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Contos do livro ​Contos de Morte​, do Pepetela.

Mandioca de Feitiço

Para Miguel Torga

FAUSTINO E FIRMO, personagens saídos dos «Contos da Montanha», foram por artes
mágicas parar a Angola, na década de quarenta. Por artes de magia ou da literatura, o que
vai dar tudo no mesmo, pois se sabe que a palavra leva consigo muitos feitiços.
Quanto a Firmo, andarilho compulsivo, não seria de admirar, embora o seu terreno de
eleição fosse o Brasil, a Argentina e outras vizinhanças da América hispânica. Todos
sabiam, sobretudo na sua aldeia de Vilarinho, que ele desconseguia de ficar parado muito
tempo e o mundo o atraía como música de sereia. Por uma única vez trocou de lado no
Atlântico e foi encalhar em Luanda. Anos depois de se ter deliciado com a terra e as gentes,
reconheceu o patrício Faustino, acabadinho de chegar de Abaças, uma aldeia vizinha nas
fragas de Trás-os-Montes. A princípio manteve certas reservas, pois sobre Faustino corriam
estórias não muito abonatórias de furtos menores praticados nas redondezas das suas
aldeias. Já quanto a Faustino, poderia causar alguma estranheza tão comprido percurso
para fugir ao destino. Mas nem tanto assim, se pensarmos na miséria em que vivia na
montanha, condenado a roubar ninhos de passarinhos, pois pouco mais havia de que suas
mãos ávidas e ágeis se pudessem locupletar. A decisão de Faustino veio depois da terrível
aventura de, numa noite de tempestade, ter assaltado a desvalida capela da Senhora da
Saúde, de onde só retirou uma broncopneumonia que o ia levando desta para melhor. Disse
para a mulher quando estava mais recomposto, aqui não fico, é uma vergonha termos uma
capela onde nada há para nosso orgulho, apenas uma caixa de esmolas permanentemente
vazia e nem um crucifixo de prata ou um cálice, nada de jeito, assim também é demais, vou
masé roubar para outras freguesias. Um parente afastado mandou-lhe uma providencial
carta de chamada e lá embarcou para Luanda na terceira classe do paquete «S. Tomé».
Firmo e Faustino costumavam se encontrar na Pensão Flaviense, para beber um copo e
matar saudades da terra. Sobretudo para compararem Vilarinho e Abaças, chegando
sempre ao consenso de que se igualavam na miséria e na falta de perspectivas. No
entanto, Firmo já morria de saudades e mostrava muita inquietação com a sua permanência
parada em Luanda, embora tivesse um bom emprego, do qual ia amealhando uma razoável
maquia. Na altura em que Faustino lhe confidenciou que tinha finalmente arranjado trabalho
numa roça de café no Uíje, onde certamente ia enriquecer pois o café era o futuro, Firmo
revelou que comprara passagem num barco zarpando daí a dias, voltando à terra por tempo
incerto mas o suficiente para fazer mais um filho na mulher. Deixava em Luanda os dois
mulatitos que entretanto gerara na Rosa, sua lavadeira. Estes dois filhos de Firmo
cresceriam nas ruas, um pouco ao abandono, embora tivessem todo o carinho da mãe, que
os criou sozinha e sem nunca mais rever o transmontano. Cresceram revoltados contra a
sua condição de filhos de pai incógnito, como era de esperar, e foram um dia engrossar o
exército que libertaria o país.
Quanto a Faustino, a estória foi outra.
Partiu para o Uíje, terra de montanhas também, mas sendo as urzes substituídas por
densas florestas, onde, na sombra das grandes árvores, crescia o arbusto do café, riqueza
para uns poucos colonos, maldição escrava para muitos. Começou como capataz na roça,
mas em breve ficou uma espécie de gerente, pois o anterior foi evacuado para Luanda por
causa de um paludismo fulminante e o patrão não tinha mais ninguém em quem confiar.
Confiar no Faustino? O problema foi mesmo esse. O homem não podia ver dinheiro à sua
frente. Aprendeu rapidamente o que tinha a fazer e era suficientemente activo para
contentar o patrão, também ele um pouco desleixado, mais preocupado em ir jogar às
cartas na cidade do que em permanecer na roça para controlar as coisas. E o Faustino
acabou por ter acesso ao dinheiro das compras de comida para os trabalhadores ou para
material urgente. E foi desviando umas migalhas. Temos de compreender, era demais para
quem tinha sempre convivido com a fome mais absoluta e sem saber o que lhe iria
acontecer no dia seguinte. Foi escondendo aqueles trocados na mala de folha que tinha
trazido da Metrópole, era o seu seguro de vida, a sua pensão reforma.
Faustino ainda não tinha aprendido com os outros colonos que em Portugal se habituavam
a só ter gente acima deles e, de repente, caídos em África, descobriam ter muita gente
abaixo deles afinal. E exerciam até à exaustão sobre esses deserdados da vida o
pequenino poder com que de repente se maravilhavam. Faustino só tivera tempo de
aprender as tarefas exigidas no serviço e a guardar de lado alguma pequena fortuna para o
que desse e viesse. Por isso ainda tratava os trabalhadores da roça como seres humanos.
E arranjou uma relação mais chegada, senão amizade, com o ajudante do cozinheiro da
casa grande, um jovem esperto que se chamava Ndozi.
Estava a sua vida correndo pelo melhor, apesar do calor a que não estava habituado e dos
mosquitos que lhe furavam a pele. Mas num repente lhe desabou o mundo em cima da
cabeça. Falta de habilidade nas contas, demasiada confiança, não sabemos ao certo qual o
erro, mas o facto é que o patrão foi alertado pelo Costa, seu ajudante na contabilidade e
secretaria, da provável existência de algum desvio nos dinheiros destinados à comida dos
trabalhadores. Investigaram os dois, no segredo que deve envolver essas coisas, até
chegarem ao Faustino. E daí até à mala de folha, onde estava uma quantia que
ultrapassava os salários entretanto recebidos pelo capataz-quase-gerente. Patrão e Costa a
revistarem a mala e o Ndozi a avisar o Faustino, é melhor fugir, ouvi tudo, o patrão vai
chamar a polícia da cidade.
Faustino nem teve muito tempo para pensar, ainda por cima com Ndozi a pressionar, é
melhor fugir, é melhor fugir. De facto, nunca se tinha confrontado com a polícia. Os
pequenos delitos em Portugal foram resolvidos entre as suas mãos e a sua consciência,
com a excepção da tentativa na capela da Senhora da Saúde, que dessa vez se resolveu
entre o seu corpo e os poderes da santa, que lhe pregaram aquela valente
broncopneumonia para não mais esquecer. Mas tinha sempre ficado longe da polícia. Por
isso o terror de Ndozi, que esse apesar da juventude sabia bem como era brutal a polícia
colonial, encontrou terreno fértil no seu temor. E também devemos referir que Faustino tinha
uma ponta de vergonha em relação ao patrão, que nele confiara. Mas fugir para onde? Para
o mato, claro, onde havia de ser, lhe explicou Ndozi, todo nervoso, como se de liberdade
própria se tratasse. Faustino se viu naquele mato do Uíje, florestas atrás de florestas,
refúgio de todas as cobras, desde a terrível surucucu à pequena mas fulminante buta, cuja
picada matava num minuto. Os trabalhadores do café já lhe tinham mostrado cotos
decepados, pois quando na colheita a buta, escondida entre as folhas e parecendo um
raminho seco vulgar, mordia a mão que procurava os bagos da fortuna, o homem só tinha
tempo de cortar o braço com a catana mais próxima, antes que o veneno começasse a
circular no sangue e paralisasse o coração. Hesitava no seu medo e Ndozi teve de o
empurrar para o mato, o esconder numa casota abandonada ainda dentro dos limites da
roça, fique aqui por um tempo, que eu vou à casa grande falar com o patrão, arranjar uma
desculpa para ficar uns dias fora, depois levo-o para algum lado. Faustino nem teve acesso
ao seu quarto, ficou assim sem o dinheiro, a mala e toda a roupa.
Horas depois veio Ndozi explicar que o patrão lhe tinha concedido três dias para visitar os
parentes. Para isso lhe contou que acabava de receber a notícia da morte de um tio e tinha
de ir assistir ao óbito. Relatou ainda Ndozi que a polícia tinha chegado à roça para constatar
o roubo mas sobretudo o desaparecimento do Faustino, prova mais do que suficiente da
sua culpabilidade. Teria pois de ir para outra província, que certa¬mente as buscas se
limitariam à cidade, não chegariam ao Kuanza-Norte ou ao Zaire, províncias vizinhas.
