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“EU ESCUTO

LADO BOM!” UM ESTU


SOBRE MULHERES RUR
DO SERTÃO PERNAMBUCA
QUE ENFRENT
JULGAMENTO
AMPLIAM DESEJO
PARTIR DA PARTICIPAÇ
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“EU ESCUTO O
ANOLADO BOM!” UM ESTUDO SOBRE
MULHERES RURAIS DO SERTÃO
TAM
PERNAMBUCANO QUE ENFRENTAM
OS E JULGAMENTOS E AMPLIAM
DESEJOS A PARTIR DA
OS A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

ÇÃO
TICA
LORENA LIMA DE MORAES
Universidade Federal Rural de Pernambuco
Moraes, L. L. de

“EU ESCUTO O LADO BOM!” UM ESTUDO SOBRE MULHERES


RURAIS DO SERTÃO PERNAMBUCANO QUE ENFRENTAM
JULGAMENTOS E AMPLIAM DESEJOS A PARTIR DA PARTICI-
PAÇÃO POLÍTICA
Resumo
As mulheres rurais estão organizadas desde a década de 1980 na luta
pelo reconhecimento e valorização do seu trabalho. No entanto, mesmo
com a garantia de alguns direitos, participação e da luta pela identidade
de trabalhadora rural, as mulheres esbarram frequentemente com o jul-
gamento alheio que tem como base os padrões de gênero. O presente
artigo tem como objetivo expor as percepções de mulheres rurais - li-
deranças políticas, em relação aos julgamentos de familiares e demais
membros da comunidade sobre o seu modo de vida, pois, tais mulheres
possuem um modo de vida que se organiza em torno das responsabili-
dades domésticas e familiares, produção agrícola e participação política
– que exige constante mobilidade para além da comunidade rural. Além
disso, ressaltamos as mudanças ocorridas nas vidas das mulheres prove-
nientes das oportunidades adquiridas a partir da participação política e
da participação em grupos de mulheres. Para a realização da pesquisa,
foram realizadas entrevistas semiestruturadas com dez mulheres rurais
de dois municípios do sertão pernambucano. Contudo, percebeu-se que
a participação política se estabelece para além da esfera pública, impac-
tando a vida privada das mulheres, proporcionando meios de quebrar
as barreiras da invisibilidade, da subalternidade e da inferioridade pro-
porcionadas pela dominação masculina. A participação política na vida
das mulheres rurais se materializa como um caminho que aponta para o
questionamento das relações de gênero, alterando o cotidiano familiar e
os valores comunitários vigentes do meio rural.
Palavras-Chave: Mulheres rurais, participação política, empoderamento,
esfera pública e privada.

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“Eu escuto o lado bom!”

I LISTEN TO THE GOOD SIDE!” A STUDY ON RURAL WOMEN


FROM THE COUNTRYSIDE OF PERNAMBUCO WHO FACE
JUDGMENTS AND AMPLIFY DESIRES FROM POLITICAL PAR-
TICIPATION
Abstract
Rural women have been organized since the 1980s in the struggle for
recognition and appreciation of their work. However, even with the gua-
rantee of some rights, participation and the strive for the identity of a
rural worker, women often face the judgment of others based on gender
patterns. This article aims to expose the perceptions of rural women -
political leaders, regarding the judgments of family members and other
members of the community about their way of life, since such women
have a way of life that is organized around the domestic and family res-
ponsibilities, agricultural production and political participation - which
requires constant mobility beyond the rural community. In addition, we
highlight the changes in the lives of women from opportunities gained
through political participation and participation in women’s groups. To
carry out the research, semi-structured interviews were conducted with
ten rural women from two municipalities in the countryside of Per-
nambuco. However, it has been realized that political participation is
established beyond the public sphere, impacting women’s private lives,
providing a means of breaking the barriers of invisibility, subalternity
and inferiority afforded by male domination. Political participation in
the lives of rural women materializes as a path which points to the ques-
tioning of gender relations, altering the family daily life and the current
community values of rural areas.
Keywords: Rural women, political participation, empowerment, public
and private sphere.

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Moraes, L. L. de

“¡YO ESCUCHO EL LADO BUENO!” UN ESTUDIO SOBRE MU-


JERES RURALES DEL SERTÓN PERNAMBUCANO QUE EN-
FRENTAN JUICIOS Y AMPLIAN DESEOS A PARTIR DE LA
PARTICIPACIÓN POLÍTICA
Resumen
Las mujeres rurales están organizadas desde la década de 1980 en la
lucha por el reconocimiento y la valorización de su trabajo. Sin embargo,
aun con la garantía de algunos derechos, de participación y de la lucha
por la identidad de trabajadora rural, las mujeres se enfrentan frecuente-
mente con el juicio ajeno basado en los patrones de género. El presente
artículo tiene como objetivo exponer las percepciones de mujeres rura-
les -lideres políticas, en relación con los juicios de sus familiares y demás
miembros de la comunidad sobre su modo de vida, pues, tales mujeres
poseen un modo de vida que se organiza en torno de las responsabilida-
des domésticas y familiares, producción agrícola y participación política
– que exige constante movilidad más allá de la comunidad rural. Además
de esto, resaltamos las mudanzas ocurridas en las vidas de las mujeres a
partir de las oportunidades adquiridas de la participación política y de la
participación en grupos de mujeres. Para la realización de la investiga-
ción, fueron realizadas entrevistas semiestructuradas con diez mujeres
rurales de dos municipios del sertón pernambucano. Se percibió que la
participación política se establece más allá de la esfera pública, impactan-
do la vida privada de las mujeres, proporcionando medios para romper
con las barreras de la invisibilidad, de la subalternidad y de la inferioridad
proporcionadas por la dominación masculina. La participación política
en la vida de las mujeres rurales se materializa como un camino que
apunta al cuestionamiento de las relaciones de género, alterando el co-
tidiano familiar y los valores comunitarios vigentes en el medio rural.
Palabras-Clave: Mujeres rurales, participación política, empoderamiento,
esfera pública y privada.

Endereço do autor para correspondência: Rua Doutor Ernane Cabral n.


9. Caldenária. Natal – RN. Cep: 59064-220.
llorenamoraes@gmail.com

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“Eu escuto o lado bom!”

