Hegel não publicou nenhum dos seus trabalhos em que tratou dos mais legítimos objetos
do pensamento, como religião, arte e o próprio movimento do pensamento. Mas como
dava aulas sobre estes temas, deixou em planos de cursos, aulas e palestras as suas
anotações que foram publicadas postumamente por alguns de seus alunos, juntamente
com as notas destes últimos.
Uma destas publicações é Filosofia da religião, de 1832, com material relativo aos cursos
dos anos de 1821, 1824, 1827 e 1831 sobre este tema. Traduzida para o inglês e o espanhol,
esta obra pode ser encontrada tanto no sítio de Hegel na Internet quanto no volume
publicado em 1985 por Arsenio Guinzo pela editora Fondo de Cultura Económica do
México. Este tomou por base a edição de 1840 (Lasson).
O texto a seguir consiste em uma série de recortes selecionados pelo critério “formas de
manifestação do pensamento”, independente do objeto específico (a religião, neste caso),
só referido aqui nos raros casos em que pode esclarecer alguma questão pontual.
Finalmente, é importante alertar para o fato do material não provir do texto em alemão,
bem como para o esforço de tradução para o português corrente, ou melhor, inspirado nas
traduções para caçanje de Manuel Bandeira1, de modo a evitar ao máximo possível as
formulações mais técnicas que só fazem sentido para os leitores das obras publicadas pelo
próprio Hegel, como é o caso de Fenomenologia do Espírito, Ciência da Lógica,
Enciclopédia das Ciências Filosóficas e Filosofia do Direito. Se o material aqui
apresentado servir como estímulo à leitura destas obras, daremos a nossa missão por
cumprida.
O chamado senso comum, correspondente àquilo que todo mundo sabe, ainda não
incorporou conhecimentos científicos a respeito do movimento universal que começaram a
ser conquistados a partir do século XVI por gente como Copérnico e Galileu. Prova disto
está no persistente emprego de expressões como “o sol nasce” e o “sol se põe”, que foram
cientificamente desmentidas pelas pesquisas sobre os movimentos de rotação e translação
do nosso planeta. Mesmo sabendo que o “nascer” e o “pôr” do sol são “evidências
sensíveis” (porque aos nossos olhos é o sol que transita de leste a oeste e não a terra que
gira de oeste a leste, no chamado “sentido horário”) que a pesquisa científica já desmentiu
há séculos, continuamos aferrados, pelo menos no plano da linguagem, à “evidência”
sensível.
E assim como continuamos afirmando que o sol “nasce” e “se põe”, em nossas referências
ignoramos de maneira igualmente irredutível uma série de movimentos há muito
demonstrados pela ciência. Por exemplo: já se sabe que o planeta Terra, além de girar
sobre seu próprio eixo (rotação) e em torno do sol (translação), junto com alguns outros
planetas faz parte do sistema solar e que este sistema, por sua vez, junto com uma série de
outros sistemas similares integra uma galáxia chamada Via Láctea que, por sua vez, assim
como a Terra, gira em torno de seu próprio eixo. Todo mundo sabe disso, mas ninguém
incorpora estes conhecimentos às referências espaçotemporais.
Não incorporamos às nossas referências a informação de que a Via Láctea se move a cerca
de 550 quilômetros POR SEGUNDO, nem que UMA rotação da Via Láctea demora 240
milhões de anos. Não incorporamos em nenhum sentido que se conheça a informação de
que a Terra orbita a 107 mil quilômetros por hora, ou 30 quilômetros por segundo em
torno do sol, nem que a rotação da Terra é de 15 graus por hora, ou 15 minutos (graus
também se dividem em minutos e segundos) por minuto. Muito menos incorporamos –
quando dizemos, por exemplo, “voltar” para algum lugar – o conhecimento de que o Sol
acompanha a Via Láctea, e a Terra junto com ele, na mesma velocidade da galáxia, ou a
550 km/s, de modo que é fisicamente impossível “voltar” para qualquer lugar, assim como
simplesmente ignoramos que ao enunciar a conhecida expressão “aqui e agora”, ao final da
enunciação já não estamos mais “aqui”, nem o tempo é mais “agora”.
Da mesma forma que ignoramos estes movimentos elementares do plano físico, ignoramos
que pensamento também é movimento. Este é o assunto preferencial do presente trabalho.
É Hegel quem explica que “aqui” e “agora” só têm o sentido que lhes atribuímos por
referência ao pensamento e não à realidade física pois, entre outros, o pensamento tem o
poder de suprassumir o tempo e o espaço.
2 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses, 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
3
raízes latinas. “Subsum” em latim significa “estar debaixo”. Por oposição a “sub-”, o prefixo
“supra-” significa estar acima e é disto mesmo que se trata: enquanto subsumir é
enquadrar um objeto em seu conceito, suprassumir vem a ser forjar um conceito que se
coloque acima dos já existentes incluindo em si mesmo todos os anteriores. Paulo Arantes
expôs de modo exaustivo em seu Hegel: a ordem do tempo3, no capítulo “A temporalidade
cumulativa”, os mais variados modos nos quais suprassumir resume o trabalho do
pensamento ao forjar seus conceitos, destacando nestes processos o papel central da
linguagem – que Hegel chamava de “instrumento de trabalho do espírito” –, a começar
pela suprassunção do “aqui” e “agora”.
3Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Hegel: a ordem do tempo. 2ª ed. São Paulo: Hucitec/Polis, 2000,
pp. 213-301.
4
Preliminar
Esta espécie de aviso nos permite desde já lembrar que para Hegel uma das determinações
fundamentais da Filosofia é a de que para o sujeito só vale o que se confirma em seu
próprio espírito. Este é um princípio que também está vivo na representação do senso
comum; já existe como pressuposto em todos os espíritos. A diferença é que a Filosofia não
se detém neste conteúdo.
De agora em diante, todos os textos são do próprio Hegel. Eles apenas foram traduzidos
(como foi dito, mas não custa reiterar, do espanhol e do inglês) para um português que
espera ser legível por qualquer adulto alfabetizado.
4 HEGEL, mais ou menos conforme a tradução de Henrique Vaz para a primeira edição brasileira da
Fenomenologia do Espírito, apud ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da Dialética. São
Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 35. Paulo Arantes ainda complementa: “a atenção penosa exigida pelo
Conceito é o fruto circunspecto de uma ascese cuja etapa mais significativa implica a renúncia ao
intelectual para que possa nascer o pensador na sua função propriamente especulativa”.
5
I - FILOSOFIA
O problema que este ceticismo se recusa a enfrentar é que aquilo que se enraíza no
sentimento só existe para o sujeito e não por si, não tem objetividade.
Kant formulou por extenso a exigência que o intelecto faz à Filosofia: é preciso investigar a
natureza do conhecimento antes de conhecer. Esta é uma analogia indevida que a própria
experiência desmente: assim como se aprende a nadar nadando, a investigação sobre o
conhecimento se faz conhecendo. A investigação sobre a Razão tem que ser racional. Nós já
adotamos uma atitude cognoscente sobre a razão absoluta ao investigar e conhecer a razão
absoluta. Espírito Absoluto é saber, saber determinado e racional sobre si mesmo. A
ocupação com este objeto é, portanto, imediata. Abordamos e investigamos o
conhecimento racional imediatamente e este conhecimento é saber, é investigação racional
e compreensiva.
objeto. No Espírito há determinações muito diferentes delas, mas é delas que o intelecto se
serve para combater a Filosofia.
