Quem diz participação, diz democracia (Rousseau); quem diz democracia, diz
organização (Robert Dahl); quem diz organização, diz oligarquia (Robert Michels) ou
autoritarismo (dizem os fatos). Este é um exemplo da série de transitividades
perversas, paradoxos, circularidades que tornam a sobrevivência dos regimes
democráticos algo precário, sujeita a ciclos aleatórios, a descontinuidades e
sobressaltos. É possível identificar os atributos característicos de uma democracia
estável e também pode-se estabelecer a crônica da emergência e evolução de grande
parte desses atributos. Mas, tanto quanto me seja conhecido, o fator E (estabilidade)
permanece indecifrado, quero dizer, aquele ingrediente que faz com que tais atributos
se sustentem imperturbáveis por longos períodos, em alguns casos, em outros não, e
cuja ausência leva as democracias ao colapso.
Aceito como premissas as oito condições estabelecidas por Dahl para a definição de um
sistema democrático, e reconheço que nenhum país as satisfaz completa e
simultaneamente3. Em conseqüência, adoto sua distinção entre democracia, como
ideal regulador, e poliarquias, como exemplares empíricos da descrição ideal-típica.
Estilisticamente, utilizarei ambos os termos, ficando registrado que estarei me
referindo a sistemas empíricos, não a ideal-típicos. Do mesmo modo, usarei
indiferentemente as designações de" absolutismo", "autoritarismo" e "autocratismo"
para indicar sistemas não representativos. E inicio, como programado,
definicionalmente.
Por definição minimalista, mas estrita, de poliarquia entendo um sistema político que
satisfaça completamenteàs seguintes condições:4
(1) exista competição eleitoral pelos lugares de poder, a intervalos regulares, com
regras explícitas, e cujos resultados sejam formalmente reconhecidos pelos
competidores;
Creio que o caráter minimalista da definição seja pacífico, pois não exige a satisfação
integral de todas as oito condições dahlsianas. Sua aplicação estrita, contudo, já
permite distinguir poliarquias de autoritarismos, os quais violam a condição 1, e de
oligarquias, as quais não satisfazem a condição 2. Essas distinções são fundamentais e
fixam a premissa maior do ensaio, ficando explícita a diferença entre a abordagem
institucional, que adoto, e as concepções substantivas de democracia. É por uma
questão de princípio, portanto, que algumas teorias contemporâneas apenas
marginalmente serão mencionadas.
Em livro não muito célebre, After the Revolution?, Robert Dahl lista algumas
proposições que, justamente por se apresentarem como axiomáticas, tornam
controversas as indicações teóricas de Polyarchy (Dahl, 1970; 1971)5. Por exemplo,
em After the Revolution? postula-se que, quanto mais insignificantes forem as
diferenças em competência sobre questões sociais entre os membros de uma
associação, mais forte será o argumento em favor da igualdade política entre eles; e
quanto maior a concordância de opinião entre eles, maior razão para que se adote,
como procedimento decisório, a regra da maioria. Pois bem, mesmo admitindo que o
princípio poliárquico de garantias mútuas permaneça válido, não sendo permitido a
qualquer maioria expropriar direitos fundamentais de minorias, como organizar a vida
política quando for desigual a distribuição de competências entre os membros de uma
associação (aceitando-se aqui exceções ao dogma utilitarista de que cada indivíduo
seja a pessoa mais indicada para decidir o que é de seu melhor interesse) e,
simultaneamente, a discordância prevalecer sobre a convergência de opiniões?
Contudo, proposições de After the Revolution? reconhecem realidades que não podem
ser ignoradas. Por exemplo, a de que quanto maior a sociedade, mais difícil e remota a
participação, justificando-se o hiato representativo pelo princípio de economia (cf.
Dahl, 1970:143-144). Ainda mais enfaticamente, é possível argumentar que, quanto
maior a população, mais rala é a "representatividade" da representação. Rousseau
teria razão ao formular o paradoxo de que o indicador de sucesso na administração
democrática de uma coletividade (o aumento em sua população) se transformaria em
propulsor endógeno de decadência, ao promover inevitável concentração de poder. E
isto é, com certeza, verdade, pois quanto maior a população, menor tende a ser o
Parlamento como proporção dela8. Sem forçar o ditado, o mundo inteiro dá razão a
Rousseau e a Dahl, e a provocação principal de After the Revolution? consiste em
revelar que a difusão de regimes democráticos concorre para a solução de alguns dos
problemas característicos das oligarquias antecedentes, ao mesmo tempo que gera
questões inéditas: a da" representatividade" da representação sendo uma delas.
Entre 1832, ano da primeira Grande Reforma inglesa, e 1928, quando, com a garantia
de voto às mulheres, este se universalizou, a Inglaterra passou serialmente por etapas
de um sistema oligárquico, de acordo com a definição minimalista de democracia aqui
adotada e com a definição formal de oligarquia a ser apresentada. A estabilidade da
evolução oligárquica inglesa manifesta-se na ausência de rupturas institucionais ao
longo do tempo, ou seja, nenhuma das etapas foi ultrapassada ou abolida com
violação das regras que ordenam a mudança de regras. Ignora-se aqui, como em
outros percursos oligárquicos, qual fator E (estabilidade) estava em operação. É essa
ignorância, talvez, que desencaminha os teóricos, levando-os a denominar
retoricamente de democracia um sistema admiravelmente estável, mas rigorosamente
oligárquico9. Sustento a hipótese de que essas proposições se aplicam a todos os
países hoje estereotipadamente classificados como" democracias estáveis" 10.
Grupos
1 2 3 4 5
A B C D E
Ordenamento de
B A B B B
preferências por
políticas específicas C C A C C
D D D A D
E E E E A
1ª) existe uma alternativa (B), que é a primeira opção na ordem das preferências de
um grupo (2) e a segundana ordem de preferência de todos os demais;
3ª) para qualquer opção, sempre haverá, à exceção de um, um conjunto unânime de
interesses contra, e nenhuma coalizão majoritária simples a favor.