INTRODUÇÃO dade machista. Neste sentido, Paulilo


afirma que, mesmo uma forte consci-
A organização das mulheres traba- ência das desigualdades de classe não
lhadoras rurais no Brasil, que iniciou leva, por adição, a uma preocupação
dentro do movimento sindical, adquire semelhante com a desigualdade entre
uma nova fase com o surgimento de os gêneros (Paulilo 2004: 12).
movimentos independentes, que atu-
am na luta da “conformação da mulher Este estudo é parte da tese intitulada
rural como ‘sujeito político’ fortalecen- Entre o público e o privado: a participação
do suas demandas e suas práticas polí- política de mulheres rurais do sertão pernam-
ticas” (Bordalo 2011:60). bucano, que foi realizada em duas comu-
nidades rurais do Sertão do Pajeú, no
O estado de Pernambuco possui uma estado de Pernambuco. Neste sentido,
história importante no cenário da par- o presente artigo versa sobre a per-
ticipação política no Brasil. Pioneiro na cepção de mulheres rurais lideranças
organização de movimentos sociais em políticas, em relação aos julgamentos
prol dos trabalhadores rurais, foi tam- de familiares e demais membros da co-
bém neste estado que surge uma das munidade sobre o modo de vida que
primeiras organizações de mulheres elas levam. E ainda, ressaltamos como
rurais em 1982, o Movimento de Mu- a participação política abre portas para
lheres Trabalhadoras Rurais – Sertão que as mulheres vivenciem experiên-
Central (MMTR-SC). cias e mudanças em suas vidas, que
As mulheres tiveram como motiva- seriam impensáveis se estivessem res-
ção a reivindicação para serem iden- tritas à esfera doméstica e aos padrões
tificadas como trabalhadoras rurais, o de gênero.
reconhecimento de sua profissão, de
constituírem-se enquanto classe a fim
de produzir força política nos espaços DOS CAMINHOS METODOLÓGICOS
políticos, econômicos e sociais, além
Para a coleta de dados, partiu-se de uma
de estabelecerem uma identidade. abordagem qualitativa, fazendo uso de
No entanto, a luta das mulheres para observação participante em oficinas e
serem reconhecidas enquanto traba- seminários, promovidos pela Casa da
lhadoras rurais não garante necessaria- Mulher do Nordeste (CMN) - orga-
mente mudanças estruturais nas rela- nização não governamental feminista
ções de gênero, do mesmo modo que a que atua no território junto aos grupos
entrada da mulher no mercado de tra- produtivos de mulheres1 – em parceria
balho não as tornam (imediatamente) com o Núcleo de Estudos, Pesquisas e
mais independentes de seus maridos e Práticas Agroecológicas da Universida-
autônomas politicamente. Ainda que de Federal Rural de Pernambuco (NE-
saibamos que a ocupação crescente das PPAS). Realizou-se ainda, entrevistas
mulheres em espaços na esfera pública semiestruturadas com mulheres rurais
não deixa de ser um passo para essas que possuem mais de dez anos de par-
mudanças estruturais na nossa socie- ticipação política.

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Para a realização da pesquisa, conta- acatamos a sugestão. Além disso, para


mos com a participação de dois grupos termos de privacidade, as mulheres
de mulheres localizados no Sertão do alertaram que poderíamos identificar
Pajeú, no estado de Pernambuco, nos o município no qual elas residem, mas
municípios de Santa Cruz da Baixa não a comunidade, para que dificulte
Verde e Mirandiba. A escolha destes que elas sejam reconhecidas.
grupos ocorreu devido à relação de
As decisões coletivas são percebidas
empatia e confiança que se estabeleceu
como fator que reforça o empodera-
entre as mulheres e a pesquisadora, na
mento das mulheres rurais frente à
ocasião da realização de atividades pro-
academia, afastando a ideia de reduzi-
movidas pela CMN e NEPPAS.
-las a objeto de pesquisa e encará-las
As mulheres foram selecionadas a par- como sujeitos de conhecimentos, que
tir dos seguintes critérios: participar da possuem experiências, saberes e condi-
sua organização desde o surgimento; ções de construir a pesquisa conosco,
ter forte atuação na organização; e par- nas decisões metodológicas e no com-
ticipar ou já ter participado de outros partilhamento de informações.
espaços políticos (sindicato, associa-
ção, conselho), ocupando cargos de Apesar de entendermos a importância
poder e decisão (direção, coordenação, de evidenciar essas mulheres enquan-
presidência etc). O tempo de partici- to “atrizes sociais”, que possuem uma
pação também se colocou como um atuação e posição no espaço social e
importante critério para a escolha das político a partir de suas histórias, pro-
entrevistadas, pois a pesquisa realizada jetos e experiências, optamos por não
para a tese de doutoramento recorreu expor os nomes das mulheres, pois, em
às trajetórias de participação política alguns momentos, foram relatadas si-
para evidenciar as questões que elen- tuações da intimidade de suas vidas e,
cam as relações de gênero intrafamilia- ainda, por vezes, envolvendo a família.
res. Dessa forma, as mulheres estão iden-
tificadas com pseudônimos referentes
Diante dos critérios que atenderiam os
aos nomes populares de plantas endê-
nossos objetivos e outros que foram
micas da Caatinga3.
manifestados na aproximação com as
mulheres, como os seus históricos de As entrevistas realizadas junto às mu-
experiências participativas, escolhemos lheres de Santa Cruz da Baixa Verde
as mulheres entrevistadas a partir da ocorreram em suas residências, uma
indicação das próprias mulheres dos vez que todas moram na mesma co-
grupos. Foram elas que nos ajudaram munidade, já no caso das mulheres de
a identificar quais mulheres se encai- Mirandiba, as entrevistas ocorreram na
xavam no perfil que gostaríamos. Bem Associação de Moradores, em um dia
como no caso de Mirandiba, foi-nos que elas já estavam no local para par-
sugerido entrevistar mulheres de diver- ticipar de uma atividade com a CMN.
sas comunidades rurais que compõem Estas mulheres moram muito distante
o Fórum de Mulheres de Mirandiba2, e uma das outras, em comunidades de

