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Sobre a Alegria

À memoria de Olímpio Ferreira

Maria Filomena Molder

O vaso
Em primeiro lugar, a alegria é um vaso onde se guarda aquilo que jamais se
poderá prender, mas que vem ao nosso encontro, a experiência imediata trans-
figurada em recordação. O vaso é inquebrável e poroso, é inquebrável porque
poroso, resultado daquela transfiguração: as mudanças do céu numa tarde de
aguaceiros, roupa a secar ao vento, os movimentos bruscos, ancestrais, secretos
e cómicos dos melros em acasalamento, a coisa que perdemos e desistimos de
procurar e um belo dia nos cai nas mãos. O tema é goethiano (Viagem a Itália).

Já passou, vai passar…

[…] não seria toda a doença curável se se deixasse arrastar o mais longe possível —
até à foz — pela corrente da narração? Se imaginarmos que a dor é um dique que
resiste à corrente da narrativa, verificaremos claramente que ele será derrubado se
a inclinação for suficientemente forte para arrastar para o mar do esquecimento
feliz tudo o que encontrar pelo caminho. A mão que acaricia traça o leito desse rio.
Walter Benjamin, «Conto e cura», Imagens do pensamento1

Cheios de alegria, privados de toda a esperança


Há uma certa forma de cepticismo que não força qualquer inimizade com a
alegria, aquela forma em que a esperança se assemelha à escultura de Andrea
Pisano com o mesmo nome que está em Florença. Benjamin (Rua de Sentido
Único) viu-a por nós: «florença, baptistério. No portal, a «Spes» (Es-
perança) de Andrea Pisano. Está sentada e ergue, desesperada, os braços para
um fruto que não alcança. E, no entanto, é alada. Nada de mais verdadeiro»1.

1 Cita-se a tradução de João Barrento (Assírio & Alvim, 2004).

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O desespero, o modo como a esperança ergue os braços, é o sinal apenas de
que a desproporção de viver implica contracção, fechamento. O inalcançável
é o teor do seu contraste. Por sua vez, embora conheçam alturas que os bra-
ços não alcançam, as asas não estão preparadas para a contracção. Nada de
mais verdadeiro, conclui Benjamin, sem amargura. Essa é, paradoxalmente, a
condição preparatória, para privados de esperança (criadora de asas que não
vencem os braços, isso que nos foi dado), podermos vir a ficar cheios de alegria.
O verso que dá o título a esta secção foi escrito por Hermann Broch em Die
Schuldlosen.

Lentidão e eternidade
Talvez a melhor decifração da palavra de Keats: «A thing of beauty is a joy
forever» seja uma outra de Nietzsche (Humano, demasiado humano): «A len-
ta flecha da beleza», em que vemos dar-se uma transição da eternidade para
a lentidão. Eis o mais nobre tipo de beleza: aquela beleza que cada «pessoa
traz consigo» e «uma vez mais vem ao seu encontro» em certos momentos de
esquecimento, de distracção, de abandono (Nietzsche chama-lhes «sonhos»),
uma beleza que não arrebata, mas se insinua sem pressas, aquela que volta a
fazer bater o coração e depositada nele «toma inteiramente conta de nós».
Por isso ela, do mesmo modo que o bater do coração, contrai-se e expande-se:
sentimos anseio e deixamos cair as lágrimas.

Argumentos e contra -argumentos


Há quem se esforce por arranjar razões contra a consistência, a possibilidade
e a realidade da alegria. O argumento é mais ou menos este: não basta tê-la
conhecido um dia, é preciso que ela dure sempre, o que leva em muitos casos
a preferir a vida depois da morte à vida que sempre a antecede. Contra a dor
nenhuma teoria vale, nenhum argumento sossega o coração inquieto. Como
nos diz Ceronetti em Il silenzio del corpo: «A inteligência isolada, quando
engendra infernos, pode no máximo ser capaz de os analisar; não pode elevar
uma barreira de frescura contra a dor.» Contra a enxurrada da dor, só vale
o dique da alegria, uma história que alguém nos conta, uma história que nos
contamos a nós próprios. Ao contrário da dor, para a qual as explicações se
despenham inexoravelmente diante de nós, a alegria carece de explicação, mas
pede disposição e disciplina.
«Nada de novo sob o sol» é o grito que sai da boca que anestesiou qual-
quer experiência de repetição gratificante e apagou os contrastes que permitem

