Organizadores:
Claudia Miranda
Mônica Regina Ferreira Lins
Ricardo Cesar Rocha da Costa
Autores
Rio de Janeiro
Maio 2011
2
SUMÁRIO
Introdução...................................................................................................................... 3
Parte 1
Desafios teóricos
“A sala de aula é o último lugar onde ocorrerão mudanças”. A lei 11.465: suas implicações
teóricas e práticas na recente produção acadêmica. ..................................................... 119
A união pelo traço: caminhos de leitura para a poesia de João Maimona........................ 146
Parte 2
Práticas pedagógicas
Introdução
1
A lei foi modificada em março de 2008, passando a incluir a obrigatoriedade do ensino de história e
culturas indígenas (Lei 11.645/08).
4
2
A rede federal de ensino, após a promulgação da LEI nº 11.892/2008, passou a ser composta pelos
Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia; a Universidade Tecnológica Federal do Paraná –
UTFPR; os Centros Federais de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro – CEFET-RJ e de Minas Gerais
– CEFET-MG e Escolas Técnicas vinculadas às Universidades Federais.
5
Claudia Miranda
Mônica Regina Ferreira Lins
Ricardo Cesar Rocha da Costa
Parte 1
Desafios teóricos
14
Introdução
A guisa de conclusão
Referências Bibliográficas
7
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense. Doutorando em Serviço Social na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor de Sociologia do IFRJ – Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – Campus São Gonçalo.
29
8
Registre-se que Gobineau não estava sozinho na defesa dessas idéias: outros observadores
estrangeiros que aqui aportaram ainda no século XIX, tais como o argentino Inginieros e os franceses
Louis Couty e Louis Agassiz, entendiam que os males do Brasil eram causados pela sua colonização
pelos africanos escravizados ou pela mistura de raças (cf. SKIDMORE, 1989, p. 47).
31
9
Além de Kehl e Lobato, a historiadora Pietra Diwan relacionou diversos intelectuais como defensores
das idéias eugenistas no Brasil, entre os quais Oliveira Vianna, Roquette-Pinto, Fernando Azevedo, o
sanitarista Arthur Neiva e o psiquiatra Francisco Franco da Rocha (ver DIWAN, op. cit., p. 92-100). A partir
de 1942, segundo Diwan, os adeptos brasileiros da eugenia “desapareceram da cena política ou trataram
de reorientar suas histórias omitIndo sua participação nesse movimento” (p. 121). A exceção foi o médico
Kehl, que virou uma voz isolada.
34
caráter racista no Brasil – apesar da sua aparente superação teórica, nessa época,
proporcionada pelos estudos desenvolvidos por Boas, citados acima, acolhidos no
país por Torres e Bomfim. Oliveira Vianna formula uma verdadeira hierarquização
da mestiçagem ocorrida no país, com a produção de mestiços “superiores” e
“inferiores”. Concorda com Nina Rodrigues, quando afirma que a mistura entre
negros e brancos apresentaria um caráter degenerescente; mas se aproxima
também de Euclides da Cunha, quando defende que a mistura entre brancos e
índios resultaria num mestiço fisicamente superior ao mulato (cf. MUNANGA, op.
cit., p. 71-76). De qualquer forma, a principal tese de Oliveira Vianna – que ele
procura demonstrar através de estudos de projeção demográfica – é a futura
arianização do Brasil, seja pelo aumento quantitativo da população branca “pura”,
em razão do estímulo governamental à imigração européia, seja pela crescente
mestiçagem, que reduziria o coeficiente dos sangues negro e índio (cf. MUNANGA,
op. cit., p. 80-87). Vale a pena reproduzir um fragmento da interessante formulação
de Oliveira Vianna, citada por Munanga, comparando a situação do negro e as
relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos – questão, como se vê, há muito
tempo na pauta dos debates sobre essa temática:
“Não há perigo de que o problema negro venha a surgir no Brasil. Antes que
pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o elemento
negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca. Aqui o mulato,
a começar da segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara
exceção) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os
etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é
facilitada pela prevalência do “elemento superior”. Por isso mesmo, mais cedo ou
mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui. É óbvio que isso já começou a
ocorrer. Quando a imigração, que julgo ser a primeira necessidade do Brasil,
aumentar, irá, pela inevitável mistura, acelerar o processo de seleção” (VIANNA,
1899 apud MUNANGA, 2004, p. 86).
afirma Renato Ortiz: “somos uma democracia porque a mistura gerou um povo sem
barreira, sem preconceito” (ORTIZ, 1994, p. 41 apud MUNANGA, op. cit., p. 89).
No entendimento de Munanga, o mito da democracia racial brasileira, ao
exaltar a harmonia entre as três raças, penetra profundamente na sociedade,
encobrindo as desigualdades sociais e facilitando a alienação dos não-brancos, ou
seja:
“(...) encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como
brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de
suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão
de uma identidade própria. Essas características são ‘expropriadas’, ‘dominadas’ e
‘convertidas’ em símbolos nacionais pelas elites dirigentes’” (MUNANGA, 2004, p.
89).
Para o que nos importa no escopo deste trabalho, a citação acima cumpre a
função de identificar, tomando o pensamento de Fernandes como referência, o
posicionamento dos pesquisadores da USP e da Escola Paulista de Sociologia –
também integrante do projeto Unesco – no debate a respeito do mito da
38
10
Não cabe aqui a apresentação e a discussão sobre o movimento negro brasileiro, sob o risco de
escapar aos objetivos mais imediatos deste trabalho.
39
Joel Rufino dos Santos, por sua vez, afirma, muito apropriadamente, que “o
movimento negro, no sentido estrito, foi uma resposta, em condições históricas
dadas, ao mito da democracia racial”. Esse mito, segundo ele, elaborado “no bojo
da Revolução de Trinta”, não se referia simplesmente em uma tese acadêmica:
“(...) a crença na democracia racial decorria do senso-comum brasileiro, naquelas
circunstâncias históricas; e, ao mesmo tempo, estava entretecida a outros conjuntos
de imagens idealizadas, como o da história incruenta, o da benignidade da nossa
escravidão, o da cordialidade inata do brasileiro, o do destino manifesto etc.”
(SANTOS, 1985, p. 287).
11
Aproveitamos, no início desta seção, a relação de iniciativas e de políticas governamentais enumeradas
por Kamel (2006, p. 34-39).
41
ficar. Em seus artigos em O Globo, esse autor deixa bem claro de que lado da
história ele se coloca.
Este é o caso também do já citado ex-estudante de Ciências Sociais, Ali
Kamel, hoje um jornalista transformado em um bem-sucedido executivo das
Organizações Globo, também presença freqüente nas colunas do jornal citado.
Apesar de não apresentar qualquer artigo na coletânea acadêmica de Fry, Maggie
et al., seu livro, Não somos racistas, produzido com base nos artigos que redigiu
sobre a questão racial, e lançado em 2006, transformou-se rapidamente num
verdadeiro best seller, para os padrões editoriais brasileiros. Mais de um autor da
coletânea acadêmica em tela indica, entusiasticamente, a sua leitura, como é o
caso de José Roberto Pinto de Góes (2007, p. 61) e de Carlos Lessa. Este último a
recomenda “a todos os brasileiros de boa vontade” (LESSA, 2007, p. 126).
Realmente, somente com muita “boa vontade” se pode levar a sério as
digressões de Kamel. No seu livro, após algumas afirmações pertinentes sobre o
caráter da obra de Gilberto Freyre, contextualizando-o, com base em Yvonne
Maggie, no “ideal de nação expresso pelo movimento modernista, que via na nossa
mestiçagem a nossa virtude” (KAMEL, 2006, p. 19), e de se admitir a existência de
racismo no Brasil (Idem, ibidem, p. 20), o jornalista:
1) desqualifica todas as pesquisas sociológicas realizadas a partir dos anos 1950,
como foi o caso do projeto Unesco (cita nominalmente Florestan Fernandes,
Fernando Henrique Cardoso e Oracy Nogueira), e os trabalhos fundamentados
com base nas estatísticas oficiais, nos anos 1970, com destaque para a obra
de Carlos Hasenbalg (Idem, ibidem, p. 20-22);
2) considera o racismo norte-americano “mais duro, mais explícito, mais direto” do
que o brasileiro, chegando a cunhar a seguinte frase, no mínimo infeliz: “não
tenho dúvidas de que um arranhão dói menos do que uma amputação” (p. 22);
3) ataca as ações do movimento negro brasileiro, acusando-o de efetuar “a
importação acrítica de uma solução americana para um problema americano”
(p. 23);
4) também comparando a realidade brasileira com a norte-americana, afirma que
“nossa especificidade não é o racismo. O que nos faz diferentes é que aqui,
indubitavelmente, há menos racismo e, quando há, ele é envergonhado,
porque tem consciência de que a sociedade de modo geral condena a prática
como odiosa” (Idem, ibidem, p. 23); e
45
5) investe contra uma sociologia “que dividiu o Brasil entre negros e brancos”,
chancelando, segundo ele, “a construção racista americana segundo a qual
todo mundo que não é branco é negro. É usar uma metodologia racista para
analisar o racismo” (p. 23-24).
A partir de então, afirma que é uma “tragédia” que essa sociologia tenha
ganho espaços e encontrado eco no movimento negro brasileiro, desde os anos
1970, e passa a atacar todas as políticas de promoção da igualdade racial, listadas
no início desta seção (cf. KAMEL, 2006, p. 24-41).
Retomando o alarmante e ameaçador título “Divisões perigosas”, talvez
deva-se concluir com uma breve reflexão a respeito dos conflitos declarados e
latentes, envolvendo “vencedores” e “vencidos”, entre as classes sociais que se
enfrentam no cotidiano da história, e os processos de “construção de identidades”.
Aparentemente, no caso em questão, as tais “divisões perigosas” camuflam mais do
que espelham determinados interesses. Da mesma forma, pode-se dizer que o mito
da “democracia racial”, na verdade, não corresponde a uma determinada “igualdade
de oportunidades”, onde todos participam democraticamente, mas a afirmação de
um mundo marcado pela “ausência de conflitos” – desde que hegemonizado por
uma elite branca de origem européia, que se impõe cultural, política e
economicamente. O “perigo” da anunciada “divisão” está claramente dado quando
se aponta para a possibilidade de quebra desse padrão europeu, pretensamente
universalista e homogeneizador.
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(Debates; 308).
49
sobre outra questão que está no âmbito de minhas preocupações como educador.
Ao trazer à tona o tema da escravidão, tenho o interesse de pensar este assunto
considerando não apenas a escravidão em si, mas, sobretudo, o processo
contrário, ou seja, o de resistência e luta pela libertação dos escravos. Entendo que
ensinar escravidão, sem considerar a luta contra ela, constitui numa atitude que,
além de reforçar a idéia de escravidão “pacífica” e “natural”, limita a compreensão
do próprio fenômeno, não só porque uma coisa nunca existiu sem a outra, mas
também por entender que a forma como o fenômeno se constituiu na sociedade se
relacionou com o processo de enfrentamento contra a própria escravidão. O livro
de Carlos Lopes, por sua vez, apresenta uma abordagem crítica importante de
temas e aspectos que ajudam a ampliar nosso entendimento sobre a dinâmica da
História da África Contemporânea, sobretudo, no que se refere à região que se
convencionou chamar de “África subsaariana”. Sendo assim, espero que tais
reflexões contribuam no sentido de despertar em outros professores de História e
demais educadores, o desejo de agirem como sujeitos do processo de
descolonização da educação brasileira, aberto pelas leis 10639/2003 e 11645/2008.
p.22). Isto significa que na África a escravidão foi um processo que articulou três
dimensões, ou seja, a dimensão comercial, a produtiva e de serviços, e a que
envolvia captura e deslocamento de escravos. É neste sentido que o autor afirma
que “na África, a estrutura da escravidão que sustentava as formações sociais e
econômicas dos maiores estados e sociedades estava intimamente ligada à própria
escravização” (LOVEJOY, 2002, p.22).
Ao trabalhar o aspecto propriamente conceitual do fenômeno da escravidão,
o autor explora três conjunturas: a que se refere ao âmbito de sociedades africanas
tradicionais, a que sofreu influência do “fator islâmico” e a que teve a ação marcante
do “comércio transatlântico”. Sua análise privilegiou observar como se deu o
fenômeno da expansão da escravidão no continente africano, buscando destacar o
impacto do comércio exterior no processo de expansão da escravidão, que, de
maneira geral, desenvolveu-se num nível geográfico, proporcionando a difusão da
escravidão para várias regiões do continente; e num nível sócio-econômico, em que
constatou o crescimento da importância da escravidão nas sociedades africanas.
Além de ser um modo de exploração, em que o escravo era propriedade e
possível mercadoria, estando completamente a mercê da vontade do seu dono e
senhor, Lovejoy destaca que um aspecto peculiar da escravidão na África, consistiu
no fato de ser “fundamentalmente um meio de negar aos estrangeiros os direitos e
privilégios de uma determinada sociedade, para que eles pudessem ser explorados
com objetivos econômicos, políticos e/ou sociais” (LOVEJOY, 2002, p.31). Neste
sentido, ser estrangeiro era ser “etnicamente diferente”, sem vínculo de parentesco,
portanto, com mais possibilidade de ser escravizado. Tal análise nos leva a pensar
sobre o significado da “liberdade” nas sociedades escravistas africanas. Segundo
Lovejoy, “o termo é realmente relativo”. As próprias palavras do autor esclarecem
este ponto de vista:
“No contexto das sociedades escravocratas, a liberdade envolvia uma
posição reconhecida numa casta, numa classe dirigente, num grupo de parentesco
ou algum tipo de instituição. Uma tal identificação incluía um conjunto de direitos e
obrigações que variavam consideravelmente de acordo com a situação, mas ainda
eram distintos daqueles dos escravos, que tecnicamente não tinham direitos,
apenas obrigações. O ato de emancipação, quando existia, transmitia um
reconhecimento de que escravo e homem livre eram opostos. A emancipação
53
demonstrava dramaticamente que o poder estava nas mãos dos homens livres, não
dos escravos”( LOVEJOY, 2002, p.31).
Sendo assim, estar na condição de escravo significava carregar um estigma
que marcava profundamente a vida do grupo étnico escravizado, pois ser escravo
não era apenas pertencer a um senhor, mas subordinar-se a vigilância e controle do
grupo escravizador. Tal realidade estabelecia em poder coletivo que dificultava a
capacidade reativa do escravo à condição da escravidão. Além disso, um outro fator
deve ser considerado. No contexto da escravidão africana, em muitos casos, a
estratégia utilizada era de obediência e não de rebeldia. Para muitos escravos, ter
uma condição melhor significava assumir funções e responsabilidades que em
grande parte exerciam papel fundamental na própria sustentação e reprodução da
sociedade escravista. Portanto, um fenômeno “contraditório” se estabelecia: muitas
vezes, para ter benefícios e deixar de sofrer os tormentos mais duros da condição
de escravo, alguns escravos assumiam funções mais privilegiadas (ex:
militar/comércio/burocracia), que no quadro africano, eram funções que davam
sustentação a própria formação social e econômica de determinadas sociedades
escravistas na África.
