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distribuição gratuita

O TRANCA RUA
editores
amarílis anchieta
bárbara gontijo
mariangela andrade jornal de boca a boca
piero eyben
ano 1 brasília, 04 de abril de 2018 n. 1
e-mail otrancaruajornal@gmail.com
/otrancarua

do que é hoje
por camarada p.
Passei algumas horas com os dois versos que abrem “Meditação anciã”, do Ruy
a morte de raphaella por camarada m.
Belo: “Aqui eu fui feliz aqui fui terra / aqui fui tudo quanto em mim se encerra”. E
de estar aqui, nesse passado, algo se abre e se encerra. Algo desses dias de água, O Estado matou mais uma jovem negra. Raphaella levou um tiro na nuca da Polícia Civil, que de forma truculenta e
as águas todas do meu signo, volta a dizer ser preciso ainda uma terra acalmada corriqueira continua o projeto genocida do Estado Brasileiro. A jovem negra de 22 anos segurava seu filho no colo,
diante de tudo. Entre as poeiras todas dos livros, a busca intermitente por mais quando foi atingida pela ação policial, que pretendia assassinar outro jovem negro, foragido da polícia por cometer
espaço, o corpo tenta dizer esse eu passado, capaz de uma afirmação que remói os delitos descritos no Código Penal, para cuja pena é de Reclusão de uns tantos anos. No entanto, todos sabemos, quando
cantos do medo e de uma solidão também calma. Passei algumas horas, com dois se é preto, pobre e favelado, neste país, a pena de morte é mandatória e será estendida a toda a família, esteja você
versos. Como se fosse possível dizer que em algum momento, no antes do tempo,
ou não sentenciado pelo Sistema Judiciário. Nem falemos em contraditório ou ampla defesa. Raphaella recebeu a
se foi feliz. “E o destino passa por mim como uma pluma caprichosa / passa pelos
olhos dum gato”, dizia o Alexandre O’Neill, dizendo estar onde não devia estar. sentença por amar um homem marginalizado e andar em sua companhia. Conduta que apesar de não estar descrita na
Tanta pluma espelhada entre os pelos do gato, o que precede o seu salto. E se nossa legislação, é prevista no Código Moral que conduz esta sociedade e que vai dizer que Mulher de Malandro serve
digo, agora, que fui feliz, em algum lugar, é que algo se encerra dando vazão ao apenas para colocar mais um marginal no mundo. O que a nossa sociedade ignora, quando condena previamente
que permanece despido de uma resposta. Passei horas tentando me conduzir pelas a vida de Raphaella, é a condição a que estamos submetidos, enquanto povo negro. Um corpo negro passante não
horas do passado. Como se fosse possível ainda distender mais o tempo. Vê-lo será jamais um corpo branco. As escolhas não são tão fáceis e, sim, temos exemplos de poucos que conseguem furar
disjuntivo ali onde não há um presente absoluto, um dizer absoluto da felicidade. Se o bloqueio social e escolher trabalhar até morrer num subemprego, sem qualquer garantia de uma velhice tranquila.
fui terra, marca do padrão colocado para demarcar a fronteira de uma conquista,
é que houve ou há uma consciência do que é em mim. Queria poder começar
Não preciso anunciar estatísticas e não é disso que se trata esse texto. A escolha era e ainda é a mesma de décadas
um texto com: Vou contar uma história pra vocês... começar assim, como quem atrás sobrevivência, do jeito que dá. Do jeito que é possível.
pudesse enredar algo, concatenar uma narrativa, estabelecer uma gramática de Mas, dirá você que tinha a barriga cheia pra assistir sua
fatos e ações, com personagens e certa duração e frequência. Mas não fui moldado aula, ainda que fosse de pão com manteiga, foi escolha
ao narrativo. Nem mesmo quando tento sê-lo, ou nem mesmo quando preciso, dela. Não sei se eu gostaria de ler, como gosto, se não
numa aula, por exemplo, desdobrar algo que se pareça à narração. Atenho-me tivesse meu corpo sem fome. Uma escolha, dirá você, que
ao detalhe e acabo perdendo o cronograma, como se fosse imprescindível poder
não sabe o que é ver um filho passar fome, ou que até
falar sobre uma mesma frase infinitamente. Como ocorreu essa semana, durante
uma aula. Eu tentando comentar Dans le noir du temps e me foi difícil sair do título, sabe, mas acredita fielmente no sacrifício e no trabalho sem
que faz parte integrante do próprio filme, que está inscrito nele como mais uma das descanso, como solução. Mas também, não é disso que
imagens que ele mesmo propõe, sem deixar a brecha de uma diferença possível se trata esse texto. É que as escolhas que somos levadas
entre imagem e palavra, entre palavra-imagem, entre o que se vê no escuro e o que a fazer, muitas vezes, já foram pré-determinadas pelos
se vê tendo sido iluminado pelo tempo. “Aqui eu fui feliz”, como se essa escuridão séculos de açoite pelos quais passamos. Não importa se,
dos tempos todos não dependesse senão de uma sorte. Daquela sorte que têm os enquanto vítimas da violência do Estado, acabamos por
gatos, quando sabem de sua leveza angustiada entre as estrias do espaço que eles
violentar as leis impostas para a garantia da propriedade
insistem em demarcar •
de alguns. Seja em que nível for. Importa muito dizer que
primeiro concurso d’o tranca rua
o Estado não está autorizado a tirar a vida de quem quer
qual é a instituição mais falida do brasil? que seja. É preciso, urgentemente, parar com a violência
policial, mas mais urgente ainda, é preciso que entendamos,
CONTINUA... todos nós, que Raphaella não tinha muita escolha, mas
certamente, não escolheu morrer com uma bala na
nas próximas edições perpétua virtual nuca, em mais uma ação desmedida da força policial. •
quarta-feira, 04 de abril de 2018 o tranca rua 2 quarta-feira, 04 de abril de 2018 o tranca rua 3

