteiriços

Nestor Victor (Signos, 1897), conto fantástico ao modo kafkiano,


com forte teor alegórico. Entretanto, seria oportuno observar que,
apesar da novidade e ineditismo da obra de Victor, que antece-
de algumas décadas a do contista tcheco, a produção simbolista
brasileira teve muito pouca aceitação e reconhecimento por parte
das academias e dos críticos. Podemos citar ainda os exemplos de
“Politipo”, de Aluísio Azevedo (Demônios, 1893), aproximando-se
do “absurdo” ao tratar da temática da impessoalidade. O indiví-
duo, ao diluir-se no meio da massa, não é ninguém em particular
e ao mesmo tempo pode ser qualquer um, pois sua cara, seu tipo
é tão comum que ele pode representar qualquer pessoa. Trata-se,
portanto, de um conto bastante moderno, lembrando O Homem
na multidão, conto de Edgar Allan Poe, fundador da modernida-
de na perspectiva de Baudelaire, seu tradutor na França.
Do mesmo autor, caberia destacar o exemplo do conto “Os demô-
nios” (1893), no qual Azevedo traz à cena uma paisagem protei-
forme, transformando a paisagem terrestre que se degenera em
um ambiente para fora do tempo e do espaço imaginável, numa
sequência de metamorfoses que mesclam os elementos: água,
terra, ar e matéria mineral. O cenário alucinante evocado nessa
narrativa é a metáfora da criação tanto divina quanto humana.
Reconhecemos nitidamente nesse relato a liberação das amarras
do pensamento racional e a vontade de fraturar a realidade e o
gênero literário que deu suporte a essa visão de mundo, isto é,
o naturalismo. Por detrás da deformação grotesca que Azevedo
imprime à paisagem que deveria servir de referencial, insinua-se
a presença de um impensável e abre-se a possibilidade de criar
o mundo, mas, ao mesmo tempo, de dissolvê-lo como realidade
objetiva, pois a linguagem torna-se incapaz de representar o in-
forme, ou seja, a completa ausência de forma.
O grande representante brasileiro desse tipo de conto que cha-
mamos aqui de absurdo-existencial é Murilo Rubião. Antonio
Cândido aponta a publicação de O ex-mágico (1947) como o mo-
mento inaugural do viés do insólito absurdo na ficção brasileira
(CÂNDIDO, 1987, p. 208), seguido pelo conto “O iniciado do
vento”, de Aníbal Machado, que com o lirismo que marca a obra
do autor, segue pela mesma vereda do fantástico absurdo. Como
Pererico, personagem de “A fila”, alguns vêm de pequenas cida-
des do interior, de sociedades tradicionais e arcaicas. Seus nomes,

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

quando os têm, não designam pessoas, mas detectam sombras;


ficam assim reduzidos a meros “significantes”. Eles se deslocam
obedecendo a novos e imperiosos comandos, os da cidade grande,
motor do processo de modernização. O mundo que vão encon-
trar é o da cidade burocrática, espaço codificado pela linguagem
escrita; o prédio em que se situa a firma é um lugar de confina-
mento e de impessoalidade. Os que estão na “fila” aparentemente
esperam para falar com a gerência, porém a finalidade se reduz à
própria espera. O conto “O Edifício” pode ser considerado como
paradigmático da obra do autor e de sua visão de mundo. Nele, o
engenheiro João Gaspar lança-se à construção de um edifício ao
qual se podem acrescentar sempre novos andares. Embora não
conhecesse os objetivos da obra, o jovem considera que ao se-
guir estritamente as recomendações dos “falecidos idealizadores
do projeto”, poderia levar a cabo a construção do “octogésimo
andar” do “maior arranha-céu do mundo”. Apesar de advertido,
João Gaspar assume o desafio de começar o trabalho. Contudo,
o engenheiro vê-se subitamente ultrapassado por sua obra, que
ganha vida própria e não mais responde à sua vontade (RUBIÃO,
1993, p. 41). Como metáfora da literatura realista, João Gaspar,
“meticuloso e detestando improvisações”, acreditava que bastava
“fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar um
boletim destinado a registrar as ocorrências do dia” para que sua
obra fosse levada a cabo com sucesso (p. 37). Quando a festa de
inauguração foge a seu controle, ele tenta descobrir “o erro em
que incorrera”. Impotente diante dos fatos que não compreende
e nos quais não pode intervir, o personagem permanece em uma
atitude passiva, limitando-se a levantar hipóteses, sem conseguir
chegar a uma conclusão (BATALHA, 2003).
Trazendo a discussão para a nossa contemporaneidade, desta-
camos que na coletânea Brilho nos olhos mortos e outras histó-
rias (2004), organizada por Vander Melo Miranda, encontramos
vários exemplos de metacontos, entre os quais “Convenção das
máscaras”, de João Silvério Trevisan, conto kafkiano, de leitura
alegórica; “Mosca morta”, de Luiz Vilela, conto também que ex-
plora o absurdo de matriz kafkaniana, no qual impera a lógica
circular dos acontecimentos; e “Labirintos”, de Álvaro Cardoso
Gomes.
Na mesma linha do fantástico absurdo moderno, podemos evo-

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car os contos “A lei do silêncio”, em Os banheiros (1979), de Victor


Guidice; “São João mão única”, em Depois do sol (1965), de Igná-
cio de Loyola Brandão; “Um julgamento” e “Quindim”, ambos em
Os cata-ventos (1962), de Breno Accioly; além de “Desligado” e
“Talismã”, de Ivan Ângelo, em O ladrão de sonhos e outras histórias
(1994), conto fantástico de acentuado teor existencial.

O conto fantástico policial


Mesclando dois diferentes protocolos discursivos: o do romanes-
co fantástico e o do gênero policial, esse tipo de conto tem uma
presença recente na contística brasileira, seguindo a trilha dos
romances-reportagem, modelo narrativo comum a vários dos
novos escritores.
No caso do romance policial, não é a subjetividade de persona-
gens como Dupin, Sherlock Homes ou Hercule Poirot, ou sua
consciência dos fatos que os impulsiona à decifração, mas sim a
sua capacidade intelectual que se vê estimulada e suscita a von-
tade de resolver o mistério, fator associado a um gênero bem de-
finido que é o policial. Se o mistério estabelece um elo entre o
fantástico e a ficção policial, a função que a eles é atribuída não
é a mesma: lúdica e intelectual para os detetives e seus agentes
investigadores. O enigma se coloca assim fora do personagem, e
sua interpretação estará em consonância com a consciência que
os outros personagens terão do mesmo fato, ao passo que, na lite-
ratura fantástica, personagem e fenômeno se confundem em uma
cumplicidade que não pode ser compartilhada pelos outros. Nor-
malmente, o relato policial e de mistério se encaixam no conjunto
mais amplo de obras chamadas “realistas”, qualquer que seja o
programa estético que o termo compreenda, e sabemos que este
varia necessariamente em função da imagem de realidade que se
tem em uma determinada época e em uma determinada cultura
de referência. As técnicas dos dois gêneros são bastante diferen-
tes: enquanto no relato policial o “sobrenatural”, colocado geral-
mente logo no início, só aparece para ser suprimido pela força da
razão que fica com a palavra final, o fantástico procede de modo
inverso, ou seja, o sobrenatural, ausente no começo da narrativa,
prevalece ao seu final. Ora, no conto fantástico policial, vemos
um acúmulo de índices à maneira de um romance policial, assim

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

como a tensão entre o fato narrado e a maneira como é narrado,


mas os motivos do “crime” são insólitos e escapam à inteligên-
cia do detetive investigador. A técnica da surpresa, utilizada pela
literatura fantástica, pela novela policial ou pelo surrealismo se
vê substituída pela “preparação de uma expectativa” que não se
concretiza.
Um exemplo que poderíamos evocar aqui é o conto “A expedição
de Montserrat”, de Braulio Tavares, da coletânea Sete monstros
brasileiros (2014). Embora seja levantada a possibilidade de que
o Carbúnculo, uma espécie de lagarto mítico protetor das jazi-
das de ouro, fosse o responsável pelas estranhas mortes ocorridas
durante a expedição, sua intervenção sobrenatural não justifica
todas elas, nem tampouco o misterioso desaparecimento de um
de seus integrantes. Há várias hipóteses, mas todas elas são exclu-
dentes entre si; resta o fato ocorrido, cujo significado ultrapassa a
razão e as especulações detetivescas dos narradores.

O conto fantástico moderno: metaconto


Nesse último conjunto de contos, sobressaem os múltiplos jogos
metaficcionais e de estilo, a autoconsciência da linguagem e a
autoreferencialidade da própria literatura. Conforme define com
pertinência a produção fantástica moderna, Elton Honores es-
clarece :
Llamamos elementos estruturales a los componentes de la propia
composición moderna que permiten establecer, em algunos casos, el
efecto fantástico (como los juegos espacio-temporales) que generan
en el lector/receptor. A este se agregan el componente dialógico de
la literatura (la intertextualidad), la maior participación del lector (el
final abierto) y la expresión de la subjetividad (el mundo interior del
narrador). (HONORES, 2010, p. 195)
De nossa parte, entendemos que o fantástico expressa aquilo que
representa a gratuidade pura da própria ficção, o rompimento da
cadeia de causalidade, abrindo-se para a total liberdade do leitor,
que intervém no texto livremente, através de seu imaginário, e
contribui para a ruptura entre o literário e a realidade. Colocando
a nu o caráter arbitrário da razão e da realidade, ele convida o
leitor a instalar um sentido para o texto, mas, ao mesmo tempo,
o frustra em suas expectativas, pois suas tentativas esbarram na

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própria multiplicidade de soluções possíveis, sendo todas elas ex-


cludentes entre si, o que leva o leitor a refletir sobre a necessidade
– ou não – de terminalidade e completude para a matéria de ficção.
A problematização da linguagem e o questionamento da pró-
pria escritura que a narrativa fantástica exibe em vários contos
da contemporaneidade não descartam a presença dessa vocação,
já presente em contos de períodos mais distantes. Esse é o caso
de Alexandre e outros heróis (1938), coletânea de “causos”, cuja
introdução é um metaconto de Graciliano Ramos, ilustrando a
dinâmica do conto oral e discutindo sobre o contexto em que
ocorrem as narrativas de transmissão oral; “Paulo”, enfocando os
delírios de um moribundo que se vê dividido em um duplo seu,
também escritor; “Uma visita”, conto fantástico que ironiza a re-
lação entre os falsos e/ou bons escritores, em Insônia (1955), tam-
bém de Graciliano Ramos; além do conto “O narciso em equação”,
em Negra a caminho da cidade (1942), de João Pacheco. Outra
referência incontornável é a metanarrativa “Um ponto no círculo”,
em Nove, novena (1966), de Osman Lins.
Para Murilo Rubião, o grande enigma da existência humana está
intimamente vinculado à questão da linguagem. O crítico Álvaro
Lins, em seguida ao lançamento do primeiro livro de Murilo – O
Ex-mágico, de 1947 – embora reconheça o ineditismo da obra, vê
justamente na inconclusão e na falta de “definição” que orientam
a estrutura narrativa dos contos aí reunidos, uma restrição a seu
valor literário. Para ele:
Entre os dois mundos, o real e o suprarreal, ficou sempre, em O Ex-
mágico, alguma coisa perturbando o estado emocional da ficção, de
modo que permanecemos insatisfeitos quanto aos resultados, que, no
caso, não devem ser apenas literários, também psicológicos e huma-
nos, de modo geral. (LINS, 1963, p. 267)
De fato, a inconclusão apontada por Álvaro Lins pode ser enten-
dida como emblemática na obra de Murilo Rubião, para o qual
a literatura, impotente para transformar a realidade das coisas,
afigura-se, ao mesmo tempo, como única possibilidade de des-
velamento de sentido para aquilo que ultrapassa a compreensão
humana. Ao escritor, que “apreende nas coisas um sentido que
escapa aos outros”, talvez não seja possível trazer a “lua” para sa-
tisfazer os desejos cada vez mais prementes de Bárbara, persona-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

gem do conto homônimo, mas, no momento em que o marido,


paralisado pelo provável fracasso de sua empreitada, pensa em
abrir mão de seu projeto, é surpreendido pelo singular pedido da
mulher, pois ela, após esgotar uma sequência de desejos cada vez
mais inatingíveis, “não pediu a lua, porém uma minúscula estrela,
quase invisível a seu lado. F[oi] buscá-la” (RUBIÃO, 1993, p. 33).
Em Murilo Rubião, somos levados a crer que a opção pelo conto
fantástico não foi aleatória, mas sim correspondeu ao reconheci-
mento deste modo de narrativa como a expressão mais evidente
de uma literatura que se assume como tal e, por isso mesmo, traz
consigo os questionamentos do estatuto da ficção e da própria
função da criação literária.
Por outro lado, é também através da literatura que se apresenta a
possibilidade de se captar os vazios da realidade e do real. A refle-
xão sobre as limitações e o alcance dessa possibilidade constitui, a
nosso ver, a temática central da obra de Murilo Rubião, que oscila
entre a euforia e o desencanto em seu gesto criador (BATALHA,
2003). Os contos de Rubião podem ser lidos como avatares do
próprio trabalho de construção literária, no qual o artista, tal qual
o pirotécnico Zacarias, espera colorir o mundo para que, final-
mente, o “branco tome conta de toda a terra”. Afinal, o branco
não representa ausência de cor e, ao mesmo tempo, encontro de
todas as cores? Trabalho de escritura que se desdobra, através das
múltiplas metamorfoses, na incessante busca de sentido e refle-
xão consciente sobre o papel e os limites da literatura – encantos
e desencantos, euforia e frustração do artista criador – eis a chave
de leitura com a qual podemos interpretar os contos desse escri-
tor.
Na contemporaneidade, podemos destacar o exemplo de Rubens
Figueiredo, em “O caminho do poço verde” (O livro dos lobos,
1994), metaconto fantástico que lembra a estrutura do conto
“Epidólia”, de Murilo Rubião, encenando a busca pelo sentido e
as diferentes etapas do processo de escritura. Caberia mencionar
também o conto “O escoteiro e a meretriz”, de Braulio Tavares,
que aparece na segunda parte do volume de contos do autor, His-
tórias para lembrar dormindo (2013).

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Métodos Fronteiriços

Conclusão
Ao fim de nosso percurso panorâmico, seria pertinente destacar
que, durante os primeiros passos daquilo que se pode chamar
de “literatura brasileira”, ou seja, nos meados do século XIX, os
modelos adotados estavam todos fortemente marcados pelas li-
teraturas produzidas nas metrópoles europeias, notadamente
da França e da Inglaterra. O livro de contos fantásticos Noite na
Taberna, de Álvares de Azevedo, descende em linha direta dos
contos de Hoffmann e de Byron, que o escritor brasileiro tanto
admirava. A mesma inspiração alimenta uma parte da produção
ficcional fantástica de Machado de Assis, assim como a de muitos
outros escritores da época. Se os contos aos quais estamos nos
referindo estão ainda fortemente vinculados à estética do roman-
ce gótico, outros nos surpreenderam pelo ineditismo da temática
que abordaram e pela modernidade do tratamento da matéria
ficcional. É o caso do conto “O máscara”, de Nestor Victor, com
forte valor alegórico, antecipando aquilo que viria a ser conheci-
do como o modelo literário kafkiano.
Assim, quando pensamos em evolução do gênero fantástico no
Brasil, não se trata de uma evolução cronológica, pois os textos
que produzem efeitos de horror, terror, suprarrealidade, grotesco
e absurdo, por exemplo, associados a temáticas diversas, continu-
am a ser escritos. O importante é perceber que diferentes efeitos
de fantástico são produzidos de acordo com as épocas. Pouco a
pouco, o relato fantástico abandona suas temáticas de origem, os
chamados temas clássicos, para ampliar seu espectro temático e
incorporar outros suportes e estratégias narrativas, misturando,
inclusive, diferentes protocolos discursivos. Contudo, trata-se da
mesma interrogação, o mesmo questionamento radical e irreme-
diável do mundo cotidiano. O fantástico não se concebe em outro
cenário, em outra perspectiva senão a do mundo cotidiano; é daí
que ele tira sua essência e a razão de sua existência. É a banalida-
de do dia a dia que o fantástico vem abalar, colocando em risco
a frágil ordem das coisas em seus lugares, com seu horizonte de
convenções e comportamentos previsíveis. É a lancinante engre-
nagem das ideias preconcebidas, a monotonia do ritmo do mes-
mo repetido à exaustão e a pretensão dos ideais humanos que a
literatura fantástica vem insidiosamente abalar. Sabemos que a

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

crença no sobrenatural repousa na adesão ao discurso de uma


autoridade; ela procede de uma abdicação das experiências em-
píricas diante da força de convicção que se depreende de uma
proposição. E, como lembra Christian Chelebourg, “se o homem
tende a se definir por sua adesão ao sobrenatural, é que, sem dú-
vida, esta oferece a medida exata da potência de sua razão; é que,
sem o sobrenatural, não existe racionalidade” (CHELEBOURG,
2006, p. 13).
Como diria Borges, cada escritor cria seus próprios precursores.
Assim, através de novos meios – uma psicologia nova, uma nova
escritura – mais conformes às necessidades vitais do pensamento
e da realidade modernos, o fantástico exibe situações de ambigui-
dade que a lógica cartesiana e o bom senso comum são incapazes
de explicar. Como vimos, o fantástico brasileiro pontuou sua tra-
jetória assumindo características bastante variadas: maravilho-
so, baseado em nossas lendas e mitos, com os contos de Afonso
Arinos (1868-1916), que, ao lado de Waldomiro Silveira, foram
ambos pioneiros do regionalismo fantástico em nossa literatura;
trágico, com Inglês de Sousa; metafísico com Machado de Assis
e Flávio Moreira da Costa; esotérico com Coelho Neto; absurdo
existencial com Graciliano Ramos; grotesco com Monteiro Loba-
to; parodístico com Machado de Assis; cruel com Gastão Cruls
e com muitos de nossos escritores fantásticos contemporâneos.
Cada autor, à sua maneira, alimenta sua ficção fantástica com os
fantasmas de seu subconsciente, as tensões da existência, deixan-
do de lado ou atualizando demônios e vampiros de tradição ro-
mântica e servindo-se de estratégias diversificadas como sonho,
presença subliminar de um duplo, loucura, autômatos, objetos
animados, almas do outro mundo, monstros que cruzam repen-
tinamente o caminho dos personagens ou que se escondem sor-
rateiramente atrás das portas.
Talvez pela influência da ficção latinoamericana de língua hispâ-
nica, identificada com o controvertido rótulo de “realismo mági-
co”, que se impôs no cenário literário mundial a partir da recep-
ção altamente favorável da crítica francesa, podemos vislumbrar,
nos dias de hoje, um certo interesse por parte dos estudiosos pela
ficção fantástica brasileira. Do ponto de vista da nossa série lite-
rária, a presença do gênero, quase que subterrânea, pautou-se por
uma produção cultural de resistência à estética realista, tomada

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Métodos Fronteiriços

como canônica, durante um largo período da nossa vida literária.


Ao considerarmos as histórias da nossa literatura e antologias,
damo-nos conta de que, de um modo geral, o fantástico foi muito
pouco examinado e frequentemente subestimado pelos críticos e
praticantes da literatura em nosso país, que manifestavam uma
propensão majoritária para a literatura documental, voltada para
a consolidação de uma concepção substancialista da nacionali-
dade.
Entretanto, o panorama tem apresentado sinais de mudança. Em
2014, a editora Rocco lançou o selo “Fantástica”, sob o qual pre-
tende publicar autores brasileiros e estrangeiros. Os primeiros
lançamentos contemplam três nomes ligados ao gênero: Raphael
Draccon, Carolina Munhóz e Sophia Abrahão. E também, como
já mencionamos aqui, merece destaque o trabalho tanto literário
como de compilador de figuras do imaginário brasileiro empre-
endido por Braulio Tavares. Em Sete monstros brasileiros (2014),
o escritor dialoga ficcionalmente com monstros, lendas, mitos
e personagens de assombração que, oriundos da tradição oral,
povoam o nosso folclore. Essa mitologia brasileira, mesclada a
outras figuras do imaginário provenientes de múltiplas tradições
populares, é reatualizada em novos modelos narrativos de feição
bastante contemporânea. Em nosso entender, estudar a literatura
brasileira pelo viés do fantástico é resgatar em nossa literatura o
valor de uma linguagem que tem como matéria-prima o mun-
do do devaneio, da fragmentação de um duplo, das lembranças
infantis, dos sonhos, do vertiginoso universo das imagens que
povoam o imaginário da fantasia, fazendo de tudo isso matéria
literária que se assume deliberadamente como ficção. Isso por-
que, tomando de empréstimo as palavras do poeta francês André
Breton, em seu manifesto surrealista, “o que há de admirável no
fantástico: não há senão o real”.

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Concepções e métodos de
pesquisa sobre o insólito
na literatura

Flavio GARCÍA1

“Insólito, o que não sói acontecer.”


Pretendo falar aqui, nesta breve apresentação, bem especifica-
mente, “àquele círculo mais restrito dos que, de algum modo, se
ocupam profissionalmente com a literatura” (SOUZA, 2004, p.8),
porque, para mim, professor universitário, pesquisador e críti-
co acadêmico, “a literatura é objeto de uma problematização, de
um questionamento” (SOUZA, 2004, p.8). Exatamente por ver a
literatura como uma questão contínua e ciclicamente em tensão
– para dentro e para fora de si – considero que “fazer da literatura
um objeto de questionamento ou problematização [...] implica
[sempre] a construção de uma teoria” (SOUZA, 2004, p.8). Mas,
“teorizar sobre algo é transformá-lo[, inevitavelmente,] num obje-
to problemático, isto é, [em objeto] de interesse para um estudo
metódico e analítico” (2004, p.10), como já venho fazendo, há
bastante tempo, quando estudo a manifestação do insólito nos
mundos possíveis da ficção.
Cabe, aqui, antes de avançar, uma advertência. Não venho estu-
dando o insólito como tema, no nível da história – conforme con-
ceituaram os estruturalistas – mas como estratégia composicio-
nal, no nível do enredo – como, igualmente, de modo distintivo,
os mesmos estruturalistas definiram-no. O que vem importando
1  Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Bolsista PROCIÊNCIA (UERJ/ FAPERJ), em gozo de bolsa de Estágio Supe-
rior Sênior (BEX) da CAPES.

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Métodos Fronteiriços

para mim não são os acontecimentos narrados, mas sua narração.


Enfim, o que me leva a pesquisar sobre o insólito na literatura
são os protocolos ficcionais empregados pelo escritor no seu ato
de produção, são as estratégias de construção narrativa a que ele
recorre para imputar uma relação dúplice de causa e efeito. O
insólito que me faz refletir não está presente nos acontecimentos,
mas na forma como esses são contados, como se encaixam no
feixe narrativo.
Inicio, agora, as minhas considerações acerca do insólito na li-
teratura, sob um ponto de vista linguístico, recorrendo à etimo-
logia do vocábulo “insólito”, focalizando, primeiramente, o seu
antônimo “afirmativo”, o “sólito”, que, conforme se verifica em
vários dicionários, seja da língua latina, da língua portuguesa ou
da língua espanhola, aponta, invariavelmente, para a remissão à
forma verbal “soer”, hoje, em certo desuso, portanto, bastante in-
sólita, no vernáculo cotidiano das novas gerações.
Antônio Geraldo da Cunha, em seu Dicionário etimológico Nova
Fronteira da língua portuguesa, anota o seguinte: “sólito → SOER.”
(1982, p.733). Na remissão que o etimólogo faz ao verbo, tem-
se: “soer vb. ‘ser comum, frequente, vulgar’ XIII. Do lat. sŏlēre
[...]. || insólito adj. Desusado, inabitual’ XVII. Do lat. īn-solĭtus
|| sólito adj. ‘habitual, usual XVIII. Do lat. solĭtus. part. pass. de
sŏlēre” (1982, p.731). Logo, tomando-se as anotações de Cunha
como corretas – e, em geral, nesse dicionário, a maioria de seus
verbetes apresenta considerável consistência – o insólito, forma
negativa de sólito, pela anteposição do prefixo de negação in-,
corresponde ao que não é comum, frequente, vulgar, habitual,
usual, costumeiro, previsível, esperável.
Apenas para realçar uma pequena curiosidade, sobre a qual ainda
não me detive a refletir, verifica-se que a forma negativa, insólito,
tem registro, encontrado por Cunha, no século XVII, já a forma
afirmativa, sólito, foi por ele encontrada apenas no século seguin-
te, o XVIII, o que sugere, insolitamente, o privilégio da forma
negativa face à afirmativa, sobrelevando seu valor semântico e
seu emprego mais corrente.
Ernesto Faria, em seu clássico Dicionário escolar latino-português,
registrou: “solĭtus, -a, -um. I – Part. pass. de solĕo. II – Adj.: ha-
bitual, costumeiro” (1975, p.936). E “solĕō, -ĕs, -ĕre, solĭtus sum,

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

v. semidep. intr. I – Sent. Próprio: 1) Costumar, estar acostuma-


do, estar habituado” (1975, p.935). Daí, “insolĭtus, -a, -um. Adj.
I – Sent. próprio: 1) Insólito, que não tem o hábito de [...]. Daí:
2) Desusado, estranho, novo” (1975, p.515). Note que, na língua
mãe, o latim, o verbo designava o costume, o hábito, e o particí-
pio ou adjetivo – formas que, em português, muito se confundem
– designavam, na forma afirmativa, o costumeiro, o habitual, ca-
bendo à forma negativa aquilo que era tido por desusado, estra-
nho ou novo – o que me leva a concluir que indicava novidade,
surpresa, irrupção do imprevisível ou inesperado.
Em espanhol, uma das línguas coirmãs de nossa “última flor do
Lácio inculta e bela” – verso do poeta parnasiano brasileiro Olavo
Bilac ao se referir à língua portuguesa – esses termos mantêm
seus sentidos originários do latim. O Dicionario de la lengua es-
pañola, da Real Academia Española, destaca: “sólito, ta. (Del lat.
solĭtus, p.p. de solēre, soler, acostumbrar.) adj. Acostumbrado; que
se suele hacer ordinariamente” (1992, p.1899); “insólito, ta. (Del
lat. insolĭtus.) adj. Raro, estraño, descostumbrado” (1992, p.1174);
“soler². (Del lat. solēre.) intr. defect. Con referencia a seres vivos,
tener costumbre. || 2. Conrefencia a hechos o cosas, ser frecuente”
(1992, p.1898).
Assim, apenas atualizando os significados advindos do latim, o
verbo soer, quando se refere a seres humanos, designa a ação de
se ter costume e, quando alude a coisas, a de ser frequente; o ad-
jetivo sólito, na forma afirmativa, qualifica o que é ou que se está
acostumado, aquilo que acontece ordinariamente – observe que
esta estrutura vocabular está na origem de extraordinário, termo
próprio à literatura do insólito – e na forma negativa, insólito,
caracteriza o raro, ou seja, retornando ao Dicionario de la lengua
española, o “extraordinário, poco común o frecuente. || 2. Escaso
en su classe o especie. [...] || 4. Extravagante de genio o de com-
portamiento y propenso a singularizarse” (1992, p.1726). E de-
nomina, ainda, o estranho, que, dentre seus significados, indica
o “extravagante” (1992, p.940), ou “súbito, inesperado y sorpre-
dente” (1992, p.940), e tem por fechamento do verbete o sentido
de desacostumado, consequentemente, o que é ou está contrário,
dissonante, destoante, incoerente, incongruente, desconforme ao
que se tem por costume, em oposição distintiva àquilo que vige
ou vigora no senso comum, ou seja, nomeia o que surpreende ou

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Métodos Fronteiriços

frustra as expectativas que se têm.


O mesmo espelhamento significante/significado do termo, desde
sua origem latina, mantido em espanhol, permanece, igualmente,
em português. Dois dicionários diferentes de nossa língua nos
vão dar suporte ao registro que pretendemos fazer. No Dicionário
contemporâneo da língua portuguesa Caldas Aulete, encontram-
se: “SÓLITO, adj. Usado: habitual || F. lat. Solitus” (1964, p.3793);
“INSÓLITO, adj. que não acontece habitualmente; desusado,
incrível, desacostumado [...] || F. lat. Insolitus” (1964, p.2197);
“SOER, v. intr. Costumar, ter por hábito ou por costume; estar
afeito a [...] || F. lat. Solere” (1964, p.3783). No Dicionário Ele-
trônico Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, 2001), tem-se
que o termo insólito vem do latim insolìtus, -a, -um, significando
o não acostumado, o estranho, o alheio, e, diz-se, por exemplo,
do que não é habitual; é infrequente, raro, incomum, anormal;
que se opõe aos usos e costumes; é contrário às regras, à tradição.
Desse modo, em português, insólito corresponde ao que não é
frequente de acontecer, ao que é raro, pouco costumeiro, inabitu-
al, inusual, incomum, anormal, o que contraria o uso, os costu-
mes, as regras e as tradições. Enfim, o que surpreende ou decep-
ciona o senso comum, se opõe às expectativas cotidianas. Desde
o dicionário etimológico de Cunha, passando pelos dicionários
das línguas latina e espanhola e chegando a esses dois da língua
portuguesa, os termos aparecem circunscritos em campos se-
mânticos demasiado próximos, ou mesmo absolutamente coin-
cidentes, equivalendo-se.
Explicitei, sumariamente, o que penso sobre a concepção e os
métodos da pesquisa literária, circunscrevendo a questão como
um problema resolvido a priori, já que, desde onde me coloco,
tomo a literatura, lato sensu, produção ficcional, teórica e crítica
– e, até poderia dizer, historiográfica – como um objeto de ques-
tionamento. Percorri, partindo do latim e perpassando as duas
línguas neolatinas hegemônicas da Península Ibérica, o espanhol
e o português, os significados próprios e apropriados do vocá-
bulo insólito, tangenciando, por necessidade metodológica, seu
antônimo afirmativo, sólito, e o verbo que lhe dá origem, soer,
uma vez que, admitindo-se o que dizem Cunha e Faria, o ad-
jetivo tem origem na forma de particípio desse verbo. Cabe-me,

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

agora, adentrar a teoria e a crítica literárias, desenvolvidas nessas


mesmas duas línguas, para especular a incidência do termo que é
objeto desta apresentação: o insólito.
Inverterei, por achar oportuno, o percurso até aqui empreendido,
iniciando esta nova etapa pela ocorrência do termo insólito em
teóricos e críticos brasileiros. Primeiro, estarei no universo da
língua portuguesa, para, somente a seguir, ir a um autor hispâni-
co, e, daí, adentrarei a língua espanhola, mas, em ambos os casos,
vou me limitar, por opção assumidamente conformista, a ocor-
rências do termo na América Latina. Ainda assim, será inevitável,
no entanto, fazer um recorte arbitrário para este momento – em
outras ocasiões, já me espraiei mais, e, dessas – merece destaque
o capítulo de abertura do volume Vertentes teóricas e ficcionais do
insólito (GARCÍA; BATALHA, 2012), em que discorri acerca de
“Quando a manifestação do insólito importa para a crítica literá-
ria” (GARCÍA, 2012, p.13-29).
Para este recorte de agora, elegi, como paradigmas de minha dis-
cussão, os brasileiros Antonio Candido (1987) e Lenira Marques
Covizzi (1978), e o boliviano Renato Prada Oropeza (2006).
Candido, destacando, com fartura de elogios, a inovação que a
obra de Murilo Rubião, com a publicação de O ex-mágico..., em
1947, teria representado, parece inaugurar, nesse seu ensaio, o
emprego do termo insólito para nomear – ou, mesmo, concei-
tuar – no Brasil, um gênero literário ao qual acaba por vincular
Rubião, ainda que o faça reunindo o vocábulo – insólito – a outro
de campo semântico muito próximo – absurdo – a fim de formar
uma expressão designativa: “ficção do insólito absurdo” (2006,
p.2008).
Covizzi, que foi orientanda de Candido em seus cursos de pós-
graduação, desenvolveu, ainda no final da década de 1960, uma
pesquisa exemplar, publicada no final da década seguinte, sobre
o insólito nas obras de Guimarães Rosa e Borges (1978). Nessa
obra, a autora correlacionou a ficção desses dois escritores lati-
no-americanos ao mundo em caos de sua época, refletindo so-
bre um momento – ainda hoje perene – em que o antes insólito
cobrava lugar de sólito, rompendo com os padrões estatuídos da
sociedade de então.
Prada Oropeza, ficcionista, roteirista de cinema, semiólogo, te-

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Métodos Fronteiriços

órico da literatura, crítico literário e professor universitário, em


um brevíssimo ensaio, no qual estuda três contos de diferentes
escritores hispano-americanos – “La cena”, do mexicano Alfon-
so Reyes, “El otro”, do argentino Jorge Luis Borges, e “Casa to-
mada”, do também argentino Julio Cortázar – sob a perspectiva
do “discurso fantástico contemporâneo”, apoia-se em protocolos
ficcionais que instauram, na narrativa, “lo insólito, [como] carac-
terística del nuevo relato fantástico contemporáneo” (2006, p.64).
Se assim eu quisesse, ainda seria possível ampliar a gama de au-
tores nacionais inicialmente referenciados, recorrendo a outros
brasileiros, dentre os quais, poderia destacar, apenas como exem-
plos ilustrativos, Jorge Schwartz, Irlemar Chiampi e Bella Josef.
Jorge Schwartz, em Murilo Rubião: a poética do uroboro (1981),
no capítulo dedicado ao universo fantástico (1981, p.54-82), co-
menta as relações entre “o fantástico na linguagem” e “a norma
extratextual definida pela tradição cultural”, elencando três cate-
gorias: “a) o sólito, que sói acontecer, e que representa a vigência
da norma. [...]; b) o insólito, que não sói acontecer, opondo-se
assim à norma, apontando para o ‘estranho’; c) o sobrenatural [...]”
(1981, p.54).
Irlemar Chiampi, em seu Realismo maravilhoso (1980), quando
busca diferenciar realismo maravilhoso e fantástico, e afirma que,
naquele gênero, diferentemente deste, “o insólito, em óptica ra-
cional, deixa de ser o ‘outro lado’, o desconhecido, para incorpo-
rar-se ao real: a maravilha é(está) (n)a realidade” (1980, p.59).
Bella Josef, em A máscara e o enigma (2006), na parte dedicada à
“Semiologia da transgressão” (2006, p.166-316), capítulo “O Fan-
tástico e o Misterioso” (2006, p.180-222), seção na qual comenta
“a essencialidade do homem em José J. Veiga e Rubem Fonseca”
(2006, p.211-214), observa que “a ruptura da concepção tradicio-
nal do conto [...] compreende o mundo mágico e lírico de José
J, Veiga, o universo insólito e livre de Moacyr Scliar, a harmonia
abstrata de Nélida Piñon, a infância e a adolescência desmitifica-
da de Luiz Vilela e Sérgio Sant’Ana” (2006, p.211).
Ainda assim, por opção, findo e fico, todavia, por aqui.
Candido, em “A nova narrativa”, capítulo de A educação pela
noite e outros ensaios (1987, p.199-215), afirma que, com a pu-
blicação do “livro de contos O ex-mágico (1947), Murilo Rubião

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

inaugurou no Brasil a ficção do insólito absurdo” (1987, p.208),


antecipando, conforme argumenta, tendências literárias só pos-
teriormente valorizadas, por exemplo, nas obras dos argentinos
Jorge Luís Borges e Júlio Cortázar e do colombiano Gabriel Gar-
cía-Márquez, embora sem o merecido reconhecimento coetâneo
da crítica. Dessa maneira, o crítico e historiador brasileiro em-
prega o termo insólito, acompanhado do adjetivo absurdo, que o
determina como sendo a manifestação do incomum inesperado,
do que, em consequência, se tem um novo conceito de gênero.
Para ele, a predominância do insólito na literatura brasileira, a
partir da década de 1970, com José J. Veiga e Roberto Drummond,
em que se verifica o “insólito no texto e no contexto [...], teve
nos contos do absurdo de Murilo Rubião seu precursor” (1987,
p.208), mas, até os dias de hoje, neste momento intervalar das
comemorações dos vinte anos de morte, completados em 2011,
e do centenário de nascimento, a festejar em 2016, o ficcionista
mineiro ainda não vem tendo seu valor devidamente reconheci-
do. Nesse caso, mesmo Candido não tido chegado a desenvolver
qualquer teorização acerca do conceito que formula – “ficção do
insólito absurdo” – é oportuno e propício que suas palavras ve-
nham à baila para, quanto mais não seja, aproveitando o ensejo e
a data, pôr Rubião em relevo, na proximidade de seus cem anos
de nascimento. De qualquer modo, ainda assim, ele reúne uma
diversidade de vertentes e tendências, tanto das literaturas hispa-
no-americanas, quanto da brasileira, em particular, sob a égide
da “ficção do insólito absurdo” e, por conseguinte, traz para o
centro a discussão em torno do insólito ficcional, que estava à
margem, iluminando sua presença na obra de variados escritores
canônicos ou não.
Covizzi, em seu trabalho, sugere, de princípio, que o insólito seja
um “gênero”, entre aspas (1978, p.25), todavia, logo adiante, refe-
re-se ao termo como designativo de uma “importante categoria,
[...] que carrega consigo e desperta no leitor, o sentimento do in-
verossímil, incômodo, infame, incongruente, impossível, infinito,
incorrigível, incrível, inaudito, inusitado, informal...” (1978, p.25-
26). Ela destaca, grafando em itálico, o traço de negativização do
insólito, ou seja, sua marca de oposição à afirmativa, ao que se
deveria esperar como previsível.