Não é preciso ter muita experiência para perceber que todo saber imediato também é
mediado e vice-versa. Tomados separadamente são unilaterais. A unilateralidade torna as
determinações finitas. A conexão entre saber imediato e mediado é uma relação de
infinitude. O mesmo acontece com sujeito e objeto. Num sujeito – que em si é objetivo –
desaparece a unilateralidade, mas não a diferença. Não é mera união de sujeito e objeto,
pois a diferença não se extingue, mas ela é suprassumida. O pensamento raciocinante do
intelecto usa estes conceitos de modo primário e grosseiro, porque não os examina a
fundo.
O Conceito é o universal. E vem primeiro por ser a própria coisa, a substância. O conceito
contém toda a natureza do objeto e conhecimento nada mais é que o desenvolvimento do
conceito, daquilo que está contido no conceito e que ainda não chegou à existência, ou não
está explicitado nem exposto.
O conceito de qualquer objeto é o próprio objeto em sua finitude. Ele é finito e unilateral.
Está em relação com os demais objetos como algo particular com outros particulares. A
consumação da determinação do conceito é a sua posição, é sua reduplicação. O conceito
volta a si a partir da sua determinidade e sua finitude. Ele se estabelece a partir desta
finitude e limitação. O conceito restabelecido é o conceito infinito, verdadeiro, é a Ideia
Absoluta.
7
Representação e subjetividade
Espírito é saber. Mas para chegar a ser saber, o conteúdo do que é sabido pelo espírito
precisa ter alcançado esta forma ideal, isto é, precisa ter sido negado.
No saber imediato, a consciência só sabe que o universal é. O que ela não sabe é que este
universal é resultado do pensamento e que, portanto, o próprio saber imediato já depende
do pensamento.
8
A Lógica explica o que é o ser: é a própria universalidade tomada em seu sentido mais
abstrato, vazio, a pura referência a si mesmo, a exclusão de toda relação, tanto para dentro
quanto para fora. É a total ausência de determinações, a unidade consigo mesmo, antes de
qualquer outro, antes de qualquer mediação. O ser exclui toda relação, toda determinação
concreta. Quando se diz “este objeto é”, se manifesta o ponto extremo da aridez da
abstração. Trata-se da determinação mais vazia, mais pobre.
O ser só é imediato se não levarmos em consideração a relação. Como parte da relação, ele
é sempre mediado. Causa só é causa se tiver um efeito, de modo que a causa também é
mediada. O mediado é relativo, é essencialmente relação; precisa de outro para ser, para a
sua imediatidade.
A verdade é que saber imediato é aquele em que não temos consciência da mediação.
Temos sentimento e ele aparece como imediato, assim como a mediação aparece sob a
forma da imediatidade.
Numa intuição, eu sou ao mesmo tempo saber e intuir. Depois é que vem o objeto. Se ele
vier de fora, é chamado objeto e se vier de dentro é chamado determinidade.
Sempre que um conteúdo é dado, são necessárias duas coisas. O saber é totalmente
simples, mas eu devo saber algo. Se eu for só saber, não sei nada, assim como puro ver é
não ver nada.
Temos então que “saber imediato” não existe e no entanto nos dizem que ele é o
verdadeiro. Por outro lado, no saber real – que é mediado – há o eu que sabe e o objeto que
é sabido. Mas também é preciso saber que saber meramente mediado não é
necessariamente real. Um saber simplesmente mediado também é abstração vazia.
Qualquer pessoa educada – instruída pelo senso comum, por doutrinas religiosas e teorias
científicas desde a mais tenra infância – tende a se esquecer de todo este saber mediado
que lhe foi transmitido. Ao afirmar seu “saber imediato”, deixa no passado toda a história
da sua formação enquanto indivíduo, ou abstrai todas as mediações. Todas as crenças,
todas as convicções são mediadas.
Isto posto, é importante não perder de vista que este saber – dito imediato, mas que na
verdade é mediado – é necessário. Mas exige ser compreendido como mediado. Aliás, era a
isto que Platão se referia quando dizia que o ser humano (adulto) não aprende, apenas
recorda. Não se trata da referência mística a alguma vida anterior, mas sim à formação, a
tudo o que é saber em matéria de justiça, de direito, de vida em comum e constitui aquilo a
que chamamos de esfera espiritual. O ser humano é espírito em si, a verdade se encontra
nele e ele deve se tornar consciente dela.
A forma do sentimento
Quando digo “eu tenho este sentimento”, isto significa apenas que um conteúdo é meu
enquanto este indivíduo particular. Este conteúdo me pertence, é para mim, eu sei dele em
sua determinação e ao mesmo tempo sei de mim nesta determinação. É ao mesmo tempo
um conteúdo e o sentimento de si. O conteúdo é de tal ordem que a minha particularidade
está unida a ele.
mesma coisa. Não se separam sujeito e objeto enquanto sentimento de alguma coisa.
Duplo ser vale para o sentido (visão, audição). No sentimento, a determinação do objeto se
torna minha. Se o objeto permanecer autônomo, não será encontrado no sentimento – não
se gostará dele, por exemplo. Mas no sentido objetivo realizamos imediatamente o trânsito
do conteúdo: pressupomos que existe um objeto externo que corresponde ao sentido. A
visão é o sentido ideal, que deixa o objeto livre. Ela inclusive o rejeita imediatamente e, ao
fazê-lo, conduz o sentimento à consciência. Por isto a consciência é a forma do sentimento.
O fato de alguma coisa integrar meu sentimento não significa grande coisa a seu favor. O
caráter verdadeiro do sentimento não depende dele, mas do conteúdo encoberto pela
forma. Não importa que o sentimento tenha um conteúdo em geral, pois o que pode haver
de pior também pode estar nele. A existência do conteúdo não depende (como acabamos
de ver) de estar no sentimento. O sentimento é forma adequada a qualquer conteúdo
possível sem que por isto o conteúdo receba qualquer determinação. No sentimento, o
conteúdo é posto como totalmente contingente. O conteúdo pode ser posto como eu bem
entender, tanto pelo meu arbítrio quanto de acordo com a sua natureza. Como o conteúdo
é contingente para mim, nele eu me encontro no grau máximo de dependência – que é o
oposto de liberdade. O próprio arbítrio é do âmbito da contingência. O arbítrio não está
determinado em-e-para-si, não é posto pelo universal. O sentimento é, portanto, o
particular, o limitado, e deste modo é indiferente que ele seja este ou aquele conteúdo, já
que em meu sentimento pode haver qualquer conteúdo. O sentimento não possui nele
mesmo a forma da autodeterminação que acontece no pensamento. O pensamento dá a si
mesmo todo conteúdo através de sua forma enquanto pensamento. No sentimento, o
conteúdo mais elevado não se distingue do pior dos conteúdos, da mesma forma que a flor
mais majestosa cresce junto com a erva daninha. Finalmente: para que alguma coisa se
encontre no sentimento, ela tem que ter sido conhecida em outro lugar.
Para ser justo e verdadeiro, o sentimento depende de suas determinações, que são o seu
conteúdo. O direito é um deles. Ele constitui o meu sentimento, ou faz parte do meu
11
caráter, do meu ser. Este mesmo conteúdo pode existir como inclinação, como lei ética ou
como lei do Estado.
Sentimento é o que o ser humano tem em comum com os animais. É por isto que ele é a
pior forma de demonstrar ou fundamentar conteúdos como o direito e a vida ética. Estes
conteúdos têm por base o pensamento e não sentimento. Tudo o que tem base no
pensamento pode revestir a forma do sentimento. Direito, liberdade, eticidade têm raiz na
determinação superior em que o ser humano não é apenas animal, é também espírito. O
sentimento de justiça, por exemplo, procede de um terreno totalmente distinto dele. No
entanto, o sentimento de justiça ou de liberdade é a pior forma destes conteúdos, porque o
sentimento não assegura a sua verdade. O sentimento é o ponto de vista do ser subjetivo,
contingente. O indivíduo tem como missão dar a seu espírito um conteúdo verdadeiro. O
sentimento permanece no plano empírico, não é livre. O verdadeiro e o autêntico se devem
ao cultivo do pensamento. Só através do pensamento se alcança o conteúdo da
representação e do sentimento.