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“Eu escuto o lado bom!”

difícil acesso, por isso, aproveitamos A literatura (Cordeiro 2010; Abreu &
esta oportunidade. Lima 2010; Bordalo 2011; Jalil 2013)
que versa sobre o processo de organi-
zação e participação das mulheres ru-
A VIDA PÚBLICA E POLÍTICA DAS
rais nos movimentos sindicais, sociais
MULHERES RURAIS DIANTE DOS
e feministas menciona a preocupação
OLHOS DA COMUNIDADE: JULGA-
das mulheres rurais sobre o risco de fi-
MENTOS COM BASE NOS PADRÕES
carem “faladas” ou mesmo apresentam
DE GÊNERO
depoimentos de mulheres assumindo
Entendemos por comunidade um gru- que ficaram “faladas” em suas comu-
po de pessoas localizado em área geo- nidades, por ultrapassarem os limites
gráfica limitada, que interage a partir de sociais estipulados às mulheres.
instituições comuns e possui um senso As mulheres rurais sertanejas confir-
de interdependência, integração e per- mam a existência do controle moral em
tencimento (Elias & Scotson 2000; suas comunidades. Algumas mulheres,
Oliveira 2011). As comunidades rurais como Jurema e Aroeira, costumam dar
onde habitam as mulheres da nossa satisfações, dizendo onde estavam e o
pesquisa se caracterizam pelos grupos que estavam fazendo, demonstrando
de vizinhança, relações de solidarieda- certa preocupação em evitar comentá-
de e, principalmente, de parentesco. rios depreciadores.
Recorremos ao conceito de comunida- ““Oxe, aquela mulher só vive no
de para explicitar as suas características mundo, só levando a cama pra
e relacionar com as reações dos indiví- onde ela vai...”. Eu dizia “Não levo
duos sobre o comportamento das mu- minha cama”. Mas tem gente que
lheres rurais (lideranças) que destoam fica com um olhão. Às vezes, tem
gente que vai chegando, a gente
do padrão esposa-mãe-dona de casa ao
percebe assim, quando a gente vai
admitir outros papéis e diante da recu- saindo com uma bolsa... “Oxe, que
sa de limitar-se aos espaços sociais e que aquela mulher vai sair fora de
destinos que lhes foram pré-definidos casa, que que ela vai sair pelo mun-
(casa, grupo familiar e comunidade). do, deixar marido, deixar filho”. Já
As comunidades rurais compartilham teve pessoas que olharam minha
significados, valores, estabelecem laços chegada e depois diz “já chegou em
casa?”, e eu digo “estava em tal can-
sociais e um modo de vida. Dessa for-
to.” Às vezes pode pensar “aquela
ma, as mulheres rurais relataram que,
mulher só vive no mundo”, isso é
ao longo de sua trajetória participativa, uma curiosidade, pensando que a
elas foram alvo da circulação de fofo- gente está fazendo coisa errada por
cas e maus julgamentos, que chegava a aí, mas eu, como mulher adulta, te-
interferir na sua família nuclear. No en- nho meu marido, meus filhos, não
tanto, as fofocas, os maus julgamentos vou fazer coisa errada não, sei o
e desqualificações não são particulari- que quero da vida” (Jurema).
dades das comunidades de Mirandiba e “Não fala a mim mesma, mas eu
Santa Cruz da Baixa Verde. sinto aquela coisa, diz “tu foi pra

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onde?”, “fui pra uma reunião no políticas, precisam circular em diversos


Feijão.”, “é tanta reunião!”, aí eu espaços e ultrapassam cotidianamente
digo o objetivo da reunião” (Aro- os limites do espaço doméstico, ame-
eira). açando a organização doméstica e fa-
O espaço público sempre foi atribuído miliar. Oiticica relata que é frequente-
aos homens, a eles sempre foi garantida mente questionada sobre as suas saídas
a liberdade de ir e vir e poder circular de casa em relação às suas obrigações
em outros lugares, outras comunidades domésticas e, normalmente, são “as
e municípios. No momento em que as mulheres da comunidade” quem mais
mulheres começam a adentrar nesses a interpela.
espaços, dá-se um conflito social na “Comentam, sempre tem aqueles
comunidade. Como estratégias de con- que dizem “Uma pessoa com três
trole social e moral sobre sua atuação filhos pequenos, marido pra cuidar,
política, as mulheres ficam “mal fala- casa e tudo, ainda arruma tempo
das” e viram alvo de fofocas nas co- pra ir pra reunião, pra passar dia
munidades rurais. Rosineide Cordeiro fora, num sei o que...” Eu num ligo
argumenta que as ordens morais de gê- muito, não. E ainda tem aqueles
nero, em torno da limitação da circula- que dizem “Poxa, mas Oiticica tem
ção nos espaços, apresentam-se como força de vontade, porque pra ter
mais um dos diversos obstáculos que aquele monte de preocupação que
as mulheres rurais militantes se depa- ela tem, ainda arruma tempo pra
ram em sua trajetória participativa. ir pra reunião, num falta uma reu-
nião”. Porque é difícil eu faltar, tem
“E a comunidade exerce vigilância
os dois lados, né? Eu escuto o lado
para que assim continue, utilizan-
do entre outros instrumentos, a bom” (Oiticica).
fofoca. Ficar “falada”, ser alvo de Oiticica também afirma que algumas
comentários dos vizinhos e conhe- pessoas reconhecem o seu esforço,
cidos, “não ser considerada uma diante da sua realidade familiar e do-
mulher direita” são algumas das méstica e de sua ativa participação nos
artimanhas que homens e mulhe-
espaços políticos e sociais. Ela diz que,
res utilizam para impor limites ao
ir e vir das mulheres” (Cordeiro diante das críticas, prefere assimilar
2010:161). apenas as palavras positivas de reco-
nhecimento.
A comunidade exerce vigilância moral
sobre as mulheres inseridas nos espa- Já Catingueira levanta dois pontos in-
ços públicos e políticos, isso significa teressantes. Ela também reconhece as
que, se elas não estão em casa, elas críticas que recebe e os maus julgamen-
estão rompendo com os padrões so- tos da comunidade e afirma que isso é
ciais que regem as relações (desiguais) um problema para a sua mãe, que se
de gênero, nas quais se perpetua a di- preocupa “com o que os outros vão falar”.
visão sexual do trabalho. Ou seja, as Assim, muitas vezes, os comentários
mulheres lideranças rurais, devido às depreciativos atingem mais os outros
suas atribuições e responsabilidades familiares do que a própria mulher.

