CAPÍTULO 1
A ANÁLISE DOS ANTIGOS
E A ÁLGEBRA DOS MODERNOS
Descartes é suficientemente claro e incisivo, e as referências
relativamente abundantes, para que se possa hesitar sobre sua
ascendência metodológica. Nos principais momentos de reflexão sobre a
temática, ele sempre se reportou ao método de análise da geometria
antiga, enunciando sua clara intenção de “segui-lo”[1] em suas
investigações e, assim, confessando sua adesão a essa tradição. De forma
semelhante, referências à álgebra dos modernos se encontram quase que
regularmente nessas ocasiões, evidenciando sua consciência da estreita
relação metodológica existente entre as duas disciplinas e seu propósito
de filiar-se a elas. Poderemos ver a seguir que não faltarão indicativos,
nem tampouco ilustrações, a favor da tese de que Descartes se concebe,
paralelamente a algebristas de seu tempo, como descendente dos
geômetras gregos, praticantes do método de análise.
As primeiras referências ao método de análise e à álgebra se
encontram nas Regras, obra que se constitui na tentativa de uma
primeira elaboração do método cartesiano. Na Regra IV, cuja temática,
como diz seu cabeçalho, diz respeito exatamente à necessidade do
método para a procura da verdade nas coisas[2], Descartes afirma:
os antigos geômetras fizeram uso de uma espécie de análise, que estendiam à
resolução de todos os problemas, ainda que não a tenham transmitido à
posteridade. E, em nossa época, floresce um gênero de aritmética, que se chama
álgebra, que permite fazer no tocante aos números o que os antigos faziam em
relação às figuras. Essas duas disciplinas não passam de frutos espontâneos dos
princípios inatos de nosso método; e não me admiro que tenha sido nessas artes,
cujos objetos são muito simples, que eles, até aqui, cresceram com maior
facilidade que em outras, onde maiores obstáculos geralmente costumam abafá-
los, mas onde também, no entanto, se cultivados com sumo cuidado, poderão
chegar sem dúvida à perfeita maturidade (X, 373, 13-24; 1985, p. 25).
E conclui: “Foi o que me propus a fazer principalmente neste
tratado” (373, 25-26; 1985, p. 25), como que para dizer que seu método
é, ao mesmo tempo, um prolongamento dos poderes naturais da razão e
um polimento ou aperfeiçoamento do método de resolução de problemas
ilustrado pela geometria e pela álgebra, cuja abrangência irá muito além
desses campos, podendo “estender-se para fazer brotar verdades a
respeito de qualquer assunto” (374, 8-9; 1985, p. 26).
Mais adiante, na mesma regra, para não deixar qualquer sombra
de dúvida, o autor cita os nomes de Pappus e de Diofanto, matemáticos
gregos dentre os mais conhecidos nos séculos XVI e XVII, mas também
os principais divulgadores do método de análise (Pappus) e de sua
“generalização” (pelo menos aos olhos de Viète e do próprio Descartes)
para o campo da aritmética e da álgebra (Diofanto). Nesse mesmo local,
Descartes trata novamente da álgebra como prolongamento
metodológico da análise geométrica[3].
Como segundo locus de referência à filiação metodológica
cartesiana, o Discurso segue a mesma linha de raciocínio das Regras.
Com o objetivo de “procurar o verdadeiro método para chegar ao
conhecimento de todas as coisas de que meu[seu] espírito fosse
capaz” (VI, 17, 8-10; 1983, p. 36-37), seu autor afirma “ser mister
procurar algum outro método que, compreendendo as vantagens desses
três [praticados pela lógica, pela análise e pela álgebra], fosse isento de
seus defeitos” (VI, 18, 6-8; 1983, p. 37). Mais adiante, afirma que
“tomaria[rá] de empréstimo o melhor da Análise geométrica e da
Álgebra, e corrigiria[rá] todos os defeitos de uma pela outra” (VI, 20,
22-24; 1993, p. 40). Apesar de acrescentar uma terceira disciplina (a
lógica (VI,17, 12; 1993, p. 37)), em uma das duas ocasiões, Descartes
aqui também se põe abertamente como seguidor da prática analítica dos
antigos geômetras e dos que lhes seguiram[4].
Por fim, as Segundas respostas trazem um terceiro conjunto de
indicações sobre a tradição dentro da qual a metodologia cartesiana se
inclui. Perguntado sobre a possibilidade de “dispor minhas[suas] razões
segundo o método dos geômetras” (IX, 121; 1993, p. 166), Descartes
dirá como o tem seguido e pretende ainda segui-lo[5]. Depois de
distinguir, quanto ao “modo de escrever dos geômetras”, a “ordem” e a
“maneira de demonstrar”, ele procede à distinção entre a análise e a
síntese e afirma ter seguido a “via analítica” em suas Meditações[6]. Ora,
mais uma vez, Descartes é suficientemente claro, tanto quando afirma
estar “seguindo” (IX, 121; 122) os geômetras gregos em seu
procedimento analítico, como quando diz “imitá-los” (123), para
satisfazer seus opositores, em seu procedimento sintético[7].
Estas são as principais indicações de que Descartes, não só
conhecia a tradição dos praticantes do método de análise, mas também se
põe como seu membro, ao mesmo tempo continuador e revolucionário,
como veremos[8]. Alguém poderia contestar essa ascendência
metodológica cartesiana, uma vez que o método de análise foi
originariamente um método geométrico, restrito aos limites dessa ciência
dos antigos, enquanto que o método cartesiano é estendido para
disciplinas não-matemáticas e para a “nova” geometria. Mas é aí que se
encontram um dos méritos e a novidade cartesiana (em parte já realizada
pela álgebra): desvincular o método de análise do conteúdo estritamente
geométrico, por perceber que sua “lógica de descoberta” encarna a
própria lógica de funcionamento da razão humana[9]. Para Descartes, a
geometria antiga, contrariamente à lógica, foi o primeiro campo
privilegiado de manifestação dos poderes resolutivos da razão humana,
apesar das limitações que o conteúdo dessa ciência impunha.
Não se pode perder de vista, entretanto, a atitude crítica de
Descartes em relação a essa mesma tradição. Principalmente no Discurso
(mas também nas Regras (p. ex., X, 377, 2-9)), o autor apresenta
objeções à prática e à atitude dos geômetras e dos algebristas. Por isso,
como diz a Segunda Parte da primeira obra, ele pretende tomar somente
“o melhor da Análise geométrica e da Álgebra” e corrigir “os defeitos de
uma pela outra” (VI, 20, 22-24; 1983, p. 40). Segundo Descartes, o
defeito comum dessas duas disciplinas é “de se estenderem apenas a
matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso”, uma vez
que, enquanto matemáticas puras, não são aplicáveis aos problemas
concretos da física e às artes mecânicas em geral. No que diz respeito aos
procedimentos metodológicos propriamente ditos, a “Análise dos
Antigos” “permanece tão adstrita à consideração das figuras, que não
pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação”,
enquanto a “Álgebra dos modernos” esteve de tal modo sujeita “a certas
regras ou certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que
embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva” (VI, 17,
27-18, 5; 1983, p. 37). Assim, a geometria, se apoiando excessivamente
sobre as figuras e sobre a imaginação (que as “visualiza”), acaba por
fatigar essa capacidade e por faltar em generalidade. Na verdade, a
geometria procede sempre sobre uma figura concreta e, assim, faz novos
cálculos para cada caso particular, enquanto que, se fossem consideradas
as figuras em sua generalidade, o procedimento seria comum para todos
os casos. Nesses termos, essa ciência atua sobre a representação sensível
do objeto, em sua concretude e particularidade, fatigando
excessivamente o espírito (a imaginação)[10]. Por sua vez, a álgebra, ao
perder o auxílio da imaginação e se apoiar sobre regras e sobre uma
simbologia confusa e diversificada (principalmente a cóssica)[11], ainda
que adquira certa generalidade e alivie o trabalho da memória[12],
obscurece a força do espírito, dado que os passos do cálculo são feitos
em função da aplicação cega e mecânica daquelas regras (e não em razão
do exame da configuração do problema) e a simbologia usada, pela sua
“desfiguração”, acaba obscurecendo a clara percepção das relações entre
os objetos[13].
Seja como for, parece inequívoca a filiação de Descartes a essa
tradição dos praticantes da análise. Os intérpretes, em sua grande
maioria, reconhecem não meramente a inspiração matemática da
metodologia cartesiana, mas também sua procedência analítica[14].
Entretanto, há de se assinalar um fenômeno estranho na história do
cartesianismo: não há propriamente estudos, por parte dos especialistas
de Descartes, sobre o método de análise dos geômetras gregos (e
algebristas) e sua relação com o método cartesiano, bem como não há
indicativos de que a maioria desses estudiosos (até recentemente) tenha
se beneficiado das pesquisas e dos debates realizados pelos historiadores
da matemática[15]. Em outras palavras, os estudiosos da metodologia
cartesiana parecem ter tratado dessa temática sem relacioná-la à sua
fonte de inspiração, permanecendo alheios à história do método. É ao
preenchimento dessa lacuna que se destina, em primeiro lugar, o texto
abaixo[16].
Dentro dessa perspectiva, a Parte I do presente estudo tem como
seu primeiro objetivo proceder à vinculação e à transição entre os antigos
geômetras e Descartes, de forma a construir a passagem da metodologia
dos primeiros à do segundo. Ele será efetivado em dois momentos. O
primeiro, cumprido pelo presente capítulo, consiste em examinar a
natureza e as principais características do método de análise, praticado
pelos gregos, bem como em analisar os procedimentos da ciência
algébrica nascente, enquanto extensão ou prolongamento desse método.
O segundo momento, efetivado no capítulo seguinte, pretende apresentar
o problema de Pappus, exposto na Geometria, como ilustração da
atuação da metodologia cartesiana, de sua estrutura e características, bem
como meio de “comprovação” da filiação do filósofo à tradição dos
praticantes do método de análise. Com isso, um outro objetivo é
cumprido, o de oferecer, por meio do estudo dessa última obra (de parte
dela), um primeiro quadro, razoavelmente definido, do método
cartesiano, ainda que restrito ao campo da ciência matemática. O método
de Descartes, desde já, apresenta sua filiação, bem como suas
características marcantes ou linhas distintivas.
1.1 O método de análise dos geômetras gregos
A análise, cuja origem muitas vezes é atribuída a Platão[17] e
cuja influência foi extremamente fecunda ao longo da história do
pensamento ocidental[18], é um método empregado pelos geômetras
gregos na atividade de resolução de problemas (análise problemática) e
de demonstração de teoremas (análise teorética). Sua característica
distintiva, conforme sua acepção mais geral, é a de ser um método que
procede, de alguma forma, de trás para frente ou contra a corrente, por
partir do fim (da solução do problema ou da verdade do teorema),
assumindo-o como atingido, para chegar a algo anterior, efetivamente
dado ou conhecido. Somente depois, por meio de sua etapa
complementar (a síntese), procede-se, a partir do que foi alcançado na
análise, ao estabelecimento da solução do problema ou da verdade do
teorema.
No caso da análise teorética, a etapa analítica começa por
assumir como verdadeiro o teorema que deseja provar. A partir dessa
pressuposição inicial, ela procura encontrar uma condição anterior, da
qual o teorema possa ser derivado e, sucessivamente, uma outra
condição anterior à primeira, até que se chegue a uma verdade já
demonstrada ou a um primeiro princípio. Conquistada uma tal
proposição (um axioma ou um teorema já conhecido), procede-se à
demonstração do teorema inicial, começando pelos resultados do
procedimento anterior e pela inversão de seus passos, até se ter cumprido
o objetivo (a prova do teorema). Na análise problemática, de forma
similar, começa-se por assumir o problema resolvido, isto é, sua solução
como dada. A partir dessa pressuposição, procura-se encontrar
sucessivamente etapas anteriores que possibilitem resolver o problema
inicial ou derivar a solução, até se ter encontrado um ou mais elementos
já dados ou passíveis de construção. Atingido esse estágio, será possível
proceder efetivamente à resolução do problema, pela inversão de seus
passos, começando-se pelas etapas finais do procedimento anterior, até
se chegar ao que foi pressuposto inicialmente[19].
Geralmente chamado de método de análise, na verdade, esse
método deveria ser chamado de método de análise-e-síntese, como têm
insistido HINTIKKA e REMES (1974, p. 17)[20], mas também como se
pode constatar aqui e mais adiante, pelas descrições existentes desse
método e pela própria prática dos geômetras. Uma vez que o seu
objetivo não é somente a descoberta dos elementos que supostamente
constituiriam a prova de um teorema ou a solução de um problema, mas
também a posterior demonstração de que o que foi descoberto
efetivamente prova a verdade do teorema ou soluciona o problema, o
método se constitui em um procedimento conjugado de descoberta (a
etapa analítica) e de prova (a etapa sintética). Entretanto, como foi
comum eliminar a etapa analítica[21] por ocasião da elaboração final dos
tratados (exatamente por ser um procedimento de descoberta), tem
prevalecido, dentro da história desses conceitos e de sua interpretação, a
separação das duas etapas, como se fossem dois métodos, ao invés da
manutenção da complementaridade entre elas[22]. Seja como for, será
importante ter sempre em mente, também para os propósitos da presente
pesquisa, a unidade desses dois procedimentos complementares[23].
Como é reconhecido pelos especialistas, o texto de Pappus (300
d. C.), no início do Livro VII de sua Coleção matemática, é a mais
completa e a mais informativa das descrições que chegaram até nossos
dias. Os gregos deixaram pouquíssimos textos que tratam do assunto[24].