"Em um país regido por um bom sistema administrativo, uma grande parte das ambições dessa classe [política] se
agitaria dentro do município e da província; mas com a excessiva centralização que reinava, todas aquelas
aspirações convergiram necessariamente para o centro, para a capital, onde está o único foco da vida e do
movimento político deste vasto império. Formou-se, então, senhores, essa cadeia de fuzis que prende o votante ao
eleitor, o eleitor ao deputado, o deputado ao ministro e o ministro ao poder permanente. Cada um desses fuzis se é
o veículo de uma aspiração que sobe, é também por sua vez o condutor de uma centelha da vontade onipotente
que se irradia por todo o país [...]. Assim foram-se aluindo a pouco e pouco todas as resistências locais [...]. O
cidadão tinha necessidade de enfeudar-se à influência local, não só para que o amparasse nas suas justas
pretensões, como para que defendesse sua segurança individual. Por sua vez a influência local tinha de submeter-se
13
ao governo, de quem recebia os favores com que se mantinha" (Alencar, 1874:63-65, 74-75).
Em Polyarchy, como se anotou, Dahl lista oito condições necessárias para eficiente
funcionamento do mecanismo de mediação entre representados e representantes.
Compactados em dois eixos essenciais — institucionalização da competição e extensão
do universo participativo —, fixa-se o conhecido plano que dá origem a quatro tipos de
sistema político. Admirando a fertilidade de modelo tão econômico, incomodam os
casos que, no modelo, se tornam "anômalos", intratáveis, mas, nem por isso, dotados
de denominador comum. Examinem-se as anomalias mexicana e indiana. Nenhum dos
dois sistemas podia, e em grande parte ainda não pode, ser tomado como paradigma
poliárquico, mas também não seria próprio considerá-los igualmente não poliárquicos.
A longa hegemonia do Partido do Congresso, na Índia, embora reduzisse a
competitividade do sistema a graus elementares, pouco tem em comum com a
hegemonia do Partido Revolucionário Institucional PRI mexicano, sendo a origem de
ambos irrelevante, sob a ótica presente. Ou, em outro exemplo, como interpretar ou
classificar a anomalia suíça, que até 1971, como se observou, mantinha o contingente
feminino de sua população destituído do fundamental direito do voto?
Possivelmente, a maioria das atuais poliarquias havidas por estáveis progrediu mais
rapidamente ao longo do eixo "controle" (definição de quem pode ser eleito e para qual
lugar) do que em direção à participação universal. Nem é insensato imaginar que,
historicamente, tenha sido este um ingrediente do fator E, subvertendo as trajetórias
de Dahl, que localiza na predominância do eixo" institucionalização" sobre o eixo
"participação" a origem da estabilidade democrática. Como se observou,
institucionalização significa que está em vigência o princípio das garantias mútuas, e
este é um requisito de estabilidade representativa, oligárquica ou poliárquica. A Suíça,
outra vez, é caso exemplar, pois ao mesmo tempo que considera elegíveis todos os
eleitores, não incluía as mulheres entre estes até 1971.
Quadro II
3 Irlanda 1923 25
4 Noruega 1913 34
12 Chile 1949 87
14 Austrália 1902 92
21 Inglaterra 1928 33
23 México 1954 82
25 EUA 1920 81
Fontes: Mackie e Rose (1991); Nohlen (1993); Gorvin (1989); Lane, McKay, Newton (1997).
* Foi utilizado para cálculo da coluna de crescimento do eleitorado o número de votantes, já que a fonte não
apresenta o número de eleitores.
** A coluna de crescimento eleitoral foi calculada usando dados de eleições sucessivas, porém não em intervalos
regulares.
Obs.: Na Argentina a incorporação do voto feminino só se deu na eleição de 1951 e no Peru só em 1956.
Elaboração: Laboratório de Estudos Experimentais (LEEX).
A adoção do voto universal foi relativamente tardia porque a maioria dos países já
havia evoluído substancialmente no eixo do "controle", isto é, dos elegíveis, e porque é
impossível recuar, sem violência institucional, reinstaurando superados critérios de
elegibilidade em sentido fraco, mesmo em face de grandes rupturas provocadas por
alargamento no eixo da participação. Isto significa que, ao adquirir o direito de
voto, parte dos novos eleitores tornava-se, também, elegível. Minha hipótese é que a
resistência ao voto universal foi tanto maior quanto mais tenha o país avançado na
derrubada de barreiras à elegibilidade, e vice-versa, pois, em ambos os casos,
aumentava a taxa de competição efetiva e a imprevisibilidade eleitoral. Em acréscimo,
admito igualmente como hipótese que o fator E (estabilidade) encontre-se em bem
administrada mistura de participação e controle (quem são os elegíveis?), antes que
em precedência cronológica da institucionalização sobre a participação, tal como
coincidem, neste ponto, Robert Dahl e Samuel Huntington.
Existe marcante diferença entre essa dinâmica e a dinâmica clássica das poliarquias.
Nas oligarquias, uma vez atingido o patamar universal de participação eleitoral só será
possível reduzir-se a representatividade do sistema pela via da violência, não mais por
via legal. Nas democracias, ao contrário, é possível, dentro das regras que autorizam
mudanças de regras (sem violência, pois), restringir a abrangência poliárquica do
sistema, reduzindo o número de elegíveis em sentido forte (elegíveis para serem
votados) por manipulação de legislação eleitoral e partidária.
