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EMERJ – CP V Direito Penal V

Tema I

Crimes contra a dignidade sexual. Crimes contra a liberdade sexual. Estupro. 1) Considerações gerais:a)
Dignidade sexual e liberdade sexual. Conceitos. Definição e evolução histórica;b) Bem jurídico tutelado.
Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;c) A Lei dos Crimes Hediondos e sua aplicação ao crime de
estupro. 2) Aspectos controvertidos. 3) Pena e ação penal.

Notas de Aula1

1. Estupro

O bem jurídico tutelado nos tipos penais dos crimes contra a dignidade sexual, antes
da reforma promovida pela Lei 12.015/09, eram os costumes, tanto que o título era
denominado dos crimes contra os costumes. Hoje, o fundamento mais alto desta tutela
penal é a dignidade da pessoa humana, o que empresta uma conformação constitucional a
estes delitos.
O crime de estupro é o mais claro dos exemplos desta concepção. Veja o artigo 213
do CP, na antiga e na nova redação:

“Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave


ameaça:
Parágrafo único. Se a ofendida é menor de catorze anos: (Incluído pela Lei nº
8.069, de 1990)
Pena - reclusão de quatro a dez anos. (Redação dada pela Lei nº 8.069, de 1990)
(Revogado pela Lei n.º 9.281, de 4.6.1996)
Pena - reclusão, de três a oito anos.
Pena - reclusão, de seis a dez anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990).”

“Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor
de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009).”

O crime, antes, se perfazia apenas contra vítima mulher, e apenas mediante


conjunção carnal; hoje, é contra qualquer pessoa, e por meio de qualquer ato libidinosos.
Trata-se de um tipo misto alternativo, e não cumulativo, porque a partícula “ou”
constante do caput determina que tanto uma quanto outra conduta – conjunção carnal ou
ato libidinoso diverso – preenche a tipicidade formal. Há, porém, quem defenda ser um tipo
misto cumulativo, como Vicente Greco Filho, mas é posição insustentável, esbarrando na
própria literalidade gramatical do dispositivo.
1
Aula ministrada pelo professor Felipe Machado Caldeira, em 11/6/2010.

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A prática de mais de uma conduta nucleares do tipo implica crime único, concurso
material, formal, ou crime continuado? A situação concreta poderá preencher uma ou outra
destas hipóteses. Vejamos.
Imagine-se que o agente realize conjunção carnal forçada, e todos os demais atos
libidinosos que consegue, em uma só oportunidade, em um só ato contínuo, um só iter.
Neste caso, defende a maior corrente, há crime único: há uma pluralidade de condutas
dedicadas a satisfazer a lascívia do agente. Note-se que, sendo assim, não há como se
configurar o concurso formal, portanto, eis que a elementar do tipo descritivo do artigo 70
do CP fica impossível de se preencher:

“Concurso formal
Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais
crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se
iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até
metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é
dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o
disposto no artigo anterior.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art.
69 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).”

Imagine-se agora que o agente pratica conjunção carnal forçada em um dia, e em


outro dia realize-a novamente, e no dia seguinte outro ato libidinoso forçado, todos contra a
mesma vítima. Há, aqui, o crime continuado, pois preenchidas as condições do artigo 71 do
CP:

“Crime continuado
Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou
mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de
execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como
continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade,
os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do
art. 70 e do art. 75 deste Código.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).”

Agora, o agente comete os mesmos atos narrados acima, contra a mesma vítima,
mas em intervalos de tempo muito superiores – há concurso material, eis que está
preenchida a condição do artigo 69 do CP:

“Concurso material
Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou
mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de
liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de
reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. (Redação dada pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)
(...)”

A casuística pode revelar estas três hipóteses, portanto.

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Quanto à tipicidade subjetiva do estupro, exige-se o dolo de praticar o verbo nuclear


do tipo, e, para a maior doutrina, se exige a especial finalidade de agir, ou seja, se trata de
um delito de tendência. É exigido o dolo de constranger alguém aos atos ali enunciados,
com a especial finalidade de obter a satisfação da lascívia.
Não é necessário o contato físico do agente com a vítima. Pode haver o
constrangimento legal para satisfazer a lascívia sem que o agente toque na vítima. Como
exemplo, pode ele, mediante emprego de ameaça, ordenar que a pessoa se dispa e, com
isso, alcançar sua satisfação sexual – há estupro sem contato físico efetivo, pois há o
constrangimento e a prática de ato libidinoso, consistente na masturbação.
O sujeito ativo deste crime, hoje, pode ser homem ou mulher. Antes da reforma, a
mulher só poderia ser coautora ou partícipe do delito, e nunca autora singular, pela própria
natureza da conjunção carnal forçada; hoje, pode ser autora direta singular, quanto aos
outros atos libidinosos.
O sujeito passivo, hoje, é qualquer pessoa, homem ou mulher; antes, somente a
mulher poderia ser vítima deste crime, também por conta da natureza do ato de conjunção
carnal, que somente poderia ser forçada contra a mulher.
O crime de estupro se consuma, hoje, em momentos diversos, a depender da
modalidade de ato libidinoso praticada. Como visto, pode haver estupro sem nem mesmo
haver toque físico, pelo que o crime se consuma quando o agente constranger a vítima e
obtiver a sua satisfação sexual. Constrangida a vítima com a especial finalidade de obter a
satisfação sexual, mas não podendo esta ser obtida por meios alheios À vontade do agente,
há tentativa.
O crime pode ser praticado pelo marido contra sua esposa, não se falando em
exercício regular de direito ou inexigibilidade de conduta diversa, como autores clássicos
chegaram a afirmar.

1.1. Estupro qualificado

O artigo 224 do CP estabelecia que se a vítima não fosse maior de catorze anos,
alienada ou débil mental, ou não pudesse, por qualquer causa, oferecer resistência, a
violência era presumida, e o crime de estupro seria cometido. Veja:

“Presunção de violência (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)


Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
(Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
a) não é maior de catorze anos; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; (Revogado
pela Lei nº 12.015, de 2009)
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência. (Revogado pela Lei nº
12.015, de 2009).”

Este artigo foi revogado, mas não houve abolitio criminis desta conduta; de fato,
houve sua aglomeração em outros dispositivos, como o § 1º do artigo 213 do CP, e o artigo
217-A do CP (este último será abordado com detalhamento, adiante).
O § 1º do artigo 213 do CP estabelece que se da conduta resulta lesão corporal de
natureza grave ou se a vítima é menor de dezoito ou maior de catorze anos, a pena é de
reclusão, de oito a doze anos.

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A partícula “ou”, aqui – menor de dezoito “ou” maior de catorze – deve ser lida,
agora sim, como “e”, mas por simples questão de lógica interpretativa, pois do contrário, se
fosse realmente alternativa, o dispositivo perderia sentido, pois todas as pessoas, de todas as
idades, serão ali abarcadas.
O estupro qualificado, outrora, na vigência do artigo 224 do CP, se definia pro três
critérios bem delimitados, o biológico, o fisiológico e o psicológico. O critério biológico é o
de idade, constatado de forma plana pela verificação da idade da vítima; o critério
psicológico é o que toma em conta a capacidade de discernimento da vítima; e o critério
fisiológico é aquele que verifica se a vítima tem capacidade efetiva de resistência ou não,
levando em conta seu estado físico, e não mental.
Hoje, estes critérios sofreram alteração com a reforma, porque a revogação do artigo
224 e a inclusão do § 1º ao artigo 213 dividiu as tipificações. Assim, na qualificadora do
crime de estupro, restou apenas um dos critérios, qual seja, o biológico, e com mudança da
faixa etária considerada: é qualificado o estupro contra vítima maior de catorze e menor de
dezoito anos. Vitimada pessoa menor de catorze anos, o crime é o do artigo 217-A –
estupro de vulnerável –, como dito, que será visto adiante, mas que precisa ser abordado
aqui, ao menos superficialmente:

“Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)


Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém
que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento
para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer
resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º (VETADO) (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: (Incluído pela Lei nº
12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 4º Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.(Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009).”

O artigo 224 dizia ser violência presumida, na alínea “a”, quando a vítima não fosse
maior de catorze anos; hoje, o artigo 217-A determina que é estupro de vulnerável a prática
do crime contra pessoa menor de catorze anos, e o § 1º do artigo 213 estabelece que é
estupro qualificado aquele praticado contra maior de catorze anos e menor de dezoito.
Surge a seguinte pergunta: e se a vítima estiver com exatos catorze anos, qual é a
tipificação do agente ativo?
Se há violência ou grave ameaça, o crime é de estupro simples, na forma do caput
do artigo 213 do CP, e se o ato libidinoso for consentido, o fato é atípico. Assim o é porque
a interpretação literal é a que se impõe, e ante este erro legislativo o réu não pode ser
prejudicado por qualquer outra interpretação extensiva de sua punibilidade. Contudo, há
quem faça uma interpretação teleológica do dispositivo, pois de fato a mens legis não era
esta capitulação simples ou atipicidade, e sim a qualificadora ou o estupro de vulnerável –

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havendo ainda que se definir em qual destas se enquadra o fato, o que também depende de
interpretação. A questão ainda não teve enfrentamento jurisprudencial.
O artigo 217-A do CP, como se vê, não é um crime novo, pois consiste na reunião
típica de fatos que eram considerados violência presumida, capitulada anteriormente na
combinação dos artigos 213 ou 214 com o artigo 224 do CP. Houve a continuidade
normativa típica, e não a criação de novo crime, tampouco abolitio criminis da conduta
anteriormente reprimida.
Veja que no caput do artigo 217-A se reproduziu o critério biológico de outrora – a
idade da vítima –, e no § 1º foram reproduzidos os critérios psicológico e fisiológico.
Todas as modalidades de estupro – simples, qualificado ou de vulnerável – são
crimes hediondos, sem qualquer dúvida, hoje. Veja o artigo 1º, V e VI, da Lei 8.072/90:

“Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou
tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 6.9.1994)
(...)
V - estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o); (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º); (Redação dada
pela Lei nº 12.015, de 2009)
(...)”

2. Violação sexual mediante fraude

“Violação sexual mediante fraude (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém,
mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de
vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica,
aplica-se também multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Para uma corrente, a diferença deste tipo para o do crime tipificado no artigo 217-A,
quando se está diante de vítima sem possibilidade de resistência, é a presença do engodo da
vítima, neste artigo 215, enquanto no estupro de vulnerável a vítima é impossibilitada de
reagir. Parece, esta corrente, fazer uma leitura de que no artigo 215 há erro da vítima,
enquanto no 217-A não há erro, mas impossibilidade de outra conduta pela vítima – o que
gera problemática quando, no caso do erro, este for absoluto, invencível pela vítima do
artigo 215, aproximando o caso da impossibilidade de reação, tornando idênticas as
subsunções.
O mais correto, portanto, é falar em impossibilidade de reação, em maior ou menor
grau: no artigo 215, a impossibilidade de reação é relativa; no artigo 217-A, é absoluta.

3. Ação penal

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Antes da reforma, a regra nestes crimes era a ação penal privada, com exceções
pontuais, na forma do artigo 225 do CP. Hoje, este artigo reformado alterou esta regra,
colocando a ação penal pública condicionada como regra, e excepcionalmente a pública
incondicionada. Veja:

“Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede
mediante queixa.
§ 1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-
se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;
II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto,
tutor ou curador.
§ 2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende
de representação.”

“Ação penal
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se
mediante ação penal pública condicionada à representação. (Redação dada pela Lei
nº 12.015, de 2009)
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública
incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Os casos em que a ação era pública incondicionada – inciso II do artigo 225 antes
da reforma –, precisam, portanto, de colheita de representação, hoje, , inclusive naqueles
feitos que estão em curso. Por isso, surge questão: em qual prazo será colhida esta
representação, após a intimação da vítima pelo juiz para exará-lo?
Há três correntes: a primeira sustenta que deve ser imediata, mas não aponta critério
objetivo desta imediatidade. A segunda corrente faz analogia ao artigo 91 da Lei 9.099/95,
que quando previu a condicionante para os crimes de lesão estabeleceu trinta dias para
representação da vítima:

“Art. 91. Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura
da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para
oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.”

A maior corrente, porém, sustenta que a representação deve seguir a regra geral,
ante a lacuna da lei, ou seja, o prazo de seis meses, do artigo 38 do CPP:

“Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal,


decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo
de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no
caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.
Parágrafo único. Verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou representação,
dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, parágrafo único, e 31.”

Nos casos em que era ação penal privada e passou a ser pública, o MP encampará os
processos em curso? Consistiria, esta dinâmica, em uma retroatividade em malefício do réu,
porque a ação pública é pior para o perseguido, eis que vige sob o manto da
indisponibilidade, enquanto a privada é disponível. Por isso, não seria técnico permitir, para
os processos em curso, a retroação, a conversão da ação penal privada em pública.

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Casos Concretos

Questão 1

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CAIO, em dias diversos e por três vezes, praticou relação sexual com a filha de sua
companheira, vindo, ainda, a manter com a ofendida, também por três vezes, atos
libidinosos diversos da conjunção carnal. A ofendida tinha comprovadamente 10 anos de
idade e nunca ofereceu qualquer resistência. O acusado foi flagrado por uma vizinha,
sendo a polícia chamada, ocorrendo a prisão em flagrante; ficou apurado, já na peça
flagrancial, que a mãe da criança tinha conhecimento do que vinha ocorrendo, nunca
tendo praticado qualquer conduta para evitar tais fatos. Pergunta-se:
a) Qual a correta capitulação para os fatos?
b) Os crimes praticados são considerados hediondos?
c) Caso haja o reconhecimento de crime continuado, qual percentual de aumento
seria adequado aplicar?

Resposta à Questão 1

a) Caio cometeu seis estupros de vulnerável, na forma do artigo 217-A do CP, por
seis vezes, em concurso material. Pode-se cogitar de continuidade delitiva, a
depender de estarem definidas as condições do artigo 71 do CP, sendo que crime
da mesma espécie é, para as Cortes superiores, aqueles do mesmo tipo penal, e
por isso seria possível neste caso.
b) Sim, é expressamente consignado no artigo 1º, VI, da Lei 8.072/90.
c) Como há a prática de seis condutas típicas, revelando crime continuado extenso,
entendo ser aplicável a maior exasperação, de dois terços.

Questão 2

FERNANDO, em diversos dias do mês de fevereiro de 2009 e por quatro vezes,


praticou relação sexual com a sua empregada, contra a vontade desta, vindo, ainda, a
praticar com a vítima, também por três vezes, atos libidinosos diversos da conjunção
carnal. O acusado foi surpreendido por uma vizinha, sendo a polícia chamada, ocorrendo
a prisão em flagrante. Desta forma, FERNANDO foi denunciado pelos crimes de estupro
(artigo 213, do Código Penal) e atentado violento ao pudor (artigo 214, do Código Penal),
em concurso material (artigo 69, do Código Penal), sendo a denúncia recebida pelo juízo
competente. Concluída a instrução criminal, o Ministério Público requereu a condenação
de FERNANDO nos exatos termos da denúncia; a defesa, por sua vez, pugnou pelo
reconhecimento de crime único de estupro (artigo 213, do Código Penal) em continuidade
delitiva, pois a Lei 12.015/09, publicada no dia 7 de agosto de 2009, é mais benéfica. Os
autos foram conclusos para sentença. Decida.

Resposta à Questão 2

Veja o que o STF decidiu no HC abaixo, constante do informativo 542:

“Estupro e Atentado Violento ao Pudor: Crime Continuado


A Turma decidiu afetar ao Plenário julgamento de habeas corpus em que se discute
a admissibilidade, ou não, do reconhecimento de crime continuado entre os delitos
de estupro e de atentado violento ao pudor (CP, artigos 213 e 214,

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respectivamente). Na espécie, o paciente fora denunciado pela suposta prática dos


delitos previstos nos artigos 213 (uma vez), 214 (duas vezes), 213 e 214 (duas
vezes), esses últimos c/c o art. 71, todos do CP, e condenado a cumprimento de
pena em regime inicialmente fechado, pelo juízo de 1º grau. Contra essa decisão,
tanto a defesa como o Ministério Público apelaram e o tribunal local decidira dar
parcial provimento a ambos os recursos: a) ao da defesa para, reconhecida a
continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor,
reduzir a pena aplicada; b) ao da acusação para afastar a desclassificação do
estupro tentado para constrangimento ilegal e fixar o regime fechado para o
cumprimento integral da pena. Ocorre que, interposto recurso especial pela
acusação, pleiteando o restabelecimento da sentença no que dizia respeito ao
concurso material entre os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, esse
fora provido, o que ensejara a presente impetração. Requer-se, na espécie, seja
restaurado o acórdão proferido pelo tribunal de justiça.
HC 86238/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 14.4.2009. (HC-86238)

Após a reforma, porém, veja o que disse esta Corte:

“HC 86110 / SP - SÃO PAULO. HABEAS CORPUS. Relator Min. CEZAR


PELUSO. Julgamento: 02/03/2010. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação
23-04-2010.
EMENTA: AÇÃO PENAL. Estupro e atentado violento ao pudor. Mesmas
circunstâncias de tempo, modo e local. Crimes da mesma espécie. Continuidade
delitiva. Reconhecimento. Possibilidade. Superveniência da Lei nº 12.015/09.
Retroatividade da lei penal mais benéfica. Art. 5º, XL, da Constituição Federal. HC
concedido. Concessão de ordem de ofício para fins de progressão de regime. A
edição da Lei nº 12.015/09 torna possível o reconhecimento da continuidade
delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando
praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma
vítima.”

O argumento para o descabimento, antes, é que os crimes eram diversos, eis que em
tipos diversos, e o STF reputa crimes de mesma espécie apenas aqueles do mesmo tipo
penal. Com a reforma, as condutas reuniram-se no mesmo tipo penal, e por isso se permite
a continuidade. Contudo, é de se ressaltar que, a depender do caso, pode haver mesmo
crime único, e não continuidade, na atual conjuntura – o tipo é misto de conteúdo
alternativo.

Questão 3

ROSS GELLER, com 18 anos de idade, conheceu RACHEL GREEN, de 13 anos e


11 meses de idade, e passou a namorar com ela. No local onde RACHEL morava, todos
tinham conhecimento de que ela já havia tido vários namorados, com os quais teve
relações sexuais. No dia 11/8/2009, ROSS e RACHEL tiveram a primeira relação sexual
com conjunção carnal juntos. Dois dias depois, no mesmo local e nas mesmas
circunstâncias, praticaram atos libidinosos sem conjunção carnal, quando foram flagrados
pelo pai de RACHEL, que chamou a polícia. ROSS foi preso em flagrante delito. O pai da
menor noticiou os fatos na delegacia e requereu providências. O Ministério Público
ofereceu denúncia e imputou a ROSS a prática de dois crimes de estupro, em concurso
material, artigo 217-A do Código Penal c/c artigo 9º da Lei nº 8.072/90 (2 vezes) n/f do
artigo 69 do Código Penal. O Juiz de Direito aceitou provisoriamente a denúncia e

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determinou a citação para a apresentação da resposta à acusação. Na resposta à


acusação, a defesa requereu, alternativamente:
1- a absolvição sumária do denunciado com base no artigo 397, III do Código de
Processo Penal, porque a vítima tinha capacidade para dar o consentimento e já tinha
mantido relações sexuais com outras pessoas;
2- extinção da punibilidade pela decadência, porque não houve representação
formal por parte do pai da menor;
3- violação ao princípio da proporcionalidade, já que a pena do artigo 217-A é de
8 a 15 anos, mesmo sem violência ou grave ameaça, e a pena do artigo 213, § 1º, é de 8 a
12 anos, com violência ou grave ameaça;
4- o reconhecimento da continuidade delitiva;
5- a impossibilidade da aplicação da causa de aumento de pena do artigo 9º da Lei
nº 8.072/90;
6- a liberdade provisória de ROSS.
Como magistrado, decida fundamentadamente sobre as teses da defesa.

Resposta à Questão 3

Vejamos uma a uma as teses defensivas:


1 – Não é possível esta absolvição, porque a presunção de violência, antes ou após a
reforma, contra vítima menor de catorze anos, é absoluta, independendo de qualquer
alegação de amadurecimento da vítima.
2 – Houve representação, sim, estando clara nas manifestações de persecução do
pai, mesmo não havendo instrumento formal. Basta o interesse manifesto na persecução,
por qualquer meio.
3 – O princípio da proporcionalidade, homogeneidade, não restou abalroado. Trata-
se de opção de política criminal reprimir com maior gravidade o estupro daqueles
considerados vulneráveis do que o estupro de pessoas em condição normal.
4 – Não é possível se cogitar da continuidade delitiva porque a prática dos atos em
dias diferentes leva à separação das condutas. Há concurso material.
5 – O estupro ainda é crime hediondo, mas o artigo 9º da Lei 8.072/90 foi revogado,
porque é norma remetida ao artigo 224 do CP, e como este foi revogado expressamente, não
persiste o artigo que a ele remetia:

“Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º,
158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art.
223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o
limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das
hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal.”

6 – Se no caso concreto estiverem presentes os elementos que permitem a liberdade


provisória, contraface da prisão preventiva, será concedida, pois a gravidade do crime, em
abstrato, não permite negar esta providência – é preciso a cautelaridade para se manter
preso o agente.
Tema II

Michell Nunes Midlej Maron 10


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Crimes sexuais contra vulneráveis. Assédio sexual. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução
histórica. Conceito de vulnerável. Conceito de assédio sexual;b) Estupro de vulnerável, satisfação de lascívia
mediante presença de criança ou adolescente e favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração
sexual de vulnerável;c) Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;d) A Lei dos
Crimes Hediondos e sua aplicação aos crimes sexuais contra vulneráveis. 2) Aspectos controvertidos. 3)
Pena e ação penal.

Notas de Aula2

1. Assédio sexual

O Capítulo I do Título VI do CP era composto pelos artigos 213 a 216-A, e o


Capítulo II apenas pelo artigo 218, eis que o crime de sedução, do artigo 217, já fora
revogado pela Lei 11.106/05.
Com a Lei 12.015/09, o artigo 214 foi revogado e o seu núcleo foi incorporado ao
estupro, do artigo 213; e igual dinâmica se passou com o artigo 215, violação sexual
mediante fraude, que passou a englobar a conduta do revogado artigo 216, atentado ao
pudor mediante fraude.
No Capítulo II, que hoje trata dos crimes sexuais contra vulnerável, contempla ainda
a corrupção de menores no artigo 218, mas bastante diferente de sua concepção antes da
reforma. Hoje, então, este Capítulo II é formado pelos artigos 217-A, 218, 218-A e 218-B,
que serão abordados em tópicos dedicados.
O artigo 216-A, que é o foco deste tópico, praticamente não sofreu alterações desde
sua inclusão em 2001, apenas recebendo a adução do § 2º pela Lei 12.001/09, sendo que
inexiste § 1º desde sempre, eis que o parágrafo único foi vetado na inserção original deste
artigo. Veja:

“Assédio sexual (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)


Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou
favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior
hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
(Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
Pena - detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de
2001)
Parágrafo único. (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
§ 2º A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito)
anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

O verbo nuclear deste tipo deve ser observado com cautela. O legislador penal se
utiliza do verbo “constranger” em diversas oportunidades, e com diversos sentidos. Por
isso, é importante definir o exato alcance deste termo, aqui.
No estupro e no constrangimento ilegal, o sentido de constranger é obrigar, assim
como na extorsão. No artigo supra, o sentido não é de obrigar, mas sim de humilhar, de
vexar, de envergonhar.
O tipo em análise é um delito de intenção, com elemento subjetivo especial diverso
do dolo geral expresso no seu texto: é um tipo incongruente, que exige que o agente revele,
no cometimento do ato constrangedor, a especial finalidade de obter vantagem ou
favorecimento sexual.
2
Aula ministrada pela professora Cristiane Dupret Filipe, em 14/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 11


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Vale relembrar aqui a classificação dos delitos quanto à especial finalidade de agir:
pode o delito ser de intenção, quando esta especial finalidade vem expressa no tipo; ou de
tendência, quando este elemento subjetivo especial não é expresso, mas existe na forma
implícita.
Os delitos de intenção ainda podem se classificar como delitos de resultado cortado,
ou delitos mutilados de dois atos. O crime de quadrilha ou bando, por exemplo, é um delito
de intenção mutilado de dois atos porque o resultado que dele se espera depende
exclusivamente dos agentes para ser alcançado: praticarão crimes em quadrilha como e
quando quiserem. Veja:

“Quadrilha ou bando
Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim
de cometer crimes:
Pena - reclusão, de um a três anos. (Vide Lei 8.072, de 25.7.1990)
Parágrafo único - A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.”

São crimes de intenção de resultado cortado aqueles em que a obtenção da


finalidade especial de agir não depende apenas dos sujeitos ativos, mas sim da conduta da
vítima. E um exemplo deste tipo de delito é justamente o artigo 216-A do CP, o assédio
sexual: a conduta típica se aperfeiçoa no constrangimento com a especial finalidade, mas
este fim especial só será obtido se a vítima ceder a tal atitude do autor.
Isto revela, também, que o verbo constranger não tem a conotação de obrigar,
porque se assim fosse, o resultado finalístico especial teria que ser obtido para que
houvesse a consumação: ou obrigou e consumou, ou não obrigou e tentou o crime. Como
assim não o é, consumando-se desde o constrangimento, este tem sentido de expor a
vexame, de impor vergonha.
Sendo assim, se a vantagem ou favorecimento sexual for coactado à vítima, ou seja,
se ela for obrigada a esta atitude, não há este crime de assédio sexual: há o crime de
estupro. Há, de fato, a causação de certo temor na vítima por aquele constrangimento,
temor este relacionado à perda do emprego, ou alguma desvantagem inerente à relação
funcional entre autor e vítima, mas este temor não pode se configurar como uma grave
ameaça, sob pena de se perceber a prática do estupro, e não deste crime do artigo 216-A.
Por ser crime de resultado cortado, o assédio sexual é crime formal, dispensando
resultado naturalístico para se consumar. A consumação se dá na prática do
constrangimento.
Em relação aos sujeitos do delito, é necessário que haja superioridade hierárquica
ou ascendência do autor sobre a vítima, superioridade esta imanente ao emprego, cargo ou
função. Imagine-se, por isso, dois sujeitos que ocupam o mesmo cargo em uma
organização: podem cometer este crime um contra o outro?
A questão é controvertida. Rogério Greco não admite, porque entende que se o tipo
penal fala em ascendência, esta é efetivamente a superioridade fática nos quadros da
organização, ou seja, é preciso que o agente esteja em patamar superior, mesmo que em
outra escala hierárquica. A posição majoritária, porém, é a de que é possível a prática deste
crime por pessoas em posições idênticas, porque o termo ascendência tem o seguinte
sentido: há, por qualquer meio, influência do agente ativo naquela organização (é amigo ou
parente do chefe, é antigo na casa, etc).

Michell Nunes Midlej Maron 12


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Assim, dois são os sujeitos ativos possíveis deste crime: aquele que tem
superioridade hierárquica sobre a vítima, e aquele que, ainda que em posição de igualdade,
ou mesmo em ocupação inferior nos quadros da organização, tem de alguma forma
ascendência sobre a vítima.
Surge outra questão polêmica quanto ao agente ativo deste crime: pode o professor
praticá-lo contra o aluno? Novamente, Rogério Greco entende que não, eis que não se está
diante de uma organização hierárquica, e seu critério é bastante adstrito a esta colocação de
superioridade efetiva. Contudo, a doutrina majoritária entende que pode, sim, o professor se
amoldar ao conceito de detentor de ascendência sobre o aluno, quando tiver poder de
aprovação ou reprovação, ou seja, quando dele depender a atribuição de grau ao aluno: esta
influência é ascendência, para quem entende este critério desta forma.
De uma ou de outra forma, é imperativo que os agentes, ativo e passivo, estejam
dentro da mesma estrutura organizacional, não podendo um cliente ser autor ou vítima de
um fornecedor, por exemplo.
Imaginemos um exemplo: o chefe convida a sua secretária para um jantar em sua
residência, com sua família. Lá chegando, ela vê que ele está sozinho, e ele passa a lhe
atirar cantadas das mais diversas. Não cedendo aos apelos, ela decide ir embora, e, neste
momento, ele a ataca e pratica com ela conjunção carnal forçada. Há o crime de estupro,
sem dúvida, mas antes há o assédio sexual, ou há crime único de estupro? E se há concurso,
é este concurso material ou continuidade delitiva?
Para a maior parte da doutrina, há concurso material destes crimes, porque a
conduta do assédio é perfeitamente destacável da conduta do estupro, e o assédio é crime
formal, como dito – já havia se consumado no constrangimento humilhante, sendo o
constrangimento violento para conjunção carnal outra conduta completamente dissociada.
Esta é a posição do STJ e do STF, diga-se.
Mas há ainda que se ressaltar que há quem entenda – a doutrina majoritária –, que
se trata de continuidade delitiva, porque crimes da mesma espécie não são necessariamente
crimes do mesmo tipo penal, e sim de mesma objetividade jurídica.
Suponha-se agora que uma secretária tenha filho doente, demandando altos gastos, e
que seu chefe saiba desta condição. Este superior assedia-a, dizendo que se não ceder-lhe a
conjunção carnal a demitirá. Ela, temendo não ter recursos para cuidar do filho, cede. Qual
o crime?
Há, neste caso, estupro praticado por meio de grave ameaça, qual seja, a morte de
seu filho. Sabedor desta circunstância, o chefe dela se vale para obter a conjunção – há
estupro. Se ela não ceder, diga-se, há tentativa de estupro. Se ela não estivesse nesta
condição peculiar, ou se o chefe disso não soubesse, o crime seria de assédio sexual.
Vale ressaltar que a grave ameaça deve ser identificada concretamente, em
parâmetros universais, e não pela sensibilidade pessoal da vítima. O fato ameaçado deve ser
de conhecimento do agente e não só deve a vítima, como qualquer pessoa, perceber ali uma
grave ameaça. Se o agente não intenta ameaçar, mas a vítima se sentir ameaçada, não por
isso há a configuração do estupro.
A oferta de vantagem em contrapartida ao favorecimento sexual não configura o
assédio sexual. Se o agente oferece vantagem na carreira – salarial, por exemplo –, em troca
da vantagem sexual, não há o crime: esta mera troca de favores afasta o sentido do verbo
constranger, nesse crime. É preciso que o constrangimento evidencie humilhação e temor
de prejuízo, e não a potencial vantagem em ceder ao assédio.

Michell Nunes Midlej Maron 13


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Nem toda cantada realizada pelo superior deve ser interpretada como assédio
sexual, porém. É preciso que haja um dolo especial de humilhação, e o limite de
caracterização de uma proposta sexual como assédio sexual ou não dependerá do nível de
afeição que se percebe naquele relacionamento: se o superior se envolve afetivamente, não
se pode entender que há o dolo de constranger. Se ele pretende um relacionamento
sentimental com a pessoa assediada, não há assédio sexual, mas mera proposta de
relacionamento amoroso.
Ademais, nem toda manifestação de tom sexual, mesmo sem este intento afetivo,
terá o dom de constranger alguém, como dito. Meros elogios, palavras de entonação
elogiosa no ambiente de trabalho, nem sempre são aptas a constranger, envergonhar a
pessoa.
O § 2º deste artigo 216-A do CP comina causa de aumento de pena ao assediador
quando a vítima for menor de dezoito anos. Note-se que qualquer idade abaixo de dezoito
pode ensejar esta causa de aumento, não sendo de se cogitar ser a vítima maior de catorze
anos porque somente desde então se tolera o trabalho regular, como aprendiz: não se pode
premiar aquele assediador que emprega pessoa menor de catorze anos irregularmente com a
alheação desta majorante. Se há empregado menor de catorze anos – irregular, portanto –, e
há assédio sexual, há o crime majorado por este § 2º.
Mas veja que há crime especial no ECA para este constrangimento praticado contra
pessoa menor de doze anos, contra criança, pelo que se a vítima for menor de doze anos
não se fala neste crime do artigo 216-A, mas sim no crime especial, do artigo 241-D do
ECA. Pelo ensejo, há que se fazer a distinção deste delito do artigo 216-A e o crime do
artigo 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente. Vejamos.

1.1. Assédio sexual vs. aliciamento de crianças

Dispõe o artigo 241-D do ECA:

“Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de


comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: (Incluído pela
Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829,
de 2008)
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829,
de 2008)
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito
ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; (Incluído pela Lei nº
11.829, de 2008)
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir
criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita. (Incluído pela
Lei nº 11.829, de 2008).”

Se a vítima da proposta sexual for pessoa menor de doze anos de idade – idade
limite do conceito de criança, para o ECA –, prevalecerá este delito do artigo supra sobre a
conduta do artigo 216-A do CP: prevalece por regra de especialidade.
Assim, sendo a vítima menor de doze anos, prevalece o crime do artigo supra; de
doze anos completos até os dezoito incompletos, há o crime do artigo 216-A, § 2º, do CP;
de dezoito anos completos em diante, há o crime do caput do artigo 216-A.