É certo que devemos ter a justiça, a ética, no coração. Mas o sentimento enquanto tal é
fugaz e momentâneo. No coração, ele já se expressa como persistente, como existência
estável. O coração expressa o que eu sou como uma realidade universal concreta e singular.
É meu caráter, são os meus princípios. Um conteúdo deve me pertencer assim, como
minha realidade última, meu modo de proceder, minha realidade. É, portanto, essencial
que todo conteúdo verdadeiro se encontre no meu sentimento e no meu coração. E é por
isto que existe a exigência de que o indivíduo seja educado, isto é, formado ética e
juridicamente. Não basta saber, ter consciência do direito e da justiça. É preciso estar
convencido, tudo isto tem que estar no sentimento e no coração. Esta é uma exigência
justa. Ela significa que estes interesses também devem ser nossos essencialmente, que
devemos nos identificar com este conteúdo. Eu devo ser totalmente dominado por esta
forma. Esta determinação deve ser algo próprio do meu caráter e, para isto, é essencial que
todo conteúdo verdadeiro se encontre no sentimento e no coração. O que temos no coração
constitui a nossa forma de pensar: assim somos nós. O sentimento expressa esta
identificação do conteúdo com a subjetividade, com a personalidade do indivíduo. Para
agir segundo princípios, além de conhecê-los é preciso tê-los no coração. Uma mera
convicção pode ser contrariada por inclinações opostas mas, se uma convicção está no
coração, o agente atua de acordo com o seu ser.
Sentimento e representação
Não é, portanto, o sentimento que importa (já que ele pode ser qualquer coisa), mas sim o
seu conteúdo. Para que o sentimento também seja verdadeiro, seu conteúdo deve ser
verdadeiro independente das circunstâncias, e isto consiste em ser universal. E por isto se
diz que o sentimento deve ser purificado, ou seja, formado, pois os sentimentos naturais
não são móveis de conduta adequados. Isto também significa que o conteúdo do coração
enquanto tal não é verdadeiro. Como já vimos, só se apreende o verdadeiro, em primeiro
lugar, pela representação e, em segundo lugar, pelo pensamento.
O ser humano ama o sentimento porque nele está exclusivamente a sua particularidade.
No sentimento se produz constantemente a reminiscência do Eu, ao passo que quem vive a
própria coisa (o conteúdo), seja ela ciência, arte, direito, se esquece de si mesmo. É por isto
que a frivolidade, a autocomplacência, querendo continuamente o próprio prazer, remete
prazerosamente ao sentimento. E assim o arbítrio e o capricho se apoiam exclusivamente
14
em si mesmos – e não no conteúdo –, assim como não se baseiam numa conduta objetiva.
Quem só se preocupa com o sentimento ainda não completou a sua formação, é um
principiante no saber e no agir.
Representação e pensamento
Toda história contém uma série externa de acontecimentos e ações que dizem respeito a
um ser humano, um espírito. Quando se trata da história de um Estado, trata-se da ação,
da obra, do destino de um Espírito Universal, que é o espírito de um povo. Todo povo já
possui em si mesmo uma universalidade em si mesma.
Até no sentido mais superficial se pode dizer que de toda história é possível extrair uma
moral. Esta moral contém no mínimo os poderes (e valores) éticos que intervieram em
uma ação, que produziram um acontecimento. Os poderes éticos constituem a dimensão
interna, substancial, de qualquer história. Toda história possui de início um caráter
particular, singularizado, individualizado ao máximo. Mas também é possível e
recomendável reconhecer nela as leis universais, os poderes éticos.
A representação não reconhece estes poderes éticos. Ela concebe a história tal como esta
se apresenta no mundo fenomênico. Mas até para o indivíduo cujos pensamentos e
15
Todo o conteúdo do espiritual, todas as relações em geral, qualquer que seja o seu tipo
(determinação, causa e efeito, ação recíproca, etc.), um soberano, um tribunal, um
parlamento, etc. são representações. O próprio Espírito é uma representação. São
representações que têm origem no pensamento, mas têm a forma da representação porque
se referem simplesmente a si mesmas e se dão de uma forma autonomizada.
mais detalhada, a imagem é sempre limitada. Nela, a ideia se decompõe numa infinidade
de figuras que a tornam limitada e finita. Por isto a ideia permanece oculta na imagem.
Da representação ao pensamento
A representação possui todo o conteúdo sensível e espiritual, mas de modo que este
conteúdo é tomado isoladamente em sua determinabilidade, enquanto que a forma do
pensamento é a da universalidade. A universalidade também aparece na representação e é
por isso que nós só utilizamos pensamento quando se trata do pensamento reflexivo e,
mais ainda, compreensivo. Não meramente pensamento em geral, mas só na medida em
que é, antes de mais nada, reflexão e, depois, conceito.
17
Para a pergunta “o que é justiça?”, de início temos a sua representação de forma simples.
Mas depois pensamos. E quando se pensa algo, este algo é posto em relação com outra
coisa. O sujeito em si mesmo sabe que é uma relação recíproca entre coisas distintas, ou
relação dele mesmo com outro, que sabe que se encontra fora dele. Mas na representação
as diferentes determinações se encontram para si, formando parte de um todo, ou
separadas entre si. Já no pensamento o simples se decompõe em diferentes determinações;
o pensamento estabelece uma comparação entre as determinações dispersas, toma
consciência da sua contradição que, entretanto, deve constituir ao mesmo tempo uma
unidade. Quando as determinações se contradizem, parece (à representação) que elas não
podem pertencer a um mesmo conteúdo. A consciência da contradição e de sua solução é
do âmbito do pensamento. Na representação, tudo coexiste pacificamente: o ser humano é
livre e dependente; no mundo há bondade e maldade, etc.. O pensamento estabelece as
relações e faz aparecer as contradições.
No saber imediato, o objeto não aparece como existente porque seu ser se encontra no
sujeito do saber, isto é, no sentimento. Mas no sentimento ele é contingente. Tem que
haver uma região da consciência em que ele não se apresente como contingente e
corresponda melhor à representação. Trata-se de uma consciência em que os opostos
18
Eu só sinto a negação quando me coloco acima dela. Para o animal, só existe o limite
quando ele o ultrapassa. O animal sente a sua limitação como universalidade negada, como
necessidade. Ele tem necessidades e o impulso de superar esta negação de si mesmo.
Todos os impulsos são afirmação da necessidade e oposição a esta negação que está nele.
Enquanto sujeito, o ser humano também é unidade negativa de si mesmo, tem a certeza da
unidade que é e, assim como o animal, sente a si mesmo. No sujeito – diferente do animal
– o sentimento do distinto se converte em sentimento do limite. E ele supera esta negação
satisfazendo a sua necessidade, reconciliando-se consigo mesmo, restabelecendo a sua
mesmidade.
Mas como a consciência permanece presa ao limite, ela não realiza esta reflexão. Para ela, o
objeto é o seu não-ser. E como o Eu é o finito (porque o objeto o limita), o objeto aparece
como infinito, o que se encontra além do meu limite. Como ele é o outro do limitado que
sou Eu, ele é o ilimitado, o infinito. Finito e infinito aparecem assim para a consciência.
Esta relação tem outro aspecto: se eu sou a minha própria negação e me relaciono comigo
mesmo, sou também a minha afirmação: eu sou. Nisto consiste a consciência
determinada. Este é o limite da observação e resume toda a sabedoria do nosso tempo.