Não são apenas requisitos de idade que impõem limites à elegibilidade. Eis lista,
certamente não exaustiva, de possíveis barreiras poliárquicas à elegibilidade, algumas
herdadas dos sistemas oligárquicos, outras novas: filiação partidária, tempo de
residência, eleições "primárias", coeficientes eleitorais, tamanho do distrito eleitoral e
número de representantes, regra de designação de candidatos, listas abertas ou
fechadas, contribuição para fundo partidário e tamanho da representação. Na
Argentina, demandava-se dos candidatos a presidente e vice-presidente da República
que fossem católicos. A Constituição de 1994 aboliu este requisito, mantendo todavia,
em seu artigo 2º, o proviso de que" O governo federal sustenta o culto católico,
apostólico, romano" e pelo artigo 93, o presidente e o vice-presidente devem prestar
juramento de respeito às crenças religiosas. Surpreendente, em especial, é que ainda
se requeira um limite inferior de renda como requisito para o Senado (artigo 55), e
também para a presidência e vice-presidência da República, dos quais, pelo artigo 89,
se demanda, além de outras qualificações, "as demais qualidades exigidas para ser
eleito senador". No Chile requer-se a idade mínima de 40 anos para os cargos de
presidente e senador (no Brasil o requisito são 35 anos), enquanto funcionários
públicos, militares e soldados não são elegíveis no Uruguai. A lista é longuíssima. Só
para sugerir a magnitude de tais barreiras, considerem a do tamanho da
representação, revendo o Gráfico Ida proporção entre tamanho dos Parlamentos e
população.
Certamente, nem todo eleitor está inclinado a ser candidato. Mas esta objeção erraria
o alvo, pois a questão incontornável é a da assimetria entre qualificações para votar e
qualificações para ser eleito, caso alguém deseje candidatar-se. A condição de eleitor,
uma vez alcançada, incorpora-se por assim dizer ao conjunto de direitos naturais do
cidadão, e só pode ser-lhe amputada por violência institucional. Outro é o estatuto de
elegibilidade, em sentido forte. Alterações de regras constitucionais, fiéis aos
comandos da própria Constituição, e imposições dos partidos, legalmente permitidas,
autorizam a manipulação da imprevisibilidade competitiva, sem violência institucional.
Em oligarquias, o controle sobre eleitorado e elegíveis é completo; em poliarquias, só o
eixo da participação eleitoral é legalmente autônoma, isto é, intocável. É por isso que
parte considerável dos conflitos locais reemergentes no mundo contemporâneo
desenrola-se em torno da" elegibilidade" mais do que da tradicional "participação".
O poder de uma teoria manifesta-se no universo que ela nos permite compreender e
na extensão do que nos impede ver. A essencialmente incompleta teoria da poliarquia
tem ocultado a relevância fundamental do eixo da elegibilidade, torcendo a cronologia
da história política das nações, obscurecendo a distinção entre sistemas
representativos oligárquicos e sistemas representativos poliárquicos, limitando o
entendimento das dinâmicas possíveis, oligárquicas e poliárquicas, e, finalmente,
desconhecendo o caráter não-encarcerável e, pois, reversível, de sistemas
poliárquicos, mesmo na ausência de rupturas institucionais.
Essa sinuosa evolução pode ser observada em todos os sistemas representativos. Leis
de registro, redução de corpos legislativos e aumento do alcance discricionário do
governo eram utilizados durante parte do período oligárquico americano no século XIX.
Em New Orleans, por exemplo, a redução de requisito de renda foi substituída pela
cassação de ex-confederados que libertavam escravos, além da restrição dos direitos
dos imigrantes (Ryan, 1997)21. Com efeito, o trânsito entre autoritarismo, oligarquia e
poliarquia é algo mais complexo do que vãs filosofia ou poética supõem.
II
São demais os caminhos desta vida, diz o poeta, e o diz bem, pois idas e vindas são a
regra na vida das sociedades e é oportuno despender algum tempo na observação das
evidências. Tome-se a informação sobre trajetórias autoritarismos-poliarquias de
países agregados conforme faixa de PIB per capita e não por contigüidade territorial,
pois o longo prazo revela que atributos políticos não se propagam necessariamente por
contágio direto22. Observa-se a variedade de trajetórias, avanços e recaídas,
utilizando-se para classificação a condição minimalista 1 de presença ou ausência de
eleições regulares livres em termos simples, se existem oposições e se elas podem
de fato ocupar o poder, tendo obtido votos para tanto. Estão virgens de investigação,
ainda, os motivos das recaídas autoritárias e, entre estas, aquelas devidas à
necessidade de castração do eleitorado como condição necessária à redução dos
elegíveis.
Renda
Sistema Político Baixa Média Baixa Média Alta Alta**
Sempre Autoritários 20 8 1* 0
Sempre Democráticos 2 6 3 19
Transeuntes 18 15 11 1 (Espanha)
Mesmo curto, o período escolhido apresenta significativo número de" transeuntes", isto
é, de países que ingressaram na democracia e retornaram ao autoritarismo e vice-
versa. Na verdade, existem casos de mais de duas" recaídas", seja qual for a forma de
governo. A ausência de casos no cruzamento renda alta x "sempre autoritários" não
deve ser tomada como evidência conclusiva de nenhuma teoria, pois, se recuássemos
o parâmetro temporal, vários países aqui classificados como "sempre democráticos"
engrossariam a categoria dos "transeuntes".
Os 150 anos compreendidos entre o início da segunda metade do século XVIII e o final
do século passado foram tomados pela formulação, aperfeiçoamento e tradução
operacional dos princípios básicos do liberalismo clássico. Só recentemente, todavia, é
que se atentou para a crucial relevância dessa tradução dos princípios da doutrina. Na
realidade, o experimento liberal-democrático, inédito na história da humanidade, veio
a revelar uma das incertezas dinâmicas da vida contemporânea, a saber: consenso
sobre fins não assegura acordo quanto a meios. A natureza contingente da relação
entre meios e fins estava já instalada no coração da doutrina desde o seu início, mas
foi o aprendizado pela implantação ao longo de mais de século que a revelou em toda
a sua complexidade. Se se adiciona certa sombra de dúvida ou de controvérsia sobre
alguns dos fins que se deseja alcançar, teremos então constituído o núcleo de questões
para o qual a doutrina oferece respostas múltiplas, contingentes e capazes de suscitar
perplexidade pelo potencial de paradoxos e circularidades que carrega.