Michell Nunes Midlej Maron 14


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Vale dizer que se a vítima criança ceder ao assédio, e houver a prática do ato
libidinoso, há o estupro de vulnerável, do artigo 217-A do CP, em concurso material com o
crime deste artigo 241-D do ECA, porque o assédio é crime formal. E não há que se
cogitar, aqui, de que o ato efetivo seja mero exaurimento, pós fato impunível, pela
severidade com que o legislador quis reprimir o estupro de vulnerável. Contudo, pode-se
pensar no inverso: pode-se cogitar que o assédio seja ante fato impunível ao estupro de
vulnerável, pois então prevaleceria a objetividade jurídica que o legislador pretende.
O cotejo entre o CP e o ECA, nos crimes sexuais, hoje é de difícil deglutição. É
preciso cuidado na análise deste diálogo normativo, pois a reforma operou sensíveis
alterações de concepção nesta seara. Vejamos.

1.2. Diálogo entre o CP e o ECA nos crimes sexuais

Antes da reforma operada pela Lei 12.015/09, dividia-se a análise da “corrupção de


menores”, conceito genérico, em três âmbitos legislativos: a Lei 2.252/54, o CP e o ECA.
Na vigência da Lei 2.252/54, existia apenas a corrupção de menores para fins infracionais;
no CP, havia as tipificações dos artigos 213 ou 214 com violência presumida do artigo 224,
ou o artigo 218; no ECA, as tipificações dos artigos 241 a 241-D e 244-A. Veja todos os
dispositivos:

“Art 1º Constitui crime, punido com a pena de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos
e multa de Cr$1.000,00 (mil cruzeiros) a Cr$10.000,00 (dez mil cruzeiros),
corromper ou facilitar a corrupção de pessoa menor de 18 (dezoito) anos, com ela
praticando, infração penal ou induzindo-a a praticá-la.

“Estupro
Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça:
Parágrafo único. Se a ofendida é menor de catorze anos: (Incluído pela Lei nº
8.069, de 1990)
Pena - reclusão de quatro a dez anos. (Redação dada pela Lei nº 8.069, de 1990)
(Revogado pela Lei n.º 9.281, de 4.6.1996)
Pena - reclusão, de três a oito anos.
Pena - reclusão, de seis a dez anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990).”

“Atentado violento ao pudor (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)


Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou
permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Vide
Lei nº 8.072, de 25.7.90 (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
(Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009) (Revogado pela Lei n.º 9.281, de 4.6.1996
(Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de seis a dez anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990) (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009).”

“Presunção de violência (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)


Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90
(Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
a) não é maior de catorze anos; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; (Revogado
pela Lei nº 12.015, de 2009)

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c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência. (Revogado pela Lei nº
12.015, de 2009).”

“Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente: (Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
11.829, de 2008).”

“Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou


divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou
telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito
ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829,
de 2008)
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de
2008)
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou
imagens de que trata o caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias,
cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.(Incluído pela Lei nº 11.829, de
2008)
§ 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1o deste artigo são puníveis
quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado,
deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.
(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).”

“Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo
ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica
envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829,
de 2008)
§ 1º A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena quantidade o
material a que se refere o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 2º Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de comunicar
às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas nos arts. 240, 241,
241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita por: (Incluído pela Lei nº
11.829, de 2008)
I – agente público no exercício de suas funções; (Incluído pela Lei nº 11.829, de
2008)
II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades
institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos
crimes referidos neste parágrafo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou
serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento do material
relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder
Judiciário. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 3º As pessoas referidas no § 2o deste artigo deverão manter sob sigilo o material
ilícito referido. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).”

“Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo


explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de
fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: (Incluído pela
Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de
2008)

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP V Direito Penal V

Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda,
disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou
armazena o material produzido na forma do caput deste artigo. (Incluído pela Lei
nº 11.829, de 2008).”

“Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de


comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: (Incluído pela
Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de
2008)
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de
2008)
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito
ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; (Incluído pela Lei nº
11.829, de 2008)
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança
a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita. (Incluído pela Lei nº
11.829, de 2008).”

“Art. 244-A. Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art.
2º desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual: (Incluído pela Lei nº 9.975, de
23.6.2000)
Pena - reclusão de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo
local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas
referidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 9.975, de 23.6.2000)
§ 2º Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de
localização e de funcionamento do estabelecimento. (Incluído pela Lei nº 9.975, de
23.6.2000).”

Com a reforma, deixa de existir a Lei 2.252/54, mas não há abolitio criminis, pois o
objeto de sua proteção, a corrupção de menor para a prática de ato infracional, sofre
continuidade típico-normativa para o artigo 244-B do ECA:

“Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos,


com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: (Incluído pela Lei nº
12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1º Incorre nas penas previstas no caput deste artigo quem pratica as condutas ali
tipificadas utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-
papo da internet. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º As penas previstas no caput deste artigo são aumentadas de um terço no caso
de a infração cometida ou induzida estar incluída no rol do art. 1o da Lei no 8.072,
de 25 de julho de 1990. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Aqui surge um erro grave do legislador, ao transportar a conduta da corrupção para


fins infracionais da revogada Lei 2.252/54 para este artigo 244-B supra: o legislador
reformista asseverou que preenche este delito aquele que se utiliza, para praticar o verbo
nuclear, de qualquer meio eletrônico, “inclusive salas de bate-papo da internet.”. Ora, ao
assim escrever o tipo, o legislador abriu margem à seguinte leitura: se agora este meio de
cometimento, as salas de chat, são expressamente consideradas iter do crime, é porque
antes da previsão expressa não eram consideradas meio hábil para tanto. É claro que esta
não foi a intenção do legislador, mas como esta interpretação é perfeitamente correta,

Michell Nunes Midlej Maron 17


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haverá beneficio para quem estava processado ou condenado por este delito cometido desta
forma, pois se somente agora é considerado este meio como crime, a nova lei não pode
retroagir, lex gravior. Vale mencionar que o artigo 241-A do ECA sofreu a mesma
interpretação, e esta prevaleceu – considerou-se que a nova norma, que prevê, ali,
“inclusive por meio de sistema de informática ou telemático”, era lex gravior e evidenciava
atipicidade anterior a sua vigência.
Ainda no âmbito do ECA, além desta corrupção para fins infracionais, há a
corrupção para fins sexuais, nos crimes enumerados nos artigos 241 a 241-C, supra –
excluído o crime do 241-D, já abordado assédio sexual especial. Todos os crimes envolvem
como sujeitos passivos crianças e adolescentes, o que evidencia uma falta de diálogo com o
CP: enquanto este codex tutela os menores de catorze anos como vulneráveis, o ECA se
dedica à proteção de qualquer pessoa menor de dezoito anos. O CP só tutela o menor de
dezoito anos no artigo 218-D, excepcionalmente; o ECA, tutela-os sempre, e
excepcionalmente só a criança, menor de doze anos, no comentado artigo 241-D.

“Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de


vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de
exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato,
facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se
também multa. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º Incorre nas mesmas penas: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18
(dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste
artigo; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as
práticas referidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 3º Na hipótese do inciso II do § 2o, constitui efeito obrigatório da condenação a
cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Outra peculiaridade dos artigos do ECA é a presença das cenas de sexo explicito ou
pornográficas como objeto reprimível, outra evidência de falta de diálogo das fontes, entre
o ECA e o CP. Veja: na antiga redação do artigo 218 do CP havia as seguintes condutas:

“Art. 218 - Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e


menor de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a
a praticá-lo ou presenciá-lo:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.”

Substituiu-se a previsão supra por outras três, nos novéis artigos 218, 218-A e 218-
B do CP, este transcrito acima:
“Corrupção de menores
Art. 218. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de
outrem: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Michell Nunes Midlej Maron 18


EMERJ – CP V Direito Penal V

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
Parágrafo único. (VETADO). (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

“Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (Incluído pela


Lei nº 12.015, de 2009).”
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou
induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer
lascívia própria ou de outrem: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.” (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009).”

Por fim, no ECA, o artigo 244-A, há pouco transcrito, foi revogado tacitamente pela
inclusão do artigo 218-B no CP, que acabou por englobar aquela conduta em si, de forma
muito mais abrangente, inclusive.
Quanto ao CP, a combinação dos artigos 213 e 224 desaparece, passando a viger,
para aquele fato, o artigo 217-A, o estupro de vulnerável, já transcrito.
Veja, então, que a reforma acabou por inserir uma outra categoria de lenocínio no
ordenamento, além da expressamente prevista como tal, no Capítulo V, dos artigos 227 a
230 do CP, que serão abordados adiante: previu também o lenocínio contra vulneráveis, nos
artigos 218 a 218-B do CP.
Traçado este panorama, há que se observar sempre este diálogo truncado entre o CP
e o ECA, a fim de identificar a correta tipificação de condutas casuísticas.

Casos Concretos

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP V Direito Penal V

Questão 1

Capitule a seguinte hipótese: "VANTUILSON, que sempre teve o hábito de atrair


adolescentes até sua casa, prometendo dinheiro e a possibilidade de acesso à piscina,
lanches, televisão e vídeo, a fim de manter conjunção carnal com as mesmas, além da
prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, foi regularmente processado e
condenado. Na sua residência foram arrecadadas fotografias pornográficas envolvendo
menores de 18 anos, entre as quais fotos das ingênuas adolescentes LINDAURA,
GERTRUDES, DEUSALINA e LUCRECIA, todas com 15 anos de idade, que prestaram
depoimentos seguros e se reconheceram em algumas das fotografias apreendidas, como
tendo sido alvo dos atos praticados pelo condenado."

Resposta à Questão 1

O artigo 241-E do ECA traça o conceito de cena de sexo explícito ou pornográfica:

“Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo
explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou
adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos
órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.
(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).”

Todos os crimes de conotação sexual do ECA são normas penais em branco


homogêneas homovitelíneas, porque a norma de suprimento é exatamente esta do artigo
acima. Não são tipos penais abertos, continentes de elementos normativos que precisem de
valoração; são normas penais em branco supridas pelo próprio ECA. Esta norma de
preenchimento, portanto, deve ser observada restritivamente, não havendo crime quando o
agente fotografe uma criança de lingerie, por exemplo, eis que não se amolda ao conceito
do artigo 214-E supra – não há exposição de genitais, tampouco sexo real ou simulado.
Considerando-se que Vantuilson foi quem produziu as fotografias, seu crime será o
do artigo 240 do ECA, e o armazenamento é pós fato impunível; se não foi ele quem tirou
as fotografias, o mero armazenamento consiste no crime do artigo 241-B do ECA:

“Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer
meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente:
(Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
11.829, de 2008)
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de
qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas
referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena. (Redação
dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime: (Redação
dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; (Redação
dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou
(Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
III – prevalecendo-se de relações de parentesco consangüíneo ou afim até o
terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP V Direito Penal V

de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu
consentimento. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).”

“Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo
ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica
envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829,
de 2008)
§ 1º A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena quantidade o
material a que se refere o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 2º Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de comunicar
às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas nos arts. 240, 241,
241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita por: (Incluído pela Lei nº
11.829, de 2008)
I – agente público no exercício de suas funções; (Incluído pela Lei nº 11.829, de
2008)
II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades
institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos
crimes referidos neste parágrafo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou
serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento do material
relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder
Judiciário. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 3º As pessoas referidas no § 2o deste artigo deverão manter sob sigilo o material
ilícito referido. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).”

Há concurso formal, se as fotografias são de todas as menores em conjunto; ou há


continuidade delitiva, se em separado.

Questão 2

NATALINO, padre de uma igreja católica, convida por várias vezes NATÉRCIA,
linda jovem de 13 anos de idade, que freqüentava quase que diariamente a sua igreja, a
com ele praticar atos libidinosos diversos da conjunção carnal, o que não chega a ocorrer.
NATÉRCIA, que se sentiu efetiva e profundamente constrangida, pois, segundo ela,
alimentava em si enorme reverência e respeito em relação àquele líder religioso, propôs
ação penal privada comprovando os fatos alegados e imputando ao padre a prática de
assédio sexual (art. 216-A do CP).Em sua defesa, NATALINO nega os fatos e argumenta
que, ainda que tivesse solicitado os referidos favores sexuais, tudo não teria passado de
tentativa, pois nada houve entre os dois. Se fosse você o Juiz da causa, como decidiria?

Resposta à Questão 2

Os elementos necessários para que o crime de assédio sexual se configure são: o


constrangimento, a solicitação de vantagem ou favorecimento sexual e o aproveitamento,
por parte do agente, de sua superioridade hierárquica ou ascendência inerentes ao exercício
de emprego, cargo ou função.
Ora, no caso, não há a possibilidade da ocorrência do crime imputado, pois não há a
relação exigida no tipo penal entre a suposta vítima e o imputado. Ademais, o parágrafo
único do artigo 216-A, que foi vetado, previa exatamente a hipótese de assédio praticado
em função de ofício ou ministério, que seria o caso em exame. O máximo que se poderia

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP V Direito Penal V

conjecturar seria em relação ao artigo 61 da LCP, se fosse o caso de importunação ofensiva


ao pudor em local público ou de acesso ao público:

“Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo


ofensivo ao pudor:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”

A manifestação do MP é de ser desconsiderada, ante a ausência de ato concreto que


pudesse indiciar a corrupção.

Questão 3

EFIRE, funcionária de afamado estabelecimento bancário, deseja ardentemente


manter relacionamento sexual com seu chefe LIONARDO. Certa ocasião LIONARDO
convida-a para permanecer no escritório após o expediente, o que é aceito. LIONARDO
propõe a EFIRE a prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, o que é
recusado por EFIRE. LIONARDO afirma que irá providenciar a transferência da
funcionária, que mesmo assim não cede aos seus apelos. Cometeu LIONARDO algum
crime?

Resposta à Questão 3

A hipótese se insere no âmbito de abrangência do tipo penal do artigo 216 do CP,


porque apesar de Efire desejar o relacionamento sexual, acabou constrangida com a
finalidade de realizar o ato que não lhe agradava, por força da hierarquia funcional,
afetando a sua liberdade sexual. O tipo prevê a especial finalidade da conduta que não
precisa ser alcançada para consumá-lo. Trata-se de delito de intenção, e formal.

Tema III

Michell Nunes Midlej Maron 22


EMERJ – CP V Direito Penal V

Lenocínio e tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual. Ultraje ao pudor
público. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Conceito de lenocínio e de tráfico de
pessoa;b) Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva;c) Tráfico internacional e
tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual;d) Do ultraje público ao pudor. 2) Aspectos
controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula3

1. Estupro de vulnerável

Há três elementos identificadores da condição de vulnerável, que podem ser


colhidos do caput e do § 1º do artigo 217-A do CP: o menor de catorze anos; aquele que por
enfermidade ou deficiência mental não tem o necessário discernimento para a prática do
ato; e aquele que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Reveja:

“Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)


Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém
que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento
para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer
resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
(...)”

O critério etário é simplesmente constatado, objetivamente; o de enfermidade e


deficiência mental também se baseia em análise objetiva, pautada em laudo psiquiátrico. Já
o critério da impossibilidade de oferecimento de resistência é aberto, e por isso gera
problemas de interpretação. Exemplo de problemática criada por este critério vem da
análise do já abordado artigo 215 do CP:

“Violação sexual mediante fraude (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém,
mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de
vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica,
aplica-se também multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Suponha-se que um homem embriaga uma mulher já com o escopo de com ela
praticar ato libidinoso: capitula-se o delito neste artigo supra, ou no artigo 217-A? A
resposta dependerá exatamente do alcance que se dê à expressão “impeça ou dificulte a
livre manifestação de vontade da vítima”, do artigo 215 supra, e do alcance do termo
“resistência”, do artigo 217-A. Se a vítima não pode oferecer resistência, há estupro de
vulnerável; se sua manifestação de vontade em consentir ou negar a prática do ato foi
viciada, há violação sexual mediante fraude. No exemplo dado, a casuística deixa mais
clara a diferença: se a embriaguez leva à inconsciência, há estupro; se leva à confusão

3
Aula ministrada pela professora Cristiane Dupret Filipe, em 14/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 23


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mental que a faça consentir algo que normalmente não consentiria, há a violação mediante
fraude.
Diferentemente do estupro comum, o estupro de vulnerável independe do emprego
de violência ou grave ameaça para se configurar. Seus sujeitos passivos, todos eles, são
estuprados mesmo se consentirem nos atos libidinosos – seu consentimento é
absolutamente inócuo.
Se o adolescente tem menos de catorze anos, está configurado o delito se alguém
com ele tiver relações sexuais. Na antiga redação do artigo 218 do CP, nem poder-se-ia
cogitar da subsunção de tal conduta a este tipo. Reveja o artigo revogado:

“Art. 218 - Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e


menor de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a
a praticá-lo ou presenciá-lo:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.”

Se a vítima já fosse corrompida sexualmente, a jurisprudência entendia inexistir


objeto jurídico a ser tutelado, e o fato seria atípico. Hoje, reveja o artigo 218-B do CP:

“Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de


vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de
exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato,
facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se
também multa. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º Incorre nas mesmas penas: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18
(dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste
artigo; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as
práticas referidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 3º Na hipótese do inciso II do § 2o, constitui efeito obrigatório da condenação a
cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Repare então que, antes da reforma, praticar atos libidinosos com pessoa menor de
dezoito anos era crime, em regra, exceto quando a vítima já estivesse corrompida; hoje, a
regra é que não há crime nesta prática, mas se a vítima já estiver em situação de corrupção
sexual, há crime, como comina o § 2º, I, do artigo supra. Houve verdadeira inversão da
dinâmica.
Destarte, apenas se a pessoa menor de dezoito anos for prostituída ou sexualmente
explorada é que cometerá crime, deste artigo 218-B, a pessoa que com ela mantém relação
sexual. E mais: só cometerá este crime aquele que pratica o ato libidinoso com pessoa
menor de dezoito naquelas condições de corrupção, e em função delas. Por isso, o
namorado de uma pessoa menor de dezoito e maior de catorze anos não está cometendo
este crime, pois não é a intenção do legislador vedar a prática de tais atos a tais pessoas,

Michell Nunes Midlej Maron 24


EMERJ – CP V Direito Penal V

quando motivados por afeto e vontade própria – a mens é evitar a corrupção, e o namorado
não está se aproveitando ou fomentando tal atividade.
É de se salientar uma enorme incongruência legal, neste ponto. Como visto, a regra
é que praticar atos libidinosos com pessoa menor de dezoito e maior de catorze anos não
corrompida não é crime; contudo, fotografá-la nua é. Veja o artigo 240 do ECA:

“Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer
meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente:
(Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
11.829, de 2008)
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de
qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas
referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena. (Redação
dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime: (Redação
dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; (Redação
dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou
(Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008)
III – prevalecendo-se de relações de parentesco consangüíneo ou afim até o
terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou
de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu
consentimento. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).”

Pode-se chegar ainda ao absurdo da seguinte desproporção: captar fotografia nua de


adolescente na internet consubstancia o crime acima, no verbo “registrar”, mas ter relação
sexual com esta pessoa é fato atípico, a não ser que ela já esteja corrompida.
Voltando à carga do estupro de vulnerável, há que se salientar que a argüição de erro
de tipo é cabível neste crime tal como o era no estupro com violência presumida de antes da
reforma: se o agente não conhecia nem podia conhecer da condição de vulnerável da
vítima, não há dolo a consubstanciar o crime do artigo 217-A.
Questão fundamental, no estudo deste crime do artigo 217-A do CP, é a
intertemporalidade. Outrora, antes da reforma, aqueles que praticassem conjunção carnal
com menor de catorze anos e com violência real estariam incursos no artigo 213 do CP,
combinado com o artigo 9º da Lei 8.072/90 – porque se havia violência não se invocava o
artigo 224 do CP, como se sabe. Destarte, a tipificação deste fato – conjunção carnal
forçada com violência ou grave ameaça contra menor de catorze anos – era no artigo 213
combinado com o 9º da Lei 8.072/90, o que resultava na pena mínima de doze anos:

“Estupro
Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça:
Pena - reclusão, de seis a dez anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de
25.7.1990).”

“Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º,
158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art.
223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o

Michell Nunes Midlej Maron 25


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limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das


hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal.”

Hoje, a mesma dinâmica fática – conjunção carnal forçada com violência ou grave
ameaça contra menor de catorze anos – leva a plana capitulação do novel artigo 217-A do
CP, sem combinação com o artigo 9º supra, que foi revogado por ser norma remetida que
perdeu a norma destino, qual seja, o artigo 224 do CP, que foi revogado. A subsunção pura
ao artigo 217-A, já transcrito, tem pena mínima de oito anos, o que leva à clara conclusão
de que o crime atual é mais benéfico ao réu nestas condições, e por isso é retroativo. A este
respeito, veja o que disse o STJ no informativo 409:

“Informativo nº 0409.
Período: 28 de setembro a 2 de outubro de 2009. Quinta Turma.
ESTUPRO. RETROATIVIDADE. LEI.
Este Superior Tribunal firmou a orientação de que a majorante inserta no art. 9º da
Lei n. 8.072/1990, nos casos de presunção de violência, consistiria em afronta ao
princípio ne bis in idem. Entretanto, tratando-se de hipótese de violência real ou
grave ameaça perpetrada contra criança, seria aplicável a referida causa de
aumento. Com a superveniência da Lei n. 12.015/2009, foi revogada a majorante
prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, não sendo mais admissível sua
aplicação para fatos posteriores à sua edição. Não obstante, remanesce a maior
reprovabilidade da conduta, pois a matéria passou a ser regulada no art. 217-A do
CP, que trata do estupro de vulnerável, no qual a reprimenda prevista revela-se
mais rigorosa do que a do crime de estupro (art. 213 do CP). Tratando-se de fato
anterior, cometido contra menor de 14 anos e com emprego de violência ou grave
ameaça, deve retroagir o novo comando normativo (art. 217-A) por se mostrar
mais benéfico ao acusado, ex vi do art. 2º, parágrafo único, do CP. REsp 1.102.005-
SC, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 29/9/2009.”

É claro que, no cotejo entre o crime simples dos revogados artigos 213 ou 214 do
CP, sem a causa majorante do artigo 9º da Lei 8.072/90, e o novel artigo 217-A, aplica-se a
lei da época, porque a pena era menor diante da pena do artigo atual – era de seis anos a
pena mínima, enquanto a atual é de oito. Veja esta assertiva no seguinte julgado do TJ/RJ:

“0012018-88.2000.8.19.0021 - APELACAO - 1ª Ementa. DES. VALMIR DE


OLIVEIRA SILVA - Julgamento: 13/04/2010 - TERCEIRA CAMARA
CRIMINAL.
EMENTA - ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR - GRAVE AMEAÇA E
VIOLÊNCIA REAL - OFENDIDA NÃO MAIOR DE 14 ANOS - ESTUPRO DE
VULNERÁVEL - INCIDÊNCIA DA LEI PENAL ANTERIOR MAIS BENÉFICA
- PRINCÍPIO DA ULTRATIVIDADE - PROVA FIRME DA AUTORIA -
CORRETO JUÍZO DE CENSURA - AJUSTE NA DOSIMETRIA PENAL.
Emergindo do relato da ofendida, que em tema de crime contra liberdade sexual
constitui prova privilegiada, a certeza de que o acusado, mediante emprego de uma
faca, a ameaçou e lhe causou lesão corporal para constrangê-la a praticar nele sexo
oral, obrigando-a a chupar seu pênis, ao mesmo tempo em que introduziu seu dedo
na vagina da ofendida provocando sangramento, resta configurado o crime de
atentado violento ao pudor pelo qual acabou condenado. A resposta penal reclama
corretivo, porquanto a magistrada fixou a pena base do crime do artigo 217-A -
estupro de vulnerável introduzido no CP pela Lei 12.015/2009, bem mais grave do
que aquela cominada no artigo 214 do CP, vigente à época dos fatos, daí porque
deve ser adotado o princípio da ultratividade para fazer incidir a lei anterior mais
benéfica, descabendo o argumento com o art. 9º da Lei 8.072/90, também

Michell Nunes Midlej Maron 26


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revogado, pois na hipótese não teria ele aplicação, eis que, segundo jurisprudência
dominante, somente tinha incidência quando ocorria lesão de natureza grave ou
morte da ofendida, razão porque a pena fica acomodada em 7 anos de reclusão.
Rejeição da preliminar. Recurso parcialmente provido.”

Em síntese: se havia capitulação no artigo 213 ou 214 combinado com o artigo 9º da


Lei dos Crimes Hediondos, o novo artigo 217-A é mais benéfico, devendo retroagir; se a
capitulação não levava a majorante do artigo 9º da Lei 8.072/90, a lei nova é mais grave,
não sendo aplicada.
Sobre outro aspecto, há que se demonstrar a controvérsia atual entre o STF e a
doutrina, acompanhada pelo STJ, no que diz respeito à capitulação da conduta daquele que,
em mesma dinâmica fática, incide em conjunção carnal e atos libidinosos diversos. Para a
doutrina em peso, hoje há crime único, quer seja estupro simples, quer seja estupro de
vulnerável, porque os tipos penais são hoje considerados tipos mistos de conteúdo
alternativo – praticado um ou outro, ou ambos os verbos nucleares, há um só crime. O STF,
porém, reputa que esta pluralidade de condutas nucleares praticadas na mesma dinâmica
não revela crime único, mas sim continuidade delitiva. Veja o que disse esta Corte no HC
abaixo, constante do informativo 578:

“HC 86110 / SP - SÃO PAULO. HABEAS CORPUS. Relator Min. CEZAR


PELUSO. Julgamento: 02/03/2010. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação
23-04-2010.
EMENTA: AÇÃO PENAL. Estupro e atentado violento ao pudor. Mesmas
circunstâncias de tempo, modo e local. Crimes da mesma espécie. Continuidade
delitiva. Reconhecimento. Possibilidade. Superveniência da Lei nº 12.015/09.
Retroatividade da lei penal mais benéfica. Art. 5º, XL, da Constituição Federal. HC
concedido. Concessão de ordem de ofício para fins de progressão de regime. A
edição da Lei nº 12.015/09 torna possível o reconhecimento da continuidade
delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando
praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma
vítima.”

Veja agora a posição mais acertada do STJ:

“HC 144870 / DF. HABEAS CORPUS. Relator Ministro OG FERNANDES.


Órgão Julgador - SEXTA TURMA. Data do Julgamento 09/02/2010. Data da
Publicação/Fonte DJe 24/05/2010.
Ementa: HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO
PUDOR. CRIME CONTINUADO x CONCURSO MATERIAL. INOVAÇÕES
TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.015/09. MODIFICAÇÃO NO PANORAMA.
CONDUTAS QUE, A PARTIR DE AGORA, CASO SEJAM PRATICADAS
CONTRA A MESMA VÍTIMA, NUM MESMO CONTEXTO, CONSTITUEM
ÚNICO DELITO. NORMA PENAL MAIS BENÉFICA. APLICAÇÃO
RETROATIVA. POSSIBILIDADE.
1. A Lei nº 12.015/09 alterou o Código Penal, chamando os antigos Crimes contra
os Costumes de Crimes contra a Dignidade Sexual.
2. Essas inovações, partidas da denominada "CPI da Pedofilia", provocaram um
recrudescimento de reprimendas, criação de novos delitos e também unificaram as
condutas de estupro e atentado violento ao pudor em um único tipo penal. Nesse
ponto, a norma penal é mais benéfica.

Michell Nunes Midlej Maron 27


EMERJ – CP V Direito Penal V

3. Por força da aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais favorável,


as modificações tidas como favoráveis hão de alcançar os delitos cometidos antes
da Lei nº 12.015/09.
4. No caso, o paciente foi condenado pela prática de estupro e atentado violento ao
pudor, por ter praticado, respectivamente, conjunção carnal e coito anal dentro do
mesmo contexto, com a mesma vítima.
5. Aplicando-se retroativamente a lei mais favorável, o apensamento referente ao
atentado violento ao pudor não há de subsistir.
6. Ordem concedida, a fim de, reconhecendo a prática de estupro e atentado
violento ao pudor como crime único, anular a sentença no que tange à dosimetria
da pena, determinando que nova reprimenda seja fixada pelo Juiz das execuções.”

É claro que, havendo destacamento temporal das condutas, haverá certamente a


continuidade delitiva, no que convergem tanto as Cortes maiores como a doutrina. A
divergência supra apontada existe somente quando há pluralidade de atos em um só
contexto fático. Veja:

“HC 114054 / MT. HABEAS CORPUS. Relator Ministro OG FERNANDES.


Órgão Julgador - SEXTA TURMA. Data do Julgamento 05/04/2010. Data da
Publicação/Fonte DJe 19/04/2010.
Ementa: HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR E
TENTATIVA DE ESTUPRO. INFRAÇÕES COMETIDAS, ANTES DA
ENTRADA EM VIGOR DA LEI Nº 12.015/09, EM SEMELHANTES
CONDIÇÕES DE TEMPO, LUGAR E MANEIRA DE EXECUÇÃO,
GUARDANDO IDENTIDADE. ATOS POSTERIORES HAVIDOS COMO
CONTINUIDADE DO PRIMEIRO. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO
DO CRIME CONTINUADO. PRETENSÃO ABSOLUTÓRIA. NECESSIDADE
DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO.
IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA.
1. Segundo o art. 71 do Código Penal, quando o agente, mediante mais de uma
ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições
de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os
subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de
um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em
qualquer caso, de um sexto a dois terços.
2. Após as inovações trazidas pela Lei nº 12.015/09, os arts. 213 e 214 do Código
Penal hoje estão condensados no mesmo dispositivo legal, constituindo, dessarte,
crimes da mesma espécie, o que viabiliza a aplicação da regra do art. 71 da Lei
Penal.
3. No caso presente, o intervalo entre os acontecimentos é de aproximadamente um
mês. As condições de lugar (residência do acusado) e maneira de execução
(aproveitava-se do fato de a vítima estar dormindo em casa) são absolutamente
semelhantes, o que conduz ao reconhecimento do crime continuado.
4. Tomando por base o número de infrações cometidas – 2 (duas) – deve incidir a
majoração no patamar de 1/6 (um sexto).
5. A pretensão absolutória esbarra na necessidade de revolvimento do conjunto
fático-probatório, providência de todo incompatível com a via eleita.
6. Ordem parcialmente concedida para, reconhecendo o crime continuado entre as
infrações cometidas pelo ora paciente, reduzir a pena sobre ele recaída, de 10 (dez)
anos de reclusão para 8 (oito) anos e 9 (nove) meses de reclusão.”

Michell Nunes Midlej Maron 28


EMERJ – CP V Direito Penal V

2. Lenocínio

O artigo 218 está para o artigo 227 assim como o artigo 218-B está para o artigo
228, todos do CP. Hoje, há lenocínio nos capítulos II e V deste Título VI, variando em
relação à vítima, apenas. Revejamos os dispositivos, na ordem de cotejo, em tópicos
próprios.

2.1. Mediação para a lascívia de outrem vs. corrupção de menores

Veja os artigos 218 e 227 do CP:

“Corrupção de menores
Art. 218. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de
outrem: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
Parágrafo único. (VETADO). (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

“Mediação para servir a lascívia de outrem


Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 1º Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o
agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou
curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou
de guarda: (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)
Pena - reclusão, de dois a cinco anos.
§ 2º - Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, além da pena correspondente à violência.
§ 3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.”

Induzir pessoa adulta a satisfazer a lascívia de outra consubstancia o crime do artigo


227, caput, supra. Mesmo que não haja qualquer nota de exploração sexual, há o
preenchimento formal do caput. “Outrem”, diga-se, deve ser entendido como qualquer
pessoa determinada.
Veja uma aberração jurídica: a mera indução à satisfação da lascívia do terceiro é o
fato típico do caput, mas aquele que tem a sua lascívia satisfeita por esta indução não
comete crime algum. Quem induz está incriminado; quem se beneficia não.
Já se a vítima for pessoa vulnerável e efetivamente praticar ato libidinoso com
terceiro, há para este terceiro o crime do artigo 217-A do CP. Neste caso, aquele que
induziu esta pessoa a satisfazer a lascívia do terceiro é autor do crime do artigo 218 do CP
ou é partícipe do artigo 217-A que este terceiro cometeu? Há, aqui, uma quebra ta teoria
monista de nosso CP: o indutor é autor do crime do artigo 218 do CP, enquanto o satisfeito
é autor do estupro de vulnerável. Se não existisse o artigo 218, aquele que induz seria
partícipe do artigo 217-A do CP.
A consumação do artigo 227 caput se dá na efetiva satisfação da lascívia, ou seja, se
não houver a prática de ato lascivo da pessoa induzida com outrem, determinado, não há
consumação deste delito.
Este artigo 227 é altamente criticado, por diversos argumentos, especialmente a
desproporcionalidade e a falta de lesividade.
2.2. Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente

Michell Nunes Midlej Maron 29


EMERJ – CP V Direito Penal V

O artigo 218-A do CP é um crime de intenção, que exige que a prática tenha por
finalidade especial a satisfação de lascívia própria ou de outrem. A prática de ato libidinoso
na presença de pessoa menor de catorze anos não é crime se esta especial finalidade de agir
não estiver presente. Veja:

“Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (Incluído pela


Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou
induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer
lascívia própria ou de outrem: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.” (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009).”

