Mas é claro que o que alimenta nossa reflexão, nossa crítica e nossa prática é
ainda o ideal democrático. Por isso, o percurso que propomos a fazer aqui leva a
interrogar as noções de cidadania, Escola, criança e adolescente – à luz do que
historicamente significa a democracia. Quem sabe, a partir daí, possamos também
descobrir o que desejamos que ela seja para nós, hoje – e, assim, que sentido
1
Cf. Lílian do Valle, O Mesmo e o outro da cidadania. Rio de Janeiro: DPA, 2000.
consideramos dever atribuir, que sentido queremos atribuir à noção de cidadania, ao
lugar da criança e do adolescente em nossa sociedade, à ação da Escola.
E mais: a partir daí, pode-se dizer que a política é a ação coletiva de construção
da sociedade, e que é ela, e somente ela, que finalmente caracteriza, define, o que é
ser cidadão. A política é a prática que designa a atividade do cidadão. Todas as demais
atividades, relacionadas à existência privada, aos gostos, às crenças particulares, aos
valores particulares, até mesmo à atividade profissional, ao trabalho, diferenciam os
cidadãos entre eles: somente a política, atividade aberta de reflexão e de deliberação
filosofia política e escola pública comuns é que cria o espaço público, é que une os
cidadãos, e que os faz iguais, os caracteriza. E define, também, quem não é cidadão:
todas as atividades da vida privada podem, a princípio, ser exercidas por cidadãos e
não-cidadãos, indiferentemente. Só a atividade política é reservada aos cidadãos, e
somente a eles.
Porém, antes de dar por concluída essa introdução, vale a pena tirar algumas
implicações do conceito de cidadania que acabamos de estabelecer. Se a cidadania é
essa participação total na fixação do sentido da vida coletiva e na deliberação acerca
do destino comum da sociedade, ela não aceita qualquer adjetivação. Só há cidadania
onde há participação política total, como forma de definição do que é o cidadão. Foi o
liberalismo que, desfigurando a realidade da democracia, impôs a necessidade de se
adjetivar a cidadania: teríamos, assim, uma cidadania «plena» e uma cidadania
«relativa», uma cidadania «ativa» e uma cidadania «passiva». Mas todos esses
eufemismos só servem, na verdade, para nos fazer esquecer quais são os
compromissos que uma sociedade, se realmente deseja dizer-se democrática, tem
para consigo mesma. E, o que é pior, para ocultar o fato de que, em nosso país, jamais
tivemos, de fato, cidadania.
Voltemos à origem da palavra: o termo cidadania tem sua raiz no latim civis,
que designa o membro livre de uma coletividade autônoma. No entanto, como
acabamos de ver, a noção a que se refere está intimamente relacionada, no grego, a
um outro termo que conhecemos bem: a política. A noção de cidadania se inaugura
com a invenção da polis: com a instituição, pela primeira vez na história, de um novo
tipo de coletividade, marcada em suas finalidades, em suas atividades comuns, no
lugar e na participação reservada para cada membro, pelo ideal democrático de
participação total. Até o advento, na época moderna, do liberalismo, a democracia
significava isso: o poder de deliberação comum de uma coletividade que se cria,
criando seus valores, suas finalidades, seus procedimentos, suas exigências. Igualdade
de participação, participação plena de cada um nas deliberações comuns.
Portanto, não poderemos falar de uma «cidadania operativa» a ser construída
na Escola. Ainda que concordemos com o que essa expressão visa designar, é mais
adequado falar somente em cidadania, sem qualificações, sem adjetivações. Mas o
sentido está todo aí.