Ao final da Primeira Guerra Mundial já estavam assegurados, nos então países líderes
da modernização política, quase todos os direitos cujo conjunto aparece hoje como
uma espécie de estado natural, mas que, em perspectiva multissecular, apontavam
para a constituição de uma ordem política seu tanto de libertina: liberdade de crença,
de opinião política, de reunião, de organização, de informação, além do direito de viver
cada qual conforme sua concepção privada de costumes (no limite de semelhante
direito garantido aos demais), e do direito de constituir partido político para competir
pelo poder. Não fosse por mais nada, a simples idéia de que o poder de governar
pudesse ser objeto de competição, decidida por assim dizer pelo acaso, assustaria a
grandes defuntos da espécie. Não obstante, tal ordem política estava ali em processo
de institucionalização, de "democratização fundamental", como Karl Mannheim o
chamou, marcada pela sucessiva abolição das barreiras à entrada na competição
política: renda, idade, religião, raça, educação, sexo.
Preferi usar o adjetivo pouco rigoroso melhor, justamente para não privilegiar, nem
excluir, as diversas e às vezes contraditórias dimensões daqueles problemas. Melhor,
nesses casos, tanto quer dizer mais eficiente, quanto mais legítimo, ou mais justo, ou
mais estável, ou mais aberto à inovação e ao aprendizado, ou várias outras coisas.
Com isto já revelo que a questão sobre meios está essencialmente ligada à questão
sobre fins, complementando a proposição anterior de que a associação entre meios e
fins é contingente. O enigma liberal-poliárquico de onde se há de partir é, por
conseguinte, este: toda proposta de procedimento (meios) só se torna efetivamente
esclarecida no contexto de propósitos (fins) e, ao mesmo tempo, dado o
experimentalismo essencial à liberal-democracia, toda associação entre meios e fins é
historicamente contingente. Dado o enigma, considerem-se algumas trajetórias23.
Formas de Governo
Sistemas de Representação Presidencialismo Parlamentarismo
Proporcional A B
Majoritário C D
É instrutivo preencher as quatro celas da tabela, conforme a freqüência dos tipos, tal
como dispostos nos Anexos IV e V Regimes Políticos e Transição de Países
Autoritários para Democracias, pois o exercício permite sustentar a plausibilidade das
seguintes proposições:
3) os trajetos de ida e volta entre qualquer uma das celas e o buraco negro do
autoritarismo não revelam também qualquer padrão sistemático, concluindo-se que,
assim como se pode chegar ao autoritarismo a partir de qualquer tipo de democracia,
a qualquer uma delas se pode também voltar, fenômeno relevante para o
entendimento da estabilidade democrática;
4) o experimento histórico da liberal democracia tem privilegiado ora uma, ora outra
das associações institucionais (a freqüência modal varia entre as celas), o que reforça
a tese de que a estabilidade democrática não encontra em nenhuma associação
institucional sua condição necessária, nem mesmo suficiente. Ao contrário do que se
afirma freqüentemente, por exemplo, o maior número de democracias estáveis, hoje,
não habita a cela d, mas a cela b.
1) + + + Poliarquia Estável
2) + + – Poliarquia Instável
3) + – – ?
8) + – + ?
Existe um tipo de sistema político, digamos zero, excluído desse universo por razões
lógicas e substantivas. Trata-se das autocracias, às quais os conceitos de participação
e de competição institucionalizada não se aplicam. A tipologia tem por
população sistemas representativos, isto é, sistemas nos quais existe
competição formalmente regulada por postos de representação e que correspondem à
definição já estabelecida. Pela definição e conseqüências modais, os tipos 3 e 8
revelam-se contraditórios e devem, por isso, desaparecer. Excluindo-se as autocracias
(ditaduras abertas) e os contraditórios, resta o seguinte conjunto possível de tipos de
sistema, conforme a interpretação sugerida27:
Poliarquias Oligarquias Oligarquias
Hegemônicas Inclusivas
Estáveis A B C
Instáveis D E F
Tabela 1
Estabilidade Governamental Comparada Brasil: 1822-1998
(média e desvio padrão)
___
X s (desvio padrão)
6) J. Goulart 0,13
Fontes: Câmara dos Deputados (1889); Arquivo de Elites – IUPERJ; Revista Veja (para Collor, Itamar e FHC).
* O de maior estabilidade na República Velha, à exceção do caso singular de Rodrigues Alves.
Obs.: Foram desprezados ministérios provisórios ou interinos; FHC tomou posse em janeiro de 1995; a contagem
foi interrompida em maio de 1998.
1ª) o período de oligarquia hegemônica estável (1822-1930) foi mais estável em seu
estágio republicano presidencialista do que em seu período monárquico parlamentar;
A experiência brasileira de mais de século e meio aponta para a hipótese de que o jogo
das regras (a política cotidiana) pode ser consideravelmente estável,
independentemente de maior ou menor estabilidade das regras do jogo, sejam elas
quais forem: saem monarquia e parlamentarismo, entra e sai oligarquia excludente,
entram e saem autocracias, instaura-se a poliarquia e o jogo parece variar dentro de
limites razoavelmente estáveis, a patamares de participação e controle diferentes.
III
Breve reflexão identificará como "grupo oligarca puro", um puro grupo rousseauniano,
no qual os membros estão atados, mesmo contra sua vontade, à regra da
unanimidade: em matéria de vida pública, ou bem o acordo entre os oligarcas é
completo, ou então a produção do bem coletivo ficará comprometida. Assim, um
sistema oligárquico caracteriza-se fundamentalmente pela assimetria
entre produção e prevenção de um bem coletivo — o que é diferente do problema
clássico de assimetria entre produção e consumo do bem.