Leva-me então até lá, não importa qual, olha, a que ficar mais perto de Luanda, a qual era o
Kuanza-Norte mas Ndozi não o levaria até lá, apenas até uma estrada onde ele pudesse
apanhar uma boleia de algum camião.
Assim combinados, meteram pelo mato e se afastaram da roça, evitando os caminhos e
sobretudo as picadas. Levavam apenas uma cabaça cheia de água, que o rapaz trouxera
da roça. Segundo este, bastaria dormirem uma noite na caminhada, pois no dia seguinte já
Faustino poderia apanhar alguma boleia, quem ia negar levar um branco em estado de
necessidade? E como mandava a tradição, até teria direito a ir na cabana, que a carroçaria
e a poeira eram destinadas aos negros. Ndozi voltaria logo para a roça, que não lhe
convinha ter três dias descontados no ordenado, se o pudesse evitar.
À tarde a fome apertava, porém. Tinham saído cedo da roça, só com algum café tomado. E
Faustino não parava de se lamentar, agora que comia três refeições por dia, uma delas
sempre de carne, do que nos seus tempos de Portugal nem o cheiro lhe chegava, é que
tinha tido o azar de ser apanhado com a massa na mala. Gomo podia o desgraçado do
Costa ter descoberto tudo, eram quantias insignificantes de cada vez, mas todos os dias, ou
quase todos, é certo, esse Gosta era um coca-bichinhos, umas míseras diferenças lhe
chamaram a atenção, estupor. E antes que fosse ele o acusado, tratou de o acusar, só
podia ser isso. O Ndozi tinha razão, o patrão ia deixar o caso por ali, nem se ia queixar para
Luanda, e ele podia ir viver para outra terra. O problema seria arranjar um emprego tão bom
e num sítio tão bonito como é uma montanha de café, com os nevoeiros matinais que são
afastados pelo Sol nascente, espalhando luz pelos verdes de todas as cores.
Andaram pelo mato até ao fim da tarde e nessa altura meteram por um caminho que os
conduziu a umas lavras de mandioca. Havia aldeia por perto. Ndozi não queria arriscar, pois
o branco ia embora, mas ele ficava. Podia acontecer por um azar que algum dos habitantes
da aldeia mais tarde soubesse do desaparecimento do Faustino e ligasse os factos. Se
fosse contar ao patrão que Ndozi servira de guia, ainda acabava por ser acusado de
cúmplice, quando só fazia isto por pena de alguém que sempre o tratara bem, caso raro
com os brancos. Tinha pois de evitar ser visto com Faustino. E só havia uma alternativa,
dormir com fome.
Mas o outro reconheceu as lavras de mandioca e a barriga roncou mais alto.
— Essa mandioca é da que se come?
De facto era a qualidade que não tem veneno e por isso não precisa de ficar em água
durante uns dias. Podia ser imediatamente consumida e assim Ndozi explicou. Mas logo a
seguir apontou para os fiapos de pano vermelho que estavam amarrados nalgumas hastes.
— Tem feitiço. Quem come morre.
E afastou Faustino da lavra, avançando de novo para o mato. Parou pouco depois para
descansar.
— É melhor dormirmos aqui. De manhã lhe levo até à estrada, já não fica longe.
E sentou no chão, encostado a um tronco de árvore, descansando. Faustino, apesar de
muito fatigado, permaneceu de pé, olhando para o caminho que tinham abandonado. Não
conseguia despregar a vista dos troncos finos mas convidativos das mandioqueiras jovens.
E a barriga roncava, roncava, mal habituada já àquelas fomes que noutros tempos eram a
normalidade. Num repente pegou no facão que levava à cintura e investiu contra a lavra.
— Não faz isso, só Faustino, não faz isso.
Inútil gritar, inútil correr atrás dele, inútil demovê-lo. O português foi mesmo ao primeiro pé
de mandioca, com o facão removeu o chão e desenterrou um tubérculo grosso como um
braço. Desenterrou outro e voltou para onde estava Ndozi.
— Tens a certeza que esta mandioca não tem veneno?
— Não tem. Mas tem feitiço. E pior.
— Deixa-te disso.
— Esses panos vermelhos que se amarram em cima é para avisar. Essa lavra foi
enfeitiçada. Só os donos podem tirar.
— Essas crenças são pagãs, nem devias dizer isso. É pecado.
Ndozi recusou o tubérculo que Faustino lhe estendeu. Este começou a descascar o seu,
sentado agora junto de outra árvore.
— Não és católico, ó Ndozi? Não costumas ir à missa?
— Às vezes.
— Então como acreditas nestes feitiços? Disparate.
E meteu à boca um pedaço cortado da mandioca. Doce, suculento, uma delícia para a sua
fome.
— Hum, maravilha.
Derrotou o tubérculo inteiro e descascou o outro. Ndozi só olhava, enquanto escurecia à
volta deles. Para se entreter, o angolano juntou paus secos que havia à profusão ali perto e
fez uma fogueira. Não estava frio, mas era mais aconchegante. E afastava os bichos.
Faustino entretanto tinha comido a outra mandioca e bebido água da que Ndozi trouxera da
casa grande. A fome tinha passado, se deitou perto da fogueira o mais comodamente que
pôde.
A meio da noite, Ndozi foi acordado pelos gemidos do companheiro. Porra, porra, que
dores. Faustino se agarrava à barriga, porra, que dores. Tinha vómitos, mas só ar saia. Bem
que se torcia, e vomitava, nem saia nada, nem a dor passava.
— Faz alguma coisa, porra, pá.
— Fazer o quê? — disse Ndozi. — Não há nada a fazer. É o feitiço.
— Só a Senhora da Saúde me pode valer, ela é muito mais forte que qualquer feitiço —
ainda disse Faustino no meio dos gemidos. — Ai valei-me, Senhora da Saúde.
Não lhe valeu. Ndozi ficou ao lado dele, assistindo impotente e pesaroso à agonia. De
manhã, usou o facão de Faustino para cavar uma sepultura no meio do mato. E lá ficou
para sempre o ladrão de Abaças. No mais completo segredo.
O Caixão do Molhado

SÔ BELARMINO MOREIRA nasceu na cidade do Porto, cidade que ele nunca nomeava
pela designação oficial, mas pela carinhosa de «Invicta». O feliz acontecimento que o trouxe
ao mundo aconteceu em 1918, num dia que culminava uma semana inteira de chuva
ininterrupta na Península Ibérica e arredores. Por isso o rio ameaçava galgar todos os
muros e obstáculos que ao longo da Ribeira as pessoas tinham acumulado à força de
braços e também dos músculos dos mulos, para evitar a inundação. Trabalho insano e
praticamente inútil, pois no momento em que a mãe o empurrou para a vida ao ar livre,
Belarmino escapou às mãos cansadas da parteira e mergulhou pela primeira vez na água
do Douro, que por essa altura já subia a vinte centímetros no chão da casa. Por isso o seu
primeiro nome não foi Belarmino, como o conheceremos mais tarde, mas «Molhado», como
lhe chamaram sempre na cidade natal. O pai, vagamente adepto da Maçonaria e
declaradamente anticlerical, arranjou no facto pretexto para não permitir que fosse
baptizado, já lhe chegava de águas, coitadinho, que mal saiu do calorzinho aconchegante
do ventre materno logo mergulhou no Douro castanho e gelado.
Muito mais tarde falaria sempre a brincar do seu primeiro nome de Molhado. Mas descrevia
com supersticiosa reserva, já muito a sério, a primeira visão que teve de uma outra cheia do
Douro, aos quatro anos de idade. A visão que para sempre o marcou foi a do cadáver de
um homem a passar no rio que corria, inchado, à frente da sua casa. Sempre associou as
cheias do Douro a esse instante de mudo terror. E registou, com notável precisão, o
infortúnio desmedido de se passar silenciosamente à frente de uma cidade, sem um caixão
que resguardasse a face morta e pálida dos curiosos olhares dos outros.