A cidadania é um status jurídico, mas é, antes de mais nada, uma prática. Ela é
a prática específica dos indivíduos reunidos numa coletividade que escolheu instituir
os valores democráticos – a igualdade, a justiça, a deliberação comum – como
significações centrais de sua existência. A Escola que serve de instrumento da
construção da cidadania – e só há uma instituição que historicamente serve para
definir esse tipo de escola, que é a «Escola pública» – não é «cidadã». Ela é, sim,
pública, democrática, universal, laica, na medida em que se faz instrumento de
construção da cidadania, pela formação dos futuros cidadãos. Mas não é cidadã, ela
não tem em si a cidadania, não pode fabricá-la, nem doála, nem pode garantir, por si
só, sua existência. Em um sentido bastante estrito, a Escola não é lugar de exercício da
cidadania, não se entendemos o que, essencialmente, implica esse exercício. Mas pode
ser um lugar em que se prepara e se constrói esse exercício. Buscar definir claramente
o que pode ser essa preparação, e o que não pode ser, definir as características, as
condições e os limites dessa preparação pela Escola é, nesse sentido, uma atividade
política, a atividade política especializada que cabe aos professores. Aos professores
cabe redefinir, a cada dia, em termos pedagógicos, curriculares, metodológicos,
técnicos etc., as características da Escola comprometida com os ideais democráticos de
participação. Mas, como a Escola não tem, e não pode ter, fim em si mesma, como seu
sentido vem, exatamente, daquilo que significa para a sociedade, e para a construção
da sociedade, essa definição cabe, em seus termos mais gerais, à sociedade como um
todo.
2
Cornelius Castoriadis, «Valor, igualdade, justiça, política: de Marx a Aristóteles e de
Aristóteles até nós», in
– distribuído entre eles, atribuído de forma privativa, exclusiva, a cada um deles – e
aquilo que não pode ser partilhado, que deve pertencer a todos, e a que todos devem,
necessariamente, ter igual acesso. Isso é: a política começa pela definição do que é o
seu espaço próprio de construção – daquilo que é público – e daquilo que se aceita
que faça a diferença entre os cidadãos. São públicos, e não podem ser partilhados, são
«participáveis», por exemplo, a língua e os costumes, pois sua apropriação não só não
exclui, mas implica a apropriação dos outros.
Entendamo-nos bem: a Escola pública não não foi criada, na democracia moderna,
como um direito individual das famílias, ela sequer aparece somente como um
«direito» virtual de cada homem, para que possa, mais do que cidadão de direito, isso
é, por força da lei democrática proclamada, fazer cidadão de fato. Mais do que tudo
isso, ela é, inicialmente, especificamente no que se refere às crianças, um direito da
3
Encruzilhadas do Labirinto I. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. p. 264 - 335. 3 id., ibid., p. 296.
4
id., ibid., p. 297.
5 “E, se há de fato uma razão democrática sendo elaborada neste solo histórico e cultural que
presenciou o nascimento da Escola pública, ela não poderia ser caracterizada pelo desenvolvimento
técnico-científico e da aspiração ao total “controle” da natureza e da sociedade, mas, antes pelas
exigências de redefinição daquilo que, na sociedade, não deveria mais permanecer sob o controle
exclusivo de alguns: o poder de deliberação, o acesso ao debate público, enfim, a participação política:
«... dizer logos não é já dizer, de certa forma, «igualmente»? Heráclito falava do logos xunos – logos
comum, público, pertencente a todos; e o Menon tinha mostrado que há participação «igual» de todos,
homens livres ou escravos, nesse logos. Igualdade, ou equivalência, não são sempre multiplamente
implicadas por toda racionalidade – igualdade ou equivalência dos debatedores, sem a qual não há
diálogos, igualdade ou equivalência dos enunciados, sem o que não há cadeia demonstrativa, igualdade
ou equivalência dos referentes do discurso, sem a qual este não poderia sequer começar?» (id., ibid.)
sociedade, de assegurar a formação de seus futuros cidadãos. Ela se apresenta, assim,
como uma das primeiras condições de construção democrática – de construção da
própria polis, pela construção dos cidadãos que irão habitá-la. Os revolucionários
modernos haviam aprendido a lição dos antigos: se a polis são seus cidadãos, não é
bastante fabricar leis e estatutos, por melhores que sejam, é preciso poder formar
homens capazes de habitar essas leis, de colocá-las em prática, indivíduos com
disposição para fazer passar a letra da lei em prática concreta, e capazes de estar
permanentemente deliberando, isto é, questionando exatamente essas leis.