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o retorno do bem esperado — a alegria — num esforço de esvaziamento de que
resulta uma estrutura formal sentimentalmente venenosa: o lamento de que
tudo seja vento famélico, fumo. Qohélet não conhece a alegria. Pascal também
não: «A alma não encontra nela nada que a contente. Quando pensa nisso, ela
não vê nada aí que não a aflija.» 
Como combater aquilo que Pascal diz ser a única coisa que se vê na nossa
alma: a aflição que provoca enfronhar-se, despenhar-se, no tédio? Lembrando-
-se das dívidas que a alma tem para consigo própria, a saber, o amor de si (sem
o qual, segundo Hugo von Hofmannsthal, «não há vida que seja possível, nem
mesmo a mais leve decisão, apenas desespero e imobilidade») e perdoar a si
próprio, «mais raro do que deveria» adverte Alain. Exercícios que permitem
descobrir na alma a disposição para uma espécie dificílima de sabedoria: ousar
tomar o gosto (para o que é preciso atenção) no habitual, deixar-se inundar
lentamente, aos poucos, pela alegria.
Espinosa, segundo Alain, mestre da alegria, mostra que «não é porque me
aqueço que estou contente, mas é porque estou contente que me aqueço», isto
é, só há uma maneira de resistir ao frio, é ficar contente que ele venha (como
parece extravagante uma tal compreensão numa época em que tudo o que ven-
tos, marés, temperaturas nos trazem é submetido às mós dos pequenos siste-
mas de finalidades). É que se «algum de nós for à procura da alegria, é preciso
fazer primeiro provisão de alegria», conclui o melhor discípulo.

Louvor do hábito
Demoremo-nos na relação entre hábito — o retorno do que conhecemos, do
que conhecemos um dia e nos esquecemos, do que esperamos que retorne,
que volte para nós — e alegria. Nas Vermischte Bemerkungen [Observações
dispersas], surpreendemos, por contraste, essa associação do retorno do dia,
da repetição do que mudamente desejamos se repita, que conhecemos sob a
forma de hábito, à visão que proporciona alegria. A interrupção mais terrível
desse vínculo dá-se na visão catastrófica do mundo, aquela em que nada vol-
tará a nascer, aquela em que a luz do dia não regressará. Esse desabamento de
qualquer repetição, o poder hostilíssimo do que nunca mais se pode esperar, é
o Apocalipse. É dele que fala Wittgenstein.
«Toda a alegria da vida está fundada num retorno regular das coisas ex-
teriores. A alternância do dia e da noite, das estações, das flores e dos frutos, e
de todas as outras coisas que vêm ao nosso encontro periodicamente […] Eis
os verdadeiros recursos da vida terrestre», lê-se em Dichtung und Wahrheit.
É provável que Wittgenstein tenha lido a passagem.

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Que céu tão azul!
Nas Investigações Filosóficas Wittgenstein lembra-nos que, quando alguém diz:
«Que céu tão azul!», não olhamos para os seus olhos, mas para o céu, e mostra,
pedindo-nos para suspender quaisquer intenções filosóficas, que não nos ocor-
rerá pensar que a impressão do azul do céu nos pertença só a nós. Belo experi-
mento imaginativo, tão simples e certeiro, que contraria quaisquer argumentos
idealistas, qualquer supremacia divinizada da subjectividade, qualquer irreco-
nhecimento da inseparabilidade entre interior e exterior. Wittgenstein utiliza este
exemplo para desmontar as feéricas ilusões da incomunicabilidade solipsista.