Para esta sabedoria, a finitude do sujeito é o ponto máximo, último, irremovível, imutável;
é a base sólida sobre a qual se afirma o pensamento: nossa condição finita é firme e
absoluta; o infinito está diante de mim, mas é um além ao qual eu aspiro.
Temos então duas representações no mesmo Eu: minha finitude e minha aspiração pelo
infinito. Eu permaneço em mim mesmo. Trata-se da dupla negatividade em mim que
produz uma divisão: uma em direção a mim e outra em direção ao além. O Eu é esta
negatividade com seus dois aspectos. E como toda dupla negação é positiva, o próprio Eu
19
que se divide é positivo. Ao afirmar “Eu sou”, estou suprassumindo minha finitude. Mas
este ainda é o ponto de vista da consciência subjetiva.
A finitude significa que o ser humano singular, em sua existência temporal e espacial,
como indivíduo determinado, se encontra em uma relação negativa com o outro e por isto
se manifesta como excludente e excluído. Suas exigências singulares se comportam como
autônomas entre si. Enquanto seres vivos e dotados de sensibilidade, como seres que
ouvem, veem e sentem, estão sempre remetidos a algo que é imediatamente outro,
singular, e se encontram em relação permanente com tudo o que não é eles mesmos. Estão
relacionados a objetos que permanecem distintos deles e os determinam a ser o que são. A
relação prática – a suprassunção do outro – também é uma relação com o outro e os
objetos que me dão satisfação também têm um caráter singular. Este é o ponto de vista da
existência natural, na qual os seres vivos são movidos por impulsos e sentimentos
continuamente mutantes, excitados por necessidades sempre novas, também mutantes,
em dependência constante e em limitação ininterrupta por toda parte.
Mas no caso dos seres humanos a superação da finitude já acontece na própria esfera da
finitude. Enquanto interioridade subjetiva, o impulso é infinito, é uma falha, é um
sentimento de limitação. Mas é a limitação de um infinito em si, em sua relação consigo
mesmo, que suprassume esta limitação. A autossatisfação, que já é infinitude, é apenas
infinitude formal, não é concreta. A satisfação da fome, por exemplo, é a suprassunção da
divisão entre o objeto e o Eu, é a suprassunção apenas formal da finitude porque o
conteúdo permanece constantemente finito e continua produzindo novos impulsos, novas
finitudes e novas suprassunções. Volta a aparecer sempre que a necessidade é satisfeita,
porque o natural é constituído pela finitude. Nossa consciência sensível, na medida em que
se ocupa do singular, permanece no âmbito da finitude natural. Enquanto finita, consiste
em suprassumir a sua própria imediatidade. A última manifestação desta suprassunção é a
morte.
mostra como a finitude superada. Trata-se da infinitude da reflexão, que volta a se destruir
e se põe como finita. Ela mantém perenemente a oposição diante do infinito. A reflexão só
passa ao infinito como negação abstrata do finito. Mas o finito permanece porque não
possui em si o infinito. Assim, a reflexão produz a má infinitude, ou progressão infinita.
Não sendo (conscientemente) dialética, a reflexão não percebe que finito e infinito são
opostos que se opõem essencialmente. Isto significa que cada um tem seu outro nele
mesmo, cada um só é o que é na unidade com o outro. Assim, o finito é o negativo e o
infinito é o positivo. Recapitulemos: finitude é negatividade; não-finitude, ou infinitude, é
21
O outro do finito, o seu limite, já começa nele. Só temos um limite quando estamos além
dele. Como seres determinados, estamos em unidade diferenciada com tudo o que
constitui o nosso não-ser, ou a nossa determinabilidade. Mas, enquanto consciência do
limite, já nos encontramos além desta unidade imediata e aquilo que, na
determinabilidade (nosso não-ser), por sua vez constituía o nosso ser é posto como não-ser
no limite. O limite deixa de ser o afirmativo. Quando nos encontramos nele, já não nos
encontramos mais nele. O finito tem que ser o limitado. Seu limite é o infinito. Ele só existe
mediante o seu limite e o possui nele mesmo. O finito possui o infinito nele mesmo e, na
reflexão, o possui como um Outro. O finito da reflexão se opõe ao infinito e, no entanto, o
limite é o próprio infinito.
O infinito para-si só é negação daquilo que nega e se opõe a seu outro. Mas esta oposição
desaparece porque o finito tem seu outro pensado nele mesmo. No infinito da reflexão, que
tem seu limite no finito, só encontramos o próprio finito; no infinito do pensamento
racional encontramos a realidade suprema, que é resultado do pensamento e desta
dialética de finito e infinito.
Como vimos, o Eu finito põe o infinito como finito. E ao ter o infinito como finito se
identifica consigo mesmo no infinito. Isto constitui o limite extremo da subjetividade que
se mantém aferrada a si mesma, a finitude que permanece e se põe como infinita na
relação consigo mesma. Esta subjetividade elimina todo e qualquer conteúdo, sem se dar
conta de que assim liquida a si mesma: este é o limite extremo da finitude onde tudo é
eliminado na fogueira da vaidade. Só fica a vaidade. Esta é a consciência abstrata que
permanece em si mesma, sem nenhum conteúdo. É o pensamento puro enquanto poder
absoluto da negatividade, mas ainda é um poder que se mantém como um Eu para si que,
ao renunciar à finitude, expressa-a como infinitude e como o afirmativo universal. Este
ponto de vista é o poder da negatividade que dá tudo por liquidado.
posto por mim é negativo, porque diferente de mim. Sou esta realidade excludente
segundo meus sentimentos, segundo a arbitrariedade e a contingência das minhas
sensações e da minha vontade. Sou o afirmativo em geral, o Bem. Não reconheço como
verdade nada que esteja fora de mim, leis, deveres, nada de objetivo. Para que algo seja
verdadeiro e bom, a única exigência é que o Eu esteja convencido, ou o reconheça como tal.
Nesta idealidade de todas as determinações, só o Eu é o afirmativo, o positivo.
Não se pode considerar este ponto de vista como humilde, só porque ele renuncia a todo
conhecimento do que está fora dele. Esta é uma humildade que se refuta a si mesma e,
portanto, é orgulho, ou pretensão. A verdadeira humildade renuncia a si e só reconhece o
verdadeiro e o existente em-e-para-si como o afirmativo. Já a falsa humildade converte o
finito, o negativo e o limitado no infinito, no afirmativo e no absoluto: Eu sou o único
essencial, Eu, o finito, sou o infinito, porque o infinito que está além foi posto por mim.
Como já vimos, há aqui unidade de finito e infinito. Mas como é posta pelo Eu finito, ela se
converte numa unidade finita, na qual o finito se converteu em Absoluto e eterno. É este o
ponto de vista do limite extremo da subjetividade finita que se põe como Absoluto. O Eu
finge ser humilde e por orgulho não renuncia nem à vaidade nem à nulidade. Faz
desaparecer o saber superior, mantendo apenas a emoção subjetiva e o capricho. Com isto,
desaparece o ponto em comum que une os indivíduos e, na diferença arbitrária do
sentimento, os indivíduos se enfrentam movidos a ódio e desprezo recíprocos.
O mesmo acontece com a unidade de finito e infinito segundo este ponto de vista. Ela tem
caráter unilateral por ser posta pelo finito, não havendo a suprassunção dos opostos numa
unidade superior. A finitude não se suprassume na infinitude porque a reflexão as separa.
Sua unidade é meramente finita. Além disso, a reflexão omite a separação que operou. E
como não tem o cuidado das mediações, concebe imediatamente o singular (o Eu) como
Universal, ficando o singular sem consistência própria.
