Resumo: As peculiaridades da Atenção Básica requerem que a prática clínica e o equacionamento moral neste nível da assistência
sejam redirecionados, a fim de ampliá-los e desfocá-los do hospitalocentrismo e da especialização que marcam o sistema de saúde e a
formação dos profissionais. Buscando avançar nas reflexões da interface entre a Bioética e a Atenção Básica, este artigo argumenta que
a clínica ampliada própria para este nível da assistência à saúde requer uma amplificação da bioética clínica, com a conjugação dialética
e hermenêutica de direitos e responsabilidades, por meio da ética do cuidado.
Palavras-chave: Atenção primária à saúde. Bioética. Humanização da assistência.
Abstract: The peculiarities of Basic Care require that clinical practice and moral equating in this level of assistance be redirected in
order to extend them and change their focus from the hospital setting and the specialization that imposes on the health system and
professional training. In order to go further into reflections of the interface between Bioethics and Basic Care, this article argues that
the extended clinic appropriate for this level of health assistance requires an amplification of clinical Bioethics, with dialectical and
hermeneutical integration of rights and responsibilities by means of an ethics of caring.
Keywords: Primary health care. Bioethics. Humanization of assistance.
Resumen: Las particularidades del cuidado básico requieren que la práctica clínica y el compromiso moral en este nivel de ayuda sean
redirigidos para ampliarlas y cambiar su foco del ambiente del hospital y de la especialización que se imponen al sistema de salud y el
entrenamiento profesional. Para avanzar en las reflexiones del interfaz entre la bioética y el cuidado básico, este artículo sostiene que
la clínica extendida apropiada para este nivel de ayuda a la salud requiere una amplificación de la bioética clínica, con la integración
dialéctica y hermenéutica de los derechos y de las responsabilidades de promedio la ética del cuidar.
Palabras Llave: Atención primaria de salud. Bioetica. Humanización de la atención.
A Atenção Básica é o primeiro do esse encontro se personaliza e usuário e um profissional), que, co
contato do usuário do SUS (Siste- se personifica na clínica que acon- mo dignas e cidadãs, são iguais no
ma Único de Saúde) com a rede tece cotidianamente nas Unidades devido mérito de respeito; porém,
de serviços de assistência à saúde. Básica de Saúde (UBS), o giro que mesmo distintas quanto às suas
Presentes neste encontro há dois se dá é que são duas pessoas que biografias e quanto ao momento
cidadãos: um que usufrui um bem se encontram e será nesse encon- do processo saúde-doença em tela,
público por direito (usuário) e ou- tro intersubjetivo que acontecerá precisam de um diálogo, com base
tro que tem a responsabilidade de a atenção à saúde e se efetivarão, na igual dignidade, para bem cui-
distribuir e promover o acesso ao ganharão vida e corpo os princípios dar. São dois iguais em situações
usufruto desse bem; base de leitu- da Política de Saúde, especialmen- distintas, que em um encontro
ra para as questões da assistência te um dos sentidos da integralida- intersubjetivo têm a correspon-
como política pública, com base na de. É nessa nuance do fenômeno sabilidade de construir o cuidado,
justiça distributiva e na equidade, da atenção à saúde no SUS que se trocando fatos, emoções, sentimen-
que é um dos princípios do SUS. centra este artigo. tos, crenças, enfim, muito mais que
Mas esta é apenas uma das facetas Nos encontros de cuidado, es- apenas os dados dos sinais, sinto-
desse complexo fenômeno. Quan- tão, no mínimo, duas pessoas (um mas e resultados de exames. Daí
* Enfermeira. Mestre em Bioética pela Universidade do Chile e Programa Regional de Bioética para a América e Caribe OPAS/OMS. Doutora em Saúde Pública pela
Faculdade de Saúde Pública da USP. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo.