Convém não esquecer


«Pelo sofrimento, o conhecimento», isto é, «sê prudente», «não confies no dia, na
sorte»; «nada depende de ti». Apesar da profundidade deste verso do 1º estásimo
do coro no Agamémnon de Ésquilo, recusamo-nos a admitir que esse conheci-
mento faça justiça à vida. O sofrimento, a dor, fazem ver qualquer coisa, mas
ocultam outra. Por isso, que a vida seja dor (visão que nos grandes pessimistas,
por exemplo, nos tragediógrafos, em Schopenhauer, Nietzsche ou Guido Cero-
netti, é sempre acompanhada de um intenso sentimento de compaixão, talvez o
sentimento supremo, o único que poderá evitar o mal), deixa-nos na boca o sabor
de uma falta, um amargor que pede outra coisa, e isto, porque nós lembramo-
-nos que já experimentámos outra coisa que não a dor. Convém não esquecer.

Rememoração e eterno retorno


No correctivo que acrescenta às palavras de Horkheimer (carta de 16 de Mar-
ço de 1937), Benjamin faz precisamente o esforço de não esquecer. Horkheimer
defende a tese de que a injustiça e a crueldade sofridas encerram inteiramente
aquele que as sofreu, ao passo que as alegrias sentidas se esvaem, num inaca-
bamento simétrico. Segundo ele, esta é a única consciência histórica admissível,
pois quem pensar de outro modo acredita no Juízo Final. A isto, diz Benjamin,
devemos contrapor que a história não é apenas uma ciência, a história implica
um movimento de rememoração que nos impede de manter fechados na dor
aqueles que foram as suas vítimas, isto é, temos de romper a medonha supera-
ção da temporalidade que os arrasta inexoravelmente para o esquecimento; e,
ao mesmo tempo, temos de libertar da condenação da efemeridade aqueles que
experimentaram a alegria. Num caso: arrancar do sem tempo, fazendo justiça
aos injustiçados. No outro: reconhecer o júbilo do efémero pela sua renovação:
voltar a dançar, a cantar, eternamente. O mito do eterno retorno é uma das

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aproximações mais poderosas ao «rival da dor», como lhe chama Colli (Dopo
Nietzsche), a alegria.

Temporalidades
A alegria é sempre breve, brevíssima, como os anjos de que Benjamin nos fala (ci-
tando a cabala judaica): seres criados unicamente para louvarem Deus e que du-
ram o instante do próprio acto de louvor. Por isso a sua lucidez é incomparável.
A dor parece eterna, duradoura, invencível. Porém, o conhecimento que
promove restringe drasticamente o poder de olhar. A lucidez que a dor trans-
porta pode queimar, fazer-nos cegos, imunes a tudo o que a possa contrariar.
Inclemência que tira a doçura da voz. Sempre que se possa, apague-se esta
combustão devastadora. Às vezes sobrevém uma distracção redentora. A visão
de que a vida é dor não é falsa mas torna-se falsa, e ainda mais, enganadora, se
omitir aquilo que a torna parcial.

O poder das imagens


Há quem veja a dor como uma enxurrada e há quem a veja como um dique
(ambas já citadas). É muito mais usual a primeira imagem. As duas imagens
não são equivalentes e os pontos de vista que as engendram não coincidem. Na
primeira, vemos a dor como força que se despenha sobre a vida, que arrasta
a vida; na segunda, a alegria é uma corrente que inunda. Na verdade, não po-
demos ser inundados, banhados, inebriados, pela dor. Isso é coisa da alegria.
Surpreendemos uma espécie de equivalência desta desproporção na tradu-
ção incorrecta de Et in Arcadia ego — comum a partir do séc. XVIII —, que
subverte inteiramente o elemento elegíaco. Em vez de «também na Arcádia,
na terra onde escorre o leite e o mel, eu, a morte continuo a ferir os mortais»,
temos: «Também eu, que vou morrer, conheci a alegria» (Goethe escolheu a ex-
pressão para epígrafe da primeira edição da Viagem a Itália). Trata-se da dife-
rença entre considerar que a felicidade está sempre ameaçada pela voracidade
da morte e considerar que o horror da morte não pode apagar a felicidade que
se viveu. Sobretudo se foi guardada num »vaso de alegria».