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Baraúna relata que, logo que come- lítica e social da sua militância, pois
çou a participar dos espaços políti- é por meio da sua luta junto às suas
cos, as pessoas “falavam dela”, princi- companheiras que elas conseguem le-
palmente para o seu marido, com a var projetos sociais para a comunida-
intenção de provocar conflitos con- de e acessar políticas públicas4. Nesse
jugais. Contudo, apesar de ele recla- sentido, Imburana também relata que,
mar, nunca a impediu de sair de casa, a partir do momento que as pessoas da
mas se preocupava se alguém o vis- comunidade começaram a ver os resul-
se fazendo as atividades domésticas tados “concretos” do trabalho político
no lugar de sua esposa. Aqui, a in- das mulheres, elas passaram a ser mais
versão dos papéis – mulher-público; respeitadas.
homem-privado – aparece, de certa “O povo fala que é desocupada quem
forma, negociada. Mas, perante a co- anda assim. Quem se preocupa muito é
munidade, é algo inaceitável a ser ex- minha mãe. A mãe fala “Mulher, tu vai
posto, pois se trata de um rompimen- passar esse tanto de dia? Acaba com essa
to muito rigoroso com os padrões de reunião, isso não tem futuro não”. O povo
gênero que regem a divisão sexual do diz que isso é pra gente que não tem o que
trabalho no meio rural e infringe a fazer. Só que quando adquire um projeto
pra comunidade, não sabe como foi, pensa
“honra” e a masculidade do homem
que o governo dá as coisas, é porque teve
público, político e “de fora”.
quem batalhasse!” (Catingueira).
“Falavam principalmente pra ele
“O primeiro projeto nosso foi da associa-
“Ah, sua mulher vai com outras
ção, foi de caprinos, que veio pra todos os
pessoas, não sabe nem quem é, o
associados. Quando chegou, fez a compra,
que tá fazendo, deixa você aí cui-
dividiu e todo mundo ficou feliz, alegre.
dando da casa, cuidando dos fi-
Aí, depois veio o segundo, que foi do Fó-
lhos”. Aí ele começou a se trancar
rum com a Casa da Mulher do Nordeste.
dentro de casa pra fazer as coisas.
Foi um projeto de galinhas, aí ficaram
Porque ele sabe cozinhar, sabe la-
mais animados. Já tem esse outro do fogão
var, sabe passar, sabe limpar a casa.
e esse outro da ATER5. Aí pronto, nin-
A questão é passar uma pessoa e
guém diz nada, tá é doido pra participar”
ver. Quando ele quer, ele faz. [...]
(Imburana).
Acredito que uma minoria ainda
fale, mas acho que por eu sempre Izaura Fischer constata que as mulhe-
viajar, eles acham que eu que tenho res pagam um preço alto diante do seu
que assumir esta responsabilidade “desvio de identidade” – da mulher re-
e continuar viajando. Elas dizem catada, caseira e passiva – mesmo ob-
“ela quem vai, ela quem sabe fazer tendo conquistas materiais para a famí-
isso”, mas eu tô mostrando que lia e para a comunidade por meio dos
não, que todas nós sabemos e po- movimentos que participam.
demos” (Baraúna).
“Estão inseridas no conservadoris-
Outra questão que Catingueira ressal- mo do mundo rural em que rom-
ta é o seu próprio reconhecimento e per os preconceitos pode custar
valorização diante da importância po- perdas de apoio, de afetividade, de

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Moraes, L. L. de

amizade e de relacionamento que desaprovação coletiva e familiar pode


antecederam sua própria existência, ser um empecilho para a participação
como a vinculação com os pais. As política.
mulheres [...] confrontam-se e rom-
pem relações com os parentes mais
próximos, e recebem um tratamen- AS PORTAS DA VIDA QUE SE ABREM
to diferenciado na sociedade” (Fis-
A PARTIR DA PARTICIPAÇÃO POLÍ-
cher 2006:16).
TICA
O rompimento com as regras sociais
provoca mudanças, no entanto, não há As mudanças que ocorreram nas vidas
mudança sem rupturas, e as relações das mulheres rurais ao longo da sua
sociais estão impregnadas de valores trajetória participativa são inúmeras.
que são continuamente reelaborados Contudo, no que se refere à questão
pela sociedade (Jalil 2013). da divisão sexual do trabalho, o pro-
cesso das transformações na organiza-
As mulheres rurais sertanejas afirma-
ção doméstica se dá de maneira mais
ram que, no início da sua trajetória de
lenta, no entanto, as próprias mulheres
participação política, os comentários
reconhecem pequenas mudanças nas
eram mais frequentes e numerosos,
relações familiares. O empoderamen-
com o passar dos anos, a comunida-
to se estabelece por meio de um pro-
de passa a se acostumar, pois a movi-
cesso e, diante dos costumes e valores
mentação de mulheres se torna mais
arraigados em nossa cultura ocidental
frequente na Associação, além de que
e machista, que perpetua valores essen-
os resultados de sua mobilização po-
cialistas – principalmente no que tange
lítica se tornam “concretos” por meio
o meio rural -, quebrar as regras sociais
de benfeitorias materiais, o que acaba
não se trata de uma tarefa fácil.
agregando outras mulheres aos grupos.
Em conversas informais durante uma O depoimento de Aroeira é uma refle-
oficina, uma das mulheres confessou xão sobre o quanto ela avançou, mas
que sua mãe sempre a convidava para também o quanto precisa avançar e o
as reuniões, mas ela só entrou no gru- que gostaria que fosse modificado em
po depois que viu a sua mãe ser bene- sua relação conjugal. Ela vê a separa-
ficiada por um projeto executado por ção (do marido) como uma forma de
uma ONG. romper com as desigualdades nas rela-
ções de gênero dentro do seu lar.
Os comentários que controlam a mo-
“Aroeira: Mudou o poder, que eu
bilidade das mulheres rurais nos espa-
tenho mais autonomia. De 100%,
ços sociais não se extinguiram, contu-
mudou 70%, ainda tem 30 que eu
do, para as mulheres lideranças, não não conquistei ainda.
chegam a ser um fator de impedimen- Lorena: Em relação a quê você
to para a sua participação, mas é válido acha que tem de conquistar?
lembrar que para a maioria das mulhe- Aroeira: Em relação ao esposo.
res rurais, que ainda não se encontra Lorena: Na relação, na negociação?
em processo de empoderamento, a Aroeira: Sim, porque assim: eu que-