No entanto, em que pese às dificuldades, a resistência e rebeldia dos
escravos à escravidão existiram. Como escreve Lovejoy, havia limites:
“Em geral era alcançada alguma espécie de acomodação entre senhores e
escravos. O nível sociológico dessa relação envolvia um reconhecimento por parte
dos escravos de que eles eram dependentes, cuja posição requeria subserviência
ao senhor, mas igualmente necessitava da aceitação por parte dos senhores de
que existiam limites até onde os escravos podiam ser forçados” (LOVEJOY, 2002,
p.36).
Existia uma relação de força certamente desigual para o escravo, diante da
violência empregada como forma de controle social, porém, lembra Lovejoy que tal
violência produzia nos escravos “tanto uma psicologia de servidão quanto o
potencial para a rebeldia” (LOVEJOY, 2002, p.36). O aspecto da rebeldia se
acentua se considerarmos o que disse o autor de que “é incorreto pensar que os
africanos escravizaram os seus irmãos” (LOVEJOY, 2002, p.55), segundo ele, “na
verdade, os africanos escravizaram os seus inimigos” (LOVEJOY, 2002, p. 55).
Sendo assim, a fuga coletiva, tanto na América com os quilombos, quanto na África
com diversas formas de ação grupal, foi sempre uma tática a ser colocada em
54
prática para conseguir algum objetivo. Lovejoy cita um exemplo ocorrido na região
da Gâmbia na década de 1730, em que os escravos ameaçaram com a fuga em
massa se o senhor quebrasse a regra de vender escravo de família “sem o comum
acordo” (LOVEJOY, 2002, p. 181) dos demais escravos, caso o fizesse todos
fugiriam até serem “protegidos pelo próximo reino para o qual eles escaparem”
(LOVEJOY, 2002, p. 181). Visualizo uma espécie de “quilombo” ambulante,
guardando as devidas proporções, nesta imagem que expressa um movimento que
envolve “fuga”, “acordo”, “proteção”. Todo esse potencial de rebeldia maturado pela
prática da escravidão veio a explodir no decorrer do século XIX. As contradições
vieram à tona, e os europeus souberam usá-las em prol dos seus interesses
colonialistas. Entretanto, a despeito do papel exercido pelas “missões cristães” no
combate à escravidão, diz o autor que, “registros mostram claramente que os
próprios escravos eram fundamentalmente responsáveis por tomar a iniciativa que
começou a destruir a escravidão” (LOVEJOY, 2002, p.380). Portanto, precisamos
conhecer melhor esta história, e assim contribuir para uma visão crítica a uma ideia
a muito questionada, que pode muito bem está se reforçando, mesmo sem querer,
pelos diversos cursos de história da África que estão sendo ministrados por este
Brasil a fora, ou seja, a velha ideia de que na África a escravidão foi algo mais
“natural”, e que, portanto, a opção pelo escravo africano na formação das
sociedades escravistas da América, deveu-se ao fato do africano ter uma
propensão mais “natural” à escravidão. Quando se ensina escravidão sem enfatizar
o contraditório, pode-se estar contribuindo para o retorno desta velha ideia sem se
dar conta.
Os educadores e o Movimento Negro brasileiro não devem temer o debate
“espinhoso” sobre a questão da escravidão na África. Tanto é ruim não tratar da luta
dos escravos africanos contra a escravidão na África, quanto é tapar os olhos para
este fenômeno histórico de escala mundial que foi o processo das transformações
da escravidão no continente africano. Uma perspectiva de ensino de história que
articule história da África, história do Brasil e história de outros continentes, pode
muito bem ser pensada a partir desta temática. O livro de Paul Lovejoy demonstrou
ser fonte fundamental neste propósito. Além disso, a obra é bastante convincente
no tocante a complexidade e a dimensão que a escravidão tomou no continente
africano.
55
Interrogações sobre o passado, como diz Marc Bloch acima, sempre surgem
em sociedades que vivem “em perpétua crise de consciência”. O exemplo da
sociedade brasileira é emblemático no que diz respeito à característica marcante de
desigualdade racial que persiste ao tempo. A questão do ensino da história da
África, por exemplo, expressa claramente este aspecto, à medida que não há
dúvida quanto o tratamento desigual que a História da África tem no campo do
ensino da História. Muito desta situação se fundamenta na concepção de
“inferioridade africana”, que segundo Carlos Lopes pauta-se, por um lado, no
“desconhecimento” da História da África; por outro, na idéia de “marginalização” da
59
África “na história universal” (LOPES, 1997, p.18). Apesar do autor está se referindo
a uma determinada linha historiográfica africana, penso que o argumento
apresentado ajuda a refletir sobre tal ponto no âmbito do ensino da História da
África no Brasil. Vejamos a argumentação do autor:
“O desconhecimento da História do continente é patente em qualquer significativa
amostragem literária, dentro e fora do continente, com exemplo até nas luxuosas
enciclopédias universais ou outros tomos de referência cartesiana do saber ocidental.
Apesar de historiadores como Fernand Braudel terem conseguido imprimir uma nova
dinâmica de interpretação histórica com as noções de interdepedência, integração e
relacionamento de espaços na economia-mundo, e de ser sobejamente conhecida a
presença do valor do trabalho e da riqueza africanas, por exemplo no comércio
transatlântico, continua a imperar esta marginalização da contribuição africana na
história universal”( LOPES, 1997, p.18)
Conclusão
investigar o que foi possível o escravo fazer para tentar romper, equilibrar ou
atenuar a condição de escravo imposta pelo poder. Isto vale para o Brasil, para a
África, ou onde quer que tenha ocorrido escravidão.
Neste sentido, entendo que não basta focalizarmos a luta do africano contra
o colonizador europeu, é preciso também olhar para as formas de luta e resistência
daqueles milhares escravos que foram escravizados por africanos na própria África,
de compreender melhor os processos e ações em que os escravos foram
protagonistas na busca por liberdade, ou pelo menos para minimizar sua condição
de escravizado. E de onde vem esta minha perspectiva no tocante à temática da
escravidão? Não há nada de novo no que estou falando, apenas procuro levar para
o estudo da escravidão na África àquilo que aprendi com a historiografia brasileira
que se colocou de forma crítica frente à ideia do “escravo coisa”. Criticando esta
ideia, a historiografia a que me refiro buscou pensar o escravo como sujeito.
Gostaria de frisar, também, que meu foco de interesse se pauta, também,
numa perspectiva teórica de pensar para “além da escravidão”, considerando, neste
sentido, a argumentação apresentada pela historiadora Hebe Mattos13, ao prefaciar
o livro Além da Escravidão, de Frederick Cooper, Thomas C. Holt e Rebecca J.
Scott. Dentre outras coisas, Hebe trata da relação entre “escravidão” e “cidadania”,
e destaca como “questão crucial” em todas as sociedades escravistas, “as
possibilidades de alforria e as formas de integração do ex-escravo à sociedade em
que foi cativo” (MATTOS, 2005, p.15). Considerando a perspectiva da autora,
acrescentaria também como fatores cruciais enfrentados pelas sociedades
escravistas, as ações de rebeldia individual ou coletiva, as diversas formas de
pressão usada pelo escravo para minimizar, remediar ou extinguir os variados
meios de intimidação e maus tratos aos quais estavam submetidos. Hebe destaca
também a repercussão do discurso liberal, com seu suposto direito a liberdade
universal, que ganhou corpo no século XIX atuando como “fermento” para tornar a
emancipação “questão ainda mais central nos contextos históricos, surgidos nas
Américas e também na África desde o século XIX até meados do XX” (MATTOS,
2005, p.15). Sobre este aspecto, Lovejoy se debruça no capítulo 11, em que analisa
o “impulso abolicionista” que se expandiu pelo continente africano a partir do século
13
Hebe Mattos escreveu um artigo que deveria ser leitura obrigatória para todo professor de História,
trata-se de “O ensino da História e a luta contra a discriminação racial no Brasil”, neste artigo ela pontua
as questões centrais para se compreender o quanto o ensino da História, e em especial o ensino da
História da África se constitui num instrumento fundamental para se superar o problema do racismo na
sociedade brasileira.
63
Referências bibliográficas:
1. A Angola de Pepetela
Jaime Bunda estava sentado na ampla sala destinada aos detetives. Havia três
secretárias, onde outros tantos investigadores lutavam contra os computadores
obsoletos. Havia também algumas cadeiras encostadas à parede. Era numa destas,
a última, que Jaime pousava a sua avantajada bunda, exagerada em relação ao
corpo, característica física que lhe tinha dado o nome. O seu verdadeiro era
comprido, unindo dois apelidos de famílias ilustres nos meios luandenses. Mas foi
numa aula de educação física, mais propriamente de vôlei, que surgiu a alcunha. Às
tantas, o professor, irritado com a falta de jeito ou de empenho do aluno, gritou:
— Jaime, salta. Salta com a bunda, porra!
A partir daí, ficou Jaime Bunda para toda a escola. De fato, as suas nádegas
exageravam. Ele, aliás, era todo para os redondos, até mesmo os olhos que gostava
de esbugalhar à frente do espelho, treinando espantos. A mãe é que não gostou
nada quando ouviu colegas tratarem-no assim, és um mole, não devias deixar que te
chamassem um nome ofensivo, mas ele encolheu os ombros, a minha bunda é
mesmo grande, vou fazer mais como então? (PEPETELA, 2003, p. 11)
detetives particulares das novelas policiais clássicas — por exemplo: “Era muito
observador, não deixava escapar nenhum gesto ridículo, por minúsculo que fosse.”
(PEPETELA, 2003, p. 12) Largamente praticada, produzida, ambientada e
consumida na Inglaterra em seus primórdios no século XIX, quando Londres ainda
possuía atmosfera deveras propícia a crimes em função do seu crescimento como
metrópole alvo de fortes processos migratórios e também da névoa constante sob a
qual se escondia, resultados das recentes Revoluções Industriais, essa disposição
literária do mundo moderno para tais textos, de forte apelo mercadológico, traz
como representante ilustre Hercule Poirot, o detetive belga criado por Agatha
Christie (cerca de três décadas mais antigo do que Bond), e encontra sua gênese
especialmente nas narrativas oitocentistas de Arthur Conan Doyle, estreladas por
Sherlock Holmes.15
Poirot e, mais notadamente, Holmes e Bond são ícones incontestáveis da
cultura ocidental, de largo alcance popular, de modo que funcionam como modelo
para muitas criações da ficção contemporânea. Todavia, é evidente que não será
esse exatamente o caso de Jaime Bunda; os traços que compõem o personagem
criado por Pepetela não permitem que possamos vislumbrar entre ele e os demais
alguma relação de especularidade precisa, já que, pelo contrário, as referências
surgem aqui em um registro de paródia. Aquilo que encontramos em Jaime Bunda
é um arcabouço dos populares personagens europeus manipulado para, no
entanto, abarcar um conteúdo distinto das figuras heróicas tradicionais. Assim,
Jaime Bunda expõe-se por vezes indolente, conformista, megalomaníaco, pouco ou
nada hábil, ridicularizado ao invés de respeitado pelos que o rodeiam, embora tenha
o ar presunçoso e superior dos holmes e dos poirots que se multiplicam em
literatura dessa natureza, o que, dada a sua real situação, apenas torna o
personagem ainda mais caricato. A forma burlesca como Jaime Bunda nos é
oferecido sugere já desde as linhas iniciais do seu primeiro romance um anti-herói.
E essa sua categoria será potencializada por um ambiente instrumentalizado por
aparelhos obsoletos que contrastam com os de tecnologia de ponta de que James
Bond normalmente usufruiria; além dos citados computadores arcaicos do
15
É evidente que deveríamos enumerar ainda os três contos do americano Edgar Allan Poe, que tanto
tempo viveu e produziu na Inglaterra, os quais deram origem às narrativas policiais modernas (“Os crimes
da Rua Morgue”, “A carta furtada” e “O mistério de Maria Roget”), mas referimo-nos aqui à cultura de
massa e, sob essa ótica, podemos considerar a popularidade de Auguste Dupin, o detetive idealizado por
Poe, bastante reduzida, apesar de (ou quiçá em função de) — e não nos furtaremos de tecer aqui um
juízo de valor — o nível de elaboração da poética poeana se revelar mais significativa do que os das
práticas literárias de Doyle e, principalmente, de Agatha Christie.
67
16
Árvore da flora local, cujo fruto é vulgarmente designado por maçã-da-índia.
71
Dom Quixote: “E era assim: cliente descontente ganhava direito de não pagar. O
Beruberu só cobrava satisfações.” (COUTO, 1998, p. 156)
Para além do nível da narração, averiguamos ainda algumas características
comuns às estruturas dessas duas obras aqui comparadas. Uma delas se refere à
citada divisão do texto de Mia Couto, que, desse modo, apresentada saltos que
podemos identificar como cinematográficos, semelhantes aos que Arnold Hauser,
importante historiador da arte, observara surgir prematuramente em Dom Quixote.
Além do mais, Mia Couto baseia os diálogos do conto nas conversas de todos os
dias e quiçá Cervantes tenha sido o primeiro romancista a fazer uso de tal
estratagema. Por fim, é inevitável pensar que em ambos os textos descobrimos o
inusitado surgimento do trágico dentro cômico.
O trágico que permeará o cômico nessa narrativa de Mia Couto refere-se,
especialmente, ao resultado do chiste criado pelo barbeiro. Logo percebemos que
o conto em análise e a obra maior de Cervantes apresentam semelhante caráter
social, uma vez que, ainda para Hauser, o romantismo cavaleiresco, que Dom
Quixote ironiza, “é essencialmente um sintoma do incipiente predomínio das formas
de governo autoritárias” (HAUSER, 1972, p. 527). Pois é justamente o sistema de
repressão, que violentamente rege o comportamento das autoridades
moçambicanas, aquilo que será denunciado na parte final do conto de Mia Couto,
quando a Pide impõe o seu injusto julgamento e prende não apenas o barbeiro,
mas também o seu assistente e, ainda, Jaimão, o vendedor de tabaco a que Firipe
pagara para confirmar a mentira sobre a foto de Sidney Poitier. O trecho em que as
circunstâncias fazem a Pide concluir o envolvimento político de Beruberu com a
Frelimo está longe de ser um julgamento reto e, em verdade, o direito à defesa que
o barbeiro parece creditar a si mesmo se revela mais uma das suas ilusões
quixotescas.
— Onde está a fotografia do estrangeiro?
Estrangeiro?
Sim, desse estrangeiro que você recebeu aqui na barbearia.
O Firipe duvida primeiro, depois sorri. Entendera a confusão e prontificava-se a
explicar:
— Mas senhor agente, isso do estrangeiro é história que inventei, brincadeira...
O multato empurra-o, fazendo-lhe calar.
— (...) Então explica lá o que é isso aqui: “Cabeçada com dormida: mais 5 escudos”.
Explica lá o que é essa dormida...
— Isso é por causa de alguns clientes que dormecem na cadeira.
O polícia já cresce na sua fúria.
Dá-me a foto.
