A pré-compreensão e a
compreensão na experiência
hermenêutica
Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3711
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1. INTRODUÇÃO
O que ocorre é que o intérprete já possui uma pré-compreensão daquilo que vai
interpretar, inclusive das palavras que irá usar. Essa pré-compreensão está adstrita à
circunvisão dele mesmo e, à medida que se chega ao compreendido (aquilo que se abre
na compreensão), este torna-se de tal forma acessível que pode explicitar-se em si
mesmo "como isso ou aquilo" e este "como" constitui a própria estrutura da explicitação
do compreendido, a interpretação.
Assim, em sendo o homem uma conjugação dele mesmo mais a sua vida, as suas
impressões prévias, a sua cultura prévia, enfim, todos os seus preconceitos, vão
impregnar a sua interpretação.
Nesse passo, entende-se que até a essência daquilo que se vai interpretar é a
essência na perspectiva do intérprete e como a interpretação depende dos fatores
supracitados, a própria essência pode ser discutida.
No entanto, aduz Gadamer, "face a qualquer texto, nossa tarefa é não introduzir,
direta e acriticamente, nossos próprios hábitos lingüísticos" (6), mas "o que se exige é
simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do texto". (7)
Entra em jogo aqui a noção de alteridade do texto exposta por Gadamer, pois
"quem quer compreender um texto, em princípio, tem que estar disposto a deixar que
ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem
que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa
receptividade não pressupõe nem neutralidade com relação à coisa nem tampouco auto-
anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos,
apropriação que se destaca destes." (8)
Por último, o que deve ser ressaltado na hermenêutica gadameriana é que não há
diferença entra a interpretação e a compreensão, pois compreender é sempre interpretar.
Aliás, Gadamer entende como processo hermenêutico unitário a compreensão, a
interpretação e a aplicação, inclusive, (13) e o trabalho do intérprete se dá a partir de uma
fusão de horizontes, porque compreender é sempre o processo de fusão dos horizontes
presumivelmente dados por si mesmos. Compreender uma tradição implica projetar um
horizonte histórico que vai originar um novo horizonte presente. Um texto histórico
somente é interpretável a partir da historicidade do intérprete.
4. CONCLUSÃO
d)A interpretação começa sempre com conceitos prévios que serão substituídos
por outros mais adequados, pois os pré-juízos do intérprete são constituidores de sua
realidade histórica e intransponíveis.
e)O intérprete deve deixar que o texto lhe diga algo por si: não pode impor-lhe
sua pré-compreensão, mas confrontá-la criticamente com as possibilidades nela
contidas.
f)O ato de compreender implica projetar um horizonte histórico que, uma vez
realizado pelo intérprete, origina um novo horizonte no presente. A realização dessa
fusão de horizontes decorre da consciência da história efeitual possuída pelo intérprete.
NOTAS
Sobre o autor
Amandino Teixeira Nunes Junior
E-mail: Entre em contato
Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº62 (02.2003)
Elaborado em 08.2002.
Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado
em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. A pré-compreensão e a compreensão na
experiência hermenêutica . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3711>. Acesso em:
23 ago. 2010.
Fato que só recentemente se concretizou, foi no século XX que o movimento hermenêutico ganhou o
status de uma teoria filosófica de interpretação, visto que somente a partir de Heidegger a ontologia se
mescla a hermenêutica. De fato, foi após a contribuição de Heidegger a hermenêutica deixou de lado a
pura orientação metodológica para uma orientação filosófica.
As teorias e métodos hermenêuticos se desenvolveram de tal modo que ficou para trás o hermeneuta, o
Dasein (a pre-sença) no ocupar-se de uma interpretação de um discurso, assim como o Dasein no
ocupar-se da autoria de um discurso. Estas subjetividades foram ofuscadas pelo predomínio do objeto e
do método hermenêuticos.
A filosofia hermenêutica em relação às teorias hermenêuticas, pode ser caracterizada como o resgate de
um a priori a qualquer interpretação: a própria interpretação do Dasein (da pre-sença). Redireciona-se a
teoria, seu método e sua forma de objetivação do interpretado, para a necessária análise transcendental,
que através da interpretação do Dasein (da pre-sença), examina a constituição de qualquer compreensão
a partir da existência. “A pre-sença é um ente que, na compreensão de seu ser, com ele se relaciona e
comporta. Com isso indica-se o conceito formal de existência. A pre-sença existe” (Heidegger, 1986/1998,
pág. 90).