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“Eu escuto o lado bom!”

ria que as tarefas fossem divididas, res, mudou bastante, porque eu já


no dia que eu saísse, ele fizesse. tinha perdido a minha autoestima
Ele ainda tem aquele preconceito de voltar a estudar” (Baraúna).
que o homem não é pra fazer coi- “Aí depois que a gente entrou nes-
sa de casa, quem tem que fazer é sas reuniões de associação, essas
a mulher, o homem não é pra la- ONG, essas que a gente participa,
var roupa, quem tem que lavar é a aí foi o tempo que eu fiquei mais
mulher. Eu tenho que lavar roupa desenvolvida, foi muito bom pra
no domingo, porque tanto eu tra- mim, eu tive muitos conhecimen-
balho na horta de manhã, aguo as tos, comecei a fazer amizade com
plantas [...]6. E também a questão muitas pessoas, muita gente mara-
das despesas de casa, que não é di- vilhosa. Hoje eu me sinto feliz! Eu
vidida. Ele acha que porque traba-
nunca me arrependo de ter entrado
lha na roça, não tem um emprego
nessas coisas. Mudou muito, muito,
fixo, não tem obrigação de ajudar e
muito” (Mandacaru).
que como eu recebo o Bolsa Famí-
lia, que é no meu nome e que é pra Participar dos espaços públicos e po-
família, ele pensa que já tá dando a líticos implica em adotar posturas,
parte dele. Eu não sei se vou viver comportamentos e compartilhar códi-
muito tempo com ele por causa dis- gos não convencionais para “a mulher
so, porque se ele não mudar, não sei rural”, pois, a lógica da unidade fami-
até quando vou aguentar”. liar camponesa reproduz uma estru-
No entanto, destacamos as mudanças tura conservadora, heteronormativa
que aparecem com mais frequência e machista, estabelecendo papéis que
nos depoimentos das mulheres rurais ressaltam a importância do homem
e tais mudanças se referem à liberdade, no cerne da família (e representante
autoestima, novos vínculos interpes- do grupo familiar no espaço público)
soais, o acesso e interesse por novos e a posição submissa e desvalorizada
conhecimentos, sentem-se mais inteli- das atividades femininas (Paulilo 2004;
gentes, mais “desenvolvidas”, o acesso às Carneiro 1994; Brumer 2004). Assim,
políticas públicas e à aquisição do po- participar desses espaços numa posi-
der da fala e de liderança. ção de representação e de liderança é
“Abriu tantos horizontes… Eu ainda mais desafiador para as mulhe-
acho que eu não consigo mais pa- res. Neste sentido, Jurema conta que,
rar, abriu uma sede de estar partici- mesmo com muita vergonha de falar,
pando, de estar adquirindo conheci- assumiu cargos de decisão nos espaços
mentos, melhorou muito a questão
em que participa e hoje ela se percebe
em relação à minha família, de
compreender as outras mulheres, a
“mudada” diante de suas experiências
questão de ter mais argumento pra participativas.
deixar as pessoas mais informadas, “Ah, mudou muita coisa, eu tinha
me deixou mais empoderada pra vergonha de falar, hoje eu chego,
abrir discussão com qualquer ho- falo em público e era presidente,
mem, pra explicar essa questão das dava reunião e também fui secre-
mulheres, dos direitos das mulhe- tária, escrevia tudo, lia a ata lá na

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Moraes, L. L. de

frente, tinha vergonha de ler lá na coisa pra me testar, pra ver mesmo
frente, era matuta, que nem diz a se eu tô fortalecida nas minhas de-
história. E, depois, fui a tesoureira e cisões” (Baraúna).
me desenvolvi muito bem. Eu achei
As mulheres se veem no processo da
que foi uma experiência de vida pra
mim, me ensinou muita coisa” (Ju-
participação enquanto sujeitos de direi-
rema). to, ocupam espaços públicos e políti-
cos, em sua maioria, não se inibem ao
Jurubeba relembra a sua timidez e hoje se expressarem – mesmo que algumas
incentiva as outras mulheres a se ex- companheiras ainda esbarrem nessa di-
pressarem oralmente nos espaços pú-
ficuldade, que faz parte de um proces-
blicos e políticos.
so histórico de permanência da mulher
“Mudou muito, mudou bastante. no âmbito privado, de dedicação às
Em termos da pessoa falar. A pes-
tarefas domésticas, que limitavam seu
soa é tímida, às vezes, não falava
poder de negociação, expressão oral
porque pensava que estava falando
errado. Então, hoje em dia é assim, e contestação – ocupam cargos de di-
se a pessoa tiver falando errado, reção, nos quais atuam, abrem-se para
tem alguém que aconselhe, que diz adquirir novos conhecimentos, novas
“não faz assim, é assim”, então a informações por meio de cursos, in-
gente vive pra dar conselho um ao tercâmbios (de experiências agrícolas),
outro” (Jurubeba). capacitações, ingresso na universidade
Percebemos que os relatos referentes etc.
ao “poder de fala” adquirido com sua O grau de escolaridade das lideranças
experiência e trajetória participativa é rurais da nossa pesquisa varia do En-
algo muito relevante para as mulheres sino Fundamental incompleto até o
rurais, pois elas passam a ter mais segu- Ensino Superior. A baixa escolaridade
rança ao expressarem as suas opiniões entre as mulheres rurais (em geral) é
e ideias nos espaços públicos. Cordeiro uma realidade. A participação em es-
(2010) afirma que o “poder da fala”, no paços públicos e políticos aguça o de-
qual nos referimos, envolve reconhecer sejo das mulheres rurais de aprender,
que há um modo de falar e esse modo adquirir os mais diversos conhecimen-
se aprende, implica em adquirir reper- tos. Acima, Baraúna afirma que voltou
tórios linguísticos e superar o medo a estudar depois que começou a parti-
de falar errado. Baraúna reconhece a cipar dos espaços políticos e o mesmo
sua “evolução” diante da fala e mostra acontece com Quixabeira.
segurança e empoderamento ao iden-
“[...] Quando eu comecei a partici-
tificar que, às vezes, é testada por seus par desses espaços, por exemplo,
companheiros e, assim, é necessário até mesmo a formação do grupo,
que esteja preparada para a argumen- essas capacitações que eu partici-
tação e decisão. pava, seminários e tudo, abriu mais
“Mudou. Eu ganhei mais conheci- minha mente pra questão de in-
mento, mais poder de fala. Mas, al- gressar numa universidade, eu não
gumas coisas viraram contra mim, tinha, assim, esse pensamento. Eu