E-mail: elma@usp.br
poder se dizer que se trata de um peculiaridades dos vocábulos ‘pri- integralidade e na inserção so-
encontro de intersubjetividades. mária’ e ‘básica’, que têm chama- ciocultural e busca a promoção
Isso é bem sabido, tem sido do minha a atenção nas pesquisas de sua saúde, a prevenção e tra-
objeto constante da produção em que venho desenvolvendo sobre a tamento de doenças e a redu-
saúde coletiva no País1,2,3 e tanto interface deste nível da assistência ção de danos ou de sofrimentos
que, como veremos mais adiante, para a bioética e, também, apontar que possam comprometer suas
a concepção de Atenção Básica que como a produção em Saúde Cole- possibilidades de viver de modo
o Ministério da Saúde Brasileiro4 tiva vem usando os termos Aten- saudável” (p. 10)4.
(MS) adota para o SUS inclui uma ção Básica e Atenção Primária. Como os fundamentos da
série de valores contrafácticos, fru- Essa breve discussão tem o único Atenção Básica, o MS inclui: pos-
tos destas reflexões e discussões. propósito de dar ênfase à questão sibilitar, com base na equidade e
Entretanto, pelo fato da bioética dos valores que são incorporados como porta de entrada preferen-
ter se dedicado mais às questões de na proposição adotada pelo SUS e cial do sistema de saúde, o acesso
ponta da assistência terciária e da não pretende argumentar em con- universal e contínuo a serviços de
bioetecnologia, ainda são poucas tra ou favor do uso ou da proscrição saúde de qualidade e resolutivos;
as discussões das implicações des- de quaisquer dos termos. efetivar a integralidade da assis-
sas questões para este novo campo A documentação oficial do MS tência em seus vários aspectos;
do conhecimento, para esta nova delimita a Atenção Básica como desenvolver relações de vínculo e
forma de fazer a ética em saúde. “um conjunto de ações de responsabilização entre as equipes
Bem como são ainda tímidas as saúde, no âmbito individual e e a população adscrita; valorizar
contribuições da bioética para es- coletivo, que abrangem a pro- os profissionais de saúde; realizar
te âmbito da atenção à saúde. Isso moção e a proteção da saúde, a avaliação e acompanhamento sis-
tem resultado na hegemonia do prevenção de agravos, o diag- temático dos resultados alcançados;
principialismo como referencial nóstico, o tratamento, a rea- estimular a participação popular e
de análise da bioética e resulta que bilitação e a manutenção da o controle social4.
para as peculiaridades da Atenção saúde. É desenvolvida por meio Claro está que as ações da Aten-
Básica esse referencial tem se mos- do exercício de práticas geren- ção Básica referem-se aos âmbitos
trado insuficiente5,6. ciais e sanitárias democráticas individual e coletivo da assistência
Este artigo de reflexão tem o e participativas, sob forma de à saúde, com uma abrangência
propósito de avançar nesta discus- trabalho em equipe, dirigidas a que inclui a promoção e proteção
são, trazendo a proposta do que populações de territórios bem da saúde; a prevenção de agravos;
chamamos a amplificação da bioé- delimitados, pelas quais assu- o diagnóstico, tratamento, reabi-
tica clínica, por conjugar, de ma- me a responsabilidade sanitária, litação e manutenção da saúde.
neira dialética e hermenêutica, as considerando a dinamicidade De onde parece fazer sentido que
vozes éticas do cuidado e da justiça existente no território em que discutamos a questão da clínica e
para a clínica ampliada própria da vivem essas populações. Utiliza suas finalidades na Atenção Básica,
Atenção Básica. tecnologias de elevada comple- já que a atividade concreta e indi-
xidade e baixa densidade, que vidual dos profissionais de saúde
Atenção Básica ou Atenção devem resolver os problemas junto às pessoas de quem cuidam
de saúde de maior frequência e é a “clínica”.