Pensamento racional
Todos concordamos imediatamente que o Eu, enquanto finito, é nulo. O finito que avança
se repondo até o infinito é apenas identidade abstrata, vazia em si mesma. É a forma
suprema do não-verdadeiro, é a mentira e o mal. Precisa haver um ponto de vista em que a
singularidade se negue efetivamente, de modo que o Eu, renunciando verdadeiramente a
si, seja de fato a subjetividade particular que se suprassume. Para que isto seja possível, o
Eu tem que reconhecer algo objetivo como verdadeiro e afirmativo. Ao fazê-lo, o Eu se
nega como o afirmativo e o verdadeiro. Mas ao mesmo tempo a sua liberdade se conserva
naquele objeto. Isto exige que o Eu se torne universal e somente enquanto tal tenha
validade, para ele mesmo, o vir-a-ser-para-si da singularidade particular imediata a partir
da universalidade que se autodetermina.
Saber é atividade pura, que acontece quando nega o impuro, ou o imediato e, como já
vimos, o imediato é resultado de inúmeras mediações. Por exemplo: uma peça de piano
difícil pode ser facilmente interpretada depois de detalhadamente estudada e ensaiada
inúmeras vezes. Cada nota concreta se gravou na consciência do pianista e o conjunto,
agora, aparece como imediato, mas nada mais é que o resultado de todas as mediações. A
interpretação da peça parece atividade imediata, mas na realidade é resultado da mediação
de muitas ações. A descoberta da América por Colombo é o resultado de muitas ações e
reflexões singulares e anteriores. Os próprios costumes que se convertem em segunda
natureza e assumem a figura da imediatidade são resultado de mediações: sua natureza é
diferente da sua manifestação fenomênica. A mesma coisa se passa na natureza do
pensamento em sua igualdade a si mesmo: é transparência pura da atividade para si, que
consiste na negação do negativo e é o resultado que se converte em imediato, que aparece
como imediato.
Para o pensamento, o finito não é o existente nem o infinito é fixo. Finito e infinito são
apenas determinações negativas, são apenas momentos do processo. O verdadeiro, a Ideia,
só são totalmente como movimento.
Em suma: o resultado é que temos que nos libertar do fantasma da oposição entre finito e
infinito. Este fantasma é um veto à Filosofia. Filosofia é a consciência da Ideia. Sua tarefa é
apreender a totalidade como Ideia. Ideia é o verdadeiro no pensamento, não na
representação e muito menos na intuição. O pensamento é especulativo: apreende o
concreto como unidade das determinações.
pensamento ainda não está desenvolvido, não está determinado em si. Todas as diferenças
ainda estão ausentes do pensamento, mas neste éter do pensamento desapareceu tudo o
que é finito. É preciso determinar com mais precisão o elemento universal. Ainda não há
nada configurado nesta água e nesta transparência.
Esquematizando o processo, temos numa ponta o universal que tem que se autodeterminar
até constituir a Ideia. Seu desenvolvimento assume diferentes figuras; ele se configura. Na
outra ponta, temos a particularização, a consciência em sua singularidade – o sujeito em
seu caráter empírico total, que é temporal.
Para o pensamento, o conceito do objeto é a sua ideia, seu devir e seu tornar-se objetivo. O
objeto só é verdadeiramente para si na autoconsciência. A autoconsciência é a sua
determinação suprema. O conceito do objeto é imperfeito: ele se integra, só possui verdade
quando aparece como ideia absoluta. E a questão da sua realidade é posta para si na
identidade com o conceito.
Os seres humanos vivem no Estado. Eles são a vida, a atividade e a realidade do Estado.
Mas nem por isso têm consciência do que é o Estado, enquanto o Estado perfeito consiste
em que tudo o que ele é em si – em seu Conceito – seja desenvolvido, posto, convertido em
direito, lei, dever. É do Estado, segundo o seu conceito, que derivam direitos e deveres
totalmente distintos para os cidadãos.
O espírito é essencialmente consciência. O que para o espírito é sensação, tal como está
determinado subjetivamente, tem que se apresentar a ele também como objeto. O objeto
tem que ser intuído no espírito. O momento objetivo exige o sujeito e o objeto.
O espírito se revela como ser para si no mundo ético, no Estado. No Estado, a liberdade do
espírito aparece como um objeto presente, dado, como uma necessidade e um mundo
existente. Da mesma forma, é no Estado que a consciência alcança a sua realização e que
todos os indivíduos têm liberdade. No Estado, a consciência – o ser-para-si – e a essência
substancial – o espírito – se adequam.
O mundo espiritual faz parte do mundo objetivo. O mundo espiritual é objeto na medida
em que conformou e assumiu o mundo natural na representação e no pensamento. Isto
porque a consciência objetiva se cultiva e se aprofunda em si mesma na interação com o
seu mundo.
A ação da vida intelectual é o mesmo que a vida do mundo. Mas enquanto a vida do mundo
é finita, a intelectual é intemporal. Na vida intelectual, a vida do mundo aparece na forma
da eternidade.
Pensamento é um aspecto da nossa consciência. Ele tem por objeto o universal em geral e
já está determinado em si, abstrata ou concretamente. Pensamento é o universal em sua
atividade, em sua efetividade. É a apreensão do universal, aquilo para o qual o universal
existe. O produto do pensamento, aquilo que é elaborado pelo pensamento, é um conteúdo
universal. Forma é aquilo que apreende o universal; é também pensamento. A realidade
universal, que pode ser produzida pelo pensamento e constitui o objeto do próprio
pensamento, pode se revestir de um caráter totalmente abstrato. Estamos diante do
incomensurável, o infinito, a suprassunção de todo limite, de toda particularidade. Esta
universalidade negativa só ocorre no pensamento.
Objetividade e subjetividade
Nosso primeiro saber imediato é o de nós mesmos. Segue a pergunta: como chegamos à
diferenciação, ao saber de um objeto? A resposta já foi dada: porque somos seres que
pensam. E podemos pensar o absolutamente universal em-e-para-si.
O ser humano observa o mundo e, como é ser pensante, racional, e não encontra nenhuma
satisfação nas suas contingências, ele se eleva, a partir do finito, para o absolutamente
28
necessário. Ele afirma que, como o finito é contingente, tem que haver algo necessário e em
si que seja o fundamento desta contingência. É assim que a razão, ou o espírito humano,
procede. Os seres humanos sempre percorrerão este processo e se perguntarão pela razão
interna do modo como tudo se relaciona entre si.
Mas o pensamento raciocinante afirma que, como existe o finito, existe também o infinito.
São separados, duas realidades. Para o pensamento racional, aqui há uma dialética. Uma
vez que o finito não é verdadeiro, ele é uma contradição que se suprassume. Por isto a
verdade do finito é a afirmação que se chama infinito. O finito não é verdadeiro, não
subsiste. Só o infinito possui verdade. O mundo sensível – ponto de partida – não
permanece, ele renuncia a si mesmo, é suprassumido pelo pensamento. A diferença entre
finito e infinito diz respeito às abstrações mais sutis que constituem precisamente as
categorias mais universais do nosso espírito.
O pensamento raciocinante do intelecto não aceita esta concepção porque está preso à
determinação inadequada de que “o finito é”. E também afirma que não se pode passar do
finito ao infinito porque não há ponte entre os dois. Para o intelecto, nós somos finitos e
portanto nossa consciência também é; não pode ultrapassá-lo. O pensamento racional já
refutou esta concepção. Se é certo que somos limitados e que nossa razão é limitada,
também é certo que esta finitude não tem nenhuma verdade. A razão consiste
precisamente em compreender que o finito nada mais é que um limite. E o simples fato de
saber que algo é um limite já nos coloca acima dele. O infinito é a abstração totalmente
pura, a primeira abstração do ser, uma vez que é a suprassunção do limite. É o universal no
qual toda fronteira é ideal e foi suprassumida. Como o finito não permanece, e não há um
abismo entre ele e o infinito, deixam de valer as duas realidades que o intelecto afirma; o
finito se converte em aparência, em sombra. É certo que o ponto de partida é o finito, mas
o Espírito impede que ele subsista.