Assim, pode-se ter por exemplo de atipicidade nesta conduta aquela situação em
que a família – pais e filho menor de catorze anos – residem em uma casa de um só
cômodo, e os pais têm conjunção carnal na presença do filho: os pais não se regozijam na
presença do filho ao ato, não há a intenção em haver satisfação de lascívia por esta presença
– não há crime.
Como não há qualquer menção a esta prática perante pessoas maiores de catorze
anos, se há a libidinagem na presença de pessoa de idade superior a esta não há crime
algum.

2.3. Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual

Veja os artigos 218-B e 228 do CP:

“Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de


vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de
exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato,
facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se
também multa. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º Incorre nas mesmas penas: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18
(dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste
artigo; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as
práticas referidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 3º Na hipótese do inciso II do § 2o, constitui efeito obrigatório da condenação a
cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

“Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (Redação


dada pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Michell Nunes Midlej Maron 30


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração


sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: (Redação dada
pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
12.015, de 2009)
§ 1º Se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu,
por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: (Redação
dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 2º - Se o crime, é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, além da pena correspondente à violência.
§ 3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.”

O conceito de prostituição é inaugurado neste artigo 218-B. Hoje, há a seguinte


panorâmica: o cliente da prostituta maior de catorze e menor de dezoito anos está, sim,
cometendo crime. Antes da reforma, era atípica sua conduta; hoje, é criminosa.

2.4. Casa de prostituição e rufianismo

Veja os artigos 229 e 230 do CP:

“Casa de prostituição
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra
exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário
ou gerente: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.”

“Rufianismo
Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus
lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou se o
crime é cometido por ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por quem
assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
12.015, de 2009)
§ 2º Se o crime é cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou outro
meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima: (Redação
dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, sem prejuízo da pena correspondente à
violência.(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Estes crimes são permanentes e de natureza habitual. Isto significa que se uma
pessoa mantém uma casa de prostituição, está incidindo no artigo 229 enquanto mantiver a
casa – é permanente –; e, segundo o conceito clássico de crime habitual, só se consuma o
crime quando há reiteração da prática, ou seja, na inauguração da casa de prostituição ainda
não há o crime.
Zaffaroni defende que a habitualidade é subjetiva, ou seja, não é preciso que haja a
reiteração: basta a tendência a praticar o crime habitualmente. Para ele, acertadamente, os

Michell Nunes Midlej Maron 31


EMERJ – CP V Direito Penal V

crime habitual é um crime de tendência, e por isso basta um só ato que revele esta intenção
implicitamente exigida no tipo que está consumado o delito – admitida tentativa, inclusive.
Há que se traçar a distinção entre esta conduta do artigo 229 do CP e a do artigo
218-B, no verbo “submeter”, quando porventura há mantença de casa de prostituição com
menores de dezoito anos. Incide, neste caso, o artigo 229 ou o artigo 218-B?
Manter a casa de prostituição com menores é submetê-las à prostituição. Por isso, o
dispositivo que prevalece, por especialidade, é o 218-B do CP, para quantas menores de
dezoito estejam sendo ali submetidas à prostituição. Havendo também prostitutas maiores
na mesma casa, há o concurso formal de crimes, pois na mesma situação – mantença da
casa de exploração – está cometendo dois crimes, o do artigo 218-B contra quantas forem
as prostitutas menores, e o do artigo 229, uma vês, de forma permanente.
A situação que revele condutas que se amoldem aos artigos 228, 229 e 230 ao
mesmo tempo tem sua capitulação exclusivamente no artigo 229: os demais são absorvidos.
Como exemplo, aquele que anuncia captação de prostitutas, mantendo casa de prostituição
e recolhe cinquenta por cento dos lucros das prostitutas: está no artigo 228, ao induzir as
prostitutas aos atos; está mantendo a casa, incidindo no artigo 229; e está tirando proveito
da prostituição alheia, sendo rufião. Contudo, o artigo 229 absorve todos os demais.
O artigo 218-B também prevalece sobre o artigo 230 do CP. Pode o agente fazer-se
sustentar por prostituta menor, incidindo no artigo 230, sem praticar qualquer conduta do
artigo 218-B, quando então é claro que só haverá o crime de rufianismo, mas se há
subsunção em ambos, prevalece o artigo 218-B. É o caso do namorado que, sem induzir em
nada a conduta de sua namorada a prostituir-se, por ela se faz sustentar.
Geraldo Prado entende que o crime de casa de prostituição só pode ser preenchido
se na casa ocorrer efetiva exploração sexual. Diz ele que se a prostituta preferir, claramente,
se prostituir na casa do que na rua, esta liberdade não lhe pode ser tolhida, e punir o
mantenedor da casa seria punir indiretamente a própria prostituta. É entendimento isolado,
mas parece reforçado pelo novel teor do artigo 229 do CP.
Agências virtuais de prostituição não podem ser consideradas enquadradas no crime
de casa de prostituição, mas podem ser configuradas a conduta do rufião, do artigo 230, ou
do proxeneta, do artigo 228 do CP.

3. Tráfico de pessoas para fim de exploração sexual

Há duas modalidades de tráfico de pessoas, a internacional e a interna,


respectivamente nos artigos 231 e 231-A do CP:

“Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (Redação dada pela
Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que
nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída
de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa
traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-
la ou alojá-la. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º A pena é aumentada da metade se: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)

Michell Nunes Midlej Maron 32


EMERJ – CP V Direito Penal V

I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)


II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu,
por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou (Incluído
pela Lei nº 12.015, de 2009)
IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. (Incluído pela Lei nº
12.015, de 2009)
§ 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se
também multa. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

“Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (Redação dada pela Lei
nº 12.015, de 2009)
Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território
nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração
sexual: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de
2009)
§ 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a
pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la,
transferi-la ou alojá-la. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º A pena é aumentada da metade se: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu,
por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou (Incluído
pela Lei nº 12.015, de 2009)
IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. (Incluído pela Lei nº
12.015, de 2009)
§ 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se
também multa.(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

O exercício da prostituição, em ambos os casos, não é condição para consumação


do crime: este se consuma com a efetiva movimentação da vítima. No crime internacional,
se consuma com a entrada ou saída da vítima no território nacional; no interno, basta a
entrada ou saída no Estado-Membro.

4. Ação penal nos crimes contra a dignidade sexual

A regra, ao contrário do que se pode colher da plana leitura do artigo 225 do CP, é
que a ação é pública incondicionada, porque a maior parte dos casos é nesta forma
perseguida, e não na forma pública condicionada à representação, como assenta o
dispositivo. Veja o artigo

“Ação penal
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se
mediante ação penal pública condicionada à representação. (Redação dada pela Lei
nº 12.015, de 2009)

Michell Nunes Midlej Maron 33


EMERJ – CP V Direito Penal V

Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública


incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).”

Veja que somente os crimes do Capítulo I dependem de representação, e mesmo


assim somente se a vítima for maior de dezoito anos. Assim, somente nos crimes 213, 215 e
216-A é que se condiciona à representação, e somente quando a vítima for maior de dezoito
anos. Nos demais – enorme maioria –, a ação penal é pública incondicionada. A redação do
artigo 225 do CP foi muito mal elaborada, de fato.

5. Ato, escrito ou objeto obsceno

Veja os artigos 233 e 234 do CP:

“Ato obsceno
Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”

“Escrito ou objeto obsceno


Art. 234 - Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de
comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura,
estampa ou qualquer objeto obsceno:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
Parágrafo único - Incorre na mesma pena quem:
I - vende, distribui ou expõe à venda ou ao público qualquer dos objetos referidos
neste artigo;
II - realiza, em lugar público ou acessível ao público, representação teatral, ou
exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que
tenha o mesmo caráter;
III - realiza, em lugar público ou acessível ao público, ou pelo rádio, audição ou
recitação de caráter obsceno.”

O artigo 233 não oferece maiores problemáticas, quando se está diante de ato
obsceno praticado em local público, sendo assim consideradas praias, ruas, praças, cinemas,
etc. O problema é quando se pratica o ato obsceno dentro de casa, mas com exposição ao
público: praticar ato obsceno com a janela aberta é conduta típica.
A conduta de urinar em público, tão falada na época de carnaval, só é ato obsceno se
o agente exibir, dolosamente, sua genitália. Se urina sem dolo de ofensa à moral, e
procurando cobrir suas partes pudendas, não há crime.
Também a conduta daquele que, em um local destinado a show erótico, exibe suas
parte íntimas, não é ato obsceno, porque simplesmente não há expectativa de proteção ao
pudor em local expressamente dedicado à exposição erótica.
Os crimes do artigo 234, no entanto, nas modalidades objeto obsceno ou espetáculo
obsceno, estão severamente prejudicados pela sua leitura constitucional. Não se pode
cogitar de crime quando se trata da compra, por exemplo, de um objeto sexual – o que, a
rigor, preencheria o caput do artigo. Da mesma forma, não se pode conceber que haja crime
na realização de um show erótico, com freqüência controlada. Todas estas condutas são
abonadas pelas liberdades individuais constitucionalmente garantidas – liberdade de
comércio, artística, de expressão, etc.

Michell Nunes Midlej Maron 34


EMERJ – CP V Direito Penal V

Há, porém, uma hipótese em que ainda é típica esta conduta: se o responsável por
uma loja que comercia objetos sexuais expuser seus itens ofensivos à moral geral na vitrine,
estará cometendo este delito do artigo 234, pois as pessoas que lá entram sabem do
conteúdo dos itens da loja, mas não aqueles transeuntes desavisados, que podem ser
ofendidos, então.

Casos Concretos

Michell Nunes Midlej Maron 35


EMERJ – CP V Direito Penal V

Questão 1

Policiais civis interditaram no bairro de Copacabana um estabelecimento


comercial que se apresentava como casa de banhos, massagens e sauna, de freqüência
para ambos os sexos, vindo, na ocasião, a prender, em flagrante, o gerente da mesma,
sustentando, para tanto, a infração ao artigo 229 do Código Penal, e diante da
constatação de que no local desenvolvia-se prostituição de forma indiscriminada.
a) Está correto o enquadramento jurídico-penal da hipótese? Justifique, indicando
eventual divergência de posicionamentos a respeito e seus fundamentos.
b) Caso seja afirmativa a resposta ao item anterior, haveria a caracterização do
estado de flagrância?

Resposta à Questão 1

a) O gerente pode ser sujeito ativo do delito, sem dúvida. Contudo, a doutrina
entende que o artigo 229 do CP só está preenchido se as prostitutas forem
consideradas funcionárias da casa: se há apenas freqüência da casa por pessoas
que se dedicam à prostituição, não há o crime.
b) Sim, pois é crime permanente.

Questão 2

JOÃO e JOSÉ foram denunciados pelo Ministério Público, como incursos nas
penas do art. 228 do Código Penal pelos seguintes fatos: os acusados são sócios de um
estabelecimento empresarial, cuja atividade se restringe à exploração de uma boate, com
apresentação de espetáculos eróticos, sendo que a freqüência é franqueada a qualquer
pessoa, entre as quais estão incluídas as prostitutas que bordejam pelo bairro de
Copacabana, intituladas de "garotas de programa" e que freqüentam o lugar com o
objetivo de angariar clientes, em cuja companhia se dirigem a locais diversos, para a
prática de relações sexuais. A defesa alega que, para o ingresso no referido
estabelecimento, é cobrada dos clientes uma consumação mínima e, apesar de saberem
que prostitutas freqüentam o local, não tiram nenhum proveito dessa atividade por elas
exercida. Decida a questão.

Resposta à Questão 2

Não há crime algum, pois a frequência de prostitutas em local para angariar


clientela não gera qualquer tipo de responsabilidade para o mantenedor do estabelecimento.
Veja o julgado abaixo, do TJ/RJ:

“ACrim 1998.050.01893 TJRJ – Rel. DES. INDIO BRASILEIRO ROCHA, j.


09/03/1999, 3ª Ccrim.
ESTABELECIMENTO COMERCIAL. CASA DE DIVERSOES.
FAVORECIMENTO DA PROSTITUICAO. ATIPICIDADE. SOCIO
PROPRIETARIO. ABSOLVICAO.
Favorecimento da prostituição. Proprietários e gerentes de boate, sem vinculo com
freqüentadores. Estabelecimento comercial aberto ao publico. Ausência de
tipificação. Absolvição. O crime de favorecimento da prostituição, capitulado no

Michell Nunes Midlej Maron 36


EMERJ – CP V Direito Penal V

art. 228, do CP, consiste em induzir ou atrair alguém `a prostituição, ou facilitá-la,


o que significa persuadir, aliciar, levar qualquer pessoa `a pratica desse ato. No rol
dos agentes que assim procedem, não se incluem os proprietários e gerentes das
casas noturnas denominadas boates, ainda que ofereçam espetáculos eróticos, se
provado que se tratam de estabelecimentos abertos ao publico, em que as pessoas
que ali comparecem o fazem por sua livre e espontânea vontade, combinando
programas com outros freqüentadores sem qualquer interferência daqueles gerentes
e proprietários, cuja preocupação se restringe ao recebimento do pagamento
correspondente `a consumação mínima exigida pelo estabelecimento comercial.
Verificando-se que a sentença condenatória partiu de pressupostos equivocados,
mesmo reconhecendo que “as mulheres de programa (freqüentadoras da casa) não
tinham vinculo com os réus ou com a pessoa jurídica dirigida por eles”, o caminho
e’ desconstituir-se a decisão, absolvendo-se os acusados.”

Questão 3

O tímido CARLOS pretende há longo tempo manter relações sexuais com


FRANCISCA, de 19 anos. COSME, velho amigo de ambos, visando auxiliá-lo, induz a
mesma a ter conjunção carnal com CARLOS, levando-a, inclusive, na data aprazada, à
casa daquele.
a) Praticou CARLOS algum crime? E COSME?
b) E se COSME fosse pai de FRANCISCA?
c) E se FRANCISCA tivesse 15 anos, haveria alguma diferença na tipicidade?
d) E se CARLOS estuprasse FRANCISCA, como seria solucionada juridicamente a
conduta de COSME?

Resposta à Questão 3

a) Carlos não cometeu crime algum; Cosme, porém, está inserido no artigo 227 do
CP.
b) Estaria, então, inserto no artigo 227, § 1º, do CP.
c) Neste caso, estaria também inserida a conduta no § 1º do artigo 227 do CP.
d) Neste caso, se Cosme em nada aderiu à conduta, o dolo superveniente de
estupro em nada lhe comunica – há o desvio objetivo de conduta por parte de
Carlos que não importa a Cosme, o qual ainda seria mantido no artigo 227.

Tema IV

Michell Nunes Midlej Maron 37


EMERJ – CP V Direito Penal V

Crimes contra a família. Crimes contra o casamento. Crimes contra o estado de filiação. Crimes contra a
assistência familiar. Crimes contra o poder familiar. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução
histórica. b) Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. c) Exame dos
principais delitos. 2) Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003).3) Aspectos controvertidos. 4) Concurso de crimes.
5) Pena e ação penal.

Notas de Aula4

1. Crimes contra a família

Nos crimes contra a família, o legislador incrimina uma série de aspectos


relacionados à formação da família, aos deveres existentes no âmbito da família, e ao
estado de filiação. Vejamos.

1.1. Bigamia

“Bigamia
Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada,
conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três
anos.
§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo
que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.”

Trata-se de crime próprio, que só pode ser cometido por quem é casado. Segundo
Pierangeli, sujeito passivo deste crime é o Estado e o outro cônjuge, do casamento
superveniente, se ele for enganado; se for complacente, apenas o Estado é a vítima do
crime. A tutela penal, aqui, visa a proteger a adequada formação da família pelo casamento.
O primeiro casamento do bígamo tem natureza jurídica de pressuposto do fato
ilícito, só podendo se falar em crime se há casamento anterior. E repare que é irrelevante se
o casamento anterior é nulo ou anulável: é pressuposto o casamento existente, e até que seja
efetivamente nulificado ou anulado, o crime persiste. Veja:

“HC 74740 / SP (STF – 1ª TURMA - DJ 29-08-1997 PP-40216 ).


EMENTA: - DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. BIGAMIA (ART. 235
DO CÓDIGO PENAL): PRESCRIÇÃO. DETRAÇÃO DA PENA IMPOSTA EM
OUTRO PROCESSO. "HABEAS CORPUS". 1. Havendo o segundo casamento
ocorrido a 03.02.1979 e a condenação a dois anos de reclusão apenas em data de
27.08.1984, já haviam decorrido, entre uma data e outra, mais de quatro anos,
prazo suficiente para extinção da punibilidade, pela prescrição da pretensão
punitiva, segundo a pena em concreto, nos termos dos artigos 110 e 109, inc. V, do
Código Penal. 2. Ademais, sendo o réu menor de 21 anos de idade, no momento do
segundo casamento, como admitiu o próprio acórdão recorrido, o prazo
prescricional ainda se reduziria à metade, ou seja, a dois anos, nos termos do art.
115 do Código Penal, de sorte que mais evidente ainda fica a prescrição. 3. Nesse
ponto, portanto, o "Habeas Corpus" pode ser conhecido e deferido. 4. Noutro,
porém, não pode ser conhecido. É que nele se pretende a detração da pena, pela
bigamia, agora extinta pela prescrição, a ser feita em outro processo em que
imposta outra condenação. Questão a ser submetida, primeiramente, ao Juiz das

4
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 16/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 38


EMERJ – CP V Direito Penal V

Execuções Criminais, de 1º grau, faltando competência originária ao S.T.F. para


resolvê-la, de pronto, em "Habeas Corpus". 5. "H.C." conhecido, em parte, e, nessa
parte, deferido, para a declaração de extinção da punibilidade, pela prescrição da
pretensão punitiva, em relação ao delito de bigamia.”

Mas veja que, segundo o § 2º do artigo em análise, a tipicidade só persiste enquanto


o primeiro casamento estiver existente, porque quando o casamento anterior vier a ser
anulado ou nulificado, a tipicidade deixa de estar preenchida em relação ao segundo
casamento. A natureza jurídica do § 2º do artigo em tela é de excludente de tipicidade.
O crime de bigamia admite dolo eventual na modalidade do caput; no caso do § 1º,
que é o crime daquele que não é bígamo, mas conhece da circunstância de seu consorte, é
preciso dolo direto – conhecer a circunstância é elementar desta modalidade.
A anulação do casamento deve ocorrer aqui, não tendo valor a anulação operada em
outro país. Veja:

“SEC 1303 / JP (STJ – CORTE ESPECIAL - DJ 11/02/2008 p. 51)


SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA. BIGAMIA. CASAMENTO
CELEBRADO NO BRASIL E ANULADO PELA JUSTIÇA JAPONESA.
HOMOLOGAÇÃO NEGADA.
1. A bigamia constitui causa de nulidade do ato matrimonial, tanto pela legislação
japonesa, como pela brasileira, mas, uma vez realizado o casamento no Brasil, não
pode ele ser desfeito por Tribunal de outro país, consoante dispõe o § 1º do art. 7º
da Lei de Introdução ao Código Civil. 2. Precedente do STF – SEC 2085. 3.
Pedido de homologação negado.”

A ação anulatória do casamento não é uma prejudicial obrigatória ao processo


penal, segundo Damásio, pois quando o juiz criminal tiver elementos claros de que não se
trata de caso de anulação, não precisará estancar a perseguição criminal. Havendo dúvidas,
porém, deve suspender a ação penal, por precaução.
A separação anterior não é suficiente para afastar a bigamia, devendo haver
anulação ou divórcio.
A pluralidade de uniões estáveis ou de união estável e casamento não implica
bigamia. A tutela é da segurança do casamento, e só o cúmulo de casamentos formais
simultâneos implica este crime.

1.2. Induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento

“Induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento


Art. 236 - Contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou
ocultando-lhe impedimento que não seja casamento anterior:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único - A ação penal depende de queixa do contraente enganado e não
pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo
de erro ou impedimento, anule o casamento.”

Apenas as causas do artigo 1.521 e 1.557 do CC fazem ocorrer este crime:

“Art. 1.521. Não podem casar:


I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;

Michell Nunes Midlej Maron 39


EMERJ – CP V Direito Penal V

III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do
adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau
inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de
homicídio contra o seu consorte.”

“Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:


I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal
que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge
enganado;
II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne
insuportável a vida conjugal;
III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de
moléstia grave e transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a
saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;
IV - a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua
natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.”

O bem jurídico tutelado, aqui, é a ordem jurídica do casamento. O sujeito passivo,


aqui, é tanto o Estado quanto o contraente enganado.
A ação penal só pode ser ajuizada após a anulação do casamento pelo erro ou
impedimento, e por isso não há como se falar em tentativa: ou o casamento ocorreu e foi
anulado, ou sequer se fala em crime. A natureza jurídica da anulação do casamento, para
Damásio, é de condição de procedibilidade, ,as para Hungria, mais acertadamente, é de
condição objetiva de punibilidade.
Esta ação penal é privada personalíssima, pois somente o contraente enganado pode
ajuizar a queixa. A morte do ofendido, diga-se, extingue a punibilidade do autor do crime.

1.3. Conhecimento prévio de impedimento

“Conhecimento prévio de impedimento


Art. 237 - Contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe
cause a nulidade absoluta:
Pena - detenção, de três meses a um ano.”

Além do artigo 1.521 do CC, há que se apontar aqui também para os artigos 1.517,
1.523, e 1.550, todos do CC:

“Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se
autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não
atingida a maioridade civil.
Parágrafo único. Se houver divergência entre os pais, aplica-se o disposto no
parágrafo único do art. 1.631.”

“Art. 1.523. Não devem casar:


I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer
inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;
II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado,
até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade
conjugal;

Michell Nunes Midlej Maron 40


EMERJ – CP V Direito Penal V

III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos
bens do casal;
IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou
sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou
curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.
Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam
aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo,
provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o
ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente
deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do
prazo.”

“Art. 1.550. É anulável o casamento:


I - de quem não completou a idade mínima para casar;
II - do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal;
III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;
IV - do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento;
V - realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da
revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges;
VI - por incompetência da autoridade celebrante.
Parágrafo único. Equipara-se à revogação a invalidade do mandato judicialmente
decretada.”

O bem jurídico deste delito também é a ordem jurídica matrimonial, e o sujeito


passivo é o contraente enganado e o Estado.
Aquele que contrai o casamento sabendo que o outro consorte é impedido está
cometendo este delito, tanto quanto o próprio impedido.
Este crime admite tentativa a partir do início da cerimônia; os proclamas são meros
atos preparatórios.

1.4. Simulação de autoridade para celebração de casamento e simulação de casamento

“Simulação de autoridade para celebração de casamento


Art. 238 - Atribuir-se falsamente autoridade para celebração de casamento:
Pena - detenção, de um a três anos, se o fato não constitui crime mais grave.”

O crime do artigo 238 do CP deve ser lido em conjunto com o artigo 328 do mesmo
diploma:

“Usurpação de função pública


Art. 328 - Usurpar o exercício de função pública:
Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.
Parágrafo único - Se do fato o agente aufere vantagem:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.”

O artigo 238 do CP é uma modalidade especial de usurpação da função pública.

1.5. Simulação de casamento

“Simulação de casamento

Michell Nunes Midlej Maron 41


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 239 - Simular casamento mediante engano de outra pessoa:


Pena - detenção, de um a três anos, se o fato não constitui elemento de crime mais
grave.”

São vítimas deste crime o consorte, os pais do consorte que eventualmente precisem
dar autorização para o casamento, e eventuais pessoas presentes à cerimônia.
Se quem celebra o casamento simulado é de fato autoridade hábil para tanto, o
casamento é verdadeiro, e não há crime.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 42


EMERJ – CP V Direito Penal V

TÍCIO é filho de um relacionamento extraconjugal de CAIO, que é casado com


TÍCIA, com quem não tem filhos. Em razão de acordo judicial, ficou fixada uma pensão
alimentícia mensal que CAIO deveria pagar a TÍCIO, filho que reconheceu como seu. Um
ano após a fixação, CAIO, sentindo-se explorado, resolve não mais pagar a pensão,
abandonando inclusive seu último emprego para que não fosse possível comprovar a sua
renda. Agiu assim estimulado por SIMPRÔNIA, com quem havia se casado sem, no
entanto, desfazer o seu casamento anterior. Pergunta-se:
a) Quais os crimes praticados por CAIO?
b) É possível falar em efeitos civis da sentença condenatória penal com relação ao
filho?
c) Se houver prisão civil pelo não-pagamento da prestação alimentícia, esta ilidiria
o crime?
d) No processo de habilitação para a realização do novo casamento poderia ser
vislumbrado algum crime?
e) E se o casamento com TÍCIA não fosse válido, haveria algum crime contra o
casamento?
f) E se a mãe de TÍCIO, após o seu nascimento desse parto próprio como alheio,
em razão da vergonha de ter se envolvido com um homem casado, teria praticado
crime?
g) E se a avó materna de TÍCIO tivesse registrado como seu o neto, para efeito de
minimizar a desonra da filha e para garantir uma pensão previdenciária a ele
enquanto menor, teria havido crime por parte dela?
h) E se CAIO tivesse entregado TÍCIO, com 10 anos de idade, a traficantes de
entorpecentes para que o filho conhecesse aquele tipo de atividade e pudesse
contribuir com o seu próprio sustento, haveria algum crime?
i) E se CAIO, ao cumprir o acordo judicial de visitação do filho, resolvesse não
mais entregá-lo à mãe, estaria praticando algum crime?

Resposta à Questão 1

a) Caio, com relação ao filho, pratica crime de abandono material (parágrafo único),
com relação ao segundo casamento, pratica crime de bigamia – se a segunda esposa
souber que ele é casado, também pratica crime.
b) Os efeitos civis do artigo 92, II, não se aplicam porque o crime é punido com
detenção.
c) A prisão civil tem natureza diversa da penal. Aquela é meio de coerção para o
pagamento, decorre das relações civis. Esta decorre da prática do ilícito, não
havendo nem mesmo detração penal.
d) Eventual adultério seria absorvido pela bigamia, conforme jurisprudência
majoritária.
e) No processo de habilitação poderia haver o crime de falsidade ideológica de
documento público, que seria absorvido pelo crime de bigamia, para a posição
majoritária da jurisprudência.
f) Se o casamento anterior for anulado, inexiste a bigamia (artigo 235, § 2º, CP).
g) A conduta é atípica, só é típico dar parto alheio como próprio.

Michell Nunes Midlej Maron 43


EMERJ – CP V Direito Penal V

h) Incidiria no crime do artigo 242, a chamada “adoção à brasileira”, que pode ter o
perdão judicial do parágrafo único.
i) Praticaria o crime de entrega de filho a pessoa inidônea (artigo 245, 1º, CP).
j) A doutrina e a jurisprudência majoritárias consideram que existe o crime do artigo
247, III do CP, muito embora possa ser alegada a inexigibilidade de conduta diversa.
l) Pratica o crime de sonegação de incapaz (artigo 248, parte final, CP), porque
detém num primeiro momento, o filho, licitamente, e depois não entrega a quem
tem a guarda estabelecida judicialmente. Vale dizer que há opiniões no sentido de
que seria crime de desobediência de ordem judicial (artigo 359), porque se trata de
crime contra o poder familiar, que continua existindo.

Questão 2

JOANA, advogada, solteira, apaixona-se por PEDRO, separado judicialmente, e o


convence a contraírem casamento, para tanto propondo-se a agilizar a conversão de sua
separação em divórcio, o que, entretanto, não ocorre em tempo hábil, fato silenciado por
JOANA a PEDRO, que lhe exibe falsa sentença judicial de conversão, ocorrendo então o
novo matrimônio. Instaurado IP para apuração do fato, vem a ser oferecida denúncia
contra PEDRO, pela prática da conduta prevista no artigo 235, CP. Considerando tratar-
se de crime próprio, poderia o fato ser imputado somente a JOANA; qual o argumento
defensivo que poderia ser utilizado por PEDRO?

Resposta à Questão 2

O agente solteiro também responde pelo delito, nos termos do § 1º do artigo 235 do
CP. Relativamente a Pedro, tendo sido induzido a erro de tipo escusável por Joana, verifica-
se a exclusão do dolo, tornando sua conduta atípica, caso em que só Joana responderá pelo
delito.

Questão 3

Relativamente aos crimes contra o estado de filiação, esclareça em que tipo penal
incorre o agente que:
a) dá parto alheio como próprio;
b) dá parto próprio como alheio;
c) substitui seu filho vivo pelo de terceira pessoa;
d) substitui seu filho natimorto por outro vivo;
e) não registra natimorto;
f) registra criança substituída;
g) altera a filiação em nascimento verdadeiro.
Resposta à Questão 3

a) Artigo 242, primeira figura, CP;


b) Artigo 299, CP;
c) Artigo 242, quarta figura, CP;

Michell Nunes Midlej Maron 44


EMERJ – CP V Direito Penal V

d) Artigo 242, primeira figura, CP, conforme ensinamento de Carrara, pois haveria
“suposição de criança”, e não do parto ou da quarta figura, conforme Luis Régis
Prado;
e) Conduta atípica;
f) Artigo 242, segunda e quarta figuras, na forma do artigo 69 do CP;
g) Artigo 299, CP.

Tema V

Crimes contra a incolumidade pública I.1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem
jurídico tutelado. Sujeitos do delito;b) Tipicidade objetiva e subjetiva dos artigos 250 a 259 do CP. 2)
Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Michell Nunes Midlej Maron 45


EMERJ – CP V Direito Penal V

Notas de Aula5

1. Crimes contra a incolumidade pública

Todos estes crimes, quer os previstos no CP, quer os apresentados em leis penais
extravagantes como o Estatuto do Desarmamento, o CTB e a Lei de Drogas, têm por
fundamento comum, por óbvio, o conceito de incolumidade pública. O legislador penal,
como regra, tipifica lesões a bens jurídicos mais relevantes à vida em sociedade, em função
da fragmentariedade do direito penal. Ocorre que à medida que a sociedade se torna cada
vez mais complexa, o legislador percebe que é necessária a previsão de tipificações que se
voltem a reprimir as condutas meramente perigosas, ainda que por enquanto não lesivas,
para estabelecer com isso uma melhor manutenção de um estado de segurança.
Por isso, os crimes contra a incolumidade pública partem de uma premissa que não
é apenas o bem jurídico individual lesionado que deve ser preservado, mas sim os bens
coletivamente considerados formadores do estado de segurança que se pretende manter.
Os crimes contra a incolumidade pública contemplam modalidade de bem jurídico
consistente em um estado de segurança que o legislador eleva à condição de bem jurídico
autônomo. A incolumidade pública tem como pressuposto que a conduta pode afetar um
número indeterminado de pessoas, e a ausência deste requisito pode deslocar a tipicidade
para outro crime.
Como exemplo, o crime de tráfico de drogas reprime a circulação da droga porque
esta é considerada uma conduta que mina o estado de segurança. O uso da droga, por seu
turno, não é crime – o usuário comete o crime por circular, portar a droga, e não por usá-la,
em si. O que periclita a incolumidade pública é o porte para uso próprio, e não o uso em si.
Sendo crimes de perigo, o que se diz é que o legislador opera, nestes tipos penais,
uma antecipação da barreira de proteção penal: ao invés de reprimir a lesão em si, o
legislador se antecipa e protege desde logo o bem jurídico do perigo a que se o pode expor.
Mesmo por isso, outro pressuposto destes delitos é a periclitação de um número
indeterminado de pessoas, porque o que se quer proteger é a coletividade – esta é sujeito
passivo do crime –, e não uma só pessoa ou um pequeno grupo. O CP trata-os como crimes
de perigo comum, e esta classificação em crime de perigo comum, ou de perigo coletivo,
traduz a idéia de que é preciso esta afetação de pessoas indeterminadas.
Os crimes de periclitação podem ser crimes de perigo concreto ou de perigo
abstrato. A expressão perigo comum em nada se confunde com esta classificação,
referindo-se somente à indeterminação dos afetados pela conduta, que é necessária para
configurar qualquer crime contra a incolumidade pública.
O próprio conceito de perigo deve ser elucidado, portanto. Manzini defende que
perigo é algo subjetivo, é um dado criado pelo homem, que inexiste no mundo fático; o que
existe, o que pode ser constatado empiricamente, é a lesão, e não o perigo de lesão. O
perigo é um juízo de probabilidade de lesão criado pelo homem. No entanto, esta visão não
prevalece, porque o que se entende é que perigo é de fato um dado da realidade, ou seja, a
probabilidade de dano é uma constatação empírica, fática – que demanda valoração
subjetiva, sim, mas sobre um dado da realidade fática. O CP adota esta teoria objetiva para
a caracterização do perigo, segundo a qual o perigo representa concretamente a
probabilidade de um dano.
5
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 16/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 46


EMERJ – CP V Direito Penal V

Para se diferenciar um crime de perigo concreto de um crime de perigo abstrato, há


quem diga que a lei fornece subsídio: a presença expressa no tipo de alguma menção ao
perigo como elementar. Contudo, a jurisprudência não vê esta correlação, sendo a definição
da concretude ou abstração do perigo realmente casuística, pontual, e não normativa.
Tecnicamente, a distinção entre perigo concreto e abstrato deveria ser feita no plano típico
normativo – sempre que houvesse uma expressão relacionada ao perigo no tipo este seria de
perigo concreto –, mas a jurisprudência é casuística, já tendo entendido como de perigo
concreto algumas hipóteses em que o tipo penal não faça esta menção. Bom exemplo é o
crime de perigo de desastre ferroviário, entendido como de perigo concreto mesmo que o
artigo 260 do CP não mencione esta condição:

“Perigo de desastre ferroviário


Art. 260 - Impedir ou perturbar serviço de estrada de ferro:
I - destruindo, danificando ou desarranjando, total ou parcialmente, linha férrea,
material rodante ou de tração, obra-de-arte ou instalação;
II - colocando obstáculo na linha;
III - transmitindo falso aviso acerca do movimento dos veículos ou interrompendo
ou embaraçando o funcionamento de telégrafo, telefone ou radiotelegrafia;
IV - praticando outro ato de que possa resultar desastre:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
(...)”