73
Por fim, a partir de seu final trágico, que denuncia as injustiças e truculências
promovidas por um governo de exceção, o conto “Sidney Poitier na barbearia de
Firipe Beruberu” consegue, assim como Dom Quixote, conciliar a cor local de seu
país de origem com uma inegável (e lamentável) dimensão universal, apropriando-
se de um ícone estrangeiro para adaptá-lo à realidade de Moçambique, a fim de
que a nação possa dar cabo de um processo de institucionalização de um discurso
legitimamente moçambicano para discutir Moçambique. Assim, essa leitura
comparativa, em que a literatura espanhola surge como matriz de um texto
moçambicano, até pareceria descabida se pensarmos que Mia Couto
manifestamente busca uma moçambicanidade para seu fazer literário (assim como
Pepetela, indubitavelmente, sói instituir a angolanidade em sua poética). No
entanto, escolher justamente o maior nome da ficção da Espanha, nação que
mantém uma eterna rivalidade com o país que foi por séculos para a terra natal de
Mia Couto o dominador (Portugal), é reafirmar com boa dose de ironia a ainda
relativamente recente independência de Moçambique.
E, além disso, conforme buscamos demonstrar, recriar um personagem
clássico estrangeiro aos moldes da cultura de um país é já naturalizá-lo nesse país,
e assim ocorre tanto com o James Bond transmudado em Jaime Bunda quanto com
o Dom Quixote que se manifesta em Firipe Beruru.
74
Referências bibliográficas
17
Maria Elena Viana Souza
1. Introdução
17
Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Unirio, pesquisadora das questões
étnicorraciais.
18
Utilizo a expressão mestiços afro-descendentes para diferenciar aqueles que têm o fenótipo bem negro
de outros tipos mestiços, com fenótipos indígenas, orientais, europeus etc.
77
Com base nesses pressupostos, este trabalho tem como objetivo principal
trazer para o debate as relações que podem ser feitas entre uma educação étnico-
racial e alguns elementos constitutivos para a construção da cidadania, no contexto
escolar de educação básica. Para tanto, utilizo o pensamento de alguns autores
como Corrêa (2000), Cuche (2002), Ferreira (2004), Gomes (2001), Hasenbalg
(1979, 1988, 1992), entre outros. Recorro também à lei 10.639/03 que estabeleceu
as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
2. Sobre a cidadania
3. Educação Étnico-Racial
Há muito tempo todos os homens eram pretos. Certo dia, Deus resolveu compensar
a coragem de quatro irmãos. Sem lhes dizer nada, ordenou-lhes que cruzassem um
rio. O que tinha mais fé e era mais ligeiro, rapidamente, obedeceu à Deus cruzando o
rio a nado. Ao sair do outro lado do rio, estava completamente branco e muito bonito.
O segundo, ao ver o que tinha acontecido com o irmão, imediatamente correu para o
rio e fez o mesmo. Só que a água já estava suja e ele saiu amarelo. O terceiro
também quis mudar de cor e fez o mesmo que seus irmãos. Mas, como a água já
estava bem suja, chegou à outra margem mulato. O quarto, o mais lento e
preguiçoso, quando chegou ao rio, Deus já o tinha secado. Então, ele pode somente
pressionar os pés e as mãos contra o leito do rio. Daí o negro ter apenas as solas dos
pés e as palmas das mãos brancas.
20
Confere em Skidmore (1976) p. 34-35.
80
Sylvio Romero (1888) foi um dos primeiros cientistas sociais brasileiros que,
influenciado por autores evolucionistas europeus ( GOBINEAU, HAECKEL, LE
PLAY e SPENCER entre outros), tentou uma interpretação do Brasil com base na
tese do "branqueamento". Acreditava que toda nação era o produto da interação
entre a população e o seu habitat natural. O Brasil seria, então, o produto de três
raças: o branco europeu que sendo do "ramo greco-latino" era inferior ao "ramo
anglo-saxão", o negro africano que jamais havia criado uma civilização e o índio
aborígene que era de baixo nível cultural.
Quando os primeiros sociólogos e antropólogos brasileiros elaboraram
teorias sobre a questão da raça já o fizeram sob uma perspectiva que colocava o
mestiço como realidade do "caos étnico" brasileiro21.
Mas, o primeiro estudo etnográfico e sistematizado do negro e do índio
brasileiro, onde o preconceito ficava explícito, foi feito na década de 1890, por um
mulato, jovem professor catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia: Raimundo
Nina Rodrigues . Ele tentou fazer uma cuidadosa e exata catalogação das origens
etnográficas dos africanos trazidos para o Brasil. Além do folclore, das festas
populares e da religião africana procurou estudar suas línguas e suas influências na
Língua Portuguesa do Brasil. Esses estudos - dados baseados em testemunhos
orais - o levaram a acreditar que o africano era, sem qualquer dúvida científica, um
ser inferior.
Baseado nessa crença, nos seus estudos sobre raça e Código Penal (1894),
defendia que o comportamento social dos negros, índios e mestiços, era afetado
pelas características raciais inatas, não podendo, dessa forma, ter o mesmo
tratamento no Código, fato que deveria ser relevado pelos policiais e legisladores.
A reação ao pensamento racista veio com a idealização de uma democracia
racial através das influências da obra de Gilberto Freyre (1933) - Casa Grande e
Senzala - que de acordo com Skidmore virou de cabeça para baixo a afirmativa de
ter a miscigenação causado dano irreparável. (p.210)
Hasenbalg em Relações Raciais no Brasil Contemporâneo (1992) afirma
que
21
Seyferth (1989) postula que as primeiras teorias elaboradas por antropólogos e sociólogos brasileiros
foram elaboradas de forma ensaística e pouco rigorosa em seus pressupostos científicos porque foi
produzida uma falsa questão racial, baseada na crença da inferioridade das raças não brancas. (Confere
p. 13)
81
Os anos de 1930 nos oferecem pela pena de Gilberto Freyre, a versão acadêmica
do que hoje chamamos de mito da democracia racial brasileira. Durante algumas
décadas, essa concepção mítica prestou inestimáveis serviços à retórica oficial e até
mesmo à diplomacia brasileira.(...) Seduzia simultaneamente os brasileiros brancos
com a idéia da igualdade de oportunidades existente entre pessoas de todas as
cores, isentando-os de qualquer responsabilidade pelos problemas sociais dos não-
brancos. (p.140)
Gilberto Freyre ainda postula que o povo português, pelas qualidades de seu
caráter, demonstrou que somente ele seria capaz de obter sucesso na colonização,
principalmente por adotarem a estratégia da miscigenação. Afinal, foi o branco
português que relacionou-se sexualmente , primeiro, com a índia e depois com a
negra, propiciando o aparecimento do mestiço o qual viria a se constituir como o
tipo mais adequado para construção da nação brasileira. O negro e o índio,
portanto, teriam contribuído igualmente para o sucesso da colonização.
Em meados da década de 1940 foi feita uma ampliação dos estudos das
relações raciais no Brasil por militantes e cientistas negros tais como Guerreiro
Ramos (1950, 1957) e Abdias do Nascimento (1982)22. Eles tinham como finalidade
o desmascaramento da democracia racial brasileira. Mas, pela denúncia da
existência do preconceito racial no Brasil, alguns autores serão acusados de
burgueses intelectuais e que estariam americanizando as relações raciais
brasileiras e praticando um racismo às avessas.
Mas, a partir da década de 1950 que a questão racial, no Brasil, passa a ser
melhor analisada. Em 1951, a UNESCO patrocina um amplo projeto sobre o negro
que tornou-se objeto de pesquisa de vários cientistas sociais brasileiros, norte-
americanos e franceses, tais como: Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Roger
Bastide, Marvin Harris, entre outros. Eles realizaram trabalhos de campo no
22
Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento, além de cientistas eram militantes e estavam mobilizados
em torno do Teatro Experimental do Negro, instituição tida como uma das organizações do Movimento
Negro.
82
Nordeste, São Paulo e Rio de Janeiro. Pelos resultados obtidos constatou-se que o
Brasil não era um paraíso racial como haviam imaginado. Verificou-se que a
estética branca predominava na sociedade brasileira e que havia discriminação com
base na cor da pele. Porém, mesmo havendo indícios da existência desse tipo de
discriminação, os autores reduziram-na a uma questão de classes. Acreditavam
provar, através das evidências de ascensão social dos mestiços, que no Brasil não
existiam barreiras raciais rígidas, já que seria permitido ao negro competir com os
brancos por um lugar na sociedade. A sociedade brasileira seria uma sociedade
multirracial de classes e não de castas. (SEYFERTH, 1989. p.28)
Foi nessa época, 1951, que o Congresso Brasileiro viu-se obrigado a votar
uma lei contra a discriminação racial, a Lei Afonso Arinos. Esse fato aconteceu após
um episódio explícito de discriminação contra uma bailarina negra norte-americana:
sua hospedagem foi recusada num hotel em São Paulo. Mas, essa lei ficou sendo,
na verdade, um belo gesto simbólico já que nenhum grande esforço foi feito, por
parte do governo, para investigar possíveis discriminações desse tipo.
Na década seguinte, cientistas sociais que trabalharam na missão
patrocinada pela UNESCO, ampliam suas pesquisas sobre as relações raciais.
Florestan Fernandes foi um deles23. Para o autor, a aquisição e a melhoria das
condições de ganho dos brasileiros tenderiam a criar uma situação mais favorável "
à absorção do negro e do mulato na ordem social competitiva". Este fenômeno
constituiria-se numa "manifestação pura de mobilidade social vertical". Certas
barreiras que impediam ou dificultavam a classificação social do negro ou do mulato
deveriam desaparecer, pelo menos, no que se refere à proletarização.
Para Florestan (1965), essa parcela da população poderia "lançar-se no
mercado de trabalho e escolher entre algumas alternativas compensadoras de
profissionalização". À medida que essa tendência se concretizasse, o negro
superaria, graças ao seu esfôrço, a antiga situação de papeurismo e anomia social,
deixando de ser um marginal (em relação ao regime de trabalho) e um dependente
(em face do sistema de classificação social). (p.134)
23
Devem ser lembradas também as pesquisas de Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso - Cor e
Mobilidade Social em Florianópolis (1960) que versava sobre a história e a situação do negro em Santa
Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Aí é apresentado um quadro muito diverso do que havia sido
tradicionalmente descrito. Também são importantes As Metamorfoses do Escravo - Octavio Ianni (1962)
e Capitalismo e Escravidão - Fernando Henrique Cardoso (1962).
83
24
Em outro estudo - Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil (1979) - Hasenbalg reserva seis
páginas para uma crítica à Florestan Fernandes ( p. 72-77).
84
25
Luiz Claudio Barcelos (1992) em seus estudos sobre educação e desigualdades raciais informa que,
pela PNAD/1987, “apenas 0,5% de pretos de 20 a 24 anos e 0,4% entre 25 e 29 anos têm curso superior
completo. Para os pardos esses números são 1% e 2,9% respectivamente. (p. 55)
87
dos brancos concluem os estudos universitários contra 2,5% dos negros. Na pós-
graduação encontra-se 2,5% de brancos contra 0,1% de negros.
Os dados referem-se ao Censo de 1991 que pela primeira vez mediu , de
modo cruzado, o grau das desigualdades raciais e sociais no Brasil. Ainda, segundo
o IBGE, a maioria absoluta (59%) da população negra com mais de 10 anos só tem
o nível elementar de escolaridade, ou seja, até a 4a série do primeiro grau.
Em 1999, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE informa que
segundo o PNAD/ 1998, a taxa de analfabetismo para brancos é de 8, 4%; para os
negros é de 21,6% e para os pardos26 é de 20,7%. O analfabetismo funcional, isto
é, pessoas com, somente, até 3 anos de estudo, atinge 22,7% da população branca
contra cerca de 40% da população preta e parda. A população branca de 10 anos e
mais de idade tem uma escolaridade média de 6,5 anos completos de estudo,
enquanto as populações preta e parda têm uma escolaridade média de 4,5 anos.
Segundo dados do IBGE/ PNAD- 1999; 2003; 2008 - tem havido quedas
significativas do analfabetismo em todos os grupos de cor e em todas as regiões do
Brasil. Mas, as desigualdades raciais são marcantes. Em 2008, a população branca
residente no país apresentava uma taxa de 6,2%; já os grupos de pretos e pardos
apresentavam, respectivamente, 13,2% e 13,5%. Ao analisarmos tais informações,
levando em conta os aspectos regionais, observa-se que tanto nas regiões mais
prósperas quanto nas regiões mais pobres, a maior incidência de analfabetismo
recai para pretos e pardos.
Percebe-se que apesar da educação escolar constituir-se num dos degraus
para a mobilidade ascendente dos brasileiros, o negro pouco ascendeu no sistema
educacional formal e ainda está muito pouco representado nessa instituição. Com o
abandono da escola antes mesmo de completar o Ensino Fundamental, fica
reforçado o estereótipo “negro sem instrução”, quando o ingresso e a permanência
na escola estão intimamente relacionados a fatores econômicos, sociais e étnicos.
O papel da educação, tradicionalmente, cabia à família. Mas, com a
crescente complexidade das sociedades modernas, tornou-se necessário apelar
para o auxílio de outras instituições civis nessa tarefa. A escola foi uma delas. E é
no processo de educar-se que as pessoas constróem sua identidade e, portanto,
reconhecem a sua cor. Cor que, de acordo com Hasenbalg (1979) opera como um
26
As nomenclaturas preto e pardo são utilizadas pelo IBGE.
88
27
COELHO Jr., N. A identidade (em crise) do psicólogo. Cadernos de Subjetividade, v. 4, p-302-304,
1996.
89
evidentemente que a identidade delas será construída com uma grande carga de
negatividade. E essas experiências são resultados da cultura estabelecida pelo
grupo do qual as pessoas fazem parte. Portanto, identidade e cultura são conceitos
intimamente relacionados.
28
Entende-se preconceito como “um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de
pertença, de uma etnia ou de uma de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel social
significativo. Esse julgamento prévio apresenta como característica principal a inflexibilidade pois, tende a
ser mantido sem levar em conta os fatos que o contestem.” (GOMES, 2005, p. 54)
90
Funk! Foi a partir daí que a bolsista, sob minha coordenação, passou a
fazer um trabalho que nos levou a buscar fundamentos teóricos para o
enriquecimento de nossa pesquisa. Esse aluno era repetente e a professora
29
Tratava-se de uma pesquisa-ação em que as pesquisas são “concebidas como meio de favorecer
mudanças intencionais decididas pelo pesquisador. O pesquisador intervém de modo quase militante no
processo, em função de uma mudança cujos fins ele define como a estratégia”. (BARBIER, 2002, p.42)
30
Baixada Fluminense é o nome que se dá a municípios próximos, periféricos, ao Rio de Janeiro.
31
Turma de progressão era a denominação dada àquelas turmas cujos alunos não haviam sido
alfabetizados dentro do período considerado regular. Hoje, as turmas de progressão não mais existem.
91
confidenciou à bolsista que naquele ano letivo teria que aprová-lo mesmo que ele
não soubesse ler ou escrever.
A bolsista tentou estabelecer contato com o menino perguntando se era
verdade que ele não gostava de estudar. E ele lhe respondeu que estava cansado.
Então, a bolsista perguntou se ele não gostaria de cantar um funk para ela
aprender. Ele a olhou um pouco espantado e desconfiado, abaixou a cabeça na
carteira e, junto com outro menino, também considerado problema, começou a
cantar, escondendo a face, como se estivesse envergonhado do que estava
fazendo. Ambos cantaram e depois ela perguntou se eles não poderiam escrever
para ela treinar em casa para aprender melhor a música e fez um desafio: “ a não
ser que vocês não saibam escrever”.