Primária?
relevância em seu território. É o A palavra clínica procede do
Ainda que a documentação contato preferencial dos usuá- grego klyne. Seu sentido mais co-
oficial do Estado adote a nomen- rios com os sistemas de saúde. mum era “cama”. Clínica é a ativi-
clatura Atenção Básica, os termos Orienta-se pelos princípios da dade que se realiza ante a cama do
Atenção Básica e Atenção Primária universalidade, da acessibilida- paciente, do enfermo. A clínica é
são, muitas vezes, usados indistin- de e da coordenação do cuida- sempre uma atividade concreta e
tamente como sinônimos ou cor- do, do vínculo e continuidade, individual, que visa, diagnosticar,
respondentes. Sem adentrarmos o da integralidade, da respon- tratar e fazer o prognóstico de um
campo complexo da origem e sig- sabilização, da humanização, enfermo, um paciente concreto,
nificado das palavras, para o que da equidade e da participação determinado e identificado. Nisso
me faltam os conhecimentos ne- social. A Atenção Básica con- a clínica se diferencia da patolo-
cessários e seria leviana qualquer sidera o sujeito em sua singu- gia, que é o estudo das chamadas
afirmação, vou assinalar algumas laridade, na complexidade, na espécies morbosas ou universais
adjetivo, significa “primeiro em essencial, fundamental, precípuo, e inclui artigos sobre mortalidade,
ordem de tempo ou desenvol- primacial, primeiro, primordial, avaliação de programas, doenças,
vimento” (“first in order of time or substancial. Para ‘necessário’ tem-se agravos, atividades gerenciais,
development”), primeiro de uma como sinônimos: básico, essencial, acesso, territorialização, práticas
escala, em importância ou valor” exigido, forçoso, fundamental, im- profissionais, análise de políticas
(“of first rank, importance, or value”). perioso, imprescindível, inevitável, públicas, modelos de atenção à
Como sinônimos de primary, apa- indeclinável, indispensável, insubs- saúde, referência a Saúde da Famí-
recem básico (basic), fundamental tituível, obrigatório, oportuno, pre- lia, contextualização no SUS. A au-
(fundamental), principal (principal). ciso, reclamado, requerido, urgente, tora assinala que Atenção Primária
(http://www.merriam-webster.com/ útil, vital. aparece mais em artigos relativos à
dictionary). Tomando esta exploração dos expansão da cobertura e propostas
Ao buscarmos a palavra ‘primá- termos no dicionário, cujos limi- de contenção do financiamento, le-
rio’ no dicionário da língua portu- tes reconheço, embora enquanto vando a que pressupostos éticos do
guesa, lê-se que, como adjetivo, ‘principal’, ‘básico’ e ‘primário’ SUS, que se define como univer-
significa: “que vem antes; primeiro, correspondam-se pela sinonímia sal, equânime, inclusivo e integral,
primitivo, original”, “que constitui em comum para primeiro, parece fiquem obscurecidos pelo ideário
ou pertence ao primeiro estágio de que até para sermos mais fiéis ao neoliberal de cunho racionaliza-
um processo, de uma doença etc.”, dor de gastos, com a focalização,
sentido de primary no inglês, seria
“sem complexidade; simples, fá- o baixo custo, o pacote mínimo e
preferível o uso da expressão ‘Aten-
cil, elementar”. Os regionalismos excludente.
ção Básica’. Dessa forma, também
registrados para a palavra deno- É claro que o artigo de Gil11 não
fica incluído o sentido de imperio-
tam conotações ‘perigosas’ para contempla todos os aspectos recen-
so e indeclinável, que representam
qualificar a atenção em saúde, por tes, por ter sido publicado há quase
fortes implicações para a justiça em
três anos. Mas, seja ou não pelos
expressarem sentidos negativos de saúde e, consequentemente, para a
motivos apontados pela autora, pa-
‘primário’. Um dos regionalismos equidade no SUS.
rece que o uso de ‘Atenção Básica’
identifica primário com “sem con- Para acrescentar mais um pon-
nos títulos dos artigos vem sendo
sistência ou grandeza; mesquinho, to a esta contrastação de ‘primária’
preferido pelos autores, em detri-
superficial”, outro com “insufici e ‘básica’ na atenção à saúde, ve- mento de ‘Atenção Primária’.