Em razão disso, a discussão mais detalhada da natureza e das
características desse método gira em torno da compreensão e
interpretação desse texto, ao lado de ilustrações extraídas da prática dos
geômetras. Assim sendo, segue abaixo a famosa passagem do texto de
Pappus:
O assim chamado Tesouro da Análise, meu filho Hermodoro, é, em resumo, um
corpo especial de doutrinas preparado para o uso daqueles que, depois de terem
examinado os elementos comuns, desejam adquirir a capacidade de resolver
problemas teoréticos que lhe são propostos; e ele é útil somente para esse
propósito. É resultado do trabalho de três homens: Euclides, o autor dos
Elementos, Apolônio de Perga e Aristeu, o Antigo, e procede pelo método de
análise e síntese.
A análise é o caminho que parte daquilo que é procurado – considerado como se
fosse admitido – e segue, em ordem, através de seus concomitantes [akólouthon,
cuja tradução usual é “conseqüências”], até algo admitido na síntese. Pois, na
análise, supomos o que é procurado como já tendo sido feito e investigamos
aquilo do qual ele resulta, e de novo qual é o antecedente deste último, até que,
no nosso caminhar para trás, alcancemos algo que já é conhecido e primeiro na
ordem. A um tal procedimento chamamos de análise, por ser uma solução de trás
para frente. Na síntese, por outro lado, tomamos como já feito aquilo que na
análise foi por último alcançado e, arranjando em sua ordem natural como
conseqüente o que antes era antecedente e conectando-os uns aos outros,
chegamos por fim à construção da coisa procurada. E a isso chamamos síntese.
A análise é de duas espécies. Uma procura a verdade, sendo chamada teorética.
A outra serve para produzir o que se desejava fazer, e essa é chamada
problemática. Na espécie teorética, supomos a coisa procurada como existindo e
sendo verdadeira, e então passamos em ordem pelos seus concomitantes
[conseqüências], como se fossem verdadeiros e existentes por hipótese, até algo
admitido; então, se aquilo que é admitido é verdadeiro, a coisa procurada é
também verdadeira, e a prova será o reverso da análise. Porém, se chegarmos a
algo que é falso admitir, a coisa procurada também será falsa. Na espécie
problemática, supomos a coisa desejada como sendo conhecida e então
passamos, em ordem, pelos seus concomitantes [conseqüências], como se fossem
verdadeiros, até algo admitido. Se a coisa admitida é possível ou pode ser feita,
isto é, se ela for o que os matemáticos chamam de dado, a coisa desejada será
também possível. A prova será novamente o reverso da análise. Mas se
chegarmos a algo impossível de admitir, o problema será também impossível[25].
Como se pode perceber, o texto de Pappus, após se referir ao
“Tesouro da Análise” e a geômetras mais antigos que elaboraram um
corpo de doutrinas ou um conjunto de material útil para o tratamento de
problemas complexos, oferece uma caracterização geral da análise e da
síntese e, por fim, apresenta os dois tipos de análise. Não é difícil de
perceber, também, a atuação conjunta e complementar de suas duas
etapas. Tanto no caso da análise teórica quanto da análise problemática, o
procedimento analítico não representa a demonstração do teorema, nem a
resolução do problema. A etapa analítica é a procura da prova ou da
construção da solução; ela é um procedimento de descoberta, de
invenção e emprega procedimentos heurísticos antes que demonstrativos.
É à síntese, como etapa complementar, que cabe o estabelecimento da
verdade do teorema ou a efetiva resolução do problema, por meio da
inversão dos passos descobertos na análise.
A descrição de Pappus, entretanto, apresenta vários problemas,
como reconhecem os intérpretes. Dentre eles, destaca-se o problema da
natureza dos passos da etapa analítica e de seu aspecto direcional. Os
estudiosos têm tradicionalmente procurado, em suas investigações,
determinar se a análise consiste em extrair conseqüências lógicas do
pressuposto inicial (o teorema que se pretende provar ou a solução do
problema) ou, pelo contrário, se ela procura remontá-lo a suas condições
ou antecedentes e, com isso, determinar se ela é descendente ou
ascendente[26].
O debate, desde o final do século passado, tem dado origem a
posições antagônicas. Dentre elas, destacam-se quatro: a) a primeira,
amplamente dominante até pouco tempo e, como tal, denominada de
interpretação tradicional, considera a análise como dedutiva (e
ascendente somente por se opor à síntese); b) a segunda a vê como
exclusivamente ascendente e não-dedutiva; c) a terceira atribui a Pappus
a descrição de dois métodos distintos, apesar da aparência de estar
tratando de um único; d) a última considera o problema da direção da
análise um problema superficial e propõe uma alternativa à
“interpretação direcional”, comungada pelas interpretações anteriores.
Como o tema foi exaustivamente discutido ao longo desse século, ele
será apresentado através do próprio debate, travado entre os vários
intérpretes. A interpretação assumida aqui segue as linhas gerais (por
vezes, também pontuais) daquela exposta pelos defensores da última
posição e por outros que seguiram seus passos[27].
Conforme salientaram vários intérpretes, tem sido comumente
aceito, desde HANKEL e CANTOR (apud ROBINSON, 1983, p. 5, n.
1), passando por HEATH (1956, p. 137-142)[28], até estudiosos mais
recentes, que a análise é um procedimento dedutivo, cujo objetivo é
extrair conseqüências do pressuposto inicial, assumido como dado, até se
chegar a algo reconhecidamente verdadeiro ou dado. Seguindo Heath e
Robinson, pode-se caracterizá-la da forma apresentada abaixo. Se for
requerido provar que uma proposição A seja verdadeira (neste caso, seria
uma análise teorética, mas o mesmo raciocínio vale para a análise
problemática), assume-se por hipótese a verdade de A e pergunta-se o
que dela se segue. Descobre-se que, se A for verdadeira, uma outra
proposição B também o será. Considerando o que se segue de B,
descobre-se que se B for verdadeira, C também o será. Procede-se, desse
modo, até se atingir uma proposição K, que seja reconhecida como
verdadeira de forma independente. Essa proposição K pode ser tanto um
axioma, um teorema já demonstrado ou uma construção que se sabe
possível. O importante é que ela seja conhecida independentemente de
A. Feito isso, a análise dá lugar à síntese, cujo objetivo é inferir, na
ordem reversa, que A será verdadeira também, dado que K é verdadeira.
Pode-se perceber claramente que a etapa analítica é interpretada
como um processo dedutivo, da mesma forma que a etapa sintética.
Esquematicamente, a análise segue a seguinte seqüência: A®B®C®…
®K. A síntese segue a ordem contrária: K®…®C®B®A. Essa
interpretação, como reconhecem os autores, pressupõe que os vários
passos da cadeia sejam incondicionalmente convertíveis. Em outras
palavras, as implicações devem ser recíprocas, pois, como salienta
HEATH (1956, p. 139), dado que do falso é possível extrair o verdadeiro
(como dizia Aristóteles), a verdade de A só estará garantida diante da
completa reversibilidade das implicações. Dentro dessa perspectiva, a
descrição da etapa analítica tem sido geralmente traduzida de forma
distinta daquela dada na citação fornecida acima, cuja modificação
fundamental é a substituição do termo “concomitante” por “sucessivas
conseqüências”, conforme está posto entre colchetes[29].
Essa interpretação possibilita compreender também o que é dito
no final da citação de Pappus, no caso da análise chegar a algo
reconhecidamente falso ou impossível. Segundo tais autores, somente se
cada passo for incondicionalmente recíproco, pode-se assegurar que, sob
o ponto de vista lógico, diante da falsidade de K (como resultado da
análise) segue-se imediatamente a falsidade de A, sem a necessidade de a
síntese ser efetuada, conforme diz Pappus. Portanto, o pressuposto da
reciprocidade dos passos representa a garantia lógica de que, diante de
um resultado negativo da análise, a síntese é dispensada e a proposição
inicial é falsa, ou o problema é impossível. Disso se segue, conforme
alguns salientam (p. ex., ROBINSON, 1983, p. 6; HEATH, 1956, p.
140), que a reductio ad absurdum é um caso especial de análise[30].
Entretanto, essa interpretação tradicional apresenta, pelo menos,
dois grandes problemas. O primeiro diz respeito ao fato de que, a priori,
não se pode assumir que todas as proposições geométricas sejam
recíprocas. Na verdade, afirma HEATH (1956, p. 139), um grande
número de teoremas da geometria elementar é incondicionalmente
convertível e, com isso, na prática, não há grande dificuldade de se tratar
o problema. Entretanto, ninguém pode garantir que elas são sempre
convertíveis. Tais autores reconhecem o problema, mas apontam
geralmente que, se um passo não for incondicionalmente convertível, ele
poderá se tornar mediante certa condições adicionais, dentre as quais
destaca-se a função desempenhada pelo diorismos[31].
O segundo problema diz respeito à conciliação das várias
afirmações sobre a etapa analítica. Mesmo traduzindo os termos
supracitados por “sucessivas conseqüências”, ao invés de traduzir por
“concomitantes” ou mesmo por “sucessão de passos
subseqüentes” (como será o caso de Cornford), resta a conciliar essa
visão dedutivista da análise com o que vem a seguir, no meio do segundo
parágrafo do texto de Pappus. Com efeito, a segunda frase da
caracterização geral da análise, como todos admitem, afirma: “Pois, na
análise, supomos o que é procurado como já tendo sido feito e
investigamos aquilo do qual ele resulta, e de novo qual é o antecedente
deste último, até que, no nosso caminhar para trás, alcancemos algo que
já é conhecido e primeiro na ordem. A um tal procedimento chamamos
de análise, por ser uma solução de trás para frente”. Isso significa
claramente, pelo menos em uma primeira leitura, que à análise não cabe
extrair conseqüências lógicas, mas, ao contrário, a ela se atribui a busca
de antecedentes ou de premissas e, como tal, ela é verdadeiramente um
movimento ascendente e não-dedutivo.
A solução desses intérpretes, de um modo geral, consiste em
afirmar que, aqui, Pappus está descrevendo a análise em comparação à
síntese, ou seja, em relação à etapa realmente demonstrativa, que segue a
“ordem natural”. Em outras palavras, como diz ROBINSON (p. 14-15),
“A razão pela qual [Pappus] se expressa dessa forma inesperada é porque
está encarando a análise como existindo em função da síntese; isso o faz
descrever os passos da análise não como aparecem na ocasião em que
ela está sendo feita, mas como aparecem na síntese subseqüente”. Além
disso, a “não-naturalidade” da análise em contraposição à ordem natural
seguida pela síntese não significa que a primeira seja ascendente e não-
dedutiva, mas somente que, apesar de dedutiva, “partimos de uma
proposição que não sabemos se é verdadeira e a tratamos como se
soubéssemos que fosse”; e isso não é uma atitude natural. Por fim,
completa HEATH (1956, p. 140), a síntese está sempre lá para averiguar
ou confirmar a reversibilidade dos passos.
Apesar dessas tentativas para solucionar tais problemas, esta
concepção tradicional tem enfrentado resistências da parte de alguns
historiadores da matemática ou de estudiosos do pensamento grego, até
receber uma crítica mais frontal da parte de Cornford. Historiadores
como Duhamel e Zeuthen já haviam reconhecido uma certa ambigüidade
ou duplicidade na descrição de Pappus. DUHAMEL (apud SOUZA, p.
67-68; 75-76) aceitou a existência de uma análise ascendente em Pappus,
mas logo se apercebeu das dificuldades de um tal procedimento e o
reservou para casos onde a análise descendente se mostrou impossível,
por não serem os passos recíprocos. Mas, nesse caso, dificilmente poder-
se-ía chamar uma tal procedimento de metódico, pois muitas vezes ele
poderia resultar em nada. Essa idéia foi claramente expressa por
Zeuthen, quando disse que a análise ascendente, ainda que pudesse ser
fecunda, estaria acometida por uma certa incerteza (ou adivinhação) que
a desqualifica enquanto método.
A exposição mais completa da análise como movimento
exclusivamente ascendente é a de CORNFORD (1932). Segundo esse
autor, a análise não é um procedimento dedutivo, pois consiste em
investigar, não o que se segue da proposição inicial ou da solução
assumida como dada, mas em procurar saber de que proposição ela se
segue, prosseguindo para trás até se ter alcançado algo
independentemente conhecido ou dado. Em outras palavras, ao contrário
da posição anteriormente defendida, a análise não começa pela busca do
que é implicado por A, mas pergunta o que poderia implicar A. Nesse
caso, ela seguiria a seguinte seqüência: A¬B¬C¬…¬K. A síntese
continuaria como na interpretação anterior: K®…®C®B®A. Como
suporte à sua posição, Cornford argumenta que, tradicionalmente,
Pappus foi mal traduzido, quando os intérpretes entenderam se tratar, na
análise, da busca de conseqüências e traduziram por “sucessivas
conseqüências” (ver termos entre colchetes, na citação de Pappus) o que
na verdade significa apenas “a sucessão de passos subseqüentes”, sem
sentido lógico, mas apenas temporal[32]. E, assim, conclui o autor, a
análise é exclusivamente um movimento ascendente de busca de
premissas, não se constituindo em um processo de dedução. A síntese,
sim, é dedutiva e a favor da corrente; e, nesse caso, torna-se clara a
afirmação de Pappus, quando diz que a síntese arranja “em sua ordem
natural como conseqüente o que antes era antecedente”, enquanto a
análise é não-natural e atua contra a corrente[33].