Os crimes de perigo não permitem se cogitar da aplicação da teoria da


insignificância, porque se o legislador antecipou a barreira de proteção penal para se
satisfazer com o perigo como a conduta a ser reprimida, este bem jurídico – a incolumidade
pública – não pode ser quantificado. É o mesmo raciocínio que impede a cogitação de
insignificância, por exemplo, nos crimes contra a fé pública, tal como a moeda falsa: a
falsificação de uma nota de dois reais já é suficiente para perturbar a confiança pública no
dinheiro como um todo, ou seja, já se perturbou a fé, mesmo que por uma nota de mínimo
valor.
Os crimes contra o meio ambiente, porém, têm merecido aplicação da teoria da
insignificância, mesmo que tecnicamente este bem jurídico também não seja quantificável.
A jurisprudência tem aceitado a dedução da teoria da bagatela, de fato, em crimes que não a
comportariam, como crimes ambientais, de tráfico, e de porte de arma. Seria mais técnico,
em verdade, entender-se que quando há esta suposta insignificância o que ocorre é a
simples não ocorrência de perigo algum, e por isso a conduta é atípica, mas não é esta a
opção jurisprudencial, nestes casos.
Há ainda que se abordar nesta seara introdutória a discussão sobre a própria
constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. De início, saliente-se que a tese que
pugna pela inconstitucionalidade destes crimes não tem reconhecimento pelas Cortes
maiores. A inconstitucionalidade é alegada ao argumento de que a incriminação de condutas
abstratas é violação à lesividade e à culpabilidade.
A culpabilidade é violada, segundo Luis Flávio Gomes, porque o homem só pode
responder por fatos que decorram de sua conduta, e do perigo abstrato pode acontecer de
não existir qualquer decorrência: se não houver ofensa alguma a quem for periclitado, ainda
assim há responsabilidade penal, sem afetação de bens jurídicos. E a ofensividade, que é
um dogma constitucional, impõe que haja perigo concreto ou efetiva lesão a bem jurídico

Michell Nunes Midlej Maron 47


EMERJ – CP V Direito Penal V

para que a conduta seja penalmente relevante, pelo que a abstrata possibilidade de lesão,
não acarretando ofensividade, não poderia ser tipificada.
Para este autor, todos os crimes são inconstitucionais, portanto, eis que violam o
princípio da culpabilidade impondo ao homem a responsabilidade penal pelo simples fato
de a conduta estar prevista na lei e esta presumir perigo, que pode não existir – seria uma
forma de responsabilidade sem qualquer exposição do bem jurídico a perigo. O STF não
encampa esta tese, embora entenda que os crimes de perigo abstrato devam ser evitados no
moderno direito penal.
Sobre esta discussão, veja os precedentes abaixo:

“RHC 81057 / SP - SÃO PAULO. RECURSO EM HABEAS CORPUS. Relatora


Min. ELLEN GRACIE. Relator p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE.
Julgamento: 25/05/2004. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ 29-04-
2005.
EMENTA: Arma de fogo: porte consigo de arma de fogo, no entanto,
desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta
disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do
fato: 1. Para a teoria moderna - que dá realce primacial aos princípios da
necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso - o cuidar-se de
crime de mera conduta - no sentido de não se exigir à sua configuração um
resultado material exterior à ação - não implica admitir sua existência
independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela
incriminação da hipótese de fato. 2. É raciocínio que se funda em axiomas da
moderna teoria geral do Direito Penal; para o seu acolhimento, convém frisar, não
é necessário, de logo, acatar a tese mais radical que erige a exigência da
ofensividade a limitação de raiz constitucional ao legislador, de forma a proscrever
a legitimidade da criação por lei de crimes de perigo abstrato ou presumido: basta,
por ora, aceitá-los como princípios gerais contemporâneos da interpretação da lei
penal, que hão de prevalecer sempre que a regra incriminadora os comporte. 3. Na
figura criminal cogitada, os princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação
do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à
incriminação da conduta o objeto material do tipo. 4. Não importa que a arma
verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de
instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os
comissíveis mediante ameaça - pois é certo que, como tal, também se podem
utilizar outros objetos - da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não
constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de
aumento de pena. 5. No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir
duas situações, à luz do prin cípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a
arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem
demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-
se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe
ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade
da arma de fogo, como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir disparo - e, por
isso, não se realiza a figura típica.”

“REsp 883824 / RS (STJ - 5ª TURMA - DJ 03/09/2007 p. 215)


PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 14 DA LEI Nº 10.826/03. DELITO DE
PERIGO ABSTRATO.
Na linha de precedentes desta Corte o porte de munição é delito de perigo abstrato,
sendo, portanto, em tese, típica a conduta daquele que é preso portando munição,
de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou
regulamentar. (Precedentes). Recurso provido.”

Michell Nunes Midlej Maron 48


EMERJ – CP V Direito Penal V

“AgRg no REsp 937098 / RS (STJ – 5ª TURMA - DJe 20/10/2008)


AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENAL. PORTE DE
ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. NULIDADE DE PERÍCIA
REALIZADA PARA ATESTAR A POTENCIALIDADE LESIVA DO
ARMAMENTO APREENDIDO. DESNECESSIDADE DO EXAME. CRIME DE
MERA CONDUTA. DECISÃO IMPUGNADA MANTIDA.
1. O simples fato de portar arma de fogo de uso permitido sem o devido registro
viola o previsto no art. 14 da Lei 10.826/03, por se tratar de delito de mera conduta
ou de perigo abstrato, sendo prescindível laudo pericial para a comprovação de sua
materialidade, configurando-se pelo simples enquadramento do agente em um dos
verbos descritos no tipo penal repressor.
2. Agravo regimental improvido.”

“RHC 81057 / SP (STF – 1ª Turma - DJ 29-04-2005 PP-00030)


EMENTA: Arma de fogo: porte consigo de arma de fogo, no entanto,
desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta
disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do
fato: 1. Para a teoria moderna - que dá realce primacial aos princípios da
necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso - o cuidar-se de
crime de mera conduta - no sentido de não se exigir à sua configuração um
resultado material exterior à ação – não implica admitir sua existência
independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela
incriminação da hipótese de fato. 2. É raciocínio que se funda em axiomas da
moderna teoria geral do Direito Penal; (...) 4. Não importa que a arma verdadeira,
mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de
intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os comissíveis
mediante ameaça - pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros
objetos - da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime
autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena.
(...) não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal - isto é,
como artefato idôneo a produzir disparo - e, por isso, não se realiza a figura típica.”

“HC 84377 / SP (STF - 1ª Turma - DJ 27-08-2004)


EMENTA: I. Infração de trânsito: direção de veículos automotores sem
habilitação, nas vias terrestres: crime (CTB, art. 309) ou infração administrativa
(CTB, art. 162, I), conforme ocorra ou não perigo concreto de dano: derrogação do
art. 32 da Lei das Contravenções Penais (precedente: HC 80.362, Pl., 7.2.01, Inf.
STF 217). 1. Em tese, constituir o fato infração administrativa não afasta, por si só,
que simultaneamente configure infração penal. (...) 3. Cingindo-se o CTB, art. 309,
a incriminar a direção sem habilitação, quando gerar "perigo de dano", ficou
derrogado, portanto, no âmbito normativo da lei nova - o trânsito nas vias terrestres
- o art. 32 LCP, que tipificava a conduta como contravenção penal de perigo
abstrato ou presumido. 4. A solução que restringe à órbita da infração
administrativa a direção de veículo automotor sem habilitação, quando inexistente
o perigo concreto de dano - já evidente pelas razões puramente dogmáticas
anteriormente expostas -, é a que melhor corresponde ao histórico do processo
legislativo do novo Código de Trânsito, assim como às inspirações da melhor
doutrina penal contemporânea, decididamente avessa às infrações penais de perigo
presumido ou abstrato.”
“RHC 81057 / SP - (STF - 1ª Turma - DJ 29-04-2005)
EMENTA: Arma de fogo: porte consigo de arma de fogo, no entanto,
desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta
disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do
fato: (...) 5. No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir duas
situações, à luz do princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma

Michell Nunes Midlej Maron 49


EMERJ – CP V Direito Penal V

desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem


demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-
se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe
ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade
da arma de fogo, como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir disparo - e, por
isso, não se realiza a figura típica.”

“RHC 81057 / SP - (STF - 1ª Turma - DJ 29-04-2005)


1. Para a teoria moderna - que dá realce primacial aos princípios da necessidade da
incriminação e da lesividade do fato criminoso - o cuidar-se de crime de mera
conduta - no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material
exterior à ação - não implica admitir sua existência independentemente de lesão
efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato.
2. É raciocínio que se funda em axiomas da moderna teoria geral do Direito Penal;
para o seu acolhimento, convém frisar, não é necessário, de logo, acatar a tese mais
radical que erige a exigência da ofensividade a limitação de raiz constitucional ao
legislador, de forma a proscrever a legitimidade da criação por lei de crimes de
perigo abstrato ou presumido: basta, por ora, aceitá-los como princípios gerais
contemporâneos da interpretação da lei penal, que hão de prevalecer sempre que a
regra incriminadora os comporte. 3. Na figura criminal cogitada, os princípios
bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para
a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do
tipo.”

O repúdio do STF a esta argüição de inconstitucionalidade se deve ao raciocínio de


que os crimes de perigo abstrato são necessários à tutela proibitiva de condutas tais que, se
fosse exigido o perigo concreto, seriam de impossível comprovação. Como exemplo, o
crime de expor à venda bem impróprio para consumo, do artigo 7º, IX, da Lei 8.137/90:

“Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:


(...)
IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma,
entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo;
Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.
(...)”

Se este crime fosse, nesta modalidade, considerado de perigo concreto, seria


impossível se verificar a efetiva causação do perigo, mor das vezes. A simples violação da
regra, portanto, é suficiente para imprimir a reprovabilidade à conduta que o legislador quer
reprimir. O bem jurídico é o interesse estatal na observância da regra, e não a saúde do
consumidor per si, pelo que a sua quebra, a quebra da regra, já basta para despertar
relevância para o direito penal. Por isso, também não se falaria em insignificância, nestes
crimes, mas a jurisprudência é divergente:

“STF - HC 82324 / SP (STF - Primeira Turma - DJ 22-11-2002)


EMENTA: - "Habeas corpus". Crime previsto no artigo 12 da Lei 6.368/76.
Princípio da insignificância. Precedentes do S.T.F. - Ainda recentemente, esta
Primeira Turma, julgando o HC 81.734, de que foi relator o eminente Ministro
Sydney Sanches, com relação a militar que fumava cigarro de maconha em área
sujeita a administração militar, não admitiu o princípio da insignificância ou crime
de bagatela quanto a crime de posse e de uso de substância entorpecente, ... Nesse
sentido, os RHCs 51.235 e 45.973, HCs 68.516, 69.806, 71.638 e 74.661, e o RC
108.697. "Habeas corpus" indeferido.”

Michell Nunes Midlej Maron 50


EMERJ – CP V Direito Penal V

“2005.050.00858 - APELACAO CRIMINAL (DES. ANGELO MOREIRA


GLIOCHE - Julgamento: 09/06/2005 - OITAVA CAMARA CRIMINAL)
Apelação. Art. 16 da Lei 6.368/76. (...). O crime de uso de entorpecente é de perigo
abstrato. Não é possível o acolhimento do princípio da insignificância. Recurso
desprovido.”

“050.00505 - APELACAO CRIMINAL (DES. ANGELO MOREIRA GLIOCHE -


Julgamento: 13/03/2008 - OITAVA CAMARA CRIMINAL)
Ementa. Apelação. Art. 12, caput, da Lei 6368/76. (...) A prova testemunhal colhida
não deixa dúvida quanto a prática do crime de tráfico de drogas. Sendo os crimes
das drogas de perigo abstrato, impossível a aplicação do princípio da
insignificância. Recurso desprovido.”

“EMENTA: HABEAS CORPUS. DECISÃO DA TURMA RECURSAL. POSSE


ILEGAL DE DROGA PARA CONSUMO PESSOAL. INAPLICABILIDADE DO
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÃNCIA. Desimporta à caracterização do crime
descrito no art. 16 da antiga Lei n.º 6.368/76 e atualmente no art. 28 da lei
11.343/2006 a quantidade de substância tóxica ou entorpecente apreendida com o
agente, pois a tipicidade objetiva da referida infração penal reside na propriedade
nociva à saúde pública da droga e não a lesividade comprovada do caso concreto,
na hipótese dos autos até mesmo demonstrada com a proclamação de
inimputabilidade do paciente em razão da dependência. PEDIDO DE
ABSOLVIÇÃO DENEGADO. (Habeas Corpus Nº 70024315806, Terceira Câmara
Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vladimir Giacomuzzi, Julgado em
29/05/2008).”

“2003.050.02168 - APELACAO CRIMINAL DES. SERGIO DE SOUZA


VERANI - Julgamento: 01/06/2004 - QUINTA CAMARA CRIMINAL
ENTORPECENTES. TRÁFICO. PROVA. MATERIALIDADE NÃO
COMPROVADA. ABSOLVIÇÃO. A prova produzida é insuficiente para
demonstrar que o entorpecente apreendido com o réu - 0,6g de cocaína destinava-
se ao tráfico. Além disso, a própria materialidade não está comprovada, pois já no
exame prévio do material foi ele "integralmente consumido nos exames",
impossibilitando-se a formação da contra-prova (art. 170, C.P.). Essa mínima
quantidade que o Réu portava desfigura a essência da tipicidade, face ao princípio
da insignificância. Se a lesão ao bem jurídico tutelado (saúde pública) é irrelevante
e insignificante, inexiste dano a interesse jurídico apreciável, excluindo-se a
própria tipicidade da conduta. "La insignificancia de Ia afectación excluye Ia
tipicidade" ( Zaffaroni ). Não comprovado o fato criminoso, impõe-se a absolvição.
Recurso provido.”

“Art. 290 do CPM e Princípio da Insignificância


Em face do empate na votação, a Turma deferiu habeas corpus para reconhecer a
atipicidade material da conduta por aplicação do princípio da insignificância a
militar condenado pela prática do crime de posse de substância entorpecente em
lugar sujeito à administração castrense (CPM, art. 290). (...) Enfatizou-se que a Lei
11.343/2006 veda a prisão do usuário, devendo a este ser oferecidas políticas
sociais eficientes para recuperá-lo do vício. Asseverou-se, ainda, que incumbiria ao
STF confrontar o princípio da especialidade da lei penal
militar, óbice à aplicação da Nova Lei de Drogas, com o princípio da dignidade
humana, arrolado como princípio fundamental (CF, art. 1º, III). Ademais, afirmou-
se que outros ramos do Direito seriam suficientes a sancionar o paciente. Vencidos
os Ministros Ellen Gracie, relatora, e Joaquim Barbosa que denegavam a ordem ao
fundamento de que, diante dos valores e bens jurídicos tutelados pelo aludido art.
290 do CPM, revelar-se-ia inadmissível a consideração de alteração normativa pelo

Michell Nunes Midlej Maron 51


EMERJ – CP V Direito Penal V

advento da Lei 11.343/2006. Assentaram que a conduta prevista no referido


dispositivo legal ofenderia as instituições militares, a operacionalidade das Forças
Armadas, além de violar os princípios da hierarquia e da disciplina na própria
interpretação do tipo penal. HC 90125/RS, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o
acórdão Min. Eros Grau, 24.6.2008. (HC-90125)
A Turma deferiu habeas corpus impetrado em favor de militar condenado pela
prática do crime de posse de substância entorpecente em lugar sujeito à
administração castrense (CPM, art. 290). (...) No mérito, enfatizou-se que o
princípio da insignificância qualifica-se como fator de descaracterização material
da tipicidade penal e que, para sua incidência, deve ser observada a presença de
certos vetores, tais como: a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência
de periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do
comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Ademais,
acentuou-se que a jurisprudência desta Corte tem admitido a inteira aplicabilidade
desse postulado aos delitos militares, mesmo que se cuide de crime de posse de
quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, e ainda que se
trate de ilícito penal perpetrando no interior de organização militar. Precedentes
citados: HC 84307/RO (DJU de 25.5.2005); HC 85725/RO (DJU de 23.2.2007);
RHC 89624/RS (DJU de 7.12.2006); HC 87478/PA (DJU de 23.2.2007); HC
922634/PE (DJU de 5.9.2007). HC 94809/RS, rel. Min. Celso de Mello, 12.8.2008.
(HC-94809)”

“Art. 290 do CPM e Princípio da Insignificância -2


O Tribunal iniciou julgamento de habeas corpus, afetado ao Pleno pela 2ª Turma,
impetrado contra acórdão do Superior Tribunal Militar - STM em favor de militar
condenado pelo crime de posse de substância entorpecente em lugar sujeito à
administração castrense (CPM, art. 290) — v. Informativo 519. O acórdão
impugnado afastou a aplicação do princípio da insignificância ao delito de uso de
substância entorpecente por se tratar de crime de perigo abstrato, pouco
importando a quantidade encontrada em poder do usuário e afirmou que o art. 290
do CPM não sofreu alteração com o advento da Lei 11.343/2006, tendo em conta o
critério da especialidade da norma castrense em relação à lei penal comum.
Pretende a impetrante, em síntese, a aplicação: a) do princípio da insignificância,
dado o grau mínimo de ofensa ao bem jurídico protegido; b) do art. 28 da Lei
11.343/2006. A Min. Ellen Gracie, relatora, denegou a ordem, no que foi
acompanhada pelos Ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo
Lewandowski e Joaquim Barbosa. Entendeu que, diante dos valores e bens
jurídicos tutelados pelo aludido art. 290 do CPM, revela-se inadmissível a
consideração de alteração normativa pelo advento da Lei 11.343/2006. Assentou
que a prática da conduta prevista no referido dispositivo legal ofende as
instituições militares, a operacionalidade das Forças Armadas, além de violar os
princípios da hierarquia e da disciplina na própria interpretação do tipo penal.
Asseverou que a circunstância de a Lei 11.343/2006 ter atenuado o rigor na
disciplina relacionada ao usuário de substância entorpecente não repercute no
âmbito de consideração do art. 290, do CPM, não havendo que se cogitar de
violação ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Salientou,
ademais, que lei posterior apenas revoga anterior quando expressamente o declare,
seja com ela incompatível, ou regule inteiramente a matéria por ela tratada.
Concluiu não incidir qualquer uma das hipóteses à situação em tela, já que o art.
290, do CPM, é norma especial. Em seguida, reputou inaplicável, no âmbito do
tipo previsto no art. 290, do CPM, o princípio da insignificância. No ponto, após
discorrer que o princípio da insignificância tem como vetores a mínima
ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o
reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão
jurídica provocada, concluiu que o entorpecente no interior das organizações
militares assume enorme gravidade, em face do perigo que acarreta, uma vez que é

Michell Nunes Midlej Maron 52


EMERJ – CP V Direito Penal V

utilizado, no serviço, armamento de alto poder ofensivo, o que afeta, diretamente, a


operacionalidade da tropa e a segurança dos quartéis, independentemente da
quantidade da droga encontrada, e agride, dessa forma, os valores básicos das
instituições militares. Em divergência, o Min. Eros Grau concedeu o writ,
reportando-se às razões expendidas nos habeas corpus que deferira na 2ª Turma
(HC 92961/SP, DJE de 22.2.2008; HC 90125/RS, DJE de 5.9.2008; HC 94678/RS,
DJE de 22.8.2008, e.g.). Após, pediu vista dos autos o Min. Carlos Britto. HC
94685/CE, rel. Min. Ellen Gracie, 30.10.2008. (HC-94685)”

O sujeito ativo nos crimes contra a incolumidade pública é qualquer pessoa; sujeito
passivo é sempre a coletividade. Vejamos estes crimes em espécie.

2. Incêndio

“Incêndio
Art. 250 - Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o
patrimônio de outrem:
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.
Aumento de pena
§ 1º - As penas aumentam-se de um terço:
I - se o crime é cometido com intuito de obter vantagem pecuniária em proveito
próprio ou alheio;
II - se o incêndio é:
a) em casa habitada ou destinada a habitação;
b) em edifício público ou destinado a uso público ou a obra de assistência social ou
de cultura;
c) em embarcação, aeronave, comboio ou veículo de transporte coletivo;
d) em estação ferroviária ou aeródromo;
e) em estaleiro, fábrica ou oficina;
f) em depósito de explosivo, combustível ou inflamável;
g) em poço petrolífico ou galeria de mineração;
h) em lavoura, pastagem, mata ou floresta.
Incêndio culposo
§ 2º - Se culposo o incêndio, é pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.”

Este crime é doloso ou culposo, e admite tanto o dolo direto quanto o dolo eventual
na modalidade do caput.
Segundo a doutrina, este crime pode ser cometido tanto por ação quanto por
omissão imprópria, quando a causa se imputar à não evitação do incêndio por um
garantidor – um bombeiro que deixa de acudir a um incêndio, por exemplo.
Problema surge é quando a doutrina defende que haja a possibilidade de que alguém
que não é garante seja imputado por omissão neste delito. Juarez Tavares dá exemplo dessa
dinâmica de responsabilidade por omissão mesmo quando não for garantidor na situação
em que o síndico de um prédio é acionado por alguém sobre uma pessoa estar presa no
elevador, e simplesmente não faz nada: este autor reputa que este síndico está cometendo
crime de sequestro por omissão. No crime de incêndio, poder-se-ia vislumbrar que alguém
que não deu causa ao incêndio – pois seria conduta comissiva – nada faça para não impedir
que o incêndio ocorra. É caso que causa estranheza, e embora a doutrina faça menção à
possibilidade de incêndio por omissão, fica realmente difícil vislumbrar hipótese diversa da
omissão imprópria dos garantidores, como os bombeiros.

Michell Nunes Midlej Maron 53


EMERJ – CP V Direito Penal V

Incêndio, por conceito, é o fogo de grande proporções e com potencial para expor a
perigo pessoas indeterminadas. Este crime é induvidosamente de perigo concreto, porque o
tipo traz como elementar a expressão “expondo a perigo”. O delito admite tentativa,
portanto, desde que haja o incêndio de grandes proporções, mas que o perigo concreto a
pessoas indeterminadas não chegue a ocorrer. Neste sentido, veja o julgado abaixo, do
TJ/RJ:

“0028875-10.2002.8.19.0000 (2002.050.01247) - APELACAO - 1ª Ementa. DES.


SILVIO TEIXEIRA - Julgamento: 26/08/2003 - QUINTA CAMARA CRIMINAL.
INCENDIO. TENTATIVA. REDUCAO DA PENA. PRESCRICAO.
RECONHECIMENTO. CRIME DE INCÊNDIO AGRAVADO TENTADO.
REDUÇÃO MÁXIMA: POSSIBILIDADE. PRESCRIÇÃO EXTINÇÃO DA
PUNIBILIDADE.
O crime de incêndio é de perigo comum, cuja consumação ocorre quando a
situação de perigo atinge um número indeterminado de pessoas. Sendo o fogo
debelado antes que as chamas se propaguem de maneira a expor a perigo a
incolumidade pública, tem-se como configurado o delito previsto na modalidade
tentada. Se se tratou de fogo ateado no colchão da cama existente em um dos
cômodos da residência, mas debelado por terceiro, antes que se espalhasse, pode-se
afirmar que se estava no início da execução, o que permite a redução máxima de
dois terços. A prescrição regula-se pela pena aplicada, se não houve recurso da
acusação ou se foi ele improvido, sabido que pode ter como termo inicial data
anterior ao recebimento da denúncia. Improvimento Extinção da punibilidade.”

O crime é material, e demanda a prova pericial para se constatar. Mesmo na


tentativa, é necessária a produção de laudo pericial provando que aquele incêndio tinha
potencial para causar perigo concreto pessoas indeterminadas. Veja julgado do TJ/RJ:

“0000055-86.2004.8.19.0007 (2005.050.05008) - APELACAO - 1ª Ementa. DES.


NILZA BITAR - Julgamento: 21/03/2006 - QUARTA CAMARA CRIMINAL.
CRIME DE DANO. Acusado que, livre e conscientemente, causou incêndio,
expondo a perigo património de outrem. Sentença que desclassifica a imputação da
denúncia (art. 250, § 1°, II, "a", Código Penal) para a do artigo 163, parágrafo
único, II, do mesmo Código. Alegação defensiva de que operou-se na sentença não
a "emendatio libelli", mas violação ao princípio da correlação entre a sentença e o
pedido, caracterizando julgamento "extra petita". Decisão singular prolatada em
consonância com o conjunto de elementos probantes. Laudo pericial que descreve
de forma clara e precisa que houve emprego de substância inflamável. Ainda que
se considerasse o apelante como proprietário da residência incendiada em função
da relação estável, é certo que. ateou fogo na parte da ex-companheira,
evidentemente "coisa alheia", não havendo falar-se em atipicidade da conduta.
Penas benignas, considerando que o apelante agiu por motivado por vingança e o
prejuízo causado. Além do que a pena privativa da liberdade foi substituída por
restritiva de direitos. Sentença mantida. Desprovimento do recurso.”

Para Mirabete, não há necessidade que o perigo venha do fogo em si, podendo
decorrer também do tumulto que o fogo provocar.
Quando o perigo for causado a pessoas determinadas – pessoas em uma casa, por
exemplo – não se aperfeiçoa o crime de incêndio, classificando-se o crime de periclitação
da vida, como o do artigo 132 do CP:

“Perigo para a vida ou saúde de outrem

Michell Nunes Midlej Maron 54


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:


Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
(...)”

Se do crime de incêndio houver resultado danoso, como a lesão ou morte, há que se


observar o artigo 258 do CP:

“Formas qualificadas de crime de perigo comum


Art. 258 - Se do crime doloso de perigo comum resulta lesão corporal de natureza
grave, a pena privativa de liberdade é aumentada de metade; se resulta morte, é
aplicada em dobro. No caso de culpa, se do fato resulta lesão corporal, a pena
aumenta-se de metade; se resulta morte, aplica-se a pena cominada ao homicídio
culposo, aumentada de um terço.”

Estes resultados são atribuídos exclusivamente a título de culpa. Se o resultado for


doloso, é claro que responderá o agente por ele, havendo discussão somente sobre a
ocorrência de concurso ou absorção. O artigo 258 supra afasta a possibilidade de concurso
formal entre estes crimes de perigo comum e os crimes de homicídio ou lesão corporal
culposos, pois coloca este resultado preterdoloso como majorante, mas não impede o
concurso entre o crime de perigo e o crime de homicídio ou lesão doloso.
Quando o agente intenta matar uma pessoa, e para tanto se vale da causação de um
incêndio, expondo a perigo outras pessoas indeterminadas, surgem quatro correntes a
disputar a solução para o enquadramento penal. Nelson Hungria capitaneia a majoritária, e
diz que há concurso formal entre homicídio e incêndio, diante da diversidade de bens
jurídicos atacados pela mesma conduta; para Pierangeli, prevalece o crime de homicídio,
porque esta é a finalidade especial do agente, valendo-se do fogo como meio, vez que não
há desígnios autônomos em matar a vítima e periclitar outrem – o que não é correto, eis que
se se admite o dolo eventual neste incêndio, ele pode estar claramente evidenciado; para
Capez, há homicídio qualificado por meio que gera perigo comum; e para Mirabete há
somente homicídio, eis que absorve o incêndio, crime menos grave.

2.1. Incêndio qualificado

As figuras qualificadas do crime de incêndio vêm no § 1º do artigo 250, supra. o


inciso I diz que o crime se qualifica se é cometido com intuito de obter vantagem
pecuniária em proveito próprio ou alheio. Hungria exemplifica: se o agente incendeia sua
casa para não precisar pagar pela demolição, e este incêndio gera perigo para pessoas
indeterminadas, está configurado o crime nesta modalidade qualificada. É preciso a relação
direta entre o incêndio e o resultado pecuniariamente vantajoso.
O incêndio mercenário, em que o agente paga outro para produzir o fogo, surgem
duas posições acerca desta qualificadora. Guilherme Nucci defende que neste caso o sujeito
auferirá vantagem com isso, pelo que o crime se qualifica; Delmanto, por seu turno,
entende que não, porque a vantagem qualificadora tem que vir do próprio incêndio, e não
da paga.
Este crime de incêndio para obter vantagem difere do estelionato contra seguradora,
do artigo 171, § 2º, V, do CP:

“Estelionato

Michell Nunes Midlej Maron 55


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio,
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer
outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
(...)
§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:
(...)
Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro
V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo
ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença, com o intuito de haver
indenização ou valor de seguro;
(...)”

Há três posições doutrinárias sobre tal distinção. Nelson Hungria admite concurso
entre estes crimes, pois o tão só fato de praticar o incêndio para obter a vantagem gera o
perigo comum, e se há também o resultado vantajoso contra o contrato de seguro, há o
crime de estelionato. Outra corrente defende que somente o crime de incêndio prevalece,
eis que mais grave, e é a majoritária. Uma terceira corrente, mais coerente, entende que
quando este incêndio gera perigo comum, e ainda há obtenção da vantagem, esta era
exatamente sua intenção; se não gera perigo comum, há apenas estelionato.
O inciso II, “b”, do § 1º do artigo 250 estabelece que é incêndio qualificado aquele
cometido em edifício público ou destinado a uso público ou a obra de assistência social ou
de cultura. Se o edifício for militar, há crime especial no artigo 268 do CPM:

“Incêndio
Art. 268. Causar incêndio em lugar sujeito à administração militar, expondo a
perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:
Pena - reclusão, de três a oito anos.
§ 1º A pena é agravada:
Agravação de pena
I - se o crime é cometido com intuito de obter vantagem pecuniária para si ou para
outrem;
II - se o incêndio é:
a) em casa habitada ou destinada a habitação;
b) em edifício público ou qualquer construção destinada a uso público ou a obra de
assistência social ou de cultura;
c) em navio, aeronave, comboio ou veículo de transporte coletivo;
d) em estação ferroviária, rodoviária, aeródromo ou construção portuária;
e) em estaleiro, fábrica ou oficina;
f) em depósito de explosivo, combustível ou inflamável;
g) em poço petrolífero ou galeria de mineração;
h) em lavoura, pastagem, mata ou floresta.
§ 2º Se culposo o incêndio:
Incêndio culposo
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.”

Se o ato envolve fogo em mata ou floresta, na forma do inciso II, “h”, do § 1º deste
artigo 250 do CP, mas não há perigo comum, o crime é o do artigo 41 da Lei 9.605/98:

“Art. 41. Provocar incêndio em mata ou floresta:


Pena - reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de detenção de seis meses a um
ano, e multa.”

Michell Nunes Midlej Maron 56


EMERJ – CP V Direito Penal V

O artigo 42 desta Lei de Crimes Ambientais é especial, mas se o fato ali praticado –
soltar balão – causar incêndio, o crime é o do CP:

“Art. 42. Fabricar, vender, transportar ou soltar balões que possam provocar
incêndios nas florestas e demais formas de vegetação, em áreas urbanas ou
qualquer tipo de assentamento humano:
Pena - detenção de um a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.”

Se houver finalidade política no cometimento do incêndio, este será tipificado no


artigo 20 da Lei 7.170/83:

“Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere


privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos
de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à
manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o
dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.”

O crime do artigo 16, III, do Estatuto do Desarmamento é também especial, na


modalidade “empregar”:

“Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito


Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito,
transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter
sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou
restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
(...)
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
(...)”