NOTAS:
1. A título de exemplo de persistência nessa linha de investigação, ver Gurr (1974:1482-1504); seguido do projeto Polity II: Political Structures and Regime Change, 1800-
1986, que pode ser contactado no endereço ksg@isere.colorado.edu. Outro projeto, com foco nas relações entre democracia e conflito, sob a direção de Michael D. Ward, é
The Spatial and Temporal Diffusion of Democracy, 1815-1995, a que se tem acesso no endereço http: //www.Colorado.EDU/IBS/GAD/spacetime.html. Ambicioso estudo, em
busca de monocausalidade nas relações entre Estado e democracia, é o de Tatu Vanhanen (1997), com base em arquivo compreendendo 172 países, desde 1850 até nossos
dias. Ver, também, McLaughan et alii (1998).
2. Registro aqui simplesmente que o historiador Fritz Stern, ao dizer , em tom confessional, que se sentia deslocado em seminários de politólogos sobre democracia, pois não
seria a pessoa mais indicada a falar sobre o tema, se equivocou completamente. Ao iniciar, sugerindo que" foi a Grande Guerra que testemunhou a elevação da democracia a
um ideal universal. Governos representativos e constituições liberais existiram antes e, em verdade, foram considerados ideais na maior parte da Europa do século XIX. E
doutrina e prática democráticas também existiram no passado, mas é duvidoso que a Grã-Bretanha do pré-guerra pudesse ser chamada de democracia", Stern enunciou uma
trivialidade histórica cujas sérias implicações teóricas, todavia, ainda não foram percebidas pelos politólogos (cf. Stern, 1997).
3. Reproduzo as oito condições: 1) liberdade de criar e associar-se a organizações; 2) liberdade de expressão; 3) direito de voto; 4) elegibilidade para cargos públicos; 5)
direito de líderes políticos de competirem por apoio; 6) existência de fontes alternativas de informação; 7) eleições livres e limpas; 8) instituições que tornem as políticas
governamentais dependentes de votos e outras manifestações de preferências.
4. O requisito de aplicação estrita da definição, implícito no advérbio "completamente", obriga a duvidar de que as investigações buscando "medir" graus ou níveis de
democracia alcancem resultados satisfatórios. A seu tempo, mencionarei alguns exemplos dessa literatura, tomados, por amostra, de Beetham (1994).
5. Por razões de economia de exposição, presume-se que o leitor esteja razoavelmente familiarizado com a obra de Robert Dahl.
6. Na p. 36, de After the Revolution?, a adesão de Dahl ao princípio utilitarista não poderia ser mais forte: "If you believe, as I do, that on the whole the ordinary man is more
competent than anyone else to decide when and how much he shall intervene on decisions he feels are important [...]" (ênfases no original).
7. Estou ciente de que, em After the Revolution?, Dahl menciona três critérios: da escolha pessoal, da competência e da economia, e de um princípio, o dos interesses
afetados. Interpreto, contudo, que o princípio dos interesses afetados é uma generalização do critério de escolha pessoal e que todos os critérios podem ser tratados como
princípios. Acredito que não se viola, com isso, a teoria de Dahl.
8. Tenho informações para 96 países que demonstram conclusivamente a afirmativa, não as apresentando aqui por economia de espaço. As evidências e a discussão desta
matéria encontram-se em Santos (1997a).
9. O leitor verá no Anexo I a cronologia da queda de barreiras e verificará a presença de uma maioria "democrática" estável ao lado de países cronicamente instáveis. A
suavidade da transição inglesa, ao contrário da turbulência francesa, p. ex., é um dos motivos da reflexão de Gauchet (1995, esp. Parte III: 259 e ss.).
10. A literatura histórica sobre cada país é considerável, mas eis alguns pontos de partida: para acompanhamento do processo inglês, ver James Vernon (1993); para os
Estados Unidos, ver Cormick (1986); para a Alemanha, ver Anderson (1993). John A. Phillips e Charles Wetherell, tomando posição a favor da importância da Grande
Reforma de 1832, em debate na historiografia inglesa, contra James Vernon, p. ex., argumentam persuasivamente que, após a Reforma, as eleições inglesas se tornaram
mais partidarizadas, diminuindo drasticamente o número de eleitores que, quando era possível, votavam em candidatos de partidos diferentes para o preenchimento de duas
vagas. Consideram que, de modo geral, um comportamento político moderno se caracteriza por lealdade e adesão a partidos, entre outras características. Exageram,
contudo, ao derivar dessa descoberta que a "Reform quickly destroyed the political system [...] and replaced it with an essentialy modern electoral system", pois conhecemos
as restrições do sistema eleitoral britânico até a década dos 20 (cf. Phillips e Wetherell, 1995:412). Ver, ainda, dos mesmos autores (1991:621-646).
11. Esta concepção, que abre caminho para uma formulação não bidimensional da democracia, permitirá também solucionar as dificuldades da hipótese de Dahl quanto à
precedência do eixo institucionalização sobre o da participação como condição de estabilidade. É a bidimensionalidade que compromete a compreensão de Ian Shapiro quanto
a este ponto em seu artigo "Components of the Democratic Ideal" (1997).
13. A reprodução da obra de Alencar (1874) e sua análise encontram-se em Santos (1991).
15. As tentativas de mensuração têm produzido insolúveis agendas de investigação. Saward (1994) sugere 24 índices de condições logicamente necessárias à democracia;
Beetham eleva o número a 30. Não é difícil antecipar o caráter bizarro das conclusões sobre" graus" e "níveis" de democratização. Estes e outros exemplos se encontram em
David Beetham (1994).