O maior problema da interpretação de Cornford é que ela se
apóia sobre a completa exclusão da possibilidade dos passos
proposicionais serem recíprocos, não podendo representar, assim,
conseqüências lógicas nos dois sentidos. Sua maior fraqueza consiste em
ter afirmado (CORNFORD, p. 41, apud ROBINSON, p. 9) que “não se
pode seguir a mesma seqüência de passos primeiro num sentido, e
depois no sentido contrário, e se chegar a conseqüências lógicas nas
duas direções”. Como mostra ROBINSON (p. 9-10), “se esse princípio
fosse verdadeiro, o método de análise, tal como descrito pelos
historiadores da matemática, seria uma impossibilidade lógica; e se os
geômetras gregos realmente supunham utilizar um tal método, estavam
grosseiramente enganados”. Ora, esse “absurdo lógico” não pode ser
atribuído aos geômetras gregos, nem os historiadores poderiam ter
inadvertidamente partilhado uma tal concepção. Como mostra a prática
dos geômetras antigos (e o erro de Cornford está em não tê-la
examinado), continua Robinson (seguindo o que já dizia Heath), a
maioria das proposições são recíprocas (ou passíveis de se tornarem
recíprocas), ainda que não de forma tão evidente como na matemática
moderna[34]. Evidentemente, confessa ele, a seqüência de passos nem
sempre é exatamente a mesma na análise e na síntese, e muitas vezes
proposições auxiliares são necessárias, para funcionarem não como “elos
da cadeia”, mas como “pinos que mantém os elos unidos” (ROBINSON,
p. 12), não como a água da corrente do rio, mas como as “margens da
corrente” (p. 13). E conclui: isso não é uma objeção à interpretação
tradicional, mas mostra somente que “raciocinamos por entimemas” (p.
12). Além disso, se Cornford estivesse correto, Pappus teria cometido
um erro lógico, ao firmar que, “se chegarmos a algo que é falso admitir,
a coisa procurada também será falsa”: não sendo a análise dedutiva, ela
não poderia garantir, diante da conquista de algo reconhecidamente
falso, a falsidade de seu ponto de partida, pois premissas falsas podem
originar conclusões verdadeiras[35]. Logo, a interpretação de Cornford,
apesar de parcialmente sustentada por outros historiadores, não consegue
se tornar mais convincente que a posição dominante.
Em função da existência dessas duas interpretações
incompatíveis, cada uma apoiada sobre partes do relato de Pappus,
Gulley sustenta que Pappus descreve duas formas distintas da análise
geométrica. Para isso, ele se apóia também em evidências externas ao
relato. Não há dúvida, diz GULLEY (1983, p. 18-19), de que
ARISTÓTELES nos Segundos analíticos (78a, 10-13), entre outros
autores antigos, era consciente de que um grande número de proposições
geométricas era convertível; mas nem por isso deixou de caracterizar o
método dos geômetras, na Ética a Nicômaco (III, 1112b, 20-ss)[36],
como um movimento ascendente, quando o comparou ao processo de
deliberação de uma ação humana. De forma semelhante, Pappus está
descrevendo, na verdade, duas abordagens diferentes da análise
geométrica, uma ascendente, quando trata do sentido da análise em
geral, e outra descendente, quando descreve os dois tipos de análise e
assinala as conseqüências diante de um resultado negativo. Assim, ao
invés de um único método, diz GULLEY (p. 26-27), Pappus estaria
apresentando inadvertidamente duas formulações distintas do que
pensou ser um mesmo método.
A maior objeção à posição de Gulley, como dirão HINTIKKA e
REMES (1974, p. 13), é que ela não consegue reconciliar as diferentes
partes da descrição de Pappus e acaba por acusá-lo de inconsistência.
Por outro lado, se uma tal acusação a um matemático desse porte é
inadmissível, as conclusões de Gulley mostram que deve haver algo a
ser revisto no que diz respeito ao conjunto de todas as interpretações
anteriores, uma vez que a posição desse intérprete é, por assim dizer,
delas decorrente.
Nessa perspectiva, a interpretação de Hintikka e Remes não
parte somente da insuficiência e das dificuldades das interpretações
anteriores, como cada uma fazia com sua adversária, mas constata
também que todas elas partilham de pressupostos comuns, dentre os
quais se destaca o problema direcional do método, aquele que se
interessa em saber se a análise é descendente ou ascendente e se seus
passos formam seqüências dedutivas ou não. A demasiada preocupação
com a direção dos passos proposicionais, além de não fornecer uma
interpretação satisfatória do relato de Pappus, acabou por negligenciar
outros elementos característicos desse método, tais como seu valor
heurístico e a não-trivialidade de sua lógica (HINTIKKA e REMES,
1974, p. 2-3). Partindo de um novo estudo da terminologia, cuja
principal inovação é a tradução do polêmico termo “akólouthon”,
utilizado para caracterizar o percurso que parte da conclusão desejada
para as premissas, por “concomitante” ou “o que vai juntamente
com” (p. 15)[37], contrariamente a outros termos que descrevem o
percurso dedutivo[38] das premissas para a conclusão, tais autores
mostram que o problema direcional é um problema superficial, ou até
insolúvel, mantida sua formulação tradicional. Em outras palavras, uma
interpretação simples e dentro do quadro que vinha sendo feita se
mostrará sempre inviável[39].
Como tentativa de examinar com mais detalhes a problemática,
uma vez reconhecida sua complexidade, o primeiro ponto a considerar é
a unidade do método de análise-e-síntese. Como HINTIKKA e REMES
(1974, p. 17) salientam, tanto a descrição do método como a prática
geométrica mostram tratar-se aqui de um método conjugado de análise e
síntese. Sendo duas as etapas do método, ambas em princípio
indispensáveis, não se pode pretender entendê-lo senão em seu conjunto
e por meio da determinação exata das características e funções próprias
de cada uma delas. Elas (e suas partes) serão estudadas mais adiante[40].
Em segundo lugar, é muito importante avaliá-lo sob a
perspectiva de sua fecundidade e poder heurístico, mesmo porque foi
como procedimento de descoberta que se tornou conhecido, adquiriu
notoriedade e se tornou influente ao longo dos séculos. Dentro dessa
perspectiva, não se justifica a acusação dos partidários da análise
dedutiva de que uma interpretação exclusivamente ascendente
significaria sua descaracterização como método, pois ela seria muito
mais adivinhação e intuição[41] que um procedimento regulado ou
normatizado. Nada poderia estar tão longe da verdade, afirmam os
autores, pois as regras que dizem quando uma determinada conclusão se
segue dedutivamente de uma premissa (ou de um conjunto de premissas)
também funcionam no sentido contrário, dizendo se uma determinada
premissa (ou um conjunto delas) pode(m) acarretar uma certa conclusão
dada. Visto que, concluem eles, não há “razão objetiva” alguma para
uma tal assimetria entre as duas direções (a única diferença é que uma é
mais familiar do que a outra), o geômetra pode proceder contra a
corrente por meio do mesmo esquema se procedesse a favor da corrente.
Conseqüentemente, não há relação alguma entre o aspecto direcional da
análise e sua utilidade heurística (HINTIKKA e REMES, 1974, p. 18-19)
[42].
Nessa sentido, estes autores oferecem uma interpretação muito
mais rica e convincente, além de isenta de problemas semelhantes
àqueles enfrentados pelas outras interpretações. Como se pôde perceber
nas discussões anteriores, a análise e a síntese foram caracterizadas a
partir da perspectiva de uma via de mão dupla, cuja preocupação era a de
saber em que sentido cada uma das etapas a percorria de uma
extremidade a outra, sempre de forma linear e enfatizando os passos
proposicionais, antes de privilegiar a singularidade do método e os
mecanismos por ele utilizados, dos quais esses passos eram resultantes.
Em outros termos, o problema direcional da análise não era senão
reflexo de uma “interpretação proposicional”, caracterizada basicamente
pela linearidade de seus passos e pelo descuido para com a construção
desses mesmos passos. Em contraposição a essa interpretação, esses
autores elaboram uma outra que vê a análise como uma “análise de
configurações” (HINTIKKA e REMES, 1983, p. 39) ou, mais
propriamente, no caso específico da geometria, como uma “análise-de-
figuras” (1974, p. 32). Segundo essa nova interpretação, em resposta à
pergunta: “afinal, o que a análise analise?” (1974, p. 31), deve-se
responder que ela analisa a configuração geométrica dada (ou
ampliada), em função da descoberta da prova do teorema ou da
construção do problema. O objeto da análise geométrica é
fundamentalmente a figura, isto é, a complexidade dos objetos
geométricos envolvidos, suas inter-relações e interdependências (p. 32),
em função da questão proposta. Desse modo, os passos da análise são
passos de objetos geométricos para outros objetos geométricos, e não
entre verdades ou mesmo entre proposições geométricas[43]. O analista
não tem, portanto, sua atenção voltada para a estrutura formal que se
estabelece entre uma proposição e outra, porque atua diretamente sobre o
conteúdo apresentado; não se interessa também pela direção das relações
lógicas entre elas, pois, na verdade, a etapa analítica não tem (ou não
precisa ter) direção alguma, simplesmente porque é anterior a qualquer
ordenamento propriamente dito ou é a própria descoberta ou constituição
desse ordenamento[44].
A primeira característica da análise é, pois, sua atuação direta e
sem intermediação (de entidades lingüísticas, de regras de inferência, de
um aparato lógico-formal, etc.) sobre a figura ou sobre os objetos
geométricos que a compõem. Nesse caso, é verdade, ela se apóia sobre o
ato de “intuir”, como dizia Cornford; porém, não no sentido dado por ele
(de “adivinhar”, de confiar na sorte para encontrar uma premissa), mas
em um sentido por assim dizer cartesiano, na medida em que o analista
olha para a configuração dada, manipula seus elementos componentes e
procura ver ou intuir (e construir) as relações que ela esconde. Poder-se-
ia mesmo dizer que a análise geométrica antecipa a crítica cartesiana à
lógica, uma vez que mostra como constituir uma ciência sem o aparato
lógico, sem regras formais e com uma atuação da “razão” diretamente
sobre o conteúdo ou sobre a complexidade “material” dada.
Liga-se a essa característica a necessidade do método atuar
sempre sobre um caso concreto da configuração em exame. Conforme
diz PROCLUS (apud HEATH, 1956, p. 129-131), o primeiro passo em
toda proposição euclidiana (problema ou teorema) é sua enunciação
geral (prótasis), na qual se encontram tanto o que é dado (dedomena)
quanto o que é procurado (zetoumenon). Essa enunciação não se refere a
nenhuma configuração em particular, mas a toda e qualquer
configuração geométrica que satisfaça o enunciado. Ela não diz respeito
a este ou aquele triângulo, a este ou aquele círculo, mas a qualquer
triângulo, a qualquer círculo, isto é, a qualquer objeto do tipo referido na
proposição. Nesse caso, diante da não-disponibilidade de uma
simbologia que a capacite a atuar dentro de uma forma mais geral e
abstrata (como é o caso da geometria analítica), a geometria antiga
precisa atuar sobre um caso particular[45]. Esse segundo passo no exame
de uma proposição euclidiana é sua explicitação ou exibição particular
(ekthésis)[46]. Em termos da lógica moderna, a passagem para esse
segundo passo implica uma “instanciação” da enunciação geral
(HINTIKKA e REMES, 1974, p. 35). Essa instanciação vem
acompanhada da representação gráfica da configuração geométrica, ou
seja, da figura desenhada sobre o papel, prática geométrica que facilita
ou fortifica ainda mais a interpretação da análise como análise-de-figura,
uma vez que, desse modo, os objetos podem ser melhor examinados no
interior da complexidade dada e em função de suas inter-relações e
interconexões aí presentes (dadas e construídas)[47].
A segunda característica do método de análise é sua capacidade
de lidar com a estrutura do enunciado em questão (ou da problemática
fornecida) e de utilizá-la da melhor forma, para extrair o máximo de
informações que dispõe. A famosa frase “suponha o problema resolvido”
ou outra equivalente[48] não é um mero artifício lingüístico ou retórico,
sem conseqüência heurística. Por meio dela, a análise considera o
desconhecido como dado ou como se fosse conhecido e, com isso, utiliza
a sua “presença” e o poder heurístico que fornece. A fecundidade da
etapa analítica provém da utilização dos poderes do procurado, da sua
“força lógica”, como dizem HINTIKKA e REMES (1974, p. 35). Mas
isso não significa que se deva ir do procurado (zetoumenon) em direção
ao dado (dedomena), seja extraindo conclusões, seja buscando
premissas, como muitos pretendem. Sendo ambos dados, ainda que a
“dação” de cada um seja distinta, a análise os utiliza, como melhor lhe
aprouver. A postura do analista é a de estabelecer ou construir relações
úteis entre todas as entidades dadas ou disponíveis, no interior da
complexidade em exame, tendo sempre em mente que seu objetivo final
é a determinação do desconhecido pelo conhecido[49].
Nesse caso, pode-se dizer que a análise pretende preencher o vão
existente entre o que realmente é dado e conhecido e o que é procurado e
desconhecido, atuando indistintamente sobre os dois “extremos da
cadeia”, tanto de forma conjunto quanto separada. Assim, a descrição de
Pappus da análise como movimento de trás para frente é o
reconhecimento de que o fim desejado, estando sob os olhos do analista,
é realmente utilizado heuristicamente ao longo do processo analítico,
sem nunca perder de vista o fato de ser, na realidade, conseqüente ou
conclusão, cujas premissas devem ser encontradas. Dentro dessa
perspectiva, poder-se-ia dizer que a análise, “intencionalmente”, é um
movimento ascendente, como Pappus parece realmente afirmar.
HINTIKKA e REMES admitem que a descrição da análise de Pappus
reflete a “situação lógica” (1974, p. 18) do método, no sentido de que,
efetivamente, ela pretende buscar os passos dos quais o teorema e a
construção se seguem[50]. Entretanto, a prática geométrica é
predominantemente dedutiva, cuja razão principal é que um
procedimento rigorosamente ascendente é, se não pouco viável, pelo
menos muito limitante, uma vez que a fecundidade e o poder heurístico
do método se ampliam pela utilização conjunta, do zetoumenon e do
dedomena, bem como de todos os axiomas conhecidos e dos resultados
já demonstrados anteriormente. A tentativa de proceder, pois, somente a
partir do zetoumenon restringiria os poderes do método, como também
poderia significar a falta de critérios na escolha do caminho a seguir,
conduzindo o analista, por vezes, para mais longe do dedomena[51].