quando se tem sede, mata-se


Oswald,

Você sabe que também sinto saudade. Não à toa escrevi aquele texto em que dizia esperar que você
por camarada aa.
não adianta ressurgisse enquanto pioneiro do seu Miramar. Digo, como se ainda fosse possível que você tomasse
história de camponeses A jovem camponesa levava um balde com leite
chorar um passo diferente desse seu dizer sim a tudo o que o partido impõe. Minha vida parisiense me fez
na cabeça para vender. cantarolava e fazia planos de como gastar o
chorar sobre o leite derramado repudiar ainda mais as coisinhas tão ou menos sentimentais. Era o que pretendia com aquele meu
dinheiro que receberia da venda. tropeçou e derramou todo o leite no
escrita sobre o leite derramado panfletinho. Dizer que voltava após tantos anos encarcerada e se ainda me era possível conviver
chão. não adianta chorar que o leite não vem.
com toda gente. Muito cheia de cicatrizes. Quanto rumor ainda teremos de levantar para que as
deixe que bebam da torneira Na semana em que brasília, sediava o mas era um dia de festa... a vice-diretora fez coisas todas pudessem se revirar, na ponta cabeça das nossas pragas todas. Quanta esmola ainda.
fórum mundial da água, ouvi do diretor da escola em que trabalho, questão de formar a fila para o bolo, de cortar e Você sabe de minhas reprovações e continuo não recuando de uns tantos bofetões. Se querem
“deixe que eles bebam da água da torneira”. eles eram os alunos entregar um pedaço para cada criança. sempre continuar nossas mortes, que a tomem no meu corpo. Já que não sou mesmo dessas mocinhas
do ensino fundamental de uma escola do plano piloto. segundo os com a preocupação de que não furassem fila e dos dedinhos aprontados pra tocar piano, nem da sua antiga garçonnière banal tão cheia dos
professores e diretores, os alunos desperdiçam a água e lavam os que não comessem mais de um pedaço, afinal eles hormônios de menininhos. Sou também por uma devoração, meu querido, mas a devoração ainda
tênis no bebedouro. grande parte da clientela dessa escola é formada precisavam aprender que teriam que dividir o bolo, mais carnuda, daqueles que nos censuram ou daquilo que é a própria censura. Que a gente não
por crianças que residem em abrigos, jovens com passagem policial e ainda que fosse a primeira vez que alguns deles termine como Mallarmé que, segundo Valéry, “despreza e é desprezado”.
aqueles mais desacreditados pelo sistema educacional. estavam comendo bolo com glacê e granulado.
a vida segue... que merda! vejo a sede desses alunos. não só de água, não deu outra. em 20 minutos, a fila não diminuía, a tua,
que ali já parece tão escassa. mas de afeto, de carinho, de amor. eles os que estavam por último não pegavam seu pagú •
trazem nos olhos um brilho desconcertante. pedaço e os “grandões” estavam sempre com um
fica! vai ter bolo... comemoramos o aniversário da escola na semana novo pedaço nas mãos. a vice-diretora emburrou- a cantora careca continua
seguinte. os alunos teriam um horário livre, comeriam cachorro quente se, disse que ninguém mais comeria e guardou o
bolo em sua sala. foi à sala dos professores, pediu
com o mesmo penteado
e teria bolo. eles nem acreditaram. acharam que teriam que pagar por camarada b.
algum valor pelas “regalias” e insinuaram que o bolo seria feito com para que eles contivessem os alunos em sala e
água de rato. eles entendem o lugar que ocupam na sociedade e saíssem de fininho para comer do bolo que havia uma casa brasileira de janelas brasileiras fechadas à fim do primeiro ato
reproduzem as violências sofridas no dia a dia um com outro. se batem, sobrado... moda brasileira. uma mulher brasileiramente apaixonada
se xingam, gritam, não ouvem, correm (como seria de se esperar de espera, de maneira brasileira, uma resolução brasileira juntamente às dores do corpo, tenho sono quando
jovens da idade deles). mas não lá. ao sinal de qualquer conflito, a me pergunto como amar em tempos de golpe? que a faça resolver um problema brasileiro. encontro-te, pois só mesmo os sonhos podem fa-
polícia está na porta, o que me faz desacreditar na educação. nunca vocês já me ensinaram isso, meninos... quando se zer a tua casa. onde habito, talvez seja o momento
tem sede, mata-se. • juntamente às dores do corpo, as dores de estar de deixar o corpo transbordar e encher o igarapé
entregarei um aluno à polícia.
sendo sem saber para onde. hoje, há em mim do vizinho. eu vou encher todo o rio tapajós com o
uma calma perante tudo isso. observo o sangue meu amor por você. vou ser barreira de água para