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“Eu escuto o lado bom!”

achava “não, vou terminar o En- políticas públicas. Imburana destacou


sino Médio e vou ver o que vou o acesso ao Programa de Aquisição
fazer.” Não tinha tanto esse pen- de Alimentos (PAA)8 e à Assessoria
samento voltado pra uma universi- Técnica Rural (ATER), no que tange
dade. Quando eu fui participando, à oportunidade de alcançar autonomia
vendo aquelas coisas, aí foi abrindo
econômica e política por meio das po-
minha mente pra ingressar em um
Ensino Superior. E foi a partir daí
líticas públicas.
que eu tive esse interesse. É enri- “Mudou, que antes a gente não sa-
quecedor, muitas coisas que a gente bia como trabalhar em horta, teve
faz, muitos acham besteira e tudo, capacitação, a gente aprendeu, fez
só que pra gente é de extrema im- a horta, vendeu muito e, pra mim,
portância, depois a gente vai ver deu tudo certo. A gente começou a
que é muito importante” (Quixa- vender pro PAA, foi lá onde a gen-
beira). te teve acesso de comprar as coi-
sas que não tinha, comer melhor,
Dentre as formas de adquirir conheci- dormir melhor também, foi bom”
mento, por meio das articulações dos (Imburana).
grupos de mulheres, das parcerias com
as ONGs e sindicatos, as mulheres Os grupos de mulheres, especifica-
têm a oportunidades de participar de mente, assumem a responsabilidade de
diversos cursos de capacitação agrí- empoderar as mulheres, fortalecendo a
cola e não agrícola. Para lembrar o sua autoestima, mas também levando
processo histórico de participação das informações que lhes são preciosas,
mulheres, este era um ponto de reivin- que questionam as relações com os
dicação, pois os cursos de capacitação companheiros no que se refere às polí-
técnica eram voltados somente para os ticas públicas. Assim, Aroeira relembra
homens (Cappellin 1989; Silva & Por- das atividades do grupo de mulheres
tella 2010). As mulheres não recebiam que faz parte, ao deixar explícitos os
incentivos para participar de cursos de direitos das mulheres e fazer com que
capacitação, pois sequer eram reconhe- elas compreendam isso.
cidas como trabalhadoras. “O [dinheiro] da escola ele não fi-
cava, mas ele sempre dizia assim
Jurema também ressaltou a importân- “vamos comprar uma ovelha, va-
cia e mudança na sua vida decorrentes mos comprar aquilo”. E o Bolsa
dos cursos de formação e capacitação Família ficava com ele. Aí, depois
que participou e destaca o curso sobre das reuniões, que sempre batia na
gestão da água, que é uma das ativida- mesma tecla: o Bolsa Família é um
des do Programa Um Milhão de Cis- direito da mulher, por isso tá no
ternas7 (P1MC). Ela afirma que esses nome da mulher, então elas têm
cursos foram fundamentais para a me- que dominar esse dinheiro, fazer as
lhoria de sua produção agrícola, que compras de casa, mas é da mulher!”
fez com que ela aumentasse sua renda (Aroeira).
e melhorasse a qualidade de vida da fa- Diante do depoimento de Aroeira, ain-
mília, além de possibilitar o acesso às da identificamos uma questão típica

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Moraes, L. L. de

nas relações de gênero da população dos pelas ONGs feministas e pela uni-
rural: “quem decide o destino da ren- versidade, afirmam a importância da
da”. Ela afirma que, até participar dos produção voltada para a economia so-
grupos de mulheres, ela repassava o re- lidária, para a propagação das relações
curso do Bolsa Família para o seu ma- sociais entre as mulheres, a valorização
rido. Os estudos acerca das relações de dos elementos culturais e, principal-
gênero da população rural têm levan- mente, o reconhecimento das mulhe-
tado a questão do domínio da renda. res rurais enquanto trabalhadoras.
Os homens, por serem aptos a circular Para finalizar, as viagens aparecem
nos espaços públicos, possuem o po- como um ganho fundamental para
der de decisão em relação aos gastos e a vida das mulheres, além de elas co-
ao consumo familiar. nhecerem novas pessoas, conhecem
Entretanto, essa questão só apareceu novos lugares, circulam por espaços
no depoimento de Aroeira e ela reco- que vão muito além de suas comunida-
nhece que é algo que ficou no passado, des rurais. As viagens que as mulheres
pois, com o apoio das suas companhei- fazem decorrentes das oportunidades
ras, agora ela tem a compreensão que proporcionadas pelos espaços de par-
esse recurso é um direito das mulhe- ticipação são relatadas com muita sa-
res – que são as principais responsá- tisfação.
veis pelo trabalho reprodutivo familiar. “Mudou tudo, porque antes eu não
Cinco mulheres afirmaram que a de- sabia, não conhecia de nada, não
cisão do emprego da renda familiar é assistia reunião, não viajava, não ti-
feita em conjunto com o marido e as nha liberdade pra viajar e, hoje, eu
demais, afirmaram que elas decidem já faço tudo isso. Pra mim, foi um
sozinha o destino da renda familiar. ponto positivo na minha vida, mu-
Como se trata de um grupo específico, dou tudo” (Imburana).
não identificamos conflitos intrafami- As viagens requerem ainda mais dispo-
liares em relação ao destino da renda. nibilidades de tempo das mulheres, re-
Algumas mulheres relataram que elas querem negociações e estratégias mais
ficam com o dinheiro do Bolsa Famí- cautelosas com a família, mas elas afir-
lia e com o recurso decorrente do que mam que não deixam de ir, somente se
vendem na feira e o seu companheiro o motivo for doença9. Assim, as mu-
com a diária do trabalho na roça, mas, lheres ultrapassam os limites das suas
no final, todo esse recurso se volta para comunidades, participam de eventos e
o autoconsumo familiar. feiras em outros municípios, de semi-
As mulheres estão se instrumentalizan- nários e congressos em outros estados
do e aderindo as suas próprias formas e até intercâmbios em outros países.
de produção, que vão além do sentido A participação política das mulheres
economicista do mercado e que re- provoca transformações em diversos
forçam as estruturas do capitalismo e âmbitos da vida, além das práticas po-
do machismo. Por meio dos cursos de líticas e das lutas coletivas que garan-
capacitação, sobretudo, aqueles realiza- tem acesso às políticas públicas e às