Quando o Molhado tinha cinco anos, o pai partiu para Angola, tentar a sorte. E quatro
depois, seguiu a família, ele, a mãe, e três irmãos. Para trás ficou definitivamente o Douro e
suas cheias. E quando lhe perguntavam na escola de Luanda de onde tinha vindo ele
respondia sempre da Invicta, pois claro. Viveu no alto da Boavista, num sítio onde havia
poucas casas e piores estradas, sobretudo quando chovia. Deste sítio do outro lado do
mundo também via água ao sair de casa. Só que esta era do mar e contida numa calma e
belíssima baía azul com coqueiros e palmeiras à volta. Se apaixonou pela diferença de
cores e nunca mais quis mudar de sítio. E, por morar na Boavista de Luanda, se tornou
adepto ferrenho do clube de futebol Boavista, do mesmo nome mas do Porto.
Casou, teve filhos, duas meninas, e um bom negócio de vendas diversificadas, desde
chouriço e roupa a materiais de construção. Ficou viúvo, casou as filhas, começou a
preparar a retirada dos negócios. Mas veio a Independência e os genros pegaram nas
famílias e abalaram para a África do Sul, os olhos cheios de estranhos medos provocados
por vagos remorsos. Ele nada tinha a temer e gostava da vista da baía, por isso ficou. No
entanto, nunca mais pensou em reforma, pois deixara de ter quem lhe continuasse os
negócios. Só fechou a loja no dia da independência, não por medo mas porque era dia
demasiado importante para não ser comemorado de alguma maneira. Aliás, tudo na cidade
estava fechado, excepto os hospitais, que recebiam os feridos da guerra que trotava
ameaçadoramente ao lado. Mas no dia seguinte à independência abriu as portas da loja às
oito horas, como durante trinta anos fizera.
Algum tempo depois da independência, atingiu os sessenta anos de idade. Era altura de
pensar na vida. Ou melhor, na morte e suas inconveniências. Ouviu uma conversa na loja
que o deixou a matutar. Se falava da dificuldade cada vez maior de arranjar madeira para
qualquer coisa que fosse, sobretudo para as obras. Os clientes aliás se referiam a
construções, pois vinham procurar os materiais no «Canto do Belarmino». Era assunto
muito falado na época o facto de a indústria ter enorme dificuldade em providenciar os
caixões para os funerais. Se chegou mesmo a um ponto de só certos privilegiados irem a
enterrar dentro de caixões seus, pois a maior parte ia embrulhada em lençóis e alguns em
caixões alugados, que em seguida eram desenterrados para servirem outros clientes. E foi
isso que o preocupou mais. Entrava numa idade em que um acidente do coração acontece
a qualquer momento. Ou se não for o coração é outra coisa qualquer. E se vivo já seria
difícil arranjar, muito mais complicado seria procurar caixão depois de morto. Porque o
aterrorizava a ideia de atravessar a cidade até ao cemitério de cara descoberta,
escancarada a privacidade de defunto, como aquele afogado do Douro que para sempre o
tinha marcado. Foi ali mesmo e naquele momento, ao ouvir as lamúrias dos clientes, que
resolveu providenciar imediatamente o seu próprio caixão, para evitar futuras complicações.
Entrou em contacto com um conhecido de Cabinda que lhe enviou a madeira suficiente. E
desencantou pano preto num canto do armazém. Pregos não foram problema, felizmente
tinha havido uma importação recente e ainda lhe sobravam muitos na loja. Com todo o
material necessário, encomendou um modesto caixão num marceneiro. Este lamentou que
ele quisesse um tão simples e não um mais sofisticado, como tinham tempo poderia
arranjar uns ornamentos e até uns baixos relevos que ficam sempre bem. Só Belarmino não
queria luxos, nada disso, homem, o simples é sempre o melhor, se não vivi com luxos não
será na morte que os vou levar. Pronto o caixão, carregou-o para casa. E ai se pôs o
problema de onde o guardar. Resolveu rapidamente a questão. O mais prático era colocá-lo
embaixo da cama. Se morresse na cama, seria mais fácil para quem se encarregasse de o
enfiar dentro da urna, estaria mesmo ali à mão. Se não morresse na cama, de qualquer
modo nela o deitariam para o velar. E portanto depois do velório despachariam facilmente o
assunto, com o caixão prontinho para ser usado.
Durante duas noites, é preciso reconhecer, teve dificuldades em adormecer, sabendo o
caixão embaixo dele. Mas depois se habituou à ideia e até o esqueceu. Quem não podia
esquecer era D. Maria, a empregada que lhe limpava o quarto e que de vez em quando
tinha de varrer embaixo da cama, para isso sendo obrigada a afastar o caixão.
Supersticiosa como todos os vizinhos do bairro Sambizanga, se benzia sempre que tinha de
fazer a operação para ela considerada macabra. E nunca ganhou hábito. Muitas vezes
comentava com os familiares em casa, o raio do meu patrão não regula bem, essa mania
de dormir em cima do caixão é de maluco. Provocava sempre discussão, pois o marido
defendia a ideia de Só Belarmino, esse branco tem mas é muito juízo, assim não dá
trabalho a ninguém quando bater as botas. E vamos aproveitar depois o caixão para outros
óbitos. O que provocava a revolta da esposa, isso é que eu não vou deixar, antes de
enterrar vou partir o caixão dele, assim ninguém que lhe pode mais usar, coitado do meu
patrão, lhe tiram a cama e lhe atiram no buraco só à toa para aproveitarem o caixão?, não
vou deixar, não, ele tem essa ideia maluca mas é bom branco. A cunhada Deolinda
defendia o irmão, aproveitamos sim o caixão, pelo menos a madeira que está cara,
enquanto o filho mais velho apoiava a mãe, não se faz isso a Só Belarmino, ele sempre nos
ajuda quando pode e a discussão generalizava naquela família do Sambizanga, conhecido
centro de conspirações e murmúrios.
Os anos passaram e acabou tudo por entrar no cinzento dos hábitos. D. Maria ainda
resmungava com essa ideia maluca quando limpava embaixo da cama, mas já nem
comentava em casa. E só Belarmino acabou por esquecer mesmo o caixão, que ele nunca
via, pois também já nem o penico usava, último pretexto que poderia levá-lo a martirizar a
coluna para espreitar o sítio e deparar com o objecto.
Na vizinhança morreu entretanto o Armindo e tempos depois a viúva Mariana aligeirou o
luto. Amigos antigos, só Belarmino apoiou muito a família do falecido, quer no funeral e
correspondente komba, quer no que se seguiu. E um dia olhou para Mariana a entrar na
sua loja e a viu não como a esposa de Armindo ou como a viúva recente de Armindo. A viu
apenas como a mulher que era, uma senhora mulata de meia idade, farta de carnes e com
um sorriso aberto, se queixando muitas vezes de dores nos peitos generosos. E ele pela
primeira vez pensou com malícia que a dor no peito não era devida a qualquer doença mas
sim a que os seios ficavam demasiado apertados nas blusas e sutiãs que ela era forçada a
usar e que os peitos deviam constituir um verdadeiro espectáculo quando se soltavam
triunfantes de tantos espartilhos. A garganta do portuense até ficou seca e não atinou com a
prateleira onde tinha o pano que ela desejava comprar.
Aquela secura na garganta foi coisa que não mais perdeu quando lembrava Mariana. E já
perto dos setenta começou a fazer contas à vida. Sobretudo a achar que a solidão era o
pior dos males e que nenhum homem tem o direito de se comprazer nela. O problema era
como fazer para realizar o desejo tão cuidadosamente escondido. Um homem de setenta
anos não faz a corte a uma viúva como um miúdo o faz a uma colega de escola. E como
será afinal? Tinha muitos amigos ali no bairro, mas a vergonha era demais para abrir o
coração e apontar as dúvidas a alguém, pedindo conselho. Nem nas noites de muitos copos
e jogos de cartas, quando o último amigo ficava para beberem juntos a : cerveja da porta,
hora própria para todas as confidências.