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Métodos Fronteiriços

Ainda que admita que “não é o insólito um novo atributo da arte


contemporânea, pois ele é uma característica que está na própria
condição do ser fictício” (1978, p.29), Covizzi salienta que “ele
passou a ser o elemento determinante de que nos utilizamos para
ressaltar as transformações que a ficção vem sofrendo ao longo
do século [XX]” (1978, p.29). Ela adverte ainda que, diante da
manifestação do insólito, “entra-se em contato com objetos, pes-
soas, situações até então desconhecidos. Daí a perplexidade e ex-
citação que provoca” (1978, p.26). Em síntese, caracteriza o insó-
lito “genericamente como sendo um fenômeno de inadequação
essencial entre partes de um mesmo objeto, entre origem e fim,
constituição e fim, utilidade e fim ou sua especial significação e
o contexto em que se insere [...]. Enfim, uma disfunção” (1978,
p. 26).
Covizzi destaca, no insólito, seu atributo desestruturador da or-
dem, sua força de ruptura frente ao conhecimento perceptual,
oriundo do senso comum, ancorado nas convenções sociocultu-
rais. Ela sintetiza a conceituação do termo, dizendo que:
A aludida constante, que batizamos de insólito, no sentido do não-a-
creditável, incrível, desusado, contém manifestações congêneres que
englobamos como tal:
Ilógico - contrário à lógica; não-real; absurdo.
Mágico - maravilhoso; extraordinário; encantador.
Fantástico - que apenas existe na imaginação; simulado;
aparente; fictício; irreal.
Absurdo - que é contra o senso, a razão; disparate; despro-
pósito.
Misterioso - o que não nos é dado a conhecer completamen-
te; enigmático.
Sobrenatural - fora do natural ou comum; fora das leis naturais.
Irreal - que não existe; imaginário.
Suprarreal - o que não é apreendido pelos sentidos; que só
existe idealmente; irrealidade; fantasia. (1978,
p.36)

E conclui, declarando que fará “em termos teóricos [...] o estudo

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

de uma categoria – o insólito” (COVIZZI, 1978, p.42). Dessa for-


ma, opta por tratar o insólito não como arqui ou macrogênero,
mas como traço distintivo comum na estruturação narrativa de
diferentes gêneros ou subgêneros.
Percebe-se que Covizzi não enfatiza a construção narrativa, os
protocolos ficcionais, mas os efeitos de recepção, uma vez que ela
destaca a perplexidade e a excitação do leitor mediante o conta-
to com objetos, pessoas, situações até então desconhecidos, pro-
movidos pela manifestação do insólito. Mas é importante atentar
para o fato de que a estudiosa defende que o insólito é um novo
atributo da arte contemporânea, que passou a ser o elemento de-
terminante de que se valem os artistas de seu tempo para repre-
sentar uma disfunção do mundo imerso no caos. Esses aspectos
– quais sejam, correlacionar o insólito a um novo traço emergente
na arte contemporânea e seu efeito desestruturador, promotor de
ruptura com a ordem estatuída pelo senso comum, denuncian-
do uma outra lógica que então passava a se impor, trazendo o
insólito para o espaço, antes do sólito, pois aquele soía acontecer
– aproxima sua perspectiva crítica do pensamento desenvolvido
por Prada Oropeza, ao tratar da composição narrativa, em meio
aos novos discursos fantásticos do século XX.
Prada Oropeza, em artigo sobre o discurso fantástico contempo-
râneo, considera o insólito “como un elemento central y ca-
racterístico” da “configuración semiótica” do “discurso fan-
tástico” (2006, p.56), pois, segundo seu ponto de vista,: “en
el espacio literário hay un género que propone lo insólito como
un elemento central y característico de su configuración semió-
tica: el discurso fantástico” (2006, p.56). Para ele, nos “nuevos
discursos ‘fantásticos’ que, a partir del siglo XX (al término
de su primera década) se presentan [...] en todos ellos lo
‘insólito’ emerge en un ‘clima’, por así decirlo, de aparente
‘normalidad’” (2006, p.57). O crítico boliviano dá especial
destaque às tensões semânticas que se estabelecem entre a
“codificación ‘realista’” e a “narración fantástica” (2006, p.57-
58), e esclarece:
Nuestra hipótesis de trabajo es la siguiente: en el cuento fantástico [...]
se hace evidente la tensión semántica que se establece entre la codi-
ficación ‘realista’ – no olvidemos que el realismo, luego de su triunfo

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Métodos Fronteiriços

sobre el romanticismo, es el subgénero narrativo más amplio en la


literatura occiental y es el primer ‘contexto’ que, como sistema narra-
tivo, se presenta respecto al discurso fantástico – decimos que en la
narración fantástica se hace evidente una ‘ruptura’ en la codificación
realista que el mismo ‘lo extraño’, lo que no cuadra con la coherencia
realista, y le confiere su valor propio, contrario a la lógica aristotéli-
ca-racionalista. De este modo, en el seno mismo del universo racional
de las cosas surge lo ‘incoherente’ con ese reino, lo que llamamos lo
insólito (2006, p.57-58).
Prada Oropeza defende, dessa maneira, que a manifestação do
insólito instaura “una especie de sin sentido” (2006, p.58), ou seja,
representa, no imaginário ficcional, um mundo às avessas, sendo
produto de “procedimentos, mecanismos e fatores” que impli-
cam a construção narrativa do fantástico, considerando seus “ele-
mentos da discursivização – tempo, espaço, personagens e ação”
(2006, p.58-59).
Pode-se concluir, com base nas observações de Prada Oropeza,
que tanto o sistema semio-narrativo-literário real-naturalista, na
esteira do Romantismo, quanto o fantástico – ou insólito, lato
sensu – constituem, distinta e opositivamente entre si, sistemas
com estruturação própria, este, rompedor com aquela referencia-
lidade mimética de primeira plano, surpreendendo a racionalida-
de vigente e trapaceando com o senso comum instituído, aquele,
comprometido com a representação mimeticamente referencial
da realidade física, conforme aceita pelo senso comum instituído,
em consonância com a racionalidade vigente.
Fica, ainda, uma pergunta a ser respondida: quando a manifes-
tação do insólito – segundo Prada Oropeza, uma espécie de rup-
tura, traço incoerente ou incongruente que se verifica na estru-
turação de uma ou mais categorias da narrativa – se dá como
marca distintiva e importante para crítica. De modo simples e
direto, eu responderia: sempre que essa irrupção implicar alguma
alteração na trama narrativa, no desenvolvimento do enredo, na
efabulação.
Se, ao lermos uma história, consideramos algum fenômeno insó-
lito na caracterização de personagens, tempo ou espaço e, mesmo,
em ações empreendidas, mas se esse algo que nos chama a aten-
ção não interfere no desenrolar da diegese, logo, não se trata de

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

um traço essencialmente distintivo e não merece especial atenção


da crítica, pois, no máximo, o que se tem aí é o insólito como
tema, como acontecimento, como fato narrado. Assim, a simples
aparição de um disco voador na cena não basta para que o relato
seja um exemplar da literatura do insólito, ainda que o apareci-
mento de discos voadores não seja algo característico de nosso
cotidiano, não seja tema presente em nossa realidade cotidiana
referencial.
Trarei, agora, um exemplo de narração sincrética2 meramente
ilustrativo, composto de texto verbal e não verbal, mas que ilumi-
na bem essa questão que nos aflige sempre que decidimos estu-
dar o insólito na literatura ou em qualquer outra ficção, a partir
das estratégias composicionais a que o ficcionista recorre. Veja-
mos então.
Um casal de jovens segue distraidamente pela rua, enlaçados pela
euforia da paixão pueril, quando avistam uma encosta gramada,
sob a sombra de uma frondosa árvore, convidando-os a parar, jo-
garem-se ao chão e entregarem-se ao amor.

2  Ilustrações de Marcos Vieira (marosdarochavieira@gmail.com).

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Métodos Fronteiriços

O rapaz chega-se à moça, os


dois encostam-se as cabeças,
cochicham palavras carinho-
sas e vão-se em direção ao ce-
nário convidativo.

Ao chegarem ao pé da árvore, não


resistem e se deitam no chão, so-
bre a grama, de cabeças bem jun-
tas uma à outra, enleados.

Reviram-se entre o verde em


busca de uma posição que fa-
voreça o beijo, o entretocar
dos lábios, já ardentes, desejo-
sos.

Cai o entardecer, aproxima-se


a noite, e passa um carro, de
faróis acessos, fazendo baru-
lho, mas eles não se dão conta
disso.

Colam-se os lábios em beijos efu-


sivos, delirantes, apaixonados, en-
tregues ao momento, a despeito
do que acontece ao derredor.

Surge uma ambulância, faróis acessos,


sirene tocando, que corta o asfalto em
alta velocidade, indo buscar ou levan-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

do alguém em estado lastimável de saúde, mas, novamente, eles


não percebem o episódio.
O rapaz se dobra sobre a moça,
em carícias e beijos lascivos, e
ela se deixa levar pela pulsão
sensual do momento.
De repente, um táxi, de faróis
reluzentes, com passageiros
falando em voz alta e gesticu-
lando com os braços ao ar,
corta a cena em baixa veloci-
dade, no entanto, mais uma
vez, os jovens nada percebem
e, a cada instante, entregam-
se mais à paixão.
A lascívia atinge o clímax, e
as mãos do rapaz, já despido
da camisa, invadem o short da
moça adentro, prenunciando momentos censuráveis.
Eis que, no azul do céu, entre
as brancas nuvens que baila-
vam de lá para cá, desponta
um disco voador, com suas
luzinhas coloridas em volta,
piscando em círculo. Paira,
sobrevoando, por cima dos
dois enamorados. Mas, absor-
tos pelo calor da carne que os
acomete, nenhum dos dois se apercebe do fato, e avançam em
direção ao momento apoteótico.
To t a l -
mente
despidos,
sem se
importarem com os passantes,
com o caráter público que em-
prestam ao seu ato, caminham,
alheios a tudo, para o enlace

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Métodos Fronteiriços

final.
Nesse momento, três ciclistas,
que, pedalando, margeiam a
encosta gramada, não conse-
guem deixar de olhar para a
paisagem que lhes aparece
diante dos olhos, mas seguem
seu passeio de todos os dias.

O rapaz se deita no chão, a


moça se senta sobre ele. Uma
dança, que faz lembrar ima-
gens do Kama Sutra, tem iní-
cio frenético. O casal busca o
gozo corolário de sua aventu-
ra.
Durante o vai e vem da moça
sobre o rapaz, espécie de brin-
cadeira na gangorra, uma rá-
dio patrulha faz sua ronda
pelo local. Faróis ligados, sire-
ne acessa, policiais atentos.
Ainda agora, rapaz e moça não
se alheiam de si para atenta-
rem ao restante. Estão entregues ao desejo.
Agora exaustos, ela se deita so-
bre ele, pele na pele, buscando
se recompor do esforço que se
impuseram. Seus rostos exa-
lam alegria, felicidade, gozo.
Satisfeitos, repõem a roupa,
recompõem-se. Levantam-se
e seguem felizes, de mãos da-
das, corpos colados um ao outro,
de retorno à rotina diária.
A encosta verdejante, a árvore co-
pada, o céu azulinho com nuvens

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

brancacentas ficam para trás, e a vida continua para os dois.


Ainda que, nessa história con-
tada, haja a manifestação do
insólito como tema, especial-
mente com a aparição do dis-
co voador, sua irrupção não
interfere no desenrolar das de-
mais ações que se desenvol-
vem, e o objeto voador – que
não caberia, neste exemplo, ser referido como “não identificado”
– passa despercebido, como os demais meios de transportes que
cruzam a cena. São aspectos do contado, do narrado, não da con-
tação, da narração. Estão ao nível da história, não no do enredo.
Mesmo entendendo, como realidade que nos é comum, que dis-
cos voadores são inabituais, inesperados, imprevisíveis, impro-
váveis, surpreendentes etc., não tenho como sustentar que sua
aparição nessa narrativa importe para a demarcação do relato no
universo da ficção do insólito, pensado como sistema semio-nar-
rativo-literário. A aparição do disco voador ou demais eventos
narrados tratam-se de fenômenos de uma mesma ordem: pas-
sagens do carro de passeio, da ambulância, do táxi, da bicicleta e
da viatura de polícia. O aparecimento do disco voador equivale
a esses outros elementos textuais, que se inscrevem no habitual
cotidiano, mas que nessa narrativa é tematizado como natural.
Logo, a despeito disso, não se trata de uma narrativa que se possa
inscrever na ficção do insólito, pensado como sistema semio-nar-
rativo-literário.
Deixem-me, agora, alterar a narrativa a partir do momento em
que o disco voador aparece. Ao invés de os jovens continuarem se
acariciando libidinosamente, despindo-se em direção ao conluio
sexual, sem se darem conta da presença dos demais elementos
textuais, eles veem o objeto voador e reagem diante da visão que
têm.
Quando um círculo metálico
brilhoso, com uma cúpula en-
vidraçada reluzente e luzernas
coloridas piscando alternada-
mente, saiu detrás das nuvens,

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Métodos Fronteiriços

no céu azulado do anoitecer, os jovens, que estavam enleados,


corpo colado , já semidesnudos, deitados na gama, interrompe-
ram os afagos e, perplexos, meio assustados, voltaram-se para o
alto, acompanhando o traçado do estranho objeto voador.
Rapaz e moça, a um só tempo,
recompuseram-se, repondo os
trajes no lugar, e levantaram-
se do chão, boquiabertos,
olhando fixamente para o céu,
enquanto o disco voador se
afastava do local.

Nesse mesmo instante, bem


próximo a eles, passa um car-
ro de patrulha, com sirene e
faróis acesos, fazendo a ronda
do anoitecer, e eles ficam feli-
zes por terem sido interrom-
pidos, pois, caso contrário,
continuassem o que estavam
fazendo, poderiam vir a ser abordados pelo policial e acusados de
crime de atentado ao pudor.
Felizes, os dois batem as mãos
em sinal de agradecimento.
Tudo voltou ao normal. Reco-
lheram-se as vontades inde-
centes, guardadas para outro
momento mais apropriado, e
foram-se embora, recompen-
sados.

E a normalidade voltou a rei-


nar naquele cenário, mesmo
eles tendo percebido como in-
sólita a aparição do disco voa-
dor, e ainda que, em momento
algum, questionassem o cará-
ter estranho, sobrenatural, ex-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

traordinário etc. de tal fenômeno.

Nessa última sequência diegética, a manifestação do insólito alte-


ra o desenrolar da trama, o desenvolvimento do enredo, a efabu-
lação, e importa para o desfecho, mudando o rumo da história.
Assim, nesse caso, pode-se dizer que o insólito seja traço distinti-
vo dessa narrativa, inscrevendo-a no conjunto da ficção do insó-
lito, pois a irrupção do fenômeno inusual, inabitual, inesperado,
imprevisível, incomum, inaudito, estranho, sobrenatural, extra-
ordinário etc. é essencial para o final da história contada. E não
importa se as personagens problematizam ou não o caráter meta-
físico do elemento, que não o tema do relato, pois suas reações
são suficientes para a mudança dos acontecimentos. Assim, faz
parte dos protocolos ficcionais desse relato o recurso a estratégias
do sistema semio-narrativo-literário não real-naturalista, logo,
insólito.
Espero que, com essa exemplicação ilustrativa, ainda que dema-
siado simplista, tenha ficado claro, senão para todos, ao menos
para a maioria de vocês, o que seja, para mim, a ficção do insó-
lito e quais concepções e métodos de pesquisa considero como
preponderantes quando estudamos o insólito na literatura ou em
qualquer outra arte narrativa – cinema, teatro, televisão, video-
games, etc.

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Métodos Fronteiriços

Referências
CALDAS AULETE. Dicionário contemporâneo da língua portu-
guesa. 2ed. Rio de Janeiro: Delta, 1964.
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CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspec-
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COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Bor-
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CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fron-
teira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Rio de Janei-
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GARCÍA, Flavio. “Quando a manifestação do insólito importa
para a crítica literária”. In: ______; BATALHA, Maria Cristina
(Orgs.). Vertentes teóricas e ficcionais do insólito. Rio de Janeiro:
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JOSEF, Bella. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Francisco
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SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São
Paulo: Ática, 1981.
SOUSA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 9ed. São Paulo:
Ática, 2004.

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8
Literatura fantasma: qual
linguagem, qual método?

Heloisa Helena Siqueira CORREIA1

.... lo gigantesco puede ser una forma de lo invisible ...


Jorge Luis Borges
Este texto tem por objetivo refletir acerca da obra Viagem a An-
dara, o livro invisível (1988), de Vicente Franz Cecim, escritor pa-
raense que desde 1979 desenvolve a proposta de uma literatura
fantasma. A escritura de Cecim é uma jornada em prosa poética,
linguagem misteriosa e insólita, repleta de elipses e silêncio. Nas
palavras do texto: “Viagem a Andara/ O não-livro. Não existe,
não existe/ Literatura fantasma/ Não foi escrito./ Enquanto tex-
to, tudo o que teremos dele é um título.” (CECIM, 1988, p.12).
Trata-se, como se pode notar, de uma proposta singular, corro-
borada por 17 livros, denominados pelo autor de livros visíveis
de Andara – livros escritos que aludem, apontam, ficcionalizam e
poetizam o livro invisível, nunca escrito.
O que há de Viagem a Andara, o livro invisível encontra-se nos
livros visíveis, que seguem sendo escritos e lidos há quase 30 anos.
Abordaremos trechos de algumas entrevistas concedidas pelo es-
critor, os textos do Manifesto Curau I e II, e as três primeiras
obras visíveis – A asa e a serpente, Os animais da terra e Os jardins
e a noite (1988). Já no início do primeiro livro visível, encontram-

1 *Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de


Campinas (UNICAMP). Professora da Universidade Federal de Rondônia
(UNIR). Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos Literários (UNIR). Membro
do GT ANPOLL Vertentes do Insólito Ficcional. E-mail: heloisahelenah2@
hotmail.com

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Métodos Fronteiriços

se os seguintes versos: “Tu escreves um livro com tinta invisível./


Por que fazes isso?” (1988, p.11). A reflexão incide, exatamente,
sobre o problema da aproximação do método com esta literatura:
qual(is) método(s) pode(m) efetivamente se aproximar de uma
literatura cuja linguagem insiste em construir o invisível?
Em entrevista ao Portal Organizações Rômulo Maiorana (ORM),
de Belém (PA), o escritor refere-se a Andara da seguinte forma:
Andara é a Amazônia. Nasceu a partir da natureza amazônica, mas
uma Amazônia sonhada, transfigurada em uma dimensão que sim-
boliza toda a vida. Quero dizer, desde o que vemos, as coisas ao nosso
redor, até o que não vemos, mas pressentimos. Os livros que escrevo,
os chamados “livros visíveis de Andara”, são sempre convites a viajar
além, até o invisível. (CECIM, 2015)
Em Andara, se entrevê a realidade da Amazônia, sua floresta,
seus seres, agentes de destruição e suas forças telúricas. Ao mes-
mo tempo, vislumbra-se, mesmo que por flashes intervalares uma
outra Amazônia, pulsante de tal modo que manifesta os encan-
tados, os estranhos, os seres híbridos e naturais; nela, não há pre-
tensões de controle sobre esse imaginário inquieto, que se mostra
poderoso e ativo na linguagem andarana.
É importante lembrar que Amazônia é um nome derivado do
mito grego das amazonas; não guarda, portanto, identificação
com as terras possuídas pelos povos originários por tantos anos.
Esse batismo europeu rende estigmas, estereótipos, imagens e
mitos da ordem da cultura do dominador que se multiplicam ao
longo dos anos e das gerações de homens que se assenhoram da
região e da floresta, continuamente. Nesse sentido, Andara é o
novo nome que sugere sintonia com a realidade da imensa re-
gião cultural e geográfica – embora, em seguida, segundo o autor,
passe a abarcar mais que a Amazônia. A respeito disso, Cecim
explica:
Andara é uma região imaginária, toda ela onírica, que eu criei, ou
que quis se criar através de mim, de qualquer maneira: que eu sonhei,
mas sua matéria prima é a Amazônia, a Floresta Sagrada onde eu nas-
ci, com suas águas, seus peixes, suas aves, seus insetos, seus animais,
suas árvores. Só que em Andara tudo pode acontecer e ainda mais do
que acontece na Amazônica, que em si já é uma região naturalmente
encantada: árvores podem falar com os homens, aves que caem do

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

céu se transformam instantaneamente em terra, retornando ao pó, o


vento vem nos contar histórias, tu podes te deparar com uma mulher
alada como Caminá, do segundo livro visível de Andara, Os animais
da terra [...] (CECIM, 2009)
O corpo onírico de Andara não atesta sua inexistência; antes,
aponta para sua invisibilidade, ou seja, para uma natureza de ou-
tro tipo, a qual os olhos ocidentais, geralmente, não conseguem
ver, e que está sendo construída com uma linguagem especial, ra-
refeita e poética. Como capturar Andara em uma possível leitura,
se sua linguagem é enigmática? Para preservar os silêncios fre-
quentes, não se pode recorrer à eloquência de algum método que
não conhece o silêncio. Trata-se de uma contradição, por certo,
pois refletir, abordar, auscultar, interpretar, decifrar ou explicar
exige método que contemple, inclusive, o significado dos silên-
cios. Ignorá-los não é o caso, porque se o fizermos, perdemos
Andara, ou sua grande faceta silenciosa.
O escritor refere-se a Andara por meio de outras expressões, no-
vamente, nas palavras da entrevista:
Lugar? No espaço, Andara quis ser Lugar de Nenhum Lugar para
poder ser Lugar de Todos os Lugares. Tempo? Andara é escrita no
Tempo das Hipóteses, para escapar das delimitações dos tempos ver-
bais do Passado, Presente, Futuro. (...) O diálogo de Andara é com o
Imaginário e a Literatura Oral da Amazônia. Que me parece nossa
expressão literária mais fecunda e singular nas literaturas do mundo.
(CECIM, s.d.)
A primeira expressão, “lugar de nenhum lugar”, concede-lhe ares
utópicos e a conjuga com a tradição de elaboração das utopias,
frutos da melhor imaginação humana ao longo de todos os tem-
pos; a segunda expressão, “lugar de todos os lugares”, retira-a do
plano utópico e a faz aterrissar em qualquer lugar/em todos os
lugares. No entanto, não será pela vinculação às obras de Thomas
Morus, Agostinho ou Platão que se poderá compreender Andara:
ela já existe, a escritura a materializa em seu devir, que, por sua
vez, se desdobra no invisível.
O escritor, em entrevista a Márcia Carvalho, indica parentesco es-
tético e ontológico do movimento de vida de Andara com o pro-
cesso de transbordamento do sertão rosiano. Em suas palavras:
“[...] Rosa fez com o Sertão a mesma coisa que eu estou tentando

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Métodos Fronteiriços

fazer com a Amazônia: transmudar, ele, o Sertão, eu, a Amazônia,


no que eu chamo de regiões metáforas da vida”. (CECIM, 2009a)
O que, de outro modo, suscita outro parentesco literário, desta
vez com a obra borgeana – afinal, não é justamente Borges o es-
critor que fez vislumbrar aos leitores de todo o mundo uma bi-
blioteca tentacular, gigante e que coincide, ponto por ponto, com
o universo? Três universos imensos que são, ao mesmo tempo,
três lugares pontuais: reconhece-se, aí, a dialética do pequeno e
do grande, do particular e do universal, da micro e da macro re-
alidade. Atentemos, entretanto, a outro limite: não basta lançar
mão dos métodos indutivo e dedutivo para ler Andara, pois ela é
e não é, ao mesmo tempo, princípio que rivaliza com as contradi-
ções que operam na ordem sucessiva da história.
A matéria-prima de Rosa, Borges e Cecim é, certamente, diversa;
porém, compartilham habilidade estética semelhante de criação.
Nesse sentido, o sertão rosiano, Andara e a biblioteca borgeana já
são o mundo todo. O crítico George Steiner oferece uma reflexão
que explica o poder de expansão das criações literárias, inicial-
mente pontuais e localizadas. A respeito da irradiação da literatu-
ra borgeana, afirma o crítico:
Nossas ruas e jardins, a passagem de um lagarto através de uma luz
tépida, nossas bibliotecas e escadas circulares estão começando a pa-
recer exatamente como Borges os sonhou, embora as fontes de sua vi-
são permaneçam irredutivelmente singulares, herméticas, em certos
momentos quase lunáticas. (STEINER, 1990, p. 35)
O leitor de Borges não pode entrar em uma biblioteca sem sentir
que adentra o misterioso universo; o leitor de Rosa, ao passo que
vive, conhece o sertão, e o leitor de Cecim não pode caminhar
pela Amazônia ou pelo mundo sem sentir que convive com o
invisível vivo e pulsante de Andara. E não pode, por ora, dizer sua
experiência de modo inequívoco e racional, uma vez que, para
isso, é necessário decifrar o que não é cifrado: a alteridade radical
da floresta.