Os alunos arrancaram uma folha do caderno e juntos escreveram a letra,
como aprendizes, demonstrado aspectos de uma escrita pré-alfabética. Tentaram
correlacionar a fala com a escrita e discutiram entre si a forma correta dessa escrita
e, algumas vezes, perguntavam se “três” era com “T” ou “V”. Neste movimento, os
meninos escreveram boa parte da música. Também contaram a história da música,
quem cantava e o que queria dizer.
Na verdade, os alunos dialogavam com uma realidade muito próxima da
deles e o funk tornava-se uma forma de desabafo social e grito de socorro. Dentre
tantos funks escolheram um que chamava a atenção para o contexto em que
viviam32.
Essa situação mostra como a escola ainda desvaloriza os saberes populares
e afro-descendentes em função de um conhecimento centrado em uma cultura
branca.. Talvez, fosse uma tentativa melhor sucedida alfabetizar a turma através
das letras de funk, pois, além de serem úteis nas discussões sobre aspectos sócios,
geográficos, históricos, biológicos, os professores poderiam ainda debater temas
sobre a ética, pluralidade cultural e violência urbana. Acreditamos que as tentativas
dos professores refletem a vontade de acertar, mas não sabem como e nem por
onde começar.
32
O funk cantado pelos meninos é uma versão denominada “Proibidão” e faz apologia à criminalidade,
drogas, sexo, não tendo sido gravada ou cantada oficialmente, apenas tocada nos bailes: “Bota a cara,
porque a bala vai come. Pra tentar tu tem que ta maluco. Quem tentar na Prover vai comer chumbo.”
(Trecho musical atribuído a MC Sabrina).
92
reforça a idéia já tão propagada pela mídia e outros meios de que a cultura a ser
valorizada é aquela entendida pelo grupo dominante como a melhor.
Evidentemente que tal cultura não é a que valoriza a população negra e mestiça
afro-descendente. Não é de se estranhar, portanto, que haja preconceito do negro
contra o próprio negro. Quem quer se identificar com algo que é considerado
inferior?
Quando na escola um aluno chama o outro – o aluno negro - de macaco,
tição, que tem um cabelo ruim, vai se construindo e se reforçando uma auto-
identidade negativa, pois, o que se interioriza é uma hetero-identidade considerada
superior. Evidentemente que o portador dessa auto-identidade negativa,
dependendo dos mecanismos desenvolvidos até então para lidar com maior ou
menor segurança com tal desvalorização, procurará negar essa identidade. Um
aluno da Educação Infantil, ou do Ensino Fundamental, não teve ainda a
oportunidade de ter acesso a certos conhecimentos que poderiam os levar a um
melhor entendimento dessa questão. É a partir daí fica muito propício ao aluno
negro desenvolver um sentimento de rejeição contra si mesmo, provocando-lhe
inseguranças que vão trazer prejuízos para o seu rendimento escolar.
Apesar do funk ser muito tocado em rádios e TV, periodicamente, ele é
também alvo de notícias envolvendo violência, participação de bandidos e
confrontos policiais, criando, assim, uma atmosfera negativa da sociedade,
consequentemente, entre os professores, sobre ele. Mas, o funk está presente na
vida cotidiana da maioria dos alunos pobres e a situação da grande maioria dos
alunos das escolas públicas brasileiras é de pobreza e, principalmente, os negros e
mestiços afro-descendentes são os que mais se inserem em tal situação. Isso não
quer dizer que todos têm a mesma identidade. Existem especificidades que
precisariam ser abordadas e trabalhadas para serem respeitadas. Porém, essas
especificidades são, na maioria das vezes, "esquecidas" em prol de uma sociedade
"harmônica", homogênea, onde as individualidades são igualadas por um modelo
comum de cultura, em nome de uma pretensa ordem social.
A escola, portanto, de forma geral, não considera a diversidade de pessoas
e, portanto, de culturas. Assim, o real não é apresentado como heterogeneidade,
como processo que faz variar o que existe; o real é apresentado como se fosse
estável (ITURRA,1997). Homogeneiza-se as diferentes culturas e a riqueza de
relações que podem ser estabelecidas entre e com elas. Tantas cumplicidades que
94
escapam em nome dessa dominação cultural que sufoca e limita, pois, a escola
constitui-se num terreno cultural onde ocorrem embates, transgressões,
contestações, ambiguamente superpondo reprodução e resistência. (LOPES, 1997,
p.64)
Pode-se dizer que o preconceito racial interfere na busca do negro pela sua
identidade, levando-o a viver, constantemente, com pensamentos de desprazer.
Passa a acreditar que assumindo certos comportamentos, que julga ser exclusivos
do branco, será aceito pela sociedade. Não percebe que formas de comportamento
não são características de tipos de raça. E, para evitar mais sofrimentos, ele termina
por se privar de confrontos com pensamentos racistas. Aceita como verdadeira
aquela realidade que lhe é imposta, desistindo, de antemão, de encontrar saídas e
soluções para os seus problemas.
Faz-se urgente, então, que uma educação étnico-racial seja implementada
como contribuição para a cidadania. Essa é uma das propostas das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, estabelecidas pela lei
10.639/03.
tranqüilo não adotar o termo raça como forma de neutralizar o racismo, no entanto,
a questão é muito mais complexa porque conforme Gomes (2005), é no contexto da
cultura que nós aprendemos a enxergar as raças.(p.49). Portanto, raças são, na
realidade, construções sociais, políticas e culturais produzidas nas relações sociais
e de poder ao longo do processo histórico. Não significam, de forma alguma, um
dado da natureza. (idem).
Nesse sentido, não existe uma identidade humana universal. Mesmo com o
processo de globalização em que a homogeneização cultural tenta se fazer
presente, as identidades nacionais e locais se reforçam em atos de resistência a
esse processo. (HALL, 2006)
5. Considerações finais
37
Gonçalves usa a expressão “rituais pedagógicos” emprestada de Cury (1985). Para esse autor “ritual
pedagógico” seria o “funcionamento da formação pedagógica” e nele se expressam as práticas escolares
que por sua vez expressam uma concepção de mundo. E, quanto mais burocratizada a instituição mais
coercitivo o “ritual pedagógico” será.
99
Referências bibliográficas
38
Marcia Gomes de Oliveira Suchanek
Introdução
Utilizei como epígrafe40 deste artigo uma curta, mas substancial, fala de meu
amigo Doethiró, líder político do povo Tukano, habitante do Alto Rio Negro, no
Amazonas. São palavras de uma pessoa que conhece o valor da educação dos
antepassados, de uma educação para a Vida.
Quando perdemos esta referência ancestral e deixamos para as instituições
formais toda a tarefa da educação, estamos perdendo os nossos filhos. Estamos
mortos, porque deixamos de transmitir-lhes quem somos e, por isso,
desaparecemos.
A Lei Nº. 11.465/08 alterou o Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, em 10 de março de 2008, para incluir a obrigatoriedade do
estudo da História e Cultura dos Povos Indígenas, além da História e Cultura Afro-
Brasileira já anteriormente exigida (Lei Nº. 10.639/03), no currículo oficial da Rede
de Ensino, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e
particulares.
O que a alteração da LDB trás para nós é, sobretudo, a oportunidade de
aprender com os povos indígenas o que perdemos: um saber que vem do espírito.
Muitos filósofos já falaram sobre este saber. Mas, chegou a hora de conhecermos
os "filósofos" indígenas, os sábios desta terra, e aprendermos que História e Cultura
indígenas não fazem parte de um capítulo do folclore brasileiro, mas de um rico
saber das centenas de culturas indígenas existentes no Brasil.
O começo
41 Sesmaria é um lote de terra com superfície muito variável cedida ao colono português, nomeado
sesmeiro. Este recurso jurídico foi criado em 1375 para solucionar a grave crise de abastecimento
alimentar que havia em Portugal. Na Colônia, mais do que para promover o cultivo à terra, serviu para
dominá-la enquanto área colonial. Para maiores esclarecimentos sobre o sistema de sesmaria no Brasil
ver Motta (1998).
105
Índios alugados
Como uma forma de escamotear a escravidão dos povos nativos, foi criado o
termo “índios alugados”. Para fazer jus ao nome, a pessoa recebia pelo trabalho
executado alguns metros de pano de algodão, tecido pelas próprias índias.
Os índios alugados também estavam obrigados ao aprendizado da doutrina
cristã, recebiam alimentação insuficiente e castigos pesados. O trabalho nas
fazendas variava por setor, ocupação, etnia e sexo. Os homens carregavam
produtos do interior para o comércio do litoral. Comandados pelos sertanistas
(chefes das expedições para o sertão), faziam a abertura das matas como
soldados, eram os guias das expedições para o interior e responsáveis pela
alimentação dos sertanistas, fornecendo o que eles mais cobiçavam: as carnes.
Também foram mercadores de produtos de couro em vilas do interior e vaqueiros,
principalmente a partir do final do século XVII.
As mulheres cuidavam das roças e das lavouras de trigo e algodão, além de
serviços domésticos, como acompanhantes, babás e cozinheiras nas moradas dos
colonizadores (fazendeiros e funcionários da Coroa).
Os fazendeiros criavam mecanismos para reter os índios permanentemente
em seus estabelecimentos particulares, usando como principal recurso o
casamento de uma índia escrava de sua propriedade com um índio alugado.
42 Monteiro (2002, p. 497, nota 3) observa que o termo bandeirante é um anacronismo no século XVII. A
palavra só foi utilizada no século XVIII, inicialmente para designar expedições punitivas contra os índios
em Goiás.
107
No final do século XVII, com a descoberta das minas de ouro nos estados de
Goiás, Minas Gerais, Bahia e Mato Grosso, os principais fazendeiros da região sul
deslocaram seus escravos indígenas para a região das minas.
Os fazendeiros que permaneceram em São Paulo, por exemplo, preferiram o
lucro imediato do comércio de escravos africanos e de gado do que investimentos
menos rentáveis na própria terra - justamente os que mais utilizavam o trabalho
indígena. Deste modo, a procura da mão-de-obra indígena caiu com a decadência
geral da lavoura paulista. Mas este fato não significou a completa substituição da
força de trabalho indígena pela africana. Desde o século XVI, a escravidão africana
foi concomitante à escravidão indígena.
O aumento do uso da mão-de-obra escrava oriunda do continente africano
não foi causado por carência de mão de obra nativa. Tratou-se de uma opção
geopolítica do governo central e atendeu aos interesses do comércio negreiro
(ALENCASTRO, 2000).
Em 1730, foi oficialmente extinta a administração particular sobre a vida dos
nativos. Entretanto, o sequestro e a escravidão continuaram através do programa
administrativo desenvolvido pelo Império português.
Extermínio cultural
aconteceu na lei, porque na prática não foi o fim da escravidão, mas uma mudança
de interpretação jurídica: a partir daquele momento, os índios escravos não foram
mais reconhecidos como índios.
A situação pós-colonial
Lei de Terras
Em 1850, mesmo ano em que foi proibido o tráfico de escravos da África para
o Brasil, também foi criada a Lei de Terras (Lei 601 de 18/9/1850) - a primeira lei a
regulamentar o uso da terra em todo o território brasileiro.
Esta Lei oficializou o latifúndio e eliminou o direito de posse. Isto provocou a
extinção de dezenas de aldeias indígenas (DARELLA; LITAIFF, 2000).
43 Somente é correto dizer “o índio” quando se trata de uma determinada pessoa nativa. Sendo incorreto
o uso do termo “o índio” ou “os índios” para se referir aos povos nativos.
109
É nesta lei que nasce o conceito jurídico de Reserva Indígena, depois amplamente
utilizado, e que significava nada mais do que uma porção de terra pública separada
(reservada) de uma gleba maior, que não era destinada à colonização, mas ao uso de
um grupo indígena enquanto não fosse definitivamente "civilizado". Isto quer dizer que
não era um reconhecimento dos direitos indígenas sobre as terras que ocupavam,
mas a separação de uma terra qualquer para ser ocupada pelos índios,
independentemente de seu direito (SOUZA FILLHO, 1993, p. 65).
Existe um tipo de direito especial para definir o direito dos povos nativos a
suas próprias terras, chama-se indigenato. De acordo com o direito do indigenato,
as terras dos povos indígenas são reservadas ao seu usufruto exclusivo. O direito à
terra não é concebido ao índio como se ele a tivesse adquirido por simples
ocupação ou conquista, mas porque lhe é um direito congênito e primário. Não é
um simples ato de posse, mas de um título imediato de domínio. Não há, portanto,
posse a legitimar, mas domínio a reconhecer.
O Jurisconsulto João Mendes Junior dá uma aula magistral ao defender o
direito do indigenato em uma Conferência realizada em 190244:
“Não quero chegar até o ponto de affirmar, como P.J. Proudhon, nos Essais d’une
philos.populaire, que - o indigenato é a única verdadeira fonte jurídica da posse
territorial; mas, sem desconhecer as outras fontes, já os philosophos gregos
affirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um
título adquirido. Conquanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da
posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de Abril de 1680, a
primaria, naturalmente e virtualmente reservada, ou na phrase de Aristoteles (Polit., I,
n.8), - um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento.
Por conseguinte, o indigenato não é um facto dependente de legitimação, ao passo
que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem.
O indígena, primariamente estabelecido, tem a sedum positio, que constitue o
fundamento da posse, segundo o conhecido texto do jurisconsulto Paulo (Dig.titul. de
acq. vel. Amitt. Possess., L. 1), a que se referem Savigny, Molitor, Maiz e outros
romanistas; mas, o indígena, além desse jus possessionis, tem o jus possidendi, que
44 Terceira Conferência de João Mendes Junior, na Sociedade de Etnographia e Civilisação dos índios
de São Paulo, sob o título “Situação dos indios depois da nossa independência”, apresentada em 1902 e
publicada no livro “Os indigenas do Brazil seus direitos individuaes e políticos”, publicado originalmente
em 1912 e em 1988, republicado em Edição Fac-Similar, pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, Págs.
58 e 59 (GRAU, 2008).
110
Século XX
A tutela
devido a esta incapacidade eles teriam o direito de proteção e defesa de suas terras
e culturas.
A tutela aos silvícolas era análoga ao instituto dispensado aos maiores de 16
anos e menores de 21 anos e aos pródigos (indivíduos que dilapidam o seu
patrimônio e, por isso, devem ser interditados pela família). Já os índios que se
acham confundidos na massa geral da população passam a ser regidos pelo direito
comum (Artigo 147, I, Código Civil de 1916), sendo, portanto, ignorado o direito
coletivo à terra e à vida de acordo com suas tradições e costumes (MAGALHÃES,
2005).
Em 1918, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores
Nacionais (SPILTN) passou a ser denominado apenas de Serviço de Proteção aos
Índios (SPI).
Atração fatal
Fase 1: Atração
45 Os Postos Indígenas existem até hoje em áreas indígenas reconhecidas pelo Governo Federal. A
principal diferença é que atualmente os chefes dos Postos possuem, de um modo geral, uma postura
menos autoritária e, em alguns casos, o chefe é indígena.
112
Fase 2: Comércio
Fase 3: Endividamento
Na Lei de Criação da FUNAI (Lei nº5.371/67), em seu Artigo 1º, fica exposto o
mesmo propósito do SPI de proporcionar a “aculturação espontânea do índio”,
promovendo sua evolução socioeconômica sem mudanças bruscas por intermédio
de uma “educação de base apropriada”, visando a sua progressiva integração na
sociedade nacional. Esta política deu continuidade à ruptura da vida autônoma dos
povos indígenas, gerando, em alguns casos, massacre e extermínio, e em outros a
miséria.
