FEMINISTA DE FOUCAULT
Susan R. Bordo
O corpo — o que comemos, como nos vestimos, os rituais diários através dos
quais cuidamos dele — é um agente da cultura. Como defende a antro póloga Mary
Douglas, ele é uma poderosa forma simbólica, uma superfície na qual as normas centrais,
as hierarquias e até os comprometimentos metafísicos de uma cultura são inscritos e
assim reforçados através da linguagem corporal concreta. O corpo também pode
funcionar como uma metáfora da cultura. Em autores tão diversos como Platão, Hobbes
ou a feminista francesa Luce Irigaray, uma imagem mental da morfologia corporal tem
fornecido um esquema para o diagnóstico e/ou visão da vida social e política.
O corpo não é apenas um texto da cultura. É também, como sustentam o
antropólogo Pierre Bourdieu e o filósofo Michel Foucault, entre outros, um lugar prático
direto de controle social. De forma banal, através das maneiras à mesa e dos hábitos de
higiene, de rotinas, normas e práticas aparentemente triviais, convertidas em atividades
automáticas e habituais, a cultura "se faz corpo", como coloca Bourdieu. Assim, ela é
colocada "além do alcance da consciência... [inatingível] por transformação voluntária,
deliberada" (1977:94). Nossos princípios políticos conscientes, nossos engajamentos
sociais, nossos esforços de mudança podem ser solapados e traídos pela vida de nossos
corpos — não o corpo instintivo e desejante concebido por Platão, Santo Agostinho e
Freud, mas o corpo dócil e regulado, colocado a serviço das normas da vida cultural e
habituado às mesmas.
Através de seus últimos trabalhos "genealógicos", Vigiar e Punir e História da
Sexualidade, Foucault salienta constantemente a primazia da prática sobre a crença. Não
essencialmente através da "ideologia", mas por meio da organização e da
regulamentação do tempo, do espaço e dos movimentos de nossas vidas cotidianas,
nossos corpos são treinados, moldados e marcados pelo cunho das formas históricas
predominantes de individualidade, desejo, masculinidade e feminidade. Essa ênfase lança
uma sombra carregada e inquietante sobre o panorama contemporâneo. Pois, em
comparação com qualquer outro período, nós, mulheres, estamos gastando muito mais
tempo com o tratamento e a disciplina de nossos corpos, como demonstram inúmeros
estudos. Numa época marcada pela reabertura do âmbito público às mulheres, a
intensificação de tais regimes parece diversionista e desmobilizadora. Através da busca
de um ideal de feminidade evanescente, homogeneizante, sempre em mutação — uma
busca sem fim e sem descanso, que exige das mulheres que sigam constantemente
mudanças insignificantes e muitas vezes extravagantes da moda — os corpos femininos
tornam-se o que Foucault chama de "corpos dóceis": aqueles cujas forças e energias
estão habituadas ao controle externo, à sujeição, à transformação e ao
"aperfeiçoamento".' Por meio de disciplinas rigorosas e reguladoras sobre a dieta, a
maquiagem, e o vestuário— princípios organizadores centrais do tempo e do espaço nos
dias de muitas mulheres — somos convertidas em pessoas menos orientadas para o
social e mais centradas na automodificação. Induzidas por essas disciplinas, continuamos
a memorizar em nossos corpos o sentimento e a convicção de carência e insuficiência, a
achar que nunca somos suficientemente boas. Nos casos extremos, as práticas da
feminidade podem nos levar à absoluta desmoralização, à debilitação e à morte.