Os manifestos, linguagem e proposta estético-política


Vicente Franz Cecim escreveu, em 1983, o Manifesto Curau I /
Flagrados em delito contra a Noite, texto entregue ao governador
do estado do Amazonas na abertura do encontro da Sociedade

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em Belém, naque-


le mesmo ano. Crítico e combativo, o texto defende a nossa histó-
ria: “Nossa história só terá/ realidade quando o nosso imaginário/
a refizer, a nosso favor” (CECIM, 2009b, p.10). O texto e a atitude
do escritor perseguem essa urgência. Nas palavras do autor:
Vítimas de uma sociedade violentamente gerada pelos mais evidentes
padrões de colonização, nossas chances de mudá-la começam na vi-
sualização da face oculta de quem nos fez isso. Este é um esforço que
precisa voltar bem atrás, e que deverá se espalhar, interrogativamente,
em várias direções, para obter êxito. (CECIM, 2009b)
Consciente de nosso processo de colonização e ocidentalização, o
autor conclama a feitura de outra história. Frente a um texto cujo
pacto com o leitor não pretende ser ficcional, a literatura exerce
seu papel estético-político, e demonstra um tipo de engajamento
muito especial, o engajamento do imaginário na causa histórica
dos que foram sobrepujados desde o primeiro contato coloniza-
dor.
Cecim, leitor do cânone filosófico do Ocidente, lança sua crítica
(que será reincidente) à tradição racionalista. Segundo o escritor:
Historicamente, a História vista com um outro olho, não essa de a
prioris infalíveis, mas uma de navegações frequentemente sem leme
e em rumo incerto, historicamente, a falência do Ocidente culto ins-
tituído, aristotélico e cartesiano, pragmático enfim, tem sido uma
crença estúpida, contagiosa e exportada para os quatro cantos ma-
gros do mundo, num dos quais nos incluímos, embora devamos estar
solidariamente em todos eles: uma crença que afirma que só os dias
despertos existem, sendo todo o resto fantasma, isto é: a parte dos
sonhos. (2009b, p.4)
A opção ocidental pela vigília é, inversamente, a opção pelo des-
carte do imaginário e do sonho, fontes de um saber antigo e sem
fronteiras. A consciência, que segue de olhos abertos e possui
olhar mutilado, não consegue visualizar que a pele do real foi te-
cida por artífices ilusionistas racionais habilidosos. O Manifesto
Curau é, nesse sentido, uma crítica ao vício ocidental da ocula-
ridade, aquele que recebe a crítica de José Americo Motta Pessa-
nha em sua apresentação da obra O direito de sonhar, de Gaston
Bachelard, aos leitores brasileiros. Nas palavras do estudioso da
filosofia:

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Métodos Fronteiriços

De fato, desde os antigos gregos, o pensar é sempre entendido como


uma extensão da óptica, a visão exercendo forte hegemonia sobre os
demais sentidos. A tese de Anaxágoras, de que “o homem pensa por-
que tem mãos”, combatida sobretudo pela tradição aristotélica, per-
maneceu como sugestão e advertência, mas suplantada pela corrente
contemplativa, de fundamento “ocularista”.
(...) E transparece no próprio vocabulário básico da filosofia e da ciên-
cia vocabulário que herdamos e utilizamos geralmente sem perceber
suas conotações e seus pressupostos ideológicos – e que é construído
frequentemente com as variantes de ver, contemplar, visão, vidência:
“ideia” (que significa originariamente “forma visível”), “evidência”, “te-
oria”, “perspectiva”, “ponto-de-vista”, “visão-de-mundo”, “enfoque” etc.
(PESSANHA, 1994, p. XIV)
A despeito do fortalecimento do vício durante séculos, os sonhos
e tudo que é imaginado (sem passar pelos olhos do Logos) não se
deixam controlar por mecanismos, funções, categorias, estraté-
gias, navalhas lógicas ou argumentos; ainda que desprezado para
que não represente perigo, para que deixe de pulsar em cada ex-
periência de vida e permaneça na ordem abstrata das coisas, o
mundo onírico não se deixa domar.
O manifesto ataca um dos principais artifícios de controle do hu-
mano – o medo ocidental, estimulador de ações humanas vio-
lentas, disparates e desigualdades sociais, o que só demostra a
falência, a ruína e a doença do Ocidente. Segue o texto:
Esse medo, vulnerável a um olhar sem véus, revela-se: trata-se, quan-
do observado sem reservas nem admiração inocente, de uma engre-
nagem que, atualmente, e cada vez mais, de repetição em repetição
histórica, gira ao contrário: se antes permitiu ilusões reconfortantes,
hoje, ela despedaça o próprio ocidental – e faz dele sua vítima mais
imediata, não esqueçamos isso – carente como ser dado ao mundo
social – apesar de uma civilização de bem-estar material – e como
projeto de ser – nunca totalmente alienável – na destinação secreta
que o põe, no ritual das ontologias indiferentes às deformações da
História, e apesar das consolações religiosas do Ocidente, desabrigado
num cemitério de ossadas morais, estéticas, políticas – estas, também
um fêmur roído até a fronteira das cerimônias sociais já sem sentido.
O medo do Ocidente culto é o medo do Ocidente às revoluções. De
qualquer espécie. Poéticas ou políticas, ou à aliança dessas duas for-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

mas de luta. O medo do Ocidente às fábulas do imaginário rebelde é


a mais evidente declaração de desprezo desse Ocidente pela realidade.
(...) O medo ocidental culto é o medo dos imperialismos da Razão, e
sua base econômica e totemicamente moral, às possibilidades histó-
ricas e estéticas da África, da Ásia e da América Latina. (2009b, p.5)
As nossas ruínas morais, estéticas e políticas, mencionadas na
passagem acima, compõem a atmosfera insalubre que nos cir-
cunda. O poder esforça-se para controlar a história e esmera-se
para que as revoluções não aconteçam, o imaginário seja domes-
ticado e o sonho, diluído. A África, a Ásia e a América Latina
aparecem como possíveis renovadoras da história e da estética: o
escritor identifica nelas potencialidades revolucionárias – é im-
portante lembrar que as culturas africana, asiática e latino-ame-
ricana são praticamente desconhecidas e, pelo pouco que se sabe,
conjugam-se a outra matriz e a outra visão de mundo, que não
são ocidentais.
Subjazem ao processo de colonização outros modos de conheci-
mento e poder, desconhecidos pelos ocidentais, mas cuja latência
tem sido demonstrada, cada vez mais nas últimas décadas, por
meio de pesquisas. A hegemonia da visão não existe nestas cultu-
ras, e pode-se afirmar que nem mesmo é o sentido mais impor-
tante. De acordo com as palavras do escritor:
Só a fábula insurrecta cravada na vida resgatará estética e historica-
mente a Amazônia dessa miragem: o padrão colonizador imposto a
ela. E, também, da falsa existência que tem sido a nossa até então.
Mas onde está esse subsolo real, o autêntico chão que servirá de base
a essa independência histórica e estética, assim exigida com ênfase?
(2009b, p.6-7)
Trata-se de levar a termo uma “renovação cultural”, munidos do
imaginário como coautor do “[...] esforço de independência po-
lítica e econômica [...]”. (CECIM, 2009, p.7) No entanto, conjugar
o imaginário e o sonho para o levante exige a mobilização de uma
força que está dispersa e a canalização da capacidade subversiva
da fábula, o que, em outras palavras, remete novamente à ficção
e ao mito. Ainda no texto do manifesto, encontramos a passagem
a seguir:
Juntamente com a mobilização de uma operação política, então, é
precioso pôr em movimento também uma operação mágica. Esta:

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para além do real que me é dado pelo mundo, e, sobretudo, se esse


real está deformado pelas marcas de uma dominação alheia a mim,
resta-me o recurso de um jogo. E nesse jogo descubro e me repito,
até o último alento: – A História, a minha história, só terá realidade
quando eu me apossar dela pelo meu imaginário de homem e região.
(CECIM, 2009, p.8)
Está clara a busca por outras forças de transformação – “operação
mágica” – que nos movam ao lado de nossas forças de alteração
política, econômica e social. Valorizar o imaginário e rejeitar o
vício da ocularidade não são tarefas da razão ocidental; pelo con-
trário, trata-se do avivamento de poderes não predominantemen-
te ocidentais e que o Ocidente despreza, principalmente, após a
revolução científica.
O recurso apontado é o jogo. Além do explícito sentido lúdico,
o jogo pode guardar possibilidades insuspeitadas de criação de
nova linguagem e convivência. Ao que parece, trata-se de brincar
com o imaginário, com a literatura oral e com a história, brin-
cadeira estético-política em que o faz de conta é a porta para o
real escondido pelos prestidigitadores. Nas próximas palavras, o
sentido do jogo amplia-se:
Nesta geografia, não só os rios, mas também as ideias, os desejos, os
projetos de vir a ser, tramam labirintos.
Nada a conter. Não nos peçam a coerência e o linear.
A região é barroca. Barroca, aberta e
canibal: um dia caberá fazer esta, a última
afirmação, com mais propriedade.
(...)
Minha revolução se faz de inversões que
me libertam do dado, do imposto, do plausível. Não
sou, não quero ser plausível, grita essa região que
também já viu, mas esqueceu, foi forçada a
esquecer. (CECIM, 2009b, p.8)
O movimento de inversões é apontado como prática inicial para
a revolução. Inverter, desta forma, seria a primeira atitude sub-
versiva, uma atitude simples e repetitiva. A afirmação de que a
região é barroca e canibal faz explodir analogias – das quais deve-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

mos, no entanto, suspeitar, pois a antropofagia que se quer não é


a exata cópia daquela dos modernos, assim como o barroquismo
está bem distante do barroco enquanto estética europeia. Referir-
se à região amazônica implica, imediatamente, a floresta: de que
modo a região e a floresta são barrocas e canibais?
Em seguida, Cecim faz com que o leitor se reporte a Nietzsche ao
criticar o tipo de filosofia fundada por Sócrates e ao demonstrar
sua preferência pelo filósofo pré-socrático Heráclito, o obscuro,
cujo pensamento é vivo e supõe um mundo em constante trans-
formação. A esse respeito, lê-se no texto:
Fincado no coração de suas dialéticas racionalistas, o Ocidente, que
preferiu eleger para sua tradição a Grécia pós-pré-socráticos, a Grécia
lógica, ignora esse jogo.
“Estamos na ilusão”, também diria um Heráclito mura.
E essa herança libertária de um filósofo jônico alógico – é preciso
exercitar sempre o canibal cultural que preciso ser, diz a região – recu-
sada pelo medo ocidental, nos serve, porque com ela, também, apren-
demos a negar a realidade da fatalidade histórica de subnutridos que
o Ocidente e sua dominação nos impõem. (CECIM, 2009b, p. 8)
Percebe-se que o movimento incessante do devir heraclitiano é
unido à força e à cultura dos mura, povo originário massacrado
pelos colonizadores e sobre o qual pesam os estigmas de braveza
e selvageria, invenções ideológicas dos colonizadores para justifi-
car a dizimação da etnia. Desse modo, Cecim volta ao momento
anterior ao nascimento da razão ocidental e à invasão coloniza-
dora.
As questões que o escritor discute ainda são prementes em con-
texto amazônico, nas Américas hispânica e portuguesa, e na
África, como a dominação cultural e artística e o regionalismo. É
importante lembrar que, a respeito da afirmação enfática de que
o regionalismo, na literatura, resumiu-se às produções da década
de 1930 – as quais, infelizmente, receberam o signo de regionalis-
tas como algo pejorativo e como literatura de baixo valor estéti-
co – a discussão em torno do regionalismo foi, em certo sentido,
reavivada nas últimas décadas. Nas palavras de Cecim:
Temos as manifestações de uma arte popular entre nós. Frequente-
mente folclorizada – alienação interna da região, alimentada pelo co-

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lonizador, frequentador de um circo pacífico que ele aplaude para que


se mantenha assim – no entanto, creio, é daí que virão as nossas mais
decisivas oportunidades de escapar aos rigores e ao vício de uma esté-
tica imposta a nós. Os nossos criadores cultos, repetindo um padrão
do Ocidente colonizador, têm se apropriado dessa arte popular para
apresentá-la sob a forma de um regionalismo inexpressivo, superficial.
É preciso denunciar essa operação, e insistir em criar meios para que
essa arte se expresse por si, para que ela não seja expropriada. A outra
alternativa, a de que homens de cultura busquem a cultura popular e
a manifestem em sua própria arte [...] (CECIM, 2009b, p. 9)
Contra o “circo pacífico” e o “regionalismo inexpressivo”, ergue-
se a invenção. A deformação pela folclorização atinge os de den-
tro e os de fora da região, em uma perspectiva crítica e autocrí-
tica que demonstra lucidez quanto à extensão da invasão, ainda
em desdobramento impune. O que fazer a respeito? O autor sai à
procura de uma invenção anterior, o sertão rosiano:
Como nos expressarmos com essa retaguarda de região que somos
soterradamente, com essa retaguarda de oralidades, de lendas, de
fábulas que historicamente têm melhor nos expressado como região
e como sonho de região, como seres humilhados economicamente,
politicamente, esteticamente, mas também como seres luminosos, de
violenta riqueza vital? Em sua outra geografia, como nenhum outro,
Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino in-
dividual com o destino da sua região, e, mais ainda, soube transfor-
mar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus
livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciação na existência,
falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região.
Nele, Riobaldo é um homem e é os homens, qualquer um de nós e
todos nós, e é também Guimarães Rosa. Nesse Guimarães Rosa, o
Sertão é um sertão e é mais do que aquela região lá, geograficamente
fixada num ponto qualquer da costa do planeta. (CECIM, 2009b, p.9)
À região, dedica-se a vida em profusão, e não um regionalismo
com fronteiras geográficas. Andara localiza-se em um ponto
do mapa cuja cartografia nossa geografia desconhece, além de
também se referir à loucura defendida por André Breton. Ainda
no manifesto, Cecim volta, novamente, sua atenção crítica para
a ocularidade em que se baseia a construção do conhecimento
ocidental desde o Logos grego:

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

Matar o olho culto herdado das tradições da opressão ocidental sobre


nós. Abrir nesta noite regional um outro olho, nativo. Essas são as
práticas urgentes. De uma perspectiva menos elementar, essa é a nos-
sa fome mais urgente. Contra o colonizador, nacional e estrangeiro,
mas sem a miséria da xenofobia rancorosa, e insistindo nos valores da
insolência e da transgressão. (CECIM, 2009b, p.10)
Não há como duvidar que o texto do manifesto seja auspicioso:
ele não somente defende a Amazônia, como inventa outra, cuja
alteridade seja manifesta, e não apenas latente em cada narrativa
oral, mito, crença e vínculo com a terra, a floresta e os rios. O
que pode significar abrir o olho “nativo” após o modernismo, a
obra Macunaíma e o Manifesto Antropófago? Segundo Cecim:
“Nosso nascimento como região depende de uma morte? Sim.
Da nossa morte como miragem de região.” (2009b, p.10). Em 2003,
por sua vez, viria à luz o Manifesto Curau II / No Coração da Luz,
em que o autor avalia os 20 anos após o Manifesto Curau I:
O que restou dele? A invenção de Andara, transfiguração da Amazô-
nia em região-metáfora da vida, seguiu o seu roteiro de viagem sem
roteiro à deriva pela vida, passo a passo, através de cada um dos livros
visíveis de Andara, enquanto manifestações do não-livro, o que não é
escrito: Viagem a Andara, o livro invisível. (2009b, p.12)
A obra ficcional Viagem a Andara, o livro invisível, projeto in pro-
gress do autor, materializa aspectos defendidos no manifesto; o
poder de Andara é oriundo da dimensão do imaginário da região
amazônica, com vistas ao seu transbordamento para além das
fronteiras geográficas. O texto elucida:
A essência das exigências que fiz a mim mesmo, antes de fazê-las a
outros, contidas no primeiro Manifesto, continua intocável: trata-se,
ainda, e disso se tratará sempre, da expansão do imaginário amazôni-
co. Tem sido ele, o Imaginário da região, a minha única companhia na
solitária aventura estética e espiritual que é a Viagem a Andara, esse
percurso claro-escuro entre as coisas que são e as coisas que não-são,
que, tendo se iniciado a partir da hipótese Andara=Amazônia, che-
gou à inversão dessa hipótese originária, e atingiu o ponto, sem re-
torno, em que já se dá, atualmente, a formulação: Amazônia=Andara.
Pois durante a viagem, Andara cresceu, além de si e além de mim, e
se expandiu em região-metáfora da vida ela toda, inteira, da terra ao
céu, das serpentes às asas mais vastas, para bem além das coisas que

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a visão humana já não alcança, e apenas pré-sente [...] (2009, p.13)


A afirmação “– Nossa História só terá realidade quando o nosso
Imaginário a refizer, a nosso favor”, presente no primeiro mani-
festo, é a epígrafe do segundo. A lucidez do autor é veemente sem
ser dramática; nada foi feito politicamente desde 1983:
[...] tantos anos depois ainda somos flagrados em delito contra as nos-
sas noites e os nossos dias, ao constatarmos, hoje, que quase nada
realizamos do que aquela Voz faz tanto tempo nos pedia. O projeto
acima citado, certamente utópico (...) ainda está muito longe de se
tornar realidade,
e o que é mais grave: parece até mesmo se afastar cada vez mais de nós.
Fogos cada vez mais se acendem na Sagrada & Violada Floresta, mas
não iluminam suficientemente a Face Oculta da nossa consciência re-
gional.
Diante disso, o que resta fazer?
Insistir, persistir nas exigências do primeiro Manifesto Curau, tentar
fazer com que a sua primitiva Voz ainda ressoe através desta centelha
talvez propiciatória a um segundo Manifesto Curau, ou não, e que ela
encontre acolhida nos ouvidos das novas gerações e se transfigure em
prática cotidiana do ato de sonhar em estado de vigília. (2009b, p. 14)
Cabem às novas gerações as tarefas de insurreição e invenção; o
segundo manifesto refaz a conclamação. O texto não economiza
na persistência, qualidade inevitável para o advento de qualquer
futuro. Cecim faz o chamado:
A vocês cabe a missão, o passo insurrecto. Quantos ousarão?
Ou dão o passo em falso que a vida exige de nós, para além ou aquém
dos limites que uma civilização
agonizante quer impor ao ser humano, ou só lhes restará fazer a triste
opção de se tornarem herdeiros da nossa impotência regional. (...).
Se vocês pararem realmente para observar,
não como habitualmente: o Céu da Terra,
mas insolitamente: a Terra do Céu,
verão que a Amazônia, apesar de seus torturadores & de seus filhos
indiferentes, ainda é o espaço que, aqui embaixo, enquanto todos dor-
mimos os nossos sonos alienados, reflete & dialoga com as estrelas
e, mais atrás delas, com o Oculto Negror de Onde emana toda a luz.

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

Nos recusemos às Cinzas.


Cintilemos.
Tentemos, ainda uma vez, permanecer no lugar mágico em que a vida
nos lançou. Nós ainda estamos no Coração da Luz. (2009b, p.15)
O teor do primeiro manifesto mantém-se, agora com um quê a
mais de solidez; afinal, a afirmação da observação da terra a partir
do ponto de vista do céu, do que está acima, parece ser feita por
alguém que já o conhece, como algo ao alcance de nós a todo
momento – um “nós” que repudia as cinzas, a destruição, a de-
vastação da floresta e do mundo.
Em 2009, o escritor faz uma reflexão sobre os dois manifestos
em que se percebe o ceticismo, o olhar analítico que reconhece
a lentidão dos processos de mudança, ao mesmo tempo que não
desiste do sonho:
Enquanto Flagrados em delito contra a Noite/Manifesto Curau, o Ma-
nifesto I, de 1983, foi uma Palavra para Todos, o que falou após ele vin-
te anos depois: No Coração da Luz/Segundo Manifesto Curau, ou não
é uma Voz que se dirige, com menos ingenuidade, objetivamente cé-
tico-estóico-Sêneca apenas às Gerações Futuras. Nesse sentido, houve,
em relação ao que o anterior propunha, uma redução de expectativas
ou um des-iludir-se como libertação das falsas esperanças: - Como
creio que as Mutações das Consciências se darão lenta e impura men-
te mescladas [...]Sonho esta Utopia, no foradentro da VidAndara: - So-
nho que, Se, florescerem duas gerações inteiramente inter-rompidas
com o passado, nascidas - que Milagre, ó ser de espanto - sem antece-
dentes - isso limparia, lavando e queimando, a Vida humana de seus
Vícios públicos e privados. (2009b, p.2)
Ainda está presente a possibilidade de transformação como ques-
tão de princípio ou como escolha que se faz de modo contex-
tualizado; nesse caso, no contexto da Amazônia atual – com in-
cêndios, extração dos bens naturais em grandes áreas, luta pela
terra, construção de hidroelétricas, roubo de espécies, corrida
de patentes, comércio de carbono, concessão para exploração
de minérios e poluição hidrográfica crescente. As referências às
gerações sem antecedentes, sem passado, é uma alusão ao não
apego ao passado colonial, ao desprendimento dos grilhões da
história cujo protagonista central é, supostamente, o dominador
ocidental.

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Ao defenderem uma espécie de desocidentalização da história


e do imaginário, os manifestos confirmam a complexidade que
se encontra nos esforços de aproximação com Andara, com sua
literatura oral, seus seres encantados, híbridos, estranhos e sem
nome, de linguagem proveniente do invisível e cujos silêncios
não escondem a iminência da fala.

A viagem incessante, a história em devir


Percorreremos, a partir de agora, alguns trechos de Viagem a An-
dara, o livro invisível em que a valorização do imaginário, do so-
nho e da inversão, defendida nos manifestos, é, em grande parte,
realizada esteticamente. Nesse sentido, o leitor encontra textos
escritos com letras da terra, da floresta e de todos os seus seres
naturais, encantados, insólitos, híbridos, autores de uma outrida-
de que não se rende, de uma Amazônia como alteridade radical
que não se desvenda nem se antropomorfiza. Assim como um dia
é a miniatura de uma era, um pequeno ser ou uma pequena letra
contempla a enorme Andara.
O primeiro livro visível de Viagem a Andara, o livro invisível cha-
ma-se A asa e a serpente (1988, p.11-57). Publicado em meio à
ditadura militar, em 1979, ficcionaliza o retorno do personagem
sargento Nazareno da morte, após ter sido assassinado pelo nar-
rador que, juntamente com outros, foi vítima da crueldade e da
opressão do militar e, por isso, perdeu um dos olhos e ficou cego.
Se uma vez o opressor fora morto e a liberdade retornava em se-
guida, o que todos assistem é a volta do morto, dono de uma mão
que mata (a mão direita) e uma mão que não mata (a mão esquer-
da); ele, “esfaqueador de aves” e “incendiário de florestas”(1988,
p. 24).
O sargento Nazareno provoca nos moradores de Santa Maria do
Grão (antigo nome da cidade de Belém) lembranças de seus atos
violentos e cruéis. Curiosamente, no entanto, a certa altura da
narrativa, o sargento desiste de sua vida militar e dois finais falsos
são anunciados. No primeiro final, o esquecimento agiria sobre o
narrador, que não se lembraria de que uma vez matara o sargento,
o que traria a aparência de que Nazareno não morrera, estaria
vivendo pela primeira vez e teria direito à felicidade. No segun-
do final, o narrador, portador da memória do passado, não su-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

portaria a possibilidade de o sargento Nazareno voltar a oprimir;


por isso, o narrador, novamente, o matara (1988, p. 55-56). Com
memória ou sem memória histórica, o perigo é sempre iminente.
Como os dois finais são falsos, trata-se de uma farsa que não
resolve o problema da opressão: matar ou deixar viver são atos
igualmente perigosos. É fato que o morto que volta à vida foi as-
sassinado por traição, e apesar de o nome fazer lembrar o messias
histórico, o personagem não ressuscita: é, antes, um morto vivo
que arrasta seu caixão pela rua e se posta na praça da cidade, exa-
tamente no lugar em que foi fatalmente golpeado (1988, p.16-20).
É preciso ter cuidado com o poder: enterrado, continua vivo, so-
brevivente subterrâneo, sempre pronto a voltar.
Como o truque mais esperto do diabo é convencer-nos de que ele
não existe, o esquecimento já age sobre muitas gerações que não
sabem que houve a ditadura militar no Brasil. Os habitantes de
Santa Maria do Grão têm a sorte de que o assassino do sargento
vive, ainda, entre eles, dono da memória do passado, e que não se
compadece do morto vivo.
O terceiro livro visível, A noite do Curau, posteriormente reno-
meado como Os jardins e a noite (1988, p.59-108), ficcionaliza,
pela boca do narrador Jacinto, a história de Curau, um pássaro
vermelho encontrado pelo narrador que dele cuidou e teve seus
olhos furados por ele. Isso o fez passar a ver verdadeiramente. Ja-
cinto conta ao leitor que Curau furou os olhos de muitos, gerando
o terror nos habitantes, a quem Jacinto aconselha, contrariamen-
te, que rezem pela volta de Curau. De fato, ao longo de todo o
livro, Jacinto espera pela volta do pássaro, que poderia libertar a
todos da visão ineficiente que passa pelos olhos (1988, p.116-124).
Além de Jacinto, que teve seus olhos furados pelo pássaro, o per-
sonagem antagonista de Os animais da terra (1988, p. 59-108),
segundo livro visível, também é cego. O narrador-personagem o
chama de cego Dias, um personagem violento, opressor de traba-
lhadores que cultivam um campo de urtigas, e obcecado por sua
esposa, uma mulher alada que emite luz e a todos atrai (1988, p.
63-75). Em ambos os livros, a visão não depende dos olhos. Em
Os jardins e a noite, a cegueira é elogiada porque é geradora da
sabedoria de Jacinto. Já em Os animais da terra, os trabalhadores
nada veem, têm seus olhos abertos, mas não estão despertos; sua

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Métodos Fronteiriços

cegueira não é física, embora determinante. O portador da ce-


gueira física, o cego Dias, muito vê, é hábil em capturar pássaros
(1988, p.80) com a ponta de sua bengala, assim como em esmagar
as formas viventes que, porventura, tentam se aproximar de sua
esposa (1988, p.79).
Em ambos os personagens, está claro que são outros olhos que
permitem a visão. Nisso se encontram a mencionada crítica ao
vício ocidental pela ocularidade, o que já encontramos nos mani-
festos, e a necessidade de valorização do imaginário e do sonho,
em detrimento da visão – lembrando, é claro, que Cecim vincula
esse imaginário à floresta e aos seres que nela habitam, à terra, ao
vento e aos rios.
Um dos pontos culminantes da sociedade que há entre todos os
seres vivos da floresta localiza-se em Os animais da terra. Neste
livro, o leitor encontra-se com a terra, o fogo, a água, o ar, os seres
que habitam tais elementos e todos os habitantes da floresta em
acasalamento com Caminá, a mulher-ave que dá à luz ao “deus
vermelho”, “animal da terra” (1988, p. 90-108). Tal acasalamento
é o motivo para a transformação do estado das coisas: os traba-
lhadores da plantação conquistam a liberdade. Entreve-se, aí, que
a gênese de um deus depende da atuação humana e que há equi-
valência ontológica de todos os seres. Os animais, as árvores, as
aves, o deus vermelho, o curau, os cegos, todos participam de
uma ontologia que equaliza os seres, equalização que possui o
tom da revolução, autora de uma insurreição no plano do vivido.
Assim, Andara é uma Amazônia que vai sendo imaginada, mate-
rialmente, por um outro imaginário, que não obedece ao coloni-
zador: trata-se de um modo de escritura que quer se aproximar
da vida, quer ser vida, em que a transfiguração do real é oferecida
à história pela escritura invisível e escrever é viver. Que método
poderia auxiliar o leitor a se aproximar das narrativas poéticas
que versam a partilha da floresta por todos os seres, visíveis e in-
visíveis? Este método não deveria dispor de outro modo de aces-
sar o real que não seja o racionalista, que pressupõe uma visão de
mundo dual (racionalidade x sensibilidade)?

Limites da crítica e dos métodos


A proposta de Vicente Cecim dirige-se à elaboração de uma con-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

traescritura, com o uso incessante do martelo sobre a razão oci-


dental, a cultura ocidental e os seus modos de olhar e pensar. O
leitor percebe isso com a leitura de apenas um livro visível. O
caráter raso da cultura ocidental, dual, fiel à distinção parmeni-
diana entre ser e não ser e reverente ao princípio aristotélico de
não contradição. É motivo de escárnio e figura de violência, e o
projeto ocidental é denunciado como algo inócuo e estéril. Isso
se percebe na literatura andarana de muitas maneiras – explicita-
mente, em muitos trechos, e implicitamente, ao não lançar mão
da eloquência, dos silogismos ou outros racionalismos comuns à
tradição grega, como a questão do dever e da justa ação na cria-
ção de personagens e acontecimentos.
A ausência de crítica literária sobre as obras da região Norte, em
geral, não é necessariamente motivada pelo desconhecimento: a
obra de Vicente Franz Cecim recebeu, em 1988, o Grande Prêmio
da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A
parca fortuna crítica sobre a obra, os poucos leitores e a resistên-
cia do mercado editorial do Sudeste e do Sul do país em relação
à publicação da obra apenas obedecem, ainda, ao colonialismo
do saber e do poder, engendrador da relação que os estados mais
ricos e desenvolvidos mantém com os estados do Norte e do Nor-
deste do Brasil.
Como dito anteriormente, entre as qualidades visíveis do invi-
sível, a escritura de Cecim possui a dinâmica do hibridismo de
prosa e poesia, narrativa e sensação. Sua obra é sobre o real tátil e
não o objetivado, exclusivamente, pela contemplação. Indepen-
dentemente da película que cobre a pele do real, sua escritura não
descortina o invisível: marca a presença simultânea do invisível,
possuidora de uma outra física, outra matéria, no máximo o real
quântico, veloz e plástico, ou o volume, a densidade, a intensida-
de, e a infinitude da energia. Por isso, os métodos sentem a repul-
sa assim que o leitor os aproxima do texto andarano.
A suspeita quanto aos métodos, mais do que necessária, é a garan-
tia de que a história permaneça operando na “literatura fantasma”
e que a abstração não tome o lugar do vivido. Maiores desafios
do leitor: não tomar asas emprestadas – leituras já realizadas – e
não perder a memória histórica em nome da paixão e do tom
encantatório deste mundo que é Viagem a Andara, não sem antes

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Métodos Fronteiriços

compreender qual é o seu valor e seus motivos. Por isso, não se


trata de o leitor ser fiel às afirmações encontradas na obra, dos
narradores e do autor, sem desconfiar da voz dona da palavra e,
especialmente, dona do silêncio.
O texto, ondulante, se não se deixa apreender em linhas retas,
também não deve ser seguido com fé cega. É necessário a suspeita
crítica, olfativa, auditiva, gustativa, tátil, onírica e do imaginário
para que a afinação entre linguagem e volume semântico dê-se à
sensibilidade do leitor – percepção, por outro lado, também sob
suspeita, porque precisa manter-se, sempre, à distância da crença
na ataraxia.

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linguagem imaginária de Andara. Tese de doutorado – Univer-
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12 de Janeiro de 2015.

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

______. Viagem a Andara, o livro invisível. São Paulo: Iluminu-


ras, 1988.
______. A asa e a serpente. In: ______. Viagem a Andara, o livro
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______. Os animais da terra. In: ______. Viagem a Andara, o
livro invisível. São Paulo: Iluminuras, 1988. p.59-108.
______. Os jardins e a noite. In: ______. Viagem a Andara, o
livro invisível. São Paulo: Iluminuras, 1988. p.109-176.
______. Manifestos Curau. Disponível em http://www.cultura-
para.art.br/Literatura/vicentececim/manifesto_Curau.pdf.
Acesso em outubro de 2014.
______. Vicente Cecim completa série do DIÁRIO. s.d. Dispo-
nível em www.diariodopara.com.br/impressao.php?id-
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JUCÁ, Karina. Andara, Vicente Franz Cecim e a narrativa on-
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Castañon Guimarães. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.
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O poeta que apelou para
o futuro. Tecnociência e
insólito na poesia de André
Carneiro

Osvaldo DUARTE1

“Caço palavras no abismo, limpo sombras. adiciono asas.” André Carnei-


ro (Quânticos da incerteza).
A poesia de André Carneiro esbanja aquele poder de singulari-
zação de que falavam os Formalistas: surpreende o leitor pelo
alto poder de descentramento, como se o poeta revelasse sempre
mundos novos, ou como se o leitor, à moda daquele estrangeiro
imaginado por Jan Mukarovsk (1971, p. 72), despertasse a cada
manhã, à sua revelia, em um planeta estranhamente novo. Inte-
ressa ao poeta descompor a ordem tangível das referências que,
para ele, “são feitas de palavras obedientes, / (...) testemunhas
falsas,/ [que] só decoram, repetem e representam” (1982, p. 12).
Interessa-lhe outro mapa de coisas, uma ordem superior, ruidosa,
que apenas resvala na função de comunicar. E, por isso mesmo,
não se dissolve no ato de recepção. Trata-se de um daqueles dis-
cursos que não se ilude com seu poder de palavra, razão pela qual
não se limita a falar da realidade, assumindo a complexa aventura
de ser uma fala que indaga a si própria, máscara que ironicamen-
te se aponta.
A afirmação sartreana de que a existência precede a essência, isto
é, de que o fenômeno causa primeva e diante dele o homem é
1  Doutor em Teoria da Literatura pela Unesp, Campus de São José do Rio
Preto. Docente da Universidade Federal de Rondônia, campus de Vilhena.

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Métodos Fronteiriços

levado a reagir e a posicionar-se, cabe também perfeitamente à


obra desse escritor, cujo emblema é o seu comprometimento ra-
dical com a realidade. Mas a realidade, matéria do seu processo
de invenção, jamais é apanhada por meio de uma lógica mera-
mente formal, mas a partir dos múltiplos movimentos da dinâmi-
ca perceptiva. O que se vê, portanto, é um eu permanentemente
mutante, rejeitando dogmas, desfazendo tabus e defendendo o
pressuposto de que é sempre possível ser diferente e novo. Bas-
tam os títulos de algumas obras para sugerir-lhe um perfil: Vir-
tual realidade, Exemplos do insondável, Quânticos da incerteza,
Indecisões indefinitivas. Elas revelam, sem nenhum esforço, uma
aura de precariedade, indecisão, dúvida e incerteza, mas acima
de tudo uma tendência para a vazão de desejos irrefreáveis. Não
há, portanto, lugar para meio-termo, pois o espaço e extensão de
sua voz parecem ocupados por ecletismos e justaposições funda-
dos em uma estética da combinação, inclusive de forças ou ele-
mentos dissonantes.
O livro de estreia, Ângulo e face (1951), em que o “Ângulo sobre
a face” é “uma esperança / de asas soltas” (p.34) indica já uma
visão coplanar, mas ao mesmo tempo fragmentária da realida-
de, de modo que o ângulo e a face que representam um o plano
e o outro o corte sejam elevados à categoria de totalidade uni-
dimensional. Visão de coisas que se materializa ainda mais em
Espaçopleno (1966), o segundo livro, tanto em nível semântico
pela sugestão de uma existência cósmica, aparentemente errante
e sem limites, como em nível formal, a partir mesmo do título,
cuja carga expressiva advinda do metaplasmo por composição
justaposta indicia o teor do livro. Essas forças dominantes - incer-
tezas e precariedades - que regem o pensamento do autor pare-
cem nascer de uma razão prática que toma o homem e o universo
como espaços de dúvida. Não se trata, contudo, de uma dúvida
cética, forjada pela impossibilidade de se alcançar a desrazão da
mínima verdade, mas sim de um comportamento que se asseme-
lha à dúvida científica, cotejando hipóteses e variáveis e elegendo
o universo da tecnociência como matéria para a lírica. Dito isto,
podemos constatar que André Carneiro revisita uma fonte de
emoções antes experimentada pela poesia científica, metafísica
e pela literatura fantástica. Em sua voz, contudo, “predominam
as notas claras e as harmonias diurnas”, sem aspereza ou sotur-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

nidade (Cunha, 1949) de Augusto dos Anjos, por exemplo. Os


tons menores, quando existem, manifestam-se pela frustração do
desejo de realização, isto é, pelo esforço de transpor as trevas da
objetividade por meio da percepção poética e expressão surre-
al. Há, sobretudo, como exemplo no poema Bolha na eternidade
(1982, p. 25) o desejo, o sonho, o vislumbre do futuro:
O que se pensa o tempo realiza.
Pelo espaço voam histórias fictícias
e se cristalizam,
a bala de Verne,
e sonho de olhos abertos
na virtual realidade.

O que faço neste corredor à prova de unhas?


Fabrico bombas,
uso carvão desta febre,
o enxofre do comportado inferno,
explodo o labirinto com a bandeira pirata rasgada.