Em 1973, em plena ditadura militar, após várias denúncias internacionais
sobre maus tratos sofridos pelos índios no Brasil, foi criada a Lei nº. 6.001/73,
conhecida como Estatuto do Índio. Em vigor até hoje, reconhece a necessidade de
preservar as características culturais dos grupos étnicos e de promover o
“desenvolvimento” das comunidades indígenas, “no sentido de elevar o padrão de
vida do índio com a conveniente adaptação às técnicas modernas” (Artigo 53 do
Estatuto do Índio).
Conclusão
Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. 2000. O Tratado dos Viventes. Formação do Brasil
no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. 1988. A crise do indigenismo. Campinas: Ed.
Unicamp.
CUNHA, Manuela Carneiro da. 1987. Os direitos do índio. Ensaios e documentos.
São Paulo: Editora Brasiliense.
____. 2002. Política indigenista no século XIX. In: ____. (org.). História dos índios
do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura:
FAPESP, p. 133-154.
DARELLA, Maria Dorothea P.; LITAIFF, Aldo. 2000. Os índios Guarani Mbya e o
Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. XXII Reunião Brasileira de Antropologia.
Fórum de Pesquisa 3: Conflitos Sociambientais e Unidades de Conservação.
Brasília.
FUNAI, Fundação Nacional do Índio. Disponível em: http://www.funai.gov.br/.
Acesso em 05.04.11.
GRAU, Eros. 2008. Memorial da Comunidade Indígena Pataxó Hã Hã Hãe. Ação
Cível Originária n° 312. Relator: Ministro Eros Grau. Declaração de nulidade de
títulos imobiliários incidentes na Terra Indígena Pataxó Hã Hã Hãe. Em pauta para
julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Agendado para o dia
24/09/2008. Disponível em:
http://www.cimi.org.br/pub/publicacoes/1222078250_Memorial_Com_Pataxo_HHH_
ACO_312_STF.pdf . Acesso em: 05.04.11
JUNQUEIRA, Carmen. 1984. "Sociedade e cultura: os Cinta-larga e o exercício do
poder do Estado". Ciência e Cultura, São Paulo, v. 39, n. 8, p.1284-1287.
118
A frase que compõe o título deste texto foi expressa por uma professora de
língua portuguesa num seminário sobre a Lei 10.639 promovido por uma secretaria
de educação de um município do interior do estado do Rio de Janeiro.
Na ocasião, estavam presentes diversos docentes, principalmente da área
de história, e se debatia as grandes dificuldades de implementação da referida lei
nos espaços escolares e na sala de aula. Essas dificuldades se referiam desde a
falta de material didático sobre a história da África e dos negros no Brasil, o racismo
presente entre crianças e jovens, certa dificuldade dos docentes em discutir um
tema gerador de “muitos conflitos”, a falta de apoio pedagógico dos sistemas de
ensino, até a defasagem na formação de professores sobre a problemática das
relações raciais e educação.
Após tantas “evidências” levantadas no grupo sobre os desafios e as
dificuldades de ter esta lei cumprida nas escolas, a professora declarou que “a sala
de aula é o último lugar onde ocorrerão mudanças”.
Para alguns estudiosos da questão, presentes no seminário, esta frase
pareceu sintomática naquilo que percebemos atualmente nas discussões sobre a
implementação da Lei 10.639 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana em todo o currículo do ensino básico48, ou
seja, as implicações curriculares e pedagógicas suscitadas pela nova legislação vão
percorrer um longo caminho até chegar efetivamente nas salas de aula.
A professora não fez uma declaração em tom pessimista, mas tentando
demonstrar que a superação e o combate ao racismo que esta lei apresenta
implícita e explicitamente, estão mobilizando questões muito além de uma
especificidade temática no campo educacional brasileiro.
47
Doutor em Educação pela PUC – Rio, Mestre em Sociologia pela UERJ e Especialista em História da
África e do Negro no Brasil pela UCAM. Professor Adjunto do Instituto de Educação da UFRRJ.
48
Em 10 de março de 2008, foi sancionada a Lei 11.465/08 que substitui a Lei 10.639. Esta nova lei
acrescenta apenas a inclusão do ensino da história e cultura dos povos indígenas. Portanto, a partir
desse momento do texto, faremos referência a nova Lei que substitui a 10.639/03.
120
Baptista Silva, Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão
da literatura da revista Educação e Pesquisa; Ana Lúcia Valente, Ação afirmativa,
relações raciais e educação básica da Revista Brasileira de Educação; José
Ricardo Oriá Fernandes, Ensino de história e diversidade cultural: desafios e
possibilidades do Caderno Cedes; o texto do Núcleo de currículo do CEAFRO e da
Secretaria Municipal de Educação de Vitória-ES, A Educação Anti-Racista; Luciane
Ribeiro Dias Gonçalves e Angela Fátima Soligo, Educação das relações étnico-
raciais: o desafio da formação docente, apresentado na 29ª Reunião da ANPED no
Grupo de trabalho Afro-brasileiros e Educação e o texto de Maria Cristina Rosa, Os
professores de arte e a inclusão: o caso da lei 10639/2003, apresentado também na
29ª Reunião da ANPED no mesmo Grupo de Trabalho.
49
Cabe lembrar que em julho de 2004, a Lei 10.639 é regulamentada pelo Conselho Nacional de
Educação, instituindo as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das relações Étnico-raciais e
o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
127
50
Destacamos que este autor acompanhou todo o processo de aprovação da Lei 10.639 no Congresso
Nacional, pois era, na época, um dos consultores legislativo da Câmara dos Deputados na área de
educação e Cultura.
128
Fazendo um passeio por estes textos, podemos perceber que o simples fato
de termos uma legislação que estabelece uma obrigatoriedade de um conteúdo
pedagógico nos sistemas de ensino, principalmente um tipo de conteúdo que inclui
133
Fernandes (2005), por sua vez, tem a mesma preocupação, afirmando que,
para a Lei 11.465 não “virar letra morta”, é necessário enfrentar o “gargalo” da
formação docente, com cursos de extensão e o incentivo a criação de novos
materiais didáticos. O autor não aprofunda mais sobre o que seria este “gargalo”,
mas limita-se a propor soluções ainda mais genéricas do que esta expressão
utilizada.
Ao contrário deste autor, Valente (2004) vai mais fundo quando fala na
“capilaridade” das relações de aprendizagem, “mudança de olhar” e um “acerto de
contas” com a formação docente inicialmente recebida pelos professores.
Entretanto, na tentativa de formular uma proposta, a autora peca pela abstração e
ingenuidade, pois sugere, dentre outras coisas, uma espécie de troca, ou seja, os
governos investiriam na formação dos professores, e estes, se comprometeriam a
aderir aos programas oficiais, dentre eles, a aplicação da Lei 11.465. O que
realmente significaria isto? Será que o próprio Estado já teria resolvido a questão
das políticas de reconhecimento das diferenças sem contrapô-las as políticas de
igualdade, como a autora já criticara em parágrafos anteriores?
Ainda sobre a formação docente, por outro lado, nos textos apresentados
para a 29ª Reunião da ANPED, de Gonçalves e Soligo (2006) e Rosa (2006),
percebe-se que existe uma abstração em excesso e a possibilidade de perda da
capacidade analítica do atual momento de implementação da Lei 11.465.
Gonçalves e Soligo (2006) pecam pelo excesso de abstração quando
caracterizam a formação docente como prioritária para a realização de mudanças
na perspectiva do reconhecimento da diversidade e da diferença.
Apesar de situar muito bem o que está em jogo nas discussões sobre a lei
11.465, ou seja, as tensões entre igualdade e diferença e o papel político da lei em
pautar a diversidade no campo educacional, a autora levanta somente perguntas:
“Como lidar com a diversidade cultural em sala de aula?” “É possível escapar de um
modelo monocultural de ensino?” “Poderão professores incluir a eqüidade de
oportunidades educacionais entre seus objetivos?” “Como socializar, através do
currículo e de procedimentos de ensino, para atuar em uma sociedade
multicultural?”
Ao final, suas respostas são ainda mais genéricas: “novas metodologias”,
“reformulação dos currículos”, “criar oportunidades de sucesso escolar”, etc. Ou
seja, uma reflexão abstrata que pouco responde a uma de suas próprias questões:
136
E ainda
“Esta perspectiva se insere numa concepção de pesquisa participativa capaz de
produzir saberes com alguma chance de se chegar a uma proposta educacional
alternativa, que postulem currículos centrados nas várias tradições culturais dos
docentes investigados. Possibilitando inclusive, a perspectiva de mudanças
curriculares concretas” (Thiollent, 2004).
práticos que aceitam o que existe de relações raciais no Brasil, que não percebem a
trivialização de sofrimentos, mobilizados por brincadeiras e constantes posturas
omissas e discriminatórias e que olham posturas, gestos e concepções
preconceituosas como fatalidades humanas.
Boaventura nos permite perceber estas questões de conflitualidades étnico-
raciais dentro das escolas como elementos históricos mais amplos, que devem ser
evitados, pois, tratar-se-iam de questões “retrogradas”, já que na concepção do
pensamento social hegemônico, o passado, os sofrimentos humanos, as injustiças,
as opressões, o racismo, são vistos como elementos que devem ser evitados e que
seriam superáveis num futuro próximo e radioso, ou seja, um futuro como sinônimo
de progresso.
Entretanto, Boaventura nos informa outro aspecto dessa discussão, ou seja,
atualmente as energias do futuro parecem desvanecer-se, pelo menos enquanto o
futuro continuar “a ser pensado nos termos em que foi pensado pela modernidade
ocidental, ou seja, o futuro como progresso” (Santos, 1996:16). Ele nos diz, que os
vencidos da história “descrêem hoje do progresso porque foi em nome dele que
viram degradar-se as suas condições de vida e as suas perspectivas de libertação”
(Santos, 1996:16).
Neste sentido, consubstanciado pelo mito da democracia racial, parece ser
esclarecedor o entendimento de concepções docentes que evitam a manifestação
da conflitualidade que surge ou possa surgir quando da discussão em sala de aula
sobre relações étnico-raciais no Brasil. Evita-se falar com os alunos sobre racismo
no Brasil, procura-se de antemão afirmar que os conflitos raciais no Brasil não
existem, e quando se manifestam, são localizados, individualizados ou fazem parte
do repertório de outras pessoas que são preconceituosas.
Parece que a perspectiva inicial de argumentação seria prevenir um conflito
latente e evitar a revelação das discriminações no espaço escolar. Neste sentido, a
professora que afirmou que “a sala de aula é o último lugar onde ocorrerão
mudanças”, está nos informando que nos debates sobre conflitos raciais, os
aspectos conflituais se revelam fortemente, mas o enfoque epistemológico,
expresso na evitabilidade do conflito, se transforma numa perspectiva de dúvida e
incapacidade teórica e prática de enfrentar a conflitualidade iminente nas
discussões étnico-raciais e educação.
143
Estas questões, parecem mesmo revelar o que Boaventura (1996) diz sobre a
morte da indignação, do espanto, a trivialização das conseqüências perversas da
sutilidade das discriminações raciais no Brasil.
O autor nos convida a reflexão sobre a necessidade de uma pedagogia e uma
didática que promovam a conflitualidade dos conhecimentos, ou seja, questionando
a idéia do fim da história, afirma a possibilidade de uma outra teoria da história, que
devolva ao passado “sua capacidade de revelação”, isto é, um passado reanimador
que, através de “imagens desestabilizadoras” e da conflitualidade, nos faça
potencializar e recuperar nossa capacidade de espanto e indignação perante o
“apartheid global” e os sofrimentos humanos.
Este é o projeto educativo emancipatório enunciado pelo autor. Ou seja,
produzir imagens desestabilizadoras a partir de um passado concebido não como
fatalidade, mas como produto da iniciativa humana. Para o autor, a sala de aula
teria que se transformar em campo de possibilidades de conhecimentos dentro do
qual há que optar. Ele esclarece melhor está formulação afirmando:
“As opções não assentam exclusivamente em idéias, já que as idéias deixaram de
ser desestabilizadoras no nosso tempo. Assentam igualmente em emoções,
sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos
inesgotáveis.” (Santos, 1996:18)
Referências bibliográficas:
51
Otavio Henrique Meloni
51
Professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro e Doutorando em Literatura Comparada na
Universidade Federal Fluminense (UFF).
52
A obra poética de João Maimona é composta por um grupo de dez livros, sendo eles: Trajectória
Obliterada (1985); Lês Roses perdues de Cunene (1985); Traço de União (1987); As abelhas do dia
(1988); Quando se ouvir o sino das sementes (1993); Idade das palavras (1997); No útero da noite
(2001); Festa de Monarquia (2001): Lugar e origem da beleza (2003); e O sentido do regresso e a alma
do barco (2007).
147
53
O ensaio em questão é: “João Maimona: uma poética em desassossego” In: África & Brasil: letras em
laços. Rio de janeiro, ed. Atlântica, 2000, pp.157 – 174.
149
havemos de voltar
À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar
À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar
Havemos de voltar
à Angola libertada
Angola independente.
(NETO, 1976, p128)
54
O verso em questão faz parte do poema “Adeus à hora da largada”, primeiro texto do livro Sagrada
Esperança, de 1975.
151
comunidade em que se insere, dizendo-se aquele que vem para restaurar (“folha”) a
realidade social (“árvore de sombra”). Encontramos o mesmo tom, por exemplo, no
sujeito poético que fala no poema XIX, posteriormente intitulado de “voto II”: “Eu
quero inspiração imensa / que traga às pétalas do caminho / versos de cor verde”
(MAIMONA, 1987, p.32). Notamos que o mesmo sujeito que se anuncia como a
“folha do mundo”, mais tarde quer uma inspiração que o faça produzir, dentro de
seu caminho, “versos de cor verde”. É o próprio sentimento de recriação, de
renovação da vida, da presença de um caminho que metaforiza não só o trajeto
pessoal do poeta, mas a necessidade de, como cidadão, continuar a escrever, a
acreditar e a ter esperanças. Maimona assinala que sua poética pretende, sim,
trazer o real para o poema, mas deixa claro que o poema está em constante
formação, sempre aberto a mudanças e transformações.
Esse “espaço aberto” é o ponto de partida para começarmos a pensar no
outro forte campo semântico da poesia de João Maimona: o do caminho. Antes,
será necessário considerar algumas questões pertinentes à eleição de tal imagem
para representar o fazer poético e o instante de materialização da poesia em
poema. Convocamos, outra vez, a figura de Carlos Drummond de Andrade, que
tem fundamental importância na formação literária do produtor angolano. Em
entrevista ao suplemento literário do Jornal de Angola, em 1986, João Maimona fala
dessa importância:
Das leituras de Carlos Drummond de Andrade, pude extrair um caudal de
idéias que me leva a privilegiar no conjunto dos meus poemas a qualidade e o valor
da existência humana. Quando leio Drummond, sinto-me participante de uma
autêntica festa espiritual. Drummond influenciou bastante a minha obra. A sua
poesia é para mim uma escola. Com ela apaixonei-me pelos traços lingüísticos tais
como o enjambement, a repetição, a enumeração, o estrangulamento. Com
Drummond cheguei a conclusão de que para se fazer poesia era necessário
agrupar num cesto três coisas fundamentais: o ritmo, a metáfora/metonímia e a
mensagem. E o meu poema “Poema para Carlos Drummond de Andrade” surge
como a única forma, singela e amiga, de homenagear o maior Poeta brasileiro da
atualidade. (MAIMONA, 1986, s/p)
Como vemos, Maimona é enfático ao dizer que foi através das leituras que fez
de Drummond que se descobriu poeta. Palavras como “influenciou”, “homenagem”
e “maior poeta”, demonstram bem a devoção que o angolano tem para com o
152
brasileiro. Além disso, a breve análise que faz da poética drummondiana nos mostra
algumas de suas próprias características estéticas e temáticas, o que acentua a sua
admiração pelo outro que, em um segundo estágio, é transformada em matéria
poética pelo angolano em seu poema VIII:
55
O verso final do poema VIII, posteriormente intitulado de “Poema para Carlos Drummond de Andrade”,
recebe grande atenção da crítica e da comunidade literária angolana. Lopito Feijoó, ao organizar sua
antologia de jovens poetas angolanos a intitula de “No caminho doloroso das coisas” (1988), por exemplo.