16. Algumas, diferentes das mencionadas na nota anterior, são comentadas em Santos (1997c:11-57).
17. Evidentemente, outros critérios, com outras preocupações, dariam lugar a mais do que dois tipos de sistemas representativos (ver, p. ex., o excelente estudo de Neithard
Bulst, 1996).
18. Em alguns países (Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Equador, Guatemala e Peru, dentre outros) houve ainda quedas de barreiras para aborígines e, principalmente,
analfabetos , mas o grande divisor sempre foi o voto feminino.
19. São preocupantes a extensão da negligência quanto a elementares critérios de credibilidade e o grau de contaminação propagandística da recente literatura de estudos
comparados, particularmente a que se refere aos autoritarismos e democratizações dos anos 70 em diante. A insistência em "teorias" com fundamentos inteiramente falsos
não pode ser desculpada por compreensível, embora alarmante, ignorância historiográfica. Já em 1977 Göran Therborn apontava a precária sustentação factual dos estudos
sobre" transições" e semelhantes (cf. Therborn, 1977).
20. Refiro-me ao seu artigo "After Twenty Years: The Future of the Third Wave" (1997, esp. p. 6). E porque a democracia ainda é um fenômeno infante, recomenda-se
cautela em prognósticos. Até aqui parece ser verdadeiro que o fator Etambém está relacionado à menor relevância da política como mecanismo para resolução de conflitos.
Mas é prematuro supor que democracias de massa, nas quais a política não seja marginal, não consigam durar, conforme sugere Russel Hardin (1997) em seu importante
artigo "Democracy on the Margin". A adesão de Hardin a um conceito de democracia enraizado no princípio das vantagens mútuas, antes que no das garantias mútuas, torna-
o co-partícipe das teorias democrático-substantivistas, escapando ao âmbito da discussão nesta oportunidade. Registre-se, todavia, que o limite das concepções institucionais
foi explicitado no problema de contraditórias maiorias alternadas. Robert Dahl, em After the Revolution?, tenta fazer de algo similar ao princípio de vantagens mútuas o
fundamento da adesão ao princípio das garantias mútuas: "To the extent that I am capable of acting rationally I will adhere to the system of Mutual Guarantees so long as the
gain I expect from making some of my personal choices effective exceeds the loss I expect from the choices that I have to forego" (1970:28). Mas esta é, na realidade, uma
variante do princípio dos interesses afetados, o qual cria obstáculos à operação dos princípios de competência e de economia. Em outra passagem (idem:14) Dahl formula o
princípio de maneira algo diferente e, a seu juízo, equivalente, mencionando ganhos quando se está em maioria e perdas quando se está em minoria. Creio que se equivocou,
pois a razão para que o princípio das vantagens mútuas não permita que a maioria ultrapasse certos limites consiste precisamente na existência e eficácia do princípio das
garantias mútuas. Contudo, não avançarei esta discussão, aqui, além deste ponto.
21. Ver, também, para Inglaterra e Estados Unidos, Morgan (1988); e, para o caso francês, Huard (1991).
22. No Anexo III encontram-se as tabelas de transição de países democráticos para autoritários, e vice-versa, de 1970 a 1993, com cortes de quatro em quatro anos, e
agregando-se os países conforme a classificação de renda do Banco Mundial, e tabelas de transição de regimes e sistemas. Os números dos países não coincidem por
insuficiência de informação. Até o momento, disponho de informações sobre o ano de adoção do sufrágio universal para 119 países, sobre o eleitorado para 44 e para o
crescimento deste, desde a adoção do sufrágio universal, para 25. Estes últimos dados já foram apresentados no Quadro II. As fontes costumam
trazer equívocos, às vezes graves, mas espero que não comprometam, dado o volume das informações, as inferências do texto. A
propósito, no verbete Brazil, assinado por David Fleischer, da World Encyclopedia of Parliaments and Legislatures (1998), lê-se, na p.
92 do vol. I: "Fernando Collor was elected but was impeached for corruption in 1992. His vice president Fernando Cardoso, served out
the term and was himself elected president in 1994"! Acredito que tenha havido monumental erro de impressão.
23. Os Anexos IV e V apresentam trajetórias, por continentes geográficos, para dois subperíodos entre 1973 e 1993.
24. As conclusões do artigo referem-se ao período 1950-1990. Cautelosos quanto às conclusões, os autores são lenientes no estabelecimento de regras para a definição de
regime democrático. Na realidade, apresentam quatro regras que seriam, cada uma delas, condição suficiente para classificar um regime como ditadura: 1) se o chefe do
Executivo não houver sido eleito; 2) se o Legislativo não houver sido eleito; 3) não existem partidos ou só existe um; 4) o regime não pode ser caracterizado por nenhuma
das três regras anteriores, mas os atuais ocupantes do poder aí estão por mais de dois mandatos ou sem ter havido eleições, ou nunca perderam uma só eleição (Przeworski
e Limongi, 1997, Appendix 1: "Classifying Political Regimes", p. 178). Por implicação as condições contrárias serão necessárias para caracterizar um regime como
democrático, e assim são tratados os países incluídos no estudo. Nenhuma das quatro regras refere-se ao sufrágio universal e, pelo critério adotado, todos os sistemas aqui
classificados como oligarquias estáveis seriam democráticos o período do 2º Reinado no Brasil do século XIX, por exemplo, ou nossa República Velha, desde 1891.
25. Como se percebe, apesar de total divergência quanto à concepção historiográfica, definições, conceitos, métodos de análise e futurologias, minhas conclusões coincidem
parcialmente com a concepção multicausal de Huntington, expressa em The Third Wave.
26. Regras para construção de tipologias: (1) ser exaustiva; (2) os tipos serem mutuamente excludentes. A tipologia zoológica de Borges pretende ser exaustiva (embora
dela não constem unicórnios) mas, se me lembro bem, os elementos incluídos não se excluem. Em outro exemplo: gênero: homem e mulher são exaustivos e mutuamente
excludentes.