Trilhos da ideologia rompida


(...)
o amor mora na carne
(...)
enquanto o relógio estaca estarrecido
e o tempo é uma bolha na eternidade.
O que aí se lê é uma adesão ao universo da tecnociência e às suas
atuais relações com o conceito não mecanicista de progresso,
aquilo que o tempo da natureza não é capaz de realizar.
É por meio do espaço ocupado cada vez mais por satélites me-
cânicos, sondas de exploração remota, máquinas espaciais tri-
puladas, “voam histórias” que o poeta chama ironicamente de
fictícias, que seu próprio universo de fantasia e ambiguidade é
criado, como se tentasse reforçar e ao mesmo tempo atenuar as
relações entre a imaginação e o mundo que nos acostumamos a

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Métodos Fronteiriços

tomar como real.


Se por um lado parece tratar objetivamente da própria ficção
científica em que se insere, dada a presença de Verne, o roman-
cista, e a linguagem parece tender para o referencial, por outro
lado irrompe inexoravelmente a presença sutil e poderosa da
dominante poética a partir da alegoria “histórias científicas”, da
fragmentação do discurso e principalmente a partir dos dois ver-
sos finais que se encarregam de perturbar a noção mecanicista
de realidade. Aproximando as noções de realidade referencial e
de realidade virtual através da inversão da locução adjetiva no
último verso da estrofe. Transforma-se assim, por meio de uma
percepção quântica da realidade, o real e a realidade virtual (a um
só tempo) em “virtual realidade”, estabelecendo o ponto de par-
tida do seu mosaico de ideias. Como se vê, e por efeito da ironia,
o poeta coloca em nítido contraste a aparência e a realidade, para
em seguida, desfazendo o desvio da ironia, eliminar esse contras-
te no interior do próprio ato de enunciação. Chama de “histórias
fictícias” o que, tendo sido ficção (científica), pode ser tomado
hoje como narrativa corriqueira, como se as narrativas tivessem
perdido o seu poder inventivo ou como se os parâmetros de re-
alidade estivessem desde sempre condicionados a uma percep-
ção duvidosa. Mais contundente é o valor expressivo dos verbos
nesta estrofe. As formas /pensa/ e /voam/ sugerem ações que o
poeta expressa como atos habituais, dado o caráter frequentativo
que assumem. Outras formas, porém, (“realiza”, “cristaliza”) ex-
pressam ideias a que são atribuídas caráter de verdade científica,
mantendo o jogo e a tensão entre linguagem referencial e lingua-
gem poética.
Esse jogo difuso entre o aspecto frequentativo (pensar - voar) e
a ideia de permanência do presente durativo é referenciado pelo
último verso da estrofe, “virtual realidade”, cujo significado re-
produz a ordem e a estrutura de todo o texto. Note como o poeta,
através da fragmentação que domina a estrofe, tenta atualizar os
movimentos da sua virtual realidade, simulando e negando a or-
dem “estruturada” do mundo: o terceiro verso (“e se cristaliza”) é
um fragmento deslocado do interior do segundo (“pelo espaço
voam” [“e se cristalizam”] “histórias fictícias”) e o quarto verso,
que seria um aposto de histórias fictícias, torna-se estranho em
relação ao seu determinante pelo deslocamento e interposição do

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

verso anterior, dissolvendo também as relações sintáticas entre o


segundo verso e os dois últimos, já que é “Pelo espaço” (v.2) “que
o sonho” (v.4) “se cristaliza” (v.3).
Tudo o que se apresenta na estrofe é plenamente realizável, ou no
dizer do poeta, cristaliza-se: o avançar do tempo sugere as suas
a perspectivas para o futuro e para o progresso tecnológico, já “a
bala de Verne” é um dos símbolos do que hoje conhecemos por
nave espacial e presentifica, como alusão intertextual, o objeto em
forma de projétil que o escritor francês descreve em seu romance
Da terra à lua (1865). O que o poeta chama de virtual realidade é
o que se poderia tomar, em uma perspectiva lírica, de reinvenção
do mundo pela linguagem; e, em uma perspectiva teórico-prática
de fenômeno multiperceptivo, tendo-se em vista as transforma-
ções que o mundo moderno tem experimentado, desde aquelas
provocadas pelos artefatos e técnicas que compõem o universo
digital e multimidiático, às múltiplas leituras de mundo promovi-
das pelas teorias da percepção. O que se tem, portanto, é uma lin-
guagem capaz de deslocar a percepção ou levar à sensação de que
o que se está vivenciando é invenção genuína e, ao mesmo tempo,
uma partilha da realidade. O poeta trabalha como se projetasse o
real em um ambiente virtual, a fim de ampliar a sensação de re-
alidade e atingir o efeito de múltipla dimensão. Para isso, vale-se
da fragmentação discursiva e da articulação caótica de sentidos,
intercalando efeitos do real e projeções fantásticas, além de trazer
para a poesia todo o universo da ficção científica.
Relembremos o título do poema: “Bolha na eternidade”. Diante
da quase anulação dos limites entre o real e o virtual, o poeta
pergunta no primeiro verso da segunda estrofe: “O que faço neste
corredor à prova de unhas?” A fragilidade da separação entre o
real e o virtual contido nas metáforas em gradação “bolha, corre-
dor e labirinto” (na eternidade e a prova de unhas) dá a medida
exata do seu lugar no mundo, da sua insegurança e dúvidas, cuja
resposta em enumeração caótica completa o segundo seguimen-
to do texto. Perceba, contudo, que o tempo ou a passagem para
o futuro representados por “bolha, corredor e labirinto à prova
de unha” só se realizam mediante o uso de “bombas, carvão e
enxofre do comportado inferno”, instrumentos contrários à fra-
gilidade da bolha, mas determinantes da fragilidade do eu que se
diz um pirata rebelde à procura de outra dimensão da realidade.

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Métodos Fronteiriços

A conquista dessa dimensão pela força do “fogo da febre” e do


“comportado inferno” desfaz o mundo das experiências raciona-
lizadas e une a realidade e o sonho em um mundo novo e refeito
com palavras, em que os “trilhos” da “ideologia” são rompidos,
“o amor mora na carne”, onde há liberdades e todo tipo de desre-
gramento.
A imagem da bolha, símbolo de fragilidade e efemeridade, é tam-
bém, por via irônica, uma crítica à ilusão geográfica de delimi-
tação do universo. Metaforizada no poema, empola ao alcance
da unha; e, uma vez rompida, parecesse condicionar a realidade,
promovendo a dissolução da dúvida, ao tempo em que se dá a
conquista da realidade, agora não mais como dualidade entre
o mundo natural e o virtual, mas como uma realidade superior
que não admite o emparedamento, já que todas as possibilidades
perceptivas podem ser consideradas. O mundo desejado é, afi-
nal, para o poeta, um espaço onde não há lugar para os estados
de culpa e carência. A existência que se quer não é aquela com
ideais pré-fixados pela história, pela fé ou ideologias à direita ou
à esquerda, “mas aquela que flui para todos os lados, sem rotinas,
enraizada no presente e aberta ao devir” (Santos, 1994, p. 76), em
um tempo virtual, em que é possível moldar e refazer os desejos
à medida dos próprios desejos. Esse mundo refeito chega muito
próximo da eliminação da ideia de real, até que no penúltimo
verso “o relógio estaca estarrecido”, interrompe o processo e de-
volve o poeta à realidade, pois este sabe que o futuro, apesar das
simulações e projeções, continuará sendo uma incógnita. Mas se
o relógio hesita, o tempo continua a fluir enquanto o poema mi-
nimiza a dúvida inicial (entre o referente , o fantástico, o absur-
do). E, visto que o relógio não domina o tempo, a bolha prosse-
gue a vagar na eternidade, simulacro-espaço-tempo imensurável.
“A suposta unidade do cosmos levou a ciência a opor o Homem
(o conhecedor) à Natureza.” Esse tipo de domínio sobre o mun-
do sensível resultou na sua fragmentação e quantificação, prin-
cípios da racionalidade, capazes de “tornar as coisas previsíveis”,
anulando “a eterna novidade do futuro”, o “movimento sempre
incerto”, mas de onde jorra a ainda indecifrável fonte da vida. A
dissolução dessa ordem – modo como tem dominado o pensa-
mento ocidental – só parece ser possível, mesmo nestes tempos
de hipermodernidade, pelas mãos do artista intimamente inte-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

grado ao seu tempo e cujo pensamento estético atue em uma fre-


quência combativa e imune aos paradigmas comportamentais. Já
que o ocidente sempre rejeitou as diferenças, seja do estrangeiro,
do índio, do negro, do louco ...” (Santos, 1994, p. 76, 80) e da poe-
sia, expulsa da República e, desde sempre, habitante atrevida das
bolhas da existência.
A poesia de André Carneiro refaz o mundo sob a perspectiva da
dissolução. Admite uma ordem racional das coisas, mas ironi-
za os seus preceitos e certezas; não despreza crenças, mas toma-
-as em seus entrelaçamentos com a vida, a arte, a tecnociência.
Há em sua lírica o eco da não resposta às perguntas existenciais
como “por que vivemos”, “o que somos”, “onde estamos”, apesar
da presença da biologia, da química e da física ancorarem os seus
versos. Com efeito, a tendência de unir subjetividade poética e
fenômenos biológicos ou fisicamente experimentáveis está na
gênese mesma de seu processo imaginativo e evolui em comple-
xidade no decorrer de toda a obra. O interesse pela robótica, far-
macologia, cosmologia nos primeiros livros, progride para uma
imaginação cuja miragem é a física quântica, disciplina, que, por
supor serem descontínuas as variações de grandezas pertinentes
aos fenômenos naturais, assume lugar de destaque em seus tex-
tos. O princípio de incerteza, conforme denominado por Werner
Heisemberg, segundo o qual um átomo pode transmutar-se nas
contingencias da observação, parece concretizar-se na feição de
um de seus poemas, cuja fatura referencia o progresso da física
moderna.
Einstein já demonstrara em sua teoria da Relatividade que a
posição do observador tem consequências sobre o resultado da
observação. Com a física quântica, a incerteza ganha maior sus-
tentação, tornando-se “um parâmetro legítimo de investigação”
e elevando-se “a primeiro plano na estruturação do pensamen-
to científico do século XX”. (Morales, 2011, p. 11) Essas lições
apreendidas por André Carneiro, leva à desreferencialização do
espaço-tempo, em uma mistura de prospecção e delírio, a fim de
instaurar um espaçopleno que é a metáfora contínua da realidade,
em que o real não é apenas parcial, mas mutante e fragmentado.
Não se trata, contudo, de uma visão relativista ou niilista do mun-
do, mas de uma imaginação que presa o universo do presente
hipermoderno, de mutação e de instabilidade. O não equilíbrio

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Métodos Fronteiriços

é apenas um elemento da ordem e não um pressuposto ao caos


como desequilíbrio. O caos, aliás, (ou o jogo de possibilidades
como substitutivo de certezas), conforme proposição de Ilya
Prigogine (2011), cuja teoria parecer estar também presente no
universo das pesquisas do poeta, não é apenas regido por uma or-
dem, mas pela condição estruturante do mundo em que vivemos.
Assim, à medida que a ciência convive com o incerto e o inex-
plicável, o poeta sente-se livre em sua errância, fragmentando o
mundo, construindo labirintos, alimentando a dúvida. Como se
vê em Telefone calado (1992, p. 16):
Fragmento coisas
porque o linear está perdido.
Cada pensamento junta pedaços,
meu intento é um abraço morno,
sem palavras.
Ou nestes versos do poema Testemunhas falsas (1992, p. 12):
Toda a coerência é falsa.
Serve para discursos
e a matemática primária.
São erráticos os números quânticos,
o pensamento se arrasta
no oceano de náufragos e sereias.

(...)
Recrio o vazio do sonho ....
O fragmento, o não linear, a inversão, a bricolagem são traços
de estilo caros a este poeta e enquadram seus textos, seja como
prática discursiva, seja como motivo ou assunto, como mostram
os dois fragmentos em destaque, em uma organização similar ao
mundo que neles se organiza, buscando o virtual e o simulacro,
geradores da dúvida. Outro exemplo desse modo de realidade é
o que nos dá o texto “Antigamente e hoje”, que abre o livro Espa-
çopleno (1966, p. 1). Este é um dos textos que marca a gênese do
pensamento poético de André Carneiro e traz - algumas em la-
tência, outras em vidência - as principais características do autor:

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

Antigamente e hoje

Toca-se um botão,
nasce a tartaruga
exata, cibernética.

Euforia vai à fonte


de meprobamato.
Propaganda subliminar,
põe-se gravata
de polietileno,
dentes na clorofila.

Agora é fácil,
a morte vem
da estratosfera
nas estrelas a jato.

O medo criou asas,


alçou voo,
cobriu o sol.

O cogumelo derrama
a sombra radiante
sobre o mar.

Peixes morrem calados.


Homens resolvem
explosões,
inocentes
e secretas.
Diante desse poema, a primeira impressão é aquela que o títu-

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Métodos Fronteiriços

lo induz: tudo indica tratar-se de duas realidades temporais em


oposição (o passado e o presente) contidas, respectivamente, em
“Antigamente e hoje”. Mas, fazendo o percurso do título ao cen-
tro do texto, percebe-se certa ocultação e ambiguidade, visto que
não se encontra nem a dualidade ou oposição sugerida pelo títu-
lo, nem a totalidade circular da relação passado-presente-futuro.
Mas sim a atemporalidade por força do emprego estilístico da
voz passiva, como se um fato do presente que marcara o passado
recente pudesse ser atualizado, tanto no passado (como memó-
ria), no presente (como constatação e medo), e no futuro como
manifestação de dúvida. Instaura-se, portanto, na relação título-
poema uma sugestão de incongruência e percebe-se, através da
realidade artística criada, o primeiro contraste entre as leis do
universo perscrutado e as da realidade vivida. Esta, sob o signo
do ‘medo’, desfaz a organização temporal e espacial inerentes à
vida que se revela sem substância, contudo sem revolta, como se
poderia esperar. Há constatação de frieza, apatia pela realidade
descrita, mas há também certa satisfação e certa ‘euforia’ sensa-
cionista pela técnica e pela industrialização. Veja exemplos de
referências a elementos como “meprobanato”, “politileno” ou aos
“dentes” postos “na clorofila”. Neste caso há, sobretudo, inquieta-
ção.
“Toca-se um botão / nasce a tartaruga” (...). Simular por imagens
é um dos procedimentos característicos desse poeta. Simula tam-
bém o tempo, traça limites cronológicos que deixa implícito, pois
detém-se preferencialmente no presente-futuro, tempo de medo,
de inquietação, mas de imagens sedutoras representadas pela
“propaganda subliminar” do avanço tecnológico e da afirmação
da capacidade inventiva do homem. Simula sempre, até que as
marcas da memória se desfaçam mesmo na diacronia de sua exis-
tência, já que o “antigamente”, ainda que traga lembranças con-
fortáveis como no poema Mão infantil (1988, p. 38) –
(...)
A mão infantil recomeça,
sonho por sonho
a fabricar
carimbos de vitória.

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

(1988, p. 38)
– está marcado também por atos negativos: o poema, aliás, como
indica o verso onze, trata essencialmente da morte. Como já se
disse, há dúvida e temor, e o texto já no primeiro verso (“Toca-se
um botão”) diz o porquê. Contextualizemos o poema a seguir.
Escrito no final da década de 1950, o texto responde às condicio-
nantes da chamada “Era Espacial”. Os eventos desse período, hoje
apenas folclóricos, tanto coroam de êxitos os esforços em torno
da cibernética e dos primórdios da tecnociência, quanto açodam
o mal-estar e o estado de incerteza quanto ao futuro da humani-
dade, dado o acirramento da Guerra fria que adquire, a partir de
então, novos elementos, como o controle mais rigoroso da infor-
mação e a espionagem tecnológica. A vida, enfim, transfigurava-
se, com a criação do computador (1951), a descoberta do DNA
(1953), do chip (1957), enfim, inicia-se o período pós-industrial
e o mundo começa a se digitalizar. É nesse contexto, ainda sob
o impacto da destruição de Hiroshima e Nagasaki, que o livro
Espaçopleno é escrito. O Brasil experimenta um período de forte
industrialização, investimentos em infraestrutura e o surgimento
dos primeiros bens domésticos e de uma classe burguesa consu-
midora. Já no aspecto cultural, a revolta modernista parecia ter
se esgotado e a renovação que poderia sugerir o diálogo entre as
tendências em voga, recolhe-se ao monólogo, ora pelos caminhos
da tradição defendidos pela Geração de 45, ora pelas aventuras
de vanguarda.
As ciências se desenvolvem em ritmo jamais visto, vislumbran-
do, amedrontando e concorrendo com a imaginação. Surgem os
mecanismos autocomandados, a cibernética sugere artefatos ca-
pazes de substituir o cérebro humano; vive-se, portanto, em plena
era do botão, e basta acioná-lo, em casa, em Moscou ou em Wa-
shington para que tudo aconteça, inclusive a morte, como teme
o poeta:
a morte vem
da estratosfera
nas estrelas a jato.
Além do texto aqui estudado, outros poemas como “Ar”, “O pla-
netário”, “Corrida no espaço”, “Retrato da terra”, “Ficção Cientí-

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Métodos Fronteiriços

fica” e “O dia final”, do mesmo livro, Espaçopleno, como muitos


outros dos livros seguintes, foram influenciados por esse esta-
do de dúvida entre o fascínio e a insegurança provocados pela
presença e força encabuladora das transformações científicas. É
nessa dúvida que se instauram os lapsos de sentido. É nesse tipo
de visão, jogando com o medo coletivo e com o fascínio pessoal
pela técnica que a voz do poeta se perde e se desreferencializa:
não há no texto, como pudemos ver, as marcas do antigamente
já que o ontem é um tempo disperso e indefinido que faz parte
da memória apenas subentendida. Dos doze verbos presentes no
texto, apenas três - criou, alçou, cobriu - são formas no pretérito,
e mesmo assim, por estarem em meio a uma atmosfera do aqui e
agora, criam uma tensão diversa que afeta seus próprios sentidos
e deixam de significar a temporalidade aparentemente expressa.
A tônica é a desconstrução dos princípios e valores ocidentais: o
homem tenta criar meios para viver melhor e ao atingir o grau
de progresso tecnológico desejado, constata que sua ânsia de
vida também o aproximou mais da morte. Percebe que é real a
possibilidade de uma hecatombe e esse fato leva-o a admitir a
inconsistência do tempo presente, a perda do passado e a temer o
futuro, tornando-se um sujeito sem substância, num espaço sem
referências, onde lhe resta apenas o medo e a indecisão. Tanto
que se o artefato atômico carece, ainda, de um anônimo aperto
de botão para ser acionado, a ideia de mundo do poeta parece
já estar destruída pela dúvida e insegurança, como se pode ver
de modo reiterado em diversos poemas como Depois do prazer
(1988, p. 20), Retrato da terra (1966, p. 22) em cuja retícula A
morte chega [também] sem aviso e o homem perplexo / arma ne-
crológios ou ainda em Raio X (1966, p. 14). Mais precisamente na
primeira estrofe do texto:
Toca-se um botão,
nasce a tartaruga
exata, cibernética.
O toque anônimo (“homens resolvem”, v. 21) e quase casual de
um botão faz nascer a tartaruga exata e cibernética, cuja explosão
temida, mas atualizada nas três estrofes finais do texto, transfor-
maria a terra em uma espécie de vacuidade, espaço inane, sem
tempo e sem medida, Espaçopleno de dúvida e sarcasmo pela al-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

ternância entre sonho, satisfação, morte e desespero, como suge-


rem os poemas Receita –
Dispa-se em frente ao
espelho e sorria.
Complete a receita
com carimbo oficial,
amor, morte, absurdo,
a vida se desenrola
em noite, lágrima, verso...
(1966. p. 12)
– e Ficção científica (1966, p. 24), onde o poeta “lúcido e confor-
mado”, diz ser “proibido brincar / de saudade”, pois há prazeres
sintéticos, sem arrependimento. Projetando uma convivência
fria, mas harmônica com robôs, o poeta simula ser superior às
coisas do mundo, com total deserção dos valores subjetivos:
(...)
Sou lúcido,
conformado.

(...)
Robot põe
a mão fria
no meu braço.
“Pensas abstrato”,
define com
ironia.

(...) avança
a galáxia.
Daqui mil anos
lego aos
trinetos,
este poema

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Métodos Fronteiriços

arcaico.
Postura idêntica é o que se vê em Antigamente e hoje e no já alu-
dido Retrato da terra, onde “Discos telegrafam / que não estamos
sós” (1966, p. 22) “e o eu em deserção dos seus valores” aceita as
transformações, apesar do medo criar asas, alçar voo e cobrir o
sol.
Toda tensão e toda dúvida advém do medo diante da constatação
dos limites da condição humana. Em Antigamente e hoje, o foco
irradiador dessa tensão é a metáfora tartaruga presente no segun-
do verso do poema e formulada com base na semelhança côncava
entre a parte superior arredondada do casco desse quelônio e o
espectro, imagem gerada por uma explosão. A redução do hiato
de sentido entre o termo tartaruga e a imagem da explosão de
uma bomba atômica não se completa, contudo, nessa similitude.
Há outras leituras ainda mais contundentes: o formato do casco
da tartaruga composto de estrias e a imagem de algo prestes a
explodir, o fato desse quelônio vir a terra apenas para a desova,
como a bomba com sua carga mortífera e, ainda, ampliando a
crueza e o impacto dessa imagem, a exatidão da cena sugerida
pelo artigo definido (“nasce a tartaruga”) e pela composição fo-
nética do verbo “nasce(r)”, expressivamente oposta aos fonemas
que compõem o vocábulo “tartaruga”.
Uma leitura expressiva do verso “Nasce a tartaruga” poderia ser
representada da seguinte maneira: “Nasssscea - tar-ta-ru-ga”, já
que o determinante nascer simula certa leveza e chiado silencioso
e o objeto determinado como se surgisse ou irrompesse de modo
astuto, mas sorrateiro. Além do fonema /s/ representado por “sc”
(nascer), fricativa surda sugerir suspense, desenhando o modo
indesejadamente inesperado como nasce a tartaruga; a inversão
do determinante para o início do verso chama a atenção para o
seu significado e cria dissonância sintática e semântica pela re-
lação que mantém com o vocábulo tartaruga: nascer pertence à
esfera semântica de vida e criação ,e no entanto, é empregado
por sinonímia a “surge”, “aparece” ou “irrompe” determinando
tartaruga, uma das metáforas de morte presentes no poema e re-
alçando a oposição euforia-medo, vida-morte que domina todo
o texto na forma de crítica, talvez inconsciente, à época moderna,
já que “o tempo concebido como história e esta como progres-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

so sem fim acabaram” e os paraísos do futuro vão se converten-


do num presente horrível que nos faz duvidar do amanhã. (Paz,
1991, p. 105)
Ainda na primeira estrofe, merecem destaque os qualificativos
“exata e cibernética” (v. 3) dirigidos à tartaruga. Esses vocábulos
reforçam a ideia de atualidade contida no título do poema e in-
dicam, sobretudo o primeiro, a precisão da máquina na era tec-
nológica. Destacando mais uma vez a composição sintática do
primeiro verso: a voz passiva pronominal não deixa declarar o
agente do ato fatídico (toca-se), ao mesmo tempo em que o pa-
ciente da ação, apesar de indefinido (um botão) ganha relevo ao
lado e por oposição do vocábulo tartaruga (definido), objetivan-
do poeticamente o seu valor no mundo moderno. A existência
humana, na visão do poeta, parece depender desse botão cujo
acionamento (não importa se feito por ocidentais ou orientais)
atemorizaria várias gerações.
A exatidão da primeira estrofe está fundada, portanto, no aceite
de um tempo apocalíptico, tempo em linha reta, que conduz ao
fim de todas as coisas. E, sendo o artefato atômico acionado (To-
ca-se um botão) no presente, projeta-se para a estrofe seguinte
a explosão, a hecatombe, que, aliás, não vem plena e aterrado-
ra como a primeira estrofe nos faz temer. Na segunda estrofe, o
medo parece abrandar-se, e nota-se já outra pulsação: atenua-se
o significado fatídico de aniquilamento e realça-se a expressão,
que através do ritmo e das pausas obtidas pela enumeração man-
tém apenas certo grau de dissimulação, agora sob a perspectiva
distanciada de um eu em fuga. Nesse momento, o artista toma
consciência de sua arte e a efusão íntima da primeira estrofe cede
lugar à contenção lírica. Surgem no segundo segmento do poe-
ma também, vocábulos como “meprobamato”, ‘polietileno’ e ‘su-
bliminar’, indicadores do período pós-industrial que tornam-se
inconfundíveis e marcam sobremaneira toda a obra do autor. É
importante, pois, observar como se utiliza de um léxico estranho
à lírica corrente e como tira proveito desse recurso. Expressões
“provenientes da linguagem técnica ... são eletrizadas liricamen-
te”; a metáfora é empregada em estado natural como se trans-
portasse as imagens de certa realidade diretamente para o texto,
sem a necessidade da comparação (Scalzo, 1988) e à maneira de
uma câmera que registra flashes descontínuos, em uma sintaxe

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Métodos Fronteiriços

plurifragmentada e reduzida a expressões nominais, criando a


impressão de permanente anormalidade.
Apesar da cognição difícil, como característica da vontade esti-
lística desse tipo de linguagem (Friedrich, 1991, p. 18-9), o autor
manipula cuidadosamente os recursos fonéticos como se brin-
casse com aquilo que a todos parece temeroso e estranho. Assim,
em todos os versos dessa estrofe incidem consoantes que se asse-
melham ora pelo modo ou ponto de articulação, ora pelo papel
das cavidades bucal e nasal, de maneira que certas sequências de
consoantes sejam as oclusivas, fricativas ou nasais. Repõem ao
poema - agora através da expressão - o efeito do ato de tocar o
botão (v. 1), valorizando o aspecto formal e reproduzindo, de um
lado, sons explosivos (oclusivas: /t/, /d/, /p/, /g/) como bombas
em “de meprobamato / propaganda subliminar”, e de outro, chia-
dos (fricativas: /f/, /v/, /s/) em “Euforia vai à fonte” que simulam a
viagem ou deslocamento de algo (as ogivas dos mísseis, projéteis,
foguetes?) chocando-se contra o ar, como se vê de modo quase
denotativo na terceira estrofe. Observa-se também a concretiza-
ção da fuga, a deserção do homem em relação aos problemas da
realidade, como é exemplo entre outros textos, o poema o “Bis-
turi cego” (Exemplos do insondável, p. 2), pela exploração da ima-
gem de deslizar.
Tudo converge para manter em cena a ideia de destruição da hu-
manidade ou de descentramento do indivíduo que levam à noção
de crise, à agonia do agora e à dúvida sobre o amanhã. À medida
que as tensões formais afetam o conteúdo, quase tudo serve para
mostrar a arte de como experimentar o lirismo em tubos de en-
saio, fórmulas química, teorias físicas, e astros siderais. Destaca-
se, nesta estrofe, a presença de “meprobamato” (v. 5), substância
dotada de ação sedativa que age sobre o sistema nervoso central
e que indica a fonte dos prazeres sintéticos descritos no poema
Ficção científica. Quanto ao vocábulo clorofila (v. 9), sob o efeito
de adjacência do significado de “meprobamato”, não parece sig-
nificar, apenas, “aromatizante” ou “dentifrício”. Trata-se de uma
metáfora de clorofórmio (triclorometano), outro sedativo, à ma-
neira do meprobamato.
O medo e a insegurança com relação à continuidade da vida são
a base do pensamento distópico que caracteriza a poesia e parte

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

expressiva da prosa do autor. Na prosa predominam os fenôme-


nos fantásticos, a loucura ou perda temporária da razão, o sexo
livre, os enredos de um futuro desregrado a partir do qual se
pode, mesmo assim, fazer a crítica do presente. Na poesia, esses
motivos são condensados em imagens fragmentárias, triturados
pelo ritmo veloz e pelo corte sintático dos versos, resultando em
sentimento de precariedade que leva à perda de realidade. Daí a
recorrência às drogas que adormecem aos homens em suas ‘eu-
forias’ (v. 7), dores e medos; drogas, aliás, subjetivadas, que ali-
viam angústias e silenciam a consciência. Foge-se das promessas
da técniciência e do progresso como substitutivo da história, da
crise existencial que essa realidade impõe, da violência, da opres-
são: foge-se da morte. O efeito sedativo, contudo, não é represen-
tado apenas por substâncias químicas, mas também pela ilusão
de modernidade simbolizada pela utilização desses elementos
artificiais, cuja existência não serve apenas para alterar a percep-
ção da realidade, mas para reinventar ou supor a substituição da
natureza num futuro distópico.
Há, ainda, no poema (verso seis), outro elemento poderoso: a
comunicação de massa, cujas estratégias subliminares podem
igualmente persuadir e sedar, e cujos encantos o poeta reconhece
na impossibilidade de fugir. Sabe também que é preciso acreditar
no valor do progresso, mesmo que ele possa levar a sociedade à
atomização e o homem à dessubstancialização. Assim, o discurso
tecnocientífico que em princípio pode ser tomado como sedu-
tor e “subliminar” (v. 6), passa à categoria de persuasão poéti-
ca, tendo-se em vista o seu teor iterativo, exortando por meio de
imagens insólitas, mesmo a quem rejeite a tese de que “o tempo
concebido como história e esta como progresso sem fim” (Paz,
1991, p. 105) teria acabado.
Nesse ponto, a distopia se confunde com o fim das esperanças.
No poema já citado Antigamente e hoje, o poeta, diante da certeza
de uma hecatombe, ironiza sarcasticamente, a morte anunciada:
“agora é fácil morrer” (v.10). Mas esse embate com a morte, re-
tratado inicialmente por meio de imagens assustadoras, ganha
novos contornos no decorrer da obra do autor, passando de re-
jeição ao aceite, e deste à cumplicidade, chegando ao estágio de
concebê-la como imagem personificada, desenhada com leveza,
simplicidade, eroticidade e, sobretudo, com contenção verbal.