154
inventarei as minhas
no piso da cidade
no chão do campo
na escuridão da solidão.
sentidos originais. O poema se encerra com uma afirmação reveladora, feita pelo
mesmo sujeito lírico, ao dizer que será, ele mesmo, “um pedaço de palavra”. Tal
afirmativa nos remete, novamente, às formulações de Octavio Paz:
O poeta não escolhe suas palavras. Quando se diz que um poeta procura sua
linguagem, não se quer dizer que ande por bibliotecas ou mercados recolhendo
termos antigos e novos, mas sim que, indeciso, vacila entre as palavras que
realmente lhe pertencem, que estão nele desde o início, e as outras aprendidas nos
livros ou na rua. Quando um poeta encontra sua palavra, reconhece-a: já estava nele.
E ele já estava nela. A palavra do poeta se confunde com ele próprio. Ele é sua
palavra. (PAZ, op. cit, p.55)
que ouve.” (PAZ, op.cit , p.55). Maimona tem a consciência de tal processo
comunicativo inerente à palavra poética, apesar de ser rotulado por alguns críticos
como “hermético demais”. Podemos perceber a sua preocupação com essa
questão quando institui seu sujeito poético, o que se dá, muitas vezes, quando
convoca a presença de um interlocutor a quem ele se dirige, responde, indaga ou a
partir de quem reflete sobre determinada situação:
fraturada pela guerra fratricida que se abate sobre uma nação só recentemente
desvinculada do colonizador transporta, para o poema, suas tensões e o desejo
coletivo de denunciá-las e contra elas lutar.
O João Maimona poeta é, ao mesmo tempo, o homem público que participa
dos quadros do governo na câmara dos deputados e o cidadão crítico que observa
os rumos da sociedade e os problematiza em sua produção literária. Talvez assim
comecemos a entender a necessidade da presença dos imaginários interlocutores,
que funcionam como vozes de apoio, se assim podemos dizer, que o poeta
convoca para seus textos. Ao estabelecer um diálogo com outras vozes, o poeta
demonstra que há uma necessidade de não fechar o poema em uma monologia
qualquer. Por isso, cria um sujeito poético que insiste em intensificar o trânsito entre
o singular e o plural, o eu e o tu e, assim sendo, estabelece pontes entre ele e os
outros que também sofrem com a situação adversa do país.
Alguns versos e indícios do poema VII nos levam a pensar que a figura
soterrada sob o tu seja a do místico poeta Agostinho Neto. Tal constatação nos
permite intuir que Maimona, neste texto, esteja relendo o “sonho” da independência,
tal como projetado e construído por Neto, e que se afasta da euforia do primeiro
instante da libertação. Não são poucos os contatos entre este poema de Maimona e
a poesia e o ideário de Agostinho Neto. Logo no início, no primeiro verso, Maimona
convoca a imagem do comboio, dizendo que o interlocutor “acordou com os
primeiros passos do comboio”. Podemos remeter aos de “Comboio africano”: “Um
comboio / subindo de difícil vale africano / chia que chia / lento e caricato // grita e
grita // quem esforçou não perdeu / mas ainda não ganhou” (NETO, 1975, p.48). O
diálogo prossegue nos versos seguintes da mesma estrofe. Quando Maimona diz:
“Mijaste no limiar do primeiro passo. / E quiseste dar passos rápidos.”, podemos
remeter ao poema “Depressa” de Agostinho Neto: “ Impaciento-me nesta mornez
histórica / de esperas e de lentidão.” (NETO, 1975, p.124). Notamos que se trata de
um processo de releitura crítica, já que os versos de Maimona revêem os de Neto
apontando o que de “impossível” havia neles. Devemos reiterar, no entanto, que
Maimona não está preocupado em culpar ninguém, mas, sim, em repensar um
processo histórico e social que acabou contribuindo para a situação vivida no
momento em que escreve, quando não há como fazer da literatura um veículo
político-ideológico.
158
I
Diz o que pensas do meu aroma.
Azul, verde, branco, estranho:
é o aroma d’árvore
que alumia o teu campo.
II
Sou mais uma árvore do campo
que cresce à tua volta. E penetra o teu coração.
Nele brilha o meu olhar.
Nos meus olhos que os teus olhos não querem atravessar
nos meus ouvidos que os teus ouvidos não querem cruzar
sinto as dores da distância
que vais criando na noite dos teus vôos.
III
Queria tanto ver o sol da tua pele penetrar
os meus pés. Os meus braços. Os meus olhos.
Queria tanto ouvir a tua tempestade bater
à janela dos meus desejos. Dos meus sentimentos.
Queria. Queria ver o teu corpo sentado
nas minhas mãos. Ver a tua fronte na minha trajectória.
E abraçar os pontos de vista do teu sangue.
160
IV
Olha, quando passares pela boca da multidão
deita tua mão nos gritos d’ervas.
(MAIMONA, 1987, pp. 26-27)
56
Grifo nosso.
161
Percebemos que o poeta diz ter aprendido a angolar. Com a utilização desse
verbo, associado diretamente ao exercício da linguagem e do dizer, vemos que as
impressões do autor sobre a terra angolana, suas regiões e paisagens naturais vão
surgindo seqüencialmente por intermédio de tal descoberta. Aqui associamos a
idéia de angolar convocada por Maimona nesse poema ao título do bloco final de
Traço de União. O verbete do dicionário destinado ao vocábulo vernáculo indica três
possibilidades de leitura e aplicação. A primeira fala em próprio da região em que
existe. O segundo fala de linguagem pura, sem estrangeirismo. E o terceiro aponta
para o idioma de um país. Portanto, o canto vernacular proposto por Maimona
começa com a afirmativa: “aprendi a angolar.” Entendemos, então, o “angolar”
como instituir uma nova maneira de dizer/ser, diferente das outras e afirmada
através do seu local de escrita. Com esse contexto, o poeta introduz, no corpo do
poema, um panorama do cenário angolano, tanto por seus aspectos naturais
(“pelas terras obedientes de Maquela / pelos caminhos sinuosos do Sambizanga /
pelos eucaliptos das Cacilhas”) e quanto pelos sócio-históricos (“onde teus filhos
comeram balas / e / regurgitaram sangue torturado / onde teus filhos transformaram
a epiderme em cinzas’). O surgimento de tais elementos no poema só se faz
possível por intermédio dessa nova língua recriada por Maimona, pois ela é o
espaço de inscrição e de escrita, no qual ganha corpo o seu projeto poético.
Percebemos isso de maneira ainda mais clara na continuação do poema,
principalmente em sua penúltima estrofe: “A resposta está no meu olhar / e / nos
meus braços cheios de sentidos” (p.36). Maimona se projeta assim, como o
163
Referências bibliográficas
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2003.
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CHAVES, Rita; MACÊDO, Tânia e SECCO, Carmen. Brasil África, como se o mar
fosse mentira. São Paulo: Editora Unesp, 2006.
165
57
Renato de Alcântara
58
Cláudia Cristina dos Santos Andrade
Oh, lua
Desce pra quem veio te cantar
(Oh, lua, vai)
Olha o sol já vai saindo
E quem é que vai chegar?
Lua cheia vara a noite
Me chamando pra cantar
(Jongo Folha da Amendoeira)
57
Mestre em Literatura Comparada(UFRJ). Professor da FAETEC, atualmente na direção do CETEP
Imbariê.
58
Doutora em Educação(USP). Professora do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira
(CAp/UERJ)
166
O objeto: Cena 1
Era desse modo que os escravos sabiam que algum outro cativo estava
sendo castigado e corriam para acudi-lo, conforme relatou uma jongueira de
Santo Antônio de Pádua aos pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional – IPHAN, no ano de 2004, durante os registros de campo
para o Inventário do Jongo do Sudeste, requisito para seu tombamento como
patrimônio Imaterial Brasileiro, ocorrido em 2006.
Sempre situado num panorama adverso, o negro brasileiro guardou um
traço fundamental das culturas africanas e que lhe garantiu a possibilidade de
reconstruir novos laços identitáros e de solidariedade: a relação coletiva com a
terra.
Conforme já dissemos, para os povos de África, a relação entre a o
homem e a terra se dá de modo coletivo. Na diáspora a posse da terra é
vedada, mas os cativos constroem, tomam posse e defendem o terreiro,
espaço de chão batido enfrente às senzalas, onde se canta e dança.
O terreiro difunde e recria, através de suas atividades, conhecimentos,
concepções filosóficas e estéticas, formas alimentares, música, dança: um
patrimônio de mitos, lendas, refrões, em constante recriação, pois são
respostas às demandas da realidade vivenciada por negros reunidos no
cativeiro.
É pólo irradiador de complexo sistema cultural no qual as manifestações
orais, histórias sagradas, contos, adivinhas, lendas, expressões do canto,
constituem um de seus elementos, que deve ser compreendido em função do
todo, isto é, do momento em que ocorrem, dos partícipes, os instrumentos
utilizados e demais nuances.
À medida que as repressões aumentam, o negro abriga-se na roda para
cantar, dialogar, e discutir a reconquista do terreiro e da liberdade, como
mostra esse ponto de Guaratinguetá:
Na cultura ancestral africana, o universo articulava-se de modo
cosmogônico, isto é, em autocriação integrada: suas partes respondendo pelas
relações entre os homens, a natureza e os Deuses. De maneira oposta, a
169
A poética: Cena 2
produto desta inter-relação, da mesma forma que esta atividade mental é parte
constituinte do território. Nessa relação são fundamentais os conceitos de
diálogo e de alteridade, que nos ajudam a compreender como as mensagens
são compartilhadas e como sua circulação faz parte da formação subjetiva, de
forma a construir significados relativamente estáveis que compõem uma
ideologia do cotidiano. Neste sentido, Wersch(1991) chama atenção para a
matriz bakhtiana como fonte de conceitos que explicitam como as relações
sociais se organizam na constituição de sentidos individuais.
Para tal, Bakhtin traz como pressuposto básico a afirmação de que "todo
signo ideológico, e, portanto também o signo lingüístico, vê-se marcado pelo
horizonte social de uma época e de um grupo social determinados". E de que
forma isto se constrói? O processo de formação do signo parte da ideia de que,
para que um objeto da realidade possa se configurar semiótico-
ideologicamente, ele precisa adquirir uma significação interindividual,
constituindo-se como um índice de valor a partir de um dado "consenso social".
Porém, há uma dialética interna do signo, pois em seu interior se confrontam
"índices de valor contraditórios". O signo ideológico se constitui como uma
arena de lutas, da qual emergem os sentidos.
O vestuário utilizado pelos jovens, os gestos e o ritual, ensinado por eles
aos participantes da roda de tempos em tempos, fazem parte de um conjunto
de signos constitutivos da “experiência de jongar”. Bakhtin (1997, p.46) permite
a compreensão de que a construção subjetiva nasce do complexo social, e,
assim, como diz Wersch(1991), traz subsídios que fundamentam a ideia de que
a formação da mente carrega componentes construídos socialmente. Os
construtos bakhtianos focalizam o enunciado verbal, mas apontam, no que diz
respeito aos textos não-verbais, a insuficiência do signo para a apreensão dos
sentidos. Ou seja, existem elementos presentes nos textos não-verbais que
não são plenamente traduzidos pelos enunciados verbais. A forma de entrar na
roda, a reverência ao tambu, a marcação das palmas, o sorriso, as cores,
compõem um todo sem o qual a tradição não se mantém.
Bakhtin (1997) ao se referir aos textos não-verbais sinaliza a complexa
relação entre esses e as palavras, considerando a imagem um signo e,
portanto, uma construção ideológica. Para o autor
175
Cheguei na angoma
Tinha muita diferença
Quero cantar meu pontinho
E meus pais velhos dão licença.
(Tia Maria Luíza, de Angra dos Reis In JONGO DO
SUDESTE, 2004, p. 39)
A benção do criador
Eu quero agradecer
Da terra nasceu a mata
Me deu água pra beber
O sol é quem me faz rocha
Vento pra eu semear
Deu tambor pra dançar
Jongo em noite que tem luar
60
Essa seqüência é feita sem pausas ou explicações que rompam a unidade da roda.
61
Acreditamos que dificilmente uma pessoa mal intencionada ficaria impune em uma roda de jongo.
Alguém acudiria o injustiçado.
178
Considerações finais
Adeus, adeus
Eu vou embora
Fica com Deus
E Nossa Senhora
Referências bibliográficas
Parte 2
Práticas pedagógicas
182
62
Mestre em História Política e das Relações Internacionais / UERJ, Especialista em História da América /
USU, Colaborador do PROEALC / UERJ, Membro da Coordenação de Projetos dos CVTs / FAETEC e
Professor de História da ETE República / FAETEC e das redes pública e privada de ensino do Estado do
Rio de Janeiro.
183
Por outro lado, a despeito de uma prévia intuição professoral que me inclina a
empreender algumas abordagens mais sofisticadas (ou menos alienadas) de
temáticas pontuais de história da África e ou afro-brasileiras, limitadas, entretanto, a
uma esgotável relação de itens (“a África no contexto das grandes navegações”; “a
natureza do tráfico negreiro”, “a formação social do Brasil colônia”; “a luta
abolicionista no Brasil das últimas décadas do século XIX”; a Descolonização do
pós II Guerra Mundial e poucas mais), ainda me sinto de certa forma limitado
qualitativamente para materializar na prática letiva cotidiana um enfoque renovado e
crítico dos conteúdos de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
O motivo? Pertenço a uma geração de docentes, graduados antes de 2000,
notadamente em disciplinas como História, Geografia, Sociologia, Filosofia e
Literatura, praticamente “órfãos” das temáticas de matrizes africanas nas
respectivas formações acadêmicas.
Para ser fiel à verdade, recentemente soubemos que já em 1997 a professora
Leila Leite Hernandez ofereceu pioneiramente na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC / SP) alguns cursos de História Contemporânea da África e no
63
HERNANDEZ, 2005, p. 18 e 21.
64
DIAMOND, 2001, p.378.
184
Uma ressalva oportuna: logo nos créditos iniciais os produtores advertem que,
em respeito ao Corão e de acordo com a interpretação teológica de autoridades
Islâmicas, Maomé não será personificado, evitando assim ofender a espiritualidade
do Profeta e de sua mensagem divina.
Quais as conexões do filme com a construção de uma abordagem diferenciada da
temática africana?