ente instrução ou capacidade inte- jamos o uso de Atenção Primária Em uma busca bibliográfica na
lectual; limitado, estreito, bronco”, e Atenção Básica nas publicações Biblioteca Virtual de Saúde (BVS),
um terceiro ainda o relaciona com científicas. feita para este artigo com os termos
“que demonstra rudeza, falta de O descritor de saúde é ‘Atenção ‘Atenção Básica’ e ‘Atenção Primá-
cultura, de sofisticação; grosseiro, Primária à saúde’, sendo a ‘Atenção ria’ nos títulos dos artigos (limites
rude, primitivo”9. Básica’ registrada como seu sinôni- língua portuguesa e país de pu-
Para a palavra ‘básico’, encontra- mo no português (http://decs.bvs.br/ blicação Brasil), pôde-se observar
se no dicionário “que faz parte da cgi-bin/wxis1660.exe/decsserver/)10. uma tendência na frequência dos
base; basilar”. De onde deriva, por Ainda assim, Gil11 em uma revi- termos mais favorável, atualmente,
metáfora, “mais importante; funda- são de literatura do uso das expres- ao uso de ‘Atenção Básica’. Entre
mental, primordial, essencial”. Não sões ‘Atenção Primária’ e ‘Atenção 1981 e 2009, foram encontrados
se registram regionalismos9. Básica’, encontrou que estes são 278 artigos com ‘Atenção Básica’
Ao considerarmos os sinônimos usados ora como sinônimos ora no título e 200 com ‘Atenção Pri-
para ambos, no caso de ‘primário’ como contraposição. Atenção Pri- mária’. Saliente-se que o primeiro
remete-se à sinonímia ‘primeiro’. mária costuma ser mais usada em registro com ‘Atenção Básica’ é de
Naquela encontramos “começan- estudos de avaliação de programas 1989 e que em 2009 não há regis-
te, inaugural, incipiente, inicial, (pré-natal, puericultura, aleita- tro de artigos com ‘Atenção Pri-
iniciante, iniciativo, preambular, mento materno), nos artigos sobre mária’ (levantamento feito em 02
primário”. Básico não figura na problemas de saúde (diabetes, hi- de março de 2009). Com ‘Atenção
lista de sinônimos para primeiro. pertensão, transtornos mentais, as- Básica’ já há três registros em 2009.
Para a palavra ‘básico’, o dicionário ma), agravos (violência doméstica, A partir de 2000, nota-se um pre-
remete à sinonímia de ‘necessá- aborto), questões gerenciais (siste- domínio de artigos com ‘Atenção
rio’ e ‘principal’. Ao verificarmos mas de informação, gerência, pro- Básica’ no título, por exemplo, em
em ‘principal’, encontra-se, dentre cesso de trabalho). Atenção Básica 2008, foram 36 contra apenas 11
outros, básico, cardeal, cardinal, tem maior diversificação dos temas com ‘Atenção Primária’.
Parece que a expressão ‘Aten- Da clínica à ética e da ética hipertensão e a redução do risco
ção Básica’ tem sido preferida, à clínica: as peculiaridades de que venha a ter agravos cardio-
embora falte saber os motivos. Há vasculares e, a consequente dimi-
da Atenção Básica
algumas pistas. A mais evidente nuição da incidência desse tipo de
pode ser a adoção desta expressão Se a Atenção Básica considera o agravo na população em que estão
como a ‘oficial’ nos documentos da sujeito em sua singularidade, com- os indivíduos tratados13. Ou seja,
Política Pública de Saúde no Brasil, plexidade, integralidade e inserção avaliam-se, medem-se os resulta-
como vimos. sociocultural, é claro que a clínica dos das intervenções, expressos em
Seja como for, para este artigo tem que se ampliar para poder dar índices e indicadores.