Assim, na prática, o geômetra procede dedutivamente tanto a partir do
que é dado quanto do que é procurado, apoiando-se seja em um ou em
outro, seja em ambos.
A terceira característica da análise é sua capacidade de introduzir
novos objetos geométricos e, conseqüentemente, de enriquecer a
configuração inicial. Por ocasião do exame de um teorema ou de um
problema, a configuração apresentada em sua enunciação geralmente não
é suficiente para que a análise seja conduzida com sucesso, tendo
necessidade de ampliar a figura por meio de construções auxiliares. Em
outros termos, as construções auxiliares são necessárias para o
estabelecimento de relações ou de passos intermediários entre os objetos
examinados, na tentativa de conectar o que é dado (conhecidos) com o
que é procurado (desconhecido): é comum ser preciso introduzir novos
objetos para que a cadeia de dependências entre os elementos do
problema seja construída ou exibida de forma completa e satisfatória.
Desse modo, a introdução de novos objetos afasta, ainda mais, a análise
de ser meramente linear, mas também a afasta de qualquer procedimento
totalmente previsível, dado que as construções auxiliares acrescentam
ramificações ou elementos novos, pretensamente fecundos à resolução
da dificuldade proposta.
Essa característica é, ao mesmo tempo, segundo HINTIKKA e
REMES (1974, p. 44), um dos aspectos mais importante do
procedimento analítico, pois a escolha acertada das construções
representa em geral o passo mais importante em direção à possibilidade
de se encontrar a prova do teorema ou a solução do problema, mas
também traz uma certa incerteza, pois não se sabe, de antemão, se as
construções introduzidas serão suficientes. Nesse sentido, as construções
auxiliares representam a fecundidade do método, mas também sua
“instabilidade”, pois não se pode, em geral, garantir antes da síntese que
ela tem sido bem-sucedida[52].
Existem ainda três observações a serem feitas sobre as
características da análise, antes do exame de um exemplo. A primeira diz
respeito a uma primeira versão do método, a redução (apagogé). Há
evidências de que essa concepção de análise (ou esse tipo especial de
análise) foi empregada por Hipócrates de Quios (primeira metade do séc.
V a. C.)[53] ou até pelos primeiros pitagóricos, como Teodoro de Cirene
e Arquitas de Taranto. PROCLUS (apud HEATH, 1956, p. 135) atribui a
Hipócrates a invenção do método apagógico, que consistia na redução de
um problema a outro, na redução ou recondução de um problema mais
complexo a um outro mais simples, o qual, encontrando-se resolvido,
possibilitaria a resolução do primeiro. O exemplo mais famoso desse
procedimento é o da redução do problema da duplicação do cubo ao
problema da construção de dois meios proporcionais entre duas
grandezas conhecidas[54]. Mas os outros dois famosos problemas, o da
quadratura do círculo e o da trisecção do ângulo, também foram objeto,
na época, de tratamento ou tentativas semelhantes. É importante, pois, ter
presente essa dimensão do procedimento analítico: a redução de um
problema complexo a um outro mais simples é um importante passo na
resolução de um problema, mesmo que este último também não esteja
ainda resolvido[55].
A segunda observação é referente à divisão de cada uma das
etapas do método. Tanto a etapa analítica quanto a sintética são
compostas de duas partes, com características e funções distintas, ainda
que os geômetras não lhes têm atribuído nomes e nem sempre são
claramente distinguíveis. A primeira parte da análise consiste em analisar
ou transformar, supondo dado também o procurado, as condições ou
relações iniciais, fornecidas pela enunciação da proposição (seja pelo
dedomena, seja pelo zetoumenon), em outras condições ou relações, as
quais serão necessariamente cumpridas ou dadas se as primeiras o são.
Nessa etapa, além disso, é preciso geralmente acrescentar novos objetos,
por meio de construções, à configuração dada. Essa etapa foi chamada, a
partir de HANKEL, de transformação (apud HEATH, 1956, p. 141), e
Hintikka e Remes chamam-na também de análise propriamente dita. A
segunda parte da etapa analítica é chamada de resolução (também desde
Hankel), cuja função é mostrar a independência dessas relações ou
objetos extraídos na transformação em relação à pressuposição de que o
problema esteja resolvido (portanto, em relação ao zetoumenon). Essa
etapa mostra, em outras palavras, que os passos apresentados na
transformação podem ser derivados (portanto, podem ser considerados
como dados adicionais) a partir somente do dedomena e de outras
proposições conhecidas (axiomas ou teoremas demonstrados
anteriormente). Com isso, finda a etapa analítica, cujo objetivo foi o de
mostrar que os dados iniciais (fornecidos na enunciação), acrescentados
de novos dados, deles diretamente ou indiretamente derivados, devem
poder ocasionar o que se procura. A etapa sintética, por assim dizer,
organiza em dois momentos o que foi apresentado e descoberto na
análise e prova a verdade do teorema ou a solução do problema. A
primeira parte da síntese chama-se construção e, como o termo já diz,
nela são efetivamente realizadas as construções suficientes (sem se
basear em quaisquer elementos hipoteticamente dados ou no fim que se
almeja chegar) para que a configuração esteja completa. A segunda parte
chama-se demonstração, cuja função é provar que a construção feita
soluciona o problema ou as relações apresentadas estabelecem a verdade
do teorema.
Por fim, a terceira observação é quanto ao fato de que a etapa
analítica do método não resolve a questão e, em princípio, não garante o
sucesso da síntese, ainda que o analista “saiba” ou “pressinta” quando
parar, em razão das relações construídas ou descobertas. O objetivo da
etapa analítica não é solucionar ou provar o que pede a enunciação da
proposição sob investigação. É, antes disso, descobrir ou inventar
relações entre os objetos da configuração (transformação) e mostrar a
possibilidade de construí-los ou de serem dados (resolução). A resolução
da questão decorre, depois disso, da construção efetiva do que a
resolução apresenta e da prova de que o resultado se segue
(demonstração). A construção depende do sucesso de ela retomar os
passos da resolução e reordená-los de forma que eles possam ser (e são)
efetivamente realizados e determinados a partir dos dados originais da
proposição. Como tal, ela é propriamente o contraponto da resolução e,
ainda que ambas não se baseiam em nada do procurado (zetoumenon),
elas se distinguem como a possibilidade se distingue da efetividade. Por
sua vez, a demonstração é o contraponto da transformação, e seu
sucesso depende do sucesso da inversão dos passos da transformação.
Em resumo, apesar da etapa analítica apresentar todos os elementos
suficientes para a resolução da questão, ela não a resolve porque
apresenta passos meramente possíveis e outros baseados no fim que se
procura atingir.
CAPÍTULO II
O MÉTODO DE DESCARTES: UMA ILUSTRAÇÃO
Como primeiro passo na tentativa de compreender a
metodologia cartesiana, mostrar sua estrutura analítica (ou analítico-
sintética) e ilustrar sua atuação, será examinado abaixo o famoso
“problema de Pappus”, exposto por Descartes na Geometria[108].
Propositadamente, foi escolhida uma ilustração extraída de um dentre os
três tratados que seguem o Discurso, os quais são considerados por
Descartes como “ensaios” do método[109]. Além disso, sendo um
problema matemático, o problema de Pappus possibilita uma melhor
comparação com o método de análise dos gregos (e algebristas) e serve,
pois, adequadamente como “meio de ligação” entre este último e a
metodologia cartesiana em geral.
A Geometria é uma obra ilustrativa da metodologia cartesiana.
Apesar da inexistência de referências nominais ao método de análise dos
gregos e de indicações explícitas às regras metodológicas do Discurso e
das Regras, sua simples consideração como um “ensaio” do método,
entre outros, equivale a lhe atribuir um estatuto metodológico definido.
Na verdade, Descartes vê essa obra como uma autêntica ilustração de
seu método. Primeiramente, por que, como diz o Discurso, Descartes
estava à procura do “verdadeiro emprego” das matemáticas (VI, 7, 26),
tendo encontrado “alguns vestígios” (X, 376, 21) em meio a essas
ciências já constituídas[110]. A matemática, não há dúvida, é uma
disciplina privilegiada para o autor, pois, mesmo mal cultivada, tem
produzido bons frutos e se constituído em um manifesto em favor dos
poderes da razão. Nessa perspectiva, são abundantes as referências
(desde as Regras) quanto ao papel especial que essa ciência desempenha
dentro da reflexão metodológica do filósofo. No que diz respeito
especificamente à obra aqui examinada, além das relações estritas que,
em geral, se estabelecem entre ela e outras obras (por exemplo, entre ela
e a Segunda Parte do Discurso e entre ela e a parte final das Regras),
Descartes, em pelo menos uma ocasião, qualificou-a como o melhor
resultado do método e como prova de sua validade. É o que ele afirma
em uma carta a Mersenne, em fins de dezembro de 1637: “eu somente
me propus pela Dióptrica e pelos Meteoros a persuadir que meu método
é melhor que o ordinário, mas eu pretendo tê-lo demonstrado por minha
Geometria” (I, 478, 8-11). Não faltarão indícios em favor dessa
perspectiva de que a Geometria é um legítimo “ensaio metodológico” e
que o problema de Pappus é uma ilustração do método de análise de
Descartes.
2.1 O método enquanto arte de resolver problemas
Antes do exame propriamente dito do problema de Pappus, é
necessário considerar as reflexões feitas sobre o método utilizado por
Descartes, por ocasião da resolução dos problemas geométricos em
geral. O Livro I da Geometria apresenta, nas seções intituladas “Como é
preciso chegar às equações que servem à resolução dos problemas” e
“Como eles [os problemas planos, no caso] são resolvidos”, as duas
etapas desse método[111]. Essas são as seções da obra certamente as
mais importantes sob o ponto de vista da exposição e da descrição do
procedimento empregado por Descartes. A primeira seção apresenta a
primeira etapa do método, cujo principal objetivo consiste em
equacionar o problema, por meio fundamentalmente de recursos
algébricos, de tal forma que a “dificuldade” que ele contém possa ser
reconduzida e reduzida à mais simples estrutura ou expressão algébrica,
isto é, a uma equação da forma mais simples possível. A segunda seção
apresenta sua segunda etapa (na realidade, um de suas partes, a
“construção”, já que nos casos apresentados a “demonstração” não é
dada), cujo objetivo central é resolver a equação, isto é, construir a raiz
(ou raízes) da equação e prová-la(s). Este método, em seu conjunto, será
chamado de método de análise ou método de análise-e-síntese (análise e
síntese, sendo as duas etapas respectivas), apesar de não ser, na obra,
nomeado como tal[112]. As razões para essa nomeação serão discutidas
mais adiante[113].
A descrição que Descartes fornece da primeira etapa, a análise
(A), pode ser dividida em vários passos. Em um primeiro momento
(A1), o geômetra, se deseja resolver um problema, deve supô-lo como já
resolvido, antes de começar efetivamente a resolvê-lo[114]. Este
procedimento, típico da análise praticada pelos geômetras gregos e que
possibilita considerar o procurado ou desconhecido como se fosse dado
ou conhecido, tem conseqüências metodológicas importantes, como já se
viu. Por meio dele, é possível, em primeiro lugar, considerar a
configuração do problema como completa ou tão completa quanto
permite a consideração de todos os elementos que ele fornece[115]. Além
disso, ao contrário do procedimento (mais “natural”)[116], que parte dos
verdadeiros dados do problema (juntamente com tudo o que já é
conhecido) e deles pretende deduzir o desconhecido, a análise, por meio
desse recurso, desfaz a diferença entre estes dois tipos de entidades por
não se “preocupar”, durante o cálculo, com o estatuto cognitivo distinto
de cada um[117]. Isto não significa desfazer toda diferença entre eles,
mas colocá-los em nível de igualdade operatória, por ocasião do exame
das relações que os objetos mantêm entre si dentro da configuração dada.
Deste modo, a resolução do problema deixa de ter uma direção e um
sentido determinados (muito menos ainda do que poder-se-ia aventar na
geometria antiga), pois não se trata de ir do desconhecido ao conhecido
nem vice-versa, mas de examinar a configuração dada e de estabelecer
relações entre os objetos componentes, até preencher o “vácuo” existente
entre os dois tipos de entidades[118]. O objetivo final é, evidentemente,
uma vez o problema resolvido, a determinação do procurado pelos
dados, como em qualquer outro método. O segundo passo da análise
(A2) consiste em atribuir nomes às linhas[119] necessárias para resolver
o problema, tanto conhecidas quanto desconhecidas, conforme a
explicação fornecida na seção anterior intitulada “Como podemos
utilizar símbolos (chiffres) na geometria” (371, 4-372, 9). Descartes
introduz, nesta seção, sua simbolização (utilizada ainda hoje com
pequenas modificações): as primeiras letras do alfabeto para as
grandezas conhecidas (a, b, c, etc.) e as últimas para as grandezas
desconhecidas (x, y, z, etc.), bem como símbolos para as operações
aritméticas (a igualdade, a soma, a subtração, a multiplicação, a divisão e
a extração de raízes) e para os expoentes das grandezas (por exemplo, xx
ou x², zzz para z³, etc.).