Enquanto a teoria hermenêutica pretendia alcançar esta descrição das condições existenciais do autor e
do intérprete, na conclusão de uma seqüência de aplicação de seu método, a filosofia hermenêutica
afirma que só o reconhecimento desse a priori existencial de um autor, de um intérprete, de um discurso
entre os dois, e até mesmo de um método hermenêutico, como condição de partida de uma
hermenêutica, pode assegurar algum sucesso, no sentido de que algo se suceda, como no caso uma
interpretação. Segundo Jean_Grondin (2003), a concepção heideggeriana da hermenêutica é ela mesma
um affaire bastante complexo, na medida em que começam a se publicar os cursos de Heidegger logo
após a primeira grande guerra. Desta maneira, Jean_Grondin propõe três grandes concepções da
hermenêutica em Heidegger, que se entrelaçam:
Farei uma breve reflexão dos dois primeiros movimentos, visto que estes foram os que mais contribuíram
para a tradição que se seguiu com Ricouer e Gadamer. Então, a partir do primeiro movimento
hermenêutico citado, o que é exatamente a “hermenêutica da facticidade”? Como hermenêutica ela busca
uma interpretação, mas desta feita não de obras ou discursos, mas deste fato que sou, enquanto ato ou
fato humano. A facticidade designa para Heidegger o caráter próprio a nosso Dasein, que não pode ser
apreendido como objeto, como “algo posto diante de mim”, pois isto seria como ver meu olho sem um
espelho. A pre-sença não é cotidianamente um objeto de contemplação, ela é ocupação em um fato ou
um ato, ela vive na “cura”. Esta é a facticidade a ser interpretada por uma hermenêutica da facticidade.
Embora a questão do ser desponta-se desde a origem do pensamento de Heidegger, foi em Ser e Tempo
que ela ganhou seu estatuto que irá marcar sua reflexão filosófica, sendo a hermenêutica determinante
para a abordagem desta questão de origem aristotélica, sob a formulação da busca necessária pelo
sentido do ser.
Essa tonalidade que diferencia a hermenêutica do Dasein da anterior se anuncia de imediato na obra Ser
e Tempo: em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes é ontologia. Ao se esclarecer
as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade de uma ontologia fundamental, que possui como tema
a pre-sença, isto é, o ente dotado de um privilégio ôntico ontológico. Pois somente a ontologia
fundamental pode-se colocar diante do problema cardeal, a saber, da questão sobre o sentido do ser em
geral. Da própria investigação resulta que o sentido metódico da descrição fenomenológica é
interpretação. O logos da fenomenologia da pre-sença possui o caráter de hermeneuein. Por meio deste
hermeneuein proclamam se o sentido do ser a as estruturas ontológicas fundamentais da pre-sença para
a sua compreensão ontológica constitutiva. Fenomenologia da pre-sença é hermenêutica no sentido
originário da palavra em que se designa o ofício de interpretar. Na medida, porém, em que se desvendam
o sentido do ser a as estruturas fundamentais da pre-sença em geral, abre se o horizonte para qualquer
investigação ontológica ulterior dos entes não dotados do caráter da pre-sença. A hermenêutica da pre-
sença torna se também uma "hermenêutica" no sentido de elaboração das condições de possibilidade de
toda investigação ontológica. E, por fim, visto que a pre-sença, enquanto ente na possibilidade da
existência, possui um primado ontológico frente a qualquer outro ente, a hermenêutica da pre-sença como
interpretação ontológica de si mesma adquire um terceiro sentido específico - sentido primário do ponto
de vista filosófico - a saber, o sentido de uma analítica da existencialidade da existência. Trata se de uma
hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade da pre-sença como condição ôntica de
possibilidade da história fatual. Por isso é que, radicada na hermenêutica da pre-sença, a metodologia
das ciências históricas do espírito só pode receber a denominação de hermenêutica em sentido derivado.