O incêndio culposo, do § 2º deste artigo 250 do CP, não sofre a incidência das
qualificadoras, não pela interpretação topográfica – por estar abaixo do § 1º –, mas sim pela
inexistência de escolha na modalidade culposa, pelo agente, do local em que o incêndio se
passa, escolha esta que é o que empresta maior reprovabilidade à conduta.
Quando do incêndio resulta morte, Hungria traça algumas hipóteses concretas para
identificar se incide a qualificadora ou não. Imagine-se que o agente incendeia um prédio e,
para se salvar do fogo, a vítima salta e morre. Neste caso, a morte está completamente
atrelada ao fogo, e por isso o nexo está perfeito – há o crime de incêndio qualificado pelo
resultado morte.
Outra hipótese é aquela em que o bombeiro, tentando apagar o incêndio, morre:
neste caso, Hungria defende que o incêndio não se qualifica jamais, porque o bombeiro é
quem se coloca na situação de perigo, e não o perigo lhe alcança por obra do incendiário. E
mais: fosse possível esta responsabilidade pela morte do bombeiro entrar na conta do
incendiário que causa incêndio culposo, ocorreria a mal quista situação em que a pessoa
que causa incêndio culposo não chamaria o socorro por medo de ter-se imputada por

Michell Nunes Midlej Maron 57


EMERJ – CP V Direito Penal V

qualquer dano sofrido pelo bombeiro, o que levaria a uma maior exposição a perigo,
deixando o fogo alcançar maiores proporções.
Terceira hipótese casuística levantada por Hungria é aquela em que a vítima do
incêndio consegue se salvar, mas volta ao prédio em chamas para salvar seu filho; o salva,
mas vem a morrer. Neste caso, Hungria entende que houve uma quebra do nexo causal
entre o incêndio e a morte, porque o retorno ao prédio foi uma providência diretamente
imputável à própria vítima.
Havendo mais de uma morte à conta do incêndio, a tipificação é em um só crime de
incêndio qualificado por resultado morte, segundo Mirabete, devendo o juiz considerar o
número de mortes apenas na quantificação da pena.

Casos Concretos

Questão 1

CLARISSA, interna de estabelecimento prisional, foi denunciada pelo crime de


incêndio qualificado, porque, inconformada com desatendimento que entendia razoável -

Michell Nunes Midlej Maron 58


EMERJ – CP V Direito Penal V

mudança de cela - colocou fogo em colchões de onde se encontrava reclusa com cerca de
20 outras mulheres, que se apresentavam descontentes em razão de castigo imposto, por
ter sido encontrado, em oportunidade anterior, certa quantidade de maconha, e ninguém
ter assumido a propriedade da droga. Está correta a classificação? Por quê?

Resposta à Questão 1

Não há perigo para pessoas indeterminadas, pelo que não há crime de incêndio. O
crime é de dano.
Veja o julgado do TJ/RJ:

“ACrim 2003.050.01391 TJRJ – Rel. DES. EDUARDO MAYR, j. 19/08/2003, 7ª


CCrim.
MOTIM DE PRESOS. INCENDIO. AUTORIA DUVIDOSA. ABSOLVICAO
CRIMINAL. INCÊNDIO. REVOLTA EM PRESÍDIO. DÚVIDA QUANTO À
AUTORIA. ABSOLVIÇÃO. Se as internas do estabelecimento prisional se
rebelam e se revoltam quanto à forma avilante e irracional com que são tratadas,
sendo ateado fogo a alguns colchões, é uma demasia capitular o fato como
incêndio qualificado, havendo, se tanto, crime de dano por fogo. In casu, duvidosa
a autoria, impondo-se a absolvição da apelante, única entre o mulherio revoltado a
ser indigitada, e ostensivamente revoltada pela conduta da Administração
penitenciária. Absolvição.”

Questão 2

ALEX e FÉLIX estavam na movimentada rua Fogueteiros, quando arremessaram


engenho explosivo - que depois descobriu-se ser uma bomba incendiária - de efeitos
análogos aos da dinamite, tendo sido atingidos um automóvel Ômega, que se achava
estacionado na rua, e a vitrine de uma loja - o carro pegou fogo, e ficou bastante
danificado. Após isto, fugiram para o interior de um coletivo - durante a fuga ainda
arremessaram mais duas bombas, uma delas em frente a um colégio - local em que foram
presos por um policial civil acionado por um policial de trânsito, que os reconheceu
quando trazidos à sua presença. Qual(is) o(s) crime(s) cometido(s) por ALEX e FÉLIX?
Fundamente.

Resposta à Questão 2

O arremesso de duas bombas em um só contexto consubstancia um só crime de


explosão. Porém, quando há o arremesso de dois explosivos em dois contextos fáticos
diversos – como parece ter ocorrido no caso – há dois crimes de explosão. A situação
concreta descreve crime de explosão praticado em contextos distintos, permitindo no
máximo computar-se continuidade delitiva.
Repare que não se trata de crime de resistência, o segundo arremesso, porque este
crime precisa ter seu dolo voltado para o ataque expresso ao servidor público, o que não
fica evidente no caso, mas é possível se cogitar de resistência em concurso com explosão.
Veja o julgado do TJ/RJ:

“ACrim 2003.050.05410 TJRJ – Rel. DES. ROBERTO CORTES, j. 20/05/2004, 6ª


CCrim.

Michell Nunes Midlej Maron 59


EMERJ – CP V Direito Penal V

EXPOSICAO DE PERIGO A VIDA,INTEGRIDADE FISICA,OU PATRIMONIO


DE OUTREM. EXPLOSAO. PROVA SEGURA. PROVIMENTO PARCIAL.
Apelação Criminal. Explosão. Exposição a perigo de vida e ao patrimônio de
outrem. Tipificação. Autoria e materialidade comprovadas. Prova robusta nos autos
de que os ora apelantes expuseram a perigo a integridade física, bem como o
patrimônio das pessoas que circulavam pela Rua descrita na exordial acusatória,
mediante arremesso de engenho explosivo de efeito análogo à dinamite, causando
explosão, que atingiu, inclusive o auto KADETT cinza, cujas fotos foram
acostadas às fls. 149/150. Acerto do Juízo de Censura aplicado. Dosimetria da pena
bem fixada em patamares mínimos. Regime prisional fechado aplicado com
relação ao 1º apelante PAULO CÉSAR que deve ser abrandado para o semi-aberto.
Com relação ao 2º Apelante ALEX, o regime prisional deve ser abrandado para o
aberto. Ambos os recursos parcialmente providos.”

Tema VI

Crimes contra a incolumidade pública II. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Bem
jurídico tutelado. Sujeitos do delito;b) Tipicidade objetiva e subjetiva dos artigos 260 a 266 do CP. 2)
Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Michell Nunes Midlej Maron 60


EMERJ – CP V Direito Penal V

Notas de Aula6

1. Explosão

“Explosão
Art. 251 - Expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem,
mediante explosão, arremesso ou simples colocação de engenho de dinamite ou de
substância de efeitos análogos:
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.
§ 1º - Se a substância utilizada não é dinamite ou explosivo de efeitos análogos:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Aumento de pena
§ 2º - As penas aumentam-se de um terço, se ocorre qualquer das hipóteses
previstas no § 1º, I, do artigo anterior, ou é visada ou atingida qualquer das coisas
enumeradas no nº II do mesmo parágrafo.
Modalidade culposa
§ 3º - No caso de culpa, se a explosão é de dinamite ou substância de efeitos
análogos, a pena é de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos; nos demais
casos, é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.”

Trata-se de crime de perigo concreto, e há uma peculiaridade neste tipo penal que é
a tentativa que o legislador operou de não permitir que este crime seja cometido na forma
tentada, porque na própria capitulação do caput fez constar como formas consumadas
aquelas condutas que seriam a forma tentada deste delito, ao prever que a simples
colocação ou o arremesso do explosivo já consuma o crime. Mesmo assim, porém, há quem
admita a tentativa na modalidade arremessar, eis que é possível o fracionamento desta
conduta e a sua interrupção por um agente externo.
O delito se caracteriza pela expansão de gases, oriunda de uma determinada
substância que provoca a difusão de grande quantidade de energia. Este delito se consuma
na exposição a perigo, pois é crime de perigo concreto.
Os artigos 20 da Lei 7.170/83 e 16, III, do Estatuto do Desarmamento (Lei
10.826/03) são tipos especiais em relação à explosão do CP:

“Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere


privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos
de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à
manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o
dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.”

“Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito


Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito,
transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter
sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou
restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
(...)
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
6
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 16/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 61


EMERJ – CP V Direito Penal V

(...)”

Já se não há perigo comum da explosão, a conduta subsume-se ao artigo 132 ou ao


163, parágrafo único, II, do CP:

“Perigo para a vida ou saúde de outrem


Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da
vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a
prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo
com as normas legais. ( Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998).”

“Dano
Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Dano qualificado
Parágrafo único - Se o crime é cometido:
I - com violência à pessoa ou grave ameaça;
II - com emprego de substância inflamável ou explosiva, se o fato não constitui
crime mais grave;
(...)”

2. Uso de gás tóxico ou asfixiante

“Uso de gás tóxico ou asfixiante


Art. 252 - Expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem,
usando de gás tóxico ou asfixiante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Modalidade Culposa
Parágrafo único - Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de três meses a um ano.”

Gás tóxico é o que pode matar por envenenamento, enquanto gás asfixiante é o que
pode matar por sufocação. A prova destas qualidades dos gazes é feita necessariamente por
meio de perícia técnica, na forma do artigo 158 do CPP:

“Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de


corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”

Fumaça de veículos não é considerada gás tóxico, tampouco o vapor d’água. Nada
impede, porém, que o emprego destas substâncias possa revelar meio de cometimento de
outros delitos, como o próprio homicídio.
O artigo 54 da Lei 9.605/98 teria revogado o artigo supra do CP? Veja:

“Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou
possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de
animais ou a destruição significativa da flora:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.
§ 2º Se o crime:
I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana;

Michell Nunes Midlej Maron 62


EMERJ – CP V Direito Penal V

II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea,


dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população;
III - causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento
público de água de uma comunidade;
IV - dificultar ou impedir o uso público das praias;
V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos,
óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em
leis ou regulamentos:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de
adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em
caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível.”

Há três correntes sobre esta relação entre o artigo 252 do CP e o artigo 54 da Lei de
Crimes Ambientais. Para Edis Milaré, o artigo da lei extravagante revogou tacitamente o
crime do CP, porque engloba sua objetividade jurídica. Luis Régis Prado entende que o
crime ambiental revogou apenas parcialmente o artigo do CP, porque não engloba em si a
potencialidade periclitante do patrimônio, como o faz o artigo 252 do CP – que resta
vigente, portanto, quanto a esta elementar patrimonial, somente. Mas a posição que
prevalece é a de Nucci e Pierangeli, que defendem que a Lei 9.605/98 protege o meio
ambiente, ao passo que o artigo 252 do CP protege pessoas indeterminadas do perigo a que
se expõem, e por isso não se confundem – há dolo distinto em cada tipo, e cada um se
preenche com seu dolo específico, de periclitar meio ambiente ou pessoas indeterminadas.

3. Fabrico, fornecimento, aquisição, posse ou transporte de explosivo ou gazes nocivos

“Fabrico, fornecimento, aquisição posse ou transporte de explosivos ou gás tóxico,


ou asfixiante
Art. 253 - Fabricar, fornecer, adquirir, possuir ou transportar, sem licença da
autoridade, substância ou engenho explosivo, gás tóxico ou asfixiante, ou material
destinado à sua fabricação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.”

Aqui também há perda de tipicidade em função da especialidade do artigo 16, II, do


Estatuto do Desarmamento, há pouco transcrito, no que diz respeito à elementar “substância
ou engenho explosivo”. Quando a entrega de gás tóxico ou asfixiante for feita a criança,
Capez sustenta que subsiste a subsunção ao artigo 242 do ECA:

“Art. 242. Vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer


forma, a criança ou adolescente arma, munição ou explosivo:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de
12.11.2003).”

O crime do artigo 253 do CP é tipo misto alternativo, e é de perigo abstrato, eis que
não há menção expressa ou implícita à efetiva causação do perigo como elementar.

4. Inundação e perigo de inundação

“Inundação

Michell Nunes Midlej Maron 63


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 254 - Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o


patrimônio de outrem:
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa, no caso de dolo, ou detenção, de seis
meses a dois anos, no caso de culpa.”

Este crime é de perigo concreto, como evidencia a expressão “expondo a perigo”,


do caput.
Veja o artigo seguinte, 255 do CP:

“Perigo de inundação
Art. 255 - Remover, destruir ou inutilizar, em prédio próprio ou alheio, expondo a
perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, obstáculo natural ou
obra destinada a impedir inundação:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.”

Este crime é a própria tentativa do artigo 254 do CP, que foi eleita a crime
autônomo, segundo a doutrina. Ocorre que os meios elegidos pelo legislador para esta
tentativa, no artigo 255 supra, são restritos, pelo que a colocação de um obstáculo a fim de
causar inundação, meio este diferente daqueles arrolados no artigo 255, pode dar ensejo ao
crime do artigo 254 na forma tentada: se coloca um obstáculo a fim de causar inundação e
esta exposição a perigo não ocorre, não há o artigo 255 consumado – há o artigo 254
tentado.
Assim, em regra, o crime do artigo 255 do CP configura modalidade tentada do
artigo 254, quando a conduta for de remover, destruir ou inutilizar obstáculo; se a conduta
for de colocar obstáculo para provocar inundação, haverá tentativa do artigo 254 do CP.

5. Desabamento ou desmoronamento

“Desabamento ou desmoronamento
Art. 256 - Causar desabamento ou desmoronamento, expondo a perigo a vida, a
integridade física ou o patrimônio de outrem:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Modalidade culposa
Parágrafo único - Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de seis meses a um ano.”

Desabamento é a ruína de obras do homem, do engenho humano, como prédios,


pontes, etc; desmoronamento é a ruína de obras naturais, como morros ou rochedos.
É fundamental o dolo direto ou eventual de causar a ruína, pois do contrário, por
óbvio, não se configura o crime.
O crime é de perigo concreto, como se depreende do uso da expressão “expondo a
perigo” pelo legislador. Quando houver o desmoronamento ou desabamento sem a
exposição a perigo, porém, o fato é deslocado para o artigo 29 da Lei das Contravenções
Penais, Decreto-Lei 3.688/41:

“Art. 29. Provocar o desabamento de construção ou, por erro no projeto ou na


execução, dar-lhe causa:
Pena – multa, de um a dez contos de réis, se o fato não constitue crime contra a
incolumidade pública.”

Michell Nunes Midlej Maron 64


EMERJ – CP V Direito Penal V

Veja o seguinte julgado, do famoso caso Sérgio Naya:

“2001.050.04549 - APELACAO CRIMINAL - DES. SERGIO DE SOUZA


VERANI - Julgamento: 17/12/2002 – QUINTA CAMARA CRIMINAL
DESABAMENTO DE PREDIO. MORTE. DANOS DECORRENTES DE
DEFEITOS NA CONSTRUCAO DE PREDIO. CRIME CULPOSO.
CONDENACAO CRIMINAL. SUBSTITUICAO DA PENA.
Demonstrando a prova produzida que uma das causas do desabamento ocorreu em
razão de erros do projeto estrutural do prédio - erros de calculo ou de detalhamento
das ferragens -, confirma-se a condenação do engenheiro autor do projeto,
configurada a sua conduta culposa “imperícia, aqui caracterizada pela
inobservância de cautelas especificas no exercício da arte da engenharia", bem
aplicadas as penas. Demonstrando a prova, ainda, que o desabamento também
ocorreu em virtude de erros na construção do prédio, delineia-se a conduta culposa
dos outros dois corréus, engenheiros responsáveis técnicos pela execução,
desenvolvimento e manutenção da obra. Trata-se de desabamento culposo, com
resultado morte (art. 256, parágrafo único, e art. 258, 2. parte, C.P.).”

6. Subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento

“Subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento


Art. 257 - Subtrair, ocultar ou inutilizar, por ocasião de incêndio, inundação,
naufrágio, ou outro desastre ou calamidade, aparelho, material ou qualquer meio
destinado a serviço de combate ao perigo, de socorro ou salvamento; ou impedir ou
dificultar serviço de tal natureza:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.”

Trata-se de crime de perigo abstrato, sem qualquer menção a resultado efetivamente


perigoso.
Suponha-se que o agente causa incêndio, e, posteriormente, impede o socorro pelos
bombeiros (cortando a mangueira, por exemplo). Há, neste caso, duas condutas, e o
concurso material de crimes é claro.

7. Difusão de doença ou praga

“Difusão de doença ou praga


Art. 259 - Difundir doença ou praga que possa causar dano a floresta, plantação ou
animais de utilidade econômica:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
Modalidade culposa
Parágrafo único - No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a seis meses, ou
multa.”

Este crime, no CP, só está em vigor para a modalidade culposa, eis que a
modalidade dolosa é traçada com especialidade na Lei 9.605/98, no artigo 61:

“Art. 61. Disseminar doença ou praga ou espécies que possam causar dano à
agricultura, à pecuária, à fauna, à flora ou aos ecossistemas:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Michell Nunes Midlej Maron 65


EMERJ – CP V Direito Penal V

Casos Concretos

Questão 1

CAIO, morador da zona oeste do Rio de Janeiro, foi preso em flagrante quando
viajava sobre um vagão de trem. Que tipo foi realizado por CAIO?A solução se alteraria,
caso:
a) CAIO colocasse fogo no vagão, danificando-o parcialmente?

Michell Nunes Midlej Maron 66


EMERJ – CP V Direito Penal V

b) CAIO tivesse alterado o funcionamento da linha férrea, ocasionando a colisão


de duas composições?

Resposta à Questão 1

A conduta é considerada atípica por não existir perigo comum. Nesse sentido:

“RESE 1998.051.00021 TJRJ – Rel. DES. J. C. MURTA RIBEIRO, j. 09/06/1998,


2ª CCrim.
SEGURANCA DE MEIO DE TRANSPORTE. SURFISTA FERROVIARIO.
PERIGO DE DESASTRE FERROVIARIO. ATIPICIDADE. DENUNCIA. NAO
RECEBIMENTO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. Desastre ferroviário.
Fato típico do artigo 260, inciso IV do Código Penal. Recurso em sentido estrito
contra decisão que não recebeu a denuncia. Atipicidade da conduta. Decisão de 1.
grau que se mantém. Não realiza a figura típica do artigo 260, IV do Código Penal
aquele que, voluntariamente, se coloca sobre os vagões de uma composição de
trem elétrico e pratica o “Surf ferroviário”. Tipo a configurar perigo concreto de
verdadeiro desastre ferroviário, e, não, perigo direto e eminente para o próprio
autor da façanha. Em realidade, não basta a remota possibilidade de dano, mas,
sim, a efetiva probabilidade de dano concreto. Decisão de 1. Grau de Jurisdição
que se mantém nos termos regimentais.”

a) Sim. Estará incurso nas penas do artigo 260, I, do CP, incidindo a circunstância
agravante do artigo 61, I, “d” do CP. O crime de incêndio (artigo 250, CP), que
também é de perigo concreto e comum, fica absorvido.
b) Estará incurso na figura qualificada do artigo 260, §1º, do CP.

Questão 2

Capitule os seguintes fatos, com suas agravantes e/ou atenuantes, e explicitando as


causas gerais/especiais de aumento/diminuição de penas acaso observáveis:Durante uma
greve de motoristas de ônibus, um deles, FECRÔNIO, na direção de um coletivo da
concessionária Império Autoônibus, da linha 176, tenta furar um "piquete" de grevistas.
GENIFREDO, um dos líderes do movimento, arremessa um tijolo contra o coletivo em
movimento, o qual, estilhaçando o pára-brisa, vem a atingir mortalmente HELESBINO,
que se encontrava assentado atrás do banco do motorista. Socorrido imediatamente,
sobreviveu, mas com seqüelas sérias, duas desagradáveis cicatrizes em seu rosto

Resposta à Questão 2

Genifredo está incurso nas penas do artigo 264, parágrafo único, do CP, em cúmulo
formal com o artigo 163, parágrafo único, III, do CP, uma vez que, ao atingir Helesbino
com o arremesso de um tijolo, causou neste lesão corporal e ainda dano no ônibus. A lesão
referida neste dispositivo é culposa, logo não é graduada em leve, grave ou gravíssima.
Há quem defenda que o dano, aqui, é mero exaurimento, por se tratar de imputação
penal objetiva, pois o dolo não é de dano.

Michell Nunes Midlej Maron 67


EMERJ – CP V Direito Penal V

Tema VII

Crimes contra a incolumidade pública III. 1) Exame dos artigos 267 a 285 do CP: bem jurídico tutelado.
Sujeitos do Delito. Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4)
Pena e ação penal. Crimes contra a Paz Pública. 1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica.
Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito;b) Tipicidade objetiva e subjetiva dos crimes previstos nos artigos
286 a 288 do CP.2) Aspectos controvertidos.3) Concurso de crimes.4) Pena e ação penal.

Michell Nunes Midlej Maron 68


EMERJ – CP V Direito Penal V

Notas de Aula7

1. Perigo de desastre ferroviário e desastre ferroviário


“Perigo de desastre ferroviário
Art. 260 - Impedir ou perturbar serviço de estrada de ferro:
I - destruindo, danificando ou desarranjando, total ou parcialmente, linha férrea,
material rodante ou de tração, obra-de-arte ou instalação;
II - colocando obstáculo na linha;
III - transmitindo falso aviso acerca do movimento dos veículos ou interrompendo
ou embaraçando o funcionamento de telégrafo, telefone ou radiotelegrafia;
IV - praticando outro ato de que possa resultar desastre:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
Desastre ferroviário
§ 1º - Se do fato resulta desastre:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos e multa.
§ 2º - No caso de culpa, ocorrendo desastre:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
§ 3º - Para os efeitos deste artigo, entende-se por estrada de ferro qualquer via de
comunicação em que circulem veículos de tração mecânica, em trilhos ou por meio
de cabo aéreo.”

“Material rodante” é aquele que faz parte da efetiva atividade de transporte, ou seja,
a parte estrutural, como os trilhos, as rodas, engrenagens e maquinário do trem. As obras de
adorno dos vagões, por exemplo, não se encartam nesta elementar.
O crime deste artigo 260 supra é de perigo concreto, segundo a doutrina e a
jurisprudência, doloso, e se caracteriza, no caput, pela mera possibilidade de ocorrência de
desastre ferroviário. É admitida a tentativa quando, embora praticado o ato de perturbação,
o perigo que era possível não chega a ocorrer.

“2006.050.06332 - APELACAO CRIMINAL - 1ª Ementa DES. MARCUS


BASILIO - Julgamento: 03/04/2007 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL.
PERIGO DE DESASTRE FERROVIARIO PROVA INSUFICIENTE DO DOLO
CRIME CONTRA A INCOLUMIDADE PUBLICA ABSOLVICAO FURTO
QUALIFICADO CONDENACAO
Furto qualificado. Prova. Consumação. Perigo de desastre ferroviário. Perigo
concreto. Dolo. Ausência. Absolvição. Sendo o acusado flagrado na posse de fios
de sinalização pertencentes à SUPERVIA, material que acabara de subtrair na
companhia de comparsas que conseguiram fugir, correta se apresenta a condenação
pelo crime de furto qualificado pelo concurso de agentes. Outrossim, certo que o
crime restou consumado, não só porque os agentes tiveram a posse tranquila do
material subtraído, mas porque a coisa subtraída ficou inservível, sem condições de
ser reaproveitada. O crime de perigo de desastre ferroviário reclama prova do
perigo concreto causado pela conduta imputada, que deverá ser demonstrado caso
a caso, não podendo ser presumido. Ademais, sendo o dolo o elemento subjetivo
do tipo respectivo, impõe-se a prova de que o agente tinha a consciência de que o
seu comportamento criava uma situação de perigo ao bem jurídico protegido, na
hipótese, a incolumidade pública. Prova inexistente. Absolvição.”

7
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 16/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 69


EMERJ – CP V Direito Penal V

O “surfista ferroviário” não causa, pelo só fato de viajar no teto do trem, o perigo
comum que este crime demanda, pelo que a jurisprudência é assente em reputar atípica sua
conduta, que só causa perigo a si mesmo, a sua própria integridade física. Veja:

“2001.051.00052 - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - DES. RAUL


QUENTAL - Julgamento: 03/04/2001 – QUARTA CAMARA CRIMINAL.
Recurso em sentido estrito de decisão que rejeitou a denuncia com fulcro no art.
43, I do Código de Processo Penal. Imputação do crime definido no art. 260, IV do
Código Penal em função da pratica conhecida como "surf ferroviário", que consiste
em viajar sobre o teto do trem. Evidente atipicidade de tal conduta, visto não se
poder vislumbrar em quem a realiza outra intenção que não a de expor a perigo a
própria vida, faltando, portanto, o elemento subjetivo do tipo, que e' a vontade livre
e consciente de criar situação concreta de perigo de desastre ferroviário Decisão
recorrida que se mantém por seus próprios fundamentos.”

Quem subtrai cabos de cobre da via férrea, segundo a jurisprudência, não tem dolo
de perigo, e sim de subtração, devendo responder apenas pelo crime de furto. Veja:
“2003.050.03093 - APELACAO CRIMINAL - 1ª Ementa DES. CLAUDIO T.
OLIVEIRA - Julgamento: 27/04/2004 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL
FURTO FIOS ELETRICOS PERIGO DE DESASTRE FERROVIARIO DOLO
ESPECIFICO AUSENCIA DE COMPROVACAO FURTO E PERTURBAÇÃO
DE SERVIÇO DE ESTRADA DE FERRO – Subtração de cabos de sinalização -
Crime de subtração aceito pelas partes Conduta atípica por outro enfoque - Apelo
desprovido. Se o agente subtrai cabo de sinalização e as partes aceitam a
condenação por esse crime, o seu nítido desejo foi o de subtrair, certamente retirar
o cobre e conseguir dinheiro com a venda. Com essa subtração, o agente não
destruiu, danificou ou desarranjou, total ou parcialmente, linha férrea, material
rodante ou de tração, obra de arte ou instalação e assim, sob esse aspecto, sua
conduta teria sido atípica. Recurso improvido.”

Desastre ferroviário é o acidente de grandes proporções, com probabilidade de


vítimas humanas ou grande prejuizo patrimonial. Na sua efetiva ocorrência, o § 1º do artigo
260 do CP traz qualificadora preterdolosa, em que o resultado danoso é atribuído a título de
culpa.
Veja que o perigo de desastre não existe na forma culposa; só há punição do perigo
de desastre quando há o efetivo dano, ou seja, só se pune a conduta culposa de perigo
quando há o desastre efetivamente ocorrido, como estabelece o § 2º do artigo 260, supra.
O § 3º deste artigo 260 do CP é norma penal explicativa, e ali se enquadram os
bondinhos, metrô, e quaisquer teleféricos públicos.

2. Atentado contra a segurança e sinistro em transporte marítimo, fluvial ou aéreo

“Atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo


Art. 261 - Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar
qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos.
Sinistro em transporte marítimo, fluvial ou aéreo
§ 1º - Se do fato resulta naufrágio, submersão ou encalhe de embarcação ou a
queda ou destruição de aeronave:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
Prática do crime com o fim de lucro

Michell Nunes Midlej Maron 70


EMERJ – CP V Direito Penal V

§ 2º - Aplica-se, também, a pena de multa, se o agente pratica o crime com intuito


de obter vantagem econômica, para si ou para outrem.
Modalidade culposa
§ 3º - No caso de culpa, se ocorre o sinistro:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.”

Este crime é de perigo concreto, doloso, e que se caracteriza por ser um crime de
ação livre que coloca em risco a própria aeronave ou embarcação. O TRF da Segunda
Região, no entanto, tem entendido que se trata de crime de perigo abstrato, sem muita
coerência conceitual. Veja:

“Embargos Infringentes em Apelação Criminal (Proc. 2002.02.01.026745-5 –


Publ. no DJ de 17/10/2005)
PENAL E PROCESSUAL PENAL – EMBARGOS INFRINGENTES - ART. 261,
SEGUNDA PARTE, DO CP – PRÁTICA DE ATO TENDENTE A DIFICULTAR
NAVEGAÇÃO AÉREA – INCOLUMIDADE PÚBLICA POSTA EM RISCO –
PRESENTES A TIPICIDADE OBJETIVA E SUBJETIVA – RISCO PRESUMIDO
- MANTIDO O ACÓRDÃO EMBARGADO – EMBARGOS A QUE SE NEGA
PROVIMENTO.
- Embargos Infringentes de Acórdão em que, por maioria, nega-se provimento a
Apelação Criminal, com fundamento no Código Penal, artigo 261, segunda
modalidade de conduta. - Dolo eventual na conduta do agente que assume
comportamento de desmedidas proporções, agride fisicamente a comissária de
bordo, e produz resultado capaz de colocar em risco todos os passageiros do vôo
626, da VASP, que acaba por ser, efetivamente cancelado. – Perigo abstrato que se
consuma tão-só com a possibilidade de dano ao bem jurídico tutelado, qual seja, a
incolumidade pública aliada à navegação aérea. - Adequada a aplicação da pena,
especialmente na sua substituição por prestação de serviços à comunidade.
Embargos Infringentes a que se NEGA PROVIMENTO. POR MAIORIA,
NEGADO PROVIMENTO AOS EMBARGOS INFRINGENTES.”

Os pilotos do caso Legacy, famigerado acidente aéreo da história brasileira, foram


imputados neste delito, pela conduta de viajar com o transponder (equipamento de
segurança fundamental desligado.
O § 1º estabelece figura qualificada pelo resultado. O § 2º, trata do crime praticado
com dolo especial de obtenção de vantagem econômica, qualquer que seja ela, desde a
obtenção de indenização securitária até o desaparecimento de uma dívida.
No caso de causação culposa do perigo, esta só é punida quando há a efetiva
ocorrência de sinistro, como dispõe o § 3º do artigo em tela. Veja:

“TRF1ª REGIÃO - APELAÇÃO CRIMINAL – 200041000026424. Fonte DJ


DATA: 2/5/2007 PAGINA: 50.
Ementa PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ATENTADO CONTRA A
SEGURANÇA DE TRANSPORTE MARÍTIMO, FLUVIAL OU AÉREO. ART.
261 DO CP. AUTORIA E MATERIALIDADE. AUSÊNCIA DE DOLO.
IMPRUDÊNCIA. ATIPICIDADE.
1. Do exame das provas colhidas, extrai-se que a apelante agiu culposamente e não
com dolo como imputado na denúncia e acolhido no decreto condenatório.
2. O crime do art. 261 do CP só se pune por culpa se da conduta do agente resultar
algum sinistro (crime material na modalidade culposa prevista no §3º). No caso,
não se comprovou a ocorrência de qualquer evento danoso, sendo atípica, portanto,
a conduta da apelante.
3. Recurso de apelação provido.”

Michell Nunes Midlej Maron 71


EMERJ – CP V Direito Penal V

3. Atentado contra a segurança de outro meio de transporte

“Atentado contra a segurança de outro meio de transporte


Art. 262 - Expor a perigo outro meio de transporte público, impedir-lhe ou
dificultar-lhe o funcionamento:
Pena - detenção, de um a dois anos.
§ 1º - Se do fato resulta desastre, a pena é de reclusão, de dois a cinco anos.
§ 2º - No caso de culpa, se ocorre desastre:
Pena - detenção, de três meses a um ano.”

É “outro meio de transporte” qualquer um que não se enquadre nos tipos penais
anteriores, tais como lotações, táxis, e outros transportes públicos, regulares ou não (desde
que o perigo afete pessoas indeterminadas).
Assim como nos crimes anteriores, a punição da modalidade culposa só ocorre se o
sinistro ocorrer efetivamente.

4. Forma qualificada dos delitos dos artigos 260 a 262 do CP

“Forma qualificada
Art. 263 - Se de qualquer dos crimes previstos nos arts. 260 a 262, no caso de
desastre ou sinistro, resulta lesão corporal ou morte, aplica-se o disposto no art.
258.”

Imagine-se que não ocorra o desastre ou sinistro, mas ocorre a morte de alguém por
causa relacionada ao perigo – um passageiro infarta, por exemplo: neste caso não há
incidência da figura qualificada. O artigo 263, supra, só incide se há desastre ou sinistro;
para as demais hipóteses, deve ser analisada a lesão culposa e o homicídio culposo, em
confronto com a pena dos crimes de perigo.
No caso dos crimes dos artigos 260 e 261 do CP, a pena do crime de perigo é mais
alta do que o homicídio ou lesão culposos, devendo haver a absorção destes por aqueles,
por se considerar que os resultados são exaurimento. Nucci, isoladamente, defende que haja
concurso em caso de homicídio culposo.
No caso do artigo 262 do CP, a lesão culposa tem pena menor, e figura como
exaurimento, mas o homicídio tem pena maior, configurando concurso de crimes.

5. Arremesso de projétil

“Arremesso de projétil
Art. 264 - Arremessar projétil contra veículo, em movimento, destinado ao
transporte público por terra, por água ou pelo ar:
Pena - detenção, de um a seis meses.
Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal, a pena é de detenção, de 6
(seis) meses a 2 (dois) anos; se resulta morte, a pena é a do art. 121, § 3º,
aumentada de um terço.”

“Projétil” só pode ser considerado todo objeto contundente o suficiente para causar
dano. O projétil de arma de fogo é uma espécie de projétil, mas é punida de forma especial
no crime de disparo de arma de fogo, do artigo 15 do Estatuto do Desarmamento:

Michell Nunes Midlej Maron 72


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Disparo de arma de fogo


Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas
adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha
como finalidade a prática de outro crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável. (Vide Adin 3112-1)”

O veículo alvejado deve estar em movimento, pois se estiver parado não há esta
elementar prevista no caput. Note-se que o veículo que está parado em um engarrafamento
não está efetivamente parado: está juridicamente em movimento, pois está no curso da
prestação do serviço público de transporte.
Havendo causação de dano ao veículo, há divergências quanto à capitulação.
Arremessar, acertando ou não o veículo, já consuma o delito; atingindo o veículo e
causando dano, há quem entenda que há concurso entre dano e arremesso de projétil, mas
parece se tratar, este concurso, de um verdadeiro caso de concurso necessário de crimes,
revelando responsabilidade penal objetiva. Sendo assim, o dano seria exaurimento, eis que
ínsito à prática deste delito. O crime de dano, vale relembrar, só se perfaz na modalidade de
dolo direto, e não no dolo eventual.
Trata-se de crime de perigo abstrato, sendo incabível a tentativa, para a maior parte
da doutrina. Há quem admita-a, porém, no caso em que o agente inicia o movimento de
arremessar e é contido por outrem, antes que o se lhe escape das mãos.