Estes dois procedimentos (A1 e A2) possibilitam, ao mesmo
tempo, manter distintas, clara e visualmente (em qualquer momento do
cálculo), as grandezas conhecidas e as desconhecidas, mas também
desconsiderar a distinção cognitiva entre ambas. A conclusão é que a
distinção entre tais grandezas é considerada e desconsiderada ao mesmo
tempo, sob diferentes aspectos: considerada, pois a simbolismo permite
mantê-las distintas e porque o problema consiste exatamente em
determinar as grandezas desconhecidas[120] (e, assim, a equação deve
expressar as desconhecidas em função das conhecidas); desconsiderada,
pois todas as grandezas indistintamente são “dadas”, ainda que algumas
não são determinadas. Além disso, a introdução das operações algébricas
(que se segue à designação simbólica) facilita e dá novo dinamismo ao
procedimento da análise[121]. Ela possibilita não somente a
simplificação e a maior generalidade ao cálculo geométrico (bem como a
perfeita distinção de seus objetos e operações, como já foi dito), mas
sobretudo dá mobilidade e agilidade ao cálculo. Ao mesmo tempo em
que todas as grandezas (conhecidas e desconhecidas) são postas lado a
lado, se submetem às mesmas operações e podem ser determinadas
(numa equação) umas a partir de outras, elas permanecem total e
claramente distintas a partir da simbolização cartesiana, mas também
facilmente manipuláveis, sem a necessidade da consulta constante à
figura e de tê-la sob os olhos a todo o tempo. Neste sentido, o que
consistia no início em uma espécie de economia e de simplificação
gráfica, bem como em um mecanismo de auxílio à fraqueza da memória,
torna-se um instrumento fecundo e potente de manipulação dos objetos
matemáticos, mas também de generalização e de simplificação dos
problemas geométricos[122]. Como decorrência disso, também a figura
perderá, em parte, sua importância enquanto suporte do cálculo, pois a
configuração algébrica é, principalmente à medida que os problemas
crescem em complexidade, mais rica e mais geral que a configuração
geométrica, bem como auto-suficiente. Dessa forma, diz Descartes,
“freqüentemente não temos necessidade de traçar, assim, tais linhas
sobre o papel, mas é suficiente designá-las por algumas letras, cada uma
por uma só” (371, 4-7)[123].
O terceiro momento da análise (A3) consiste em, não
considerando nenhuma diferença entre as linhas conhecidas e as
desconhecidas (procedimento decorrente da etapa precedente, por
considerar o problema como resolvido), examinar o problema (a
“dificuldade”) segundo a ordem que mostra, da maneira mais “natural”,
a dependência mútua entre elas, até chegar a expressar uma mesma
grandeza em forma de equação[124]. As equações, expressão desta
dependência entre os objetos conhecidos e desconhecidos, devem
corresponder em número às linhas desconhecidas; ou então, se o número
de linhas é maior e nada é omitido no exame da questão, o problema não
é inteiramente determinado: neste caso, deve-se tomar uma linha
conhecida qualquer no lugar de cada linha desconhecida à qual não
corresponde nenhuma equação[125].
Esta terceira etapa consiste fundamentalmente na análise do
problema e na expressão das relações de dependência entre os diversos
objetos do problema. O objetivo é expressar cada objeto desconhecido
em função, se possível, somente dos conhecidos ou do menor número de
outros desconhecidos; e, assim, a cada um deles corresponderá uma
equação. Descartes fala que se deve percorrer a dificuldade
ordenadamente, de modo que se mostre o mais naturalmente possível a
dependência (a equação) de cada objeto desconhecido. A existência de
uma “ordem mais natural” parece ter em conta as várias possibilidades
de formular as equações e de escolher as “linhas principais”[126]. Na
verdade, há uma certa liberdade (ou arbitrariedade) na escolha das
“coordenadas” e, dependendo desta escolha, o cálculo pode ser mais
longo ou mais curto, mais “truncado” ou não. Isto não significa que se
altere a natureza da dificuldade, mas somente mostra que há caminhos
diferentes para sua resolução[127]. Além disso, a ordem faz com que o
geômetra “não omita nada do que, na questão, é desejado” (372, 25-26)
e, ao fazer isso, ela torna evidente as relações entre os vários objetos da
configuração. A ordem garante, assim, o exame completo da
configuração, a percepção da dependência entre seus componentes em
função do problema colocado e a escolha mais conveniente de exprimi-
la[128].
O quarto e último passo da análise (A4) consiste em reconduzir
ou reduzir todas as equações, oriundas em função de cada uma das linhas
desconhecidas, a uma única, e que esta equação tenha a forma a mais
simples possível[129]. A etapa anterior dá como resultado um certo
número de equações, correspondente ao número de linhas
desconhecidas. Se este número for maior que um, deve-se examinar por
ordem cada uma destas equações, seja isoladamente seja em seu
conjunto, até que seja possível, por um processo de comparação,
substituição e simplificação, reduzi-las a uma única[130], que pode ser
mais ou menos complexa (primeiro grau, segundo grau, etc.), mas que
deve ser a mais simples possível dentro da configuração dada e enquanto
representante da dificuldade que se pretende resolver. Tal é a ordem que
se deva seguir a fim de explicar cada uma das linhas desconhecidas.
Tanto esta etapa quanto a anterior consistem, pois, na manipulação dos
objetos conhecidos e desconhecidos com o objetivo de estabelecer
relações (dependências) entre elas, cuja expressão são as equações, as
quais, por sua vez, devem ser manipuladas e simplificadas até que se
obtenha os “mais simples termos aos quais a questão possa ser reduzida”
(374, 17-19).
Estrutura do método de análise
1) Exposição do problema:
– Enunciação do problema.
– Apresentação do que é dado e do que se procura determinar.
2) Análise:
2.1) Suposição de que o problema esteja resolvido.
2.2) Atribuição de nomes aos objetos (linhas): x, y, a, b…
2.3) Exame das relações entre os elementos do problema, com o
objetivo de
determinar uma equação para cada desconhecido.
2.4) Redução de todas as equações a uma única e que seja a mais
simples
possível.
3) Síntese:
3.1) Construção:
– Exame da equação resultante da análise.
– Construção da raiz ou resolução da equação.
3.2) Demonstração:
– Prova de que a construção satisfaz as condições do problema.
4) Resolução completa do problema:
– Todos os seus elementos estão efetivamente dados e o problema
resolvido.
– A complexidade é “completamente” compreendida.
Uma vez reduzida a dificuldade do problema à sua expressão
(equação) mais simples, a análise tem cumprido sua tarefa e, assim, dá
lugar à síntese, etapa complementar. A síntese se compõe normalmente
de duas etapas, a construção geométrica (S1) e a demonstração ou prova
(S2). Entretanto, na seção “Como eles são resolvidos” (374, 28-376, 28),
Descartes fornece somente a construção, certamente por tratar-se de
simples exemplos pertencentes à geometria ordinária, largamente
desenvolvida desde os gregos e, portanto, tida como não-problemática
(são aqueles problemas chamados de problemas planos, por poderem ser
resolvidos através de linhas retas e círculos, isto é, por meio de régua e
compasso, traçados sobre um plano). Neste caso, após as equações terem
sido reduzidas a uma única, restará no máximo uma equação de segundo
grau com uma incógnita[131].
Análise[132]:
A1) …
A2) …
A3) …
A4) z²=az+b².
Síntese:
S1) Construção:
a) Construamos um triângulo-retângulo NLM e um
círculo PLO, com centro em N.
b) Façamos ML= b, LN(=NP=ON)=½a (isto é,
OP=a) e OM=z, a linha desconhecida.
c) Podemos afirmar que z=½a+Ö(¼a²+b²).
S2) Demonstração: (Descartes não a fornece, mas
ela pode ser facilmente elaborada).
a) Na figura, temos (ML)²=OM.MP [cf. Elem. III, 36].
Então, b²=z(z-a), ou seja, z²=az+b².
b) Por outro lado, temos OM=ON+NM.
Isto é, z=½a+Ö(¼a²+b²), onde NM=Ö(¼a²+b²), pelo
teorema de Pitágoras [cf. Elem. I, 47].
c) Portanto, sendo a e b conhecidas, a figura acima
determina a linha desconhecida z.
Assim, nesta seção, Descartes mostra como solucionar as
equações de segundo grau com uma incógnita (problemas planos), mas
um procedimento semelhante será fornecido para problemas mais
complexos. Tendo obtido uma equação, Descartes mostra como construir
“facilmente” sua raiz (ou linha desconhecida). Como, por exemplo, no
caso da equação z²=az+b², ela pode ser resolvida pela construção de um
triângulo-retângulo e de um círculo, cujo raio é um dos lados do
triângulo (veja figura). A raiz ou a linha procurada z (=OM) é a soma da
hipotenusa do triângulo-retângulo com o raio do círculo, isto é,
z=½a+Ö(¼a²+b²), onde ½a é um dos lados (LN) do triângulo (igual ao
raio ON do círculo) e b é o outro lado do triângulo (ML). Supondo que a
análise tenha fornecido, como resultado, a equação z²=az+b², como
mostra o exemplo examinado por Descartes, o método teria as etapas
segundo o esquema aqui apresentado.
A síntese comporta, pois, duas etapas, a exemplo do que ocorre
na geometria antiga. A primeira corresponde à construção ou
“interpretação” geométrica da equação, de maneira que a raiz dessa
última fique determinada geometricamente[133]. Diante de várias
soluções geométricas de uma mesma equação, ainda que todas podem
ser válidas sob o ponto de vista demonstrativo, metodologicamente nem
todas são aceitáveis: é “válida”, sob a perspectiva do método, somente a
solução mais simples, aquela que utilizará os meios (objetos
geométricos) mais simples. É esta a primeira contribuição do Livro III:
ele afirma que não se deve utilizar, por ocasião da construção de um
problema, a primeira curva que se encontra, mas é preciso escolher a
mais simples dentre todas as possíveis para sua resolução, sendo simples
não somente aquelas que tornam a construção ou a demonstração mais
fáceis, mas principalmente aquelas que pertencem ao gênero mais
simples[134].
A demonstração é, como o termo já diz, a prova de que a
construção feita resolve a equação dada pela análise. De um modo geral,
Descartes não fornece a demonstração, pois ela se torna dispensável
depois da análise e da construção. Na verdade, ele nada afirma sobre tal
assunto, mas certamente a viu como uma “repetição” de algo já
efetivamente realizado anteriormente ou algo tedioso de se fazer. Como
se pode perceber em vários exemplos dados na Geometria, mesmo a
construção é por vezes dispensada e, em outras, a análise e a construção
são dadas conjuntamente[135]. É este o método apresentado por
Descartes e que será ilustrado a seguir[136].
2.2 Exame do problema de Pappus
O problema de Pappus é o problema tratado em maior extensão na
Geometria. Ele tem uma importância capital na obra, a ponto de poder se
dizer que a partir dele se determina, se não a obra como um todo, pelo
menos boa parte de seus traços principais. Ele é fundamental, em
primeiro lugar, porque por meio dele, direta ou indiretamente, surgiu a
problemática da classificação da curvas, o problema da relação entre o
grau da equação e a complexidade das curvas, enfim, a classificação das
curvas entre geométricas e mecânicas, entre outros itens. Em segundo
lugar, porque ele é um exemplo metodológico por excelência (poder-se-
ia mesmo dizer, o exemplo metodológico da Geometria), além de
mostrar as razões do entusiasmo cartesiano pelo seu modo de fazer
geometria[137].
Descartes formula este problema nos seguintes termos (379,
14-380, 24). Sendo dadas em posição três, quatro ou um número maior
de linhas retas, pede-se, em um primeiro momento, para determinar um
ponto a partir do qual pode-se tirar outras tantas retas, as quais,
formando cada uma um dado ângulo com cada uma das primeiras,
satisfazem a seguinte condição: se são três as linhas dadas, que o
retângulo formado por duas das linhas desconhecidas tenha uma
proporção dada para com o quadrado da terceira; se são quatro as linhas
dadas, que o retângulo formado por duas das linhas desconhecidas tenha
uma proporção dada para com o retângulo das duas restantes; no caso de
cinco linhas dadas, que o paralelepípedo formado por três das linhas
desconhecidas tenha uma proporção dada para com o paralelepípedo
formado pelas duas restantes e uma outra linha dada; sendo seis linhas,
que o paralelepípedo formado por três das linhas desconhecidas tenha
uma proporção dada para com o paralelepípedo formado pelas três
restantes; se são sete, que o produto de quatro das linhas desconhecidas
tenha uma proporção dada para com o produto formado pelas três
restantes e uma outra linha dada; e, deste modo, esta questão pode ser
estendida a qualquer outro número de linhas ad infinitum. Em um
segundo momento, dado que há uma infinidade de pontos que satisfazem
a condição exigida, pede-se para determinar, não mais somente um
ponto, mas a linha (isto é, o lugar geométrico) na qual se encontram
todos os pontos que a satisfazem.
O problema é dividido por Descartes, como se pôde ver acima,
em duas partes: na primeira, trata-se de encontrar um ponto (ou alguns,
se assim se desejar) que satisfaz(em) o problema; na segunda, trata-se de
encontrar o lugar geométrico formado pelo conjunto de todos os pontos
que o satisfazem. Descartes trata longamente do caso de quatro linhas
retas dadas, como ver-se-á abaixo. Suas duas partes são tratadas
separadamente, a primeira no Livro I (382, 8-386, 10) e a segunda no
Livro II (397, 20-406, 10)). Em sua primeira parte, ele mostrará que os
pontos que satisfazem a condição exigida podem ser encontrados por
meio da régua e do compasso (isto é, utilizando somente retas e
círculos). Entretanto, quando ele será tratado em toda a sua extensão e
generalidade, o lugar geométrico, solução do problema, poderá ser
construído somente por meio de seções cônicas (ou círculos e retas, no
caso de alguns termos das equações serem nulos ou em função de alguns
de seus valores). Por meio deste exemplo, afirma o autor, poder-se-á
também avaliar seu método e compará-lo ao dos antigos geômetras[138].
Seguem abaixo os principais passos da Parte I do problema, com
quatro retas dadas.
1) Enunciação do problema (382, 8-17): Sejam AB, AD, EF, GH
quatro linhas retas dadas em posição (mas não em comprimento),
encontrar um ponto C, tendo extraído outras quatro retas, como CB, CD,
CF, CH, as quais formam ângulos dados com as quatro retas dadas, por
meio do qual o produto de duas destas retas desconhecidas tenha uma
proporção dada (a igualdade, por exemplo) para com as outras duas
restantes (ou seja, CB.CF=CD.CH).