(Heidegger, 1986/1998, pág. 68)
Segundo Jean_Grondin (2003), nesta longa citação de Ser e Tempo distinguem-se quatro grandes
significações do termo hermenêutica, nesta etapa do pensamento de Heidegger. A hermenêutica
enquanto logos do termo fenomenologia é mais relevante na medida em que por ela o Dasein é
reconhecido em termos do sentido autêntico do ser que manifesta e das estruturas fundamentais que o
sustentam em uma manifestação autêntica do ser. Este novo direcionamento, diferencia a hermenêutica
do Dasein em relação à hermenêutica da facticidade, pela tarefa bem definida de esclarecer “o sentido
verdadeiro do ser”. Ao mesmo tempo, que a formulação dos existenciais, como elementos das estruturas
fundamentais do Dasein, nos indica a tentativa de uma universalização das reflexões anteriores sobre a
facticidade individual. A hermenêutica ganha uma orientação ontológica segundo “o sentido de uma
analítica da existencialidade da existência”.
Por outro lado Dasein é caracterizado por sua compreensão do ser, ou seja o sentido do ser neste caso
só pode ser interpretado a partir de uma pré-compreeensão. O ponto adotado pela filosofia
transcendental, o cogito ergo sum de Descartes, se situa agora no existencial ser-no-mundo, que
caracteriza a pre-sença. As condições de possibilidade de conhecimento são dadas pela compreensão do
ser da pre-sença, única capaz de pro-ver a compreensão que se busca por exemplo de um discurso.
O termo hermenêutica tem sua própria história. Usado pela primeira vez em Aristóteles, como título de
seu tratado de lógica do juízo e da proposição, Peri Hermeneia, foi também utilizado pelos sofistas numa
referência a necessária interpretação de Homero e dos mitos gregos. A emergente teologia cristã do
século III, na Alexandria, enfrentou a questão hermenêutica em relação à exegese bíblica. Santo
Agostinho em seu tratado “Da Doutrina Cristã” nos oferece um primeiro ensaio de uma teoria da
interpretação escrituraria e teológica.
Nos tempos modernos foi Schleiermacher (1768–1834) quem marcou a hermenêutica em seu sentido de
exegese de escrituras sagradas, partindo de princípios rigorosamente metodológicos, este autor
contribuiu ao dar os primeiros passos ao aproximar a hermenêutica da filosofia. O projeto de
Schleiermacher de uma hermenêutica universal se baseia na noção de compreensão.
Foi sob influência decisiva deste teólogo que a hermenêutica se apresentou como uma prática
metodológica de interpretação no interior desses domínios. Este autor, ainda que sua filosofia não tenha
exercido a mesma influência que outros filósofos de sua época, como Kant, Hegel e outros, foi com
certeza um dos mais interessantes de seu período. Não sendo somente teólogo, mas também filósofo, a
maior parte de seu trabalho se concentra no que se chamaria hoje, filosofia da religião, mas é sobretudo
sua hermenêutica (teoria da interpretação) e sua teoria da tradução que merecem mais atenção.
Embora ligado intensamente à tarefa religiosa, Schleiermacher tinha por pretensão expandir seus
métodos e técnicas interpretativas a toda expressão humana. Ora, já podemos dimensionar os problemas
que o nosso autor encontrou diante de ousada empreitada. A começar pelos diferentes tipos de discurso,
e suas especificidades; assim como a variedade de áreas de conhecimento à que a hermenêutica se
propunha a ser inserida. Tamanha ousadia tinha seus fundamentos, visto que através da aplicação
metodológica da hermenêutica na exegese bíblica, foi possível constatar as possibilidades de expansão
daquele método, visto que as Escrituras Sagradas contêm em si certas similitudes e princípios de textos
históricos e jurídicos, o que implicou numa ampliação de seus métodos à outras áreas da expressão
humana.
É preciso entender que para este autor todos os problemas de interpretação são, na verdade, problemas
de compreensão, e por isso desenvolveu uma verdadeira doutrina da arte de compreender, não se atendo
somente a uma agregação de observações inoperáveis. Sua contribuição significa algo realmente novo,
visto que a dificuldade da compreensão e do mal-entendido (termo usado por Schleiermacher), já não são
mais levados em conta só como momentos ocasionais de uma leitura, mas como problemas que devem
ser eliminados de antemão.