Alegria e espontaneidade
Não será demais acentuar a afinidade entre alegria e espontaneidade (sobretudo
numa época em que a espontaneidade se encontra em perigo): abrir a boca e a
voz faz-se ouvir; mover o corpo, as pernas, e andar, dançar ou correr; mastigar

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a comida e engolir; tocar e sentir a pele de alguém; pôr-se a escutar um segredo
e ouvir a sua ressonância; provar um fruto e tomar o gosto; ter sono e dormir.
Como diz Colli, todo o nosso corpo (à parte aquilo que está destinado estrita-
mente à conservação) parece destinado à espontaneidade. Creio que é disto que
Espinosa está a falar quando afirma que o homem nunca saiu do Éden, apesar de
não ter coragem de chamar assim ao mundo, e, por conseguinte, a reserva com-
passiva de Ceronetti: «Um pensamento destes resgata o mundo, mas ofende pro-
fundamente a dor humana» (apesar de tão admirável), não faz qualquer sentido.

Instruções da infância

Ninguém pode querer sem fazer. E com isto eu não quero apenas dizer a execução
deve seguir o querer, o que já é uma boa máxima de prática; quero dizer que a
execução deve preceder a prática. Como assim? […] Que o homem aja antes de
querer, é o que é evidente pela infância. O homem nada no universo desde que foi
lançado nele e nunca, de maneira nenhuma, se poderá retirar dele. A acção real
está, portanto, sempre começada.
Alain, Minerve ou la sagesse

Questões de fisiologia
Bocejar, espreguiçar-se, levantar os ombros, são movimentos do corpo que o
libertam de muita preocupação, dureza, rigidez. A alma agradece. As boas ma-
neiras, a graça de uma saudação, são-lhe aparentadas. Um sorriso muda tudo
e, segundo a formulação excelente de Alain em Propos sur le bonheur: «o fisió-
logo conhece bem a razão; pois o sorriso desce tão fundo como o bocejo e, a
pouco e pouco, liberta a garganta, os pulmões, o coração […] De resto aquele
que quer fazer de despreocupado sabe como levantar os ombros, o que, consi-
derando bem, areja os pulmões e acalma o coração, em todos os sentidos desta
palavra. Pois esta palavra tem vários sentidos, mas só há um coração». É por
isso que aqueles movimentos se converteram em disciplinas curativas.
Bocejar, levantar os ombros, espreguiçar-se, podem ser vistos como sinais
de saúde, gestos de vingança da vida contra a seriedade forçada. A alegria faz
deslassar a rigidez dos membros, é um convite à dança. Conta uma lenda que,
de vez em quando, mesmo o severo e angustiado S. João Baptista brincava com
uma perdiz: aqui, o instinto torna-se sabedoria e o abandono do corpo no jogo
com o animal segrega alegria. Que a vida seja vista através da jogo, realeza da
infância, é o ensinamento mais profundo de Heraclito.

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Pergunta Alain, ainda ele: «como explicar que um pianista, que se sente a
morrer de medo ao entrar no palco, fique curado logo que começa a tocar?»
Pode-se responder, dizendo que ele já não pensa no medo, mas Alain exorta-
-nos a aproximarmo-nos mais do corpo do pianista e a olhar de perto o movi-
mento dos seus dedos: é por eles que ele sacode o medo.