27. Em outro texto apresento formulação booleana da teoria e suas implicações para investigação comparativa (ver Santos, 1998:61-91).
; onde:
m = número de ministros;
n = número de ministérios;
Utilizei-o em The Calculus of Conflict (1978), cobrindo o período 1945-1962. Em Sessenta e Quatro – Anatomia da Crise (1986) estendi a mensuração até o período Médici.
Posteriormente, em Crise e Castigo Partidos e Generais na Política Brasileira (1987), acrescentei as quadras Geisel e Figueiredo; trago agora o registro até maio de 1998.
Os resultados para o período imperial e da República Velha até 1945, encontram-se originalmente em pesquisa de Cléa Sarmento, que só publicou aqueles relativos ao
Império (Sarmento, 1982).
29. Processos markovianos de primeira ordem são aqueles nos quais o estado de um sistema S (no caso, do sistema político) no tempo t depende exclusivamente de seu
n
estado no tempo t , sendo irrelevantes os demais estados anteriores. Entre exemplos de enorme literatura, ver, para abordagens diferentes, Vanhanen (1997), onde é
n-1
oferecida versão monocausal simplista de um determinismo darwinista para a emergência da democracia, e Stephens (1993).
30. Para análise booleana, dentre outros exemplos, ver Ragin (1987); Berg-Schlosser e Meur (1994).
31. Bens democráticos são aqueles susceptíveis de reprodução ilimitada e cujo consumo é estrita função da renda; bens conspícuos ou oligárquicos (um desenho de
Modigliani, p. ex.) não são reproduzíveis e sua posse é excludente (cf. Hirsch, 1977). As argutas observações, de De Tocqueville, em meados do século passado, de que a
expansão econômica é responsável, ao mesmo tempo, pela criação de miséria (em suas Memórias sobre o Pauperismo) e por instabilidade política (em sua análise sobre o
Antigo Regime francês), são inteiramente compatíveis com o modelo sugerido de oligarquia e sua dinâmica de decadência.
32. Cadeias absorventes são estágios sucessivos de um sistema qualquer em que o último estágio é estacionário e, por isso, no caso, o primeiro e o segundo momentos em
torno da média do patamar limítrofe da renda seria igual a zero, caracterizando o estágio como irreversível, "encarcerado".
33. Fiz rápido teste para 85 países distribuídos conforme a classe de renda per capita, segundo o Relatório do Banco Mundial, 1996, Do Plano ao Mercado, para os quais havia
informação sobre a proporção de renda apropriada pelos 10% mais ricos da população. Reproduzo os resultados, respectivamente, de média e desvio padrão para cada
classe: países de renda baixa (X = 32,4; s = 7,38); países de renda média baixa (X = 30,85; s = 7,58); países de renda média alta (X = 36,21; s = 11,67); países de renda
alta (X = 24,95; s = 3,63). Embora o número de países de classe de renda média alta seja o de menor número de membros (oito países), verifica-se que é o único desviante
em seus resultados.
34. Nikolaus Wers (1987:223-243) aponta para a fragilidade preditiva de representantes dessa literatura. Preso ao convencionalismo, entretanto, insiste nos estereótipos
sobre fracionalização, presidencialismo etc. Sensível para a importância dos números (universalização do sufrágio), incorre, contudo, em erros elementares como, por
exemplo, o de classificar o Uruguai e o Chile como países de porte médio ou, pior, inaceitável desconhecimento historiográfico em proposições tais como "At the end of the
1930", mass parties with nationalistic and reformistic goals formed in virtually all states" (idem:226). A irrelevância da fracionalização partidária como indicador de
instabilidade é revelada em Santos (1997b).
35. David Collier, em "Democracy with Adjectives" (1997), tentou introduzir certa ordem e homogeneização nessa abundante retórica. Sem sucesso, todavia, tal como o
demonstra Andreas Schedler, em "What Is Democratic Consolidation?" (1998). Vale a citação: "The aspiring subdiscipline of ‘consolidology’ is anchored in an unclear,
inconsistent and unbounded concept, and thus is not anchored at all, but drifting in murky waters. The use of the one and the same term for vastly different things only
simulates a shared common language; in fact the reigning conceptual disorder is acting as a powerful barrier to scholarly communication, theory building, and the
accumulation of knowledge" (idem:92). Apresso-me a informar que o autor compartilha da mesma inclinação dos criticados (Juan Linz, Guillermo O’Donnell, Larry Diamond,
Alfred Stepan, Philippe Schmitter e outros). Por isso mesmo, a tipologia que oferece (idem:94) padece das mesmas restrições: os tipos não são mutuamente excludentes e a
passagem do autoritarismo para as supostas formas de democracia é mecânica e direta.
36. O caráter propagandístico-dogmático dessa literatura é visível. Em particular, remeto o leitor ao capítulo "Presidential or Parliamentary Democracy, Does it Make a
Difference?", de Juan Linz (1994, vol. I:6), onde ele afirma que: "o fato de que presidentes e legislativos tenham período de mandato fixado conduz a algo que chamo de‘
rigidez’". As aspas pertencem ao original, querem indicar algo patológico e por cerca de noventa páginas nada além de retórica é oferecido como substituto de análise.