É correto afirmar que Schleiermacher não foi o primeiro a restringir a tarefa da hermenêutica em tornar
compreensível a intenção de discursos e textos, mas sua contribuição original foi, sem dúvida,
precisamente isolar o procedimento do compreender. Sua tarefa maior foi a de torná-lo autônomo, com
uma metodologia própria, o que determinou um afastamento da essência da hermenêutica em seus
predecessores.
Dilthey (1833-1911) fez reviver o movimento iniciado por Schleiermacher direcionando-o como método de
compreensão necessário às ciências humanas (ou, na linguagem de Dilthey, ciências do espírito). Foi
Dilthey que tomou conscientemente a hermenêutica romântica ampliando e transformando-a numa
historiografia, o texto a ser interpretado é a própria realidade humana no seu desenvolvimento histórico,
um “conceber a partir da vida” (Verdade e Método I, pág 341), que serviu mais tarde como ponto de
partida para a hermenêutica da facticidade de Heidegger.
A questão da história junto à hermenêutica em Dilthey está em sua interessante reflexão acerca dos
conceitos de compreensão e explicação. O eixo central da filosofia diltheyana é a questão da história, da
capacidade cognitiva da história, e para Dilthey é necessária uma aplicação ao estudo da ação histórica,
da intenção do agente, sobretudo em conexão com a compreensão da realidade humana em seu
desenvolvimento histórico. Daí o uso da hermenêutica a fim de interpretar as ações humanas. O discurso
a ser interpretado é o próprio decurso de ações humanas em seu interior, a intenção que guiou o agente.
Dilthey caracteriza suas intenções ao afirmar: “A riqueza da nossa experiência permite-nos imaginar, por
uma espécie de transposição, uma experiência análoga exterior a nós e compreendê-la...”. Ou seja, é
somente através de uma transposição analógica de minhas experiências, que posso compreender as
ações alheias.
Dilthey se apropria da teoria hermenêutica enquanto caminho para constituição de uma “Crítica da Razão
Histórica”, tão cobiçada pelas “ciências do espírito”, após a formalização filosófica da Crítica de Kant,
como fundamento da ciência newtoniana. Dilthey recorre à filosofia romântica e ao significado da
“Erlebnis”, da experiência vivida. A palavra proferida ou escrita, que relata o evento, implica em uma
distância em relação ao evento: uma perda entre o originário da expressão na impressão.
“Se a exegese de um texto tem por finalidade exprimir o sentido contido no texto, como se espreme um
suco de um fruto, a revivescência do sentido deveria coincidir com a repetição de Erlebnis a partir da qual
se formulou o documento” (Gusdorf, 1988, pág. 234).
Ainda em Dilthey o grande problema de aplicação do movimento hermenêutico junto às ciências históricas
não é esclarecido. Sua filosofia parece sustentar uma conexão entre a escola histórica com a
hermenêutica romântica. Mas o esquema do todo pelas partes ainda encontra rejeição, sobretudo entre
os historiadores, onde seu objeto não é um texto individual, mas a história universal. E foi Gadamer quem
colocou o problema com grande clareza:
“não somente a história não chegou ao fim - nós mesmos, enquanto compreendemos a história, nos
encontramos nela como membros condicionados e finitos de uma cadeia que continua a avançar. E
partindo-se dessa situação precária do problema da história universal, parecem surgir facilmente dúvidas
quanto a se saber se a hermenêutica está realmente em condições de servir de base para a
historiografia” (Verdade e Método I, pág 273)
Se toda compreensão é a busca de sentido do que se fala ou escreve, e se a hermenêutica para Dilthey,
é como para Schleiermacher, a “arte da compreensão”, como achá-lo numa obra não acabada, mas sim
aberta e disposta a mudanças repentinas. Como fica o papel do interpretante que jamais poderá ser-lhe
dado o todo?
Schleiermacher segundo Ricoeur
É difícil precisar com exatidão a data do seu primeiro momento de aplicação, mas certamente foi sobre as
sagradas escrituras que o movimento hermenêutico reconheceu seu primeiro ato, ainda enquanto técnica
de leitura. Ainda que durante a maior parte de sua história, ela tenho sido essencialmente uma disciplina
técnica e normativa que se exercia no domínio da exegese bíblica, da filologia clássica e da
jurisprudência, tal movimento tomou outro rumo no século XVII, quando a filosofia hermenêutica começou
a tomar o rumo de uma ciência.