6. Crimes contra a paz pública

Paz pública é o sentimento de tranqüilidade que é necessário para a vida em


sociedade. Os crimes contra a paz pública afetam esse sentimento, e configurariam, como
regra, atos preparatórios para outros delitos, mas foram elevados à condição de crimes
autônomos.
Os crimes deste capítulo são de perigo abstrato. Vejamos os tipos penais.

6.1. Incitação ao crime

“Incitação ao crime
Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.”

A incitação, como regra, configura modalidade de participação intelectual em outros


delitos, mas o legislador elevou-a à condição de crime autônomo quando praticada em
público, a pessoas indeterminadas.
O momento consumativo é aquele em que a incitação alcança a ciência de pessoas
indeterminadas. Se a conduta de incitação se dirigir a pessoas determinadas – em um culto
em igreja, ou um show fechado – o crime não existe. A elementar publicamente revela que
é preciso ser indeterminado o grupo, porque somente assim há paz pública afetada. O crime
é formal, e se consuma quando a mensagem é dirigida a pessoas indeterminadas, não
havendo necessidade que haja qualquer cometimento de delito pelos incitados.
Havendo ocorrência do resultado, ou seja, se algum dos incitados efetivamente
cometer o crime a que foi incitado, há concurso de crimes entre a incitação e a conduta
criminosa levada a cabo, na modalidade de partícipe. Prevalece esta orientação, de Nelson

Michell Nunes Midlej Maron 73


EMERJ – CP V Direito Penal V

Hungria, sobre a posição de Delmanto, segundo o qual não responderá o agente pelo crime
que incitou.
A defesa da liberação da maconha em passeatas não é considerada incitação ao
crime, porque o uso em si não é crime – portar, deslocar a droga, é que é o crime. Defender
a licitude do tráfico, porém, seria a tipificação do artigo em tela, porque traficar é crime.
Divulgar e fomentar o plantio de maconha é modalidade deste crime, por óbvio.
É possível a incitação por dolo eventual, tanto como por dolo direto.
O crime de racismo pode ser especial em relação a este delito, na forma do artigo 20
da Lei 7.716/89:

“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor,


etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de
15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas,
ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada,
para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos
meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada
pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério
Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de
desobediência: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material
respectivo;
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado
da decisão, a destruição do material apreendido. (Parágrafo incluído pela Lei nº
9.459, de 15/05/97).”

A incitação de pessoas determinadas, mas operada em local público, consubstancia


o delito de incitação ao crime? Desde que a mensagem seja passível de ser captada por
pessoas indeterminadas, o crime estará consumado – basta a potencial apreensão da
incitação por pessoas indeterminadas. Já se a incitação for feita em local não público,
mesmo que haja a potencial apreensão de seu teor por pessoas indeterminadas, o crime não
se aperfeiçoa por alhear-se da elementar “publicamente” – não há dolo de perturbar a paz
pública, neste caso.
A incitação praticada em reunião familiar, por exemplo, é claramente alheia ao tipo
deste artigo, mas pode ser configurada a participação em crime que venha a ser cometido
por algum dos incitados.
Se as pessoas incitadas iniciam a execução de delitos, mas deste desistem, o
incitador é tratado como qualquer partícipe – a desistência voluntária dos incitados, do
crime resultado, a ele se comunica. Quanto ao crime de incitação, porém, que é formal e em
nada se vincula ao cometimento ou não dos delitos incitados, ainda continua respondendo.
A revogada Lei 6.368/76, no artigo 12, § 2º, III, contemplava crime que não mais
persiste no novo regramento sobre drogas, mas que persistiria no artigo 286 do CP. Veja:

Michell Nunes Midlej Maron 74


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir,


vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em
depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de
qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência
física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar;
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a
360 (trezentos e sessenta) dias-multa.
(...)
§ 2º Nas mesmas penas incorre, ainda, quem:
(...)
III - contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o
tráfico ilícito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou
psíquica.
(...)”

Para o STJ, porém, o artigo supra encontra-se desdobrado na nova lei de drogas,
razão pela qual não se desclassifica quem fora capitulado neste delito para o artigo em
estudo, da incitação ao crime.

6.2. Apologia de crime ou criminoso

“Apologia de crime ou criminoso


Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.”

Apologia é uma forma especial de incitação, na qual se exalta o crime ou o


criminoso efetivamente ocorrido, pretérito e determinado. Por meio da apologia, se
estimula a prática de delitos similares. Nelson Hungria entendia que era possível a apologia
de fato futuro, mas é postura que mais se amolda à incitação ao crime.
Não é possível a apologia de fato culposo: o crime exaltado precisa ser doloso.
Assim o é porque, em nosso ordenamento, a participação tem que ser dolosa em crime
doloso, não se admitindo, em regra, a participação culposa em crime culposo. Mirabete
admite, isoladamente, a apologia de crime culposo.
A exaltação de criminoso pode se configurar ainda que o exaltado não esteja
condenado com trânsito em julgado. Delmanto entende que é preciso a condenação
definitiva, mas Hungria, acertadamente, entende que a lei não fala em “condenado por
crime”, mas sim “autor de crime”, dispensando o trânsito em julgado, portanto.
Canções enaltecedoras do crime são meios hábeis a preencher este delito, podendo
por ele responder seus autores e executores.
Exaltar o criminoso e o crime por este cometido, em um mesmo contexto, configura
crime único.
Elogiar um criminoso por outros atos, que não sua conduta criminosa em si, não
configura apologia, porque não induz à repetição dos atos típicos que se imputam àquele
criminosos.

6.3. Quadrilha ou bando

“Quadrilha ou bando

Michell Nunes Midlej Maron 75


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim
de cometer crimes:
Pena - reclusão, de um a três anos. (Vide Lei 8.072, de 25.7.1990)
Parágrafo único - A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.”

O crime de quadrilha é, na prática, a repetição do concurso de quatro agentes, ao


menos, ao longo do tempo. Para a configuração do delito de quadrilha é necessária a
presença de uma aliança permanente de mais de três agentes, visando a prática de crimes
indeterminados.
Este crime só admite dolo direto, não comportando dolo eventual, muito menos
culpa.
O crime de quadrilha não subsiste na forma tentada. Curiosamente, no direito
italiano, é possível a quadrilha tentada, quando se percebe a adoção de atos inequívocos que
revelem esta associação.
Inimputáveis são computados no número da quadrilha, se tiverem consciência da
adesão criminosa de que estão fazendo parte, ou seja, se estiver demonstrado dolo de
associação daquele inimputável. Por isso, é claro que a presença de um menor de três anos
de idade na associação criminosa não configura quadrilha, pois mesmo se usado no crime,
no máximo será considerado um instrumento do delito, e não um participante.
Não há quadrilha para crimes culposos, tampouco para contravenções penais – o
artigo incrimina a associação para crimes, e dolosos, tampouco sendo admitida a quadrilha
para crimes preterdolosos.
O fato de os crimes objetivados pela quadrilha não serem cometidos não importa ao
crime de quadrilha: o crime é formal, e se consuma na associação para aquela finalidade
rotineira, tendo os crimes alvo se consumado ou não.
Hipótese peculiar é se é possível se falar em quadrilha quando há o cometimento de
crimes diversos pelas pessoas que supostamente integram a associação. Por exemplo, é
possível se falar em quadrilha quando há o cometimento de corrupção ativa por duas
pessoas e corrupção passiva pelos funcionários públicos que a eles se coadunam no delito?
Veja os dispositivos do CP:

“Corrupção passiva
Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
(...)”

“Corrupção ativa
Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:
(...)”

A resposta é negativa. As condutas têm que ser praticadas lado a lado, de forma
convergente, as vontades se unindo para um mesmo propósito típico – o que não ocorre no
caso narrado acima, em que a coadunação se dá por dois agentes em cada delito, e não em
conluio único entre os quatro. È por esse raciocínio, por exemplo, que não se pode falar em
quadrilha entre os criminosos que incorrem no crime de rixa, pois não há adunação de
condutas.

Michell Nunes Midlej Maron 76


EMERJ – CP V Direito Penal V

O crime é formal, e por isso é irrelevante que não participem da cadeia delitiva
todos os associados para o crime. Como visto, ainda que o crime não seja cometido, ainda
há a quadrilha previamente consumada.
A prova do crime de quadrilha, em regra, é feita mesmo com a prova dos delitos
cometidos pelos quadrilheiros, mas isto não significa que seja necessário o cometimento
dos crimes para consumar a quadrilha. Hoje, é possível a prova da quadrilha mesmo que os
crimes não venham a ser cometidos ou consumados,
A absolvição de todos os crimes imputados aos quadrilheiros afasta a consumação
do crime de quadrilha. Veja o seguinte julgado do STF:

“HC 68322 / DF - DISTRITO FEDERAL. HABEAS CORPUS. Relator: Min.


PAULO BROSSARD. Julgamento: 11/06/1991. Órgão Julgador: SEGUNDA
TURMA. Publicação DJ 30-08-1991.
Ementa: “HABEAS – CORPUS”. Sentença "citra petita". Crime de quadrilha, art.
288 do Código Penal. Acórdão que anula sentença apelada, porque "citra petita". O
crime de quadrilha e consumado pela simples associação estável e permanente para
delinquir, gozando de autonomia e independência em relação a pratica de outro
crime. No caso, os atos praticados pelos réus não foram considerados criminosos,
ainda que por insuficiência de provas, mas mero ilícito civil, de forma que afastado
pela sentença o estelionato, afastado fica também, e por consequencia, o crime de
quadrilha. "Habeas-corpus" conhecido e deferido, para que, superada a preliminar
de julgamento "citra petita", o Tribunal de Justiça prossiga no julgamento como
entender de direito.”

O crime continuado, para Nelson Hungria, não consubstancia quadrilha, porque o


crime é juridicamente um crime só, ainda que por ficção. Esta posição de Hungria é
minoritária, porque não se considera efetivamente crime único, porque a continuidade é
critério de fixação de pena, não interferindo na existência fática de mais de um crime.
A quadrilha não evidencia bis in idem quando se imputa seu cometimento com o de
outros crimes qualificados por concurso de pessoas, porque os momentos consumativos são
diversos. Assim, a tipificação de quadrilha em concurso com roubo qualificado por
concurso de agentes, por exemplo, não é bis in idem. Pierangeli entende que o sequestro
qualificado por concurso seria hipótese em que há, sim, o bis in idem, porque o crime de
quadrilha está sendo o meio de manutenção do crime em consumação, e um delito está
servindo de qualificadora para outro.
A formação de quadrilha para o cometimento de crimes hediondos é mais
severamente reprovada, como se vê no artigo 8º da Lei 8.072/90:

“Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código
Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.
Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando
ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a
dois terços.”

Se o crime for cometido por quadrilha armada, e também para cometimento de


crimes hediondos, aplica-se a qualificadora do artigo supra com a incidência cumulativa da
majorante do parágrafo único do artigo 288 do CP?
Capez defende que sim, eis que a referência do artigo 8º é feita ao crime de
quadrilha do caput do artigo 288 do CP, ou seja, altera a escala penal do caput, o preceito

Michell Nunes Midlej Maron 77


EMERJ – CP V Direito Penal V

secundário, e ainda se impõe a majorante pelo uso de armamento, do parágrafo. Alberto


Silva Franco, por outro lado, entende que este artigo 8º cria uma modalidade especial de
quadrilha, e não há a valoração, neste, do uso de arma – não se aplica o artigo 288,
parágrafo único, do CP. O STF adota a tese de Capez, aplicando a pena de três a seis anos
em dobro, neste caso de quadrilha armada para crimes hediondos – pena que corre de seis a
doze anos, portanto.
A constituição de uma sociedade não poderia afastar a tipicidade da quadrilha para
os sócios, porque podem eles cumular o intento associativo para o desempenho de atividade
econômica com o intento associativo para o crime. Há uma casuística em que o STF
entendeu que o dolo de se associar para fins econômicos afasta o dolo de associar-se em
quadrilha, porém, precedente que deve ser observado com muita cautela, pois o tão só fato
de se tratar de sociedade não afasta o crime de quadrilha.

6.3.1. Quadrilha vs. organização criminosa

Quadrilha não se confunde com organização criminosa. A Lei 9.034/95, na sua


redação originária, de fato equiparava estas condutas, como se vê no teor do revogado
artigo 1º deste diploma:

“Art. 1º Esta lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios


que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando.”

Corretamente, o legislador veio e abateu esta redação, ao dispor que:

“Art. 1º Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios


que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando
ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo.(Redação dada pela
Lei nº 10.217, de 11.4.2001).”

O conceito de organização criminosa vem hoje no Decreto 5.015/04, que


internalizou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional –
Convenção de Palermo –, e dispõe conceitos no artigo 2º:

“Artigo 2
Terminologia
Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:
a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas,
existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer
uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a
intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro
benefício material;
b) "Infração grave" - ato que constitua infração punível com uma pena de privação
de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior;
c) "Grupo estruturado" - grupo formado de maneira não fortuita para a prática
imediata de uma infração, ainda que os seus membros não tenham funções
formalmente definidas, que não haja continuidade na sua composição e que não
disponha de uma estrutura elaborada;
d) "Bens" - os ativos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou
imóveis, tangíveis ou intangíveis, e os documentos ou instrumentos jurídicos que
atestem a propriedade ou outros direitos sobre os referidos ativos;

Michell Nunes Midlej Maron 78


EMERJ – CP V Direito Penal V

e) "Produto do crime" - os bens de qualquer tipo, provenientes, direta ou


indiretamente, da prática de um crime;
f) "Bloqueio" ou "apreensão" - a proibição temporária de transferir, converter,
dispor ou movimentar bens, ou a custódia ou controle temporário de bens, por
decisão de um tribunal ou de outra autoridade competente;
g) "Confisco" - a privação com caráter definitivo de bens, por decisão de um
tribunal ou outra autoridade competente;
h) "Infração principal" - qualquer infração de que derive um produto que possa
passar a constituir objeto de uma infração definida no Artigo 6 da presente
Convenção;
i) "Entrega vigiada" - a técnica que consiste em permitir que remessas ilícitas ou
suspeitas saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles
entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas autoridades competentes,
com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua
prática;
j) "Organização regional de integração econômica" - uma organização constituída
por Estados soberanos de uma região determinada, para a qual estes Estados
tenham transferido competências nas questões reguladas pela presente Convenção
e que tenha sido devidamente mandatada, em conformidade com os seus
procedimentos internos, para assinar, ratificar, aceitar ou aprovar a Convenção ou a
ela aderir; as referências aos "Estados Partes" constantes da presente Convenção
são aplicáveis a estas organizações, nos limites das suas competências.”

O STF tem adotado este conceito apresentado neste artigo, mas Luiz Flávio Gomes
ainda defende que não existe esta conceituação em nosso sistema, porque não poderia um
decreto estabelecer matéria essencialmente penal.
Não existe crime de organização criminosa: a incidência do conceito apenas leva à
aplicabilidade, para os crimes cometidos por esta organização, do regime desta Lei
9.034/95. Repare, ainda, que a organização criminosa pode ser em número de três.

7. Crimes contra a saúde pública

A objetividade jurídica dos crimes contra a saúde pública, por óbvio, é a saúde de
todos: é saúde pública o conjunto de condições saudáveis de vida de cada um e de todos os
membros da coletividade. É um bem transindividual. O bem jurídico saúde pública é uma
modalidade de incolumidade pública caracterizada pela preservação das condições de vida
de todos e de cada um dos membros da sociedade.
O legislador, nestes crimes, pune a mera probabilidade de ocorrência de
determinados resultados. Como regra, são crimes comuns, que tem por sujeito passivo a
coletividade. Veja o artigo 273 do CP, que é o mais emblemático destes delitos:

“Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins


terapêuticos ou medicinais (Redação dada pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins
terapêuticos ou medicinais: (Redação dada pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
9.677, de 2.7.1998)
§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em
depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o
produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. (Redação dada pela Lei nº
9.677, de 2.7.1998)

Michell Nunes Midlej Maron 79


EMERJ – CP V Direito Penal V

§ 1º-A - Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos,


as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de
uso em diagnóstico. (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
§ 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º
em relação a produtos em qualquer das seguintes condições: (Incluído pela Lei nº
9.677, de 2.7.1998)
I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
(Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;
(Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua
comercialização; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; ((Incluído pela Lei
nº 9.677, de 2.7.1998)
V - de procedência ignorada; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.
(Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)
Modalidade culposa
§ 2º - Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
9.677, de 2.7.1998).”

Adulterar significa modificar as características; falsificar é a produção


desautorizada daquele produto. Quando se faz circular medicamentos irregulares, há a
colocação em risco de um número indeterminado de pessoas.
Há uma quebra de proporcionalidade neste delito, pois a pena é absurdamente alta
para um crime que é de perigo abstrato. Veja que o homicídio culposo é mais brandamente
punido do que este delito, o que bem evidencia esta exorbitância. Os tribunais atentos
corrigem esta aberração, tipificando a conduta neste artigo supra, mas aplicando o preceito
secundário do crime de tráfico, que é de cinco a quinze anos.
Medicamentos sem registro na Anvisa estão açambarcados no § 1º-B, se não
constarem da listagem que arrola as substâncias do crime de drogas.

Casos Concretos

Questão 1

CAIO, químico desempregado, montou um pequeno laboratório onde falsifica e


vende, com sucesso, o medicamento Novalgina. Que tipo penal foi realizado por CAIO?A
solução se alteraria caso:
a) CAIO vendesse o medicamento falsificado, sabendo da falsificação?
b) CAIO fosse proprietário de uma farmácia e vendesse o medicamento, que havia
adquirido de um homem conhecido como ZÉ TRAMBIQUE, sem saber da
falsificação?
c) CAIO falsificasse e vendesse o creme anti-rugas da marca Lancôme?

Michell Nunes Midlej Maron 80


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Resposta à Questão 1

Está incurso nas penas do artigo 273 do CP, que é crime hediondo nos termos do
artigo 1º, VII-B, da Lei 8.072/90. O desemprego não pode ser utilizado como argumento
para a inexigibilidade de conduta diversa, pois no caso concreto Caio poderia sobreviver de
outras maneiras lícitas.
a) Sim. A hipótese está tipificada no artigo 273, §1º, do CP.
b) Tudo indica que Caio agiu com culpa ao adquirir o medicamento de pessoa
inidônea, estando incurso nas penas do artigo 273 §1º do CP. Pode-se argumentar a
existência de dolo eventual, o que desloca a tipicidade para o artigo 273, §1º do CP.
c) Estaria incurso nas penas do artigo 273, §1º-A, que equipara os cosméticos aos
medicamentos.
Mas veja que a doutrina aponta a violação do princípio da proporcionalidade nas
alterações feitas pela Lei 9.677/98 no art. 273, do CP. Trata-se de crime de perigo abstrato
(há posição em contrário) cuja tutela penal está voltada para a saúde pública, isto é, para a
incolumidade pública no que diz respeito à saúde de todos e de cada um dos membros da
coletividade, como assenta o STJ ao tratar do artigo 270 do CP:

“HC. CONCESSÃO. ENVENENAMENTO. ÁGUA POTÁVEL. FORMAÇÃO.


QUADRILHA. NÃO-OCORRÊNCIA.
O objeto jurídico tutelado pelo tipo penal inscrito no art. 270 do Código Penal é a
incolumidade pública, não importando o fato de as águas serem de uso comum ou
particular, bastando que sejam destinadas ao consumo de indeterminado número de
pessoas. No caso dos autos, apesar de se tratar de poço situado em propriedade
particular, verifica-se que o consumo da sua água era destinado a todos os que a ele
tinham acesso, de modo que eventual envenenamento dessa água configuraria, em
tese, o crime do art. 270 do Código Penal, cuja ação penal é pública
incondicionada, nos termos do art. 100 do CP. O habeas corpus constitui-se em
meio impróprio para a pretensão de condenação do Estado e do assistente da
acusação a repararem os danos decorrentes da indevida instauração da ação penal,
pois essa questão não diz respeito à liberdade de ir e vir. Diante disso, a Turma
concedeu parcialmente a ordem para trancar a ação penal instaurada em desfavor
do paciente, sem prejuízo do oferecimento de outra denúncia, desde que atendidos
os requisitos legais. HC 55.504-PI, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 11/12/2007.”

Questão 2

CAIO, morador da comunidade Ilha dos Amores, estimula os moradores locais, em


uma Assembléia com muitos participantes, a desobedecerem ordem legal de desocupação
de terrenos e a apedrejarem os policiais deslocados para a execução da desocupação. Os
moradores não agem conforme sugerido. Que tipo foi realizado por CAIO?A solução se
alteraria, caso:
a) Os moradores tivessem atuado conforme sugerido por CAIO e a desocupação
não tivesse se realizado?
b) Os moradores estivessem associados com a finalidade de invadirem terras?
c) Os moradores já tivessem realizado dezenas de invasões?

Michell Nunes Midlej Maron 81


EMERJ – CP V Direito Penal V

d) Os moradores, com armas de fogo, tivessem assaltado vários bancos visando a


obter dinheiro para a comunidade e os assaltos tivessem sido deliberados em
assembléia?
e) Os moradores estivessem associados para a comercialização de substâncias
entorpecentes proibidas?
f) Na hipótese anterior, qual seria a resposta penal aplicável?
g) Na hipótese anterior, se um dos moradores comunicasse à polícia a existência da
associação e todos fossem presos, como ficaria a situação do delator?
h) Os moradores estivessem associados para a exploração do denominado "jogo do
bicho"?

Resposta à Questão 2

Pode-se argumentar no sentido de que a incitação constitui uma exceção dualista,


destinada a punir o instigador mesmo que os delitos estimulados não venham a ser tentados.
Deste modo o incitador não poderia ser duplamente apenado. Este argumento esbarra na
qualidade do bem jurídico tutelado: paz pública, ou seja causa lesão à paz pública a simples
incitação ao crime; caso os crimes ocorram o incitador deverá ser também
responsabilizado.
a) A hipótese é de resistência qualificada, do artigo 329, § 1°, CP, sem prejuízo da
pena correspondente às lesões sofridas pêlos policiais, na forma do artigo 329, § 2°,
CP. O incitador – Caio – responde pelos crimes dos artigos 286 e 329 do CP, em
concurso material, conforme lição de Nelson Hungria.
b) A hipótese será de quadrilha ou bando, do artigo 288, CP.
c) Ficaria demonstrada a estabilidade da quadrilha. O crime de quadrilha será
punido em concurso com o artigo 161 do CP, observando-se a ação penal cabível.
Em que pese esta resposta, se cogitada a possibilidade de que a incitação nesse caso
vai provocar a manutenção da quadrilha, o melhor entendimento está no sentido da
responsabilidade exclusiva pelo crime de esbulho, do artigo 161 do CP. Nessa
hipótese, a incitação não faz nascer o delito associativo, que é preexistente, faltando
nexo de causalidade entre a conduta de Caio e os estimulados.
d) A questão destina-se ao debate sobre a possibilidade da quadrilha armada em
concurso com o roubo agravado pelo emprego de arma, além das hipóteses dos
artigos 20 e 24 da Lei 7.170/83. Cabe discutir a inconstitucionalidade da expressão
“organização subversiva” (artigo 20) e “finalidade combativa”, (artigo 24), porém,
se há o dolo específico desta Lei:

“Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere


privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos
de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à
manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o
dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.”

“Art. 24 - Constituir, integrar ou manter organização ilegal de tipo militar, de


qualquer forma ou natureza armada ou não, com ou sem fardamento, com
finalidade combativa.

Michell Nunes Midlej Maron 82


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Pena: reclusão, de 2 a 8 anos.”

e) Há a incidência dos artigos 35, da Lei 11.343/06, e 288, do CP, em razão da


redação do artigo 8° da Lei 8.072/90.
f) Artigo 35, Lei 11.343/06.
g) Trata-se de delação premiada prevista no artigo 8°, parágrafo único, da Lei
8.072/90, causa especial de diminuição da pena.
h) O tipo penal do artigo 288 do CP refere-se exclusivamente a crimes, não
incluindo as contravenções penais. É atípico o comportamento.

Questão 3

O ajuste entre quatro fiscais de renda do município do Rio de Janeiro para


alterarem a base de cálculo do IPTU de seis imóveis pertencentes a três empresas
distintas, mediante remuneração ilícita a ser paga pelos sócios majoritários destas
empresas e repartida entre os servidores configura delito de quadrilha? Quais delitos estão
presentes no caso concreto?

Resposta à Questão 3

O fato de quatro indivíduos concorrerem em mais de um crime não conduz


necessariamente ao delito de quadrilha. Há que se ter presente que a quadrilha, ao contrário
do concurso de agentes, exige uma associação permanente voltada para a prática de crimes
indeterminados. Quando haja a determinação da seqüência criminosa, não há quadrilha,
mas concurso.
Desta forma no caso concreto há um número determinado de crimes de corrupção
passiva especial (artigo 3°, II, da Lei 8.137/90), mas não delito de quadrilha. O pagamento
da vantagem, por outro lado, configura para os empresários o delito de corrupção ativa
(artigo 333, CP). Veja os dispositivos:

“Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no
Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI,
Capítulo I):
(...)
II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela,
vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou
cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão,
de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
(...)”

“Corrupção ativa
Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
10.763, de 12.11.2003)
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo
dever funcional.”

Michell Nunes Midlej Maron 83


EMERJ – CP V Direito Penal V

Tema VIII

Crimes contra a fé pública I. Moeda falsa. Falsidade de títulos e outros papéis públicos. 1) Considerações
gerais:a) Crimes previstos nos artigos 289 a 294, do Código Penal Brasileiro;b) Definição e evolução
histórica. Bem jurídico tutelado. Sujeitos do delito. Tipicidade objetiva e subjetiva dos principais crimes
previstos nos capítulos. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula8

1. Crimes contra a fé pública

O título sobre os crimes contra a fé pública apresenta dois grandes gêneros, os


crimes de falsidade material e os de falsidade ideológica.
8
Aula ministrada pelo professor Mendelssohn Kieling, em 18/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 84


EMERJ – CP V Direito Penal V

A sociedade se baseia, para ser factível o convívio e o desenvolvimento de relações


negociais, na existência de determinados documentos, determinados papeis. Como a vida
de relação é assim pautada, o direito penal precisa estar atento à manutenção da fé pública
em tais documentos.
O sistema tutelar da fé pública tem por norte os valores da veracidade, idoneidade,
autenticidade, publicidade e eficácia dos documentos que são necessários à vida relacional.
No artigo 1º da Lei dos Registros Públicos, Lei 6.015/73, e no artigo 1º da Lei 8.935/94, há
previsão deste conjunto de bens jurídicos tão caro ao ordenamento que desperta a tutela
fragmentária do direito penal:

“Art. 1º Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela


legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam
sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de
1974)
(...)”

“Art. 1º Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e


administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e
eficácia dos atos jurídicos.”

Os crimes dos artigos 289 a 295 do CP tratam exclusivamente de falsidades


materiais. Dali em diante, há falsidades ideológica, em regra, mas há ainda alguns falsos
materiais espalhados pelo restante do título.
A falsidade material, o ato de falseio, é sempre o mesmo; o que muda é o objeto
falseado. O ato de falso pode ser a contrafação, que é o fabrico à semelhança do
verdadeiro; ou a alteração, que significa a modificação de documento que já existe. Não se
pode confundir o uso da expressão contrafação, aqui, com o uso deste termo também nos
crimes contra a propriedade imaterial: o modus é o mesmo, mas a objetividade jurídica é
completamente diversa. A contrafação de bem imaterial não deixa de ser uma falsificação,
lato sensu, mas a tutela ali é da propriedade imaterial, e não da fé pública.
A Lei 4.737/65, Código Eleitoral, apresenta falsidades especiais, como se vê em
seus artigos 348 e 349:

“Art. 348. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar


documento público verdadeiro, para fins eleitorais:
Pena - reclusão de dois a seis anos e pagamento de 15 a 30 dias-multa.
§ 1º Se o agente é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo,
a pena é agravada.
§ 2º Para os efeitos penais, equipara-se a documento público o emanado de
entidade paraestatal inclusive Fundação do Estado.”

“Ar. 349. Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar


documento particular verdadeiro, para fins eleitorais:
Pena - reclusão até cinco anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa.”

Os crimes contra a fé pública, em regra, são meios para outros crimes. A rigor, a
expressão crime-meio não é correta quando o delito assim nomeado é, de fato, elementar do
outro delito, chamado crime-fim, porque se a falsidade integra a elementar do crime, há
crime complexo, e não crime-meio e crime-fim, porque há um só crime em análise – aquele
que em si contempla ambos. Por isso, é desnecessário se falar em absorção. De outro lado,

Michell Nunes Midlej Maron 85


EMERJ – CP V Direito Penal V

se a falsidade é o meio empregado para cometer delito que não a tem como elementar, aí
sim se fala corretamente na relação crime-meio e crime-fim, recaindo então a análise na
absorção ou não.
Este é o caso do falso e do estelionato, por exemplo: o falso é meio bem comum de
cometimento do estelionato, mas não participa de sua elementar. A súmula 17 do STJ é
fulcral neste tema:

“Súmula 17, STJ: Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais


potencialidade lesiva, e por este absorvido.”

Esta súmula já foi interpretada, erroneamente, como um permissivo de absorção de


crime mais grave por crime menos grave, o que não é o que se passa. O sujeito passivo dos
crimes contra a fé pública é a coletividade, sendo despiciendo o efetivo dano, bastando ser
este potencial, para consumar-se o delito. Uma falsidade que se consubstancie na
falsificação de um diploma, mas que nunca vem a ser usado – é apenas colocado na parede
do falsário, como enfeite – não chega sequer a periclitar a fé pública, pelo que não desperta
tipicidade, por falta de ofensividade.
A absorção que a súmula comanda é aquela em que a falsidade serve
exclusivamente ao cometimento do estelionato. Não há qualquer ofensividade a bem
diverso do patrimônio da vítima de estelionato, e por esgotar seu poder lesivo neste bem, a
falsidade não atinge a fé pública – e por isso resta absorvida. Se o documento falseado vier
a se prestar para o cometimento de outros delitos, não está absorvido pelo crime-fim,
havendo verdadeiro concurso de crimes.
Outra questão nos crimes de falso é a necessidade de que a falsificação seja
verossímil, apta a enganar pessoas diversas, pois se se tratar de falsificação grosseira, inábil
a enganar o homem médio, não é capaz de perturbar a fé pública, e por isso há crime
impossível, por absoluta impropriedade do meio utilizado.
Ocorre que a inviabilidade do meio, da falsificação grosseira, para perturbar a fé
pública, pode não impedir que pessoas com atenção inferior à do homem médio sejam
atingidas patrimonialmente por esta fraude. Pode acontecer, por exemplo, de um morador
da zona rural receber uma nota grosseiramente falsificada, que aos olhos da média seria
claramente inapta a promover engano. Neste caso, ainda não há o crime contra a fé pública,
de moeda falsa, porque a falsificação grosseira à luz da média não permite que a fé pública
seja perturbada, mas há o prejuizo daquele um que foi enganado por aquela fraude, pelo
que subsiste, em tese, o crime de estelionato.
Este é o exato teor da súmula 73 do STJ:

“Súmula 73, STJ: A utilização de papel moeda grosseiramente falsificado


configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da justiça estadual.”

Este enunciado, que se aplica a qualquer crime de falso, é bastante preciso, inclusive
no que tange ao emprego da expressão “em tese”, porque pode acontecer de a falsificação
ser tão grosseira que sequer o estelionato tentado pode ser constatado. Por exemplo, o uso
de um bilhete falso de loteria, em que há elementos identificadores, como o código de
barras, que impossibilitam completamente o recebimento do prêmio.

Michell Nunes Midlej Maron 86


EMERJ – CP V Direito Penal V

Os crimes do capítulo que trata da moeda falsa são de competência da justiça


federal, e por isso a súmula acima fala da competência estadual, porque se não mais
subsiste o crime contra a moeda, o estelionato é crime comum de persecução estadual.
Passemos agora aos crimes em espécie.

2. Moeda falsa e petrechos de falsificação

“Moeda Falsa
Art. 289 - Falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel-moeda
de curso legal no país ou no estrangeiro:
Pena - reclusão, de três a doze anos, e multa.
§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem, por conta própria ou alheia, importa ou
exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda ou introduz na circulação
moeda falsa.
§ 2º - Quem, tendo recebido de boa-fé, como verdadeira, moeda falsa ou alterada, a
restitui à circulação, depois de conhecer a falsidade, é punido com detenção, de
seis meses a dois anos, e multa.
§ 3º - É punido com reclusão, de três a quinze anos, e multa, o funcionário público
ou diretor, gerente, ou fiscal de banco de emissão que fabrica, emite ou autoriza a
fabricação ou emissão:
I - de moeda com título ou peso inferior ao determinado em lei;
II - de papel-moeda em quantidade superior à autorizada.
§ 4º - Nas mesmas penas incorre quem desvia e faz circular moeda, cuja circulação
não estava ainda autorizada.”