Procuraremos mostrá-las a partir de agora, elencando e posteriormente
comentando alguns dos referidos tópicos de reflexão e debate, com a vantagem
que os mesmos poderão ser contextualizados visualmente pelo aluno, sempre
ressalvando para os discentes os limites ficcionais de um roteiro cinematográfico,
mesmo quando centrado em temáticas históricas:
67
SOUZA, 2008, p. 47 a 49.
188
Lá, teria que travar a maior batalha de sua vida: libertar os milhares de
homens e mulheres capturados e escravizados pelos deuses, como as de seu
próprio povo.
Conclusão
Referências bibliográficas
AZEVEDO, Campos Gislane & SERIACOPI, Reinaldo. História. São Paulo: Ática,
2005.
DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço. Rio de Janeiro: Record, 1997.
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2005.
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SERRANO, Carlos & WALDMAN, Maurício. Memória D’África. A temática africana
em sala de aula. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
198
Introdução
70
Formada em pedagogia pela FEBF/UERJ, Especialista em Ciências da Educação pelo ISEP,
Psicopedagoga pelo Instituto Isabel, Especialista em Dinâmica DA/NA Sala de Aula pela UFF,
Especialista em Orientação Educacional pela Fundação Getúlio Vargas. Diretora Adjunta na Escola
Técnica Estadual Juscelino Kubitschek da FAETEC.
71
Rui Barbosa, advogado, jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador, que na ocasião exercia
o cargo de Ministro da Fazenda do Governo Provisório, com o propósito de ocultar o passado escravista.
199
Caxias72. Olhando-se ao espelho o negro não consegue se ver nesses heróis, não
tem identidade, é preciso que mostremos as nossas crianças e aos jovens, os
líderes negros, sua trajetória de vida e o que realizaram para o bem comum,
aumentando a auto-estima e mostrando o cuidado que devemos ter, pois estamos
passando por um processo de transculturação. Vamos trabalhar no sentido de
construir coletivamente um novo paradigma, exercendo o olhar crítico sobre a
história dada pelos livros didáticos, se não continuaremos sem desvelar a outra
parte da real história, continuando obscura, com uma lacuna a ser preenchida.
Para melhor compreender e interpretar é preciso que cada um parta de sua
experiência, de seu ponto de vista, do modo como vê o mundo, por isso optei pelo
título do artigo: Zumbi: Herói ou Vilão? A resposta ficará a cargo da cosmovisão de
cada leitor.
A Escravidão
Nos porões do navio negreiro milhões de negros cruzaram o Atlântico, numa viagem
sem volta, a partir do século XVI até o século XIX, quando se deu a abolição da
escravatura. Enelita da Costa Correia (Guiné Bissau)
72
Duque de Caxias “Patrono do Exército Brasileiro”, que comandou um verdadeiro massacre aos
quilombos, em 1838 a pedido dos fazendeiros e a mando do Imperador.
200
Ainda no século XVI até as últimas décadas do século XIX foram realizadas
transações comerciais rentáveis entre comerciantes europeus de escravos
africanos e reis africanos, ou seus substitutos.
Há controvérsias sobre a origem e os números dos primeiros negros
escravizados chegados ao Brasil. Alguns historiadores relatam que vieram do Golfo
da Guiné e São Tomé. Outros que no século XVII os que aportaram vinham de
Angola e já encontraram residindo aqui negros da Costa Oriental.
Admite-se que as primeiras levas de escravo vindas da África, tenham chegado ao
Brasil logo após Martim Afonso de Sousa, para trabalharem nos engenhos de açúcar
de São Vicente, o que é verossímil, uma vez que antes da vinda do primeiro capitão
donatário, não haveria necessidade de trabalhadores, até porque não existiam
povoações ou quaisquer núcleos permanentes.
(Verdasca, 1997, p.124)
73
Quilombo significa comunidade de escravos fugidos, provém de kilombo, palavra de origem mbundu
que quer dizer acampamento de guerra.
203
Fundação de Palmares
74
Mocambo palavra de origem mbundu que significa esconderijo. Vários mocambos formam o quilombo.
204
Zona, seu irmão e Zumbi, seu sobrinho ou seu protegido, ambos chefes de
mocambo, os pequenos mocambos eram liderados por chefes locais.
Em Palmares a população a princípio era formada por homens que cultivavam
e colhiam toda espécie de frutas: jaca, laranja, melancia, ananás, manga, banana,
goiaba, das quais algumas serviam para fazer vinho, do coco extraíam a manteiga ,
da terra tiravam também raízes comestíveis, caçavam a maneira africana, fazendo
alçapões e armadilhas, conseguindo assim carne para seu sustento.
Tudo que precisavam tiravam da mata. Com as folhas das palmeiras
confeccionavam chapéus, vassouras, cestos, leques, esteiras, cobriam as
choupanas que eram erguidas com o miolo da pininga, nome de uma árvore, o
azeite era extraído da palmeira pindoba, as vestimentas eram feitas da casca das
árvores.
O tempo passa e mais homens chegam ao quilombo. Com uma população
totalmente masculina, partem em expedição a busca de mulheres, que raptam nas
fazendas vizinhas, libertam escravos, roubam comida e armas. Havia possibilidade
de em Palmares existir poligamia75 e até poliandria76.
Surgem as primeiras aldeias, começam a plantar milho, feijão, cana, mandioca
e legumes e a criar animais como galinha e porco, assim perdem o medo da fome e
dão início ao comércio com os vizinhos, pois esses só se dedicavam ao plantio da
cana-de-açúcar .
Lá viviam negros nascidos de diversas tribos africanas, era o refúgio de muitos
marginalizados pelo sistema escravocrata, com costumes e dialetos diferentes;
como crianças nascidas no Brasil que já habituara a cultura do branco; índios que
muitas vezes haviam também sido escravizados; mulatos e até brancos,
provavelmente fugitivos da justiça, era uma sociedade multirracial.
Como já havia dito Palmares era composta por negros de diversas tribos,
índios e brancos fugidos da justiça colonial portuguesa, cada um com o seu modo
de vida, convivendo lado a lado. Era uma ameaça aos colonos, pois os
escravizados sonhavam com esse lugar, onde havia liberdade.
75
Poligamia matrimônio de um homem com muitas mulheres.
76
Poliandria regime que se observa em sociedades matrilineares e no qual diversos homens em geral
irmãos ou primos participam de posse de uma mulher.
205
Declínio de Palmares
guerra e Cucaú foi extinta.. Após os fatos, todos os esforços foram feitos para
negociar igual acordo com Zumbi, mas ele não aceitou.
Como nada fora aceito, o bandeirante Domingos Jorge Velho recebeu a
missão de acabar de uma vez com Palmares. Na primeira tentativa que durou três
meses, os atacantes tiveram pesadas perdas. Segundo alguns pesquisadores
houve mais duas tentativas com a ajuda do Capitão-mor Bernardo Vieira de Melo,
sendo que na última com um exército de 9 mil homens e alguns canhões,
conseguiu chegar perto das muralhas de Macaco, Zumbi falhou nessa liderança e
morreu centenas de guerreiros, com a invasão Zumbi fugiu com alguns
companheiros que continuaram a atacar com escassez. Antônio Soares um dos
companheiros de Zumbi foi capturado e torturado para indicar onde era seu
esconderijo, chegando lá o matou traiçoeiramente com uma punhalada.
Zumbi foi decaptado, cortaram-lhe a mão direita, que não consta em todas as
pesquisas, arrancaram-lhe um dos olhos, teve o pênis decepado e introduzido em
sua boca, isso também não consta, a cabeça salgada e exposta em praça pública
em Recife.
Todos os relatos que possuímos da vida de Zumbi foram feitos pelos olhos de
seus inimigos que formavam expedições para capturá-lo a mando de senhores
escravistas e assim tomar o quilombo. Inúmeras tentativas fracassadas de prendê-
lo criaram esse mito fundador da nossa identidade, ou seja, da identidade dos
descendentes africanos.
A historiadora Silvia Hunold Lara e a especialista Nina Rodrigues, ambas
questionam a grafia do nome do líder dos palmares. Zambi ou Zumbi ? Qual deve
208
ser a grafia mais correta ? A primeira é a mais conhecida, mas não significa que
seja a mais correta. Temos que ter cuidado com as variantes da língua que de tanto
utilizar as formas incorretas, elas passam por transformações e são aceitas como
verdadeiras.
Há questionamentos sobre a procedência de Zumbi. Se nasceu em Palmares,
não foi escravo e não se descarta a possibilidade de ser mestiço, filho de pai
africano e mãe indígena, pois em Palmares havia poucas mulheres africanas.
Alguns historiadores relatam que Zumbi como ficou conhecido, nasceu em
1655 no quilombo de Palmares e era neto da princesa Aqualtune. Outros
mencionam fatos de sua família, como da avó princesa Aqualtune e de seus filhos
Ganga Zumba, Gana Zona e suas filhas, não sendo citado os nomes nem a
quantidade, pois não foram conhecidas, referem-se apenas a uma delas que teria
sido a mãe de Zumbi.
Outra versão dos fatos é que na época do seu nascimento aguardavam o
ataque dos holandeses ao quilombo, sendo neto de Aqualtune muita prece foi
proferida para que crescesse forte e fosse um bravo guerreiro, já que pela lei seria
herdeiro natural de Ganga Zumba. Deram-lhe o nome de Zumbi para agradar o
deus da guerra.
Conta-se que nasceu livre ao lado do irmão Andalaquitude seu companheiro
de folguedos. Outros pesquisadores introduzem em seus relatos os nomes de
Raimunda Conceição e Alfredo da Rocha Vianna, como seus pais.
Ainda tem aqueles que não precisão seu nascimento e contam que o nome
Zumbi, significa guerreiro, foi dado por ele mesmo aos 15 anos quando fugiu da
guarda do Padre Antonio Melo e voltou para Palmares, pois com poucos dias de
vida foi capturado pela expedição de Brás da Rocha Cardoso e levado à cidade
vizinha de Porto Calvo e presenteado para uns e vendido para outros ao Padre
Antônio, o qual o batizou com o nome de Francisco, o educou e criou para ser
coroinha. Ensinou-lhe português, latim e religião.
Com o seu retorno logo assumiu a chefia de um mocambo e o posto de chefe
das forças armadas de Palmares, onde era responsável pelo preparo e
organização das frentes de combate, pois era vigoroso e tinha uma vontade de
ferro, ele era o homem de confiança de Ganga Zumba.
209
Não se tem relato se ele casou, única alusão que se tem notícia encontra-se
na carta de Dom Pedro II, rei de Portugal enviada a Zumbi em 1685, mas não se
sabe se ele recebeu e se recebeu, se foi aceito o convite. Eis o teor da carta:
El-Rei faço saber a vós Capitão Zumbi dos Palmares que hei por bem perdoar-vos de
todos os excessos que haveis praticados (...) e que assim o faço por entender quem
vossa rebeldia teve razão nas maldades praticadas por alguns maus senhores em
desobediência às minhas reais ordens. Convido-vos a assistir em qualquer instância
que vos convier, com vossa mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres
de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real
proteção. (Lopes, ed.27, 2005, p.29)
Provavelmente se chegou a receber, não deve ter aceito, pois era firme nas
suas convicções e ideais.
Referência Bibliográfica
77 Pedagoga, foi docente da rede privada de educação, trabalhou por onze anos na rede pública de
educação como docente, orientadora educacional e supervisora pedagógica da Faetec, possui trabalhos
alusivos à Lei 10.639/03 produzidos nesta rede, membro do grupo de pesquisa Linguagens Desenhadas
e Educação do Proped/UERJ.
212
Debate e pesquisa
Jogos
valor da discriminação ou daquela ser melhor que a outra, pois em algum momento
se falará sobre a qual pertence, e terá se iniciado o processo de compreensão de
outros tantos valores como diferença, (in)tolerância, igualdade, fraternidade,
respeito, possibilitando o que se define como parir uma nova opinião, uma nova
ideia sobre a questão.
Um período do ano em que se sugere enfatizar mais esse tema, é o quarto
bimestre – aqui não importa a nomenclatura que a unidade escolar utiliza na divisão
temporal - (adequado ao calendário da escola, deve-se trabalhá-lo durante o ano
inteiro), onde poderá se considerar o dia 1º do ano – Confraternização Universal ,
como tema integrador e discutir o natal, por exemplo, como sendo uma data
comemorativa que não se apresenta em todas as religiões, mas que vem sob um
poder midiático muito fortalecido e por isso muito divulgado e consumido.
Sabendo que educar é entre outros um ato de amor e de coragem, faz-se
relevante não temer o debate seja ele de que ponta for. Vindo do aluno, da família
ou da escola é bem-vindo, pois sinaliza que algo tocou nas pessoas... É através da
discussão que se faz cidadania, não se pode fugir à discussão criadora,
transformadora sob pena de ser uma farsa (FREIRE,1986, p.96). Considerando a
pergunta: para quê serve a educação?, na verdade a pergunta é: o que queremos
da educação? Acho que não podemos considerar nenhuma pergunta sobre os
afazeres humanos, no que diz respeito ao seu valor, à sua utilidade ou àquilo que
se pode obter deles, se não se explicita o que é que se quer (...): o que queremos
com a educação? O que é educar? Para que queremos educar? E, em última
instância, a grande pergunta: que país queremos? (MATURANA,1998, p.29),
precisamos de fato saber o que estamos fazendo e para que fim, a fim de darmos
um fundamento à nossa ação de educador. Aqui se sugeriu a disciplina de religião,
mas se aplica a todas as outras. Toda informação passada ao aluno surtirá efeito –
até nenhum efeito é um efeito - cabe aos atores desse processo definirem a sua
fundamentação.
Existe um certo consenso quanto à existência de algumas religiões chamadas
“grandes religiões”. São aquelas que atravessarem séculos de história, transpuseram
fronteiras e permanecem, de certo modo, sedimentadas na vida de grupos, povos e
comunidades. Podem ser destacadas neste âmbito as religiões como o Judaísmo, o
Islamismo, o Hinduísmo,o Budismo e o Cristianismo. Existem ainda sedimentadas,
mas de um modo marginalizado, as Religiões Tradicionais Africanas e as Religiões
Indígenas, que dificilmente entram neste contexto (ROCHA, 2001).
215
e falou que nenhuma decisão nessa reunião terá resultado positivo. Mas Orunmilá,
já ficou sabendo e mandou um mensageiro com a solução.
- Qual é o nome de sua mãe?
- Ela se chama Oxum.
- E quem é o mensageiro, qual é o nome dele, qual foi a solução?(eu fazia uma
pergunta atrás da outra, a curiosidade era imensa!!!)
- O nome dele é Exu, e Orunmilá mandou dizer que seja permitido que ela participe
dessa reunião e de todas as outras.
- Será que vão aceitar?
- Tomara que sim, pois minha mãe é a regente das águas doces que alimentam
todos os vegetais, é protetora das mulheres grávidas e de seus bebês, é dona de
todo o ouro que existe no mundo. Ela propicia o conhecimento aos homens e
mulheres da Terra, estimula o amor, a prosperidade, a caridade e o altruísmo.
Toda mulher que quer se casar e ter filhos e não consegue, vem falar com
ela. Ela é muito inteligente e respeitada por todos os orixás, é protetora de todas as
crianças, mas quando se zanga... Hum! Os rios ficam logo com as águas
tumultuadas e com muita correnteza forte, ninguém consegue atravessar.