O que tinha de suceder acabou por acontecer da maneira mais natural. Mariana a entrar na
loja e a brincar com ele, dizendo que estava cada vez mais jovem, mais rijo. E ele a replicar
que ainda estava rijo, sim, mas já não como nos tempos passados em que parecia uma
goiabeira, nem tinha muita razão para resistir ao tempo, pois se sentia cada vez mais
sozinho, ao que ela respondeu isso é que está errado, o compadre tem de arranjar uma
companhia, mulheres é o que não falta nesta terra despovoada de homens pela guerra e
ele dizendo que também não era assim, difícil seria encontrar alguém que quisesse um
velho caquéctico, mas caquéctico coisa nenhuma, compadre, está aí ainda para muitas
curvas, o que era apenas bondade dela e na brincadeira, pois se ele lhe propusesse agora
a sério que juntasse os bancos dela às cadeiras dele, aí é que a porca torcia o rabo e lhe
dava uma valente berrida que ele até ia parar ao porto de Luanda, mas não deu berrida
nenhuma, sorriu antes com os dentes todos e o farto peito inchou que parecia ia explodir,
mas está a falar a sério, compadre, isso é mesmo uma proposta, que nunca tinha falado tão
a sério, há muito tinha pensado nisso porém não arranjava coragem de lho dizer,
provocando nela um imediato movimento de pura alegria. Assim foi dito, feita a proposta e
imediatamente aceite, sem falsos pudores ou aiués que ainda tenho de pensar. Como eram
gente de muita consideração e respeitadores dos bons costumes, decidiram no entanto que
só juntariam os trapos a sério depois de casados. Primeiro tinham de avisar as respectivas
famílias, as quais não deviam se importar muito aliás, sendo eles viúvos e com idade
suficiente para decidirem sozinhos sobre como queimar os poucos anos de vida que lhes
restavam.
O casamento foi preparado com todo o cuidado. Por essa altura já a Boavista estava cheia
de casas e de barracos, juntando muitos refugiados de guerra e outra população expulsa
das pequenas cidades. Só Belarmino era muito conhecido e D. Mariana também,
moradores antigos da zona, de muito antes de ali aparecer um mercado mundialmente
conhecido chamado Roque Santeiro, considerado, com razão ou sem ela, o maior de África
a céu aberto. Isto para dizer que duas figuras destas não podiam casar quase
clandestinamente, sem uma festa que juntasse centenas de pessoas comendo e bebendo
do melhor, mesmo com todas as carências que a cidade vivia. Por isso os preparativos
demoraram mais que o desejado. Fosse da excitação pelo dia se aproximando, fosse do
muito trabalho que teve nos aviamentos, o certo é que Mariana se queixava todos os dias
de forte dor no peito inchado. E só Belarmino, passada a timidez inicial, lhe segredava ao
ouvido, vais ver que essas dores passam logo na noite de núpcias, vou desenterrar
sabedorias antigas e quase esquecidas. E mais malandramente ainda, para a fazer
ruborizar, finalizava, esses peitos doem porque estão a pedir para serem chupados, o que
não acontece há muito tempo. Ai filho, que ordinário, se desfazia ela toda em melados
requebros e não menos malandros olhares de promessas.
Ficou célebre na história da Boavista o casamento de Belarmino, alto e seco, de cor branca
mas enferrujada pelo muito sol apanhado na pele, com a esplendorosa Mariana, mulata
alegre e prazenteira que gostava de andar descalça na rua. Se comeu e bebeu o dia inteiro
e toda a noite, num terreiro preparado nas traseiras da loja. E os noivos fugiram a meio da
noite para casa dele, onde passariam a residir, ficando a casa dela para os filhos já casados
e sempre com falta de espaço, pois não paravam de provocar barrigas a inchar.
Com a sua gentileza habitual, Belarmino deixou o quarto para a noiva se preparar e deitar,
ficando ele na varanda a fumar o último cigarro e ouvindo os rumores da festa que
acontecia ali perto. Se preparava para entrar no quarto e enfrentar os deveres da noite de
núpcias quando um grito lancinante feriu a noite. Correu para saber o que sucedia e
encontrou a noiva deitada no chão do quarto, um braço por cima do caixão que aparecia
debaixo da cama. Aparentemente, ela deu com a existência da coisa e puxou um pouco
para fora para saber de que se tratava. O susto pela descoberta macabra acabou com o
seu coração enfraquecido. Quando Belarmino chegou até ela, já a vida se tinha
irremediavelmente esfumado pelos olhos abertos.
Mariana foi a enterrar no caixão que o desconsolado marido encomendara dez anos antes
para si próprio.
Vale a pena acrescentar que, depois de enterrar duas esposas, e uma delas com menos de
um dia de casamento, só Belarmino ultrapassou definitivamente o trauma de criança e disse
para si próprio, que se lixe se passar pela cidade de cara descoberta mas outro caixão é
que não arranjo, pois tanta previdência pode não ser prudência.

O nosso país é bué

QUANDO MIÚDO LITO irrompeu pela casa, feito bola de futebol a entrar na baliza do
Primeiro d'Agosto, como ele gostava de ver no estádio da Cidadela, a mãe assustou, que
passa, que passa? Eram tempos difíceis, qualquer notícia podia trazer uma tragédia,
qualquer cor¬rida podia significar perigo, qualquer grito significar agonia.
— Esse país é bué, mãe, esse país é bué!
Dona Fefa bem conhecia os entusiasmos repentinos do filho pelo país, aprendidos nos
livros da escola, embora contrariados constantemente na rua. Desta vez ele vinha daí
mesmo, da rua, se espantava ainda mais ela por tanto patriotismo. Parou de mexer a colher
de pau na panela do feijão com óleo de palma, limpou as mãos ao avental, disse com voz
cansada, explica então como esse país é bué, que mentira mais te pregaram? Que não era
mentira, não, ele tinha visto mesmo, mãe, petróleo a sair no chão, aí no quintal de Dona
Isaura.
— Deixa de brincadeiras, não vês estou a trabalhar?
Miúdo Lito se encostou na parede mal rebocada da cozinha, onde se notavam, entre os
bocados de barro seco, os troncos tortos de mandioqueira que seguravam a construção
precária. Encolheu os ombros. Falou mais baixo, mas ainda entusiasmado:
—Vi o petróleo a sair assim do buraco que eles cavaram no chão, mãe. Afinal tinham
tapado aquele bocado com esteiras, nem nos deixavam entrar lá no quintal. Era para
esconder o buraco que andavam cavar. Mas hoje se distraíram e eu entrei com o Pedro. Vi
o buraco. Dona Isaura estava a receber o balde em cima, o pai do Pedro estava lá dentro
do buraco. Quando me viram berraram bué com o Pedro, que ninguém que podia entrar no
quintal, se ele não sabia já... Depois me pediram muito não conta embora a ninguém.
— E já me estás a contar a mim, ralhou Dona Fefa, seu fofoqueiro.
— Mas a senhora é minha mãe, posso contar. Até porque também vamos cavar buraco no
quintal. O Pedro me disse que depois vai vender em garrafas na rua, como os outros estão
fazer. Esse petróleo que serve para os candeeiros que agora se anda a comprar no Roque
Santeiro, afinal não vem da Sonangol, está vir mesmo do chão.
Dona Fefa estava estranhar. Lito não era mentiroso e se dizia que tinha visto é porque era
verdade. De facto já ouvira falar, no mercado Roque Santeiro vendiam petróleo para
candeeiro mais barato que o tabelado pelo governo. Mas então a amiga Isaura se metia em
negócios desses e nem lhe dizia nada? Sim, o kandengue fez bem em contar. Julgava ela
que conhecia os amigos... Quando cheirava a dinheiro no ar, logo entravam os
esconde-esconde, para não se perder negócio. Então Dona Isaura, quase vizinha, que só
escapou ser comadre porque a menina morreu à nascença, ia lhe convidar para ser
madrinha do segundo filho, essa mesma Dona Isaura que conhecia desde que se
instalaram no bairro na altura da Independência afinal agora esqueceu a amizade e guardou
segredo de que havia petróleo no quintal dela, hum, hum, não se faz a uma amiga! De facto
havia esse cheiro que aparecera de repente no bairro, parecia vir de todos os sítios ao
mesmo tempo. Julgava que vinha da refinaria, às vezes eles faziam umas limpezas e
deitavam os líquidos à toa, até para o mar. Afinal vinha dos quintais vizinhos e era a prova
do que dizia Lito. Mas se no quintal de Dona Isaura há petróleo, não quer dizer que aqui
também tem, era Dona Fefa a querer duvidar ainda de uma sorte demasiada...
— Mas tem sim, mãe, tem em todos estes quintais da zona. O pai do Pedro também soube
pelos vizinhos e pelo cheiro que vinha do lado. Todos andam a cavar, só que estão a
esconder, têm medo do governo.
A prudência da mãe desconfiou de tanta fartura, se têm medo do governo é porque estão a
fazer coisa má, o que não era no entanto certo, argumentava o miúdo ainda entusiasmado,
só têm medo porque a polícia vem e fecha os poços à toa, ou a polícia pede gasosa
demais. Logo veio acima o nacionalismo de Miúdo Lito que repetiu este país é bué, aqui
nem é preciso refinar. Isso estudei na escola, o petróleo tem de ser refinado ali na
Petrangol, só depois pode ser utilizado nos candeeiros ou nos carros ou nos aviões. Mas
aqui sai já directo do chão para o candeeiro, não sei se também dá prós carros. E bué
mesmo, ninguém que aguenta esta terra.