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É justamente esse tom, essa orientação caótica, que dominará o


poema nas estrofes seguintes, principalmente nas instâncias 4 e
5, as mais contidas, diretas e com menor número de versos. Ain-
da nesta estrofe (terceira), além da ironia e do humour noir do
primeiro verso, outras duas figuras se cruzam e se destacam para
assegurar lirismo à recriação da realidade trágica imaginada, pois
o que vem da estratosfera não pode ser nem a morte (v.11), nem
as estrelas a jato (v.13), mas os mísseis, os projéteis-estrelas e suas
cargas mortíferas. Esses dois substantivos - um abstrato e outro
concreto - revestem essas metáforas e encarregam-se de criar,
de um lado, o desconhecido, o fantasmagórico (morte) e o tom
melancólico que passa a dominar o poema; e de outro, “estrela”
sugere o sensível, a matéria perceptível, reforçando a ideia de des-
truição, em uma relação (também) metonímica em que ‘morte’ é
razão e consequência da explosão das “estrelas a jato”. Note, po-
rém, que estrela representa – dada sua forma, constituição e valor
simbólico – o princípio da vida e das forças celestes, significados
que não se encontram no poema, cujo sentido se constrói pela
desreferencialização desse signo que, esvaziado semanticamente,
assume sentidos opostos. As “estrelas a jato”, portanto, surgem
de um espaço dimensional ou patamar superior ao da terra, ra-
zão pela qual representam o mistério, o desconhecido, o temível,
como está representado no voo do medo (v. 15), na “sombra ra-
diante” (v.17- 9) e na morte.
A era da tecnologia faz, enfim, a sua crítica das mitologias: nega
a representação da realidade da natureza humana, impondo téc-
nicas e instrumentos capazes de interferir na construção e na
percepção do mundo. Como já demonstrado, o signo estrela é
destituído de sua feição simbólica, aproximando-se da categoria
(física) dos artefatos. O poeta celebra o mundo científico, o uni-
verso tecnológico e virtual, o mundo das perscrutações do com-
portamento, enfim, os signos da hipermodernidade, Os objetos
(1966, p. 19):
Os objetos, calados
símbolos amorfos
do meu domínio
Tal funcionalidade, como engrenagens de uma máquina do mun-
do às avessas, é tanto uma admissão ao tempo sem volta do pro-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

gresso material e científico, como um aceite da desreferenciali-


zação do sujeito, cuja existência se revela destituída da dialética
humana da conjunção do plano histórico e do plano emotivo-
-individual. Esse estado de coisas, de que é exemplo também o
poema No fim da página (1992, p. 38) – “os desejos inconfessá-
veis /.../ Repito palavras soltas/ esperando que combinem” – é
indutor do que classificamos como melancolia ao aludirmos ao
poema Antigamente e hoje (1966, p. 1). Retornando a esse poema,
e tendo em vista a quarta estrofe – “O medo criou asas,/ alçou
voo,/ cobriu o sol” – observe como os verbos no pretérito perfeito,
as vogais de menor abertura, e o traço impressivo daí derivado
criam uma atmosfera sombria. O medo traduzido em tensão nas
estrofes anteriores assume, agora, uma forma silente, mais ou me-
nos conformada: convive-se com o medo, que estaria incorpora-
do à realidade. Com isso, o poeta nega qualquer possibilidade de
explicação existencial e cósmica do universo, fazendo ressaltar a
materialidade e a fragmentação da realidade hipermoderna.
Insistindo um pouco mais nesse poema, vale a pena mostrar o
movimento constitutivo das imagens: a metáfora “medo” (v.14),
de teor sinedóquico, sofre refração da metonímia “cogumelo” (v.
17), dinamizando a imagem criada na terceira estrofe – “a mor-
te vem /da estratosfera” – e dando asas ao medo. As “asas”, por
sua vez, amplificando a imagem, desenham o voo sombrio capaz
de cobrir o sol, assinalando o seu poder de morte. Tal imagem
percorre três segmentos do poema (3, 4 e 5), atingindo seu ápi-
ce na quarta estrofe, que, ao contrário de sua antecedente (com
verbos no presente (ser, vir) e abundância de fricativas (/f/, /v/,
/s/) indicando duração, prolongamento dos fatos), aponta para o
fim da situação conflitiva, criando grande surpresa e provocando
o leitor, pela dissensão que a partir daí toma conta das duas es-
trofes finais. Fica então evidenciada toda a dissonância entre um
significado de contensão e uma tessitura expressiva de extrema
simplicidade: bastam apenas seis vocábulos - três verbos em ação
gradativa (criar, alçar, cobrir) e três substantivos (asas, voo, sol)
para reproduzir um quadro do desespero imaginado do que seria
uma explosão atômica.
Recorrente na obra do poeta, destacamos mais dois momentos
em que a imagem de voo ligada a ideia de futuro disfônico pode
ser observada:

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Na estratosfera
circula
estrôncio noventa.
(1966, p. 22)
e
Um pássaro despenca do céu
liquida a dourada juventude
(1988, p. 20)
Nota-se nos dois fragmentos a presença de elementos como es-
tratosfera, pássaro, estrôncio noventa e liquida, dos quais se po-
dem destacar as mesmas ideias matrizes: voo e material radio-
ativo, como ameaças. Estão no ar, aliás, como sugere Bachelard
(1989, p 104), os sanguinários com seus voos de pássaro; e na
terra, o homem, cujos medos, pensamentos e imagens são de en-
terro e sepulcro.
Na estrofe seguinte, quinta, do mesmo Antigamente e hoje (1966,
p. 1) –
O cogumelo derrama
a sombra radiante
sobre o mar.
– dá-se, por fim, o esvaziamento da tensão trágica, surpreendendo
à maneira da narrativa fantástica e da ficção científica do próprio
“eu” que se estrutura no poema e que até então se mostrava em
estado de crescente agonia. A metáfora “cogumelo” (v. 17), que
amplia e conclui a imagem de destruição presente nas estrofes
iniciais do texto assume, ao final, as características da água que
ao derramar-se sobre o mar, poupa (dessa vez), a humanidade.
A explosão atômica desencadeada pelo “toque de botão” revela-
se menos fatídica do que se presumiria. Atinge o mar, símbolo
materno para todos os homens, e apenas os habitantes das águas
perecem. Quanto aos homens, ironiza o poeta na última estrofe:
continuarão a “resolver” explosões nada inocentes, mas secretas.
E se o mundo continua existindo, a ideia de mundo parece estar
destruída para o eu enunciante, que em outro texto suplica:
Que brote um sorriso
neste túnel

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

cenário
de sombras mortas.
(1966, p. 15)
Esta é a tônica do livro Espaçopleno (1966) e, em certo grau, de
toda a obra do autor. Se no poema inicial, Antigamente e hoje, im-
peram a insegurança e o medo pela destruição iminente, o texto
que encerra a obra confirma (à maneira de um prolongamento)
o ideal de transformação que se opera na lírica do autor. O tex-
to final, Trailler (p. 27), como se completasse a emolduracão do
livro, reitera a imagem contida no título da obra (espaçopleno),
sugerindo com ironia cáustica a permanência da vida e o eterno
recomeçar do planeta:
Início do planeta.
Religiões,
filósofos

Cibernética,
logo mais
foguetes expressos
Marte-Saturno.
O mundo novo, todavia, é mais uma vez a própria imagem do
progresso e da técnica à qual a humanidade está irremediavel-
mente presa. E essa aproximação de contraditórios, apesar de
inusitada, parece singularizar com muita propriedade aquele mo-
mento de coincidências cujo nome é “a busca da felicidade”, como
sugere Octavio Paz (1991). É a essa busca, portanto, que o poeta
procura dar forma, visto que para ele a “função do poema,” [é]
“desvendar o nascimento/ do desejo”, (1988, p, 29) confrontando,
portanto, o tempo apocalíptico.

Referências bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a ima-
ginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
CARNEIRO, André. Espaçopleno. São Paulo: Clube de Poesia,
1966.

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________. Pássaros florescem. São Paulo: Fund. Nestlé/ Scipio-
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10 Pequeños y raros gigantes.
Fronteras de lo insólito, lo
híbrido y lo vampiresco
en el bestiario uruguayo
de Lautréamont y Horacio
Quiroga

Marcelo DAMONTE1

“El límite no es aquello en que algo se detiene sino, como reconocieron


los griegos, el límite es aquello en que algo comienza su presentarse”.
Martin Heidegger, Construir, habitar, pensar (1951).
Siguiendo, de algún modo, esta línea que plantea el epígrafe de
Heidegger, podríamos hablar de lo fronterizo, lo limítrofe, lo
mestizo, como ese lugar que se presenta intersticial y que permite,
en su territorio de “borde”, el contacto, cruce, diálogo e incluso la
tensión entre conceptos, tópicos y objetos culturales, a partir de
lo cual se generarían y desarrollarían objetos de naturaleza rara o
insólita, híbrida, heterogénea. La literatura en el Uruguay ha sabi-
do plantarse en territorios de esa índole, sobre todo a partir de al-
gunos autores que integran a su narrativa y a su impronta poética
elementos que adoptan, o en los cuales es posible reconocer, un
territorio conflictivo, fronterizo, tensional, y una productividad
1  Licenciado en Letras (UdelaR, Montevideo-Uruguay); Mstdo. Ciencias Hu-
manas: Lenguaje, cultura y sociedad, por UdelaR; Prof. Identidad cultural y
comunicación (CFD, Florida-Uruguay); Prof. Universitario grado 2 de Len-
guaje y comunicación, Taller de Escritura e Informes y Proyectos (Instituto
Superior de E. F.- UdelaR; Montevideo-Uruguay).

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Métodos Fronteiriços

análoga, lindera con lo híbrido, lo absurdo, lo raro y lo insólito.


La narrativa fantástica en el Uruguay, a partir del siglo XX en ade-
lante, ha sabido diversificarse por senderos más o menos conven-
cionales o universales. El tema de la irrupción de lo sobrenatural,
de lo insólito o irracional en lo cotidiano, como en Felisberto
Hernández y Armonía Somers, y más cerca, algunos cuentos de
Juan Introini, Lauro Marauda; el coqueteo de la fantasía con la
ciencia ficción en algunos cuentos de Mario Levrero, por ejemplo,
en Jaime Monestier, Carlos María Federici y la actualidad de Le-
andro Delgado; el tema de lo vampiresco en Juan Carlos Mondra-
gón y, ya en el siglo XXI, en algunos cuentos de Elbio Gandolfo y
en la novela de Amir Hamed; el tema del horror sutil y neogótico
en los relatos de algunas de nuestras mujeres fantásticas, como
Giselda Zani, Marosa di Giorgio o María Inés Silva Vila, son algu-
nos de los ejemplos que ilustran un tránsito, un movimiento con
cierto tenor “escapista”, al decir de Cortázar, con respecto al cual
podría vincularse este “subgénero”.
Tal vez para “escapar” un poco de esa realidad de caminos ya tran-
sitados, siempre en el sentido de Cortázar, es que voy a plantear
esta ponencia. En un principio, decir que hablar de genealogías o
linajes fundacionales en la literatura uruguaya de ficción fantásti-
ca, especialmente en torno a lo vampiresco, podría resultar anto-
jadizo, incluso fantasioso, o asemejarse a un intento afanoso por
introducir o canonizar precursores con respecto a este tipo de li-
teratura. Quedará para abordajes posteriores incentivar el colma-
do de este campo de investigación. Por el momento valga plantear
el tema en términos de espacio de discusión y reflexión situado
en la frontera de lo raro, lo hibrido, lo insólito y lo vampiresco.
El tópico al que voy a referir es el involucrado en el territorio
implícito en Los Cantos de Maldoror, del Conde de Lautréamont,
y en el cuento “El almohadón de plumas”, de Horacio Quiroga;
especialmente, el tema de su impronta novedosa con relación al
asunto de los pequeños (gigantes) succionadores de sangre.
A modo de breve repaso histórico, podemos decir que la literatu-
ra europea abunda en el tema del vampiro desde muy tempranas
épocas. El encuentro del romanticismo y la literatura gótica entre
los siglos XVIII y XIX, un germen que entrelazaba el tenor más
oscurantista, irracional, fantástico y medieval del evento román-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

tico, con personajes torturados por lo sobrenatural, fuerzas del


averno, poderes secretos, el terror, lo macabro y demás mons-
truosidades tematizadas por el gótico, produce, esencialmente
en Europa, una fascinación, tanto de los escritores como de los
lectores, por las atmósferas de horror sórdido (ambientadas en
castillos, ruinas, mansiones lúgubres, monasterios) y una fuerte
tendencia a adentrarse en la impronta diabólica, inhumana, pre-
ternatural.
Como dice Francisco Sánchez-Verdejo (1966, p.8): «Lo gótico
condensa múltiples amenazas, asociadas a las fuerzas naturales y
sobrenaturales, los excesos imaginativos, las desilusiones, la de-
pravación religiosa y humana, la desintegración moral y espiritu-
al (los monstruos son una clara ejemplificación de estas amena-
zas y pérdida de valores)».
En este sentido, constituye parte esencial del compendio que esta-
blece la literatura gótica la variada y abundante profusión de ma-
terial literario ficcional que, inspirado en la tradición mitológica
y legendaria balcánica y eslava, prodigaron las novelas, cuentos y
demás escritos en torno a la temática del vampiro en occidente.
Personaje arquetípicamente europeo, de origen transilvano, ba-
sado en la figura del conde Vlad Tepes o Vlad V de Valaquia, de
alias “el empalador” (1456-1476), el vampiro tiene un historial
genealógico en la escritura de T.A. Hoffman, Polidori, Byron, Le
Fanu, Merimée, Stoker y otros.
Por otra parte, en torno al tema que nos interesa abordar, y ha-
ciendo uso de una odiosa aunque imprescindible generalización,
podría decirse que el vampiro tiene escasa o aislada participación
en las literaturas del cono sur, y es aún menor en lo que concierne
a la literatura uruguaya. Casi siempre en el formato de cuento
corto, se destacan, como cercanos a la crónica vampírica: en Ve-
nezuela, Luis López Méndez, con “El beso del espectro” (1891) y
Julio Calcaño, con su cuento “Tristan Cataletto, de 1893; en Nica-
ragua, Ruben Darío, con su cuento “Thanathopia”, de 1893; Cle-
mente Palma, en Perú, en 1904, con “Las vampiras”, de su libro
Cuentos Malévolos, y el uruguayo Horacio Quiroga, con el cuento
“El vampiro” de 1925.
Sin embargo, es posible leer una aparición más temprana que la
de Quiroga en nuestras letras, en Uruguay, especialmente en tor-

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Métodos Fronteiriços

no a una variante: la del “eco vampiresco”, a nuestro modo de


ver un aspecto por demás interesante, que se deja pensar y leer
como una suerte de linaje inicial, al menos madrugador, sobre el
tema de los chupasangre en nuestro país. Esta temática sanguínea
constituye, cabe decirlo, en primerísimo lugar, uno de los argu-
mentos predilectos del tópico vampiresco (con algo de ese mez-
cla de tenores romántico y gótico que adelantamos en los prime-
ros párrafos) que sobrevuela la obra Los cantos de Maldoror, del
“montevideano” conde de Lautréamont. Una impronta de índole
semejante a la noción de succión que rescatamos de Los Cantos
puede leerse en la obra de un autor que, años más tarde, también
merodeará los ámbitos de la oscuridad, lo macabro, lo fantástico
y lo vampiresco. Es el caso de Horacio Quiroga, quien, a nuestro
modo de ver, configuraría, junto con Lautréamont, una suerte de
diálogo uruguayo temprano de la succión sanguínea, introdu-
ciendo, entre los dos, una variable de lo vampírico: el eco vam-
piresco, en el destaque hiperbólico del ácaro chupador de sangre.
Es así que el vampiro, pero también la sanguijuela, el ácaro y el
piojo coexisten a lo largo de la obra de Lautréamont: Los Cantos
de Maldoror, evocados cual minúscula epifanía cotidiana de la
succión, y al mismo tiempo elevados a una suerte de gigantismo
gótico de lo horrendo, constituyente tópico y literal de una obra
cuya originalidad al día de hoy pocos discuten. En latitudes de
dimensión análoga, el vampiro (como en su cuento de 1925, del
libro Más allá), pero aun la enorme garrapata, hinchada y homi-
cida de “El almohadón de plumas”, se hacen presentes en la obra
de Horacio Quiroga para conformar ese contrapunto de voces
orientales (uruguayas) con aliento a sangre, que inicia un cami-
no de oscurantismo gótico, de horror macabro y un precoz bufar
vampiresco de variante local.

El conde de Lautréamont
Acabados de completar en el año 1867, Los Cantos de Maldoror
son una pieza clave para iniciar a sospechar una original y no-
vedosa progenie del horror gótico en clave de succión sanguínea
dentro de la literatura uruguaya. A modo de inspirar esta conje-
tura de color local, podemos decir que, inmerso en un “aire” no
lejano a la narrativa de corte fantástico y de horror del relato de

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

vampiros de principios del siglo XIX, y pese a cierto barroquis-


mo escriturario, la crueldad y abominables aberraciones que se
dan cita en Los Cantos no parecen estar del todo alejadas del sino
biográfico que rodea la figura de Isidore Ducasse, conde de Lau-
tréamont.
No abundaremos en la escasa y discutidísima biografía del con-
de, con respecto a la cual el mismo Isidore Ducasse anticipó su
suerte, cuando expresó en los primeros renglones de sus Poesíes
de 1870 la irrevocable confirmación de este hecho: «No dejaré
memorias». Baste decir que nació en 1846, en una Montevideo
sitiada y signada por guerras sangrientas, teñidas de pólvora y
de sangre, e historias de degüellos y martirios que seguramente
formaban parte de la charla cotidiana a su alrededor (entre insti-
tutrices y criadas negras), en el Montevideo colonial. Lo mismo
cabe agregar que, si bien se marcha a París a los trece años (1849),
donde transcurre, casi2, el resto de su vida hasta su muerte, resul-
ta por lo menos rudimentario admitir que su estadía en “Monte-
video, la coqueta”, como él mismo la llama en el canto primero
de Los Cantos de Maldoror, constituya apenas un acontecimiento
fruto del azar o parte de un destino eventual con final francés.
Bastante tinta ha sido vertida en torno a este tema; como ya di-
jimos, alcanza —como postulación de resistencia— con referir
que en esta dirección, y en contraste con cierta crítica que asu-
me resuelta e irrevocablemente a Lautréamont en el canon fran-
cés (Alberto Zum Felde dice que «Lautréamont y Laforgue son
poetas franceses, y todo intento de nacionalizarlos, es decir, de
incorporarlos a nuestro haber, es querer conquistar glorias con
partidas de registro civil»3), haremos causa común con aquello
que sostienen Leyla Perrone-Moisés, Hebert Benítez Pezzolano,
Pedro Leandro Ipuche y hasta el propio Lautréamont4 acerca de
2  Según algunas fuentes (Petit Muñoz, Benítez Pezzolano, Monegal-Perrone
Moisés, Ipuche) volvería a Montevideo en 1867, al parecer a buscar el apoyo
financiero de su padre para solventar la publicación de Los Cantos.
3  1987, p. 112.
4  «Habiendo elegido definitivamente el francés como su lengua, habiendo
decidido entrar a la literatura como escritor francés, Isidore habría podi-
do omitir ese accidente del nacimiento. Pero él hace cuestión en señalarlo.
Justamente, ese gesto es característico de los autores que pertenecen a una
comunidad minoritaria, a un país aún no reconocido como tal, a una cultura

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Métodos Fronteiriços

su origen montevideano.
Hecha esta aclaración —y digresión—, resulta interesante obser-
var cómo aparecen en Los Cantos, junto al de la sangre, el tópico
del vampiro, primero, y luego el de los chupasangres de menor ta-
maño y jerarquía legendaria o mítica; a saber, entre estos últimos:
el piojo, la sanguijuela, el ácaro sarcopte. Maldoror (o Lautréa-
mont, o Ducasse) no recorta palabras al expresarse en torno a su
avidez de sangre, o al exagerar su instinto de crueldad alimenticia.
Así lo hace en el canto primero, cuando dice:
Oh! comme il est doux d’arracher brutalement de son lit un enfant qui
n’a rien encore sur la lèvre supérieur, et, avec les yeux très ouverts, de
faire semblant de passer suavement la main sur son front, en inclinant
en arrière ses beaux cheveux! […]. Ensuite, on boit le sang en léchant
les blessures; et, pendant ce temps, qui devrait durer autant que l’éter-
nité dure, l’enfant pleure. Rien n’est si bon que son sang, extrait com-
me je viens de le dire, et tout chaud encore, si ce ne sont ses larmes,
amères comme le sel (LAUTRÉAMONT, 2001, p. 88).5
El tema de la sangre merodea Los Cantos. Hay copas de sangre,

periférica» (PERRONE MOISÉS, 1995, p. 95).


«En términos generales, sostendremos que la mayor parte de esta crítica
adopta un comportamiento colonialista, ya que lee la marginalidad en refe-
rencia a la institución literaria francesa dominante» (BENITEZ, 2008, p. 20).
«Ducasse, el inmenso uruguayo, el “montevideano”, como a sí mismo se lla-
maba con un orgullo exótico y precioso, queda desde hoy para siempre como
uno de los genios de primera cumbre en el mundo y como un poeta uruguayo
inconcuso, documentado y hasta justificable, por su desaprensión surameri-
cana, su macabrismo rioplatense y, sobre todo, por imposición de un destino
generoso que ha querido hacer del Uruguay el primer pueblo de la América
Nueva» (IPUCHE, 1925).
«El fin del siglo diecinueve verá su poeta […]. Nació en las costas americanas,
en la desembocadura del Plata, donde dos pueblos, rivales antaño, se esfuer-
zan hoy en superarse por medio del progreso material y moral» (LAUTRÉA-
MONT, 2001. p. 122).
5 «¡Oh!, qué dulce resulta arrancar brutalmente de su lecho a un niño que
nada tiene sobre el labio superior, y, con los ojos bien abiertos, simular pasar
suavemente la mano sobre su frente, echando sus bellos cabellos hacia atrás.
[…]. Luego, se bebe la sangre lamiendo las heridas; y durante ese tiempo, que
debiera durar tanto como la eternidad, el niño llora. Nada es mejor que su
sangre extraída como acabo de decir, y caliente aún, salvo sus lágrimas amar-
gas como la sal».

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

habitaciones que huelen a sangre, sangre derramada, sangre ocul-


ta, largas bebidas de sangre, y por supuesto las alimañas que re-
presentan a estos bebedores, como la sanguijuela, de quien Mal-
doror se dice hermano en el mismo canto primero: «Le frère de la
sangsue marchait à pas lents dans la fôret» (2001, p. 119).6
En tanto Los Cantos se tiñen de rojo, permiten imaginar o adi-
vinar el tufo de la hemoglobina, su olor dulzón. El vampiro se
metamorfosea en sanguijuela, en ácaro, en piojo, y parece que
decreciera el tamaño de los succionadores, pero no es así. Cuan-
do refiere al piojo, por ejemplo, no solo se agiganta, sino que se
convierte en una suerte de ácaro tirano, genocida y sangriento:
Il existe un insecte que les hommes nourrissent à leurs frais. Ils ne
lui doivent rien; mais, ils le craignent. Celui-ci, qui n’aime pas le vin,
mais qui préfère le sang, si on ne satisfaisait pas à ses besoins légi-
times, serait capable par un pouvoir occulte, de devenir aussi gros
qu’un éléphant, d’écraser les hommes comme des épis (2001, p. 148).7

Horacio Quiroga
Su interlocutor para esta ocasión, el escritor uruguayo Horacio
Quiroga, nace en la ciudad de Salto en 1878 (ocho años después
de la muerte de Lautréamont), bajo el signo de la generación del
900 y la impronta modernista de Ruben Darío y Leopoldo Lugo-
nes, entre otros, y publica en Caras y Caretas (1907) su cuento “El
almohadón de plumas”. En orden de aparición cronológica, Qui-
roga parece privilegiar en la lista de los chupasangres, al ácaro an-
tes que al vampiro, cuyo ícono en forma de cuento (“El vampiro”)
aparece recién en el año 1925.
En “El almohadón de plumas” el escritor salteño describe como
una garrapata o ácaro gigante y monstruoso se alimenta hasta el
exterminio de la sangre de una bella mujer, vampirizándola en
un insólito frenesí de sangre: «Parecía que únicamente de noche

6  «El hermano de la sanguijuela camino a paso lento por el bosque».


7  «Existe un insecto que los hombres alimentan a su costa. Nada le debe; pero
le temen. Este, a quien no le gusta el vino, y prefiere, en cambio, la sangre, si
no se satisficieran sus legítimas necesidades, sería capaz, por un oculto poder,
de convertirse en algo tan grande como un elefante, y aplastar a los hombres
como espigas».

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Métodos Fronteiriços

se le fuera la vida en nuevas oleadas de sangre […]. Sus terrores


crepusculares avanzaban ahora en forma de monstruos que se
arrastraban hasta la cama, y trepaban dificultosamente por la col-
cha» (QUIROGA, 2009, p. 84).
Y finalmente, la hiperbolización del ácaro, al final del cuento:
Noche a noche, desde que Alicia había caído en cama, había aplica-
do sigilosamente su boca –su trompa, mejor dicho– a las sienes de
aquélla, chupándole la sangre. La picadura era casi imperceptible. La
remoción diaria del almohadón sin duda había impedido al principio
su desarrollo: pero desde que la joven no pudo moverse, la succión
fue vertiginosa. En cinco días, en cinco noches, había el monstruo
vaciado a Alicia. Estos parásitos de las aves, diminutos en el medio ha-
bitual, llegan a adquirir en ciertas condiciones proporciones enormes.
La sangre humana parece serles particularmente favorable, y no es
raro hallarlos en los almohadones de pluma (QUIROGA, 2009, p. 85).
En el cuento “El vampiro” de 1925, escrito ocho años antes de
su muerte en 1937, publicado en el libro Más allá, de 1935, Ho-
racio Quiroga introduce un vampiro fantasmal, un espectro de
mujer extraído casi que de la ciencia ficción contemporánea, de
un experimento de naturaleza casi mental, imagenológica, físi-
co-química, que consume lentamente al millonario Rosales hasta
vaciarlo de sangre y matarlo: «Mi impresión es otra. La calma ex-
presión de su rostro no había variado, y aun su muerto semblante
conservaba el tono cálido habitual. Pero estoy seguro de que en lo
más hondo de las venas no le quedaba una gota de sangre» (1933,
p. 14).

A modo de conclusión
Si bien las obras antes mencionadas de Lautréamont (inclasifica-
ble, en cuanto a generalización) y de Horacio Quiroga difieren en
cuanto a su discursividad, temática general y estilística, es posible
leer en ambas un tenor oscuro, guiado por una retórica de lo ma-
cabro, que coquetea con el horror y la presencia indisoluble de la
sangre. A la sombra del romanticismo y de autores como Gautier,
Baudelaire y Maupassant, en Francia; de los Byron y Polidori, en
Inglaterra; o la progenie alemana de los góticos, con sus zagas de
monstruos, fantasmas y demonios heredados de la más sombría
literatura medieval, ambos autores se vieron fascinados por una

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

cierta afición a la muerte, a la impronta del misterio, lo sobre-


natural y los tópicos infernales. Esa oscuridad, ese “aire” gótico
que respira parte de la obra de estos uruguayos, supo gestarse en
geografías signadas por la guerra y sus crueldades sangrientas, en
Lautréamont, o en la cruda selva misionera, llena de alimañas,
enfermedades, delirio y suicidios de Horacio Quiroga.
En ambos la figura del vampiro parece cumplir la función de suc-
ción capaz de extraer el máximo de sangre de esa obra palpitante
a la que se enfrentan, que es su vida misma, como así también
la de pactar simbólicamente con sus demonios e infiernos, para
poder finalmente vaciarse de todo eso y nunca descansar en paz.
Sin embargo, también en los dos, la figura del vampiro canónica:
el vampiro generado por la leyenda transilvana de Vlad Tepes,
el de Hoffman o el Drácula de Bram Stoker en el siglo XIX, se
transforma, oculta tras la máscara o convertida en una suerte de
eco funesto de esa sombra agigantada por el romanticismo y los
demonios del gótico, en otra cosa, metamorfoseándose en una
imagen vampírica diversa, pequeña pero crecida, y tal vez por su
aspecto absurdo y disminuido tanto o más insólita, ominosa y
terrible que su par de los Balcanes.
Es desde esa perspectiva que pretendemos leer, en la garrapata
vampírica de Horacio Quiroga de su cuento “El almohadón de
plumas” y en los parientes del vampiro presentes en Los Cantos: la
sanguijuela, el piojo, el ácaro, un posicionamiento en y desde una
geografía de borde, inestable, tensa, mestiza, que manifiesta en y
desde un lugar fracturado o resbaladizo un territorio conflictivo,
donde lo insólito aborrece lo canónico; una geografía en la cual
la rara y absurda cualidad de esos seres híbridos, heterogéneos,
diminutos/enormes, prevalece y rota el eje de la monstruosidad
arquetípica de corte europeo para alojarse en un margen fronte-
rizo, por momentos ridículo, siempre siniestro. La garrapata de
Quiroga, el piojo y el ácaro de Lautréamont son objetos nacidos
de un universo alucinado, de un ímpetu literario que devoró sus
arquetipos y ahora los devuelve distintos, metamorfoseados en
“otros”, pertenecen a un planeta intersticial, a un pensamiento hí-
brido, de naturaleza insólita, ajeno y en cercanía con el imagina-
rio criollo del Uruguay. En ambos autores, el gran succionador de
tradición transilvana parece comparecer bajo una forma menos
pretenciosa, aunque, hiperbolizada, no menos brutal y feroz: la

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Métodos Fronteiriços

de esos pequeños y raros gigantes.

Referencias bibliográficas
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LAUTRÉAMONT, Los cantos de Maldoror, Trad. Manuel Serrat
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Mundo, 1987.

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11 Zack: una distopía urbana
en el Uruguay

Virginia FRADE1
La novela distópica tiene como característica representar mun-
dos en un futuro, marcados por el avance tecnológico, la bioin-
geniería, gobernados por una elite que manipula, no solo su en-
torno natural, su ecosistema, sino también a los seres humanos
que allí viven. Los elementos de vigilancia, coerción y represión
están siempre presentes en este tipo de ficción, lo cual hace que
los seres humanos que no pertenecen a las capas altas de la socie-
dad, donde se ejerce el poder, sufran los desdenes de un gobier-
no caracterizado por la tiranía y la opresión. Quizá, los mejores
ejemplos son los de las novelas 1984, de George Orwell, o Un
mundo feliz, de Aldous Huxley.
En ocasiones, las novelas distópicas presentan escenarios de tipo
apocalíptico, donde alguna catástrofe (generalmente provocada
por el hombre), alguna peste, una gran batalla o guerra conducen
al fin de una era y comienzo de una nueva (peor que la anterior).

1  Maestranda en Lenguaje, cultura y sociedad (Facultad de Humanidades y


Ciencias de la Educación, UdelaR); Licenciada en Letras (Facultad de Huma-
nidades y Ciencias de la Educación, UdelaR); Profesora de enseñanza media
-especialización en lengua inglesa- (egresada del: Instituto de Profesores Arti-
gas, CFE). Se desempeña como profesora de Lingüística y Literatura de habla
inglesa en el profesorado estatal, nacional de lengua inglesa (en Montevideo
y Florida, Uruguay). Tiene estudios cursados en Michigan State University
(USA) en literatura de habla inglesa (beca otorgada por el gobierno de los
EEUU). Sus investigaciones y publicaciones se centran en estudios de adqui-
sición de segundas lenguas y en literatura de habla inglesa (especialmente:
literatura norteamericana del S XX y XXI).

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Métodos Fronteiriços

En el Uruguay, la novela distópica recorre caminos coincidentes


con la característica general del tópico, aunque podemos decir
que se trata de un género relativamente joven en nuestra literatu-
ra, y digo “relativamente”, porque existían por lo menos un par de
cuentos — uno del escritor Idelfonso Perera Valdez (1899-1996),
y otro de Adolfo Montiel Ballesteros (1888-1971)—, que se po-
drían incluir como antecedentes, pero dada la cierta especificidad
de este trabajo, estos serían antecedentes relativos y que quedarán
para un abordaje futuro. Dentro del marco que se circunscribe
en torno a la temática de la distopía, dialogando con los cotos de
la ciencia ficción, la novela Zack (1993) y Zack Estaciones (1994)
de la escritora Ana Solari plantean una geografía, un panorama y
una perspectiva narrativa claramente delimitados dentro de este
círculo temático.
El objetivo de este trabajo es abrir un espacio de reflexión en
torno a la literatura distópica, pero especialmente eco-distópica,
escrita en el Uruguay posdictatorial, que presenta un escenario
futurista, con una presencia marcada de la tecnología como un
elemento que, en vez de guiarnos al progreso, nos conduce a una
realidad apocalíptica, donde el (aparente) orden y la naturaleza
parecen haber colapsado, y el hombre debe enfrentar una carrera
hacia el fin del mundo provocada por él mismo. Asimismo, nos
interesa reconocer bajo qué formatos se expresa, y con qué ante-
cedentes y herederos dialoga la novela Zack (1993) de Ana Solari.
Asimismo, exploraremos la tensión presente entre opuestos que
se contienen, como es la que se genera entre la naturaleza y el
hombre científico, que parece ya no ser parte de aquélla. En la
novela, la tierra y la naturaleza parecen transformarse en el otro
al cual hay que dominar y transformar. Esta no es la única tensi-
ón presente en Zack, pues también se hace visible en la figura del
zombi: muerto viviente, oxímoron creado por la tensión de esos
dos opuestos, pero que no podrían existir el uno sin el otro.

Ciencia ficción y distopía en el Uruguay


En un artículo publicado en la revista digital Axxon: “El carácter
político de la ciencia ficción en el Uruguay”, escrito por Pablo
Dobrinin, el autor realiza una suerte de recorrido de la presencia
de la ciencia ficción en nuestro país. Dobrinin sostiene que no

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

se puede hablar de un proceso en cuanto a la presencia de este


género en Uruguay, al mismo tiempo que realiza una suerte de
mapa donde dibuja los recorridos que este tipo de ficción ha tran-
sitado. La primera obra de ciencia ficción, situada en un futuro
de tipo utópico, es El socialismo triunfante - Lo que será mi País
dentro de 200 años, de Francisco Piria (Montevideo, 1898); luego,
en 1910, aparece un cuento de Horacio Quiroga: “El Hombre ar-
tificial” (Bs. As., 1910), en 1976 Horacio Terra Arocena publica
una novela utópica: El planeta Arreit: un avanzado mundo nos
juzga y nos emplaza.
A partir de la dictadura militar, que comenzara en la década del
´70 y finalizara a mediados de los ´80, el tono de las obras de corte
futurístico estará marcado por el pesimismo, y por una visión
más escéptica del futuro. La visión utópica del futuro dará paso
a una distópica. Dentro de esta línea de ficción encontramos la
novela de Raúl Blengio Brito, El último hombre (1982), publicada
en plena dictadura; pero es recién luego de la vuelta a la democra-
cia cuando comienza a aparecer literatura marcada por la crítica
social. En 1993 aparece (la que nosotros entendemos) la primera
novela de corte distópico, que presenta un escenario post-apoca-
líptico con fuerte presencia del elemento tecnológico, escrita por
una mujer2 en nuestro país: Zack, de Ana Solari.
En esta novela, situada en un futuro próximo, se narra la historia
de un hombre llamado Zack, científico de profesión, que trabaja
en un proyecto llamado “Tierra2”, «nombre de la colonia que es-
taba siendo construida en la luna, en un proyecto de cooperación
científica internacional, algo sin precedentes hasta el momento»
(Solari, 1993, p. 12), hasta que sucede una explosión y cambia la
realidad del país. La novela comienza luego de la explosión, en
un territorio devastado, con una realidad de corte apocalíptica,
donde no hay mucha memoria de lo sucedido, donde los recuer-
dos se confunden con la realidad y los sueños. Es en este nuevo
territorio que Zack comenzará un viaje hacia el sur, que más que
viaje será una huida del horror que se ha instaurado. Huirá de sí
2  Si bien no es detalle menor el hecho de que esta novela haya sido la prime-
ra de corte distópico escrita por una mujer, no es el objetivo de este trabajo
discutir cuestiones de género. Dicho abordaje y perspectiva de la obra vienen
siendo estudiadas y trabajadas por la autora de este trabajo, pero quedarán
para una futura publicación.