advogo o uso de ‘Atenção Básica’ conta desta abrangência. Por sucesso prático, o autor
por entender que o qualificativo Assim, o pressuposto implíci- considera a face valorativa, as im-
‘primária’ pode levar à compreen- to e aprendido pelos profissionais plicações simbólicas, relacionais
são equivocada de que este nível da de que a centralidade do trabalho e materiais que decorrem da es-
assistência seria simples, incipiente, em saúde está nos procedimentos, timação das ações em saúde. Por
inicial, preambular, o que, vimos, exames e medicações adequados exemplo: o que significa na vida de
não é o pautado para a Política Pú- a cada patologia vê-se abalado na um usuário ou de uma população
blica de Saúde no País, e tampouco Atenção Básica. Neste nível da as- a identidade de hipertenso; o que
corresponde à realidade ou ao de- sistência, o diagnóstico e a respec- significa conviver com a doença,
sejo dos que trabalham para a cons- tiva conduta, quando acontecem, mudando hábitos arraigados, to-
trução do SUS. são apenas uma parte do projeto mando remédios, fazendo con-
Se adjetivo é o que qualifica o terapêutico12. troles periódicos, sentindo o risco
substantivo, modificando-o, e se os presente de um infarto do miocár-
A assimetria entre profissionais
adjetivos ‘básico’ e ‘primário’ têm dio, um acidente vascular cerebral
e usuários produzida nas institui-
as diferenças apontadas, estas, em- etc.13. Ou seja, está em pauta, tam-
ções hospitalares não é a mesma
bora sutis, parecem indicar que a bém, o processo de cuidado e não
que ocorre na Atenção Básica. A
atenção à saúde vê-se acrescida de apenas seus resultados.
submissão do usuário é infinita-
qualidades diferentes ao ser qualifi- O quadro da página seguinte,
mente menor, já que a aplicação
cada por ‘primária’ ou ‘básica’. adaptado de Cunha12 com a incor-
das condutas depende dele mesmo,
É claro que esta questão precisa poração destas distinções de Ayres,
longe do profissional e do serviço
ser melhor estudada e aprofundada mostra as peculiaridades da Aten-
por meio de revisões sistemáticas e de saúde. O usuário está com mais ção Básica quando confrontada
estudos empíricos. Todavia, para o liberdade, mais controle autônomo com a atenção hospitalar.
escopo deste artigo, o propósito era de seu cuidado. Por isso, torna-se Embora ambas atenções, hos-
apenas levantar a questão para jus- impossível cuidar e intervir nos pro- pitalar e básica, possam e precisam
tificar, de maneira argumentativa, blemas de saúde sem a participação ser humanizadas, terão sempre su-
a preferência pelo termo, em por- e compreensão das pessoas, e esta as peculiaridades. E o olhar ético e
tuguês, Atenção Básica, com vistas tem de ser conquistada e cultivada, clínico que é bom e próprio para a
a fundamentar a compreensão des- o que implica disposição atitudinal e atenção hospitalar, não será para a
te nível da assistência à saúde não preparo técnico para a escuta e diá- Atenção Básica. Parece que a esta
como simplificada focalização, mas logo. Ou seja, novos saberes e nova altura do artigo, já temos isso bem
como algo imperioso, essencial, ne- ética para a aceitação do outro em claro e justificado.
cessário, fundamental, imprescin- uma relação intersubjetiva12. Por isso o olhar clínico na Aten-
dível, indeclinável, indispensável, No cuidado na Atenção Básica, ção Básica tem de se ampliar para
insubstituível, requerido, urgente, ocorrem a copresença e a inter-re- propiciar o entendimento do su-
útil e vital. Podem parecer sutilezas lação entre saberes instrumentais jeito em sua singularidade, com-
semânticas, mas a linguagem é a e saberes práticos, como proposto plexidade, integralidade e inserção
forma como nos expressamos e nos por Ayres, sendo oportuno tomar sociocultural e para pactuar os acor-
manifestamos no mundo, incluin- a distinção que o autor faz entre dos no projeto e processo de cuida-
do aqui a expressão dos horizontes êxito técnico e sucesso prático. do. Desafio para os profissionais que
éticos que almejamos. E ‘básico’ Por êxito técnico refere-se à face seguem tendo no hospital seu lócus
e ‘primário’ parecem trazer para instrumental da ação, por exem- privilegiado de formação, na lógica
o cenário da assitência horizontes plo, a indicação do uso de um va- médico-centrada e hospitalocêntrica
éticos, em certa medida, distintos. sodilatador para uma pessoa com que marca a produção em saúde.
do profissional para com o usuário Potter17, ao adjetivar a bioética saúde em dupla função: de perito
não é uma situação rara. O usuário como Bioética Global, radicava-a e de conselheiro, no compartilhar
recusa-se às indicações médicas e em uma compreensão responsável de uma jornada. Faz conviver nos
os profissionais dizem que não con- da ética, fundamentada na combi- encontros a técnica, a efetividade e
seguem informar o paciente de ma- nação de direitos e responsabilida- a eficácia em um clima de empatia,
neira a pactuar sua adesão. A falta des. Entendia a bioética muito mais compaixão e cuidado.