Há que se fazer constar, aqui, a existência de duas contravenções penais similares ao


crime de moeda falsa, presentes nos artigos 43 e 44 do DL 3.688/41:

“Art. 43. Recusar-se a receber, pelo seu valor, moeda de curso legal no país:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”

“Art. 44. Usar, como propaganda, de impresso ou objeto que pessoa inexperiente
ou rústica possa confundir com moeda:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”

Não são falsidades, como se vê: no primeiro caso há a violação de regra do sistema
financeiro, que determina que a moeda de curso forçado não pode ser negada; e o segundo
é o mau uso de objetos que interfiram na fé pública, sem dolo de enganar, mas com
potencial, ainda que restrito, para tanto (só engana aos inexperientes ou rústicos, como ali
menciona).
O crime do caput trata-se de crime doloso, instantâneo, material, comum, de
concurso eventual, de forma livre, e comissivo.
Aquele que falsifica a moeda está incurso neste crime, mas aquele que lida com os
petrechos para a falsificação tem tipificação autônoma, no artigo 291 do CP:

“Petrechos para falsificação de moeda


Art. 291 - Fabricar, adquirir, fornecer, a título oneroso ou gratuito, possuir ou
guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer objeto especialmente
destinado à falsificação de moeda:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.”

Michell Nunes Midlej Maron 87


EMERJ – CP V Direito Penal V

Estes atos, que seriam preparatórios para o artigo 289, foram eleitos a tipo
autônomo pelo legislador. Caso o mesmo contexto fático, praticado pela mesma pessoa,
envolva ambos os tipos – o mesmo agente possui os petrechos e falsifica a moeda –, o
delito do artigo 289 absorve o do artigo 291, eis que crime-meio para este – os atos
executórios finais de falsificação absorvem os atos preparatórios que seriam
autonomamente típicos.
A contribuição para a falsidade, praticada por aquele terceiro que fornece os
petrechos para o falsário, poderia já ser enquadrada na própria tipificação do artigo 289 do
CP, como partícipe auxiliar material. Contudo, o legislador preferiu excepcionar a teoria
monista, fazendo a tipificação deste partícipe ser autônoma, porque sem esta dinâmica a
conduta daquele que lida com os petrechos, sem que haja a efetiva falsificação por
ninguém, sequer tentada, seria atípica.
Ainda sobre este artigo 291 do CP, vale dizer que é crime permanente nas
modalidades nucleares “possuir” ou “guardar”.
Aquele que, posteriormente à falsidade já consumada, e dela ciente, importa ou
exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda ou introduz na circulação moeda
falsa, incide no § 1º do artigo 289 do CP.
Já aquele que não sabia da falsificação, mas recebe a moeda falsa e, agora sabendo
da falsidade, a reinsere em circulação a fim de evitar seu prejuizo, estará incurso no § 2º
deste mesmo artigo. A pena é bem mais branda, mas ainda é reprovável sua conduta.
Aquele que recebe a moeda falsa já sabendo de sua falsidade, está incurso no § 1º, e não
nesta forma privilegiada do § 2º, que é extremamente privilegiada.
A questão está na boa ou má fé de quem recebe a moeda falsa. Se recebe de má fé,
responde como se falsário fosse; se recebe de boa fé, responde pelo § 2º; e se recebe de boa
fé e sequer guarda a moeda falsa, entregando-a à autoridade ou ao banco, é claramente
atípica sua conduta.
Aquele que pratica a conduta do caput, falsificando a moeda, e na seqüência comete
também as condutas do § 1º, responde apenas uma vez, por óbvio.
O § 3º do artigo 289 do CP é crime funcional, imputando aquele que tem o domínio
sobre a cunhagem ou introdução da moeda em circulação. O § 4º, idem, eis que quem tem,
acesso ao papel moeda ainda sem circulação é o funcionário público, em regra. Para esses
funcionários, não há a incidência da causa de aumento de pena do artigo 295 do CP, pois
configuraria bis in idem:

“Art. 295 - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do


cargo, aumenta-se a pena de sexta parte.”

3. Crimes assimilados ao de moeda falsa

“Crimes assimilados ao de moeda falsa


Art. 290 - Formar cédula, nota ou bilhete representativo de moeda com fragmentos
de cédulas, notas ou bilhetes verdadeiros; suprimir, em nota, cédula ou bilhete
recolhidos, para o fim de restituí-los à circulação, sinal indicativo de sua
inutilização; restituir à circulação cédula, nota ou bilhete em tais condições, ou já
recolhidos para o fim de inutilização:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.
Parágrafo único - O máximo da reclusão é elevado a doze anos e multa, se o crime
é cometido por funcionário que trabalha na repartição onde o dinheiro se achava

Michell Nunes Midlej Maron 88


EMERJ – CP V Direito Penal V

recolhido, ou nela tem fácil ingresso, em razão do cargo. (Vide Lei nº 7.209, de
11.7.1984).”

A dinâmica, neste delito, é bastante similar à do crime de moeda falsa, do artigo


anterior, mas com a diferença de que a moeda, aqui, preexiste ao crime. Há três condutas
típicas: a de tomar fragmentos de moedas, cédulas ou bilhetes verdadeiros e compor um
novo; a de suprimir sinal indicativo de inutilização em moedas, cédulas ou bilhetes que
foram retirados de circulação, a fim de utilizá-los; e a de efetivamente retornar documentos
assim alterados à circulação.

4. Emissão de título ao portador sem permissão legal

“Emissão de título ao portador sem permissão legal


Art. 292 - Emitir, sem permissão legal, nota, bilhete, ficha, vale ou título que
contenha promessa de pagamento em dinheiro ao portador ou a que falte indicação
do nome da pessoa a quem deva ser pago:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - Quem recebe ou utiliza como dinheiro qualquer dos documentos
referidos neste artigo incorre na pena de detenção, de quinze dias a três meses, ou
multa.”

Há títulos que não podem ser emitidos ao portador, e se assim o forem, estará
preenchida a tipicidade deste artigo supra.

5. Falsificação de papeis públicos e petrechos de falsificação

“Falsificação de papéis públicos


Art. 293 - Falsificar, fabricando-os ou alterando-os:
I - selo destinado a controle tributário, papel selado ou qualquer papel de emissão
legal destinado à arrecadação de tributo; (Redação dada pela Lei nº 11.035, de
2004)
II - papel de crédito público que não seja moeda de curso legal;
III - vale postal;
IV - cautela de penhor, caderneta de depósito de caixa econômica ou de outro
estabelecimento mantido por entidade de direito público;
V - talão, recibo, guia, alvará ou qualquer outro documento relativo a arrecadação
de rendas públicas ou a depósito ou caução por que o poder público seja
responsável;
VI - bilhete, passe ou conhecimento de empresa de transporte administrada pela
União, por Estado ou por Município:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 11.035, de 2004)
I - usa, guarda, possui ou detém qualquer dos papéis falsificados a que se refere
este artigo; (Incluído pela Lei nº 11.035, de 2004)
II - importa, exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda, fornece ou
restitui à circulação selo falsificado destinado a controle tributário; (Incluído pela
Lei nº 11.035, de 2004)
III - importa, exporta, adquire, vende, expõe à venda, mantém em depósito, guarda,
troca, cede, empresta, fornece, porta ou, de qualquer forma, utiliza em proveito
próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, produto ou
mercadoria: (Incluído pela Lei nº 11.035, de 2004)
a) em que tenha sido aplicado selo que se destine a controle tributário, falsificado;
(Incluído pela Lei nº 11.035, de 2004)

Michell Nunes Midlej Maron 89


EMERJ – CP V Direito Penal V

b) sem selo oficial, nos casos em que a legislação tributária determina a


obrigatoriedade de sua aplicação. (Incluído pela Lei nº 11.035, de 2004)
§ 2º - Suprimir, em qualquer desses papéis, quando legítimos, com o fim de torná-
los novamente utilizáveis, carimbo ou sinal indicativo de sua inutilização:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 3º - Incorre na mesma pena quem usa, depois de alterado, qualquer dos papéis a
que se refere o parágrafo anterior.
§ 4º - Quem usa ou restitui à circulação, embora recibo de boa-fé, qualquer dos
papéis falsificados ou alterados, a que se referem este artigo e o seu § 2º, depois de
conhecer a falsidade ou alteração, incorre na pena de detenção, de 6 (seis) meses a
2 (dois) anos, ou multa.
§ 5º Equipara-se a atividade comercial, para os fins do inciso III do § 1o, qualquer
forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercido em vias, praças
ou outros logradouros públicos e em residências. (Incluído pela Lei nº 11.035, de
2004).”

Este crime também é de falsidade material, mas com objeto diverso dos crimes de
moeda, pois alveja proteger outros tipos de papeis públicos.
No inciso I do caput está o crime de falsificação de selos tributários, que em nada se
confundem com os selos destinados à circulação de cartas pelo correio. Note-se que não se
trata de crime contra a ordem tributária, pois não se amolda a nenhuma conduta da Lei
8.137/90 – o crime é contra a fé pública.
O uso do selo tributário está capitulado no § 1º, II, do artigo supra.
O inciso III do caput deste artigo foi revogado pela Lei 6.538/78, porque esta lei
traz esta conduta especial no artigo 36:

“FALSIFICAÇÃO DE SELO, FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO OU VALE


POSTAL.
Art. 36º - Falsificar, fabricando ou adulterando, selo, outra fórmula de
franqueamento ou vale-postal:
Pena: reclusão, até oito anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa.
USO DE SELO, FÓRMULA DE FRANQUEAMENTO OU VALE-POSTAL
FALSIFICADOS.
Parágrafo único - Incorre nas mesmas penas quem importa ou exporta, adquire,
vende, troca, cede, empresta, guarda, fornece, utiliza ou restitui à circulação, selo,
outra fórmula de franqueamento ou vale-postal falsificados.”

O inciso V do caput deste artigo 293 é comumente confundido com o crime do


artigo 297 do CP, que será abordado amiúde adiante, mas que dispõe que:

“Falsificação de documento público


Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar
documento público verdadeiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.
(...)”

A autenticação falsa é enquadrada, mormente, no artigo 293, V, e não neste artigo


supra.
A falsidade do inciso VI do caput está em desuso, porque as empresas que prestam
este serviço são todas privadas concessionárias. Se vier a existir alguma empresa estatal
neste mercado, o crime então se aperfeiçoa ali; se não, permanecendo como hoje é, o crime
é mesmo do artigo 297 do CP, supra.

Michell Nunes Midlej Maron 90


EMERJ – CP V Direito Penal V

O § 1º, I, deste artigo 293 do CP trata do uso dos documentos em questão. Havendo
falsidade e uso, há absorção daquela por este, ou se trata o uso de um pós fato impunível?
Predomina a segunda tese: é o falso que absorve o uso, e não o contrário.
No § 2º, há a supressão de elemento inutilizador do papel, com o fito de reinseri-los
em uso.
Há, também neste artigo 293 do CP, a mesma discussão sobre a súmula 17 do STJ,
em relação à absorção pelo crime de estelionato. É comum esta dinâmica na casuística em
que o contador recebe dinheiro de cliente para pagar tributos, falsifica guias, não recolhe os
tributos e embolsa o valor: neste caso, há estelionato contra o cliente, absorvido o falso.
Se quem comete exatamente esta mesma falsificação de guias é o próprio
contribuinte, com o fito de enganar o fisco, não se preenche esta tipicidade do CP: o crime
é especial, previsto no artigo 1º, III, da Lei 8.137/90, pois é crime contra a ordem tributária.
Veja:

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou


contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei
nº 9.964, de 10.4.2000)
(...)
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer
outro documento relativo à operação tributável;
(...)”

O que a súmula 17 do STJ deixa claro é que o falso só persiste como tipo autônomo
quando tiver potencialidade lesiva extravasando o crime de estelionato, ou seja, deve haver
antinormatividade material no falsum, além da lesão material.
O artigo 294 do CP incrimina os petrechos de falsificação, e aqui se reprisam
exatamente as mesmas considerações feitas nos crimes de moeda falsa e petrechos de
falsificação de moeda.

“Petrechos de falsificação
Art. 294 - Fabricar, adquirir, fornecer, possuir ou guardar objeto especialmente
destinado à falsificação de qualquer dos papéis referidos no artigo anterior:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.”

Se não houvesse esta tipificação autônoma deste artigo, aquele que assim se
conduzisse estaria incorrendo, possivelmente, em conduta de falsificação de papeis, na
forma de partícipe material. Sendo ele o próprio falsificador, o crime de petrechos é
absorvido.

Michell Nunes Midlej Maron 91


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Casos Concretos

Questão 1

WELLINGTON adquiriu 696 notas de R$ 50,00, cuja falsificação era perfeita. Ao


chegar ao Aeroporto Santos Dumont, foi abordado por policiais federais - que já haviam
sido, previamente, alertados por denúncia anônima - e preso em flagrante, em razão da
apreensão das notas falsas que estavam na Brasília amarela em que se encontrava.
Durante a instrução criminal, WELLINGTON não soube explicar, de forma verossímil, a
aquisição da moeda falsa. Para justificar sua posse, disse que aquelas notas eram a
devolução de um suposto "empréstimo", bem como fruto de suposta venda do carro, fatos
que não ficaram devidamente comprovados - suas alegações confusas não mereceram
qualquer credibilidade do juízo. WELLINGTON foi condenado pelo crime previsto no
artigo 289, §1º do CP, às penas de 7 anos de reclusão, em regime fechado, e 100 dias-
multa (no valor de meio salário mínimo cada um).A defesa de WELLINGTON apelou,

Michell Nunes Midlej Maron 92


EMERJ – CP V Direito Penal V

alegando que ele fora vítima de um flagrante preparado, o que tornara impossível a
consumação - se a consumação não ocorreu, ele participou de uma "simulação de
tentativa", de uma farsa, o que exclui a própria tipicidade da conduta. Assiste razão à
defesa? Justifique.

Resposta à Questão 1

É assente na jurisprudência que o dolo no crime de moeda falsa é comprovado pela


circunstância de fato em que se desenvolve a conduta; logo, a quantidade de notas falsas,
bem assim a alegação de trata-se de “empréstimo”, dão contornos da ciência do agente de
lidar com moedas falsas. Ainda que não fosse ele próprio o falsificador, haveria crime na
modalidade “guardar” que é permanente e autoriza o flagrante.
Veja o seguinte julgado, do TRF da Segunda Região:

“ACrim 96.02.28963-5 TRF2 – Rel. Desembargador Federal ALBERTO


NOGUEIRA, j. 23/03/2004, 5ª TURMA
PROCESSUAL PENAL. PENAL. CRIME DO ARTIGO 289, PARÁGRAFO 1º,
DO CÓDIGO PENAL. AQUISIÇÃO DE MOEDA FALSA. CRIME FORMAL,
CONSUMADO PELA MERA CONDUTA DO AGENTE,
INDEPENDENTEMENTE DE RESULTADO OU FINALIDADE. DOLO
ÍNSITO NA PRÓPRIA TIPICIDADE. CIÊNCIA DA FALSIDADE DAS
CÉDULAS SUFICIENTE PARA OCORRÊNCIA DE DOLO. PRISÃO EM
FLAGRANTE. FLAGRANTE REGULARMENTE LAVRADO.
IMPOSSIBILIDADE DAS DILIGÊNCIAS RECLAMADAS PELA DEFESA:
ILEGALIDADE DA PROVA PRETENDIDA PARA CARACTERIZAÇÃO DE
SUPOSTA EXTORSÃO POLICIAL. INOCORRÊNCIA DE CERCEAMENTO
DE DEFESA. MATERIALIDADE ESTABELECIDA NOS AUTOS DE FORMA
INDISCUTÍVEL. EXPLICAÇÕES INVEROSSÍMEIS PARA POSSE DO
NUMERÁRIO FALSO. PROVAS CONSISTENTES NO SENTIDO DA
CULPABILIDADE DE RICARDO SAMUEL ÉBOLI. PARTICIPAÇÃO DE
CLÁUDIO AUGUSTO FELIPE NÃO SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADA.
SEM ELEMENTOS PARA CONDENAÇÃO. ALEGAÇÕES FINAIS DO
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL NO SENTIDO DA ABSOLVIÇÃO. IN
DUBIO PRO REO. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE NA DECISÃO. NEGADO
PROVIMENTO AO APELO DE RICARDO SAMUEL ÉBOLI E DADO
PROVIMENTO AO APELO DE CLÁUDIO AUGUSTO FELIPE PARA
ABSOLVÊ-LO. DECISÃO UNÂNIME.”

Questão 2

TÍCIO foi contratado por CAIO para atuar como seu despachante junto à
JUCERJA deste Estado, de forma a que fossem registradas duas alterações no contrato
social e obtidas as respectivas certidões quanto a isto, importando na prática de quatro
atos junto àquela repartição pública. Para tanto, TÍCIO veio, sem o conhecimento de
CAIO, a adquirir com MÉVIO um equipamento de informática, sendo certo que solicitou a
este a produção, em um disquete em separado, de arquivos que possibilitassem imitar a
autenticação mecânica em guia de recolhimento de emolumentos, e assim foi feito. Nestas
condições, TÍCIO, utilizando-se do arquivo de programa que lhe havia sido preparado por
MÉVIO, falsificou em quatro guias de emolumentos junto à JUCERJA as autenticações
mecânicas correspondentes, embolsando para si o numerário que lhe havia sido destinado

Michell Nunes Midlej Maron 93


EMERJ – CP V Direito Penal V

para tanto por CAIO. TÍCIO foi preso em flagrante, no interior da sede daquela repartição
pública estadual, com os documentos contrafeitos, ocasião em que indicou a participação
de MÉVIO, nos limites já acima alinhados. Ambos foram denunciados, sendo o primeiro
por infração ao artigo 293, V, e o segundo no artigo 294, ambos do Código Penal, quanto
à falsidade, respondendo, ainda, TÍCIO, por estelionato, no que concerne ao numerário
que CAIO lhe havia destinado para aqueles pagamentos. Indaga-se:
a) A capitulação legal estaria correta, considerando-se, para tanto, o princípio da
e specialidade e da teoria monista?
b) Existe a prática pelos dois réus de outro crime que, embora não conste da
imputatio delicti, esteja perfeitamente descrito na imputatio facti? Em caso
positivo, como se deveria proceder em sede sentencial?

Resposta à Questão 2

a) Considerando-se apenas os crimes de falsum enquanto condutas primárias dos


dois acusados, a classificação jurídico-penal dos fatos está correta, impondo-se esta,
pelo princípio da especialidade, às figuras típicas relativas às falsidades
documentais. Trata-se de uma das exceções pluralísticas à teoria monista, diante da
especificidade da conduta acessória, prevista no artigo 294 do CP, que ali ganhou
autonomia, inclusive para efeito de se buscar impedir a impunidade, como política
criminal.
b) No entanto, os delitos de falsum já identificados funcionam aqui como crimes-
meio, em face do delito-fim, de forma que este absorve aqueles, pelo princípio da
consunção. Trata-se de crime contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, III, da
Lei 8.137/90, até porque presente o dolo específico ali reclamado, qual seja, o
especial fim de agir de suprimir a arrecadação de tributo, no caso, Estadual,
vantagem esta que significaria, quanto aos crimes de falsidade, o dolo específico
também exigido para a caracterização destes.
Neste caso, haverá perfeita aplicação da teoria monista, já que tanto Tício
quanto Mévio responderão pela infração à mesma figura típica, apenas destacando-
se que o segundo destes estará a ela conjugado pela disposição prevista no artigo 11
daquele mesmo diploma legal, que repete os termos previstos no art. 29 do CP. Tudo
isso sem interferir na caracterização do estelionato praticado por Tício em face de
Caio. Aplica-se o disposto no artigo 383 do CPP, qual seja, a emendatio libelli, na
exata medida em que os acusados se defendem dos fatos que lhes são imputados e
não de artigos de lei, estando a conduta referente ao crime-fim perfeitamente
individualizada. Observe-se que a determinação da presença do crime-fim impede a
concessão da suspensão condicional do processo no tocante ao réu Mévio segundo a
imputação originária, em face dele desenvolvida.

Questão 3

CLEBERSON recebeu uma cédula de R$ 50,00 falsificada, de MIROSMAR, mas


guardou a mesma em sua carteira e ficou esperando a volta deste para fazer a
substituição. Ocorre que foi descoberto, tendo sido denunciado como incurso no artigo

Michell Nunes Midlej Maron 94


EMERJ – CP V Direito Penal V

289, § 1º, do Código Penal. A defesa de CLEBERSON apelou alegando a atipicidade da


conduta por falta de dolo. Indaga-se:
a) Assiste razão à defesa? Justifique.
b) Discorra sobre a competência no crime de moeda falsa.

Resposta à Questão 3

a) Não há elementos que identifiquem que o agente recebeu a moeda de má fé, e


por isso sua incidência seria no artigo 289, § 2º, do CP. Todavia, veja o seguinte
julgado:

“ACrim 2002.050.02303 TJRJ – Rel. DES. VALMIR RIBEIRO, j. 31/10/2002, 6ª


CCrim “MOEDA FALSA. PRIVILEGIO NAO ADMITIDO. PROVA SEGURA.
CONDENACAO CRIMINAL. MOEDA FALSA. ABSOLVIÇÃO. ATIPICIDADE
DA CONDUTA. - IMPROCEDÊNCIA.
- PRIVILÉGIO. IMPOSSIBILIDADE. É típica a conduta do agente que guarda
moeda falsa, sob a alegação de que pretendia substituí-Ia, quando tinha
conhecimento da falsidade. Impossível se falar em privilégio, já que não existe
prova nos autos da boa fé de sua conduta, nem mesmo a intenção
de evitar prejuízo e não almejar lucro, mormente quando tal prova lhe compete.
- Recurso improvido.”

b) Veja o seguinte HC do TJ/RJ:

“HC 1999.059.02988 TJRJ – Rel. DES. ELIZABETH GREGORY, j. 09/12/1999,


2ª CCrim.
PROCESSUAL PENAL - CRIME DE MOEDA FALSA COMPETENCIA DA
JUSTICA FEDERAL - AUTOS JA REMETIDOS A VARA COMPETENTE -
IMPOSSIBILIDADE DE APRECIACAO DO HABEAS CORPUS. NAO
CONHECIMENTO DECISAO UNANIME. O PACIENTE FOI PRESO POR
PORTAR DUZENTAS E NOVENTA CEDULAS DE R$ 50,00,
ADULTERADAS. CRIME DE COMPETENCIA DA JUSTICA FEDERAL, O
QUE JA FOI OBSERVADO PELA AUTORIDADE DITA COATORA, QUE
REMETEU OS AUTOS AQUELE JUIZO. NÃO PODE CAMARA CRIMINAL
DO TRIBUNAL DE JUSTICA ESTADUAL APRECIAR O PEDIDO, POIS
ESTARIA INVADINDO A COMPETENCIA DE OUTRO TRIBUNAL.”

Tema IX

Crimes contra a fé pública II. Falsidade documental. 1) Crimes previstos nos artigos 296 a 305 do CP
(aspectos relevantes):a) Sujeitos do delito; b) Tipicidade objetiva e subjetiva dos principais crimes previstos
nos capítulos. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula9

1. Falsificação de selo ou sinal público

“Falsificação do selo ou sinal público


Art. 296 - Falsificar, fabricando-os ou alterando-os:

9
Aula ministrada pelo professor Mendelssohn Kieling, em 18/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 95


EMERJ – CP V Direito Penal V

I - selo público destinado a autenticar atos oficiais da União, de Estado ou de


Município;
II - selo ou sinal atribuído por lei a entidade de direito público, ou a autoridade, ou
sinal público de tabelião:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.
§ 1º - Incorre nas mesmas penas:
I - quem faz uso do selo ou sinal falsificado;
II - quem utiliza indevidamente o selo ou sinal verdadeiro em prejuízo de outrem
ou em proveito próprio ou alheio.
III - quem altera, falsifica ou faz uso indevido de marcas, logotipos, siglas ou
quaisquer outros símbolos utilizados ou identificadores de órgãos ou entidades da
Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2º - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do
cargo, aumenta-se a pena de sexta parte.”

A objetividade material deste delito protege os selos de autenticidade, selos oficiais


de consulados, órgãos públicos em geral, etc.
O crime deste artigo não se confunde com o do artigo 300 do CP, crime próprio do
tabelião ou oficial registrador, que é uma falsidade ideológica, diferente desta falsidade
material do artigo 296 do CP:

“Falso reconhecimento de firma ou letra


Art. 300 - Reconhecer, como verdadeira, no exercício de função pública, firma ou
letra que o não seja:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público; e de um a
três anos, e multa, se o documento é particular.”

2. Falsificação de documento público e de documento particular

“Falsificação de documento público


Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar
documento público verdadeiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.
§ 1º - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do
cargo, aumenta-se a pena de sexta parte.
§ 2º - Para os efeitos penais, equiparam-se a documento público o emanado de
entidade paraestatal, o título ao portador ou transmissível por endosso, as ações de
sociedade comercial, os livros mercantis e o testamento particular.
§ 3º Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir: (Incluído pela Lei nº
9.983, de 2000)
I - na folha de pagamento ou em documento de informações que seja destinado a
fazer prova perante a previdência social, pessoa que não possua a qualidade de
segurado obrigatório;(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II - na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento
que deva produzir efeito perante a previdência social, declaração falsa ou diversa
da que deveria ter sido escrita; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
III - em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as
obrigações da empresa perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da
que deveria ter constado. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 4º Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no §
3o, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato
de trabalho ou de prestação de serviços.(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000).”

“Falsificação de documento particular

Michell Nunes Midlej Maron 96


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 298 - Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar


documento particular verdadeiro:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.”

A lei equipara a documentos públicos alguns documentos que, por natureza, são
particulares, como se vê no § 2º do artigo 297 supra.
A falsidade material, como visto, pode ser operada por contrafação ou alteração do
item falsificado. Há que se ter especial cautela quando a conduta for de alterar, porque pode
estar presente, na verdade, uma falsidade ideológica, e não material. Entenda: a falsidade é
ideológica quando é de conteúdo, o que ocorre, por exemplo, em documento que está
incompleto, em branco, carente de alguma complementação, sendo preciso que deles seja
feito constar algo, ou omitido algo, com o fim de criar algum efeito jurídico.
A contradição entre o que está constando do documento e o que deveria estar é o
que evidencia a falsidade ideológica – contraditio que é vinculada, por óbvio, ao poder de
fazer constar o elemento indevido no documento. Se o agente não conta com este poder de
declarar no documento, e o faz, a sua falsidade não é ideológica: é falsidade material,
porque está produzindo documento materialmente falso.
Veja um exemplo: investidor deixa cheque em branco com alguém, sem permissão
para preenchê-lo, com o intento de demonstrar a terceiros simbolicamente que fará um
determinado investimento. Em outra hipótese, imagine-se que o investidor deixa este
cheque em branco com alguém, com permissão para preencher em valor não superior a dez
mil reais. Se o possuidor do cheque preenche-o, suponha-se, em valor de vinte mil reais, a
tipificação será diferente em cada um dos casos narrados: na primeira hipótese, a falsidade
é material, porque preenche o verbo “alterar”, eis que o cheque era para permanecer em
branco; na segunda, a falsidade é ideológica, porque o cheque não era para permanecer em
branco, mas o valor constante não corresponde ao que deveria constar.
O § 3º do artigo 297 supra há crime de falso ideológico, mesmo que o artigo sedie,
em regra, falso material. Assim o é, por exemplo, quando o agente é competente para
declarar os dados que ali se falseiam, o que é uma das premissas da falsidade ideológica,
como se verá – ser competente para inscrever dados corretos, mas insere dados irreais.
Assim, a falsidade material não é só de documento pronto, materialmente
modificado; é também de documento incompleto, quando alterado. Pelo ensejo, passemos
ao crime de falsidade ideológica propriamente dito.
3. Falsidade ideológica

“Falsidade ideológica
Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia
constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser
escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre
fato juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão
de um a três anos, e multa, se o documento é particular.
Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime
prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de
registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.”

A falsidade ideológica tem cinco premissas.


Primeira é que a falsidade ideológica não é da coisa em si, mas do conteúdo, e por
isso não pode jamais ter por objeto um documento completo, tal como uma nota de

Michell Nunes Midlej Maron 97


EMERJ – CP V Direito Penal V

dinheiro. O documento deve ser incompleto ou em branco para poder ter o conteúdo
determinado pelo falsário.
Segunda premissa baseia-se na contraditio entre a informação que deveria constar
realmente no título e o que está lá colocado pelo falsário. O documento, em si, é
verdadeiro; falso é o complemento ali lançado. Diploma de formação em curso
materialmente falso é documento falso, falsidade material; diploma real com dados falsos
lançados é falso ideológico.
Terceira premissa é que a consignação da informação falsa seja capaz de produzir
efeitos jurídicos, ou seja, que tenha relevo, por si só tendo capacidade de constituir um
novo status jurídico qualquer. Uma declaração falsa, mas que não tem, de per si, aptidão
para produzir qualquer efeito, não é falsidade ideológica.
Quarta premissa é que a falsidade deve ser sobre fato juridicamente relevante.
Declarações falsas sobre fatos irrelevantes não despertam a tipicidade do falsum.
Quinta e última premissa da falsidade ideológica é a capacidade para realizar a
declaração que se falseia: se o agente que declara falsamente é realmente quem deveria ter
declarado corretamente, há falso ideológico; se este falsário não é a pessoa que deveria ter
feito a declaração, mas o faz assim mesmo, e falsamente, é crime de falso material.

4. Falso reconhecimento de firma ou letra

“Falso reconhecimento de firma ou letra


Art. 300 - Reconhecer, como verdadeira, no exercício de função pública, firma ou
letra que o não seja:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público; e de um a
três anos, e multa, se o documento é particular.”

Este crime é próprio do tabelião, como dito, porque a falsidade é ideológica, ou seja,
só incide aqui quem tem competência para a prática do ato, e o faz com falsidade. Se
alguém falsifica tais atos, sem ser o tabelião, a falsidade é material, e não incidirá neste
dispositivo, mas no crime material que restar preenchido.

5. Certidão ou atestado ideológica ou materialmente falso

“Certidão ou atestado ideologicamente falso


Art. 301 - Atestar ou certificar falsamente, em razão de função pública, fato ou
circunstância que habilite alguém a obter cargo público, isenção de ônus ou de
serviço de caráter público, ou qualquer outra vantagem:
Pena - detenção, de dois meses a um ano.
Falsidade material de atestado ou certidão
§ 1º - Falsificar, no todo ou em parte, atestado ou certidão, ou alterar o teor de
certidão ou de atestado verdadeiro, para prova de fato ou circunstância que habilite
alguém a obter cargo público, isenção de ônus ou de serviço de caráter público, ou
qualquer outra vantagem:
Pena - detenção, de três meses a dois anos.
§ 2º - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se, além da pena privativa
de liberdade, a de multa.”

Michell Nunes Midlej Maron 98


EMERJ – CP V Direito Penal V

O artigo 301 do CP evidencia bem esta dicotomia entre o falso ideológico e o


material. O título do caput dá a nota do que se incrimina, ali: a conduta de falso ideológico
em certidão ou atestado, praticada por quem, em razão da função pública, tem competência
para atestar ou certificar. Já no § 1º, a falsidade nos mesmos documentos é material, e o
agente é pessoa diversa do funcionário público, porque se o fizer em razão da atribuição
que sua função lhe entrega, será falsidade ideológica.
Em síntese: se há competência para a prática do ato, e o faz diversamente do que
deveria, a falsidade é ideológica; se não tem esta competência, a falsidade é material.

6. Falsidade de atestado médico

“Falsidade de atestado médico


Art. 302 - Dar o médico, no exercício da sua profissão, atestado falso:
Pena - detenção, de um mês a um ano.
Parágrafo único - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também
multa.”

È crime próprio do médico: se quem emite o atestado falso não é apto para tanto –
não é médico – o crime passa a ser de falso material.
O odontólogo pode atestar, mas não está enquadrado neste artigo 302, que é
expressamente dedicado a médico, em sentido estrito. Assim, se o odontólogo atestar
falsamente, ainda será falso ideológico – é apto a atestar –, mas se subsumirá ao dispositivo
genérico, qual seja, o artigo 299 do CP. Ocorre que a pena deste artigo 299 é muito mais
severa, e com isso surge uma quebra de isonomia aberrante: o atestado falso emitido por
médico é muito mais brandamente reprimido do que o emitido por odontologista.
Por conta disso, há que se aplicar, ao odontólogo inserto no artigo 299 do CP, a pena
deste artigo 302. Veja que a tipificação é no artigo 299, mesmo; é apenas a pena deste, por
desproporção, que será descartada, aplicando-se a pena do artigo 302 supra também ao
odontologista.