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Métodos Fronteiriços

mismo, de su pasado y de su presente, intentará comprender y


buscar explicaciones de lo sucedido, por qué el ser humano se
encuentra en ese punto, tratando de sobrevivir a una catástrofe
provocada por él mismo, generada por el afán de control sobre la
naturaleza. Hacia el final de su viaje (coincidente con el final de
la novela) encontrará una posible explicación de lo acontecido,
cuando se enfrente a un grupo de zombis o «desechos humanos
de Tierra2, los restos corrompidos de los experimentos fallidos»
(Solari, 1993, p.166), sujetos que surgen como consecuencia de
la manipulación genética, y que terminan revelándose contra su
creador. La presencia del “zombi” en la novela se entendería así
como una metáfora del “límite” o la “tensión” que mencionába-
mos al principio del presente trabajo, y de la cual nos ocuparemos
más adelante.

En diálogo con las distopías de posguerra


Pensamos que la novela de Ana Solari dialoga en algunos pun-
tos con novelas distópicas de posguerra, como ser 1984 (1949),
Fahrenheit 451 (1953) o La naranja mecánica (1962). Al igual que
en la novela de Orwell, 1984, Solari presenta una sociedad mar-
cada por la fragmentación, la pobreza, el miedo, la persecución
y la opresión (si bien hay algunos pueblos que en un principio
parecen estar ajenos a la realidad, al final de la novela terminan
siendo exterminados). Podemos afirmar que la deshumanización
del sujeto a través de la manipulación mental, del lenguaje y del
entorno, así como la violencia física, están presentes en Zack. La
novela de Solari se diferencia de las novelas mencionadas, prin-
cipalmente en un punto: en que introduce el tema del apocalip-
sis, el fin de una era, a través de una catástrofe provocada por el
hombre. Presenta un mundo que, en el afán de progresar científi-
camente, no hace más que avanzar hacia el caos y la destrucción,
pues deriva en un colapso postecnológico.
En las distopías de pos guerra hay un discurso donde predomi-
na la opresión, la persecución, la violencia y la manipulación; en
cambio, en Zack, novela posdictatorial, el discurso dominante
es el del desarrollo, el progreso y el crecimiento tecnológico, el
del mercado global con consecuencias ecológicas terribles para
el hombre, producto del “crecimiento y el avance”. En este senti-

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

do, es que creemos que esta novela puede también ser abordada
desde una lectura eco-crítica3, pues la novela funciona como una
eco-distopía4, que critica a la lógica del crecimiento científico y
tecnológico, derivado del capitalismo global, con sus posibles
consecuencias. Para ilustrar esto, se escribe en Zack:
Pinkus a Zack: No ven cómo se repiten los signos, los síntomas. Creen
que porque dominan tecnologías que nosotros apenas si osáramos
imaginar, y que porque han conquistado el espacio y la naturaleza,
están a salvo. Pero no es así. No están a salvo de ustedes mismos, son
el peor enemigo que tienen y contra el cual no pueden luchar (Solari,
1993: 10).
Esta novela se publica apenas finalizada la guerra fría, camino
hacia un fin del milenio marcado por una creciente democracia
capitalista, un incremento de la liberalización del comercio, un
aumento en el manejo de los recursos naturales (como el agua),
del ser humano, de animales (inseminación, clonación, etc.),
avances en la tecnología digital y en la ciencia. Paralelamente, se
comenzaba a hablar de los cambios climáticos y del calentamien-
to global. En 1992, se lleva a cabo la “Cumbre de la Tierra” en Río
de Janeiro, organizada por la Organización de las Naciones Uni-
das (ONU), donde uno de los puntos destacados que surgieron
era el de «prevenir una interferencia antropogénica (intervención
del hombre) peligrosa con el sistema climático» (1992).
El discurso centrado en la preocupación por el medio ambiente
se instaura en la década del ´90, y comienza a estar presente en
la literatura, especialmente en la de ciencia ficción, así como tam-
bién en una nueva vertiente crítica que surge en Estados Unidos
en la misma época: la eco-crítica, a partir de la creación de la
Asociación para el Estudio de la Literatura y el Medio Ambiente
(1992). Si bien este tipo de literatura futurista, donde aparece una
preocupación por el medio ambiente no es para nada nueva, lo
que sí llama la atención es la proliferación de la misma (no solo

3 En The Ecocriticism Reader (1996), Cheryll Glotfelty, define a la eco crítica
como el estudio de las relaciones entre literatura y el medio ambiente, es de-
cir, nuestro ecosistema. Con esto se refiere al conjunto conformado por una
comunidad de organismos que interactúan entre sí.
4 Se refiere a la postulación de un mundo distópico del cual participa, de ma-
nera comprometida, el tema del daño ambiental o ecológico.

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Métodos Fronteiriços

en la literatura, sino también en el cine) a partir de los años no-


venta, pero especialmente luego de comenzado el nuevo milenio
(con novelas como Oryx and Crake (2003) de Margaret Atwood, y
The Year of the Flood (2009) de la misma autora, La posibilidad de
una isla (2004) de Michel Houellebecq, y Never Let me go (2005)
de Kazuo Ishiguro.
En Zack, la preocupación por el medio ambiente y el futuro del
mundo y del ser humano está presente en el escenario pos-apo-
calíptico que presenta Solari, el cual sirve como elemento que re-
fleja una visión escéptica frente a la razón instrumental y a la idea
de que el progreso se logra a través de la ciencia y la tecnología,
medios de los cuales se vale el hombre para “controlar” la reali-
dad y consecuentemente la naturaleza.
Desde este punto de vista, podemos decir que el discurso de So-
lari contiene una visión que comulga con el sentir de algunos te-
óricos de la época, los cuales proclamaban el fin de la historia y el
comienzo de una nueva era. En 1992 Francis Fukuyama publica
El fin de la historia y el último hombre, aunque ya en el año 1989
había aparecido un artículo en la revista “The National Interest”,
donde adelantaba el tema central de su publicación de 1992:
Tal vez estemos presenciando no apenas el fin de la Guerra Fría, o el
final de un período en particular de la historia de postguerra, sino el
fin de la historia como tal: es decir, el punto final de la evolución de la
humanidad y la universalización de la democracia liberal occidental
como forma final de gobierno humano (1991, p.6).
Es decir, que la lucha entre las ideologías había terminado; estas
ya no serían necesarias, ya que han sido sustituidas por la econo-
mía. Según Fukuyama, la historia ha alcanzado su punto máximo,
por lo tanto, ya no tiene ninguna misión que cumplir, ha llegado
a su fin. En el mismo año (1992), Baudrillard publicaba La ilusión
del fin. La huelga de los acontecimientos, donde plantea el “des-
vanecimiento de la historia”, y como consecuencia: el desvaneci-
miento del fin.
En la década del ´90 se oyó hablar del final de la historia, de las
ideologías, de las ilusiones, de las utopías; todos estos “finales” es-
tán asociados al advenimiento del progreso tecnológico y al avan-
ce de la globalización. Ante tanto “final” parece haber una falta de
esperanza debido a la idea (o ilusión) de progreso.

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

Ser conscientes de que se ha llegado a un “final” nos hace pensar


en un alto en la narrativa histórica de nuestro mundo, de nuestras
vidas; dado que si la historia ha llegado a su fin, entonces no hay
nada que contar, por lo tanto, se produce un silencio, y es den-
tro de ese silencio que surgen ficciones de corte apocalíptico y
pos-apocalíptico, como Zack, donde se crea una proyección de la
historia, se narra el futuro de nuestro mundo, de nuestra especie;
pero lo que es más importante: se imagina y narra un final. Si la
historia ha terminado, no hay necesidad de esperar el final mar-
cado por Dios, el final apocalíptico narrado por Juan en el Nuevo
Testamento; por lo tanto, el “final de esta era” debe ser creado.
Según Baudrillard (1993), la “catástrofe natural” ya no tiene lugar,
y le cede el lugar a la “catástrofe artificial”, y eventualmente a
la “catástrofe programada”. En este sentido, el apocalipsis está en
manos de los hombres, y ya no de Dios:
El hombre no tiene prejuicios: se toma a sí mismo como cobaya, al
mismo tiempo que el resto del mundo, vivo o inanimado. Se juega
alegremente el destino de su propia especie al mismo título que el de
todas las demás. En su ciega voluntad de saber más, programa su pro-
pia destrucción con la misma desenvoltura y la misma ferocidad que
la de los demás (…) Se sacrifica a sí mismo como especie a un destino
experimental desconocido (Baudrillard, 1993:128).
Es desde este lugar que podemos leer la novela de Ana Solari
como una ficción eco distópica que alberga una crítica profunda
a la manipulación que el ser humano hace de su entorno y de su
propia especie. No es casual que el proyecto en el que participa
el personaje y su compañero Frenkel, se llame “Tierra2”, simple
coincidencia, o clara referencia al proyecto Biosfera II, ecosiste-
ma artificial cerrado, desarrollado en Oracle, Arizona (EE. UU.),
construido entre 1987 y 1991, diseñado no solo para comprender
el entramado de interacciones presentes en un ecosistema, sino
también para estudiar la viabilidad de biosferas cerradas en una
posible colonización espacial y así permitir la manipulación de
una biosfera sin dañar la Tierra. Este proyecto fracasó.
A través de la voz de los personajes se puede ver la preocupación
por el avance tecnológico y sus posibles consecuencias. Esto es
claro en un diálogo que Zack y Frenkel (colega y amigo) tienen
con respecto a una conversación que Zack había mantenido con

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Métodos Fronteiriços

Pinkus, el escribidor (personaje que, a nuestro entender, repre-


senta al pasado, al pensamiento y a la consciencia reflexiva, y del
cual nos ocuparemos más adelante), antes de que sucediera la
gran explosión:
Frenkel: ¿Y qué dice Pinkus?
–Dice que toda esta tecnología traerá más desgracias que beneficios,
eso dice.
–Pero, ¿por qué? – Porque si al ser humano se le quitan los límites
conocidos, las fronteras, y todo se convierte en posible, la única sali-
da que queda es la destrucción, o la anulación”. (Solari, 1993, p.46)

El escribidor y la prohibición de escribir


El tema de la manipulación del lenguaje como elemento de domi-
nación está en varias de las novelas distópicas citadas en el pre-
sente trabajo. 1984 es un claro ejemplo del proceso de destrucci-
ón de la lengua a través de una planificación y modificación del
corpus5, marcada por la reducción del lenguaje y la creación de
una neolengua (newspeak), así como también la prohibición de
escribir, evidenciada en el primer crimen que el personaje princi-
pal (Winston Smith) comete: escribir en un cuaderno que oficia
de diario íntimo. En Fahrenheit 451 el tema central es la quema
de libros, bajo la idea de que leer le hace mal a los hombres, les
impide ser felices; por último, en La naranja mecánica, Burguess
también crea una nueva variedad lingüística, el nadsat, que si-
mula una jerga hablada por adolescentes, basada en palabras con
origen en el idioma ruso.
En Zack, el lenguaje también tiene un lugar importante, espe-
cialmente la escritura y la caligrafía a cargo de los “escribidores”,
profesión que estaba prohibida en época de conflicto y en vías
de extinción, y por la cual eran perseguidos, pues «desde que se
había impuesto la enseñanza obligatoria de los ordenadores en
todos los niveles…ya nadie escribía a mano» (Solari, 1993, p. 25).
En la novela, la escritura manuscrita representa al pasado, y este
el pensamiento crítico y la reflexión. La eliminación de la escri-

5  La planificación del corpus de una lengua implica modificaciones de aspec-


tos internos de la misma, como ser: la ortografía, la fonética, la fonología, la
gramática y el léxico.

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

tura manuscrita y su sustitución por los caracteres tipográficos


implica eliminar la individualidad del sujeto. La escritura manus-
crita puede ser entendida como un espejo de la personalidad de
un individuo, debido a características únicas del aspecto gráfico
e individual de este tipo de escritura. En Zack, la imposición del
uso del ordenador y, consecuentemente, la uniformización de la
escritura, lleva no solo a la deshumanización, sino también a la
pérdida del desarrollo de la personalidad. En la novela, la escri-
tura por ordenador sustituye a la letra cursiva o manuscrita, ge-
nerando la homogeneización de la escritura y la imposibilidad
de los individuos de poder leer y decodificar la escritura manual:
Desde que se había impuesto la enseñanza obligatoria de los ordena-
dores en todos los niveles y ya nadie escribía a mano, la profesión de
escribidor se había cotizado muchísimo. Pero por otra parte, y desde
siempre, estos viejos que vivían recluidos en antiguas casonas situa-
das en los suburbios de las ciudades, de difícil acceso y alejados unos
de otros, habían conocido la amargura que representaba su trabajo.
Por diferentes motivos, los distintos gobiernos los habían persegui-
do, directa o indirectamente. (…) En época de conflicto eran abierta-
mente prohibidos, obligados a veces a trasladarse allende los muros,
donde la suerte que les esperaba no era precisamente la mejor. (Solari,
1993, p. 25)
Hace veintidós años atrás, cuando la novela fue publicada, la po-
sibilidad de que la escritura manuscrita fuese sustituida por la
tipográfica parecía lejana, aunque probable. Hoy en día esa posi-
bilidad ya es parte de la realidad. El pasado enero fue publicado
un artículo en el cual se anunciaba que en las escuelas finlandesas
(tomadas como modelo por varios países del mundo), a partir de
agosto del año 2016, los niños «dejarán de aprender por obligaci-
ón la letra manuscrita cursiva y el tiempo así ahorrado lo dedica-
rán a la mecanografía»6.
En el siguiente pasaje de la novela se explicita la preocupación de
la autora por la posible desaparición de la escritura manuscrita:
6 El artículo mencionado presenta también la postura de varios académicos
expertos en el tema, quienes sostienen que el papel de la escritura manuscrita
es fundamental para el desarrollo de diferentes habilidades en los niños, que
van desde la coordinación de habilidades manuales, hasta el propio desar-
rollo del cerebro. (Ver: http://www.dw.de/adi%C3%B3s-a-la-letra-manuscri-
ta-cursiva/a-18209025)

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Métodos Fronteiriços

«La sola idea de que se impusiese la prohibición de la escritura


manual y la enseñanza obligatoria de máquinas de escribir le hu-
biese parecido absurda e imposible». (Solari, 1993, p. 96)
En el personaje del “escribidor” está representada (si no
encarnada) la figura del intelectual, de aquél que dedica su tiem-
po a la reflexión, y que tan perseguido ha sido por gobiernos dic-
tatoriales, donde el acto de pensar se transforma en un delito que
debe ser castigado. Esto aparece en la novela en las palabras del
“escribidor”: «tienen miedo, porque este trabajo significa disponer
de tiempo para reflexionar, y eso conduce a descubrir cosas. Es
por eso que nos han perseguido siempre, y lo seguirán haciendo,
mientras alguno de nosotros exista». (Solari, 1993, p. 25)

Los “zombis”: metáfora de la tensión


«La metáfora es esa tensión entre dos significados, ese percibir el uno
como si fuera el otro pero sin acabar de serlo. La metáfora atenta así
contra los principios de identidad y de no-contradicción, principios
que, sin embargo, fluyen de ella como forma petrificada suya. Efec-
tivamente, como ya planteara Nietzsche y desarrollara Derrida, bajo
cada concepto, imagen o idea late una metáfora, una metáfora que se
ha olvidado que lo es» (Lizcano 2006: 60).
Partiendo de la definición que Lizcano da de la metáfora, es que
podemos leer la presencia del “zombi” en la novela como una me-
táfora en donde está representada la tensión que se genera entre
opuestos (y complementarios, ya que cada opuesto contiene al
mismo, a su opuesto). El mismo cuerpo del zombi representa la
tensión entre opuestos, es la representación de la frontera misma,
pues no es ni una cosa ni la otra; los zombis son muertos vivien-
tes, no están ni vivos ni muertos, pero vivos y muertos al mis-
mo tiempo, encarnando una contradicción, son opuestos unidos
formando una tensión. Los zombis no pertenecen a ningún lado.
Ellos representan los residuos humanos que han sido “reciclados”
a través de manipulación científica para transformar un desecho,
algo no útil, en un producto útil para la sociedad, en este caso un
ejército útil para los fines de un grupo dominante en la sociedad
de la novela de Solari: los científicos.
Pensamos que la metáfora del “zombi” en la Zack, puede ser uti-
lizada como artefacto interpretativo, pues es a través de su figura

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Parte 2. Literaturas americanas, literaturas insólitas: métodos e textos

que Solari trae a la discusión un tema que Zygmunt Bauman dis-


cute en su libro Vidas desperdiciadas. La modernidad y sus pa-
rias, publicado por primera vez en el año 2004, que es el de los
residuos que genera el sistema de vida típico de la modernidad,
específicamente los “residuos humanos”; es decir, todos aquellos
seres que no han logrado integrarse al sistema de vida moderno, y
que no le son de utilidad (o al menos no son funcionales) a la so-
ciedad. Bauman plantea que en las sociedades actuales se generan
no solamente excedentes de productos de consumo, sino también
excedentes humanos, y la cuestión radica en qué hacer con ellos.
Parte del discurso de los últimos tiempos incluye la regla de las
tres “R” (RRR): reducir, reciclar y reutilizar lo que ya no nos es de
utilidad. Es interesante como en la sociedad apocalíptica plantea-
da por Solari la regla de las tres “R” se aplica a los humanos.
En la novela (al igual que en la sociedad actual), los “desechos
humanos” o “excedentes”, se encuentran en los suburbios de las
ciudades, en sitios que generalmente coinciden con los vertede-
ros de basura. Bauman sostiene que, por lo general, los residuos
humanos y los industriales van a parar al mismo lugar, al mis-
mo vertedero. Esta idea aparece en la novela en varios momentos,
pero quizá la siguiente cita ilustre lo que acabamos de decir:
No era la primera vez que Pinkus mencionaba esto. Se refería a los
suburbios acordonados que comenzaban verse en las ciudades,
construidos con el apoyo tácito de los gobernantes. Pinkus sos-
tenía que esos sitios las autoridades encerraban a todos aquellos
que por alguna razón consideraba de ninguna utilidad. (Solari,
1993, p.11)
De acuerdo con el autor de Vidas desperdiciadas (2006), la pro-
ducción de “residuos humanos” y su eliminación se han conver-
tido en uno de los problemas más importantes de las sociedades
actuales, ya que se trata de esconderlos o camuflarlos para que no
perturben a aquellos individuos que sí son útiles y productivos,
además de consumidores. Por lo tanto, el gesto de ocultamiento
que implica el hecho de que los residuos humanos compartan la
misma geografía que los desechos de la sociedad consumista, no
es más que un camuflaje de una realidad para que, a los ojos de la
sociedad, el problema quede resuelto.
En Zack, los desechos humanos, es decir, la clase no productiva,

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Métodos Fronteiriços

sufren el proceso de reciclado al que nos referíamos anteriormen-


te, pues, a partir de la manipulación científica son transformados
en un ejército de zombis, en criaturas que (como en el Frankens-
tein de Shelley) terminan revelándose contra su creador (en este
caso, sus “creadores”: los científicos):
Llegará el día –había dicho Pinkus una tarde en que estaba particu-
larmente serio– en que los suburbios detrás de los muros albergarán
una población paralela a nosotros, y nadie sabrá qué hacer entonces
con ellos. Tampoco me extrañaría si fueran utilizados con otros fines,
y que cuando realmente se conviertan en un serio problema, se los
elimine sin más (Solari, 1993, p.11).

Referencias bibliográficas
BAUDRILLARD, Jean. La ilusión del fin. La huelga de los acon-
tecimientos. Barcelona: Anagrama, 1993.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiciadas. La modernidad y
sus parias. 2006 Buenos Aires: Paidós
FUKUYAMA, Francis. El fin de la historia y el último hombre.
Montevideo: Ediciones de Juan Darién, 1992.
LIZCANO, Emmánuel, Metáforas que nos piensan. Sobre cien-
cia, democracia y otras poderosas ficciones, Ediciones Bajo
Cero, Licencia Libre Creative Commons 2.1, http://creativecom-
mons.org/license/ (recuperado 17/02/2013).
ONU, “Cumbre de la Tierra”, Río de Janeiro, 1992.
SOLARI, Ana. Zack. Montevideo: Trilce, 1993.

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Parte 3

Objetos míticos: os livros dos povos


tradicionais

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12 Objetos míticos
americanos: livros dos
povos tradicionais e
experiências de leitura da
autoria indígena no Brasil

Cynthia de Cássia Santos BARRA1


Gostaria de agradecer aos Organizadores do I Congresso Mé-
todos Fronteiriços: objetos míticos, insólitos e imaginários pelo
convite para participar deste evento: é uma alegria e um momen-
to muito significativo poder estar aqui, no teatro Banzeiros, em
Porto Velho, com os colegas, pesquisadores presentes – professo-
res e estudantes. Gostaria de agradecer especialmente à professo-
ra Heloísa Helena, pelo convite para pensar junto com seu grupo
de pesquisa a produção escritural contemporânea dos povos in-
dígenas, por meio do desejo e do compromisso de discutir alguns
pressupostos e desdobramentos político-ideológicos de nossos
caminhos de pesquisa junto a esses povos e seus saberes míticos.
Lançar nosso olhar, nossa visão, para a miríade de objetos raros
que frequentam o imaginário, as fabulações nacionais e pan-
-amazônicas, nossos discursos sobre o outro, sobre nossos mitos

1  Doutora em Literatura Comparada pela UFMG atua como professora no


Curso de Bacharelado Interdisciplinar em Artes da Universidade Federal do
Sul da Bahia - UFSB. Atualmente desenvolve o projeto “Livro das Comuni-
dades: o saber dos povos de tradição oral e a inclusão no ensino superior e na
pesquisa no sul da Bahia”, na UFSB, com apoio da FAPESB, articulado aos
projetos do Grupo de Pesquisa Arandu Heta. E-mail para contato: cynthia-
csbarra@ufsb.edu.br

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Métodos Fronteiriços

fundantes, sobre nós mesmos, sobre os mitos dos outros; realizar


o gesto de decuplicar o olhar com o objetivo de tensionar nossas
teorias em direção aos limites da racionalidade ocidental e seus
métodos escrutinadores e/ou inventivos: escutei assim o convite
deste evento.
A comunicação que apresento a vocês hoje é, basicamente, re-
sultado de um projeto de pesquisa realizado, junto ao Grupo de
Pesquisa em Educação, Culturas e Linguagens GECEL, durante
os quatro anos que trabalhei como professora na Universidade
Federal de Rondônia, em uma parceria formalizada com o Nú-
cleo de Pesquisas Literaterras: leitura, escrita, traduções – FALE/
UFMG, com apoio do CNPq (Edital Universal 2011-5). Esse pro-
jeto, que nomeamos de “Livros da Floresta: do registro etnográ-
fico à criação literária”, permitiu-me orientar oito estudantes do
Curso de Letras como bolsistas do Programa de Iniciação Cien-
tífica desta instituição. Também em função disso a minha ale-
gria de estar aqui hoje. A esses estudantes, jovens e persistentes
pesquisadores – Jazilane, Lucélia, Érica, Sebastiana, Regy, Rafael,
Raiane e Lisiane – dedico esta comunicação, com meu imenso
agradecimento por tão boa companhia.

Seção 1. Livros da Floresta


As histórias de antigamente estão na base da literatura indígena, e,
como princípio, sustentam o pensamento nas suas várias sociedades,
constituindo o que se poderia identificar como o espírito dessas civili-
zações. Mesmo a historiografia indígena, que, nos últimos anos e gra-
ças à conquista da escrita, passou a existir, encontra seu fundamento
na palavra dos antepassados – como dizem os índios – [os antepassa-
dos] são seus livros mais preciosos. (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004)
Rememorações. Em outubro de 2012, participei, em Porto Segu-
ro-BA, de um encontro de pesquisadores sobre Leitura e Escrita
em Sociedades Indígenas. Para a ocasião, escrevi um trabalho in-
titulado “Literatura de autoria indígena e revitalização das lín-
guas indígenas” que terminou sendo publicado no ano passado
(BARRA, 2014). Retomo, a seguir, literalmente, fragmentos desse
texto. Recortes que nos ajudarão a abrir caminho, ao longo desta
seção 1.
Sabe-se que em território brasileiro a ação colonizadora foi rea-

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

lizada com extrema violência, visando o completo apagamento


da cultura dos povos indígenas. A tendência para a unificação
linguística deu lugar ao quase desaparecimento da autoria indí-
gena até o final da década de setenta do século XX. Sabemos que
a figura do autor indígena, inaugurada no período colonial por
meio da ação de escritores e tipógrafos guarani, precisou de al-
guns séculos de incessante resistência para que sua presença viva
pudesse ser sentida – e fosse irredutível – no cenário intelectual,
político e cultural do Brasil República.
Entre os mais de 538 livros de autoria indígena publicados nas
últimas décadas, gostaria de comentar, de modo breve, os pro-
cessos de produção e os projetos editoriais de três deles. Muitos,
numerosos, são os livros de autoria indígena que nos ensinam
sobre seus modos e artes de ler e escrever: alguns desses livros
nos ensinam talvez que ainda não sabemos lê-los em sua irredu-
tível alteridade.
O primeiro dos livros que gostaria de comentar é Shenipabu Miyui:
histórias dos antigos (1995; 2000; 2008), de autoria dos professo-
res indígenas Kaxinawá. Resultante da “experiência de autoria”,
coordenada pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC) que teve
sua primeira publicação em 1995, com selo editorial da própria
CPI-AC, sendo reformulado graficamente e reeditado em 2000,
com nova tiragem em 2008, pela Editora Universitária da UFMG.
Vale ressaltar que até o final do século XIX, os Kaxinawá eram
uma sociedade de tradição predominantemente oral. Conforme
Nietta Lindenberg Monte, “as escritas alfabética e numérica, des-
conhecidas dos Kaxinawá até a vigência da empresa seringalista,
foram objeto de interesse desde inícios do século XX, percebidas
como um importante instrumento da dominação socioeconômi-
ca sobre eles exercida”. (MONTE apud KAXINAWÁ, 2008, p. 14)
Em seu relato sobre “O Livro e sua Construção”, Monte assevera
que tão importante quanto o resultado “histórico, linguístico e
estético do livro Shenipabu Miyui (...) é contarmos aqui o proces-
so educativo de sua elaboração coletiva pelos Kaxinawá” (ibidem,
p. 16). Os professores Kaxinawá realizaram uma pesquisa que du-
rou seis anos, durante os quais os jovens pesquisadores gravaram
as falas dos mais velhos, mestres da tradição, “muitas horas de
trabalho foram consumidas de 1989 a 1995, na revisão linguística
e no aprimoramento estilístico da obra” (ibidem, p. 17). Por fim,

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Métodos Fronteiriços

era preciso decidir sobre a língua ou as línguas presentes no livro:


A presença no livro das versões em português das histórias dos anti-
gos não foi uma decisão simples: num primeiro momento, os profes-
sores haviam decidido elaborar um livro só em Hãtxa Kuî. Visando
o fortalecimento político e a valorização cultural da sua língua, sem
coloca-la em relação, quase sempre desvantajosa, com a língua portu-
guesa. Após discussões e alguns trabalhosos anos de escrita em língua
indígena, entenderam ser importante que os mitos pudesse chegar
também às mãos das outras sociedades indígenas e dos leitores bra-
sileiros em geral. (...) As versões em português das versões em Hãtxa
Kuî foram posteriormente transcritas por professores Kaxinawá em
Rio Branco e depois foram revisados sob minha assessoria, visando-
se sua complexa passagem de língua oral em língua escrita. (MONTE
apud KAXINAWÁ, 2008, p. 18-19)
ShenipabuMiyui: história dos antigos foi indicado como leitura
obrigatória para o vestibular de duas universidades federais bra-
sileiras (UFMG, 2001; UFVJM, 2011). Passou, assim, a estar em
um espaço institucional restrito às obras consideradas estrutu-
rantes do sistema literário brasileiro.
O segundo livro que gostaria de mencionar é Antes o mundo não
existia (1980; 1995), dos autores Umúsin Panlõn Kumu e Tola-
mãn Kenhríri, da etnia Desana. Considerado por especialistas
(ALMEIDA, 1999; BICALHO, 2010) como o primeiro livro de
autoria indígena publicado em língua portuguesa. A primeira
edição, de 1980, continha 239 páginas, tendo sido publicada pela
Livraria Cultura Editora (São Paulo). Foi destinada ao público
externo às aldeias, com introdução e notas da antropóloga Berta
G. Ribeiro. Em 1995, a obra foi ampliada, passou a ter mitos não
contemplados na primeira edição, reeditada, contendo 264 pági-
nas, em parceria, com o selo editorial da Federação das Organi-
zações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e da União das Nações
Indígenas do Rio Tiquié (UNIRT). Tornando-se o ponto de parti-
da de uma coleção (Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro,
volume 1), que pudesse acolher outras narrativas a serem escritas
e colocassem em circulação, “nos povoados indígenas, sobretu-
do entre os jovens estudantes nas escolas espalhadas por todo o
noroeste do estado do Amazonas”, as narrativas míticas contadas
por Umúsin Panlõn Kumu (Firmiano Arantes Lana) a seu filho

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

Tolamãn Kenhríri (Luiz Gomes Lana).