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“Eu escuto o lado bom!”

informações que podem beneficiar a paços de participação é casada e pos-


comunidade. A participação provoca sui mais de dois filhos, ou seja, o seu
principalmente mudanças e reconfigu- estado civil e a condição de mãe não
rações nas relações intrafamiliares e de impedem as mulheres de adentrarem
gênero. As mulheres não negam que na esfera pública e política.
não existam conflitos em casa e na co-
Assim, percebemos um paradoxo, pois
munidade, mas, diante de seu processo
as mulheres rurais são criticadas e, por
de empoderamento, elas não deixam
vezes, impedidas por seus familiares de
de se deslocar para buscarem os seus
participarem dos espaços públicos e
interesses políticos e pessoais.
políticos, no entanto, aquelas que par-
A saída para a participação política ticipam, tomam conhecimento da luta
abre novas portas da esfera pública, as política por seus companheiros, pais,
mulheres ampliam seus conhecimen- irmãos e outros familiares e, ainda as-
tos, seus interesses e seu desejo por sim, a sua circulação na esfera públi-
transformações. Assim, elas rompem ca não ocorre de maneira totalmente
a “cerca” doméstica e se veem com aceitável. O rompimento das mulheres
liberdade e capacidade para estudar, rurais com as estruturas que definiram
trabalhar, viajar e conhecer novas pes- o seu papel na sociedade é um proces-
soas. Essas mulheres, lideranças rurais, so conflitivo e lento, que é construído
possuem uma trajetória política e estão paralelamente ao seu processo de em-
em processo de empoderamento e não
poderamento, e não dispõe de apoio
cabem mais nos limites da esfera priva-
daqueles que serão prejudicados com
da, pois elas “não conseguem mais parar de
a reorganização de tarefas e responsa-
participar”!
bilidades.
Percebemos que o processo de em-
CONSIDERAÇÕES FINAIS poderamento acontece de maneira
coletiva e que os espaços políticos de
Ainda que essas mulheres possuam participação destinados às mulheres
uma trajetória participativa constru- atuam como local onde este processo
ída ao longo de dez ou mais anos,
se constrói e se estabelece. As relações
percebeu-se que a transição da esfe-
de poder, de opressão e de submissão
ra privada para a esfera pública ainda
passam a ser reconhecidas como tal e
acontece sob comentários depreciati-
deixam de reger a vida das mulheres
vos e desconfianças provenientes tan-
de forma neutra ou natural, pois, mes-
to dos familiares como dos membros
mo aquelas mulheres que reconhecem
da comunidade rural, com o intuito de
permanecer em situação de submissão,
controlar os limites de mobilidade das
mulheres. Apesar disso, foi constata- passam a identificar tais situações e re-
do, tanto em relação às mulheres por fletem em busca de mudanças para as
nós entrevistadas como na pesquisa da suas vidas.
Marcha das Margaridas, que a maioria A saída do privado para o público
das mulheres rurais que estão nos es- provoca transformações na vida das

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Moraes, L. L. de

mulheres no retorno do público para espaço em que as mulheres podem


o privado, não somente nas relações transitar e sequer é um espaço exclusi-
intrafamiliares, mas principalmente vo das mulheres.
na autoestima e na construção da
autonomia das mulheres. A dinâmica
participativa, que requer uma lingua- NOTAS
gem, posicionamentos e comporta- 1
Os grupos produtivos de mulheres são
mentos específicos para encarar os espaços que propiciam o rompimento da
demais companheiros e situações de invisibilidade do trabalho produtivo das
disputa política, concede às mulheres mulheres rurais, possibilitando uma ren-
novos posicionamentos também no da monetária (ainda que seja modesta) e
ambiente doméstico. Pois as mulhe- acesso à capacitação e à comercialização.
res afirmam que antes da experiên- Esses grupos também possibilitam a saída
cia participativa não tinham coragem de casa, a socialização das mulheres com
para questionar, enfrentar e negociar outras mulheres, o compartilhamento de
com seus maridos. experiências, o fortalecimento político e
de autoestima, contribuindo para a cons-
A participação política é um exer- trução da autonomia nas dimensões eco-
cício democrático que se estabelece nômica, cultural, social e política.
para além da esfera pública, impac- 2
O Fórum de Mulheres de Mirandiba é
tando a vida privada das mulheres, um espaço composto por uma média de
proporcionando meios de quebrar as 30 mulheres rurais (que participam dire-
barreiras da invisibilidade, da subal- tamente) de quatro comunidades, sendo
ternidade e da inferioridade propor- duas comunidades quilombolas e uma in-
cionadas pela dominação masculina. dígena. O Fórum surge com a finalidade
A participação política na vida das de resgatar a autoestima das mulheres e in-
mulheres rurais se materializa como centivar e apoiar a participação política nos
um caminho que aponta para o ques- movimentos locais e sociais. Contudo, ao
tionamento das relações de gênero, longo da trajetória do Fórum, este foi ado-
alterando o cotidiano familiar e os tando estratégias de ação produtiva junto
valores comunitários vigentes do às mulheres.
meio rural. 3
As espécies escolhidas para nomearem
as mulheres entrevistadas foram: Caroá,
A participação política proporciona Mandacaru, Aroeira, Imburana, Catinguei-
sonhos, desejos e conhecimentos que ra, Oiticica, Baraúna, Jurema, Jurubeba e
as mulheres rurais sequer pensavam Quixabeira.
que poderiam desejar e alcançar. A 4
Em conversas durante as oficinas, uma
participação política tem alterado os
das mulheres relatou que não é qualquer
indicadores referentes à escolaridade projeto que chega à comunidade que é bem
das mulheres. A participação política vindo. Em um projeto do INCRA para a
influencia a vida privada das mulheres população quilombola, elas questionaram
rurais na medida em que abre diversas o tamanho e a disposição dos cômodos
janelas da esfera pública, deixando cla- das casas que seriam construídas nas co-
ro que a esfera privada não é o único munidades, pois, de acordo com a orga-