Das duas, uma


Dois e duas é o que temos por natureza e por descoberta, um e uma é o que
temos de escolher, isto é, o nosso corpo está feito de modo a ter, por exemplo,
uma mão aberta ou fechada o que se prolonga nas experiências: umas pesam
e outras aligeiram. Também disto nos fala Alain, que nos apresenta o caso dos
dois caçadores, o triste e o alegre: «o caçador triste falha a lebre e diz: ‘Ora que
sorte a minha!’ e logo a seguir: ‘Isto só me acontece a mim’. O caçador alegre
admira a astúcia da lebre; pois ele sabe bem que não está na vocação da lebre
correr para dentro da caçarola».
Na Divina Comédia, Dante lembra-nos que há duas chaves do coração:
uma que abre e outra que fecha. A que fecha nunca poderá servir para conhe-
cer a alegria. O bom juiz e o mau juiz não escolhem a mesma chave.

Questões de mortalidade

Existe entre os homens esta grande questão: o homem pode ser feliz e mortal?
S. Agostinho, De Civitate Dei.

Amar a vida mortal, isso é a felicidade.


Clarice Lispector, A descoberta do mundo

Querer o que se pode, porque não se pode o que se quer.


S. Agostinho, Idem.

A condição não se cura, mas o medo da condição é curável.


Clarice Lispector, Idem.

A melhor resposta, e a mais difícil, que conheço, à grande questão entre os ho-
mens, segundo a fórmula agostiniana, é a de Clarice Lispector, porque ela não
pede resignação ao «querer o que se pode» (o que já é muito), mas uma disci-
plina terapêutica, que transforma os limites da nossa condição em limiares, isto

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é, curar, até onde se puder, o medo de ser, medo que pode levar a preferir a vida
depois da morte à vida que se tem.
Numa carta a Florens Christian Rang de 26 de Novembro de 1923, Ben-
jamin desenha esse lugar em que poderia ocorrer a discussão entre cristãos e
judeus, a propósito do seu interesse pelas palavras de Rang (pastor protestan-
te, por quem Benjamin tinha uma amizade sem mácula) acerca da confissão,
interesse, confessa ele, acompanhado por uma estranheza no que se refere à
ideia de que morrer seria «ainda partilhar a proximidade de Deus» e viver
«fosse estar votado à perdição». Quanto ao esclarecimento desta obscuridade,
a expectativa de trocar «uma eternidade de depois da morte pela eternidade
enquanto estou viva» vai tão longe quanto é possível. Na origem desta expec-
tativa Clarice Lispector coloca, com humor e elevação, «a miséria da necessi-
dade», permitindo ver com uma clareza única que há grandeza na morte, mas
que a vida é incomensurável.

Corrupção e mistério
Surpreendemos nos filmes de Bresson um amor pelo corpo que nunca silencia
o seu estar votado à corrupção, que é o que distingue o corpo vivo de qualquer
sonho. Por outro lado, a corrupção que pertence à terra, e às suas devastações,
nunca é abandonada a si própria, nunca desbota a maravilha do corpo, que
no mistério da ressurreição conhece o seu ponto ardente. Na Divina Comédia
(«Paraíso», XIV), esse mistério é reconduzido à sua verdadeira condição, a
saber, a ressurreição não responde tanto ao amor que Deus nos tem, mas ao
desejo que as nossa mães e os nossos pais, e todos os que nos amam, têm de
voltar a ver o nosso corpo:

Ché li organi del corpo saran forti


a tutto ciò che potrà dilletarne.
Tanto mi parver súbiti e accorti
e l’uno e l’altro coro a dicer «Amme»,
che ben mostrar disio d’i corpi morti
forse non per lor, ma per le mamme,
per li padri e per li altri che fuor cari
anzi che fosser sempiterne fiamme.

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Sumário das alegrias
(motes de Clarice Lispector)

1ª forma de alegria: os BONS HÁBITOS


Viver sem excessivas cautelas, deixar cair o que impede os cuidados simples,
a alegria diária que tem o seu esteio no hábito, no retorno da luz, no que vem
ter connosco e confirma a nossa existência, esforçando-nos por fazer diluir os
pontos de dor, às vezes por esquecimento, outras, para quem souber, por uma
espécie de massagem, à procura dos harmónicos modestos: «O bem-estar. É
uma coisa muito estranha: a comida é boa, o coração é simples, encontro um
menino na rua jogando bola, eu lhe digo: não quero que você brinque de bola
em cima de mim, ele responde: vou tomar cuidado».