A princípio não pensei em escrever essas histórias. Foi quando vi
que até rapazinhos de dezesseis anos, com o gravador, começaram a
escrevê-las. Meu primo-irmão, Feliciano Lana, começou a fazer de-
senhos pegando a nossa tribo mesmo, mas misturados com outras.
Aí falei com meu pai: “todo mundo vai pensar que a nossa história
está errada, vai sair tudo atrapalhado”. Aí ele também pensou... Mas
meu pai não queria dizer nada, nem para o padre Casemiro, que ten-
tou várias vezes perguntar, mas ele dizia só besteiras assim por alto.
Só a mim que ele ditou essas casas transformadoras. Ele ditava e eu
escrevia, não tinha gravador, só tinha caderno que eu mesmo com-
prei. (...) Quando terminei, quando enchi todo um caderno, mandei
o caderno para o padre Casemiro, o original em desana, a história da
criação do mundo até a dos Diloá. Continuei trabalhando, fazendo
outro original, já em português. Aí pedi ao padre Casemiro para pu-
blicar, porque essas folhas datilografadas acabariam se perdendo, um
dia podiam ser queimadas, por isso pedi que fosse publicado para
ficar no meio dos meus filhos, que ficasse para sempre. (TOLAMÃN
KENHRÍRI apud UMÚSIN PANLÕN KUMU & TOLAMÃN KE-
NHRÍRI, 1995, p. 11-12)
Em 2009, a Editora da Universidade Federal do Amazonas
(EDUA), em parceria com o Museu Amazônico, lança a série “au-
tores indígenas”, com a publicação da obra A origem da noite &
Como as mulheres roubaram as flautas sagradas, com ilustração
e texto original em Desana, e autoria de Feliciano Pimentel Lana,
primo de Tolamãn Kenhríri. Refletir sobre os caminhos da escri-
ta e dos desdobramentos editoriais dessas publicações em desana
é interessante, entre outras questões, porque nos permite ver com
alguma clareza diferentes circuitos editoriais (e, certamente, cir-
cuitos mercadológicos) dos livros indígenas. Como assinalado, a
primeira edição foi publicada por uma editora privada paulista;
a segunda, pelo selo editorial de duas organizações indígenas do
Amazonas. A segunda edição teve como principal objetivo possi-
bilitar que o livro circulasse também entre os povoados indígenas,
objetivo que não teria sido alcançado pela primeira edição. Além
disso, a reedição vincula-se à inauguração de uma coleção intitu-
lada “Narradores Indígenas do Rio Negro”. Podemos pensar aqui
em um processo de conquista da escrita caminhando também
na direção do domínio dos meios de produção editorial. Isso é

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Métodos Fronteiriços

exemplar e bastante significativo quando colocamos no horizon-


te o desenvolvimento de estratégias para a autodeterminação dos
povos indígenas.
O terceiro livro que gostaria de mencionar é Hitupmã’ax (2009).
Em 2006, ao serem entrevistados durante a seleção para o ingres-
so no Curso de Formação Intercultural para Educadores Indíge-
nas da UFMG, os professores Rafael, Pinheiro e Isael Maxakali
disseram: “queremos estudar na universidade para fazer um livro
que ensine a FUNASA a trabalhar com a gente” (MAXAKALI,
2008: 11). O desejo de escrever um livro para ensinar médicos,
enfermeiras, agentes de saúde das diversas instituições que in-
teragem com o povo Maxakali foi concretizado. O processo de
pesquisa, elaboração de textos, edição e publicação durou quase
três anos. No texto que apresenta o processo de produção do livro
de saúde Maxakali, Vânia Baeta Andrade afirma:
Havia (e há) um desejo em causa: transmitir uma cultura, uma cos-
movisão, na qual está incluída uma certa, preciosa, concepção de vida
e de morte. Desejo de ensinar, sim, pois são professores. Ensinar a
cuidar: cuidar da vida, cuidar da morte, cuidar do corpo-espírito na
imensidão que o constitui. A equipe escutou e cuidou. Cuidou para
que o livro pudesse ser escrito respeitando a esse princípio. (BAETA
apud MAXAKALI, 2008, p. 246)
Uma equipe multidisciplinar juntou-se aos professores Maxakali
para compor o livro que contou com muitas horas de gravação
de conversas, depoimentos, narrativas e cantos rituais Maxakali.
As conversas e leituras realizadas eram provenientes de muitas
áreas de conhecimento: psiquiatria, psicanálise, linguística, an-
tropologia, enfermagem, clínica média geral, teoria literária. O
material reunido, páginas e páginas de transcrição de conversas,
configuraram “material heterogêneo quanto ao gênero, à língua
(maxakali e português em vários registros e tons), à intenção, à
intensidade das informações” (ALMEIDA, 2009b, p. 61). O livro
de saúde Maxakali concretizou-se por meio de uma proposta edi-
torial inusitada. Tendo como referência a experiência literária da
portuguesa Maria Gabriela Llansol e as teorizações sobre o livro
americano (a lógica rizomática) de Gilles Deleuze, o material se-
lecionado ao longo da pesquisa, traduzido e, obstinadamente, re-
traduzido, ganhou a forma de três colunas paralelas, compondo

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

um livro que é, a uma só vez, no mínimo, três. Nas palavras de


Almeida, coordenadora editorial do projeto:
Assim, dispostos na página como colunas sem fim, que podem ser
lidas separadamente e/ou em possíveis relações horizontais, transver-
sais e verticais, os três livros sempre podem se tornar mais do que
três. A coluna de dentro é da Paisagem, a escrita pelos Maxakali; a
do meio é a da Polimorfa Mulher, com as ambiguidades da conversa
entre nós (aqui incluo os seis maxakalis participantes da experiência);
a de fora, Microcosmos do Homem, com a terminologia médica ten-
tando conceptualizar (cientificar?) o saber que a memória maxakali
tem guardado misteriosamente, apesar da desgraça da colonização.
(ALMEIDA, 2009b, p. 62)
O livro de saúde Maxakali, objeto cultural híbrido, sem catego-
rização de gênero definível, não pertence exatamente à tradição
literária ocidental, nem às compilações de mitologias ameríndias
ou ao saber científico stricto sensu. Em março de 2009, menos
de um ano após sua publicação, teve várias de suas páginas in-
corporadas a uma cartilha da FUNASA, passando, assim, a fazer
parte das referências bibliográficas do Projeto VIGISUS II, um
programa da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério
da Saúde. Nesse caso específico, tendo como referência o caráter
atual das relações interétnicas no Estado brasileiro contemporâ-
neo, é relevante observar como a palavra escrita em livro, com
seus caminhos e destinos imprevistos, faz a autoria Maxakali pe-
netrar ativamente em um espaço sócio-político historicamente
monopolizado pela linguagem científica e razão ocidentais.
Os três livros apresentados enfrentaram, para sua construção,
cada um à sua maneira, problemas tradutórios – tradução intra-
lingual, interlingual, intersemiótica – e precisaram inventar seus
métodos fronteiriços específicos; em todos os três, as formas de
produção de conhecimento foram marcadas por práticas colabo-
rativas e interculturais. Os três livros foram forjados em meio as
tensões entre os sujeitos advindos de sociedades de tradição oral
e os de tradição escrita: autores indígenas, assessores científicos –
linguistas, educadores, antropólogos, médicos, psicanalistas, etc.
Esses livros tornaram-se objetos mais ou menos poéticos; heteró-
clitos, todos eles em suas composições; insólitos e estranhos em
seus discursos e narrativas; poderiam também dialogar com a

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Métodos Fronteiriços

Literatura; se assim o quisermos. Todos os três livros carregam,


pelo menos em algumas de suas páginas, histórias míticas e can-
to-poemas.
Não sem resistência, e talvez para espanto de alguns, já fazem
parte de listas canônicas de vestibulares de universidades fede-
rais; propiciaram a escritores indígenas assumir o lugar de edito-
res; foram capazes de uma proeza bastante significativa – injeta-
ram no discurso médico da FUNASA células míticas do discurso
indígena como coordenadores de outros mundos e de procedi-
mentos na área da saúde.
Não há dúvida, como fato pertinente à cena contemporânea, os
livros de autoria indígenas penetraram o mundo da cultura im-
pressa, estabeleceram formas e estilos indígenas específicos. Hoje
no Brasil podemos falar de obras de autoria maxakali, kaxinawá,
dessana, pataxó hãhãhãe, xavante. São reais, existentes, e tão des-
conhecidas ainda.
São objetos do nosso mundo urbano e do mundo da floresta.
Ocupam vários espaços de sentido. Participam da composição
da miríade de objetos culturais estranhos, insólitos, fantásticos,
objetos resistentes às nossas abstrações teóricas homogeneizado-
ras. Dialogam, de um modo ainda não pacificado, de um modo
selvagem, talvez dissessem alguns; dialogam com diversas escolas
estéticas, com variadas escolas teóricas, com concretas políticas
editoriais.

Seção 2. Ler e reler os Livros da Floresta


O que está por vir. Após quase dez anos lendo livros indígenas,
penso que não sabemos o que são os livros de autoria indígena.
Eles compõem um fabuloso campo de potência inventiva, creio.
Compreender isso talvez seja um bom modo de nos relacionar-
mos com esses livros, enquanto persistimos na nossa tarefa de en-
contrar sentidos para as nossas práticas e métodos atuais de leitu-
ra dos livros de autoria indígena; e das compilações e antologias
de mitos que chegaram até nós por meio de viajante, cronistas,
folcloristas e etnólogos. Até onde podemos ir em nossas leituras?
Uma questão conceitual de fundo esteve presente na primeira
parte de minha exposição, ainda que não a tenha explicitado, e

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

diz respeito à questão comumente levantada quando se discute


a produção escritural indígena na contemporaneidade: os textos
criativos indígenas são literatura? As narrativas mitológicas indí-
genas podem/devem ser consideradas como Literatura? Elas são
especificamente, Literatura Oral?
Antônio Risério, em Tribos e textos: poéticas extra-ocidentais
nos trópicos (1993) é enfático: “Não há povo que não ostente, no
elenco dos seus signos mais expressivos, objetos de linguagem,
correspondentes ao que, em nosso mundo, chamamos poesia”
(RISÉRIO, 1993, p. 25). Sem enroscarmos demasiado na questão
espinhosa de pretender determinar se os textos criativos indíge-
nas são ou não, de fato, Literatura Oral ou se apenas se tornam
Literatura quando se inserem na Cultura do Impresso e encon-
tram seus leitores, vale considerar que o fazer literário com povos
indígenas – a prática da letra – tem funcionado como abertura,
uma fissura no mundo, por meio da qual todo um novo espaço
de invenção e de enunciação se afirma. As narrativas míticas fun-
dam o espaço dialógico nos livros de autoria indígena e, a partir
daí, falam os autores indígenas.
Sabemos que nas sociedades de tradição tribal/oral, o mito apre-
senta-se como uma estrutura complexa e multidimensional. Por
meio do mito, se nos lançarmos sob a orientação teórico-me-
todológica da Análise do Discurso, isto é, se nos dedicarmos à
investigação da discursividade do mito, podemos ter acesso às
representações estabelecidas entre povo, território e história.
“Como prática discursiva, o mito responde ao imaginário e à
formação ideológica que, mediante mecanismos de ordem his-
tórico-social, produzem efeitos de identidade” (BORGES, 2003,
p. 7). Conhecer melhor o contexto sócio-histórico de produção
dos mitos para conhecer melhor os povos indígenas; conhecer
melhor os povos indígenas para conhecer melhor as narrativas
míticas: nossa via de mão dupla. Essa é nossa tarefa como leitores
de literatura indígena?
Como caminhar nesse ainda novo, estranho, insólito, instável, es-
paço de leitura que se abre para nós ao adentrarmos no mundo
conforme os mitos indígenas enunciam?
Como reagir a um mundo sem regras, que se apresenta como a mais
pura anarquia? Ou, ao contrário, tão determinado, que já não permita

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Métodos Fronteiriços

escolhas? Como passar de um para o outro, ou, melhor, quão dese-


jável se torna saltar da anarquia para o jogo mais estrito? Estas são
questões que podem acompanhar, como se verá, a leitura de um texto
estranho, por exemplo, o mito da origem do fogo xavante, quando
este cai nas mãos de um leitor desavisado. Essa perplexidade diante
do estranho já foi exemplarmente apresentada, ao que me consta, em
dois textos de ficção bem conhecidos, ambos assinados por Lewis Ca-
roll: Alice no País das Maravilhas (1865) e Através do espelho (1871),
sua sequência. Como bem resumiu num ensaio exemplar de 1962, o
poeta inglês W.H. Auden: “No País das Maravilhas Alice tem de se
adaptar à vida sem leis; no País do Espelho, à vida governada por leis
com as quais não está familiarizada”. Num caso, ela não reconhece as
leis (pode ser que essas existam, num nível inconsciente), no outro ela
não as aceita. Ora, parece-me que foram essas as alternativas com as
quais eu próprio me deparei quando me pus a ler pela primeira vez os
textos da literatura Xavante, no final da década de 1980, graças à an-
tologia organizada por Bartolomeu Giaccaria e Adalberto Heide, em
dois volumes, intitulados Jerônimo xavante canta e Jerônimo xavante
sonha.” (MEDEIROS, s.d., p. 1)
O leitor da literatura xavante mencionado na longa citação aci-
ma não sou eu, mas sim Sérgio Medeiros. Aprendi uma lição por
meio da experiência de leitura de Medeiros. Recorro, então, a um
ensaio de Medeiros, intitulado “Ainda não se pode ler em Xavan-
te”, para avançarmos um pouco em nossa reflexão sobre a leitura
dessa literatura/poética ameríndia, extraocidental, que a ele (e a
mim também me) parece impossível de ser lida. A suposta im-
possibilidade de leitura, vocês verão, não nos afasta dos textos
ameríndios, antes nos propicia a condição necessária para pen-
sarmos nossos métodos para abrir caminhos em direção à textu-
alidade performática dos mitos – e à sua alteridade radical.
A nossa condição, a condição da maior parte de nós de não fa-
lantes de línguas indígenas, cria inicialmente uma dificuldade
de recepção da literatura ameríndia. No momento seguinte, com
um texto já traduzido em mãos, um caos narrativo se apresenta
ao leitor ocidental. Nas narrativas mitológicas, invariavelmente,
multiplicam-se encontros sobrenaturais que obscurecem a des-
continuidade entre natureza e cultura (“a onça é avô, o menino
perdido é neto da onça”); há riqueza intrínseca das mitologias
indígenas, com seu repertório de imagens e metamorfoses que

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

desautoriza fluxos narrativos lineares; há a insistência na descri-


ção de encontros sobrenaturais que embaralham todas as noções,
e nos obrigam a repensar a descontinuidade entre o homem e os
animais, trazendo à cena do pensamento a questão de “subjetivi-
dades não-humanas” (o que a princípio foi lido pela crítica lite-
rária como animismo ou antropomorfismo; e, depois, recebeu da
antropologia outras chaves teóricas interpretativas – pensamento
selvagem, perspectivismo, por exemplo).
É sempre possível tentar ordenar o caos, inventariar as recor-
rências, planificar os enredos. Não foi esse o método utilizado
preferencialmente pelos estudos estruturalistas para ler os mitos
indígenas? Tal método possibilitou a Medeiros, em sua tarefa im-
possível de ler a literatura xavante, o estabelecimento de algumas
conclusões, que grosso modo, podem ser resumidas assim:
[...] alguém, digamos uma criança ou uma mulher, ou um adulto, es-
tigmatizado por alguma razão, ou um velho, toso personagens mar-
ginalizados (porque estão vivendo à margem da sociedade viril, dos
caçadores), afasta-se de casa e se aprofunda na florestal, onde dialoga
com o outro, o extremamente outro, se pensarmos que, além dos ani-
mais, espíritos também podem cruzar o caminho desses índios soli-
tários. Tem-se aí uma experiência vivida em condições anormais, de
extrema solidão e desamparo. (MEDEIROS, s.d., p.9)
Maurice Blanchot, autor também escolhido por Medeiros como
referência importante para prosseguir em seu exercício de ler os
Xavante, supõe que a literatura é, hoje e sempre foi, a afirmação
de um discurso completamente outro. Penso que esteja nessa
afirmação de Blanchot – a compreensão da literatura como lugar
da experiência irredutível da alteridade – o ponto de articulação
possível – o lugar de imbricação mais produtivo, em meu ponto
de vista – entre o discurso mítico indígena imemorial e a autoria
indígena contemporânea que se abriu para nós por meio dos Li-
vros da Floresta.
O que está em jogo, a partir dessa compreensão, não são exata-
mente os sentidos que serão fixados a partir da leitura realizada,
ainda que a saibamos impossível por princípio – afinal como ler
o que nos é radicalmente outro? (nós não teríamos meios para
tanto) – mas, o que está em jogo aqui, creio, é o próprio jogo de
colocar em movimento nossa imaginação inventiva e nossa capa-

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Métodos Fronteiriços

cidade de produzir artefatos (livros, canções, filmes, desenhos) a


partir do encontro com o outro, do radicalmente outro.
Não é uma questão de domínio, não é uma questão de conhecer
para melhor dominar ou pacificar o outro. Antes, o desejo de um
jogo incessante e inventivo com as diferenças e com as perdas
históricas – as ruínas de nossa história cultural. Quanto a mim,
como método de leitura, a esse jogo capaz de dar prosseguimento
à impossível leitura dos textos ameríndios, eu o chamo, com o
fez Sousândrade e Haroldo de Campos, eu o chamo de transcriar.
Lembro-me aqui de um exemplo de transcrição de uma canção
tupinambá, com o qual gostaria de encerrar minha fala. Escutei-
-a pela primeira vez cantada por Caetano Veloso, em um álbum
chamado “Noites do Norte”. Depois soube que era uma canção
musicada por Caetano a partir de um poema de Waly Salomão.
Depois ouvi dizer que o poema de Waly Salomão era uma trans-
criação a partir de registros etnográficos produzidos no período
colonial e que terminaram sendo enxertados, como presença da
voz indígena, em um ensaio de Montaigne, escrito em 1878-79.
Depois, por fim, soube que a canção talvez nunca tinha sido dos
tupinambás, mas invenção provável da pena de Montaigne, após
ele ter lido Jean de Léry e outros viajantes do período colonial.
A (imaginária) canção tupinambá de Waly soa assim nas “Noites
do Norte” de Caetano:
Para de ondular, agora, cobra coral: 
 a fim de que eu copie as cores com que te adornas, 
a fim de que eu faça um colar para dar à minha amada, 
a fim de que tua beleza 
teu langor
tua elegância 
reinem sobre as cobras não corais 
De todo modo, imaginemos aqui-agora um canto, provavelmente
entoado em outro ritmo e melodia, cantado pelos Tupinambás
do litoral que hoje chamamos de Rio de Janeiro, cantado em um
tempo que para nós soaria quase apenas feito de brumas e come-
ços, o tempo anterior à chegada dos portugueses. Imaginemos
um canto, uma canção de amor, um poema visual, talvez até mes-

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

mo uma canção sobre uma cobra coral ondulando, cantada em


meio a canções de guerra e a cantos e louvores. Imaginemos, ape-
nas isso nos resta – imaginar, fabular, transcriar; e a falsa canção
tupinambá recriada, essa que acabei de ler para vocês, ressoa ain-
da tão real como música nas Noites do Norte (2000)? A história
dos textos ameríndios é uma história de silêncios, traições, equí-
vocos de leitura, falseamentos - incertezas. Não duvidemos disso.
De qualquer modo, acredita-se, parece certo que os cantores in-
dígenas, assim como os guerreiros, gozavam de grande prestígio
entre os seus e até entre as tribos inimigas de seu povo. (Fernão
Cardim chega a dizer que os cantores não eram canibalizados
quando caíam prisioneiros). Risério afirma:
No Tratado Descritivo do Brasil, em 1857, escrevendo sobre os tupi-
nambás da velha Kirymuré, atual Bahia de Todos os Santos, Gabriel
Soares de Souza emprega diversas vezes a expressão “grandes cantares”
e em todas estas vezes estamos diante da presença do texto na dança e
na música. Pelo número e variedade de situações em que tais cantares
aparecem, concluímos que era intensa a comparência da poemúsica
na vida social tupinambá. (RISÉRIO, 1993, p. 39)
Para Antônio Risério, “[n]ão só os poetas precisam abrir os olhos
e o coração para a poesia indígena (e africana), como os etnó-
grafos precisam nos mostrar mais sistematicamente a colheita
poética de suas expedições” (RISÉRIO, 1993, p. 28). Isso porque
assim que os textos trazidos a nós pelos etnógrafos fossem, por
fim, colocados na mesa, caberia ainda aos nossos poetas a tarefa
de recriá-los “em linguagem esteticamente eficaz” .
A busca da recriação dos objetos signícos (narrativas míticas,
canções de guerra, canções de amor, de louvor, cantos ritualís-
ticos, discursos do cotidiano), recriação via tradução linguística,
intersemiótica, intercultural, a tradução e a atualização dos textos
(verbais, sonoros, visuais) pelos próprios povos indígenas ou por
poetas, como quer Risério, busca, tem como tarefa, a recriação
desses artefatos “em linguagem esteticamente eficaz”. Mas, não
sabemos apenas isso. Estética e Política caminham juntos. Es-
tar diante dos textos ameríndios, para nós, pertecentes à tradi-
ção ocidental, como leitores ou recriadores, é estar diante de um
complexo epistêmico; é colocar-se diante dos limites mesmo de
nossas formas de construir teorias sobre o outro e sobre o discur-

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Métodos Fronteiriços

so do outro.
O que somos capazes de ler, então, nos livros de autoria indígena
contemporâneos? Que eles existem, não param de existir como
uma experiência de alteridade para nós. Que nós podemos lê-los,
apesar de todas as impossiblidades, sempre caminhando entre
inevitáveis-irredutíveis equívocos tradutórios e insistentes desen-
contros nos modos de viver e de pensar.
Assim, ao tempo que fazemos, por meio de nossa prática de lei-
tura, as nossas escolhas estéticas e políticas, vamos inventando
historicamente os nossos modos de relação com o outro, com o
radicalmente outro. Não desejamos repetir o gesto dos coloniza-
dores – conhecer para dominar; mas sim conhecer o outro ape-
nas conforme os nossos valores nos permitem. Ter consciência
disso me parece uma boa opção metodológica para aqueles que
habitam espaços culturais de fronteira, mundos limítrofes; para
aqueles que desejam ler literatura de autoria indígena. Não per-
der de vista, então, a míriade de objetos insólitos que cintilam
diantes de nós, irredutivelmente insólitos e incumensuráveis.

Referências bibliográficas e discográficas


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Métodos Fronteiriços

VELOSO, Caetano. Noites do Norte. Álbum discográfico. Uni-


versal Music, 2000.

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13
Los libros del Tío Lino.
Tradición impresa, libro
de la comunidad y mitos
andinos

Elías Rengifo de la CRUZ 1

“Si el Tío Lino anduviera por aquí todavía, seguramente diría que ha
mandado a esta ciudad de Trujillo, y a todo el Perú y el mundo, a sus
sobrinos, para que se encarguen de recordar a todos que la narración
oral no es sino la esencia humana en plena forma, maravillosamente
engastada en esa joya sublime que es la literatura y que es, en definitiva,
la base sobre la cual los pueblos constituyen su naturaleza primigenia,
la raíz de su vida: su cultura.” Luis Enrique Plasencia.
Las palabras se aproximan a nosotros para decirnos y significar-
nos. Cuando esto ocurre con los textos literarios, adicionalmente,

1 Elías Rengifo de la Cruz es profesor del Departamento de Literatura de la


Facultad de Letras y Ciencias Humanas de la Universidad Nacional Mayor de
San Marcos. Ha culminado su Maestría en Literatura Peruana y Latinoame-
ricana en la misma institución, donde ha iniciado los estudios de Doctorado
en su especialidad. Tiene a su cargo los cursos de Taller de Crítica Literaria
y Literatura de Tradición Oral. Sus investigaciones, publicaciones y diserta-
ciones se centran en este último rubro tanto a nivel nacional como interna-
cional. Ha organizado el IV Congreso Internacional Mitos Prehispánicos en
la Literatura Latinoamericana (2013); los conversatorios Poesía y Narrativa
Cusqueñas. Acercamiento a las Literaturas Regionales (2013) y Poesía y Nar-
rativa Puneñas. Acercamiento a las Literaturas Regionales (2013), entre otros
eventos académicos.

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Métodos Fronteiriços

nos seducen de tal forma que llegan a ser parte de nosotros. Por
ello, cuando hace unos quince años, adquirimos los Cuentos del
Tío Lino, en la versión de Andrés Zevallos (Lima: Lluvia editores,
1997, sexta edición, serie Alacitas, 1), supimos de inmediato que
una irremediable unión había surgido. La edición extraordinaria
que el editor Esteban Quiroz preparó tiene las ilustraciones que
el propio Zevallos dibujó sobre la base de cada uno de los cuentos.
Este detalle sumado a la brevedad abrumadora de los relatos, la
apelación a los usos idiomáticos locales y un espíritu narrativo
que enlaza la tradición costumbrista con la modernidad jocosa
de Lino León, el Tío Lino para todos, fueron suficientes para
entablar un diálogo a largo plazo con la literatura de Cosiete, de
Contumazá, de Cajamarca y de los Andes.
Desde entonces, he tomado en cuenta a los cuentos del Tío Lino
como parte del corpus de varios cursos y espero haber dejado esa
semilla de la lectura trascendente en los estudiantes con quienes
compartí los caminos de altura, la verborrea creativa y el inge-
nio de este pícaro andino. Del mismo modo, decidido a realizar
una investigación en torno a la literatura cajamarquina, en mis
búsquedas por librerías –principalmente las de viejo– los apus
me han permitido encontrar ediciones originales que no hubiese
imaginado tener, por ejemplo, Los cuentos del Tío Lino (Cuentos
contumacinos), de Fidel A. Zárate (Lima, Empresa Editora Perua-
na, 1939), considerada por todos los estudiosos del tema como la
primera recopilación de relatos del personaje nacido en Cosiete.
Mis vínculos con el Tío Lino, debo recalcarlo, no solo se fundan
en estos encuentros (el tinkuy siempre de por medio) entre los
libros, como compadres de toda la vida, como propone Alfredo
Mires, responsable principal de las Bibliotecas Rurales de Caja-
marca, y los lectores, en este caso mi persona que asume un rol
mediador con otros lectores, mis alumnos, mis amigos y quienes
deseen sentarse unos minutos y escuchar al cuentero contumaci-
no. De hecho, este factor es en sí mismo muy significativo, pero
debo sumar otros elementos.
El primero de ello es que tengo en la mente los relatos que me
contó mi abuela materna, natural de Cerro de Pasco, doña Teo-
dora Huatuco Cano, la vez que, en mi adolescencia, se los pedí
que los volviese a contar, para cumplir con una actividad en el

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

curso de Literatura Quechua, conducido por el maestro Manuel


Larrú. Mi abuela Teodora me relató un largo cuento, en su dul-
ce castellano andino, sobre Juan Oso, el famoso personaje de la
cuentística andina oral, cuyas raíces por cierto están en la lite-
ratura de tradición oral española. A la distancia, siento que mi
abuela me dejó parte del libro de su comunidad, para que un día
–espero pronto– vaya a leerlo completo.
Otro factor que explica mi interés en los cuentos del Tío Lino es
mi pertenencia por nacimiento a la zona norte del país. Nací en
el caserío de La Tina, a pocos metros de la frontera con Ecuador,
en el distrito de Suyo, provincia de Ayabaca, en el departamento
de Piura. Salí de allí a los cinco años y solo he vuelto una vez por
pocas horas hace cinco años. Solo mi padrino de bautizo, que ya
no vive en el lugar, es mi único nexo. De alguna forma, estas dos
razones de mi empatía con los cuentos andinos resultan ser situ-
aciones comunicativas inconclusas como muchos de los hechos
que ocurren en nuestras vidas; de tal manera que leer los cuentos
de otra zona del norte del Perú, que define una de las tradiciones
orales más reconocidas en la literatura popular peruana, es una
forma de recomponer los enlaces con mis propio condición de
lector, oyente y sujeto cultural.
Pienso que es pertinente que los resultados de una investigaci-
ón, como lo estoy haciendo ahora, hagan evidente la condición
personal y cultural del académico que escribe, y que para ello
usa la primera persona. Es, en el fondo, la huella no solo de una
perspectiva de investigación, sino el reconocimiento de que es-
cribimos a nombre de muchos, junto con muchos, alineados con
muchos, y por eso la letra escrita también es voz viva. El otro
camino, el discurso del académico neutral, amante de la tercera
persona y de las formas impersonales, tiene sus méritos, y en últi-
ma instancia es dueño de sus estrategias comunicativas.
Por otro lado, es necesario recalcar algunos aspectos que la(s)
literatura(s) andina(s) exhiben como parte de su condición ar-
tístico-verbal. En especial, enfatizamos que existe en los Andes
peruanos poesía, narrativa, teatro y otras formas literarias que
se conducen por medio de las lenguas originarias y por medio
del castellano regional costeño, andino o amazónico. Este es el
caso de nuestro corpus, que se reclama propio de una narrativa

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Métodos Fronteiriços

andina en idioma castellano. Nos parece legítimo reclamar para


la literatura compuesta y publicada en castellano andino en Caja-
marca las mismas atenciones académicas y culturales que la gran
literatura compuesta y publicada en quechua. Los fundamentos
y los nexos son múltiples como lo demostraremos en esta inves-
tigación.

Las ediciones de los cuentos del Tío Lino


Desde hace más de setenta años, escritores, artistas e intelectuales
de la zona norte del país han publicado los cuentos del Tío Lino.
La intención ha sido muy claramente generar y aumentar el cír-
culo de lectores de la literatura de tradición oral, y sumar a estos
a la conservación, recreación y goce de la comunidad de Cosiete,
donde ha nacido el Tío Lino, protagonista y narrador oral primi-
genio de sabrosos relatos.
A continuación, presentamos una relación de los libros donde los
cuentos del Tío Lino se han publicado. Como se podrá observar
hay una continuidad que redunda en la revelación de una con-
cepción nueva que exige ser denotada: la presencia de una línea
de publicaciones que encaja en el concepto de libro de la comu-
nidad, que más adelante perfilaremos detalladamente. Por ahora,
es suficiente decir que estamos ante un corpus que hace evidente
continuidades y discontinuidades. Dentro de las primeras, está la
percepción de héroe cultural que posee el Tío Lino, en el sentido
de ser un personaje transformador o de fundación del ethos cul-
tural local, y por ello, hay que escribir lo que en otro tiempo contó
oralmente. De las segundas, se comenta en el cuadro siguiente:
Autor Título Ciudad/ Número Modalidad
Editorial de cuentos

Fidel A. 1939:Los cuentos Lima: 15 Cuentos


Zárate del Tío Lino (cuen- Empresa precedidos
tos contumacinos) Editora por “Los
1970: Los cuentos Peruana lares del
contumacinos del Tío Lino” y
Tío Lino “Quién es el
Tío Lino”.

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

Juan 1972: Contumazá Lima: s.e. 3/17 La edición


Luis centenaria y el Perú Lima: de 1990
Alva 1990: Cuentos de Sagsa contiene
Plasen- Tío Lino y otros ilustracio-
cia cuentos nes.
Mario 1977/2008: El Tío Trujillo: 25 Contiene
Florián Lino y sus relatos Papel de ilustracio-
modélicos orales Viento nes
Editores
Andrés 1980/2011: Cuentos Lima: 32 Contienen
Ze- del Tío Lino Lluvia ilustracio-
vallos editores/ nes del pro-
Sumeria pio autor.
Editores/
Martínez
Com-
pañón
Editores
Marco 1990: Agua de tiem- Trujillo: 9 Contiene
Antonio po. Algunos cuentos Poligra- ilustracio-
Corcue- del Tío Lino. Otras phic nes.
ra narraciones. Las
ocurrencias del tio
Callua
César 2010: Los fantásti- Cajamar- 32 Contiene
Enrique cos cuentos del Tío ca: Muni- ilustracio-
León Lino cipalidad nes.
Mu- de Caja-
guerza marca
James 2013: Aventuras del Cajamar- 6 Se presenta
Becerra Tío Lino ca-Tru- en el for-
Becerra jillo mato del
cómic.

Se puede desprender, en primera instancia que estamos ante


una treintena de cuentos cuyas marcas más evidentes oscilan de
su referencia geocultural (los cuentos son “contumacinos”), a
una necesidad de calificarlos por el género o su modalidad (los

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Métodos Fronteiriços

cuentos son “modélicos y orales”, “fantásticos” o de “aventuras”).


Igualmente, pasan de la ilustración al cambio de género (la elec-
ción del cómic como formato), lo cual nos remite a la urgencia
de replantear el enfoque si nuestra meta fuera abordar el total de
los cuentos.

Hilvanando y anudando frases: la versión de Fidel A.


Zárate
Procederemos en seguida a detenernos en la forma en la que la
primera edición de los cuentos del Tío Lino está concebida, es de-
cir, cuál es el plan o programa que esbozó Fidel A. Zárate cuando,
como los otros escritores, asumió la voz popular y nos remitió
a ese universo mágico de la palabra ancestral –tan próxima al
mito– que se llama cuento de tradición oral. Nos limitaremos a
los textos introductorios y otros elementos paratextuales que se
vuelven gravitantes a la hora de releer esta primera publicación
que forma parte del corpus linesco.
Esta primera selección de cuentos del Tío Lino corresponde
a 1939 y publica quince relatos del personaje cajamarquino. La
edición cuenta con las siguientes secciones previas: “Obras del
autor”, con sus libros en verso, en prosa y próximos textos por
publicar; “Nota editorial”, con un glosario de veintisiete palabras
de uso local utilizadas en la recopilación; “Los lares del Tío Lino”,
en donde se relata con tono modernista y ameno los aspectos de
la idiosincrasia de los cosietanos y rasgos geográficos del lugar;
“Quién es el Tío Lino…”, sección en la que se utiliza el mismo
estilo mencionado para realizar un retrato de Lino León; quince
cuentos del Tío Lino, que comienza significativamente con “Un
negocio de sogas”; y “Fe de erratas”, con cuatro enmiendas al tex-
to publicado.
En la sección “Obras del autor”, se mencionan cuatro publicacio-
nes en verso realizadas entre 1929 y 1937 (“Bella utilidad”, “Flo-
ralia”, “Los huiros” y “Las canciones selladas”), otras cuatro en
prosa, de 1933 a 1938 (“El tramonto del palamentarismo” [sic],
“Las aguas de Heraclito” [sic], “La teoría de Cassel” y “Derecho
constitucional”), y tres por publicarse (“Los lares iluminados”,
“La muerte de Socrates [sic] y la Escuela de Atenas” y “Economia
politica [sic]). Como se puede apreciar, Zárate se autorrepresenta

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

como un sujeto competente en las dos formas básicas de la es-


critura literaria (verso y prosa) y conjuga su inicial dedicación a
la poesía con calas de contenido jurídico, económico e histórico
con particular afecto por el pasado griego y los debates teóricos
de la época. No hay duda que esta edificación de sus dotes como
conocedor de la cultura y la sociedad de su tiempo lo perfilan
para constituirse en una voz sensible, profunda y analítica a la
hora de escribir los cuentos del Tío Lino, como se observará des-
de el primer cuento que analizamos.
En la sección “Nota editorial”, se percibe una solución a la tipo-
grafía empleada, cuando se informa al lector: “Dénse por escritas
en letra cursiva, y, especialmente la primera vez, las palabras y
frases siguientes, que, en el cuerpo del libro van entre comillas”
(p. [5]). Este extremo cuidado por adecuarse a las normas del
idioma castellano es una muestra de la atención por producir un
libro que respeta al lector en su rol de usuario de una lengua. In-
dependientemente de ser rasgos de todo proceso editorial de esos
años, son las mismas pautas con las que discursivamente van a
ser escritos los cuentos del Tío Lino por Zárate, y, en el fondo, se
trata de una proyección del rol de la palabra en todo texto escrito
y, por ello, de las funciones del escritor como encodificador.
Zárate escribe una sección inicial del libro con el nombre “Los la-
res del Tío Lino”. Se describe Cosiete, poblado en donde vive Lino
León. Cosiete es un lugar asociado con el paisaje de las églogas:
Los cosietanos son de Cosiete de idéntica manera que los limeños son
de Lima, ha dicho el tío Lino. El tío Lino es un ilustre hijodalgo provi-
niente de Cosiete. ¡Cosiete, Cosiete es la Patria del tío Lino¡ Cosiete es
un villorío eclógico lleno de altibajos y de recuestos de color bermel-
lón. El “Taure”, arbolillo de violetas flores, enguirnalda sus caminos.
Por las lejanías se pierden, en quingos y meandros, anchas veredas
violáceas, que conducen a los remotos valles presentidos de Chicama.
La casería eclógica del villorio rosa de Cosiete deja el grato y benedic-
tino recuerdo de lo humilde y de lo sencillo. (pág. [5]).
El párrafo con que comienza esta parte del libro es fundamen-
tal para entender la forma como se va construyendo discursiva-
mente el personaje de Lino León. Lo primero que se perfila es la
configuración de Cosiete como un espacio total, es decir, un es-
pacio cerrado para el desarrollo de las acciones narrativas; esto se

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Métodos Fronteiriços

presenta en las relaciones Cosiete-Lima, Cosiete-Patria. Es muy


llamativo la manera como lo local se desplaza y crea un nuevo
centro desde el cual la enunciación dará origen a un discurso le-
gítimo. De esta manera, no asistimos a la recreación de relatos de
estirpe regional o regionalista que se detengan en las bondades
del entorno o la idiosincrasia local, sino que se redimensiona el
ethos cosietano a una escala nacional, es decir, se edifica una re-
presentación fundadora de hombre andino.
Un segundo aspecto de este fragmento, vinculado con lo ante-
rior, es la relación Cosiete-Chicama. Desde Cosiete salen cami-
nos hasta los valles costeños de Chicama, muy cerca de Trujillo,
ciudad capital del actual departamento de La Libertad. En el ima-
ginario linesco y cosietano, las zonas de la costa son el primer
punto de referencia de su inclusión en un circuito cultural que los
conecta con la modernidad, básicamente con la forma como per-
ciben el entorno inmediato como una totalidad geográfica. Esta
conexión se va a visibilizar en algunos cuentos del Tío Lino en
los que el proceso de legitimación de los personajes como sujetos
modernos es totalmente pragmático y se desliza en las distintas
variables del humor andino, aun cuando su proyección discursiva
apele a producir ad futurum el marco de esta visión de la cultura
y la naturaleza.
En síntesis, proponemos que este párrafo inicial de “Los lares del
tío Lino”, así como toda la sección, presenta la fundación de un
axis mundi, un eje del mundo, o, en términos andinos, un chaupi,
un centro, que exhibe en toda su variedad una perspectiva geo-
cultural propia (andina), y que suma a ello los caminos para acce-
der a la otredad, a los márgenes -y sus respectivos centros- desde
una mirada reposada, respetuosa y amable. Por ello, es pertinente
asumir los postulados más actuales es los estudios de la literatura
de tradición oral en el Perú.