de companherismo e o desrespei- como uma questão de responsabi- Waldow 18 lembra-nos que o
to entre os profissionais de saúde lidades mútuas do que direitos, e cuidado requer que, de maneira
também aparece como um proble- sua prioridade máxima era a busca “transpessoal”, nos esforcemos,
ma ético, especialmente quando é da saúde para todos e não somente no sentido de proteger, promover
difícil delimitar os papéis e respon- para uns poucos escolhidos. Ali- e preservar nossa humanidade. Na
sabilidades de cada um5,6. ás, esta foi uma das preocupações atenção à saúde isso significa ajudar
Assim, para as peculiaridades que o moveu para propor o termo as pessoas a encontrarem significa-
da Atenção Básica não apenas a ‘Bioética’, nos anos 70. do na doença, no sofrimento e na
prática clínica requer redireciona- Na articulação de direitos e dor, enfim, na própria existência.
mento, mas também o equaciona- responsabilidade, a ética do cuida- De maneira geral, cuidado se
mento ético. É urgente desfocá-los do faz-se essencial. A consciência faz presente em toda ação que
do hospitalocentrismo e da alta profissional nos impele a desem- contribua para a promoção e para
especialização que marcam a con- penhar as tarefas com excelente o desenvolvimento do que faz bem
formação do sistema de saúde e a esmero e a observar as normas e viver as pessoas. O cuidado, em um
formação dos profissionais e levá- regras movidos por um dever, em sentido amplo, pode ser entendi-
lo para a riqueza da biografia das certa medida, externo, quase alheio do como tudo que contribui para
vidas. Precisamos de novos saberes, à autonomia, que é o que torna a a promoção e para o fomento da
novos instrumentais, nova ética, ética verdadeiramente ética. Um vida e da saúde. Cuidar é um ato
compromisso responsável de cui- de vida e para a vida, pois, de fa-
poderíamos dizer. A esta última,
dado levará à promoção das pes- to, tudo que não é cuidado morre:
que chamaremos bioética clínica
soas, respeitando e promovendo a as plantas, os animais e as pessoas.
amplificada, vamos dedicar a pró-
expressão autonômica, a realização Também as relações, se não forem
xima seção desse artigo.
e potencializaçao das capacidades, cuidadas fenecem: a amizade; o
a cidadania e a saúde para todos, amor conjugal; as relações fami-
Bioética clínica amplificada: em um nível compatível com a dig- liares; a relação da equipe profis-
cuidado e responsabilidade nidade humana. sional; a relação com o usuário; a
Passemos, então, a uma breve relação com as chefias etc.
As peculiaridades da assistên- reflexão sobre cuidado e respon- Cuidado deriva do latim cura
cia na Atenção Básica conferem sabilidade como componentes da ou, em sua forma mais antiga,
aos seus aspectos éticos sutileza e, bioética clínica amplificada. coera. Era usada em um contexto
muitas vezes, dificuldades para dis- Cuidar é ir ao encontro de outra de relações de apreço e amizade
tinguir os conflitos morais que po- pessoa para acompanhá-la na pro- para expressar atitude de cuidado,
dem intervir na relação clínica com moção de sua saúde, a partir da cria- desvelo, preocupação e inquieta-
o risco do rompimento da relação ção, cultivo e manutenção de laços ção por uma pessoa querida ou
vincular com os usuários e no tra- de confiança e vínculo. A equipe de por um objeto de estimação. Ou-
balho da equipe5,6. Isso pode acabar Atenção Básica e cada um dos seus tra origem da palavra cuidado é
por comprometer os propósitos da integrantes mostram-se como pes- cogitare-cogitatus, que significa cogi-
Atenção Básica. soas que podem amparar e acom- tar, pensar, colocar atenção, mos-
Para lidar com os aspectos éticos panhar o usuário, observando sua trar interesse, revelar uma atitude
da Atenção Básica, é preciso um re- singularidade, identificando seus de desvelo e preocupação. Ou se-
forço da sensibilidade e do compro- recursos e procurando, com ele, a ja, em seus primórdios, ‘cuidado’
misso éticos, em uma reviravolta via de ação que faça sentido em sua já carregava e unia dois sentidos:
ética com uma prática marcada pe- situação e para seu projeto de vida. a atitude de desvelo, solicitude e
la humanização, cuidado e cidada- Em outras palavras, o profis- atenção para com o outro e a preo-
nia; uma prática responsável e de sional que se move pela ética do cupação e inquietação que advém
cuidado empenhada na promoção cuidado caminha com a pessoa de do envolvimento, da ligação afeti-
da saúde e de vida boa para todos. quem cuida para promover sua va, do sentir-se responsável pelo
outro e da necessidade de acolhê-lo, soa é pessoa somente quando está te e futura. Ser responsável é agir
pois nos reconhecemos inseridos, ante outra pessoa. Estar frente a de maneira prudente. E para agir
partícipes e codependentes de uma frente, pessoa a pessoa constitui a prudentemente é preciso tomar de-
rede de vida, entrelaçados em um relação práxica de proximidade, de cisões depois de deliberar respon-
todo orgânico, complexo, dialético afinidade entre as pessoas que faz savelmente, analisando os fatos,
e complementar. Os seres humanos possível a revelação do outro. Mas, valores e deveres de cada situação.
formam uma teia de relações vitais não como esse outro está dentro do A deliberação é que propiciará os
das quais são corresponsáveis e co- sistema. Ao contrário, a proximi- argumentos razoáveis para a justi-
dependentes e podem potenciar a dade práxica é capaz de desvelar o ficação dos cursos de ação a serem
vida ou ameaçá-la19,20. outro justamente como o que ele seguidos. Isso, entretanto, não
Carol Gilligan21 afirma que na não é no sistema, mas poderia e significa que não podem ocorrer
ética do cuidado é essencial a cons- mereceria sê-lo por sua condição de equívocos, com resultados e con-
ciência da conexão entre as pessoas pessoa digna, chamada à liberdade sequências não desejados, mas se a
que reconhece a responsabilidade e libertação. A alteridade na ação decisão foi deliberada por um juízo
de uns pelos outros e a comunica- de saúde deve, pois, revelar o rosto ponderal, ainda nos casos negati-
ção como o modo de solucionar os do outro alienado, escutar sua voz vos, seremos capazes de justificar
conflitos. e se tornar saída para sua exterio- nossas escolhas23.
Na saúde, o desafio consiste em, ridade, afirmando, na práxis, a sua A responsabilidade tem em
sob a égide da alteridade, encontrar prioridade22. conta os princípios e as normas,
mediações técnicas, procedimentos O cuidado, como atitude de mas também as circunstâncias e as
e instrumentos, bem como condi- preocupação e desvelo pelo ou- consequências. A responsabilidade
ções organizacionais e do processo tro, tem na alteridade seu móbil. busca o universalismo, mas consi-
de trabalho, para fazer com que, Assim, se quanto a sua finalidade dera o contexto24.
dentro dos limites e do alcance das o cuidado não é qualquer tipo de Carol Gilligan21 apontou a im-
situações particulares do contexto ação, mas tudo que promove vida portância da responsabilidade na
em que a Atenção Básica torna-se e saúde, também quanto a sua na- ética. Para a autora, na visão da
realidade, o cuidado não seja traído tureza é um tipo de ação especial. ética do cuidado, as questões éticas
ou negado, e sim concretizado da É uma ação práxica de alteridade, originam-se de responsabilidades
melhor forma possível. promotora de vida e saúde, fomen- conflitantes e não de pendências de
A pessoa vista como abertura, tadora de possibilidades e capaci- direitos, requerendo para sua reso-
relação, comunicabilidade é a base, dades, na qual todos os envolvidos lução um modo de pensar contex-
o fundamento preliminar da alte- são e veem-se como humanos, tual e narrativo. Uma concepção de
ridade, que deriva do latim, alter, constroem-se como pessoas. ética baseada na ação de cuidado,
outro. Constituímo-nos pessoas E a interdependência remete- como já delimitada, centra-se em
pela intimidade, proximidade e nos à responsabilidade. Se nos torno da compreensão da respon-
abertura, assim, alteridade entra na dependemos mutuamente, se in- sabilidade e das relações intersub-
definição de pessoa. Por isso, todo tersubjetivamente construímos a jetivas21.