Miúdo Lito saiu disparado para a rua, com o mujimbo a encher o peito. Dona Fefa ficou a
pensar, então a vizinha Isaura vai mandar o Pedro vender petróleo na rua? É capaz de dar
bom dinheiro. E que jeito lhe dava, também a ela. Viúva, obrigada a trabalhar de lavadeira
para criar o filho, sem mais família na cidade e sem saber onde anda a que deixou no mato,
perdida pelas guerras... uns garrafões de petróleo todos os dias podiam ajudar muito. Mas
como cavar um buraco no quintal? Ela sozinha? O miúdo podia ajudar, mas não chegava. E
para essas coisas não se pode contratar um roboteiro, aproveitam logo nas exigências e
acaba por ficar muito caro. Nem dá pedir a um vizinho, não é mesmo coisa que se peça a
um vizinho, por muita intimidade que haja. A latrina fora cavada há anos pelo marido e levou
muito tempo, pois não é fácil cavar um buraco fundo. E Lito tinha dito que o pai do Pedro
desaparecia no buraco para encher o balde, imagine-se a altura do buraco. Abanou a
cabeça. Era uma tentação aproveitar a riqueza que jazia em baixo do quintal, lá isso era. E
não estava a roubar ninguém, o petróleo estava na terra, era de quem apanhasse. Ou não?
Esperou que o feijão apurasse e foi falar à vizinha Isaura, saber mesmo das coisas, o
coração dela estava a doer e mais doía se não tirasse a coisa a limpo. Avizinha que lhe
desculpasse o atrevimento, mas o miúdo contou, sabe como são os miúdos, não podem
guardar segredo, e o assunto é tão importante que merece mesmo o risco de criar
incómodo entre amigos. A vizinha Isaura compreendeu, ficou muito embaraçada no
princípio, até estava mesmo para contar à Dona Fefa, só que o meu marido disse, espera
ainda mais um pouco para ver se sai alguma coisa, muitas vezes as promessas não se
cumprem, mas era verdade mesmo, tinha saído petróleo, a amiga podia vir no quintal ver e
cheirar, cheira mesmo a petróleo, logo mais vamos vender na rua e Dona Fefa também
devia cavar um buraco, se tornar proprietária de um poço de petróleo, ainda vamos ser uns
nababos a andar de Mercedes e fumar charuto, vizinha. Uma gargalhada de Isaura fugiu
para as ralas nuvens no céu azul. Dona Fefa tinha dúvidas, e se a polícia sabe? Esse de
facto era o problema, os vizinhos que tinham poços clandestinos andavam a discutir muito
isso, disse Dona Isaura, porque para uns garimpo de petróleo é proibido, os angolanos não
podem ter poços, só os estrangeiros, o que é evidentemente uma injustiça os donos da
terra serem afastados dessas riquezas, outros no entanto diziam não, agora já há garimpo
livre, não só de diamante mas de tudo, não há mais partido único, nem garimpo único, é a
democracia petrolífera. E o que está no subsolo não tem dono. Ainda preciso de pensar
bem, rematou Dona Fefa, sozinha como vou cavar, mesmo com o Lito a ajudar? E voltou às
suas enegrecidas panelas.
Não teve tempo de tomar uma decisão. Miúdo Lito e os outros miúdos da zona se passaram
o mujimbo e não aguentaram o peso de o reterem, eram tão patriotas que tiveram de o
transmitir a vizinhos mais longe, para estes também se congratularem com o país que
tinham, de modo que a notícia chegou a uma rádio, depois a outra, a cidade ficou a saber, o
país e o mundo. Depois a polícia também soube e veio no bairro proteger a empresa
encarregada de tapar os buracos à força, dizendo que afinal andava a morrer gente com
explosões e incêndios provocados por esse petróleo que não era petróleo bruto e não saía
da terra só assim, afinal antes tinha passado pela refinaria e depois se infiltrado pelo chão
vermelho por algum tubo gasto, formando um lençol subterrâneo. Então não ouviram falar
de Só Afonso, aquele fazedor de tijolos já velho mas sempre rijo, que morreu numa
explosão a acender o candeeiro? Era desse líquido aí, mistura de gasolina com outro
produto, um perigo para todos, sobretudo as crianças. Os supostos donos dos poços ainda
tentaram resistir aos homens da empresa e aos polícias, até porque agora somos
proprietários e não podemos ser tratados como deslocados de guerra sem voz, têm de nos
ouvir, a nós, os microempresários, agentes económicos. Mas as autoridades disseram, esse
produto tem dono, saiu da refinaria ou de tubos da refinaria ou de outro sítio qualquer, além
disso é perigoso, já morreu gente, portanto, senhores microempresários, se insistem,
chamamos os ninjas, eles sabem dar cabo rapidamente de qualquer resistência à
autoridade. Foi o ponto final no garimpo de petróleo, que de facto era gasolina adulterada
pela muita ferrugem dos canos. Mais tarde veio a explicação nos órgãos de comunicação
social, a refinaria era velha e há muito tempo não tinha manutenção a sério, daí as fugas de
líquido.
Miúdo Lito ficou desiludido. Não por ter desaproveitado a riqueza que dormia no seu quintal.
Mas porque afinal o país não era assim tão bué como imaginara.

Estranhos Pássaros de Asas Abertas

Introdução ao Canto V de Os Lusíadas

NAMUTU VIU OS GRANDES PÁSSAROS de asas abertas passarem o cabo que abrigava
a baía. Como no sonho de Manikava, o sábio, que via o futuro nas labaredas do fogo e nos
intestinos do cabrito.
E Manikava tinha contado, num sonho ele viu mesmo, iam chegar grandes pássaros de
asas brancas e dentro deles saia gente estranha, como filhos-formigas brotando de ave
morta. Contou no chefe, depois contou no povo reunido na praça da aldeia. O chefe
perguntou, isso é um bom sinal dos antepassados? Manikava disse não sabia, mas o peito
estava apertado, coração a bater com força. Talvez os antepassados estavam a mandar
aviso, cuidado, muito cuidado. Foi na outra lua, Namutu recordou logo.
Agora via os pássaros passarem o cabo, voando por cima da água do mar, como no sonho
acordado de Manikava. Pensou em Luimbi, seu único filho, ido com Samutu, o pai, apanhar
mel. Correu para junto deles, mas já não estavam no sítio onde tinham ficado. A mulher não
daria importância em tempo normal, mas deixara de ser tempo normal. Os pássaros voando
em cima da água, tão monstruosos, não podiam ser aves como as que conheciam, podiam
trazer perigo a Luimbi, seu único filho. E desconseguia ter outros filhos depois da doença,
Manikava lhe dissera ao consultar os búzios. Procurou nas pequenas matas do mel, depois
voltou à aldeia, saber se Samutu já tinha voltado com Luimbi.
O gigante suspirava na sua solidão, consumindo-se de amores por Tétis, a ninfa feita deusa
na sua imaginação. Tétis a outro pertencia, se as ninfas podem ter dono. Sobretudo,
gostava de perturbar os machos, fingindo interesse até os pôr fora de si, para depois se
subtrair aos compromissos não assumidos mas subtilmente sugeridos. Quando via o
colosso perto, penteava os compridos cabelos da cor das algas com pentes de coral
brilhante, virando-lhe as costas nuas. Se o sentia mais próximo, rodava ligeiramente o
corpo, de modo que o halo de um seio se pronunciasse em promessas. E o gigante
suspirava, cada vez mais exangue.
A criança estava lá, chupando um favo. Disseram, o marido dela voltou nas matas de mel,
pouco tinha encontrado antes, veio à aldeia só mesmo para trazer Luimbi, cansado.
Tranquilizada, Namutu pegou no filho ao colo. Depois contou, chegaram os pássaros do
sonho de Manikava, estão passar lá na baia. As mulheres espalharam a notícia, grande
confusão se estabeleceu, todos querendo ir logo ver. Mas lembraram o aviso de Manikava,
cuidado, muito cuidado.