29
Conceito e ser
Na vida cotidiana se chama conceito, por exemplo, a uma representação de 100 táleres.
Mas isto não é um conceito. É apenas uma determinação do conteúdo. A uma
representação abstrata como “azul”, ou a uma determinação do intelecto como “causa”,
que se encontra em minha cabeça, pode muito bem faltar o ser. Mas a isto não se pode
chamar de conceito. O Conceito, que é absoluto, em-e-para-si, tem que ser pensado em
geral e este conceito contém o ser como uma determinação. O desenvolvimento
pormenorizado deste ponto se encontra na Ciência da Lógica.
Nós podemos representar o movimento do Conceito como uma atividade. Antes de mais
nada, ao abordar o Conceito em geral, é preciso abandonar a opinião de que se trata de
algo que só nós temos, que o Conceito é algo que formamos em nós. O Conceito é a alma, a
finalidade de um objeto, do Ser Vivo. Conceito é o que o senso comum chama de alma e
este conceito alcança a sua existência no Espírito, na Consciência, como conceito livre,
distinto de sua realidade em si, ou em sua subjetividade. Sol, animal, vegetal, são conceitos
mas não o possuem. O conceito não se converte em objeto para eles. No sol e no animal
não aconteceu esta separação, mas na Consciência o que chamamos Eu é o conceito
existente, o conceito em sua realidade subjetiva e este conceito, Eu, é o subjetivo. Mas
nenhum ser humano se satisfaz em sua egoidade. O Eu é ativo e esta atividade consiste em
se objetivar, em se dar realidade, em ser determinado. Uma representação mais
determinada, que é válida para qualquer animal e não só para o ser humano, é o impulso.
Toda satisfação do impulso implica para o Eu o seguinte processo: superar a subjetividade
e pôr ao mesmo tempo esta subjetividade, esta interioridade, como algo exterior, objetivo,
real, efetivo, produzir a unidade entre o meramente subjetivo e o objetivo e eliminar o
caráter unilateral de ambos. Enquanto o Eu permanecer como simples desejo ou
inclinação, ele ainda não é efetivo. O desejo tem que chegar ao ser determinado. Toda
atividade no mundo consiste em suprassumir o subjetivo e pôr o objetivo e, assim,
produzir a unidade dos dois. Em outras palavras: atividade é a suprassunção do oposto
(um obstáculo), e produção da unidade entre subjetivo e objetivo.
Conceito é o ser vivo, o que se media a si mesmo. Por isto ser é uma das suas
determinações. O conceito é o universal que se determina, se particulariza, numa atividade
que se chama julgar. Julgar é se particularizar, se determinar, pôr uma finitude, negar esta
finitude e, por meio desta negação, identificar-se consigo mesmo. Este é o Conceito em
geral, ou Conceito Absoluto. No conceito em geral – e mais ainda na Ideia – em geral
ocorre o seguinte: ser idêntico a si, estar relacionado a si mesmo mediante a
particularização da qual ele constitui ao mesmo a atividade que põe.
modo imediato esta relação abstrata consigo. É uma simples constatação. O Ser difere do
Conceito na medida em que não é todo o conceito, é apenas uma das suas determinações.
Sobre o Ser, reina esta espécie de inconsciência que afirma que o ser não se encontra no
conceito. Se é certo que ser se distingue de conceito, esta distinção consiste em que Ser é só
uma determinação do Conceito.
Teoria e prática
Nas relações de caráter teórico, o Eu submerge no objeto e nada sabe a seu respeito. Por
isto considera o seu saber sobre o objeto como imediato. Isto acontece nos casos mais
triviais. Por exemplo: eu sei deste papel em que escrevo (e do lápis, etc.). Neste saber estou
dominado pela representação do papel (e demais objetos) sem saber nada de mim mesmo.
Eu “me esqueço”, por exemplo, de quem me ensinou a ler e a escrever. Mas esta relação,
31
este saber ou, mais exatamente, esta relação teórica não é tudo o que de fato está presente.
Eu me oponho ao objeto. O fato de que eu existo e possuo um objeto é um ato de reflexão
sobre a consciência. No meu saber sobre o objeto, temos Eu e o objeto. Na medida em que
realizo esta reflexão, Eu e Objeto constituímos duas realidades diferentes. Na intuição – ou
relação teórica – só se dá um objeto cuja realidade me domina; não sei nada a meu
respeito. Mas a verdade consiste na relação entre Eu e Objeto.
Aqui começa a relação prática. Nesta, eu sou para mim, me oponho ao objeto e tenho que
produzir a minha unidade com ele. Esta unidade consiste em, além de saber sobre ele, de
estar dominado por ele, me saber como dominado por ele, em saber dele enquanto se
encontra em mim e em saber de mim enquanto me encontro nele. Esta é a Verdade. A
função da atividade é produzir esta unidade. Somente nas relações práticas, somente na
vontade começa a separação entre subjetividade e objetividade. Na relação teórica, estou
dominado pelo objeto, não me oponho a ele. Na medida em que sei deste objeto, ele existe
e não eu. Só na vontade é que existo para mim, sou livre, me relaciono comigo mesmo
enquanto sujeito e só agora me oponho ao objeto. É por isto que a limitação começa na
relação prática e não na teórica. No ato de querer eu existo para mim. Há outros objetos à
minha frente e assim eles constituem o meu limite. A vontade tem uma finalidade e a
persegue. Ela consiste na atividade de suprassumir a finitude, a contradição de que o
objeto seja para mim um limite. Na medida em que atuo, sinto a necessidade de assimilar o
objeto, de suprassumir a minha finitude em relação a ele, de restabelecer meu sentimento
de mim. Na necessidade eu sou limitado e o caráter deficiente da necessidade aparece de
forma que o objeto se apresenta como externo para mim.
No âmbito da prática, portanto, o ser humano tem um outro como objeto. No âmbito da
teoria, o ser humano se une a este objeto. E podemos descrever a consciência teórica por
seus resultados e conclusões. Na prática, o objeto está de um lado e eu de outro. A
determinação consiste em Eu me unir a Ele, saber-me nele e dele em mim; consiste nesta
unidade concreta. A consciência teórica também é concreta, mas apenas em si. É
precisamente a relação prática que implica que ela seja concreta também para o sujeito.
minha determinação empírica. As duas consciências são para mim e sua relação para mim
é a unidade essencial do meu saber infinito e da minha finitude. Estes dois lados se buscam
e se repelem entre si. Às vezes ponho o acento em minha consciência empírica e finita e me
oponho à infinitude. Outras vezes me excluo de mim, me condeno e dou prioridade à
consciência infinita.
Com o famoso “eu sou” se produz em mim e para mim este conflito e esta união: enquanto
infinito, eu sou para mim mesmo o oposto a mim a enquanto finito. E enquanto
consciência finita, me oponho a mim mesmo, a meu pensamento e à minha consciência
determinados como infinitos. Eu sou a intuição, a sensação, a representação – que é
unidade e conflito. Eu sou o seu elemento unificador, o esforço desta unificação, o trabalho
do ânimo para dominar esta oposição que é para mim.