Vistos historicamente, o disciplinamento e a normatização do corpo feminino —
talvez as únicas opressões de género que se exercem por si mesmas, embora em graus
e formas diferentes dependendo da idade, da raça, da classe e da orientação sexual —
têm de ser reconhecidos como uma estratégia espantosamente durável e flexível de
controle social. Em nossa própria época, é difícil evitar o reconhecimento de que a
preocupação contemporânea com a aparência, que ainda afeta as mulheres de maneira
muito mais acentuada que os homens, mesmo em nossa cultura narcisista e visualmente
orientada,2 isso pode ocorrer como um fenómeno de "recuo",* reafirmando as
configurações de género existentes contra quaisquer tentativas de substituir ou
transformar relações de poder. Certamente, estamos lutando hoje com o sofrimento
causado por esse retrocesso. Em jornais e revistas, encontramos diariamente matérias
que promovem relações de género tradicionais e atacam os anseios por mudanças:
histórias sobre crianças entregues a si mesmas na ausência dos pais,** abusos nas
creches, problemas da "nova mulher" com os homens e suas poucas chances de se casar
etc. Um tema visual dominante em revistas para adolescentes envolve mulheres que se
escondem nas sombras dos homens, procurando conforto em seus braços, limitando
voluntariamente o espaço que ocupam. Um outro tema é, naturalmente, o da descrição do
ideal estético contemporâneo para mulheres, obje-tivo cuja busca obsessiva se tomou o
tormento central das vidas de muitas delas. 3 Numa época como esta, necessitamos
desesperadamente de um discurso político eficaz sobre o corpo feminino, um discurso
adequado a uma análise dos caminhos insidiosos e muitas vezes paradoxais do moderno
controle social.
Desenvolver esse discurso exige a reconstrução do velho discurso feminista sobre
o corpo do final dos anos 60 e início dos anos 70, com suas categorias políticas de
opressores e oprimidos, vilões e vítimas. Creio que poderia ser útil nesse contexto uma
apropriação feminista dos últimos conceitos de Foucault. Para segui-los, temos primeiro
que abandonar a ideia de que o poder é algo possuído por um grupo e dirigido contra
outro e pensar, em vez disso, na rede de práticas, instituições e tecnologias que
sustentam posições de dominância e subordinação dentro de um âmbito particular. Em
segundo lugar, necessitamos de uma análise adequada para descrever um poder cujos
mecanismos centrais não são repressivos mas constitutivos: "um poder gerando forças,
fazendo-as crescer e organizando-as, ao invés de um poder dedicado a impedi-las,
subjugando-as ou destruindo-as" (Foucault 1978:136). Particularmente no reino da
feminidade, onde tanta coisa depende da aparentemente voluntária aceitação de várias
normas e práticas, necessitamos de uma análise do poder "a partir de baixo", como
Foucault o coloca (1978:94); por exemplo, os mecanismos que moldam e multiplicam os
desejos, em vez de reprimi-los, que geram e direcionam nossas energias, que constróem
nossas concepções de normalidade e desvio. Em terceiro lugar, precisamos de um
discurso que nos possibilite detectar a "recuperação" da rebeldia potencial, um discurso
que, enquanto insiste na necessidade da análise "objetiva" das relações de poder, da
hierarquia social, do recuo político etc, nos permita, não obstante, confrontar os
mecanismos pelos quais o sujeito se torna às vezes enredado, conivente com forças que
sustentam sua própria opressão.
Este ensaio não é uma tentativa de produzir uma "teoria" dentro dessa orientação.
Meu enfoque será apenas a análise de um terreno particular, onde a interação dessas
dinâmicas é notável e talvez exemplar. É um campo limitado e incomum — um grupo de
desordens ligadas ao gênero feminino e historicamente localizadas: histeria, agorafobia e
anorexia nervosa.4 Reconheço também que essas desordens têm sido amplamente
especfficas no que se refere à classe e à raça, ocorrendo esmagadoramente entre
mulheres brancas de classes média e média-alta. 5 Apesar disso, a anorexia, a histeria e a
agorafobia podem fornecer um paradigma desse processo no qual a resistência potencial
não é meramente minada, mas utilizada na manutenção e reprodução das relações de
poder existentes.6
Sugeri que as "soluções" oferecidas pela anorexia, pela histeria e pela agorafobia
surgem da própria prática da feminidade, cuja busca é ainda apresentada como o
caminho mais importante de aceitação e sucesso para as mulheres em nossa cultura.
Perseguida com demasiada agressividade, essa prática leva à sua própria ruína, num
certo sentido. Se a feminidade, como disse Susan Brownmiller, é no seu mais profundo
âmago "uma tradição de limitações impostas" (1984:14), então a relutância para limitar-
se, mesmo na perseguição da feminidade, infringe as regras. Mas, em outro sentido, tudo
permanece inteiramente no seu lugar. A paciente fica presa a uma prática obsessiva,
incapaz de realizar qualquer mudança efetiva em sua vida. Permanece, como coloca Toril
Moi, "amordaçada e acorrentada ao papel feminino" (Bernheimer e Kahane, 1985:192),
uma reprodutora do dócil corpo da feminidade.