Sem cuidado estava Samutu, todo entretido a retirar um bom favo de um pau já seco. Três
seres estranhos se apoderaram dele, lhe agarraram pelos braços e lhe arrastaram para a
praia. Um grande medo entrou no peito de Samutu, com o cheiro pestilento deles e o seu
aspecto desgrenhado de bandidos. Tremia todo e falava, me deixem, me deixem, só
podiam ser espíritos injustiçados vindo se vingar. Ele não tinha feito mal nenhum, homem
pacífico, como vinham agora lhe punir? Mas os seres estranhos falavam entre si com gritos
e puxavam por ele, os gritos eram numa língua desconhecida. E em breve outros gritos se
juntavam aos deles e ele viu, na sua confusão, um barco na praia, como um dongo mas
diferente, e os pássaros no meio da água, de asas brancas. Desorientado, não lembrou a
profecia de Manikava, só sentia o seu medo batendo no peito e o mau cheiro dos espíritos
lhe entrando no nariz. Os que o puxavam pararam junto de outros caras de cazumbi e lhe
soltaram. Samutu ficou esfregando os braços, sem perceber o que lhe diziam, a cabeça já
atordoada. Então, um de barbas lhe mostrou umas coisas que tinha na mão, pedras
brilhando um pouco. E depois apresentou o que parecia pequenos frutos secos e depois pó
bem cheiroso, que tapava o cheiro deles.
Parecia os espíritos não gostaram do seu silêncio, mostravam as coisas, pressionavam,
olhos ávidos, queriam respostas, isso adivinhava Samutu, mas que respostas e a quê, se
nem a língua deles conhecia? Depois eles mostraram uma coisa vermelha e lhe puseram
na cabeça. Isso Samutu compreendia, era como um barrete, mas comprido e vermelho,
bom para o frio húmido da noite e para o sol quente do dia. E lhe puseram na mão umas
missangas coloridas, e ele sorriu, já mais calmo. Se os espíritos lhe davam coisas, então é
porque não vinham para se vingar de faltas não expiadas. Eles também riram ao sorriso
dele. E todos riam agora uns para os outros, batendo nos ombros deles e nos dele também,
em gestos de amizade. A roda à volta de Samutu se abriu e ele compreendeu, os espíritos
lhe deixavam partir.
Não hesitou, não olhou para trás. Com o barrete na cabeça e as missangas bem apertadas
na mão, andou na direcção da aldeia, esquecido o medo, mas apressado pela vontade de
estar entre os seus. Os quais vinham ao encontro, com grandes gestos e gritos de aflição.
Estava o dia a declinar.
Se Samutu percebesse a língua dos espíritos, teria entendido o que o chefe de barbas e
que lhe mostrava as pedras brilhantes queria, saber se aqueles metais preciosos, ouro,
prata, existiam ali, e saber também se ele conhecia especiarias do Oriente. Mas não
entendeu também a fala final, deixem-no ir, este não sabe qual é o caminho para a índia,
nem se estamos perto ou longe de o achar. Vendo as coisas trazidas por Samutu, os outros
queriam ir ter com os espíritos, mas a noite caía e a prudência aconselhava distância. Com
o escuro da noite, os cazumbi se transformam, ganham ferocidade, e embora não lhe
tivessem feito mal, podiam mudar de atitude, agitados pelos medos nocturnos. Voltaram
para o kimbo, as mulheres querendo todas usar o barrete vermelho de Samutu e correndo
umas atrás das outras, em grandes risadas. Foi uma noite alegre, pois muito raramente se é
visitado por espíritos aparentemente benignos. Só Manikava se mantinha afastado do
rebuliço, a fronte enrugada, cismando os seus mambos de adivinho. Tentaria Manikava
descobrir quais as intenções de Nzambi, Suku, Kalunga, ou qualquer outro deus, ao lhes
mandar seres tão estranhos como os descritos por Samutu?
No dia seguinte, ainda o sol começava a lamber as suaves curvas das colinas sem árvores,
já um grupo numeroso tinha avançado para a baía, levando mel, carne seca e cerveja de
massango. Ao chegarem perto da praia, viram os pássaros parados em cima da água. E
logo os espíritos estranhos lançaram um dongo à água e vieram alguns para a praia.
Espantoso, aqueles pássaros até dongos tinham dentro deles e muitos espíritos. Isso
comentavam as pessoas na praia. Viram como vinham vestidos os cazumbis, morrendo de
calor debaixo de grossas roupagens todas empapadas de suor. Estranhos mesmo esses
cazumbi, como devem afinal ser os espíritos dos defuntos, que nunca tinham antes visto
assim tão claramente. Não fugiram quando o batel acostou e os espíritos saíram lá de
dentro, expondo na areia panos e barretes e missangas coloridas. Cada um dos da terra
apanhou qualquer coisa, com grandes gargalhadas e gestos de alegria, as mulheres
chegando mesmo a ensaiar passos de dança. Os espíritos recolheram o mel, a carne seca
e a cerveja de massango, embora alguns se mostrassem desconfiados em relação à
bebida. Os da terra fizeram o gesto de beber e esfregavam a barriga, sorrindo.
Os espíritos do mar mostraram de novo as pedras brilhantes e as especiarias, mas os da
terra não reagiram a elas, não as conheciam. Os do mar falavam na sua língua de espíritos,
os da terra falavam as suas línguas de pastores de bois, mas ninguém se entendia. Pouco
importava, havia sorrisos em muitas faces. Entre as nuvens, o colosso Adamastor avistou
Tétis esvoaçando por cima das águas da baía, sozinha, nua como deve voar uma ninfa que
sabe ser desejada. Mergulhou para ela, se não o queria a bem seria a mal, uma ninfa não
pode resistir eternamente a um colosso. Mas Neptuno viu, lá do fundo dos mares. E
mandou ondas de três rebentações prevenirem Tétis. Ela percebeu o aviso e mergulhou
mesmo a tempo de escapar às garras cegas de paixão que o colosso para ela estendia. As
vagas de três arrebentações continuaram o seu percurso e provocaram uma calema.
Kianda ficou com raiva, ali, naquelas águas só Kianda podia agitar as profundezas e criar
calemas. Quem era esse Neptuno para vir ali, no seu reino, provocar o caos? Fez recurso a
Nzambi, o senhor de todos os deuses, o que bocejou depois de criar o mundo e os homens.
Nzambi não gostou da intromissão de deuses estrangeiros no seu sítio. E saiu da sua
milenar letargia, por uma vez intervindo no mundo que criara e esquecera. Assoprou as
ondas para o largo do oceano, bradando contra Neptuno, o usurpador. Este respondeu com
nova tripla arrebentação e fez apelo a outros deuses do seu Olimpo. Veio Marte furioso e o
rude Vulcano. E Vénus, mas esta tentando com sorrisos e meneios provocantes apaziguar
os deuses em desavença.
Eram tais as turbulências na água, tal agitação sem causa aparente, com os pássaros de
asas brancas a baloiçarem por cima de ondas que não chegavam à praia, voltando
estranhamente para trás, que os da terra disseram entre si, Kianda está com fúria,
regressemos para o kimbo. Se afastaram levando as ofertas dos espíritos do mar. E um
destes, o mais sorridente, avançou também, encorajado pelos da terra. Os outros espíritos
chamaram o nome dele, Velôje, Velôje, mas não ligou, fez só um gesto para trás. Se
afastavam da praia, os da terra todos satisfeitos, o espírito no meio deles, camarada, rindo
e gritando sons só entendidos por ele.
Vénus viu o grupo se afastando da praia e voou para ele, por curiosidade ou malandrice,
roçando inadvertidamente em Veloso um gesto de saudação. Mas um contacto de deusa,
proibido aos homens, embora não percebido, tem sempre consequências imprevisíveis.
O espírito Velôje, de repente, mudou de atitude. Se abraçou à mulher que caminhava a seu
lado, tentou abraçar a da frente. Os da terra riram, esse cazumbi é malandro, parece gosta
de mulher. As mulheres fugiram, rindo, esse espírito cheira mal, mas não pode ser um
espírito porque nos abraçou com um corpo igual ao vosso, só que tem muitos pelos, sua
muito e cheira como os mortos. Ninguém se ofendeu com o abuso do Velôje, mas este
continuou. E a marcha virou um pandemônio, com o espírito correndo para todas as
mulheres e estas fugindo. Até que ele conseguiu derrubar uma e caiu por cima dela, e
começou violentamente a afastar os panos de ráfia e ela gritou, já sem rir. O marido puxou
pelo espírito e tirou-o rudemente de cima da mulher. O espírito não gostou e puxou por uma
faca grande que tinha presa na cintura, uma faca grande, muito grande, olhos arregalados,
demente. Os da terra compreenderam então, esse espírito tinha perdido a cabeça e era
perigoso. Lhe rodearam, lhe mostraram os porrinhos que traziam e as azagaias, em
ameaça. Então o espírito pareceu cair em si e correu para os seus, na praia. Os da terra, no
entanto, açulados pelas mulheres agora indignadas, correram atrás dele.