2) Análise (A):
A1) (382, 18-19) Supor o problema resolvido e, com isso, supor
como dados todos os elementos necessários à sua resolução[139].
A2/A3) (382, 19-385, 9) A fim de impor uma ordem à
confusão[140] de todas as linhas do problema, considerar duas como as
principais, AB (dada em posição) e CB (desconhecida), nomeadas
respectivamente x e y, e determinar todas as outras a partir destas. Uma
vez prolongadas todas as linhas dadas até encontrarem x e y (também
prolongadas), o exame das considerações sobre cada triângulo formado,
cujos ângulos são dados, dá origem às quatro equações correspondentes
para cada linha desconhecida. Assim, após alguns cálculos, são obtidas
as equações (ou outras com sinais distintos):
CB = y,
CD = (czy+bcx)/z²,
CF = (ezy+dek+dex)/z²,
CH = (gzy+fgl-fgx)/z².
A4) (385, 10-386, 10) Manipulação destas quatro equações até
reduzi-las a uma única: em primeiro lugar, faz-se a multiplicação de duas
equações pelas outras duas, conforme a condição do problema exige. A
equação resultante de CB.CF=CD.CH será (cf. 398, 4-10):
y² = (-dekz²y + cfglzy – dez²xy – cfgzxy + bcgzxy +
bcfglx – bcfgx²) / ez³ – cgz².
Por sua vez, fazendo y=1 (ou outro valor, pois, para determinar
um ponto C qualquer, pode-se atribuir um valor qualquer a uma das
incógnitas), a equação final será:
x² = [(bcfgl + bcgz – cfgz – dez²)x + cfglz +
cgz² – dekz² – ez³] / bcfg.
Em outros termos, sendo x a única linha desconhecida, diz
Descartes, teremos uma equação da seguinte forma: x²=+/-ax+/-b²[141].
Tendo reduzido a equação à sua forma mais simples possível, a análise
cumpriu sua tarefa[142].
Depois disso, sendo E o ponto de intersecção do círculo com a
curva, estando o círculo em G, e sendo F outro ponto, estando o círculo
em H, os triângulos retilíneos AED e DFC, juntos, são – evidentemente,
repete o autor – iguais ao quadrado STVX inscrito no círculo. O mesmo
vale para I, K, L e M, tomados como pontos de intersecção, quando o
círculo está, respectivamente, em N, O, P e Q, de sorte que os triângulos
retilíneos AIE, EKD, DLF e FMC são, somados, iguais aos quatro
triângulos isósceles SYT, TZV, V1X, X2S, inscritos no círculo. Idêntico
raciocínio se aplica aos oito triângulos subseqüentes, e assim ao infinito.
A conclusão é a de que as duas áreas formadas pelos dois segmentos da
curva com as retas AD e DC são, juntas, iguais à área do círculo; por
conseguinte, a área total compreendida entre a curva ADC e a reta AC é
tripla à do círculo.
Por sua vez, a demonstração sintética, mais longa e mais
complexa, segue abaixo. Seja AKFGC (figuras dadas abaixo) a metade
da linha curva descrita pelo ponto a da roulette anopbz, quando esta se
move ao longo da linha AB, sendo AB igual à metade da circunferência
do círculo e CB igual ao seu diâmetro. Tracemos a reta AC, bem como
OE e DF, as quais dividem AB e CB ao meio. Consideremos, em
seguida, que, estando o ponto o da roulette ajustado ao ponto O da linha
AB, seu centro e se encontra sobre o ponto E, uma vez que, sendo
CD=½CB e DE=BO (=½AB). Da mesma forma, estando aplicado sobre
EF, o raio ea=EF, dado que, sendo AO igual a um quarto da
circunferência da roulette, os ângulos aeo e FEO são, ambos, retos e
AE=EC. Depois, tendo tomado os pontos N e P, um em cada lado e na
mesma distância de O, bem como os pontos n e p correspondentes, de
modo que o arco an=pb e também an=AN=PB, tracemos os diâmetros
ne e pe e suas perpendiculares ay e ax. Assim, o ponto n da roulette
estando sobre N, seu ponto a se encontra em K; e, sendo KM paralela à
AB, KM=NB+ay e MD=ye.
O mesmo vale para o ponto p, estando aplicado sobre P. Nesse
caso, como o ponto a está em G, GI=PB+ax e ID=xe, bem como
GI+KM=AB+az, uma vez que ax+ay=az e NB+PB=AB, sendo AN=PB.
Além disso, LM+HI=AB, pois MB=CI; e, sendo paralela à MB, LV=CI
e, conseqüentemente, HI=AV, já que os triângulos AVL e HIC são iguais
e semelhantes. Assim, LM=VB. Ora, como LM+HI=AB e
KM+GI=AB+az, segue-se que KL+GH=az, estando az na mesma
distância de e que KL e GH de FE. E porque os pontos N e P foram
tomados aleatoriamente a partir de uma mesma distância de O, o que faz
com que KL e GH estão na mesma distância de FE, isso é válido para
todo par de retas traçadas entre a reta AC e a curva AFC, desde que
paralelas à FE e igualmente distantes, uma em cada lado. Isto é, todo par
de retas é igual à reta inscrita na roulette (a exemplo de KL+GH=az),
estando cada uma delas tão distante de FE quanto essa reta do centro
e[162].
Em seguida, tracemos sobre uma reta o semicírculo adb igual à
metade da roulette e a figura jgχψω, cuja parte jgχθε seja igual e
semelhante à FGCHE e a parte εθχψω igual e semelhante à ELAKF
(construção que pode ser feita, pois AE=EC e os ângulos AEF e DEC
são iguais), de modo que as bases e as alturas das figuras serão iguais,
bem como todo par de segmentos de reta traçada paralela à base (p. ex.,
γφ=μν). Disso se segue que a área da figura jχω é igual à do semicírculo
adb, uma vez que duas figuras possuem áreas iguais, tendo a mesma
base e a mesma altura e cujas retas paralelas e equidistantes à base,
interiores a cada uma delas, sejam também iguais.
Mas, como este é um teorema que talvez nem todos admitem,
diz Descartes, sua prova pode ser dada como segue. Tendo traçado as
retas δα, δβ, χφ e χω, é evidente, repete Descartes, que os triângulos
φχω e αδβ são iguais, dado que têm a mesma base e a mesma altura. O
mesmo vale para os triângulos γχφ e ψχω, tendo traçado as retas μα,
μδ, νδ, νβ, γχ, γφ, ψχ e ψω, os quais, somados, são iguais aos
triângulos μδα e νδβ, pois, sendo φω=αβ, 12 13=10 11; e, como
γψ=μν, as bases dos triângulos γχφ e ψχω são iguais às dos triângulos
μδα e νδβ, isto é, γ12+13ψ=μ10+11ν, sendo que suas alturas também
são as mesmas. Idêntico raciocínio se aplica a outros triângulos inscritos
a partir dos pontos 4, 5, 8, 9, etc. e dos pontos 2, 3, 6, 7, etc., e assim ao
infinito, de forma que os triângulos da primeira figura serão iguais aos da
segunda e, por conseqüência, toda a figura jgχψω será igual ao
semicírculo adb[163].
Assim, sendo o espaço compreendido entre a reta AC e a curva
AKFGC igual ao semicírculo (figuras anteriores), todo o espaço AFCB é
triplo do semicírculo, pois o triângulo retilíneo ABC é igual ao círculo
inteiro (dado que AB é igual à metade da circunferência e BC igual ao
seu diâmetro)[164]. O mesmo raciocínio vale quando a reta AB é
diferente (como quando o ponto que descreve a curva está fora ou no
interior do círculo), de sorte que o espaço compreendido entre a reta AC
e a curva AFC não deixará de ser igual à metade do círculo cujo
diâmetro é BC, apesar do triângulo ABC alterar sua grandeza. Portanto,
ainda que a grandeza da reta AB seja diferente, a demonstração continua
sendo idêntica à fornecida acima.
Essas são as duas demonstrações dadas por Descartes para o
problema da quadratura da ciclóide, a primeira de forma analítica e a
segunda de modo sintético, conforme as próprias palavras do autor. É
preciso reconhecer, entretanto, que tais exposições não apresentam, à
primeira vista, pelo menos, aquela estrutura caracterizada acima por
ocasião do estudo do método e do exame do problema de Pappus. Mas é
possível remediar essa disparidade, cuja razão principal é a de que, no
caso presente, não se tratando de uma curva geométrica, mas mecânica,
a ciclóide (ou roulette) não pode ser representada por meio de uma
equação (algébrica) correspondente, de sorte que o procedimento se
altera substancialmente em termos de apresentação. Em outras palavras,
não há como determinar, pela análise, a equação que represente o
problema, uma vez que essa equação não existe: a equação
correspondente à curva em questão exige elementos da natureza
trigonométrica (em termos atuais, diz-se que a ciclóide é uma curva
transcendente), enquanto Descartes opera somente com equações que
Assim, não é possível, na análise, ter como objetivo final determinar a equação do
problema, nem, na síntese, partindo do que é fornecido pela análise, construí-la
geometricamente ou resolvê-la, como se fez mais acima: é preciso, no caso de
uma curva transcendente, utilizar outros recursos, os quais não serão tampouco os
do cálculo infinitesimal, pois, ao contrário de Fermat, Descartes não o aceita
como legítimo.
[ 2 ] D i z e l e : “ N e c e s s a r i a e s t m e t h o d u s a d re r u m v e r i t a t e m
investigandam” (X, 371, 2-3).
[5] Diz Descartes: “Pour ce qui regarde le conseil (…) de disposer mes
raisons selon la méthode des Géomètres (…), je vous dirai ici en quelle
façon j’ai déjà taché ci-devant de la suivre, e comment j’ai tacherai
encore ci-après” (IX, 121).
[6] Diz ele: “Dans la façon d’écrire des Géomètres, je distingue deux
choses, à savoir l’ordre, et la manière de démontrer”; “La manière de
démontrer est double: l’une se fait par l’analyse ou résolution, et l’autre
par la synthèse ou composition”; “Les anciens Géomètres avaient
coutume de se servir seulement de cette synthèse dans leur écrits, non
qu’ils ignoraient entièrement l’analyse (…). Pour moi, j’ai suivi seulement
la voie analytique dans mes Méditations” (IX, 121-122; 1983, p. 166-67).
[7] Cf. também essas mesmas passagens na edição latina (VII, 155-ss).
[8] Descartes se beneficiou de inúmeras traduções para o latim das obras
clássicas da geometria grega, feitas principalmente no final do século
XVI. Federigo Commandino (1509-1575) traduziu muitos autores gregos,
dentre os quais Ptolomeu, Arquimedes, Apolônio (Cônicas, em 1566),
Euclides (Elementos, em 1572) e Pappus (Coleção matemática, em 1588;
outras edições, em 1689 e 1602). Descartes conhecia muito bem as
obras aqui mencionadas de Pappus e de Apolônio (além de conhecer
Arquimedes e também Euclides). Pappus é citado não só nas Regras,
mas principalmente na Geometria. Nessa obra, Descartes cita (VI,
377-79), segundo a tradução de Commandino, um longo trecho do Livro
VII de PAPPUS (1982, p. 506-10), texto que, com nosso filósofo, vem a se
constituir no célebre “problema de Pappus”. Um outro problema do
mesmo livro da obra de PAPPUS (L. VII, Prop. 72, p. 606-08) é examinado
por Descartes no Livro III da Geometria (VI, 462-63). É interessante
observar que é exatamente nesse Livro VII que Pappus apresenta sua
descrição sobre o método de análise (e síntese), texto que será
examinado mais abaixo. O nome de Apolônio é também freqüentemente
citado (na correspondência, por exemplo) e suas Cônicas são muito
utilizadas na Geometria, enquanto Arquimedes é citado geralmente no
que se refere às artes mecânicas e ao seu método de demonstração. Na
Epístola enviada aos doutores da Faculdade de Teologia de Paris, por
meio da qual foi-lhes apresentado o texto das Meditações, Descartes cita
os três autores (VII, 4; IX, 6; 1983, p. 77).
[9] Como já dizia a Regra IV, “a mente humana tem não sei quê de divino,
em que as primeiras sementes dos pensamentos úteis foram lançadas de
tal modo que, muitas vezes, ainda que descuradas e abafadas por
estudos feitos indiretamente, produzem um fruto espontâneo. É o que
experimentamos, nas ciências mais fáceis, a aritmética e a geometria: os
antigos geômetras fizeram uso de uma espécie de análise, que
estendiam à resolução de todos os problemas, ainda que não a tenham
transmitido à posteridade” (X, 373, 7-13; 1985, p. 25).
[10] A Geometria (p. ex., VI, 376, 23-28; 378, 23-28), em razão disso,
acusa os geômetras de prolixidade e de não irem além da representação
espacial sensível (suas três dimensões).
[15] Não há, por exemplo, um estudo sobre a metodologia das Regras e
sua relação com os geômetras gregos, semelhante ao que há, por
exemplo, entre essa obra de Descartes e a de Aristóteles, como é o caso
de MARION (1981). Dificilmente encontrar-se-ão estudos sobre a
Geometria enquanto “ensaio do método”, bem como sobre sua relação
com o método de análise dos gregos e seus seguidores. O mesmo
poderia ser dito em relação ao método de Descartes e a “arte analítica”
de Viète. A carência de estudos desse tipo é resultado da visão
excessivamente epistemológico-normativa e apriorística dos estudos
sobre o tema, em detrimento dos elementos prático-operacionais da
metodologia (seja a de Descartes, seja a de seus inspiradores).
[16] Até há pouco tempo, parece que só existia um breve artigo sobre o
tema, o de ROBERT (1937), ainda que outros, como HAMELIN (1911),
tratassem rapidamente do assunto. Depois dos estudos de HINTIKKA e
REMES (1974; 1983) sobre os gregos, vários autores têm tocado no
assunto, mas sem detalhes e em poucas linhas. As principais exceções
são o próprio HINTIKKA (1978), LOPARIC (1991) e TIMMERMANS (1995).