Na Modernidade foi sob influência decisiva do teólogo protestante Friedrich Schleiermacher (1768-1834)
que a hermenêutica se apresentou como uma prática metodológica de interpretação no interior desses
domínios. Este autor, ainda que sua filosofia não tenha exercido a mesma influência que outros filósofos
de sua época, como Immanuel Kant (1724-1804) , G.W.F. Hegel (1770-1831) e outros, foi com certeza
um dos mais interessantes de seu período. Não sendo somente teólogo, mas também filósofo, a maior
parte de seu trabalho se concentra no que se chamaria hoje, filosofia da religião, mas é sobretudo sua
hermenêutica (teoria da interpretação) e sua teoria da tradução que merecem mais atenção.
Embora ligado intensamente a tarefa religiosa, Schleiermacher tinha por pretensão expandir seus
métodos e técnicas interpretativas a toda expressão humana. Ora, já podemos dimensionar os problemas
que o nosso autor encontrou diante de ousada empreitada. A começar pelos diferentes tipos de discurso,
e suas especificidades; assim como a variedade de áreas de conhecimento à que a hermenêutica se
propunha a ser inserida. Tamanha ousadia tinha seus fundamentos, como já mencionamos
anteriormente, foi através da aplicação metodológica da hermenêutica na exegese bíblica, que pode-se
constatar as possibilidades de expansão daquele método, visto que as Escrituras Sagradas contêm em si
certas similitudes e princípios de textos históricos e jurídicos, o que implicou numa ampliação de seus
métodos à outras áreas da expressão humana.
Parece óbvio que o último conceito descrito acima trás severos desafios a qualquer tipo de doutrina de
interpretação ou tradução, desafios estes que se transformaram na principal tarefa da filosofia de
Schleiermacher. Sua contribuição para o movimento hermenêutico não pode ser esquecida, foi através de
sua orientação que a atenção sobre a interpretação chegou ao autor, não somente o texto. Busca-se
agora um diálogo como o autor, a fim de alcançar sua intenção. Alguns dizem que suas limitações
filosóficas o impediram de dar um passo maior e necessário, a fim de tornar a hermenêutica mais do que
uma pura orientação metodológica, mas uma Teoria Filosófica da Interpretação.
A originalidade de Dilthey está sobretudo em sua genialidade de expandir, com perfeição, a hermenêutica
as demais áreas da expressão humana. Através de uma supervalorização do homem histórico, Dilthey
coloca a hermenêutica num novo plano, o texto a interpretar é a realização do homem em seu decurso
histórico. Seus preconceitos, sua formação, o autor em sua história particular. Dilthey afirma que “a
riqueza da nossa experiência permite-nos imaginar, por uma espécie de transposição, uma experiência
análoga exterior a nós e compreendê-la...”. Se nos é possível compreender o outro, é porque temos a
possibilidade de imaginar uma outra vida, em seu interior, a partir da nossa própria, por uma transposição
analógica.
Na proposta de Dilthey vigora a experiência vivida como método de interpretação da história, mas
separando de forma clara o intérprete do interpretado, o sentimento vivido da unidade objetiva da história.
Foi a partir da reflexão de Heidegger sobre a facticidade, que Gadamer retomou a hermenêutica sobre
novas bases, unificando no ser humano a realidade histórica e sua interpretação. Enuncia-se assim a
hermenêutica contemporânea, de natureza filosófica. Uma hermenêutica filosófica aplicável às temáticas
da filosofia, das ciências humanas e das ciências da natureza. Mas Gadamer não é o único a enveredar
por esta senda. Os italianos Emilio Betti e Luigi Pereyson, os franceses Paul Ricoeur e Jacques Derrida, e
os alemães J. Habermas e Karl Otto-Apel abrem também seus próprios caminhos na reflexão
contemporânea sobre a hermenêutica.
Segundo Josef Bleicher (1980), a hermenêutica contemporânea pode ser caracterizada por perspectivas
conflitantes, no tocante ao fato de que as expressões humanas de qualquer gênero podem ser
reconhecidas como tal por qualquer ser humano e transpostas para seu próprio sistema de valores e
significados. Como este processo se dá e como é possível “se dar conta” de sentidos subjetivos aplicados
ao reconhecimento de um ato ou fato, o que prejudicaria de forma absoluta a capacidade de
compreensão deste, é o que discorre cada caminho hermenêutico em sua especificidade, e Bleicher cita
três caminhos que se consagraram: a teoria hermenêutica, a filosofia hermenêutica e a hermenêutica
crítica.
