ÇÃO
TICA
LORENA LIMA DE MORAES
Universidade Federal Rural de Pernambuco
Moraes, L. L. de
difícil acesso, por isso, aproveitamos A literatura (Cordeiro 2010; Abreu &
esta oportunidade. Lima 2010; Bordalo 2011; Jalil 2013)
que versa sobre o processo de organi-
zação e participação das mulheres ru-
A VIDA PÚBLICA E POLÍTICA DAS
rais nos movimentos sindicais, sociais
MULHERES RURAIS DIANTE DOS
e feministas menciona a preocupação
OLHOS DA COMUNIDADE: JULGA-
das mulheres rurais sobre o risco de fi-
MENTOS COM BASE NOS PADRÕES
carem “faladas” ou mesmo apresentam
DE GÊNERO
depoimentos de mulheres assumindo
Entendemos por comunidade um gru- que ficaram “faladas” em suas comu-
po de pessoas localizado em área geo- nidades, por ultrapassarem os limites
gráfica limitada, que interage a partir de sociais estipulados às mulheres.
instituições comuns e possui um senso As mulheres rurais sertanejas confir-
de interdependência, integração e per- mam a existência do controle moral em
tencimento (Elias & Scotson 2000; suas comunidades. Algumas mulheres,
Oliveira 2011). As comunidades rurais como Jurema e Aroeira, costumam dar
onde habitam as mulheres da nossa satisfações, dizendo onde estavam e o
pesquisa se caracterizam pelos grupos que estavam fazendo, demonstrando
de vizinhança, relações de solidarieda- certa preocupação em evitar comentá-
de e, principalmente, de parentesco. rios depreciadores.
Recorremos ao conceito de comunida- ““Oxe, aquela mulher só vive no
de para explicitar as suas características mundo, só levando a cama pra
e relacionar com as reações dos indiví- onde ela vai...”. Eu dizia “Não levo
duos sobre o comportamento das mu- minha cama”. Mas tem gente que
lheres rurais (lideranças) que destoam fica com um olhão. Às vezes, tem
gente que vai chegando, a gente
do padrão esposa-mãe-dona de casa ao
percebe assim, quando a gente vai
admitir outros papéis e diante da recu- saindo com uma bolsa... “Oxe, que
sa de limitar-se aos espaços sociais e que aquela mulher vai sair fora de
destinos que lhes foram pré-definidos casa, que que ela vai sair pelo mun-
(casa, grupo familiar e comunidade). do, deixar marido, deixar filho”. Já
As comunidades rurais compartilham teve pessoas que olharam minha
significados, valores, estabelecem laços chegada e depois diz “já chegou em
casa?”, e eu digo “estava em tal can-
sociais e um modo de vida. Dessa for-
to.” Às vezes pode pensar “aquela
ma, as mulheres rurais relataram que,
mulher só vive no mundo”, isso é
ao longo de sua trajetória participativa, uma curiosidade, pensando que a
elas foram alvo da circulação de fofo- gente está fazendo coisa errada por
cas e maus julgamentos, que chegava a aí, mas eu, como mulher adulta, te-
interferir na sua família nuclear. No en- nho meu marido, meus filhos, não
tanto, as fofocas, os maus julgamentos vou fazer coisa errada não, sei o
e desqualificações não são particulari- que quero da vida” (Jurema).
dades das comunidades de Mirandiba e “Não fala a mim mesma, mas eu
Santa Cruz da Baixa Verde. sinto aquela coisa, diz “tu foi pra
Baraúna relata que, logo que come- lítica e social da sua militância, pois
çou a participar dos espaços políti- é por meio da sua luta junto às suas
cos, as pessoas “falavam dela”, princi- companheiras que elas conseguem le-
palmente para o seu marido, com a var projetos sociais para a comunida-
intenção de provocar conflitos con- de e acessar políticas públicas4. Nesse
jugais. Contudo, apesar de ele recla- sentido, Imburana também relata que,
mar, nunca a impediu de sair de casa, a partir do momento que as pessoas da
mas se preocupava se alguém o vis- comunidade começaram a ver os resul-
se fazendo as atividades domésticas tados “concretos” do trabalho político
no lugar de sua esposa. Aqui, a in- das mulheres, elas passaram a ser mais
versão dos papéis – mulher-público; respeitadas.
homem-privado – aparece, de certa “O povo fala que é desocupada quem
forma, negociada. Mas, perante a co- anda assim. Quem se preocupa muito é
munidade, é algo inaceitável a ser ex- minha mãe. A mãe fala “Mulher, tu vai
posto, pois se trata de um rompimen- passar esse tanto de dia? Acaba com essa
to muito rigoroso com os padrões de reunião, isso não tem futuro não”. O povo
gênero que regem a divisão sexual do diz que isso é pra gente que não tem o que
trabalho no meio rural e infringe a fazer. Só que quando adquire um projeto
pra comunidade, não sabe como foi, pensa
“honra” e a masculidade do homem
que o governo dá as coisas, é porque teve
público, político e “de fora”.
quem batalhasse!” (Catingueira).