Mas eu sou a relação entre os dois lados. Cada um dos extremos é o Eu, aquele que
relaciona. O unificar e o relacionar consistem em se converter na união e em se unificar na
luta. Melhor ainda: eu sou a luta. Pois a luta é precisamente este conflito, que não é uma
situação de indiferença entre os dois lados enquanto distintos, mas sim a conexão deles. Eu
não sou um dos elementos em luta, sou os dois, sou a própria luta. Sou o fogo e a água que
se tocam e também o contato entre ambos. Sou a unidade do que se repele absolutamente e
sou precisamente este contato entre elementos ora separados, ora cindidos, ora
reconciliados e ora unidos. Unidade que, por sua vez, constitui esta dupla relação enquanto
relação.
Distanciamento e conhecimento
Esta relação – a consciência enquanto tal –, por um lado, é introspecção, elevação pura e
simples. É representação em sentido superior, supremo, universal. E, antes de mais nada,
esta introspecção é sensação.
A mesma coisa acontece com a sensação interna. Eu posso estar colérico, amigável, etc. E
isto me determina. Aqui não é o trânsito de uma intuição externa, como no caso do calor. É
o trânsito para a representação, para a memória. Eu tenho que representar o conteúdo
para mim. Tenho que converter em objeto da representação o ódio, a injustiça, o prejuízo
que sofri, a tristeza, a dor; o objeto perdido e a perda. A dor e a tristeza falam comigo, mas
o prejuízo e a perda não se identificam imediatamente comigo, porque de um modo geral
eu me distancio da perda, da determinabilidade. Aqui ocorre uma distinção entre sujeito
(Eu que sente) e objeto (a perda). Precisamente o ser para mim da subjetividade em
relação à objetividade é a forma objetiva da subjetividade universal, ou a alienação, ou o
distanciamento da individualidade.
Já a relação pensada – a sensação da luta acima referida – conduz para além da sensação
“subjetiva”. Primeiro, é sentida de modo imediato, sem que haja a depuração de seus dois
aspectos em relação ao universal e ao objetivo. Esta relação é a luta da determinabilidade
do Eu. A própria luta conduz o Eu a se elevar da sensação à representação. Há diferentes
espécies de sensação e esta nada mais é que um aspecto da representação, pois a sensação
ocorre junto com a representação.
última seja só intuição. A intuição se diferencia da sensação pela reflexão, pela passagem à
diferenciação entre o objeto e o Eu (um sujeito).
O essencial é que a sensação passe por si mesma imediatamente para a consciência, para a
representação. Isto porque o ser humano é Espírito E Consciência – representação.
A sensação precisa avançar até a representação e a teoria. O ser humano não é puramente
sensível, precisamente porque sensação também é consciência. O ser humano sabe de si
precisamente na consciência, quando se retira da identidade imediata com a
determinabilidade. Aquilo que fica somente na sensação se consome aos poucos,
convertendo-se em algo desprovido de representação e atividade, porque perde todo o seu
conteúdo determinado. É preciso, portanto, combater a tese de que a sensação exclui a
representação, o conhecimento e o pensamento.
Filosofia e Ideia
Para o senso comum, filosofia é saber finito do finito. Mas Filosofia é um conhecimento
racional através daquilo que há de comum no conhecimento de todos os seres humanos.
Rejeitá-la consiste em rejeitar o princípio comunitário da razão e do espírito para deixar o
campo livre para a opinião particular, que passa a ocupar o primeiro plano.
O Iluminismo é uma Filosofia Negativa para a qual todo conteúdo parece ser um
obscurecimento do espírito. Esta filosofia negativa quer permanecer na noite a que chama
ilustração, quando na verdade ela deve considerar como inimiga a luz do conhecimento. O
ponto máximo a que esta filosofia chegou foi a negação da possibilidade de conhecer a
coisa em si após ter reconhecido que esta é uma criação da razão. Se a razão não pode
conhecer o que ela mesma criou, ela não pode conhecer mais nada.
36
Quanto mais o ser humano deixa que no pensamento racional a própria coisa se faça valer,
quanto mais renuncia à sua própria particularidade e se comporta como consciência
universal – Espírito – maior o seu conhecimento, pois a razão é a própria coisa, o Espírito.
Para a Filosofia, enquanto saber imediato é convicção sobre algum conteúdo que tem por
base o assentimento do próprio espírito, conhecer não é só saber que um objeto existe. É
também preciso saber o que ele é. Mas não só o que ele é em geral, ou ter algum
conhecimento e certeza sobre ele e sim saber acerca de suas determinações, acerca do seu
conteúdo. Este saber tem que ser completo e demonstrado, no qual eu saiba da
necessidade da conexão de suas determinações.
Uma das determinações fundamentais da Filosofia é a de que para o sujeito só vale o que
se confirma em seu próprio espírito. Este é um princípio que está vivo na consciência de
todos, ou na representação ordinária. Ele já existe como pressuposto em todos os espíritos.
A diferença é que a Filosofia não se detém neste conteúdo ingênuo.
37
II – A ARTE
A arte tem por base e origem o interesse em expor a Ideia Espiritual para a Consciência.
Antes de mais nada, para a intuição imediata, precisamente porque o ser humano é
consciência, consciência intuitiva, não meramente sensação. A lei e o conteúdo da arte é a
verdade. Sua exposição é produzida, posta e realizada numa forma externa, sensível para o
ser humano. A intuição sensível que a arte produz é necessariamente um produto do
espírito, não é uma configuração imediata e sensível, pois tem a Ideia como seu centro
animador.
Não é demasiado lembrar que Verdade tem dois sentidos. No primeiro, o do senso comum
e do pensamento raciocinante, significa simples correção. Neste sentido, uma
representação ou exposição de acordo com um objeto conhecido é verdadeira. O conteúdo
pode ser o que for, pois sua lei não é o belo. Mas se aqui também o belo for tomado como
lei, ele será meramente formal e nos arriscaremos a tomar qualquer conteúdo limitado
como verdade autêntica. No segundo sentido, o verdadeiro, a verdade é a adequação do
objeto a seu conceito, que é a Ideia. Enquanto livre manifestação do conceito, a Ideia não é
perturbada por nenhuma contingência ou arbitrariedade. É este o conteúdo da arte,
existente em-e-para-si, que diz respeito aos elementos substanciais, totalmente universais,
ao que é essencial na natureza e no espírito.
O artista tem que expor a verdade de forma que a realidade na qual o conceito exerce seu
poder e seu domínio seja algo sensível. Ele expõe a Ideia em forma sensível e, portanto,
limitada e individualizada na idealidade e, neste sentido, não tem como evitar as
contingências do mundo sensível. A obra de arte é concebida no espírito do artista, onde se
dá a união entre conceito e realidade. Quando o artista exterioriza seus pensamentos e
conclui a obra, ele se retira dela. E assim sua obra se apresenta, por sua vez, para a
intuição, como um objeto externo totalmente comum, inclusive para ele. Este objeto não
sente nem sabe de si, não tem consciência de que está presente na intuição enquanto a
ideia que expõe. A ideia só existe enquanto tal no sujeito da intuição, na consciência
subjetiva. Para que isto ocorra é necessária a existência de uma comunidade que saiba do
objeto exposto e o represente como a sua verdade substancial. Para a obra de arte que em
si mesma não é o que sabe, o momento da autoconsciência é o outro. Enquanto não se
sabe, a obra de arte está inacabada em si; só se completa quando o autoconsciente se
relaciona com ela. E como esta determinação de adentrar-se em si a partir da exterioridade
acontece no sujeito, há uma separação entre ele e a obra de arte. Este sujeito pode
considerar a obra a partir de uma perspectiva totalmente externa, pode destruí-la ou até
mesmo fazer observações impertinentes, estéticas ou eruditas, sobre ela. Mas o processo
38
Para chegar ao pensamento, o ser humano precisa se libertar do egoísmo. Seu espírito se
liberta na medida em que se exterioriza e considera o substancial como um outro. O que é
verdadeiro, em-e-para-si, deve se manifestar ao ânimo como autônomo e, neste, quem
renuncia a si, através do próprio autorrestabelecimento, alcança a verdadeira liberdade.