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“Eu escuto o lado bom!”

nização familiar, aquele “modelo pronto” SAN) do Ministério do Desenvolvimento


não atendia à realidade daquela população. Social e Combate à Fome (MDS).” Ver:
Tal reivindicação foi feita e alcançada. Isso http://mds.gov.br/acesso-a-informacao/
demonstra o grau de empoderamento des- perguntas-frequentes/seguranca-alimen-
sas mulheres, pois, além de elas travarem tar-e-nutricional/aquisicao-de-alimentos-
uma “batalha” em casa, na comunidade e -da-agricultura-familiar.
nos espaços mistos para se posicionarem, 9
Anotações do caderno de campo.
elas também questionam os gestores pú-
blicos e não aceitam qualquer projeto ou
política pública.
REFERÊNCIAS
5
O Programa de Organização Produtiva
de Mulheres e Ater para Mulheres Rurais, Abreu e Lima, M. S. 2010. As mulheres no
entre 2008 e 2010, apoiou 148 projetos, be- sindicalismo rural, in Agricultura familiar e
neficiando mais 79 mil mulheres e suas or- gênero: práticas, movimentos e políticas pú-
ganizações produtivas, redes e articulações. blicas. Editado por P. Scott e R. Cordeiro.
As chamadas públicas foram realizadas em 2 ed. pp. 101-123. Recife: ed. Universitária
parcerias com MDA, Incra, Ministério da UFPE.
do Desenvolvimento Social, Ministério Bordalo, C. A. 2011. Os caminhos da polí-
da Pesca e Aquicultura e da Secretaria de tica: o sindicalismo rural e os movimentos
Políticas para as Mulheres. Os convênios de mulheres trabalhadoras rurais em Per-
com organizações feministas para ampliar nambuco. Dissertação de mestrado, Uni-
e qualificar o acesso das mulheres assen- versidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
tadas e da agricultura familiar às políticas Rio de Janeiro.
públicas do MDA propiciou a capacitação
de 7.139 mulheres em 86 territórios da Cappellin, P. 1989. Silenciosas e combati-
cidadania. Ver: http://www.mda.gov.br/ vas: as contribuições das mulheres na es-
sitemda/secretaria/dpmr-org/resultados. trutura sindical do Nordeste, 1976/1986,
in  Rebeldia e submissão: estudos sobre a con-
6
Suprimimos algumas tarefas muito espe-
dição feminina. Editado por A. O. Costa e
cíficas que poderiam identificar a liderança.
C. Bruschini, pp. 225-298. São Paulo: Ed.
7
http://www.asabrasil.org.br/acoes/p1mc. Vertice/ Fundação Carlos Chagas.
8
“O Programa de Aquisição de Alimentos Cordeiro, R. 2010. Empoderamento e mu-
(PAA) compra alimentos produzidos pela danças nas relações de gênero: as lutas das
agricultura familiar com dispensa de licita- trabalhadoras rurais no Sertão Central de
ção. Esses alimentos são distribuídos gra- Pernambuco, in Agricultura familiar e gênero:
tuitamente a pessoas ou famílias que preci- práticas, movimentos e políticas públicas. Edita-
sam de suplementação alimentar (porque do por P. Scott e R. Cordeiro. 2 ed. pp. 145-
estão em situação de insegurança alimentar 171. Recife: ed. Universitária da UFPE.
e nutricional) e também a entidades de as-
Elias, N., e J. L. Scotson. 2000. Os Estabe-
sistência social, restaurantes populares, co-
lecidos e os Outsiders: sociologia das relações de
zinhas comunitárias, bancos de alimentos,
entre outros. Os alimentos adquiridos pelo poder a partir de uma pequena comunidade. Rio
PAA também podem compor estoques de Janeiro: Jorge Zahar.
públicos estratégicos de alimentos. O PAA Fischer, I. R. 2006. O protagonismo da mulher
é coordenado pela Secretaria Nacional de rural no contexto da dominação. Recife: Fun-
Segurança Alimentar e Nutricional (SE- dação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana.

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (2): 264 - 282, 2016 281


Moraes, L. L. de

Jalil, L M. 2013. As flores e os frutos da


luta: o significado da organização e da par-
ticipação política para as mulheres traba-
lhadoras rurais. Tese de Doutorado, Pós
Graduação em Desenvolvimento, Agri-
cultura e Sociedade, Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro.
Oliveira, M. S. L. 2011. Os espinhos, as
flores e os frutos do mandacaru: as trans-
formações na configuração social de uma
comunidade rural camponesa a partir da
intervenção de atores externos. Tese de
Doutorado, Departamento de Ciências
Sociais, Universidade Federal de Campina
Grande.
Paulilo, M. I. S. 2004. Trabalho familiar:
uma categoria esquecida de análise. Revista
Estudos Feministas 12:229-252.
Silva. C.; e, A. P. Portella. 2010. Divisão
sexual do trabalho em áreas rurais no
Nordeste brasileiro. in Agricultura familiar e
gênero: práticas, movimentos e políticas pú-
blicas. Editado por P. Scott e R. Cordeiro.
2 ed. pp. 127-144. Recife: ed. Universitária
da UFPE.

Recebido em 25/02/2017
Aprovado em 24/03/207

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