Entretanto, tais estudos ainda não preenchem a lacuna aqui detectada,
apesar de excelentes: os primeiros são breves e não pretendem discutir a
literatura cartesiana em toda a sua complexidade; o último, certamente o
mais extenso estudo sobre o tema, é uma discussão ainda bastante
“teórica”.
[21] Esta é certamente a principal razão de Descartes (X, 373, 15; VII, 156,
17-20; IX, 122), dentre outros, ter acusado os gregos de esconderem seu
procedimento de descoberta como um grande segredo e apresentarem
ao público somente seus resultados por meio de uma forma estéril (ainda
que demonstrativa).
[22] O exemplo clássico do emprego isolado do método sintético são os
Elementos de Euclides. Esse fenômeno, inclusive, deu origem a um outro
conceito de síntese (ou a um desmembramento do conceito original), do
qual tem consciência também Descartes (VII, 156; IX, 122), entendido
como método de exposição que se caracteriza pela utilização de
definições, postulados e axiomas, seguidos pela demonstração de
teoremas e pela solução de problemas. Por sua vez, a etapa sintética
poderia também ser dispensada, no caso das proposições geométricas
serem recíprocas e em outros casos onde a prova seria trivial ou óbvia. O
problema da duplicidade (ou ambigüidade) do conceito de síntese será
discutido mais adiante.
[32] Diz o autor (1932, p 47, apud SOUZA, 1985, p. 87): “os modernos
historiadores da matemática (…) compreenderam mal a frase ‘a sucessão
dos passos subseqüentes’ (dia tôn hexês akólouthon), interpretando-a
como ‘conseqüências’ lógicas (…). Eles têm se esforçado, então, para
mostrar como as premissas de uma demonstração podem ser as
conseqüências de uma conclusão. Tudo se esclarece quando vemos – o
que Pappus diz – que a mesma seqüência de passos é seguida em
ambos os processos – de forma ascendente na análise, da conseqüência
para as premissas implicadas nessa conseqüência, e de forma
descendente na síntese, quando os passos são revertidos para estruturar
o teorema ou demonstrar a construção ‘na ordem natural’ (lógica)”.
[36] Diz ARISTÓTELES (1987, p. 46): “Com efeito, a pessoa que delibera
parece investigar e analisar da maneira que descrevemos, como se
analisasse uma construção geométrica (nem toda investigação é
deliberação: vejam-se, por exemplo, as investigações matemáticas; mas
toda deliberação é investigação); e o que vem em último lugar na ordem
da análise parece ser primeiro na ordem da geração. E se chegamos a
uma impossibilidade, renunciamos à busca: por exemplo, se precisamos
de dinheiro e não há maneira de consegui-lo; mas se uma coisa parece
possível, tratamos de fazê-la”.
[41] Diz ROBINSON (p. 8): “Segundo esse relato [defensor da análise
ascendente], a análise não seria um processo de dedução. (…) Na
análise, a atividade da minha mente não é de demonstração, mas de
intuição. O geômetra que se utiliza da análise adivinha a premissa (2) de
que se segue a premissa (1)”. Cf. também as posições de Duhamel e de
Zeuthen, expostas acima. Uma idéia semelhante é defendida por P.
TANNERY (1915, p. 163-ss).
[42] HINTIKKA e REMES, em um artigo sobre o método de análise e a
lógica moderna (1983), mostram como alguns procedimentos lógicos
usados, hoje em dia, atuam indistintamente, sem preferência e sem
prejuízo lógicos e heurísticos, em qualquer direção, como seria o caso do
método de análise. Poder-se-ia citar um exemplo extremamente simples
para mostrar isso, ainda que não se deva talvez pensar o método de
análise dentro de padrões lógicos tão rígidos. Se um estudante
desejasse provar a validade do argumento “(P&Q)®(R&S), ~~P, Q |– S”,
a seqüência poderia ser a dos sete passos dados mais abaixo. Na
descoberta dos passos intermediários (entre as premissas e a
conclusão), esse estudante poderia proceder tanto do fim para o
começo, quanto do começo para o fim, observando ao mesmo tempo os
dois extremos. Assim, dadas as premissas, ele poderia extrair
imediatamente o passo 4 do passo 2. Mas poderia se perguntar também:
de onde “S” deveria ser derivado? E a resposta seria: deve ser de
“R&S” (passo 6), único “local” onde “S” aparece. A pergunta
subseqüente seria: de onde poderia provir “R&S”? E a resposta seria: de
“P&Q” (passo 5). Mas “P&Q” é dado, diria ele, pois “P” e “Q” são dados
(passos 3 e 4). Logo, o estudante teve êxito na prova de validade do
argumento, tendo procedido ao mesmo tempo a partir dos extremos,
privilegiando ocasionalmente um ou outro dentre eles.
~~P Premissa
Q Premissa
[43] Como diz HINTIKKA (1978, p. 80), os passos da análise não são
passos entre “verdades geométricas”, mas entre “objetos geométricos”;
e, assim, a análise é uma “análise de configuração, não de provas”.
[52] Isso quer dizer que o método analítico não é tampouco mecânico;
como todo procedimento heurístico, ele não garante de antemão o
sucesso de sua atuação: podem não ser descobertas as relações
suficientes para a resolução de um problemas ou para a prova de um
teorema.
[53] Essa é uma das razões que tornam improvável a autoria platônica do
método, pois Hipócrates de Quios é bem anterior a Platão.
[54] O problema pode ser elaborado da seguinte maneira: dada uma linha
qualquer A e, portanto, também o cubo A³, pretende-se construir o cubo
X³, que seja o dobro do anterior. Hipócrates descobre que esse problema
pode ser reduzido ao da inserção de dois meios proporcionais entre duas
linhas (em que uma é o dobro da outra). Sejam A e B tais linhas e X e Y
os meios proporcionais, de tal forma que A:X=X:Y=Y:B. Compondo as
razões (cf. Elementos, V, Def. 14 (HEATH, 1952, p. 81)), temos:
(A:X)³=(A:X)(X:Y)(Y:B), isto é, A³:X³=A:B. Assim, se B é o dobro de A,
A³:X³=1:2. Portanto, X³ é o dobro de A³. Portanto, dadas duas linhas A e
B (sendo B=2A), se inserirmos dois meios proporcionais X e Y, X³ será o
dobro de A³. Sobre o problema da duplicação do cubo, confira, entre
outros, KNORR (1986, p. 17-24), de onde a formulação acima foi
extraída.
[55] O procedimento de redução, nesse exemplo específico de
Hipócrates, estabelece a equivalência dos dois problemas, no sentido de
que, estando um resolvido, o outro também estará. Entretanto, em
princípio, poder-se-ia proceder à “redução” de um problema a outro,
mesmo que este último não solucionasse o primeiro, mas se constituísse
em um avanço considerável ou em uma de suas partes importantes.
Como tal, o procedimento de redução (sentido forte) poderia ter-se
desenvolvido juntamente com o procedimento de divisão de um
problema em subproblemas ou de recondução do problema original a um
problema relacionado (sentido fraco). Seja como for, muitos praticantes
da análise (dentre os quais Descartes) apresentam a “técnica” de
subdividir o problema e de reconduzi-lo a outro. Tal é o caso de Ibrahim
Ibn Sinan em seu Tratado sobre o método da análise e da síntese
(BELLOSTA-BAYLET, 1994). Há que assinalar as “técnicas da análise”
propostas por Ibn Sinan: “subdividir o problema”; “utilizar todas as
condições e as hipóteses do problema”; “estudar todas as configurações
possíveis” (apud BELLOSTA-BAYLET, XXXII-ss; 47-ss). Não poderiam ser
chamadas tais técnicas de cartesianas?
[56] Esse exemplo é dado por HEATH (1956, p. 141-42) e reproduzido por
HINTIKKA e REMES (1983, p. 31-2). Segue-se aqui a tradução desse
último ensaio, com pequenas alterações e a introdução dos passos. O
exemplo é examinado também por SOUZA (168-74; 197-207). Outros
exemplos são encontrados em Pappus, tais como as Proposições 54 a
58 do Livro III e as Proposições 4, 7 a 10, 12, 31, 33, 37, 40, 44 do Livro
IV, além das obras citadas por ele no início do Livro VII, conhecidas como
a “Coleção analítica dos Antigos” (VER EECKE, p. 479, n. 1), dentre as
quais podem-se citar os Dados e os Porismas de Euclides, a Secção de
uma razão, as Cônicas e as Inclinações de Apolônio. De Arquimedes,
pode-se citar as Proposições 1 e 3 a 7 do Livro II do tratado Sobre a
esfera e o cilindro (HEATH, 1952, p. 434, 437-443).
[65] Passo dedutivo. Pode ser, pois, construído um retângulo EF, ED igual
ao retângulo EA, EB.
[74] A tangente não é fornecida na figura. Ela pode ser construída a partir
do círculo e do ponto E. Cf. Dados, 91 e notas anteriores.
[75] Assim, estando o ponto F determinado, a tangente pode ser traçada
e o ponto A determinado.
[77] Em outras palavras, os dois retângulos são iguais, pois ambos são
iguais ao quadrado da tangente (um por construção e o outro por El. III,
36).
[78] Tais pontos formam um círculo por uma razão distinta daquela
afirmada no passo 4 da transformação. Aqui é a igualdade dos retângulos
que garante a existência do círculo ABDF. Donde se seguirá que, como
no quadrilátero inscrito ABDF os ângulos FAB e BDF formam dois retos e
como os ângulos BDF e BDE são também iguais a dois retos, os ângulos
FAB (ou FAE) e BDE (ou CDE) são iguais. Esses passos da transformação
são invertidos na demonstração.
[82] Isso garante que um problema se liga a outros problemas, que eles
não se encontram isolados, dando origem a uma disciplina.
[83] Euclides não apresenta a análise desse teorema, como de nenhuma
proposição dos Elementos. Entretanto, mesmo na etapa sintética, pode-
se perceber que sua prova é elaborada tendo em conta o que a
proposição fornece e o que pode ser imediatamente acrescentado à
configuração em exame. O autor pede que se tome um triângulo
qualquer ABC, que se prolongue um de seus lados, BC, até D e que seja
traçada uma linha CE, paralela à AB. Imediatamente se “vê” que os
ângulos internos do triângulo são iguais a dois retos, visto que os
ângulos BCA+ACE(=BAC)+ECD(=ABC) = 180º.
AE
B C D
[85] Contrariamente aos árabes dos séculos X e XI, como Ibn Sinan, em
seu Tratado sobre o método da análise e da síntese (BELLOSTA-BAYLET,
1994), e Ibn al-Haytham, em A análise e a síntese (RASHED, 1991a;
1991b), e a matemáticos imediatamente anteriores à época moderna,
como VIÈTE, em sua sua Introdução à arte analítica (1970, p. 1; KLEIN,
1992, p. 320), que são fiéis aos geômetras antigos. Sobre a história do
método, cf. N. W. GILBERT (1960) e HINTIKKA e REMES (1974, caps. 8 e
9).
[86] É difícil saber até que ponto Descartes não tem influenciado essa
concepção de síntese, ao caracterizá-la como o método que “se sert
d’une longue suite de définitions, de demandes, d’axiomes, de
théorèmes et de problèmes” (VII, 156, 9-11; IX, 122). Seja como for, são
os próprios autores das Segundas objeções (VII, 128, 13-19; IX, 101) que
solicitam a Descartes que faça uma exposição “more geometrico” de
suas conclusões, entendendo por esse procedimento, como Espinosa e
Pascal, aquele que demonstra a partir de definições, postulados e
axiomas, a exemplo de Euclides.
[87] Diz Descartes: “os antigos geômetras fizeram uso de uma espécie de
análise, que estendiam à resolução de todos os problemas, ainda que
não a tenham transmitido à posteridade. E, em nossa época, floresce um
gênero de aritmética, que se chama álgebra, que permite fazer no
tocante aos números o que os antigos faziam em relação às figuras.
Essas duas disciplinas não passam de frutos espontâneos dos princípios
inatos de nosso método” (X, 373, 13-20; 1985, p. 25). E, mais adiante:
“Na verdade, parece-me que alguns vestígios desta verdadeira
Matemática surgem ainda em Pappus e Diofanto, os quais, sem serem
dos primeiros tempos, viveram no entanto muitos séculos antes da nossa
era. E não me custa acreditar que, ulteriormente, os próprios autores a
fizeram desaparecer por uma espécie de astúcia perniciosa. (…) Houve,
enfim, alguns homens muito engenhosos que se esforçaram no nosso
século por ressuscitar a mesma arte, pois a que se designa com o
bárbaro nome de Álgebra não parece ser outra coisa, contanto que
apenas seja de tal modo liberta dos múltiplos números e inexplicáveis
figuras que a complicam, que não mais lhe falte aquele grau de
perspicácia e facilidade extremas que, por suposição nossa, devem
existir na verdadeira Matemática” (X, 376, 21-26; 377, 2-9; 1985, p.
27-28).
[90] Essa obra encontra-se traduzida para o francês por VER EECKE
(1959); para o inglês, existe a “tradução”/adaptação em notação
moderna, feita por HEATH (1964).
[96] Publicada pela primeira vez em 1591, foi traduzida para o francês,
em 1630, por Vaulézard, juntamente com os Cinco livros dos zetéticos.
Cf. VAULÉZARD (1986, p. 7-66). Uma tradução inglesa se encontra em
apêndice a KLEIN (1968, p. 313-353). A Obra matemática de Viète,
publicada em 1646, foi reeditada em 1970.