compromisso ético, toda reflexão ação ética de cuidado, temos que Uma ética focada nos direi-
ética e toda conduta ética funda- ser capazes de render contas, de tos fundamenta-se na igualdade
mentam-se no valor e na dignida- justificar de maneira razoável nos- e centra-se na compreensão da
de da pessoa. A alteridade corrige sas escolhas, ante nós mesmos e os imp arc ialidade para equilibrar
uma visão individualista e abstrata outros. Afinal, a ética ou é autôno- as reivindicações dos outros e as
do personalismo e resgata o sujeito ma ou não é ética. E, sendo autô- próprias. Uma ética da responsa-
real concreto22. Também realinha o noma, requer responsabilidade. E bilidade assenta-se no conceito de
encontro do profissional de saúde não responsabilidade em um sen- equidade, no reconhecimento das
com o usuário para seu eixo mais tido jurídico, como costuma ser diferenças nas necessidades, em
crucial: uma relação inter-pessoal, entendida especialmente na ética uma compreensão que dá origem
quando um e outro encontram-se profissional, que corresponde à res- à compaixão e ao cuidado21. A ética
e se tratam como pessoas dignas, ponsabilidade de sofrer uma pena do cuidado consiste no vínculo en-
em uma relação de ajuda. por um erro cometido ou reparar tre direitos e responsabilidades, no
A alteridade é uma ação práxi- por danos causados. Tampouco ser seio das relações intersubjetivas.
ca. Tornamo-nos pessoas em uma responsável significa carregar nas Assim, cuidado e responsabili-
relação da práxis. Isto é, uma pes- costas toda a humanidade presen- dade parecem intrinsecamente ar-
ticulados. E estariam o cuidado e a Na Bioética Global, com base menos contextualmente imbrica-
responsabilidade, de alguma forma, nos concepções de Aldo Leopold, dos. E precisam ser praxicamente
relacionados com a bioética? Potter17 ressalta a conexão e inter- articulados e realizados na atenção
Para Gracia23, não resta dúvida dependência de todas as formas a saúde, especialmente na Atenção
que a bioética nasceu e se desen- de vida na “comunidade Terra”. E Básica.
volveu dentro da mentalidade das complementa, que no seu enten-
éticas da responsabilidade. dimento, “como Carol Gilligan,
E de fato. Potter17 radica a Bioé- Leopold estava preocupado mais Considerações finais
tica Global na compreensão da com responsabilidades do que com
ética da responsabilidade. Para o direitos”17, coincidindo ambos no A Atenção Básica, pelas pecu-
autor, a responsabilidade inserida entendimento de que os problemas liaridades que já foram descritas,
no bojo da Bioética Global torna-se morais decorrem mais de respon- requer uma bioética clínica amplifi-
“cabeça-de-ponte” para os esforços, sabilidades em conflito do que de cada que articule responsabilidade
de homens e mulheres, que alme- confrontos de direitos individuais: e direitos, na ponte do cuidado.
jam promover o bem-estar e a so- Para o autor, a Bioética Global con- Não só requer, mas apresenta-se
brevivência da comunidade Terra. sistia no resultado lógico do impac- como campo profícuo para que esta
Defende que a Bioética Global deve to do ponto de vista do cuidado na bioética clínica amplificada aconte-
estar fundamentada na combina- bioética médica e na bioética eco- ça e se desenvolva, pois o cuidado
ção de direitos e responsabilidades, lógica. opera no modo narrativo e contex-
dimensões não mutuamente exclu- Parece, então, que cuidado, tualizado, próprio da operacionali-
sivas e/ou excludentes, mas partes responsabilidade e bioética estão, zação da clínica ampliada que se dá
de um continuum bipolar17. se não intrinsecamente unidos, ao na Atenção Básica.
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