“Falavam principalmente pra ele
“O primeiro projeto nosso foi da associa-
“Ah, sua mulher vai com outras
ção, foi de caprinos, que veio pra todos os
pessoas, não sabe nem quem é, o
associados. Quando chegou, fez a compra,
que tá fazendo, deixa você aí cui-
dividiu e todo mundo ficou feliz, alegre.
dando da casa, cuidando dos fi-
Aí, depois veio o segundo, que foi do Fó-
lhos”. Aí ele começou a se trancar
rum com a Casa da Mulher do Nordeste.
dentro de casa pra fazer as coisas.
Foi um projeto de galinhas, aí ficaram
Porque ele sabe cozinhar, sabe la-
mais animados. Já tem esse outro do fogão
var, sabe passar, sabe limpar a casa.
e esse outro da ATER5. Aí pronto, nin-
A questão é passar uma pessoa e
guém diz nada, tá é doido pra participar”
ver. Quando ele quer, ele faz. [...]
(Imburana).
Acredito que uma minoria ainda
fale, mas acho que por eu sempre Izaura Fischer constata que as mulhe-
viajar, eles acham que eu que tenho res pagam um preço alto diante do seu
que assumir esta responsabilidade “desvio de identidade” – da mulher re-
e continuar viajando. Elas dizem catada, caseira e passiva – mesmo ob-
“ela quem vai, ela quem sabe fazer tendo conquistas materiais para a famí-
isso”, mas eu tô mostrando que lia e para a comunidade por meio dos
não, que todas nós sabemos e po- movimentos que participam.
demos” (Baraúna).
“Estão inseridas no conservadoris-
Outra questão que Catingueira ressal- mo do mundo rural em que rom-
ta é o seu próprio reconhecimento e per os preconceitos pode custar
valorização diante da importância po- perdas de apoio, de afetividade, de
frente, tinha vergonha de ler lá na coisa pra me testar, pra ver mesmo
frente, era matuta, que nem diz a se eu tô fortalecida nas minhas de-
história. E, depois, fui a tesoureira e cisões” (Baraúna).
me desenvolvi muito bem. Eu achei
As mulheres se veem no processo da
que foi uma experiência de vida pra
mim, me ensinou muita coisa” (Ju-
participação enquanto sujeitos de direi-
rema). to, ocupam espaços públicos e políti-
cos, em sua maioria, não se inibem ao
Jurubeba relembra a sua timidez e hoje se expressarem – mesmo que algumas
incentiva as outras mulheres a se ex- companheiras ainda esbarrem nessa di-
pressarem oralmente nos espaços pú-
ficuldade, que faz parte de um proces-
blicos e políticos.
so histórico de permanência da mulher
“Mudou muito, mudou bastante. no âmbito privado, de dedicação às
Em termos da pessoa falar. A pes-
tarefas domésticas, que limitavam seu
soa é tímida, às vezes, não falava
poder de negociação, expressão oral
porque pensava que estava falando
errado. Então, hoje em dia é assim, e contestação – ocupam cargos de di-
se a pessoa tiver falando errado, reção, nos quais atuam, abrem-se para
tem alguém que aconselhe, que diz adquirir novos conhecimentos, novas
“não faz assim, é assim”, então a informações por meio de cursos, in-
gente vive pra dar conselho um ao tercâmbios (de experiências agrícolas),
outro” (Jurubeba). capacitações, ingresso na universidade
Percebemos que os relatos referentes etc.