Essa tensão entre o significado psicológico da desordem, que pode comandar
fantasias de rebelião e personificar uma linguagem de protesto, e a vida prática do corpo
perturbado, que pode frustrar totalmente a rebelião e subverter o protesto, tende a ser
obscurecida por um enfoque demasiadamente exclusivo na dimensão simbólica e pela
atenção insuficiente quanto à praxis. Como vimos no caso de algumas leituras de
feministas lacanianas sobre a histeria, o resultado pode ser uma interpretação unilateral,
que romantiza a subversão simbólica da ordem falocêntrica da histérica enquanto
confinada à sua cama. Isso não quer dizer que o confinamento na cama tenha um
significado transparente, unívoco — incapacidade, enfraquecimento, dependência e assim
por diante. O corpo "prático" não é uma entidade grosseiramente biológica ou material. É
também uma forma culturalmente mediada; suas atividades são sujeitas a interpretação e
descrição. O voltar-se para a dimensão prática não é um retorno à biologia ou à natureza,
mas, como coloca Foucault (1979:136), a um outro "registro" do corpo cultural: o registro
do "corpo útil" em vez do "corpo inteligível". Acredito que a distinção pode ser proveitosa
para o discurso feminista.
O corpo inteligível abrange nossas representações científicas, filosóficas e
estéticas sobre o corpo — nossa concepção cultural do corpo, que inclui normas de
beleza, modelos de saúde e assim por diante. Mas as mesmas representações podem
também ser vistas como um conjunto de regras e regulamentos práticos, através dos
quais o corpo vivo é "treinado, moldado, obedece, responde", tornando-se, em resumo,
um "corpo útil", socialmente adaptado (Foucault, 1979:136). Considerem este exemplo
particularmente claro e apropriado: a figura do tipo "ampulheta" do século XIX, realçando
peitos e ancas em contraste a uma cintura de vespa, era uma forma simbólica "inteligível",
representando um ideal doméstico, sexualizado da femi-nidade. O contraste cultural bem
definido entre a forma feminina e a masculina, tornado possível pelo uso de espartilhos,
anquinhas etc, refletiu, em termos simbólicos, a divisão dualista da vida social e
económica em esferas masculinas e femininas claramente definidas. Ao mesmo tempo,
para conseguir a aparência especificada, exigia-se uma praxis feminina particular— usar
espartilhos apertados, comer o mínimo, movimentar-se pouco — tendo como resultado
um corpo feminino incapaz de executar atividades fora de sua esfera designada. Em
termos foucauldianos, seria esse o "corpo útil" correspondente à norma estética.
O corpo inteligível e o corpo útil são dois aspectos do mesmo discurso e muitas
vezes se espelham e se sustentam reciprocamente, como vimos atrás. Um outro exemplo
é a concepção filosófica do século XVII, que via o corpo como uma máquina, reflexo de
um equipamento produtivo de trabalho crescentemente automatizado. Mas dois aspectos
também podem se contradizer e se repelir mutuamente. Uma escala de representações e
de imagens contemporâneas, por exemplo, tem codificado a transcendência do apetite
feminino e sua demonstração pública do ideal de esbeltez em termos de poder, vontade,
domínio, possibilidade de sucesso na área profissional e assim por diante. Essas
associações são conduzidas pelas supermulheres magras do horário nobre da televisão e
dos filmes populares e explicitamente promovidas em anúncios de propaganda e artigos
que aparecem habitualmente em revistas femininas, livros de dieta e publicações sobre
controle de peso. A equação de magreza e poder emerge mais dramaticamente quando
as anoréxicas contemporâneas falam de si mesmas. "[Minha doença] era sobre poder",
diz Kim Morgan, entrevistada no documentário The Waist Land (O país da cintura): "Isso
era o máximo... algo que eu podia jogar na cara das pessoas e elas olhavam para mim e
eu pesava pouco, mas era forte e tinha o controle e ah, você é um relaxado."13
NOTAS
ii. Excerto do Livro: Gênero, Corpo e Conhecimento, Susan R. Bordo e Alison M. Jaggar.