Tétis escapou do gigante mas mandou recado, serei tua mais tarde. O colosso acalmou.
Neptuno também reflectiu que pouco adiantava a guerra provocada por Tétis e o seu
apaixonado e retirou para as profundezas, mandando Mane e Vulcano para os seus ares
respectivos. Nzambi encolheu os ombros, essa acalmia era mesmo o que queria para poder
desinteressar-se novamente do mundo.
Só que o seu mundo estava agora agitado pelo roçar da túnica de Vénus num espírito
barbudo. Os da terra corriam atrás dele e os seus companheiros no batel e num outro que
saiu de outro pássaro, apontaram às caras um paus que cuspiam fogo e dois da terra
caíram feridos. Os companheiros pegaram neles e abandonaram os espíritos nos dongos,
voltaram para o kimbo, onde Manikava talvez pudesse curar os feridos daquela inesperada
doença trazida pelos paus que cuspiam fogo e faziam estrondo. Apesar dos esforços de
Manikava, um dos feridos morreu no dia seguinte.
Eu bem dizia, cuidado, muito cuidado, ralhou Manikava. A estória podia ter tido outro fim,
melhor ou pior, dizia a si própria Namutu, olhando melancolicamente as contas de vidro que
obtivera dos espíritos. Faria uma pequena pulseira com elas. Mas valem mesmo o que
brilham?
Outro fim poderia também ter tido Adamastor, que, finalmente vendo Tétis deitada na praia
em entrega, ao convite gulosamente acedeu e a ela se abraçou. E ao perceber que num
rochedo ela se transfigurava, nele próprio sentiu também as carnes e os ossos virarem
pedra. E passarem atrevidamente ao largo dele, imparáveis, os barcos daqueles espíritos
indómitos que tiveram o valor de vergar as vontades de deuses. Mas que outros deuses e
valores irremediavelmente ofenderam.

A Revelação

O MOLEQUE PAROU DE MASTIGAR. Ficou suspenso, a boca cheia da jinguba surripiada


na panela que estalava sobre a fogueira. A voz da mãe repetiu o chamamento:
— Candimba, vem aqui.
O miúdo levantou-se, engolindo rapidamente a massa de jinguba e saliva. Aproximou-se em
passo lento, mãos nos bolsos dos calções, cabeça baixa. Mamã me viu roubar na panela e
vai castigar? O semblante da mulher aquietou-o. Não tinha os olhos que fazia quando
descobria uma falta. Era então para um recado, só podia ser. E ele preferia estar
descansado à sombra da mandioqueira, vigiando a mãe: à espera
de uma oportunidade para encher os bolsos coma jinguba.
— Candimba, vai na loja do Só Ferreira. Compra sal até encher isto mesmo.
E a mãe entregou-lhe uma caneca pequena, de mistura com algumas moedas que tirou da
dobra do pano. O miúdo recebeu as moedas, enfiou-as nos bolsos dos calções. Com a
caneca na mão, perguntou, aborrecido:
— Sal cabou, mamã?
— Se te mando! Mania só de fazer perguntas! Vai depressa, hein? E volta logo. Não te
quero ver com esses vadio da rua que não trabaia nada. Se t'apanho a jogar à bola
chapo-te mal. Toma conta!
— Posso tirar um bocadinho? Só pra provar. ..
E o menino olhava gulosamente para a jinguba descascada, repousando num tabuleiro de
folha. Em seguida, a mãe deitaria os bagos na panela de açúcar em calda, mexendo com a
colher. Depois de deixar secar, dividiria em pacotinhos de papel de seda que o miúdo
venderia na cidade. Cinc'ostões cada um, gritaria Miúdo Candimba pelas ruas. Quando já
está distribuída pelos pacotes não há possibilidades de petiscar. Tá tudo bem contado,
mamã confere o dinheiro, topa logo se falta. Agora era a última ocasião de poder saborear a
jinguba. Por isso os olhos luziram quando entendeu a resposta:
— Bom, tira uma mãozada. Mas anda depressa, tás ouvir?
Candimba encheu os bolsos precipitada¬mente, saiu a correr. Passou uma tangente na
cerca de Dona Joana — essa gorda que só fala mal dos outros — meteu pela rua
esburacada, insensível aos chamamentos dos companheiros. Parou à frente da loja. Queria
despachar-se rapidamente, ansiando meter o dente naquela jinguba toda que o esperava
no tabuleiro. S'inda tenho tempo...
À entrada ouviu a voz irada de Só Ferreira. Discutia com a Mariana, rapariga que casou no
ano passado com o Chico da serração. Eué, manda zanga, pensou o miúdo. Meteu a
cabeça na porta, os olhos muito grandes e redondos, espiando. O branco do balcão não
reparou nele. Estava vermelho, gesticulava, tudo acompanhado de muitos berros. Miúdo
Candimba achou ele não era como as outras pessoas, nele a voz é que acompanhava os
gestos. Mariana chorava, de costas para a porta, tapando a boca com o antebraço. O
moleque ouvia-a suplicar:
— Só Ferreira, meu marido vai saber. Filho sai mulato, Chico vê logo não é dele. Ele me
mata, Só Ferreira...
— Quero lá saber! Que culpa tenho eu? Agora avia-te... Ora bolas! Que provas tens que o
filho é meu? Ainda nem nasceu! Gomo é que podes saber?
— Sei, sim, juro com Deus. Senti mesmo!
Miúdo Candimba esqueceu a jinguba na boca aberta, os assustados olhos tudo
perscrutando. Não percebia bem a conversa. Embora já falasse aos companheiros acerca
dessas coisas proibidas, ainda era muito pequeno para compreender imediatamente. Mas
sentia algo de terrível nas palavras trocadas.
— Ouve lá. Julgas que me levas assim? Como podes ter sentido? Como se eu fosse
parvo... O filho é do teu marido, dormiste com ele muito mais vezes do que comigo.
— Mas eu sei. Eu sei! Juro vai sair mulato.
— E depois? E se fui eu que o fiz? És casada com o teu homem, não tenho nada com isso.
O moleque já percebera tudo. Fez-se mais pequenino, encostado à porta. A mão apertava
nervosamente a caneca de lata. Viu Mariana erguer decididamente a cabeça, passar os
dedos pela barriga inchada, falar com raiva:
— Só Ferreira prometeu. Te dou vestidos, vais mesmo na cidade, vais pra minha casa. Te
tiro da sanzala, te dou comida boa, te dou pulseiras e brincos. Só Ferreira prometeu, jurou
mesmo. Teu filho vai ser meu no papel, lhe dou educação. Não vai ser menino de sanzala,
não. Agora já lhe dei tudo que queria, já se deitou comigo, m'abandona. Não quer saber
mais de mim!
— Então? Prometi? Alguém ouviu? Só tu mesmo. Vai dizer no teu marido, vê lá se ele
acredita. Digo-lhe que é mentira, que foste tu que me pediste, que vocês todas querem é
dormir com os brancos. Vai na polícia, se eles acreditam em ti ou em mim.
Mariana abateu-se novamente sobre o balcão. Os soluços voltaram a sacudir-lhe o corpo.
Miúdo Gandimba, perturbado, se chegou mais para dentro da loja. Embora a sua vontade
fosse fugir como um mbambi.
— Vou dizer no meu marido, sim, vou mesmo. Me mata, mas depois lhe vem matar a você...
Não é homem pra se ficar.
O comerciante riu, escarninho. Desferiu uma palmada no balcão para indicar que já se
fartava da discussão. Falou com voz rancorosa:
— Que venha! Tenho uma espingarda à espera dele. Dou-lhe tantos tiros que fica como um
Cristo!
Miúdo Gandimba sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha ao ouvir a ameaça. E voltou-se
assustado quando, repentinamente, uma mão lhe pousou no ombro. Acalmou-se ao
contemplar o sorriso bondoso de Dona Marcelina.
— Que tás fazer aqui na porta? Me deixa entrar...