2ª forma de alegria: animalidades


Descobrir que o corpo é um dom, saber isso sem esforço, como o gato ao sol.
O que é equivalente a «tornar-se real». O estado de graça de existir (não a
da inspiração), tranquila felicidade, lucidez, bem-aventurança física. Não é
um êxtase, não precisa de mediadores, maravilhosos fossem eles, anjos, nin-
guém ajuda, é só contacto, intimidade, com a mudez simples, sem máscara,
dos animais. Para nós, que conhecemos tantos obstáculos (isto é, falamos,
inventámos as máscaras e os corpos para prolongar e substituir os nossos), é
difícil permanecer muito tempo aí: «Sai-se melhor do que se entrou», porém
«sai-se lentamente (suspira-se ao sair), mas ficamos por assim dizer indizíveis
e incomunicáveis». O que Clarice Lispector gostaria de ser, integra-se nesta
segunda forma de alegria: «uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssi-
ma quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana
ou animal».

3ª forma de alegria: estar vivo


A aceitação acima de tudo o que sabemos e podemos. A alegria mansa: acordo
sem contrato nem disciplina, sem agradecimentos, sem consolação, sem emo-
ção nem torpor, acontecimento puro: «Estou à janela e só acontece isto: vejo
com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocu-
padas ambas em fluir […] Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo.
Não mais que isto: vivo. E apenas vivo é uma alegria mansa». Consideremos
o uso de «talvez»: não tem a ver com a incerteza do saber-se vivo, mas com a
precaução subtil que impede a formação de qualquer doutrina.

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4ª forma de alegria: implorar e receber
«Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e
mudamente se receba». Demoremo-nos neste outro uso de «talvez» (que não
pede a simétrica: «talvez não valha a pena ter nascido», quem pensa assim não
diz «talvez»), sem sombra de reserva nem ressentimento, apenas consciência de
que não haverá argumentos definitivos.

5ª forma de alegria: uma plenitude severa


A alegria como fatalidade (que toma conta de nós e não nos deixa sorrir).
É como ser executante da vida, descobrir isso é descobrir o carácter sagrado da
vida: «[A mulher] sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o
esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum
modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago», 169.

6ª forma de alegria: serviço de urgência

… precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente
porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa
reparti-la […] é urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes,
que até parece que só se as viu depois que tombaram […].

7ª forma de alegria: memento vivere!


O dia de amanhã, o dia do nosso medo, da nossa previdência, o dia da formiga,
é um dia da prudência que não convém idolatrar (haverá outro dia da ama-
nhã, o da herança, mas o seu uso não vem agora ao caso), pois impede o estar
diante dos agoras, uma sombra que não deixa ver o risco que nos cabe por es-
tarmos vivos. Nestes tempos que correm, o mais grave dos esquecimentos, pois
só aprofundando o risco poderemos salvar-nos (é em Thoreau e a Bernarnos
que Clarice Lispector vai alicerçar a sua compreensão). Ainda mais que um
esquecimento, um irreconhecimento combativo: a luta cega pela segurança. O
carácter anestesiador dessa luta observa-se no viver como se houvesse outra
vida para viver, fazendo soar a cantilena do diabo: adia, adia…
Ora, diz Clarice: «A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de
amanhã» — ecoando o carpe diem de Horácio e a exigência goethiana de fazer
jus ao dia, no sentido de «não te esqueças de viver!» (mote de um maravilhoso li-
vro de Pierre Hadot) — o que se prolonga na aceitação de que há um tempo para
cada coisa, para cada nascimento, sejam rosas ou morangos: «Sentia que havia
um tempo inadiável correspondente a cada momento […] Nada guardando para
o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir».

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