A teoria hermenêutica focaliza a problemática de uma teoria geral da interpretação como uma possível
metodologia para as ciências humanas. Pela análise da “compreensão” como método apropriado de re-
experimentar ou re-pensar o que um autor originalmente viveu ao se expressar, sob qualquer modalidade
discursiva espera-se ganhar um entendimento do processo de compreensão, em geral, permitindo assim
transpor a complexidade de sentidos de um discurso expresso por um autor, para nossa compreensão de
nós mesmos, de nosso mundo e do texto ou fato “lido”.
Esta busca por uma base metodológica e até científica para a interpretação é justamente o que a
chamada hermenêutica filosófica rejeita como “objetivismo”. Isto porque fere um de seus princípios,
originários da filosofia existencial de Heidegger. Um contexto de tradição envolve ambos e a obra, o que
implica na impossibilidade de neutralidade em qualquer processo de interpretação. A compreensão de
uma obra não é apenas, por conseguinte, uma reprodução instruída do original, mas um diálogo contínuo
entre as partes em questão.
A filosofia hermenêutica, por sua vez, parte do reconhecimento do hermeneuta como Dasein ocupado na
interpretação de um ato ou fato humano, em sua situação temporal e histórica.
Segundo Gadamer, o problema da interpretação segundo a formulação dada pela hermenêutica filosófica,
parte da “virada lingüística” na filosofia, para reconhecer que a comunicação entre o autor de um discurso
e o intérprete do mesmo deve tomar a forma de um diálogo que resulte na “fusão de horizontes” de suas
existências.
Em resumo a filosofia hermenêutica não pretende substituir a teoria hermenêutica, mas sim direcioná-la
segundo princípios que admitam a condição de “ser-no-mundo” do intérprete em seu ocupar-se
hermenêutico.
Por mais exaustiva que seja a pesquisa que explora o contexto do texto, sua compreensão não se esgota
aí, pois segue se dando e renovando no diálogo com o texto. Existem mal-entendimentos mas também
mais do que uma justa interpretação do texto, o próprio texto estabelece os limites de sentido que admite,
não é um questão subjetiva, a pesquisa histórica e lingüística permite uma aproximação do sentido
original, garantindo certa neutralidade, mas neste afã é mais importante reconhecer os pré-conceitos que
ditam o viés de uma interpretação do que tentar transcendê-los ou eliminá-los.
Neste sentido a filosofia hermenêutica iniciada por Heidegger, e sustentada por Gadamer, parece se
impor diante das frustrações de uma teoria hermenêutica que pretende suprimir o caráter subjetivo das
interpretações, visto que dada a significância do texto (o que significa para um intérprete) e dado o
significado original do texto (seu sentido próprio), o primeiro condiciona sempre o segundo, que é deste
modo inalcançável.
Da problemática oriunda do movimento descrito no parágrafo acima, surge o círculo hermenêutico que
representa a projeção do sentido atribuído pelo intérprete ao texto, que resiste ou confirma, segundo o
intérprete, impondo uma reciclagem da interpretação, até a fusão de horizontes entre autor e intérprete do
texto. Esta concepção põe de lado uma noção de método ou cânon a ser seguido, pois cada situação de
interpretação põe em diálogo um intérprete e um texto, e a compreensão alcançada só pode ser descritiva
e não prescritiva, donde diferentes pontos de vista são aceitáveis e apenas atestados, aqui o texto supera
seu autor.
A HERMENÊUTICA
– o sentido literal, ou sentido histórico, que circunscreve a significação primeira das palavras e
estabelece os dados factuais;
– o sentido alegórico, onde se restitui o conteúdo espiritual escondido sob a letra, onde se
revela que os textos sagrados dizem uma coisa diferente da que dizem à primeira vista;
Entretanto, este percurso dos diferentes planos de significação não é uma simples técnica de
leitura. Deve ser ainda entendido como o aprofundamento de um exercício de meditação no
seio do qual o leitor, que é também um fiel, acede progressivamente à compreensão da palavra
divina.