da biblioteca invisível que corre. sem anestesia. ele corre, ora escorrega, um Estado que se omite. a gente não tem pai. nem
ora seca-se com o vento. um apesar: há aqui um mãe.
correspondências inéditas sangue que não podes ver bombeando-me o fim do primeiro ato
Querida Pagú, continuar.
fim do primeiro ato não deliro quando é noite ainda quero sair daqui.
Durante os últimos anos estive e estou a pensar que a filosofia da devoração continua, acertadamente, a conduzir meus pulei o dia inteiro da janela e continuo. quero sair: o
juntamente às dores do corpo, ainda a indagação que importa é o desejo. hoje, há em mim uma calma
pensamentos. Eu já disse que a vida é devoração pura. Certas estavam as sociedades primitivas que se orientavam por
de como a presença acontece. como me aconteço perante tudo isso. observo o sangue que corre. sem
esse principio básico. A ideia messiânica e salvacionista de que há algo a ser salvo serve apenas para criar as servidões
separadamente de mim, depois de saber que há anestesia. ele corre, ora escorrega, ora seca-se com
do corpo e do espírito, além de toda sorte de ilusões. Ainda hoje acredito na antropofagia. Vendo toda espécie de
a possibilidade: me olhei no espelho e havia mais o vento. um apesar: há aqui um sangue que não
violência que ainda assola o país, me parece que temos mais uma vez outra volta à censura. Resta desejar que os poetas
alguém sem nome jurado de morte. o cotidiano podes ver bombeando-me o continuar.
de hoje respondam ao chamado antropofágico e não calem. Não parem a produção dessa literatura de hoje que parece
impossibilita o espanto. mas existiu ainda um
manipular o melancólico e o trágico, rindo das misérias humanas, ou pelo menos fazendo alguns rirem. Bom, querida,
maxilar interrompido no meio de um fonema. eita. ato do fim primeiro •
não sei, mas ando incomodado com a contínua manutenção dos privilégios burgueses e da ineficácia dos argumentos
umdoistrêsquatro. alguém não bate à porta.
lúcidos perante uma sociedade que está se mostrando ainda mais extremista e burra. Você aí, por exemplo, tanto que já
falou sobre a condição da mulher trabalhadora e até hoje, muito pouco parece ter mudado. Até a turma da arquibancada fim do primeiro ato
é a mesma, e eu vou continuar azucrinando, enquanto puder escrever. Eles que fiquem a pensar que podem ver uma juntamente às dores do corpo, hoje eu quero sair.
derrota do lado de cá. Outrora, eu falava de uma certa crise na cultura, entendendo cultura como o conjunto de relações abri as janelas. pulei. só há paredes por toda parte.
que assinalam uma certa fase na história. De alguma forma, esses movimentos de crise são também formas de progresso sinto saudades tuas. estou na beira do abismo.
em que novas respostas são dadas aos velhos problemas, eu já dizia isso apontando para a responsabilidade do contigo eu quero dizer do amor que têm fome. me
intelectual e mais uma vez o que vejo é que relegaram os intelectuais para os serviços práticos – pichar muros, pregar mantenho no trapézio até onde eu ainda desejo.
cartazes ou correspondentes, agora é o tal do lambe a ser espalhado por toda a cidade com os protestos manifestos. nunca vou te chamar pela falta. só pelo desejo. eu
Bom, camarada pagú, escrevo mesmo pra dizer da saudade que sinto, que sempre passa por essa vontade de te ler em
resposta.

Com grande afeto,

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