Representação e conceito
A mesma relação que há entre vigília e sono existe entre pensamento e representação.
Assim como é acordado que eu explico o sono e não o contrário, o pensamento explica a
representação, mas o contrário é impossível. A representação em todas as suas formas – da
religião às ciências naturais – tem o mundo por objeto. Seu conteúdo é extremamente
diversificado. O pensamento examina o modo de conexão que as representações têm entre
si e o modo como o Eu conecta essas representações – com a sua interioridade, com as
suas convicções e com o seu saber sobre a conexão.
A representação é para si mesma um todo, uma realidade concreta, que pode ser o mundo,
uma batalha. Ela é afirmada como autônoma na simples forma da universalidade. Para a
representação, nenhuma conexão realiza em si a mediação do conteúdo por si mesma. Por
isto o conteúdo não é apresentado como verdadeiro e necessário em si. Isto significa que a
representação não apreende nem o aspecto da identidade entre conceito e realidade, nem o
aspecto das diferentes determinações desta mesma identidade. Representação é reflexão,
raciocínio. As determinações do pensamento são formas de relação que, por sua vez,
também podem ser fixadas como representações. Quando isto ocorre, o próprio
pensamento assume a forma da representação. Nesta forma, o pensamento é raciocinante,
é o intelecto. É da natureza da conexão que não pertence ao pensamento enquanto tal ser
conexão da representação emprestada da analogia, do âmbito da imagem, ou mesmo da
representação indeterminada de alguma conexão incerta. Este último caso é exclusividade
do conteúdo religioso. Criar não significa funcionar como fundamento ou causa, que são
conexões. Criar é algo superior a estas determinações limitadas da representação porque
contém a relação especulativa, a produção da Ideia. Engendrar, ao contrário, é uma
expressão (no sentido de imagem) da Ideia Absoluta em si mesma, tirada da vida que por
certo contém a Ideia, mas de modo natural.
Como no objeto representado o conteúdo geral aparece na forma sensível, ele se mostra
como espacial e se apresenta em sucessão temporal. O pensamento suprassume esta
sucessão na eternidade. Para a representação, a conexão das determinações internas do
conteúdo aparece como ocorrências na forma sucessiva, não em sua necessidade, que só
pertence ao conceito. Só o conceito, que está fora do tempo e da sensibilidade, pode
compreender o encadeamento necessário das determinações do conteúdo absoluto. Na
representação, elas permanecem na contingência da série temporal. A representação nos
oferece um relato, uma narrativa. O conteúdo abstrato é o primeiro; sua realização
concreta aparece como natural, como um acontecimento no tempo. O que é essencialmente
um momento do conceito aparece no plano da imagem como ocorrido naturalmente no
tempo. O interior, o em-si da conexão, sua unidade verdadeira só se revela ao pensamento
compreensivo. Mas na representação as determinações se mantêm separadas entre si
espacial e temporalmente. Por isto permanecem separadas em sua relação. O universal fica
separado do particular. E assim a representação renuncia à verdadeira conexão.
Estado
O conceito de liberdade é supremo e é realizado pelo ser humano. Um povo que tem um
conceito inadequado de liberdade também tem um mau Estado, um mau governo e leis
más.
de que as leis devem ser obedecidas quaisquer que sejam. Neste caso, o governar e o
legislar ficam abandonados ao arbítrio dos que governam.
Mas, para a Filosofia que pensa a liberdade como racional, antes de mais nada é preciso
saber que sua tarefa consiste em saber em que consiste o racional, além da tarefa da
cultura do pensamento. Neste sentido a Filosofia pode ser chamada de sabedoria
mundana. Para esta sabedoria, é indiferente a manifestação externa na qual as verdadeiras
leis se fizeram valer, se foram ou não arrancadas de um soberano. O que importa é que o
desenvolvimento do conceito de liberdade, de direito, de humanidade entre os seres
humanos é necessário por si mesmo. Princípios enquanto tais nada mais são que
pensamentos abstratos. Eles só alcançam a verdade em seu desenvolvimento. Mantidos na
abstração, estão totalmente desprovidos de verdade.
Formas da eticidade
A forma mais elevada da eticidade é o Estado, que tem por base a execução da vontade
racional universal. É no Estado que o sujeito tem liberdade, é nele que ela se realiza. Em
oposição a isto, a religião fixa como dever que a liberdade não deve ser o fim último dos
seres humanos; define que estes devem se submeter a uma obediência rigorosa,
permanecer sem vontade própria.
Os princípios da liberdade são verdadeiros, mas não podem ser tomados abstratamente. O
saber de que o ser humano é livre por natureza, ou de acordo com o seu Conceito, é próprio
dos tempos modernos.
O intelecto afirma que os princípios da liberdade são verdadeiros porque estão em conexão
com a autoconsciência humana. Mas se de fato é a razão que os descobre, ela só os
confirma na medida em sejam verdadeiros e não permaneçam num nível meramente
formal. Eles precisam se referir ao conhecimento da verdade absoluta e esta é objeto
exclusivo da Filosofia. Este conhecimento deve ser completo, tem que ser levado às últimas
consequências. O conhecimento que não se consuma assim fica exposto ao formalismo
unilateral do pensamento raciocinante. Neste caso, o conhecimento se converte em
44
preconceito, pois o pensamento ainda não penetrou em seu fundamento último, onde
existe a reconciliação com o absolutamente substancial.
Como a Ideia deve ter uma forma verdadeiramente completa, é preciso saber que Forma,
ou determinação, não é meramente finitude, ou limite. Forma é, sobretudo, enquanto
totalidade da forma, Conceito. As formas que são conceito são necessárias e essenciais.
Mas, na medida em que o pensamento se opõe ao concreto, seu processo passa a ser o de
atravessar por completo esta oposição até chegar à reconciliação. Esta reconciliação é a
Filosofia, é a reconciliação entre Espírito e Natureza. A Filosofia produz esta reconciliação
mostrando que a natureza – o Outro – em parte pertence à própria natureza do espírito
finito, que deve ser levado ao estado de reconciliação e, em parte, alcança este estado de
reconciliação na história do mundo.
Há uma nota dissonante na realidade, assim como havia no Império Romano decadente,
porque havia desaparecido a unidade universal, porque a política estava universalmente
desprovida de princípio, de ação, de confiança e o pensamento se refugiou na forma do
direito privado. Tendo desaparecido o que era essencial por natureza, o bem-estar
individual foi promovido a bem supremo. O mesmo está acontecendo agora. Pontos de
vista morais, opiniões e convicções individuais sem verdade objetiva se transformaram em
autoridade e a busca de direitos privados e seu desfrute estão na ordem do dia. A chamada
“consciência cívica” é o pensamento burguês. Caracteriza-se por se preocupar somente
com o interesse individual, sem a preocupação com o todo ou com o interesse geral.
Quando não há justificação pelo Conceito, não existe mais a unidade interior e exterior na
consciência imediata, no mundo real. Nada se justifica. A rigidez de um comando objetivo,
de uma direção externa – o poder de Estado – nada pode fazer, porque o processo de
decadência é muito profundo.
Quando o tempero perdeu todo o sabor, quando todos os fundamentos foram tacitamente
removidos, o povo não sabe mais que rumo dar a seus impulsos, emoções e sentimentos. A
solução será dada pelo próprio mundo – esta não é uma tarefa imediata da Filosofia.