[97] É assim que VIÈTE (1970, p. 12; destaques do próprio autor) finaliza
sua obra: “Denique fastuosum problema problematum ars Analytice,
triplicem Zetetices, Poristices et Exegetices formam tandem aiduta, iure
sibi adrogat, Quod est, NULLUM NON PROBLEMA SOLVERE”.
[99] Diz VIÈTE (p. 11), no cap. VIII, 2: “Itaque Aequatio est magnitudinis
incertae cum certa comparatio”.
[100] Essa idéia é também de Descartes. A Regra XIV afirma que, “em
todo raciocínio, é apenas por comparação (per compariomem) que
conhecemos a verdade de uma maneira precisa”, que todo
conhecimento, além da simples intuição, só pode ser adquirido “pela
comparação (per compariomem) de dois ou mais objetos entre si” (X,
439, 19-21; 440, 1-5).
[104] Não se pode deixar de salientar o avanço que houve, nessa época,
no que diz respeito à elaboração de regras algébricas e de manipulação
das equações. Descartes oferece no Livro III da Geometria um exemplo
desse esforço, onde trata, por exemplo, da relação entre o grau de uma
equação e o número de raízes dessa mesma equação (regra já conhecida
por alguns como Cardan, Girard e Harriot), da divisão de polinômios, da
determinação do número de raízes “verdadeiras” e “falsas”, de regras de
simplificação e de fatoração. Tudo isso dá dinamicidade e agilidade à
álgebra, enquanto o aperfeiçoamento do simbolismo dá mais
generalidade e “abstratidade”.
[106] Continua ele (KLEIN, 1968, p. 320-21): “And although the ancients
set forth a twofold analysis, the zetetic (ζητητική) and the poristic
(ποριστική), to which Theon’s definition prticularly refers, it is nevertheless
fitting that there be established also a third kind, which may be called
rhetic or exegetic (ρητική η εξηγητική), so that there is a zetetic art by
which is found the equation or proportion between the magnitude that is
being sought and those that are given, a poristic art by which from the
equation or proportion the thuth of the theorem set up is investigated,
and an exegetic art by which from the equation set up or the proportion
there is produced the magnitude itself which is being sought. And thus,
the whole threefold analytical art, claming for itself this office, may be
defined as the science of right finding in mathematics”. Cf. VIÈTE (1970,
p. 1) e VAULÉZARD (1986, p. 13).
[107] Segundo FERRIER (1980, p. 138), Viète não está opondo, com suas
três espécies de análise, procedimentos diferentes e aplicáveis a casos
distintos, mas procedimentos complementares correspondentes às várias
etapas do método tradicional de análise. Segundo esse intérprete, a
análise zetética corresponde à parte da análise dos antigos chamada de
transformação ou análise própria, enquanto a porística corresponde à
resolução e a rética ou exegética, à síntese.
[115] A configuração pode ser dita completa, não no sentido de que não
haverá necessidade de introduzir outros objetos geométricos (por meio
de construções, como faziam os antigos, ou por meio de outros
recursos), mas na medida em que os objetos enunciados no problema
são todos considerados como dados, tanto os conhecidos quanto os
desconhecidos, bem como outros necessários à resolução do problema.
[116] Pappus, como foi visto acima, atribui à síntese certa naturalidade,
inexistente na análise.
[124] Diz Descartes: “Puis, sans considérer aucune différence entre ces
lignes connues et inconnues, on doit parcourir la difficulté selon l’ordre
qui montre, le plus naturellement de tout, en quelle sorte elles dépendent
mutuellement les unes des autres, jusque à ce qu’on ait trouvé moyen
d’exprimer une même quantité en deux façons: ce qui se nomme une
Equation, car les termes de l’une de ces deux façons sont égaux à ceux
de l’autre” (372, 14-22).
[125] Afirma a obra: “Et on doit trouver autant de telles équations qu’on a
supposé de lignes que étaient inconnues. Ou bien, s’il ne s’en trouve pas
tant, et que, nonobstant, on n’omet rien de ce qui est désiré en la
question, cela témoigne qu’elle n’est pas entièrement déterminée; et lors,
on peut prendre à description des lignes connues, pour tout les
inconnues auxquelles ne corresponde aucune équation” (372, 22-373, 2).
[127] Há, entretanto, um perigo aqui, segundo o que diz o início do Livro
III da obra: alguns procedimentos (decorrentes dos caminhos escolhidos)
podem não ser adequados metodologicamente, desde que utilizem
meios mais complexos dos exigidos, isto é, objetos geométricos (curvas)
de grau superior ao mínimo necessário: na resolução de qualquer
problema, há que se utilizar os meios mais simples possíveis. Cf. as duas
primeiras seções do Livro III (442-44).
[130] Cf.: “et faire ainsi, en les démêlant, qu’il n’en demeure qu’une seule”
(373, 7-8).
[131] Diz Descartes na pequena seção intitulada “Quels sont les
problèmes plans”, que se encontra entre as duas seções que estão
sendo examinadas aqui: “Et que, si elle peut être résolue par la
Géométrie ordinaire, c’est à dire en ne se servant que de lignes droites et
circulaires tracées sur une superficie plate, lorsque la dernière Equation
aura entièrement démêlée, il n’y restera, tout au plus, qu’un carré inconnu
égal à ce qui se produit de l’addition, ou soustraction, de la racine
multipliée par quelque quantité connue, et de quelque autre quantité
aussi connue” (374, 20-26).
[134] Diz Descartes na seção "De quelles lignes courbes on peut se servir
en la construction de chaque problème": "Encore que toutes les lignes
courbes, qui peuvent être décrites par quelque mouvement régulier,
doivent être reçues en la Géométrie, ce n’est pas a dire qu’il soit permis
de se servir indifféremment de la première qui se rencontre, pour la
construction de chaque problème; mais il faut avoir soin de choisir
toujours la plus simple par laquelle il soit possible de le résoudre. Et
même, il est a remarquer que, par les plus simples, on ne doit pas
seulement entendre celles qui peuvent le plus aisément être décrites, ni
celles qui rendent la construction ou la démonstration du Problème
proposé plus facile, mais principalement celles qui sont du plus simples
genre qui puisse a déterminer la quantité qui est cherchée" (442, 4-17).
[135] As razões pelas quais o autor omite uma ou outra etapa de seu
método são várias e de ordem diversa. A primeira, evidentemente, é
decorrente da personalidade de seu autor. Ele detesta ser prolixo e ser
excessivamente detalhado, quando não é fundamental. Além disso, ele
não é amante da formalidade e, portanto, da rigidez expositiva e da
estética daí decorrente. Ao contrário, o que importa é o conteúdo, e a
forma é que é sacrificada em função dele. Assim, Descartes é o mais
breve possível (principalmente em matemática) e funde etapas quando é
possível. Uma segunda razão é que Descartes não gosta de tudo ensinar
ou expor. Isto também está ligado à sua personalidade, mas
principalmente à sua concepção de método: dado que ele consiste mais
na prática e na hábil manipulação do conteúdo que na apreensão de
algumas regras fixas que se aplique a um conteúdo sempre diferente, o
melhor a fazer é exercitar “nos neuveux”. Uma terceira razão é que
Descartes trata os problemas geométricos em sua maior generalidade.
Isto significa que os problemas têm soluções semelhantes ou podem se
submeter a um tratamento comum ou mais geral. Uma quarta razão é
que Descartes fornece uma classificação dos problemas (e soluções) e,
portanto, já sabe de antemão qual é a solução de uma equação de uma
determinado grau (ou pelo menos quais meios deve utilizar). A quinta e
última razão é que a introdução da álgebra na geometria libera esta
última do problema da “reversibilidade dos passos da análise”, como
existia na geometria antiga.
[143] Pode acontecer que, em certos casos, alguns termos sejam nulos,
enquanto os sinais de soma e subtração podem variar bastante (399,
21-23).
[144] Descartes trata não somente deste caso particular, mas considera
todas as possíveis combinações oriundas das mudanças de sinais ou
quando determinado termo é nulo. Vê-se, pois, que Descartes, aqui, trata
do problema em toda a sua generalidade.
[146] O ponto N’ não é fornecido por Descartes. Ele está sobre a linha
NM, do lado oposto a N, em circunstância idêntica.
[151] Casos com cinco linhas dadas são também examinados por
Descartes (407-411). Um dos resultados da investigação cartesiana é a
classificação das curvas, soluções do problema de Pappus generalizado
para n linhas, em gêneros e o estabelecimento de sua relação com o
grau da equação correspondente. Assim, problemas de três e quatro
linhas dadas originam equações de segundo grau e pertencem ao
primeiro gênero; problemas de cinco a oito linhas dadas originam
equações de terceiro e quarto graus e pertencem ao segundo gênero;
problemas de nove a doze linhas dadas originam equações de quinto e
sexto graus e pertencem ao terceiro gênero; e assim por diante. Cf., por
exemplo, o quadro apresentado por VUILLEMIN (1960, p. 109).
[152] Diz Descartes: “Ao reste, ces mêmes racines se peuvent trouver par
une infinité d’autres moyens, et j’ai seulement voulu mettre ceux-ci,
comme fort simple, afin de faire voir qu’on peut construire tous les
problèmes de la Géométrie ordinaire” (376, 18-21; itálico acrescentado).
Descartes está se referindo à seção “Como eles (os problemas) são
resolvidos”, com total privilégio à construção, dado que a demonstração
é totalmente dispensável, mas também porque resolver, para Descartes,
é antes de tudo construir. Na verdade, o termo “construção” é
relativamente abundante na Geometria, principalmente no Livro III. Cf.,
por exemplo, os títulos das seguintes seções: “Exemple de la
construction de ce problème en la conchoïde” (423, 17), “De quelles
lignes courbes on peut se servir en la construction de chaque
problème” (442, 4), “Façon générale pour construire tous les problèmes
solides, réduits a une équation de trois ou quatre dimensions” (464, 17),
“Que tous les problèmes solides se peuvent réduire à ces deux
constructions” (471, 11), “Façon générale pour construire tous les
problèmes réduits a une équation qui n’a point plus de six
dimensions” (476, 25).
[155] Diz ele: “Mais le bon est, touchant cette question de Pappus, que je
n’en ai mis que la construction et la démonstration entière, sans en
mettre toute l’analyse, laquelle ils s’imaginent que j’ai mise seule: en quoi
ils témoignent qu’ils y entendent bien peu. Mais ce qui les trompe, c’est
que j’en fais la construction, comme les architectes font les bâtiments, en
prescrivant seulement tout ce qu’il faut faire, et laissant le travail des
mains aux charpentiers et aux maçons. Ils ne connaissent pas aussi ma
démonstration, a cause que j’y parle par a b. Ce qui ne la rend toutefois
en rien différente de celles des anciens, sinon que par cette façon je puis
mettre souvent en une ligne ce dont ils remplissent plusieurs pages, et
pour cette cause elle est incomparablement plus claire, plus facile et
moins sujette à erreur que la leur. Pour l’analyse, j’en ai omise une partie,
afin de retenir les esprits malins en leur devoir” (II, 83, 5-8).
[156] Diz a carta: “il [de Beaune] a fort bien vû en ma Géométrie les
constructions et les demonstrations de tous les lieux plans et solides,
dont les autres disaient que je n’avais mis qu’une simple analyse” (II, 524,
4-7).
[157] Diz Descartes: “Et les deux constructions que j’ai données pour
l’hyperbole, page 330 et 331 [VI, 402-03], se pouvaient expliquer par une
seule. Je n’ai point donné l’analyse de ces lieux, mais seulement leur
construction, comme j’ai fait aussi de la plupart des règles du troisième
Livre. Et au contraire, pour les tangentes je n’ai donné qu’un simple
exemple de l’analyse, pris même d’un biais assez difficile, et j’y ai omis
beaucoup de choses qui pouvaient y être ajoutées pour la facilité de la
pratique” (II, 511, 13-22).
[158] Diz a carta: “Je n’ai nullement changé de medium en ma
démonstration de la Roulette, car il consiste en l’égalité des triangles
inscrits, ce que j’ai toujours retenu; mais je l’avais trouvé la première fois
analyticè; et depuis, pour ce que j’ai vû qu’il [Roberval] n’en avait sû faire
le calcul, je l’ai expliqué après syntheticè” (II, 400, 16-18). Cf. também na
mesma carta: “M. F[ermat] a fort bien trouvé la tangente de la roulette, et
elle se rapporte à la mienne; mais s’il en envoye la démonstration
analyticè et syntheticè, comme il offre, je serai bien aise de la voir” (394,
1-4).
[159] BEYSSADE (1996, p. 34-35) talvez seja o único autor que reconheça
a importância do problema da roulette para a compreensão dos
conceitos de análise e de síntese, mas, mesmo assim, não vai além de
uma rápida observação: “2) Il [Descartes] a commencé à préciser cette
opposition [entre análise e síntese] en 1638, sur le problème
mathématique de la roulette, en soutenant qu’il avait d’abord trouvé sa
démonstration analytice, puis qu’il avait exposé la même démonstration
synthetice. 3) Il a achevé d’expliciter l’opposition en 1640-1641, quand on
lui a demandé de présenter sa métaphysique à la manière des géomètres,
more geometrico”.
[167] Por isso – e também porque não resolve o problema –, ela é dita,
por vezes, ser uma “simple analyse” (II, 524, 7), enquanto que uma
análise completa e não meramente “simples” engloba também a síntese
ou, pelo menos, a construção, já que a demonstração pode ser
dispensada em razão da evidência (intuitiva) das outras etapas.
[178] Diz ele: “Mais, pour comprendre ensemble toutes celles [linhas
curvas] qui sont en la nature, et les distinguer par ordre en certains
genres, je ne sache rien de meilleur que de dire que tous les points de
celles qu’on peut dire Géométriques, c’est à dire qui tombent sous
quelque mesure précise et exacte, ont nécessairement quelque rapport à
tour le points d’une ligne droite, qui peut être exprimé par quelque
équation, en tous par une même” (392, 17-25).