Nenhum dos rótulos até hoje fabricados pelo autor – do regime de sultanato aos recentes regimes interinos – gerou acréscimo na capacidade preditiva. A rigor, os autores
dessa linhagem estão sempre correndo atrás dos fatos, constituindo uma espécie de late-comers teóricos. A extensão desta nota se fez necessária para pôr em perspectiva
um conjunto de obras que, meritórias como esforço, de fato nada acrescentaram à literatura comparada dos anos 60. O que afirma Scott Mainwaring em" Juan Linz and the
Study of Latin American Politics" e cito: "I attempt to shed light on why someone who has not worked primarily on Latin America has had a decisive influence on the study of
Latin American politics.", é falso. Essa influência não ultrapassou as mesmas vinte pessoas, aproximadamente (cerca de quinze americanos e quatro ou cinco latinos), que há
cerca de vinte anos repetem o mais persistente cross-reference game da análise comparativa. O que a literatura dos 60 possuía de competitiva foi substituído pela
complacência cúmplice (cf. Mainwaring e Valenzuela, 1998:2). O desprestígio atual dos estudos comparativos latino-americanos é merecido, entretanto, porque adotam uma
concepção cartográfica da política quando, em realidade, não existe nada a que se possa denominar de "política latino-americana" ou" ibérica" ou "ocidental".
37. A análise combinatória já foi introduzida por ocasião da análise do terceiro eixo, o eixo da" elegibilidade" ou controle. Tratamento mais extenso encontra-se em Santos
(1998).
38. Ramseyer e Rosenbluth (1995) apresentam um dos raríssimos e, no caso, excelente, estudo sobre sistemas oligárquicos. Tratando-os pela ótica da teoria dos jogos,
classificam tais sistemas como jogos com "núcleo vazio" (empty core), mas não vou discutir esse modelo aqui.
39. Para uma proposta de solução teórica do problema da ação coletiva, ver Santos (1994).
40. Não é este o local para excursões historiográficas, mas esse é o passado comum de todas as atuais democracias, confundido com o que são de fato os fundamentos e a
dinâmica das democracias. Falar em democracia em qualquer país anglo-saxão ou europeu continental antes da terceira década deste século, constitui, portanto, vasto e
essencial equívoco de teoria política e de historiografia, tal como se assinalou na primeira parte deste ensaio.
41. A Inglaterra, paradigmática em tantos aspectos, também o é neste; a evolução do século XIX inglês é o mais perfeito exemplo de uma transição entre oligarquia e
poliarquia (só vindo esta última no final dos anos 20 deste século) com astuta manipulação dos três eixos dos sistemas representativos (cf. Holmes e Szechi, 1993; Bentley,
1996).
42. Por contraste ao free rider do bem público, estaríamos aqui às voltas com o problema do free driver do mal coletivo.
43. Ver, para Portugal, Kenneth Maxwell (1995); para a Espanha, ver o excelente estudo de Charles Anderson (1970) e José María Maravall (1997, esp. cap. 2).
44. Reveja o leitor os gráficos ilustrativos de alguns períodos da história política brasileira na seção anterior. Além da Inglaterra, os Estados Unidos são outro exemplo de
evolução política a custos baixos. Estes não constituem, porém, nenhuma excepcionalidade, embora o afirme S. M. Lipset (1996). Aliás, o etnocentrismo do autor leva-o a
afirmar, na p. 43, que "America became democratic earlier than other countries" (o que já se viu ser historiograficamente falso) e, ao mesmo tempo, na p. 115, que "Blacks
have only been given a claim to political equality and economic opportunity since the 1960s". Therborn escreveu: "The method first developed by S. M. Lipset manages to
combine timeless correlations of democracy with wealth [...], literacy, urbanization, etc., with an almost total lack of interest in social dynamics and, in Lipset’s own case,
blatant distortions of fact" (1977:6-7). Juízo a propósito de artigo publicado por Lipset, em 1959, reverenciado pela disciplina, permanece apropriado ao que Lipset escreve
hoje, quase quarenta anos depois.
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* Desprezando ministérios provisórios ou interinos.
** Desprezando substituição, por morte, de Dale Coutinho (Exército); de Ney Braga (Educação) por ter-se desincompatibilizado tendo em vista eleições, e acrescentando
mais três ministérios militares (SNI, Casa Militar da Presidência e Comando do Estado-Maior das Forças Armadas) e um ministério civil (Casa Civil da Presidência), posições
elevadas a status ministerial pela lei no 6036 de 1o de maio de 1974.
*** Desprezando substituição, por morte, de Petrônio Portela.
**** FHC TOMOU POSSE EM 1/1/95; a contagem foi interrompida em maio de 1998.
Elaboração: Laboratório de Estudos Experimentais (LEEX).
ABSTRACT
Polyarchy in 3D
The article takes issue with positions that reduce representative systems to democratic linearity, considering how the latter is restricted to variations in forms of government and electoral systems that do not correspond to the growing complexity of national organizations. It is proposed that
a third dimension be added to Robert Dahl’s bidimensional model that is, eligibility from which it is possible to derive minimalist yet strict definitions of authoritarian systems, of representative systems in general, and of their oligarchical and polyarchical variations.
Keywords: democracy; polyarchy; representative system
RÉSUMÉ
Polyarchie en 3 Dimensions
L’article remet en question l’étroitesse de la linéarité démocratique des systèmes de gouvernement représentatifs, linéarité qui se limite aux variations des façons de gouverner et aux systèmes électoraux et qui, selon l’auteur, ne correspond pas à la complexité croissante des institutions
brésiliennes. Il suggère donc d’ajouter une troisième dimension, celle de l’éligibilité, au modèle bidimensionnel de Robert Dahl, d’où résulteront des définitions, minimalistes mais exactes, des systèmes autoritaires, des systèmes représentatifs en général ainsi que de leurs variables
oligarchiques et polyarchiques.
Mots-clé: démocratie; polyarchie; système représentatif
* Edson Nunes e Charles Pessanha leram e ofereceram observações críticas e editoriais, incorporadas aquelas que dobraram a teimosia do autor. Não lhes cabe, pois,
responsabilidade pelas impropriedades remanescentes. Giovana Linhares continua admirável assistente de pesquisa, além de manter em permanente aperfeiçoamento o
arquivo de dados do Laboratório de Estudos Experimentais LEEX. Sheila Sandes tem sido irrepreensível no apoio secretarial. Sou grato a todos.