Não é por decreto que os homens se transformam em cidadãos: é preciso que
tenham interiorizado o valor democrático, que tenham descoberto seu poder criador,
a força instituinte do poder criador coletivo. É preciso que sejam capazes de considerar
como sua tarefa mais essencial construir e reconstruir o que deve ser a sociedade, o
que deve significar justiça, igualdade, democracia, cidadania para sua sociedade.
Ser cidadão não é apenas conhecer seus direitos e deveres, como tolamente o
liberalismo nos quer fazer acreditar. Ser cidadão é acreditar na deliberação comum, no
poder criador da sociedade. Ser cidadão é, diria Hannah Arendt, abdicar da força em
nome do diálogo.
É por isso que é grande a tarefa da Escola. A Escola pública, como dissemos,
não foi invenção dos gregos. Ela foi a invenção de uma sociedade que pretendeu
universalizar a cidadania e, assim, que teve que inventar uma forma para garantir que
todos os homens, indistintamente, fossem socializados nos valores da democracia.
Que todos fossem capazes de participar ativamente das deliberações comuns. Que
todos fossem capazes de buscar com todas as suas forças fazer imperar os valores de
justiça e de igualdade na sociedade.
Acontece, diz Hannah Arendt, que a família não é democrática. Nela impera
uma ordem que é preestabelecida. Que não é igualitária, mas distingue os que têm
força e os que não têm. Da mesma forma, a Escola não é lugar de igualdade
democrática. Há na Escola uma diferenciação – os que aprendem e os que ensinam
ignorada. Por isso a Escola não pode ser lugar de exercício da igualdade democrática.
Não se pode conferir ao aluno o direito de criar aquilo que deve aprender – isso é, no
mínimo, um contra-senso.
Assim, pode-se dizer que foi a Revolução Francesa que, pela primeira vez,
considerou a criança do ponto de vista político – atribuiu, pela primeira vez, um status
claramente político ao conjunto das crianças. Até então, qualquer sentido atribuído à
criança esgotava-se na esfera privada – no sentido familiar, no sentido religioso; e só
ganhava o espaço público sob a forma de marginalidade, de perversão, de
degenerescência. A sociedade monárquica, na França, olhava assustada para a
violência e o vício que se multiplicavam nas ruas, e olhava assustada, também, para os
menores deixados à mercê da sorte. Criam-se instituições asilares, de recuperação e
de profissionalização – de preparação para «ofícios». Na verdade, tudo que a
sociedade monárquica oferecia às crianças e adolescentes era sua própria virtude, ou o
que julgavam ser sua própria virtude: suas obras caritativas.
Mas isso nos diz o que deve ser hoje a Escola pública, em seu compromisso com
a cidadania futura? Sim, e não. Sim, porque entendemos que somente uma Escola
pública pode garantir o acesso de cada criança, sua socialização, naquilo que é
considerado como participável: naquilo a que todos devem ser iniciados, de forma a
que se possa falar que filosofia política e escola pública há algo de comum entre cada
um dos cidadãos; não, porque não somente isso, que consideramos ser o mínimo
comum entre os cidadãos, mas também o que é meio, instrumento, condição para
essa igualdade também resta a ser definido por nós.
Porém, como pode ser a Escola tudo isso, se a sociedade parece não mais
entender tudo que, politicamente, a Escola representa? Tudo que, politicamente, as
crianças e os adolescentes de hoje representam para a sociedade de amanhã? Se o
professor acabou convencido, tanto pela sociedade, como um todo, quanto pelas
autoridades e mesmo pelos teóricos da Escola, que sua ação de nada vale, só reproduz
o que a realidade tem de pior?