O moleque sentiu os olhos do comerciante fixos nele. E Mariana disfarçando o choro.
Empurrou a velha Marcelina para o lado e desatou a fugir. Percorreu a rua, passou uma
tangente na cerca de Dona Joana, entrou no quintal da sua casa. Aí susteve a corrida.
Respirando dificilmente, escondeu-se entre as moitas que abrigavam a capoeira. Olhou por
entre os ramos e viu a mãe acocorada sobre o tabuleiro, descascando a jinguba. O ar
aborrecido indicava que estranhava a demora do filho.
Mas o menino não se preocupa com isso. Pensa, sim, no semblante derrotado de Mariana.
E os berros misturam-se no seu cérebro, deixam-lhe uma sensação de angústia revoltada.
Nota repentinamente o coelho branquinho à sua frente. Olhos vermelhos como os de Só
Ferreira. Branco como ele. Coelho, me puseram o teu nome. Pruquê? Porque fazia assim
como tu quando era pequeno, mexia o nariz, depressa, assim, assim, depressa, muito
depressa, como tu faz. Me chamaram Candimba. Ai ficou meu nome. Mas não sou igual na
ti, não tenho os olho vermelho, não tenho o pêlo branco. Estendeu a mão para o animal.
Este pulou para trás e ficou espiando, assustado, esperando o próximo gesto. O miúdo não
se mexeu. Via a Mariana chorando, suplicando e chorando, a barriga inchada, as mãos a
tremer. E o comerciante rindo o seu riso de gengivas desdentadas, vermelhas como os
olhos do coelho. Jogou com raiva o punho fechado. Mas falhou o golpe e o animal
escapuliu-se para perto das galinhas.
O despeito fez as lágrimas correrem, vagarosas, na face escura do moleque. E o coelho
observando-o. Miúdo Gandimba, de repente, julgou-o penalizado com sua dor.
Comoveu-se. Era apenas um pobre animal sem culpas, que o estimava, afinal. O coelho
não fugiu à carícia da mão infantil. Deixou-se afagar e os olhos vermelhos adoçaram-se.
Miúdo Candimba estendeu-se no chão de terra batida, insensível à humidade transpirada
pelo solo. Ficou assim, perdida a noção do tempo, avista fixa na bola branca que se mexia.
Arrepen-deu-se, em breve, do murro que lhe enviara. Pensou em pedir-lhe desculpa,
justificar a acção com o estado de espírito provocado pela cena da loja. Decidiu-se, porém,
a não o fazer.
Coelho não percebe palavras, percebe os gestos e as carícias, é como as crianças.
Ouviu a mãe chamá-lo em alta grita, inquirir por ele às vizinhas, sair de casa. Foi talvez à
venda procurá-lo. Mas não voltou. Miúdo Candimba não se deu ao trabalho de responder,
de se mostrar. Queria estar só, contemplando o novo amigo, aquele animalzinho branco
que parecia tão meigo. Queria fugir às gentes com seus dramas e rancores, fechar-se na
concha dos seus sonhos infantis. E sentia o íntimo cheio de paz e ternura, esquecido já da
revolta que há pouco experimentara.
Miúdo Candimba voltou a ter consciência do mundo ao escutar grande gritaria ali perto.
Levantou-se com uma última carícia ao animal, afastou as moitas e deitou uma olhada para
o sítio onde a mãe preparava a jinguba. Deserto. Os gritos vinham da esquerda. O moleque
atravessou a cerca, entrou na rua e na luz do Sol. Dirigiu-se à casa para que concorriam as
mulheres e as crianças. A casa de Mariana. Lá chegado, percebeu imediatamente o que se
passara, Mariana morrera.
— Se matou. Uma facada mesmo no coração.
— Aiué, se matou.
— Pruquê?... Pruquê?
Miúdo Candimba sentiu um frio invadi-lo. Depois um calor, quente, quente, era uma fogueira
que nele se instalara. Novamente o frio. Começou a tremer. Deu uma espiada para o sítio
da loja, viu Só Ferreira à porta, mirando, indiferente. Se matou! Pruquê? Eu sei, eu sei, foi
por causa daquilo que eu vi na venda.
O menino abriu a boca, ia gritar a razão do suicídio. Mas ninguém reparou no gesto, as
mulheres e as crianças empurravam-se para observar o corpo banhado em sangue. Ouviu a
voz da mãe lamentando a tragédia, sentiu uma vontade doida de se atirar nos seus braços
e lhe contar tudo. Mas havia uma multidão separando-o do colo materno, não encontrou
coragem de a romper. Gritou o mais alto que podia:
— Eu sei pruquê ela se matou. Eu sei, juro com Deus que sei mesmo.
As mulheres nem voltaram os pescoços esticados. Não fecharam as bocas abertas de
pasmo e tristeza. Os miúdos continuaram a tentar furar a multidão, não ligaram ao aviso do
companheiro. Miúdo Gandimba apertou o braço de Teresinha, falou gravemente:
— Eu sei pruquê foi... Ela olhou-o, porém, sem interesse. Imediatamente redobrou os gritos
lamentosos:
— Deixa ver, deixa ver...
Miúdo Candimba sentiu-se miseravelmente esquecido. Era o único que sabia, além de Só
Ferreira, e ninguém o escutava, lhe prestava atenção. Saiu da multidão, afastando as
crianças com os braços magrinhos, os lábios apertados para não chorar.
— Gome qu'ela está? De boca aberta?
Não se dignou responder à pergunta de Jucá que se afadigava para ver alguma coisa.
Poderia ser um bom ouvinte, mas Miúdo Candimba já não se importava de revelar a
verdade. Olhou o vulto de Só Ferreira, parado à porta da loja. Adivinhou o riso escarninho
na boca do comerciante. Se não era tão grande... Sim, se não fosse tão grande e tão forte,
era ele, Miúdo Candimba, que lhe faria morrer o riso de escárnio na boca. Mas viu-se
pequeno e fraco, uma criança em que ninguém sequer acreditava, a que ninguém sequer
prestava atenção. Viu-se miserável e inútil, um bichinho pequeno que para nada serve. Um
boneco talvez, um boneco sem valor nem preço.
Virou as costas aos curiosos observadores do espectáculo mórbido, foi caminhando para
casa. Devagarinho, afogando o despeito e a revolta nas pedras da rua. Atravessou a cerca,
aproximou-se do tabuleiro de jinguba. Hoje não iria vender a guloseima. Nunca mais gritaria
pela cidade: cinc'ostões cada pacote. Mesmo que morressem de fome. Nem que a mãe
xingasse, nem que a mãe lhe chapasse. Mexeu os bagos com a mão distraída, não se
tentou a tirar nenhum. Viu as moitas que limitavam a capoeira, encaminhou-se para elas.
Afastou os ramos com lentidão. O coelho branco fitou-o com seus olhos vermelhos. Iguais
aos de Só Ferreira. O animal deixou--o aproximar, um pouco receoso. Mas não fugiu.
Talvez esperasse mais uma carícia, lembrando da anterior cena de ternura.
Miúdo Candimba sentiu-se enganado. Uma vergonha vinha desde os olhos vermelhos,
desde o pêlo branco, incrustava-se no seu cérebro de menino. M'enganaste, coelho.
Mariana matou-se, espetou a faca mesmo no coração. Morreu num mar de sangue. As
lágrimas caíam dos olhos do moleque. Me deram teu nome, Candimba mesmo, mas não
sou igual na ti. Não tenho os olho vermelho, pelo branco. Não sou como tu. Pensei a gente
ia ser amigo, te fiz festa. Mariana se matou! Meteu a mão no bolso dos calções, tirou o
canivete. Abriu-o e a lâmina luziu. Agarrou no pescoço do animal com o braço esquerdo. O
coelho não tentou escapulir. Então, lentamente, reflectidamente, Miúdo Candimba
enterrou-lhe a lâmina no peito.
Ficou vendo o pequeno corpo estremecer, o sangue esvaindo-se, manchando de vermelho
o pêlo branquinho. A mancha alastrando, alastrando, correndo para as patas, para o chão
de terra batida. Depois um estremeção mais violento. E os olhos ficaram rígidos,
enormemente abertos, fitando-o firmemente. Miúdo Candimba não encontrou uma
acusação naquele eterno olhar. Pousou delicadamente o corpo no solo. Ajoelhou-se, uniu
as mãos vermelhas de sangue, uma delas ainda segurando o canivete aberto, e rezou:
— Nosso Senhor, faz que eu acertei bem no coração.

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