ao “poder de fala” adquirido com sua O grau de escolaridade das lideranças
experiência e trajetória participativa é rurais da nossa pesquisa varia do En-
algo muito relevante para as mulheres sino Fundamental incompleto até o
rurais, pois elas passam a ter mais segu- Ensino Superior. A baixa escolaridade
rança ao expressarem as suas opiniões entre as mulheres rurais (em geral) é
e ideias nos espaços públicos. Cordeiro uma realidade. A participação em es-
(2010) afirma que o “poder da fala”, no paços públicos e políticos aguça o de-
qual nos referimos, envolve reconhecer sejo das mulheres rurais de aprender,
que há um modo de falar e esse modo adquirir os mais diversos conhecimen-
se aprende, implica em adquirir reper- tos. Acima, Baraúna afirma que voltou
tórios linguísticos e superar o medo a estudar depois que começou a parti-
de falar errado. Baraúna reconhece a cipar dos espaços políticos e o mesmo
sua “evolução” diante da fala e mostra acontece com Quixabeira.
segurança e empoderamento ao iden-
“[...] Quando eu comecei a partici-
tificar que, às vezes, é testada por seus par desses espaços, por exemplo,
companheiros e, assim, é necessário até mesmo a formação do grupo,
que esteja preparada para a argumen- essas capacitações que eu partici-
tação e decisão. pava, seminários e tudo, abriu mais
“Mudou. Eu ganhei mais conheci- minha mente pra questão de in-
mento, mais poder de fala. Mas, al- gressar numa universidade, eu não
gumas coisas viraram contra mim, tinha, assim, esse pensamento. Eu
nas relações de gênero da população dos pelas ONGs feministas e pela uni-
rural: “quem decide o destino da ren- versidade, afirmam a importância da
da”. Ela afirma que, até participar dos produção voltada para a economia so-
grupos de mulheres, ela repassava o re- lidária, para a propagação das relações
curso do Bolsa Família para o seu ma- sociais entre as mulheres, a valorização
rido. Os estudos acerca das relações de dos elementos culturais e, principal-
gênero da população rural têm levan- mente, o reconhecimento das mulhe-
tado a questão do domínio da renda. res rurais enquanto trabalhadoras.
Os homens, por serem aptos a circular Para finalizar, as viagens aparecem
nos espaços públicos, possuem o po- como um ganho fundamental para
der de decisão em relação aos gastos e a vida das mulheres, além de elas co-
ao consumo familiar. nhecerem novas pessoas, conhecem
Entretanto, essa questão só apareceu novos lugares, circulam por espaços
no depoimento de Aroeira e ela reco- que vão muito além de suas comunida-
nhece que é algo que ficou no passado, des rurais. As viagens que as mulheres
pois, com o apoio das suas companhei- fazem decorrentes das oportunidades
ras, agora ela tem a compreensão que proporcionadas pelos espaços de par-
esse recurso é um direito das mulhe- ticipação são relatadas com muita sa-
res – que são as principais responsá- tisfação.
veis pelo trabalho reprodutivo familiar. “Mudou tudo, porque antes eu não
Cinco mulheres afirmaram que a de- sabia, não conhecia de nada, não
cisão do emprego da renda familiar é assistia reunião, não viajava, não ti-
feita em conjunto com o marido e as nha liberdade pra viajar e, hoje, eu
demais, afirmaram que elas decidem já faço tudo isso. Pra mim, foi um
sozinha o destino da renda familiar. ponto positivo na minha vida, mu-
Como se trata de um grupo específico, dou tudo” (Imburana).
não identificamos conflitos intrafami- As viagens requerem ainda mais dispo-
liares em relação ao destino da renda. nibilidades de tempo das mulheres, re-
Algumas mulheres relataram que elas querem negociações e estratégias mais
ficam com o dinheiro do Bolsa Famí- cautelosas com a família, mas elas afir-
lia e com o recurso decorrente do que mam que não deixam de ir, somente se
vendem na feira e o seu companheiro o motivo for doença9. Assim, as mu-
com a diária do trabalho na roça, mas, lheres ultrapassam os limites das suas
no final, todo esse recurso se volta para comunidades, participam de eventos e
o autoconsumo familiar. feiras em outros municípios, de semi-
As mulheres estão se instrumentalizan- nários e congressos em outros estados
do e aderindo as suas próprias formas e até intercâmbios em outros países.
de produção, que vão além do sentido A participação política das mulheres
economicista do mercado e que re- provoca transformações em diversos
forçam as estruturas do capitalismo e âmbitos da vida, além das práticas po-
do machismo. Por meio dos cursos de líticas e das lutas coletivas que garan-
capacitação, sobretudo, aqueles realiza- tem acesso às políticas públicas e às
Recebido em 25/02/2017
Aprovado em 24/03/207