Los libros de la comunidad en la literatura de tradición


oral
Los más recientes estudios acerca de la oralidad y la escritura han
logrado superar las falsas dicotomías con las que se asemejaban
en épocas anteriores sus fundamentos e implicancias. Debido a
ello, se han desechado, desde la mirada académica, la asociación

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

entre escritura-sabiduría y oralidad-ignorancia, así como las vin-


culaciones de oralidad-atraso y escritura-progreso. Como parte
de estas tensiones que se sumergen en lo más profundo de las
ideologías e idiosincrasias, se encuentra la figura del libro que ha
sido arbitrariamente enlazada solo con la escritura por más que
la literatura occidental y las literaturas tradicionales de diversas
partes del mundo a cada momento definan su estatuto multisen-
sorial, es decir, su pertenencia a eventos o performances muy se-
mejantes a los de la literatura de la tradición oral.
Desde nuestra perspectiva, pensamos que es necesario sincerar el
discurso académico –muy ataviado siempre con las vestiduras de
la escritura- y asumir la existencia del libro como objeto resultan-
te o actuante, es decir, revelar que existe una condición “libresca”
–en el oportuno sentido de la palabra- en una gran cantidad de
textos de la tradición oral. En nuestras investigaciones en torno
a la literatura de la tradición oral peruana, hemos verificado la
existencia de algunos libros de la comunidad. Uno de contenido
ritual es el llamado Entablo de San Pedro de Casta, Huarochirí,
en la sierra de Lima (cuya “primera edición” nos remite a 1921),
otro de orden pedagógico es Xoke, libro de la comunidad shipiba
de Cantagallo, en la urbe de Lima, publicado en forma de cómic
a principios de 2012.
Cuando utilizamos la categoría de libro de la comunidad, estamos
refiriéndonos a textos escritos –y eventualmente acompañados
con dibujos, gráficos, etc.- los cuales, sin mayor dificultad, pue-
den volver a discurrir dentro las acciones habituales o eventos de
la oralidad: fiestas tradicionales y “costumbres” establecidas so-
bre la base de códigos morales y éticos dialogantes con las tecno-
logías audiovisuales más modernas, como sucede con el Entablo,
en San Pedro de Casta; y, por otro lado, actividades educativas
de aprendizaje de las lenguas y culturas indígenas que definen
un derrotero cultural, una lectura de época y, principalmente, un
conjunto de referencias geoculturales en el ámbito urbano, como
sucede con la historieta Xoke. Non joibo sika. Nuestras historias
pintadas (2012), que reúne diez relatos de la comunidad shipiba
asentada desde hace más de diez años en Cantagallo, Lima.
Es obvio que al proponer la existencia de estos textos –estudiados
desde hace un tiempo en contextos rurales o urbanos, como la

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Métodos Fronteiriços

ha hecho Víctor Vich en El discurso de la calle (2001)-, estamos


afirmando que una tendencia muy significativa de la tradición
oral se encauza con la apropiación cultural y simbólica del libro
como elemento no solo de referencia textual, sino fundamental-
mente como soporte en el cual se organiza de forma comunitaria
la materia tradicional (generalmente, pautas para las festividades,
guiones teatrales o conjuntos de relatos) que convive con un or-
den moral y ético que tiende a erigirse como elemento regulador
del presente.
Enfatizamos que la literatura de tradición oral se sustenta fun-
damentalmente en el circuito de la oralidad, sin embargo, sus re-
laciones con la cultura letrada son dinámicas. Letra y voz ya no
pueden ser consideradas solo como distintas herramientas, sino
que son parte de la indumentaria de la cultura. En definitiva, la
literatura de tradición oral se enlaza con la generación de repre-
sentaciones locales en contextos de demanda de nuevas moder-
nidades que se van forjando paso a paso.
En el contexto de nuestra investigación, es relevante traer a cola-
ción la notable experiencia de las Bibliotecas Rurales de Cajamar-
ca. En una de sus publicaciones (Compadre libro, 2005[1994]), se
refieren las situaciones y sensibilidades desde donde se forjan las
responsabilidades para generar una biblioteca en una población,
y para ello se relata una situación habitual en la que un comune-
ro se ofrece como voluntario para hacerse cargo de la biblioteca
rural: «(…) Don Serafín cogió el libro con fuerza y lo apretó con
sentimiento sobre su pecho. Parecía una madre apretando a su
hijo, como si alguien se lo quisiera arrebatar. - ¡Ven, compadre
libro!, exclamó emocionado don Serafín-. Ven, háblame a mí,
compadrito, no te quedes callado. Ven, hermanito libro, acom-
páñame…» (42-43).
Se puede establecer, entonces, que los libros de la comunidad son
aquellos que orgánicamente constituidos se revelan como refe-
rentes escriturales de una cultura local; como formas escriturales
que configuran objetos semióticos diferenciables, estos libros se
insertan en la tradición oral de una comunidad tradicional crean-
do sistemas comunicativos; y, dentro de los circuitos de la repre-
sentación macrocultural, son textos de orientación ética, estética
y conductual.

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

Los cuentos en la literatura de tradición oral en los


Andes peruanos
Otra perspectiva para abordar los cuentos del Tío Lino es la re-
ferencia al género en el cual están compuestos. Si bien sobre el
cuento popular u oral existen amplios estudios, proponemos al-
gunas pautas o consideraciones previas para su abordaje:
a. Los cuentos de tradición oral interactúan con una gran varie-
dad de formas narrativas, como la leyenda y el mito. En particu-
lar, en el área andina, es el mito -en detalle, el relato mítico- el
que colma de sentido al cuento.
b. Una interacción significativa del cuento de tradición oral
se produce con el cuento escrito de autor individual. Ejemplo
notable de este vínculo es «El sueño del pongo», de José María
Arguedas, cuya fuente inmediata es un cuento de tradición oral.
c. Muchos cuentos de la tradición oral andina tienen un an-
tecedente hispánico. Un libro como el de Aurelio M. Espino-
sa, Cuentos populares recogidos de la tradición oral de España
(2009[1946-7]), suma a este factor la existencia de una comuni-
dad vigente de relatos entre la Península y América.
d. Los cuentos de tradición oral están expandidos dentro y fuera
de un área cultural. Por ejemplo, el cuento Juan Oso, estudiado
por Arguedas, Morote, Weber e Itier, revelan su diversificación
geográfica y la inserción de los relatos dentro de tradiciones cul-
turales específicas.
e. Los cuentos de tradición oral en los Andes pueden vincularse
con la escritura con los mismos procedimientos que la cultura
andina se ha apropiado de la letra desde la época colonial.

Perfiles míticos de los cuentos del Tío Lino


Debido a una percepción que separa las diversas formas discursi-
vas de la literatura en estancos, los llamados géneros literarios no
son observados en su relación directa o indirecta, cuando a todas
luces, sí existen vínculos significativos. En este sentido, el escri-
tor español Federico García Lorca decía que el teatro es poesía
que se sale del libro y se vuelve humana. No se trata de simples
implicancias, como que el teatro puede utilizar el verso como for-

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Métodos Fronteiriços

ma expresiva, en tanto que es ampliamente vinculada la poesía


al empleo del verso. Se trata de observar que entre los géneros
literarios operan condicionamientos significativos, que pueden
transformarse en líneas de lectura. En esta orientación, Mercedes
López-Baralt (2011) ha identificado profundas raíces poéticas y
míticas en la escritura de Cien años de soledad, de Gabriel García
Márquez, y no es solo una posibilidad de lectura apasionada, sino
del hecho contundente que todo gran libro de literatura apela al
mito y a la poesía para adquirir su relevancia ecuménica.
En el marco de nuestra investigación, casi desde un principio, he-
mos notado que en los cuentos del Tío Lino se narran hechos
que refieren el origen de seres, lugares y costumbres. Es decir, es
evidente un perfil mítico en muchos cuentos que son centrales en
el imaginario contumacino. Sin embargo, no es solo el conjunto
de relatos que presenta estas cosmogonías; es también el hecho
que se mencionan animales y objetos que en la tradición andina
corresponden a ciclos míticos; por ejemplo, el cóndor, el zorro,
las piedras, etc. En este marco, también el mismo Tío Lino es un
personaje asociado a lo mítico y, como dijimos páginas atrás, un
héroe cultural.
Por otro lado, podemos trazar, grosso modo, la identificación de
lo mencionado (personajes, animales, objetos, lugares y situacio-
nes) con la mitología andina prehispánica. Sabemos que podría-
mos reclamar una actualidad de las nociones míticas presentes en
las prácticas de personas y grupos humanos; pero estimamos que
es suficiente entrever conexiones entre algunos de los elementos
referidos y las figuras andinas del poder.
Una clasificación general de las cualidades míticas en los cuentos
del Tío Lino, tiene que comenzar con la función de caminante y
viajero de muchas divinidades andinas y del Tío Lino. Al respecto,
muchos dioses andinos son viajeros, y en su camino van prodi-
gando dones y eventuales castigos (Rostworowski, 1996, p. 15).
En el caso del Tío Lino, se trata de un personaje itinerante que
transita por los alrededores de su pueblo, Cosiete, o fuera de él.
De todos los cuentos, uno en el que se observa de forma notable
esta función es el que León (2010) titula justamente “El viajero”. A
continuación, transcribimos el cuento en la versión mencionada:
El viajero

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

Se encontraba el Tío Lino recorriendo su potrero en un día de radian-


te sol. Como hacía calor insoportable, decide darse un baño en un
fresco arroyo del lugar.
Desnudo, estaba el Tío disfrutando de su baño, cuando se da cuenta
que un cóndor jugueteaba con su ropa. Al instante, jala su correa y
amarra al cóndor de una pata, el animal se asusta y emprende vuelo
llevando al Tío Lino colgado y completamente desnudo.
El Tío, asustado, gritaba: “¡Tiendaaannnn colchoneees! ¡Tiendaaan-
nnn colchoneees!”
Como nadie hacía caso a sus gritos, y pareciéndole mejor idea, le pide
al cóndor que lo lleve a conocer Trujillo. El ave accede al pedido y
lleva a nuestro simpático personaje a conocer esa ciudad y las playas
aledañas.
Al atardecer, el cóndor aterriza en el mismo lugar de donde partió
para que el Tío Lino recoja su ropa y regrese a casa, ofreciéndole que
para la próxima vez lo llevaba a conocer Lima. (p. 24)
En principio, podemos observar una secuencia narrativa marca-
da por tres indicadores: la cotidianeidad (la necesidad de bañar-
se), lo mágico (el rapto por parte del cóndor) y lo maravilloso
(el viaje guiado a Trujillo). El Tío Lino aparece, desde nuestra
perspectiva, como un sujeto viajero que connota elementos como
la modernidad urbana y turística (conoce la ciudad y las playas),
así como la migración (casi como una metonimia del que migra,
desnudo de su imagen de campesino, con la idea de que la ciudad
lo revista con sus marcas).
Sin embargo, podemos aumentar una lectura mítica del relato.
Para comenzar, reparemos en que el Tío Lino está desnudo, es
decir, parte sin ropa alguna desde su localidad. Podemos asignar
a esta condición el valor de la naturalidad, antes que el del exhibi-
cionismo. Por ello, el aspecto natural es un primer plano de lectu-
ra que lleva inmediatamente a percibirlo como recién llegado al
mundo (se entiende, a la costa, donde están Trujillo y Lima). En
síntesis, la desnudez del Tío Lino, nos remite a la forma definida
de lo humano que lo inserta en una nueva humanidad (la de la
ciudad). Su falta de ropa, lejos de cualquier lectura metonímica
y culturalista superficial, se orienta a proyectar una manifestaci-
ón fundacional: los sujetos creados por las divinidades ya nacen
formados (Rostworowski 1996), vienen al mundo de esta manera

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Métodos Fronteiriços

porque la creación no existe sino como un proceso secuencial de


recreaciones.
Desde esta lectura, el Tío Lino aparece como un sujeto con am-
plias capacidades para ser visto como un sujeto transculturado,
pero en detalle, revestido con los signos de la ciudad; y, por otro
lado, por su conexión dialógica con el cóndor, es un sujeto mítico,
que encarna la creación de un sujeto migrante contemporáneo
que puede llegar a la ciudad con todas sus capacidades performa-
tivas (viene por todo lo alto), dejando atrás aquello que podría
ser observado como un factor diferencial que lo podría convertir
en víctima de la segregación (sus ropas) y denotando un humor
andino asertivo y versátil, que lo aventura a lo nuevo.
Las otras versiones de este relato nos permiten detenernos en
otras implicancias de lo mítico en el Tío Lino. En la publicación
de Fidel A. Zárate (1939), el cuento se denomina “Un arcángel
con campanillas” y es el sexto relato del libro. El cuento refiere
que el Tio Lino pasa por un río e ingresa dentro de él para bañarse,
ve un cóndor al que decide echarle lazo con un bejuco. El cóndor
lleva por los aires al Tío Lino, ambos de fuerza portentosa. Allá
en lo alto, el Tío Lino pide que los cerros se aparten de su camino
y que los que están abajo pongan colchones. Las personas que lo
observan proponen varias interpretaciones acerca de qué es ese
prodigio alado: un arcángel con campanillas o espada flamígera,
o el Tío Lino con apariencia de cóndor y misión de ahuyentar al
demonio. Ya más entrado en la situación en la que se encuentra,
el Tío Lino dialoga con el cóndor y logra convertirlo en amigo
suyo y convencerlo de que lo lleve a conocer Trujillo desde lo alto
y luego lo regrese a su natal Cosiete. Para el narrador de estos su-
cesos, el Tío Lino es precursor de la aviación y “representante aé-
reo y mitológico del cielo en la tierra” (p. 43) lo que le permite ser
resguardado en la memoria local en consustanciación con cada
elemento de la naturaleza (árboles, flores, vientos, cerros, ríos y
aires del lugar).
Es interesante en esta versión primigenia de los cuentos del Tío
Lino la forma como sus compoblanos de Cosiete lo califican. El
narrador, en principio, expresa el sentido singular de las hazañas
del Tío Lino y la imposibilidad de asignarle una única lectura de
los hechos que realiza, en este caso, el vuelo con el cóndor: “La

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

gente contempla, atónita, este inusitado espectáculo. La gente no


acierta a explicarse lo que ve. La gente no comprende. Siempre
no ha comprendido la gente las hazañas del tío Lino” (p. 42). La
calificación de los hechos como hazañas es uno de los factores
centrales en la calificación de los sucesos observados, por lo cual
el Tío Lino es un sujeto cuyas acciones son ilustres, famosas e
heroicas. Se trata de singularizar a nuestro personaje como un
sujeto de abolengo, que ha realizado proezas que han trascendido
el tiempo y constituyen un paradigma cultural. Ante ello, solo
cabe en el presente el silencio del asombro y la imposibilidad de
precisar en sentido de los sucesos más allá de las lecturas religio-
sas superficiales.
Sin embargo, como lo hemos anticipado en alguna medida, la ex-
presión casi final del narrador es la que cierra esta valoración de
Lino como héroe cultural. Allí se establece una aproximación a
la definición de las acciones de Lino que involucran dos órdenes:
uno tecnológico (Lino es precursor de la aviación para los habi-
tantes de Cosiete) y otro simbólico (Lino es el alma popular de
Cosiete, casi una entidad panteísta, pues es “representante aéreo
y mitológico del cielo en la tierra”).
En la versión de Mario Florián (1977/2008), “El arcángel San
Gabriel y sus campanillas” está narrada en primera persona y es
bastante desacralizadora. Lino busca cazar, con su correa de cue-
ro, a uno de los cóndores que se ha comido en vida a su yegua
Caracucha. El relato propone este suceso como una aventura, es
decir, se configura como un relato definido por lo extraño, la cau-
salidad, la contingencia, lo incierto o lo peligroso. Pues bien, Lino
atrapa de las patas a un cóndor con su correa que tiene atada a
su propia cintura. El cóndor se eleva por las alturas de Cosiete y
Contumazá, y con él lleva a Lino, y, del mismo modo que en la
anterior versión, él teme caer a tierra, y pide ayuda. En este raudo
vuelo, se le caen los pantalones a Lino y así, medio desnudo su
cuerpo hace un sonido de campanillas, y en la localidad de Cas-
cas es visto como el arcángel San Gabriel. Luego, amistado con
el cóndor, se dirige hacia Ascope y Trujillo, ciudad que le gusta
visitar. Ya de noche, el cóndor vuelve a sus estancias y deja a Lino
en el lugar donde le había levantado en vuelo.
En esta versión si bien se mantiene esta confusión de las personas

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Métodos Fronteiriços

cuando buscan calificar que están observando en los cielos, se de-


fine a los cóndores como aves carroñeras, una de sus cualidades
más resaltantes pero poco conocidas, debido al gran influjo de
la mitología andina por presentarlo fundamentalmente como un
ser conectado a las montañas sagradas, a los wamanis. Como an-
ticipamos, esta versión, diseña un relato definido como aventura,
donde lo heroico no tiene mucha presencia.
Sobre esta misma calificación del cóndor como ave carroñera, la
versión de Andrés Zevallos (1980/2011) se llama “Como el Tío
Lino conoció Trujillo”. Es muy breve como acostumbra el autor,
relata los mismos sucesos ya conocidos: el laceamiento del cón-
dor (que puede estar pensando que Lino está muerto y puede
comerlo), el vuelo por las localidades próximas y el pedido para
que el cóndor lo lleve a Trujillo. Es interesante que en esta versión,
Lino vaya del temor al gusto, esto es lo que impulsa a convencer al
cóndor de que lo lleve hasta la ciudad costera.
Las versiones originalmente publicadas desde los años 90 son
particularmente interesantes, pues desarrollan elementos que no
están presentes en publicaciones anteriores. En primer lugar, te-
nemos la de Juan Luis Alva Plasencia (1990), con el nombre de
“Viaje a Trujillo”. Se distingue notoriamente por los interlocutores
niños que actúan como personajes. En esta versión, los sucesos
son muy cotidianos de partida. Lino ha terminado de rozar su
chacra y se está bañando en el pozo de la quebrada. Nuevamente
aparece poco a poco el placer de volar y el gusto de ir a la ciudad:
“¡Qué lindo es Trujillo!” (p. 29).
La versión de Juan Luis Alva (1990) narra este suceso de Lino
–sin título alguno, por el contrario en una secuencia– como una
aventura, pues es el quien va en búsqueda de un cóndor que lo
lleve gratis y cómodo a la costa. Va por la noche al nido de los
cóndores y en la mañana ya se encuentra conociendo las ciudades
costeras, el ansiado mar con sus islas, peces y barcos. A diferencia
de los relatos anteriores, observamos aquí que el viaje de Lino es
premeditado, aunque se mantiene una característica general que
es permanente: conocer nuevos lugares, principalmente con fines
comerciales.
Finalmente, aunque se sale de lo literario, están los cuentos del
Tio Lino en formato de cómic. La versión de Becerra (2013) ubica

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

a este relato al principio de su publicación. Becerra manifiesta en


la introducción que la fuente que tiene es la Mariano Rodríguez
Alva (1972), y en detalle alude a Alipio Alva Lescano como quien
escribe los cuentos en los que se basan sus cómics. La versión
gráfica de Becerra está contada en primera persona y en tiempo
presente. Lino define a los sucesos que le ocurren como “fantás-
ticas aventuras” y relata que decide bañarse en las “aguas crista-
linas” del río que alimenta al pueblo, “esas aguas que los trota-
mundos contumacinos añoramos cuando andamos lejos” (p. 25).
En este punto es que aparece una nueva calificación del cóndor:
ladrón, pues se lleva el poncho del Tío Lino. Se lee explícitamente
dos cualidades de Lino presentes en casi todas las versiones. La
primera que es su capacidad de comunicarse con el cóndor: “Yo
hablo con los animales” (p. 30). La segunda es la posibilidad de
hacer amistad con esta especie: “Y encontré un amigo” (p. 30).
Lino es llevado a la tierra de los moches, en alusión a Trujillo. Por
cierto, sería necesario, aunque no nos corresponde en esta inves-
tigación, realizar un análisis icónico del comic.
En el balance global se puede decir que este relato del Tío Lino es
particularmente importante por varios motivos: relieva el perfil
mítico y heroico del Tío Lino, desarrolla el concepto andino de la
transversalidad geográfica como elemento de cohesión regional y
narrativamente expone los recursos propios de la carnavalización
como base del humor andino. Es altamente significativa la capa-
cidad del Tío Lino para comunicarse con el cóndor en contraste
con la incapacidad para ser entendido –a menos, desde un primer
momento– por sus compoblanos. Esto último haría evidente los
mecanismos de conexión de Lino con las entidades del hanan pa-
cha, el mundo de arriba en la cosmovisión andina. Curiosamente,
es desde esta perspectiva que irrumpe también la dinámica del
humor andino centrado en una inversión y mezcla de los roles
asociados a lo profano y lo sagrado: desnudo-santo, exhibición-
devoción. No debe ser extraño este proceso de generar humor a
partir de la alusión a lo sagrado, pues lo mismo ocurre con las
culturas que buscan hacer evidente sus temores mediante la risa
que deshace el miedo a lo no conocido sin distanciarse a la con-
vicción en su eficiencia normativa y valorativa de lo sagrado.

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Métodos Fronteiriços

Referencias
ALVA PLASENCIA, Juan Luis. Cuentos de Tío Lino y otros
cuentos. Lima: Sagsa, 1990.
BECERRA BECERRA, James. Aventuras del Tío Lino. Cajamar-
ca-Trujillo: ed. del autor, 2013.
ELÍAS-ULLOA, José. Xoke, Non joibo sika. Nuestras historias
pintadas. Lima-New York: Stony Brook University, 2012.
ESPINOSA, Aurelio M. Cuentos populares recogidos de la tra-
dición oral de España Madrid: Consejo Superior de Investiga-
ciones Científicas, 2009 [1946-7].
FLORIÁN, Mario. El Tío Lino y sus relatos modélicos orales.
Trujillo: Papel de Viento Editores, 2008.
LANDEO MUÑOZ, Pablo. Categorías andinas para una aproxi-
mación al willakuy. Lima: Asamblea Nacional de Rectores, 2014.
LEÓN MUGUERZA, César Enrique. Los fantásticos cuentos
del Tío Lino. Cajamarca: Municipalidad de Cajamarca, 2010.
LÓPEZ-BARALT, Mercedes. Una visita a Macondo: manual
para leer un mito. San Juan, Puerto Rico: Ediciones Callejón,
2011.
PLASENCIA, Luis Enrique. «Confesión de parte a manera
de prólogo», M. Florián, El Tío Lino y sus relatos modélicos
orales. Trujillo: Papel de Viento Editores, 2008. pp. 9-12.
RED DE BIBLIOTECAS RURALES DE CAJAMARCA. Compa-
dre libro. Cajamarca: Red de Bibliotecas Rurales de Cajamarca,
2005.
ROSTWOROWSKI DE DIEZ CANSECO, María. Estructuras
andinas del poder: ideología religiosa y política. Lima: Instituto
de Estudios Peruanos, 1996.
VICH, Víctor. El discurso de la calle: los cómicos ambulantes y
las tensiones de la modernidad en el Perú. Lima: Pontificia Uni-
versidad Católica del Perú, 2001.
ZÁRATE, Fidel A. Los cuentos del Tío Lino (cuentos contuma-
cinos). Lima: Editora Peruana, 1939.

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Parte 3. Objetos míticos: os livros dos povos tradicionais

ZEVALLOS, Andrés. Cuentos del Tío Lino. Lima: Lluvia edito-


res/ Sumeria Editores/ Martínez Compañón Editores, 2011.

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Apresentação dos autores

Alexandre Pacheco é Doutor em Sociologia pela UNESP/Arara-


quara, Coordenador do Mestrado em História e Estudos Cultu-
rais – UNIR. Desenvolve pesquisas nas áreas de História e Ficção,
e História da Historiografia da Amazônia, a partir dos temas:
História e Cultura, História e Ficção, História e Crítica Literária.
Membro do Grupo de pesquisa Centro Interdisciplinar de Estu-
dos e Pesquisa do Imaginário-UNIR.
Antonio Roberto Esteves possui Livre Docência em Literatura
Comparada pela UNESP/Assis onde é Professor do Programa de
Pós-Graduação em Letras. Desenvolve pesquisas nas áreas de Li-
teratura de Língua Espanhola e Literatura Comparada em torno
dos seguintes temas: romance histórico, literatura espanhola e
hispano-americana, narrativa brasileira contemporânea, literatu-
ra comparada e cultura hispânica. É membro do Grupo de Pes-
quisa “Vertentes do fantástico na literatura”, da UNESP.
Cynthia Cássia de Santos Barra é Doutora em Estudos Literários
pela UFMG. Atualmente é professora da Universidade Federal do
Sul da Bahia/Itabuna e desenvolve pesquisa em literatura indíge-
na, saberes tradicionais, tradição oral e inclusão de populações
tradicionais no ensino superior. É integrante do Núcleo de Pes-
quisas Transdisciplinares Literaterras: escrita, leitura e tradução
(UFMG), do Grupo Arandu Heta (UFSB) e do Grupo de Litera-
tura e Psicanálise - LIPSI (UFMG).
Elias Rengifo de La Cruz é Mestre e Doutorando em Literatura
Peruana y Latinoamericana pela Universidad Nacional Mayor de
San Marcos - Lima. Professor do Departamento de Literatura da
Facultad de Letras y Ciências Humanas - UNMSM. Diretor da
Revista de literatura Hoja Naviera e atualmente dirige o grupo

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Métodos Fronteiriços

virtual Estudios Literarios. Pesquisa e publica artigos sobre as


narrativas tradicionais orais peruanas, bem como analisa a publi-
cação de livros das comunidades andinas e fronteiriças.
Flavio García é Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra
(2016), pela UFRGS (2012) e pela UFRJ (2008); Doutor pela PU-
C-Rio (1999); Mestre pela UFF (1995); Professor Associado da
UERJ, atuando no PPG Letras (Mestrado e Doutorado), na área
de Estudos de Literatura; Líder do GP “Nós do Insólito: vertentes
da ficção, da teoria e da crítica”, junto ao Diretório de Grupos
do CNPq (desde 2001); Coordenador do Seminário Permanen-
te de Estudos Literários da UERJ (SePEL.UERJ), do Núcleo de
Estudos do Fantástico (NEF.UERJ) e da Unidade de Desenvol-
vimento Tecnológico Laboratório Multidisciplinar de Semiótica
(UDT LABSEM UERJ); Co-coordenador do Dialogarts Publica-
ções, editora extensionista da UERJ; Editor do Caderno Seminal,
ao lado de Darcilia Simões, e da revista Abusões, juntamente com
Julio França. Foi o primeiro Coordenador do GT ANPOLL “Ver-
tentes do insólito ficcional” (2011-2016).
Francisco Bento da Silva é Doutor em História pela UFPR e é Pro-
fessor do Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade - UFAC.
Atua na área de Literatura e Cultura, pesquisa o Acre nas repre-
sentações, discursos e imaginários na imprensa, literatura, relatos
de viagens e documentos oficiais, bem como as Cartografias ur-
banas: relatos de cidades, rios e florestas na história e na literatura.
Hélio Rodrigues da Rocha é Doutor em Teoria e História Literá-
ria pela UNICAMP, Coordenador do Mestrado em Estudos Li-
terários – UNIR. Atua na área de Estudos Literários e Tradução,
pesquisando os seguintes temas: estudos amazônicos, literatura
de viagem, colonialismo, pós-colonialismo, formação e prática
discursiva.
Heloísa Helena Siqueira Correia é Doutora em Teoria e História
Literária pela UNICAMP e Professora do Mestrado em Estudos
Literários - UNIR. Coordena o Grupo de Pesquisa em Estudos
Literários-UNIR e é membro do GT da ANPOLL “Vertentes do
insólito ficcional”. Desenvolve pesquisa sobre as relações entre li-
teratura e filosofia, o fantástico e o insólito literário em textos de
literatura brasileira e latino-americana, e realiza projeto no cam-
po dos Estudos Animais.

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Apresentação dos autores

Marcelo Damonte Luzi é Mestre em Lenguaje, cultura y socie-


dad pela Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
da Universidad de la República Oriental del Uruguay. Professor
de Literatura Inglesa FHCE – UdelaR. Menção honrosa no con-
curso de poesia da Fundação Banco de Boston e Menção especial
narrativas no concurso Juan Carlos Onetti. Autor do roteiro “Las
horas de Sac”, curta-metragem montado pela Escuela de Cine del
Uruguay e do romance de ficção científica “Bosque de Aliens”.
Diretor da Revista de Literatura Tenso Diagonal e Membro Con-
sultor da Revista de Cinema Vivomatografias. Atualmente pes-
quisa e publica artigos sobre a temática do fantástico na literatura
latino-americana.
Maria Cristina Batalha é doutora em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense e Pós-Doutora pela Universi-
dade Paris III. Bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo CNPq
e Professora Associada do Instituto de Letras – UERJ, onde atua
no Programa de Pós-graduação em Letras. Atualmente pesquisa
a literatura fantástica, o romantismo e o ultra-romantismo nos
contextos brasileiro, português e francês, e também a manifesta-
ção do insólito nas literaturas lusófonas e francófonas. É membro
do GT da ANPOLL “Vertentes do insólito ficcional”, do Grupo de
Pesquisa do CNPq “Nós do insólito: vertentes da ficção,da teoria
e da crítica”, da UERJ, e do Grupo de Pesquisa “Vertentes do fan-
tástico na literatura”, da UNESP.
Osvaldo Copertino Duarte é Doutor em Teoria da Literatura pela
UNESP/São José do Rio Preto e professor do Mestrado em Estu-
dos Literários - UNIR. Líder do Grupo Centro Interdisciplinar
de Estudos em Cultura e Artes, desenvolve pesquisas nas áreas de
crítica e história literária.
Valdir Aparecido de Souza é Doutor em História e Sociedade pela
UNESP/Assis, Professor no Programa de Mestrado em História e
Estudos Culturais - UNIR. Líder do Centro de Pesquisas sobre o
Imaginário Social, vem atuando na interface história e literatura.
Virgínia Frade possui mestrado em Lenguaje, cultura y sociedad
pela Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación - Ude-
laR. Foi contemplada com bolsa de estudos para estudar litera-
tura juvenil na Michigan State University. Atualmente ministra
Lingüística e Introdução à Literatura de Língua inglesa para

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Métodos Fronteiriços

professores do Instituto de Professores Artigas (Montevideo).


Membro do Conselho Acadêmico da Revista de Literatura Tenso
Diagonal e da Revista de Cinema Vivomatografias. Tem publica-
do artigos em língua e literatura inglesa em revistas uruguaias,
argentinas, brasileiras e australianas.

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