Todos aqui a amam, pois divide tudo o que tem, compreende e tolera os
defeitos alheios, aceita as pessoas como são.
- Sua mãe Oxum é muito bela! Ela sempre anda assim arrumada cheia de jóias e
roupa chique? Parece que vai a uma festa! Que “perua”!- falei dando uma
gargalhada.
- A minha mãe é assim o dia todo! Respondeu Carê.
Segui conhecendo o reino, tudo era reluzente como o ouro, colorido como as
flores e perfumado como o colo da minha mãe. Carê me levou até Oxum, fiquei
assustada um pouco, pois se ela estava furiosa poderia não querer receber visitas.
Mas que nada, ela me abraçou forte, me pegou no colo e me falou olhando nos
meus olhos:
- Você é muito bonita, menina! Vejo que será muito feliz, forte e dará muita alegria
aos seus pais. Se algum dia se sentir em apuros, pense em mim e na minha filha
Carê, nós vamos em seu socorro imediatamente!
E por falar em seus pais, volte agora para a clareira, mas antes leve esta
pulseira de ouro. É para te proteger para sempre! Dê-me cá um abraço apertado e
vá embora.
221
Assim fiz e Carê me levou de volta para a saída. Perguntei o nome daquele
reino e ela me disse:
- É o reino da Pedra do Ouro, é a casa de Oxum que fica às margens do rio.
- Carê, adorei conhecer sua casa e sua mãe Oxum, um dia quero te apresentar os
meus pais. Olha só, fique com esse saco de frutas como um presente meu para
você.
- Muito obrigada. Disse Carê.
Passei pela queda d’água, dessa
vez me molhei toda, que gostoso! Mas
lembrei que não havia dito meu nome...
Quando me virei ela já havia sumido. Ouvi
bem longe chamarem meu nome e de
repente, estava deitada no colo de
Oparana, ela me abanava com um leque
de metal dourado muito brilhante...
Estranhei tudo aquilo... Será que eu
sonhei? Será que eu caí no sono na
clareira?
- Acorde meu amor. Vamos caminhar mais duas horas até chegar no quilombo.
Disse Oparana.
- Oparana, então adormeci? Deixe eu te contar... Contei tudo o que se passou e ela
ouviu atentamente, me deu um abraço forte e me falou:
- Acredito em tudo o que me disse. Foi um lindo e maravilhoso sonho, cheio de
bênçãos e de luz! Mas agora vamos prosseguir.
Assim o fiz, levantei-me, meu pai me deu água geladinha e um quindim
delicioso, mas quando olhei para meu braço lá estava a pulseira que Oxum me dera
e estava sem o saco de frutas... Até hoje sinto aquela sensação gostosa de ter
conhecido o reino de Oxum e aquela paz. Mas terá sido um sonho? Olhei mais uma
vez para Oparana e ela me piscou o olho esquerdo. Nossa, mais uma surpresa: ela
tinha o rosto da mãe de Carê!
Até hoje acho que não foi sonho e sim uma realidade encantada.
222
Referências bibliográficas
78
Luiz Fernandes de Oliveira
79
Mônica Regina Ferreira Lins
Introdução
“Eu não sou chamada para brincadeira de menina bonita.”, essa frase foi dita
por uma menina de 9 anos de idade, moradora de uma região bem pobre e de difícil
acesso no Rio de Janeiro. Espevitada, decidida e alegre, quase sempre fala o que
pensa. Quase sempre ... Aluna do CAp da UERJ, inserida numa turma em que boa
parte das crianças são negras e moradoras do subúrbio, mas há quem já tenha
visitado a Disneylândia e tenha acesso a bens de consumo mais caros. No início, não
falava de questões que a incomodavam no relacionamento com a sua turma e
transmitia certa indiferença. Vítima de um tipo de manifestação que por vezes
teimava em comparecer na turma, foi chamada de “macaca”, enquanto sua
professora a fotografava para um projeto da turma, e toda a sua coragem e força para
dizer o que pensava não conseguiu ser mobilizada na Roda de Conversa chamada
pelas professoras para discutir o ocorrido.
O episódio ocorrido logo no início do ano letivo de 2006, assim como outros de
igual expressão de desrespeito ao outro, motivou uma sucessão de Rodas de
Conversa, que juntamente com as Rodas de Leitura e de Notícias, são atividades que
acontecem durante todo o ano em nossas turmas do CAp da UERJ e contribuem
com o desenvolvimento de procedimentos e atitudes. Segundo Cecília Warschauer
(2001) as rodas são espaços de trabalho coletivo e expressam uma concepção que
dá papel de centralidade à formação de uma comunidade de partilha de saberes
onde circulam idéias no ato de aprender a aprender e de formar-se com o outro. Na
concepção de partilha que as rodas trazem, temos a idéia de retorno à pessoa, onde
78
Doutor em Educação pela PUC – Rio, Mestre em Sociologia pela UERJ e Especialista em História da
África e do Negro no Brasil pela UCAM. Professor Adjunto do Instituto de Educação da UFRRJ.
79
Doutoranda pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ, Mestre em Educação
Brasileira pela PUC – Rio e Professora Assistente do Departamento de Ensino Fundamental da UERJ.
224
são produzidos significados e aprendizados. A partilha pode ocorrer via dois canais: o
oral, com o conversar, e o escrito, com registros do vivido que podem alargar as
possibilidades do compartilhar, além de oferecer uma condição privilegiada para a
reflexão.
As rodas são ricas experiências daquilo que nos acontece, com narrativas que
se renovam em contatos repetidos. A palavra conversar quer dizer “dar voltas”, as
idéias circulam e cada um dos parceiros pode mudar seu ponto de vista durante a
conversa.
Essa rede de conversas não só desenvolve a capacidade de argumentação lógica,
como implica em capacidades relacionais, em respeito, em saber ouvir, falar e
aguardar a vez. Ao inserir-se na malha da conversa a criança enfrenta as diferenças
e coloca-se diante do ponto de vista do outro. Para Maturana (1997) o conversar
caracteriza o humano, pois se realiza através da linguagem e no entrelaçamento do
emocional e do racional.
E muitas coisas nos aconteceram e foi preciso dar muitas voltas para que
aprendêssemos a morar no outro coletivamente. As experiências transformaram-se
num relato dirigido aos pais de três páginas, intitulado “A turma: aprendendo a morar
no outro”. Num dos trechos diziam as professoras,
Eles precisam gostar de si mesmos, já que enfrentam modelos de comportamento
consolidados pela sociedade. Enfrentamos a discussão do preconceito a partir da
analogia com a dor, pois é importante fazê-los refletir como dói fundo e “na alma”,
como disse um aluno, sentir na pele o preconceito racial, de gênero e de condição
social. Encaminhar essas discussões é garantir seres humanos mais felizes e
autoconfiantes. Não deixamos passar nada sem discussão e estamos intervindo
imediatamente nas situações em que um colega é desrespeitado. O bem-estar e a
felicidade dos amigos vêm sendo tratados como uma responsabilidade de todos nós e
é como destampar uma panela de pressão, pois várias situações antes silenciadas
vêm aparecendo em nossas discussões. Os resultados também começam a
aparecer. Algumas crianças reagiam chorando, outras com indiferença... Como
professoras, nos colocamos como responsáveis por cada gesto do coletivo. A relação
de confiança está crescendo e eles têm trazido tudo para as rodas. Os que mais
sofriam estão se fortalecendo e estão rompendo o silêncio. Temos a hipótese que
parte dos problemas que a turma enfrenta, inclusive no campo da aprendizagem,
podem estar localizados nas relações interpessoais.
Contudo, todo o avanço alcançado nas relações com esse grupo apenas indicou que
o trabalho no campo da identidade e da diferença precisa ser permanente e que não
pode estar restrito a ações fragmentadas, mas deve estar presente no currículo
escolar.
No ano seguinte, após ter guardado em silêncio a inaceitável manifestação do
colega, a mesma criança proferiu a frase “Eu não sou chamada para brincadeira de
menina bonita“. Durante uma Roda em que as crianças se auto-avaliavam e
avaliavam todo o trabalho do bimestre, surgiu uma discussão sobre o desempenho
de uma menina da turma e algumas crianças diziam que ela nunca havia sido
inserida pelo grupo de meninas nas brincadeiras durante o recreio, isso a afastava da
turma e provocava certo desinteresse dela nas aulas também. Um dos meninos
trouxe a hipótese de que existia ali preconceito. Em resposta, uma das meninas
afirmou que não era preconceito e que elas eram, inclusive, amigas de X, a outra
menina negra da turma, e pela primeira vez a pequena quebrou o silêncio e a suposta
indiferença, apresentando, com lágrimas, em seu depoimento a frase já citada. Nesse
dia uma aluna do Curso de Pedagogia que estagiava na turma, surpresa com o
debate e com o que diziam as crianças, disse que havia visto ali uma situação limite.
Naquele momento, o investimento realizado permitiu que todos dissessem o que
estavam sentindo e refletia um crescimento do grupo.
Como já foi afirmado inúmeras vezes, o preconceito e as diferentes formas de
discriminações não nascem com a criança. Ao relatar experiências de uma turma dos
anos iniciais, a nossa pretensão é a de promover uma reflexão que contribua com
intensos debates em torno do processo histórico de exclusão do sistema educacional
brasileiro que tem cor, condição social e lugar de moradia. Consideramos que os
Colégios de Aplicação que atuam no ensino, pesquisa e diretamente na formação
dos futuros mestres, podem cumprir num importante papel nestas discussões.
Outra experiência com crianças desenvolveu-se em 2004 no Colégio de
Aplicação da UERJ com uma turma da então 2ª série. Ano de Olimpíadas em Atenas,
boa oportunidade para um projeto envolvendo a Grécia, suas mitologias e sua
influência histórica em todas as áreas do conhecimento. Os conteúdos específicos da
série e projetos paralelos desenvolveram-se a partir das discussões sobre as nossas
origens enquanto povo brasileiro e enquanto seres humanos. Como parte constitutiva
dessa abordagem, a chamada cosmovisão (lendas e mitologias) dos povos indígenas
e africanos; a origem dos números e das linguagens matemáticas; a alfabetização
226
pedagógicos nos sistemas de ensino, que por sua vez, se caracteriza enquanto uma
perspectiva nada tradicional na educação brasileira.
Por ser uma legislação que aborda uma temática altamente controversa – as
relações étnico-raciais no Brasil -, no campo educacional, vem mobilizando questões
que se referem à desconstrução de noções e concepções apreendidas durante os
anos de formação dos professores e vão enfrentar preconceitos raciais muito além
dos muros escolares.
De fato, numa breve consulta pelas publicações acadêmicas em curso,
Gomes (2003), Oliva (2003), Valente (2004), Rosa (2006) e Gonçalves e Soligo
(2006), se destacam alguns pilares de enfrentamento para a possibilidade, - e não a
garantia – de aplicação efetiva da Lei 10.639 como: a aliança de professores e
escolas com outros espaços educativos para uma afirmação positiva da diferença, o
enfrentamento teórico contra visões eurocêntricas arraigadas no senso comum
acadêmico, o combate à fortaleza do discurso racista hegemônico na sociedade
brasileira e na educação, e a constatação que até uma reinvenção do conhecimento
humano se faz necessário.
A promoção de uma educação que estabelece a conflitualidade de
conhecimentos ou uma “pedagogia das ausências” (Santos, 2006), nos possibilita
experimentar uma reflexão coletiva para enfrentar aspectos conflitivos e tensões que
se apresentam nas relações entre intencionalidade da Lei 10.639/03 e a formação
docente que, por longos anos, apreenderam concepções, visões de mundo e
enfoques eurocêntricos, não somente por meio da escrita, mas também, por meio de
imagens, hipertextos, fotografias, charges, desenhos e áudios-visuais.
O que está em jogo, portanto, não se limita a disputa política no campo
ideológico e pedagógico, mas também, a partir de palavras e imagens, reforçar e
construir novas representações, novas memórias, novas identidades ou como diz
Boaventura, através de “imagens desestabilizadoras”, se tece a esperança e se
alimenta o inconformismo e a indignação para a construção de uma nova teoria da
história.
Por sua vez, o documento da Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata da ONU, reconhece que a
escravidão e o tráfico de escravos foram crimes contra a humanidade, fontes de
racismo e discriminação e deveriam sempre ter sido considerados assim. Tais
injustiças históricas contribuíram inegavelmente para a pobreza e as desigualdades
229
Enfim, desejamos que nossos alunos assumam seu lugar de cidadãos, que
saibam se adaptarem às novas situações e que sejam felizes, se possível. E que
aprendam a morar no outro.
Por outro lado, as questões étnico-raciais que a Lei 10.639/03 suscita na
educação, geram desafios e tensões na dimensão cognitiva e subjetiva dos docentes
e nos espaços escolares. A Lei não é de fácil aplicação, pois trata de questões
curriculares que são conflituais, desconsiderados como relevantes ou questionam e
desconstroem saberes históricos considerados como verdades inabaláveis. A
questão curricular se desdobra também na necessidade de uma nova política
educacional de formação inicial e continuada, para reverter positivamente às novas
gerações, uma nova interpretação da história e uma nova abordagem da construção
de saberes.
Por fim, a aprendizagem que podemos tirar dessas experiências com crianças
negras e brancas, é a necessidade de mobilizar constante e cotidianamente essas
discussões, desconstruir paradigmas e enfrentar inevitáveis conflitos na sala de aula
para articular e promover uma perspectiva intercultural, baseada em negociações
culturais, favorecendo um projeto comum, onde as diferenças sejam patrimônios
comuns da humanidade.
Referências bibliográficas
Introdução
80
Doutor em Educação Brasileira pela PUC – Rio. Ex-professor do Departamento dos Anos iniciais do Ensino
Fundamental do CAp-UERJ e Professor Adjunto do Departamento de Teoria e Planejamento Educacional do
Instituto de Educação da UFRRJ.
81
Doutoranda pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ, Mestre em Educação
Brasileira pela PUC – Rio e Professora Assistente do Departamento de Ensino Fundamental da UERJ.
239
Imagens da África
82
Citado em Nascimento (1996).
243
83
Esta prática vem paulatinamente mudando com as pressões dos movimentos negros e dos agentes que tentam
interferir nas políticas públicas de promoção da igualdade racial na educação (Oliveira, 2010).
246
Concluindo
história e das culturas africanas, que existe em poucos cursos na grade curricular
do ensino superior.
É comum o ensino sobre a “influência” africana na formação da população e
da cultura brasileira, pois para alguns se trata de fazer justiça para essa população
afrodescendente e, para outros, significa mostrar o sofrimento do povo negro, que
apesar de tudo, foram “capazes” de “contribuir com nossa cultura”. Mas o
sofrimento não é profissão de fé dos descendentes de africanos em nossas terras.
Como se sabe, em diversos estudos sócio-antropológicos, aqui no Brasil, culturas,
histórias, conhecimentos e resistências foram produzidas.
A proposta de inclusão do ensino de História e Cultura da África e dos
afrodescendentes nos currículos de ensino fundamental e médio, além da
Educação de Jovens e Adultos, acrescidos de livros, indicará uma necessária
mudança na formação dos professores e uma real concretização dos debates sobre
a aplicação do enfoque intercultural no campo educacional brasileiro.
Referências bibliográficas