7. Reprodução ou adulteração de selo ou peça filatélica

“Reprodução ou adulteração de selo ou peça filatélica


Art. 303 - Reproduzir ou alterar selo ou peça filatélica que tenha valor para
coleção, salvo quando a reprodução ou a alteração está visivelmente anotada na
face ou no verso do selo ou peça:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único - Na mesma pena incorre quem, para fins de comércio, faz uso do
selo ou peça filatélica.”

O artigo supra foi revogado pelo artigo 39 da Lei 6.538/78:

“REPRODUÇÃO E ADULTERAÇÃO DE PEÇA FILATÉLICA


Art. 39º - Reproduzir ou alterar selo ou peça filatélica de valor para coleção, salvo
quando a reprodução ou a alteração estiver visivelmente anotada na face ou no
verso do selo ou peça:
Pena: detenção, até dois anos, e pagamento de três a dez dias-multa.

Michell Nunes Midlej Maron 99


EMERJ – CP V Direito Penal V

FORMA ASSIMILADA
Parágrafo único - Incorre nas mesmas penas, quem, para fins de comércio, faz uso
de selo ou peça filatélica de valor para coleção, ilegalmente reproduzidos ou
alterados.”

É crime de falsidade material, este supra.

8. Uso de documento falso


“Uso de documento falso
Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se
referem os arts. 297 a 302:
Pena - a cominada à falsificação ou à alteração.”

Há uma discussão sobre a exigência ou não de espontaneidade no uso. Para alguns,


só há uso quando este é espontâneo, ou seja, a pessoa faz uso do documento falso por
móvel próprio. Quando a pessoa é instada a apresentar o documento, não haveria o crime
de uso. Esta corrente é minoritária, porém: prevalece o entendimento de que o uso dispensa
espontaneidade para se configurar. Fez uso, instado ou não, há o crime – exige-se apenas a
voluntariedade, e não a espontaneidade.
Há documentos e papeis vinculados a determinadas condições pessoais, que são de
uso obrigatório. O uso de uma carteira de habilitação é obrigatória, por exemplo, quando
em uma blitz policial. Nestes casos, não há sequer a controvérsia acima exposta: instado ou
não, se o uso é obrigatório, há sempre o crime de uso. E mais: mesmo que o agente sequer
seja instado a entregar este documento de uso obrigatório, e não o faça, propriamente – o
policial colhe o documento do porta-luvas, no curso da revista, por exemplo –, há o crime
de uso, neste caso.
O preceito secundário do crime de uso é remetido ao crime de falso correspondente.
Este crime, de fato, é totalmente remetido e dependente dos crimes de falso a que se refere.
A falsidade, portanto, prepondera sempre sobre o uso, absorvendo-o. Uma coisa é certa: o
mesmo agente, no mesmo contexto, não pode ser incriminado pelo uso e pelo falso.

9. Supressão de documento

“Supressão de documento
Art. 305 - Destruir, suprimir ou ocultar, em benefício próprio ou de outrem, ou em
prejuízo alheio, documento público ou particular verdadeiro, de que não podia
dispor:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, se o documento é público, e reclusão,
de um a cinco anos, e multa, se o documento é particular.”

Aqui se enquadra, por exemplo, o contador que retém documentos de seu cliente,
com o fito de com isso exigir seus honorários, mesmo que sejam efetivamente devidos. Da
mesma forma se dá na dissolução societária, em que um sócio oculta consigo documentos
que deveria entregar aos demais.
O verbo destruir, aqui, pode encaminhar a tipificação a outros dispositivos, quais
sejam, os artigos 314, 337 e 356 do CP. Os quatro artigos são semelhantes, se diferenciando

Michell Nunes Midlej Maron 100


EMERJ – CP V Direito Penal V

apenas quanto à preponderância do bem jurídico que tutelam, em razão de quem detém o
objeto que é alvo da destruição, e quem é que destrói. Veja:

“Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento


Art. 314 - Extraviar livro oficial ou qualquer documento, de que tem a guarda em
razão do cargo; sonegá-lo ou inutilizá-lo, total ou parcialmente:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, se o fato não constitui crime mais grave.”

“Subtração ou inutilização de livro ou documento


Art. 337 - Subtrair, ou inutilizar, total ou parcialmente, livro oficial, processo ou
documento confiado à custódia de funcionário, em razão de ofício, ou de particular
em serviço público:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, se o fato não constitui crime mais grave.”

“Sonegação de papel ou objeto de valor probatório


Art. 356 - Inutilizar, total ou parcialmente, ou deixar de restituir autos, documento
ou objeto de valor probatório, que recebeu na qualidade de advogado ou
procurador:
Pena - detenção, de seis a três anos, e multa.”

No artigo 305 do CP, o documento público está em poder do particular, que o


destrói; no artigo 314, o documento está em poder do funcionário público, e este o destrói;
no artigo 337, o documento está em poder do funcionário público, e o particular o destrói; e
o artigo 356 é crime próprio do advogado.

Casos Concretos

Questão 1

MÉVIO subtraiu de seu patrão TICIO um cheque assinado em branco. Em seguida


preencheu-o e descontou-o. Tipifique o comportamento de MÉVIO.

Resposta à Questão 1

O empregado que subtrai do patrão cheque assinado em branco, preenchendo-o e


descontando-o, incide nas penas da falsificação de documento público e não na de furto
qualificado. Admite-se a posição contrária em razão de o cheque estar assinado em branco,
incorporando o valor que lhe for lançado, caracterizando a subtração de “coisa”, ou seja, o
valor que for lançado.

Michell Nunes Midlej Maron 101


EMERJ – CP V Direito Penal V

Questão 2

CAIO, mediante o uso de cédula de identidade e CPF falsificados, abriu conta-


corrente no Banco do Brasil. Em seguida, de posse do talonário de cheques e mediante a
apresentação dos referidos documentos, efetuou cinco compras em afamada loja de
departamentos. Dias depois, quando emitiu novo cheque em um restaurante, foi preso em
flagrante delito. Tipifique o comportamento de CAIO.

Resposta à Questão 2

A questão visa a discutir se o estelionato absorve o falso ou não. Admitindo-se uma


relação de subordinação entre a obtenção das indevidas vantagens econômicas e o uso dos
documentos públicos falsos, teríamos a aplicação da consunção, com a prática de cinco
estelionatos consumados e um tentado em continuidade delitiva.
Reconhecendo-se que os bens jurídicos ofendidos são diversos – fé pública e
patrimônio – teríamos que Caio usou os documentos falsos no Banco para abertura de
conta-corrente e nas compras efetuadas, continuadamente, além de realizar os estelionatos.
Assim, as condutas também foram diversas, porque uma de uso dos documentos e outra de
obter a indevida vantagem econômica.
Assim, Caio teria usado os documentos falsos sete vezes continuadamente,
realizando cinco estelionatos consumados e um tentado, tudo em concurso material (artigos
304 c/c 297 c/c 71 (sete vezes) e 171 (cinco vezes) e 171 c/c 14, II c/c 71, na forma do
artigo 69 do CP.

Questão 3

GERVÁSIO, advogado criminal, visando obter a absolvição de seu cliente em


processo criminal, logra colher em folhas em branco as assinaturas das duas testemunhas
de acusação, pessoas humildes e de poucas letras. De posse dos papéis preenche os
mesmos com declarações em sentido oposto ao afirmado pelas testemunhas em juízo. Isto
é, negando a autoria do crime pelo cliente do advogado. As declarações vêm aos autos
junto com as alegações finais do advogado. Em que pese o esforço do causídico, seu
cliente é condenado. Ocorre que o Juiz Criminal, forte na ocorrência do delito do Art. 297,
CP, encaminha ao Ministério Público os originais dos documentos para adoção das
providências cabíveis. Findo o procedimento policial, aponta o Delegado de Polícia a
ocorrência do delito do Art. 299, CP, uma vez que as testemunhas negaram ter autorizado
o preenchimento do documento com aquele conteúdo. Diante dos fatos postos, qual deve
ser a providência adotada pelo Promotor de Justiça ao receber o inquérito?

Resposta à Questão 3

Requerer seu arquivamento. Preliminarmente cumpre assentar que a conduta


configuraria falso ideológico, nos termos da doutrina preponderante (Mirabete, Delmanto e
Hungria). Contudo, exige-se que para a configuração do falso estejamos diante de um
documento, isto é, aquilo que é apto a comprovar a ocorrência de um fato. Ocorre que,

Michell Nunes Midlej Maron 102


EMERJ – CP V Direito Penal V

embora como regra declarações escritas sejam aptas a provar seu conteúdo, a prova
testemunhal tem forma própria, oral; deste modo, sendo inviável a utilização das citadas
declarações como prova testemunhal, resta ausente a potencialidade lesiva do falso,
requisito necessário à sua tipicidade – o caso é de arquivamento.
Veja o seguinte julgado, constante do informativo 413 do STF:

“INFORMATIVO Nº 413, do STF, 2ª Turma.


Advogado e Falsidade Ideológica – 3.
A Turma concluiu julgamento de habeas corpus impetrado em favor de advogado
acusado da suposta prática do crime de falsidade ideológica (CP, art. 299),
consistente no fato de ter redigido e juntado, em autos de processo penal,
declaração de conteúdo falso, assinada, a seu pedido, por testemunha de acusação,
que presenciara delito de homicídio imputado a cliente do causídico. No caso
concreto, a referida declaração, em que lançava dúvidas sobre a autoria do
homicídio, fora anexada quando a testemunha já havia feito o reconhecimento
visual do acusado de homicídio e prestado depoimento em juízo, sendo que,
reinquirida posteriormente no Tribunal do Júri, afirmara que teria assinado a
declaração porque o paciente lhe assegurara que o conteúdo do documento não
modificaria o depoimento já prestado — v. Informativo 412. Por maioria, deferiu-
se o writ ao fundamento de inexistência de dano relevante, entendendo que a
declaração ofertada não pode ser considerada documento para os fins de
reconhecimento do tipo penal previsto no art. 299 do CP. Asseverou-se que, neste
processo, a situação não haveria de ser tida como absolutamente distinta da do
precedente suscitado pelo simples fato de que o documento fora registrado em
cartório. No ponto, considerou-se que a declaração seria inócua para o
convencimento do magistrado acerca da autoria ou da materialidade delitiva, haja
vista que a testemunha confirmara em juízo a versão inicial de seu depoimento,
contrária ao que contido no documento. HC 85064/SP, rel. orig. Min. Joaquim
Barbosa, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 13.12.2005. (HC-85064).”

Tema X

Crimes contra a fé pública III. Outras falsidades. 1) Crimes previstos nos arts. 306 a 311 do CP (aspectos
relevantes):a) Sujeitos do delito;b) Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso
de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula10

1. Falsificação do sinal empregado no contraste de metal precioso ou na fiscalização


alfandegária, ou para outros fins

“Falsificação do sinal empregado no contraste de metal precioso ou na fiscalização


alfandegária, ou para outros fins

10
Aula ministrada pelo professor Mendelssohn Kieling, em 21/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 103


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 306 - Falsificar, fabricando-o ou alterando-o, marca ou sinal empregado pelo


poder público no contraste de metal precioso ou na fiscalização alfandegária, ou
usar marca ou sinal dessa natureza, falsificado por outrem:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.
Parágrafo único - Se a marca ou sinal falsificado é o que usa a autoridade pública
para o fim de fiscalização sanitária, ou para autenticar ou encerrar determinados
objetos, ou comprovar o cumprimento de formalidade legal:
Pena - reclusão ou detenção, de um a três anos, e multa.”

Esta falsidade material, hoje, é bastante pouco factível. Sua plana leitura basta para
identificar os detalhes deste crime, dispensando quaisquer comentários.

2. Falsa identidade

“Falsa identidade
Art. 307 - Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem,
em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o fato não constitui elemento
de crime mais grave.”

Este delito, por seu turno, é bastante relevante. De início, veja que há uma
contravenção penal bastante semelhante, presente no artigo 68, parágrafo único, da Lei das
Contravenções Penais:

“Art. 68. Recusar à autoridade, quando por esta, justificadamente solicitados ou


exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão,
domicílio e residência:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Parágrafo único. Incorre na pena de prisão simples, de um a seis meses, e multa, de
duzentos mil réis a dois contos de réis, se o fato não constitue infração penal mais
grave, quem, nas mesmas circunstâncias, faz declarações inverídicas a respeito de
sua identidade pessoal, estado, profissão, domicílio e residência.”

Na contravenção supra, a objetividade penal recai sobre identidade pessoal, estado,


profissão, domicílio e residência; no artigo 307 do CP, há apenas menção à identidade.
Surge a seguinte questão: a profissão do indivíduo é abrangida pelo conceito de identidade?
Nucci sustenta que não só a profissão, mas todos os dados mencionados nesse artigo
68, parágrafo único, são componentes da identidade da pessoa. Assim, a leitura do artigo
307 do CP deve incluir os elementos expressos no artigo da contravenção supra.
Contudo, essa posição não parece ser a mais acertada. A leitura dos artigos 186, 41 e
23 do CPP indica que o conceito de identificação, identidade, é estritamente pessoal, não
abrangendo dados mutáveis do indivíduo.

“Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da


acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do
seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem
formuladas. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser
interpretado em prejuízo da defesa. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003).”

“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas
as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se

Michell Nunes Midlej Maron 104


EMERJ – CP V Direito Penal V

possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das


testemunhas.”

“Art. 23. Ao fazer a remessa dos autos do inquérito ao juiz competente, a


autoridade policial oficiará ao Instituto de Identificação e Estatística, ou repartição
congênere, mencionando o juízo a que tiverem sido distribuídos, e os dados
relativos à infração penal e à pessoa do indiciado.”

O artigo 307 do CP se diferencia da contravenção do artigo 68, parágrafo único,


porque o crime é finalístico: o delito CP exige a especial finalidade de agir consubstanciada
na expressão “para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a
outrem”. Na contravenção, basta a identidade falsa, sem ser exigido dolo especial de obter
vantagem ou causar prejuízo.
Este crime do artigo 307 do CP não se identifica com as falsidades propriamente
ditas, e é crime expressamente subsidiário. O uso de documento falso, por exemplo,
prevalece sobre este tipo.
A Lei 7.492/86 tem crime especial em relação a este, com finalidade especial:

“Art. 21. Atribuir-se, ou atribuir a terceiro, falsa identidade, para realização de


operação de câmbio:
Pena - Detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, para o mesmo fim, sonega
informação que devia prestar ou presta informação falsa.”

O princípio da não auto-incriminação, nemo tenetur se detegere, não protege quem


se inseriria no artigo 307 do CP. É majoritário o entendimento de que não há esta proteção
constitucional, esta exclusão de crime, mas há quem entenda que quem se atribui falsa
identidade para fugir de imputação penal está se escorando na não auto-incriminação em
relação à investigação da autoria do delito – o que é entendimento inconcebível, a bem da
verdade.
Hoje, com a nova dinâmica do interrogatório, há ainda mais inconsistência nesta
tese, porque o artigo 187 do CPP biparte este ato, e na primeira parte há o questionamento
identificador, que em nada se confunde com a segunda parte, esta sim referente à imputação
– e só esta resguardada pela não auto-incriminação. Veja:
“Art. 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do
acusado e sobre os fatos. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)
§ 1º Na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de
vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida
pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso
afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou
condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais.
(Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)
§ 2º Na segunda parte será perguntado sobre: (Incluído pela Lei nº 10.792, de
1º.12.2003)
I - ser verdadeira a acusação que lhe é feita; (Incluído pela Lei nº 10.792, de
1º.12.2003)
II - não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-
la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e
quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela;
(Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)
III - onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta;
(Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)

Michell Nunes Midlej Maron 105


EMERJ – CP V Direito Penal V

IV - as provas já apuradas; (Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)


V - se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde
quando, e se tem o que alegar contra elas; (Incluído pela Lei nº 10.792, de
1º.12.2003)
VI - se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto
que com esta se relacione e tenha sido apreendido; (Incluído pela Lei nº 10.792, de
1º.12.2003)
VII - todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos
antecedentes e circunstâncias da infração; (Incluído pela Lei nº 10.792, de
1º.12.2003)
VIII - se tem algo mais a alegar em sua defesa. (Incluído pela Lei nº 10.792, de
1º.12.2003).”

O acusado não se defende de quem ele é, mas sim de fatos a si imputados. Não é
possível entender que haja imunidade à falsa identidade, portanto – mas a corrente persiste.
O artigo 308 do CP é também epigrafado como falsa identidade:

“Art. 308 - Usar, como próprio, passaporte, título de eleitor, caderneta de reservista
ou qualquer documento de identidade alheia ou ceder a outrem, para que dele se
utilize, documento dessa natureza, próprio ou de terceiro:
Pena - detenção, de quatro meses a dois anos, e multa, se o fato não constitui
elemento de crime mais grave.”

O crime é de falsidade ideológica, e não material. O documento é real, verdadeiro,


sem alterações. Há apenas a diversidade de identidades entre o usuário do documento e o
seu titular.
No que pertine ao título de eleitor verdadeiro, usado por quem não seja o seu titular,
o crime é o do artigo 308; quando o título for usado por este terceiro para efetivamente
votar, há crime especial no artigo 309 do Código Eleitoral:

“Art. 309. Votar ou tentar votar mais de uma vez, ou em lugar de outrem:
Pena - reclusão até três anos.”

Aquele que cede documento seu para que outrem use como próprio é também
prevista no artigo 308 do CP. Aquele que seria partícipe no crime do usuário do documento
foi eleito a autor, neste crime, o qual consubstancia uma rara hipótese de exceção à teoria
monista em que as condutas estão descritas no mesmo artigo: transformou-se a figura do
partícipe em autor, sem consignar sua conduta em outro tipo penal, como ocorre nas
exceções dualistas, normalmente.
Vale dizer que, quanto a este que cede, o crime é próprio, somente podendo praticá-
lo o titular do documento cedido.
O falso só se consuma se há potencialidade lesiva; se não há, é atípico, pois toda
mentira é um falso, mas nem todo falso é crime.
Tendo o delegado prendido o sujeito em flagrante, e mentido sobre seus dados
pessoais, sua qualificação, e o Estado ainda puder verificar se tais dados são corretos ou
não – uma mera confrontação da identidade datiloscópica, por exemplo –, não há
potencialidade lesiva na mentira, que é um falso, mas não é crime, portanto.
Supondo-se, em outro exemplo, que em uma blitz dedicada à captura de criminosos,
se o meliante se apresenta com dados falsos, e com isso consegue se evadir, não há crime,

Michell Nunes Midlej Maron 106


EMERJ – CP V Direito Penal V

pois o Estado, na figura dos policiais, poderia conferir a veracidade de tais informações
prestadas pelo sujeito – perdendo a relevância a conduta mentirosa, no caso.
O STF, por seu turno, entende que sempre haverá o crime de falso neste caso. O STJ
defende exatamente o oposto: jamais haverá crime de falso, aqui, por estar o sujeito
amparado pelo nemo tenetur se detegere, ínsito à ampla defesa. Veja julgados destas Cortes,
pela ordem:

“Falsa Identidade e Autodefesa


Aplicando orientação firmada pela Corte segundo a qual a atribuição de falsa
identidade (CP, art. 307) perante autoridade policial com o intuito de ocultar
antecedentes não configura autodefesa, a Turma, por maioria, manteve decisão
monocrática do Min. Ricardo Lewandowski que provera recurso extraordinário
criminal, do qual relator, em que o Ministério Público Federal refutava o
trancamento, por atipicidade de conduta, de ação penal instaurada em face do ora
agravante. Considerou-se que não foram aduzidos novos argumentos capazes de
afastar as razões expendidas na decisão agravada, bem como rejeitou-se a alegação
de que a questão constitucional não fora ventilada, uma vez que o voto condutor no
Tribunal a quo amparara-se em fundamento constitucional. Vencido o Min. Marco
Aurélio que, num primeiro passo, dava provimento ao agravo regimental para
assentar que o recurso extraordinário não tinha condições de prosperar e, em passo
seguinte, asseverar que, ainda que se pudesse cogitar da rediscussão da matéria,
caminharia no sentido do provimento do regimental, a fim de que, aparelhado o
processo, viesse o extraordinário à Turma para julgamento. Precedentes citados:
HC 72377/SP (DJU de 30.6.95); RE 470944/DF (DJU de 27.3.2006); HC
92763/MS (DJE de 25.4.2008); HC 70179/SP (DJU de 14.3.94).
RE 561704 AgR/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 3.3.2009. (HC-561704).”

“REsp 1095393. Relatora Ministra LAURITA VAZ. Data da Publicação:


07/08/2009.
RECURSO ESPECIAL. FALSA IDENTIDADE. RECURSO EXTEMPORÂNEO.
INTERPOSIÇÃO ANTERIOR AO JULGAMENTO DOS INFRINGENTES.
NECESSIDADE DE RATIFICAÇÃO. NÃO CONHECIMENTO.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS DE
OFÍCIO. ROUBO. SIMULAÇÃO DE EMPREGO DE ARMA. COLOCAÇÃO
DAS MÃOS EMBAIXO DA CAMISA. NÃO INCIDÊNCIA DA CAUSA
ESPECIAL DE AUMENTO DE PENA. RECURSO PARCIALMENTE
CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO. Com efeito, esta Corte firmou
entendimento no sentido de que a conduta praticada pelo réu, de se atribuir falsa
identidade perante autoridade policial, como o intuito de ocultar antecedentes
criminais, não configura o crime previsto no art. 307 do Código Penal, por se tratar
de hipótese de autodefesa, consagrada no art. 5.º, inciso LXIII, da Constituição
Federal. A propósito, os seguintes precedentes desta Corte:
HABEAS CORPUS. PENAL. ART. 157, INCISOS I E II, E ART. 307 DO
CÓDIGO PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. EXERCÍCIO DE
AUTODEFESA. CONDUTA ATÍPICA. PENA-BASE FIXADA ACIMA DO
MÍNIMO LEGAL CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS.
FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DOS
MAUS ANTECEDENTES. AUMENTO DA PENA ACIMA DO MÍNIMO
LEGAL EM RAZÃO DA PRESENÇA DE DUAS MAJORANTES.
ILEGALIDADE. EXASPERAÇÃO SEM FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA.
CONFISSÃO ESPONTÂNEA. FASE INQUISITORIAL. RETRATAÇÃO EM
JUÍZO. CONDENAÇÃO BASEADA EM ELEMENTOS DA CONFISSÃO.
ATENUANTE. RECONHECIMENTO.

Michell Nunes Midlej Maron 107


EMERJ – CP V Direito Penal V

1. A conduta de se atribuir falsa identidade perante autoridade policial, para ocultar


antecedentes criminais, não configura o crime descrito no art. 307 do Código
Penal, tratando-se de hipótese de autodefesa, consagrada no art. 5.º, inciso LXIII,
da Constituição Federal.
2. O acórdão de apelação, examinando as circunstâncias judiciais do caso concreto,
consideraram desfavoráveis as circunstâncias e consequências do crime e os
antecedentes e a personalidade do réu, razão pela qual, fundamentadamente,
fixaram a pena-base acima do mínimo legal.
3. Entretanto, não pode o acórdão impugnado, dando provimento ao apelo
acusatório, reconhecer como desfavoráveis os antecedentes do ora Paciente,
mesmo porque, como bem entendeu a sentença monocrática, não restou provado
que a folha de antecedentes juntada aos autos se referia ao réu, que não foi sequer
devidamente identificado.
4. A presença de duas majorantes no crime de roubo (emprego de arma de fogo e
concurso de agentes) não é causa obrigatória de majoração da punição em
percentual acima do mínimo previsto, quando se faz necessária a indicação de
circunstâncias que justifiquem o aumento.
5. Aplica-se a atenuante da confissão espontânea quando a confissão extrajudicial
efetivamente serviu para alicerçar a sentença condenatória, ainda que tenha havido
retratação em juízo.
6. Ordem concedida para restabelecer a sentença de primeiro grau, na parte em que
absolveu o Paciente do crime de falsa identidade e, quanto ao crime de roubo
qualificado, reformar o acórdão no tocante à individualização da pena,
determinando que a Corte a quo afaste o aumento da pena-base pelos maus
antecedentes, observe a atenuante da confissão espontânea e complemente os
fundamentos utilizados na fixação do aumento de pena em decorrência da duas
qualificadoras, sob pena de aplicação no mínimo legal." (HC 120249/RJ, 5.ª
Turma, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJe de 20/04/2009, sem grifos no original.)
PENAL – HABEAS CORPUS – CORRUPÇÃO DE MENOR –
APRESENTAÇÃO DE FALSA IDENTIDADE NA FASE POLICIAL –
ATIPICIDADE – ROUBO MAJORADO POR DUAS CIRCUNSTÂNCIAS
ESPECIAIS – AUMENTO COM BASE TÃO SÓ NO QUANTITATIVO DAS
CAUSAS DE AUMENTO – AUSÊNCIA DE OUTROS FUNDAMENTOS –
IMPOSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA PARA ABSOLVER O PACIENTE
PELO CRIME DE FALSA IDENTIDADE E FAZER AS PENAS PARA OS
DEMAIS CRIMES RETORNAREM AO QUANTITATIVO DETERMINADO
NA SENTENÇA.
1. A declaração de falsa identidade, na fase policial, para evitar o conhecimento
dos antecedentes constitui figura atípica, porque amparado pela garantia
constitucional de permanecer calado, ex vi do art. 5º, LXIII, da CF/88.
2. A existência de maus antecedentes justifica a aplicação das penas-base um
pouco acima do mínimo legal.
3. O acréscimo pelas majorantes específicas só pode ir além do mínimo legal
quando houver especial motivo para a exacerbação, devidamente fundamentado.
4. Ordem parcialmente concedida para absolver o paciente pelo crime de falsa
identidade e fazer as penas para os demais crimes retornarem ao quantitativo
fixado na sentença." (HC 101391/MS, 6.ª Turma, Rel. Min. JANE SILVA
(DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), Dje de 1.º/12/2008, sem
grifos no original.)
Com relação ao segundo recurso, insurge-se o Recorrente contra a causa especial
de aumento de pena do crime de roubo, referente ao uso de arma. A sentença não
aplicou essa majorante, de acordo com os fundamentos a seguir transcritos: "No
que se refere à causa especial de aumento de pena prevista no art. 157, § 2.º, I,
razão assiste a defesa. A simulação de arma de fogo não permite o reconhecimento
desta causa de aumento, conforme entendimento jurisprudencial: 'Recurso
Especial. Penal. Crime contra os costumes. Atentado violento ao pudor. Regime

Michell Nunes Midlej Maron 108


EMERJ – CP V Direito Penal V

prisional. Integralmente Fechado. Crime contra o patrimônio. Roubo. Causa


especial de aumento. Emprego de arma de fogo. Simulação. Impossibilidade.
(Resp 564876. Ministro José Arnaldo da Fonseca. Dj 09.12.2003).”

O MP/RJ defende tese diferente: sendo o interrogatório ato bipartido, com uma
primeira parte exclusivamente servível à identificação e qualificação do acusado, nesta não
está amparado pelo direito de defesa – não pode mentir aqui, pois não está escorado no
postulado da não auto-incriminação; no TJ/RJ, acompanha-se a posição do STJ, com
fundamento somente no nemo tenetur se detegere.
Em síntese, portanto, é fundamental: estabelecer a premissa de que sem
potencialidade lesiva o fato é atípico, e que por isso se a verificação dos dados for possível,
não há tal lesividade na mentira; expor a posição das Cortes maiores, que é: sempre atípico,
para o STJ, por escora na não auto-incriminação, postulado da ampla defesa; sempre típico,
para o STF, porque não há o direito de mentir, cometendo crime de falso, sobre sua
identidade, eis que a defesa, em verdade, é da imputação é dos fatos criminosos, e somente
sobre isso o acusado pode mentir.
Na casuística, portanto, há que se expor as teses, e verificar se há potencialidade
lesiva por não haver modo de a autoridade verificar a veracidade da identificação proferida
pelo agente.

3. Fraude de lei sobre estrangeiro

“Fraude de lei sobre estrangeiro


Art. 309 - Usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território nacional,
nome que não é o seu:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único - Atribuir a estrangeiro falsa qualidade para promover-lhe a
entrada em território nacional: (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.426, de
1996).”

Este crime é de falsidade ideológica, e há certa correlação com o artigo 307 do CP,
com a diferença de se tratar de crime próprio de estrangeiro.
Trata-se de estrangeiro que tem alguma restrição para entrada no Brasil, e por isso
se vale de identidade falsa. Se se tratar de estrangeiro que fora expulso (não o extraditado
ou deportado), o seu reingresso é um crime autônomo, na forma do artigo 338 do CP, que
absorve este crime do artigo 309 do CP:

“Reingresso de estrangeiro expulso


Art. 338 - Reingressar no território nacional o estrangeiro que dele foi expulso:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, sem prejuízo de nova expulsão após o
cumprimento da pena.”

Mas repare que se a atribuição de falso nome for acompanhada de uso de


documento falso, o crime do estrangeiro estará subsumido no artigo 304 do CP, e por ser
este mais grave, não haverá absorção pelo artigo 338 supra.
Se há um terceiro, particular, que atribui ao estrangeiro a falsa identidade, ele
incidirá no parágrafo único do artigo 309 do CP. Se concorre para o ingresso do estrangeiro
expulso, este particular se afigura partícipe no artigo 338 do CP, por conta da especialidade.

Michell Nunes Midlej Maron 109


EMERJ – CP V Direito Penal V

Sob a mesma epígrafe de fraude de lei sobre estrangeiro, há o crime do artigo 310
do CP:

“Art. 310 - Prestar-se a figurar como proprietário ou possuidor de ação, título ou


valor pertencente a estrangeiro, nos casos em que a este é vedada por lei a
propriedade ou a posse de tais bens: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)
Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
9.426, de 1996).”

Aqui se enquadra aquele que funciona como “testa-de-ferro” de estrangeiro, o


brasileiro que funciona como identidade de estrangeiro para desempenhar atividades que
este não possa. Estas atividades vedadas a estrangeiros, hoje, são apenas três: a pesquisa e
lavra de jazidas minerais, na forma do artigo 76, § 1º, da CRFB; as empresas de
radiodifusão, na forma do artigo 222 da CRFB; e a divisão e propriedade de terras em
regiões florestais amazônicas. Veja:

“Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais


de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de
exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a
propriedade do produto da lavra.
§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a
que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante
autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou
empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no
País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas
atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)
(...)”

“Art. 222. A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons


e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou
de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País.
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 36, de 2002)
§ 1º Em qualquer caso, pelo menos setenta por cento do capital total e do capital
votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens
deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há
mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e
estabelecerão o conteúdo da programação. (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 36, de 2002)
§ 2º A responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da
programação veiculada são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais
de dez anos, em qualquer meio de comunicação social. (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 36, de 2002)
§ 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia
utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no
art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de
profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 36, de 2002)
§ 4º Lei disciplinará a participação de capital estrangeiro nas empresas de que trata
o § 1º. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 36, de 2002)
§ 5º As alterações de controle societário das empresas de que trata o § 1º serão
comunicadas ao Congresso Nacional. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 36,
de 2002).”

Michell Nunes Midlej Maron 110


EMERJ – CP V Direito Penal V

A falsidade é ideológica, e o crime é próprio de brasileiro, por óbvio.

4. Adulteração de sinal identificador de veículo automotor

“Adulteração de sinal identificador de veículo automotor (Redação dada pela Lei


nº 9.426, de 1996).
Art. 311 - Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador
de veículo automotor, de seu componente ou equipamento: (Redação dada pela Lei
nº 9.426, de 1996))
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.426, de
1996)
§ 1º - Se o agente comete o crime no exercício da função pública ou em razão dela,
a pena é aumentada de um terço. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)
§ 2º - Incorre nas mesmas penas o funcionário público que contribui para o
licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo
indevidamente material ou informação oficial. (Incluído pela Lei nº 9.426, de
1996).”

Este crime foi nitidamente dirigido para incrementar a contenção da escalada dos
crimes de roubo e receptação de veículos automotores: incrimina-se, aqui, o carro dublê.
O artigo se vale de dois verbos – adulterar ou remarcar –, sendo que houve um lapso
legislador ao não consignar expressamente o verbo “raspar”, como o faz o artigo 16,
parágrafo único, IV, da Lei 10.826/03 – Estatuto do Desarmamento – ao expressamente
mencionar o termo “raspado”:

“Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito


Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito,
transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter
sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou
restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
(...)
IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com
numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou
adulterado;
(...)”

Se o legislador menciona lado a lado as características de alterado e raspado, é


porque não as considera sinonímicas, e por isso o chassi raspado de veículo não seria chassi
alterado, para parte majoritária da doutrina. Mas há corrente que entende que “adulterar”
claramente engloba “raspar”, pela própria semântica, e por isso o chassi raspado estaria,
sim, incluso no artigo 311 do CP – mas é corrente minoritária.
Por incrível que pareça, há controvérsia sobre a natureza da placa do veículo, se esta
se enquadra ou não no conceito de “sinal identificador de veículo”, que é suprido pelo CTB
nos artigos 114 e 115:

“Art. 114. O veículo será identificado obrigatoriamente por caracteres gravados no


chassi ou no monobloco, reproduzidos em outras partes, conforme dispuser o
CONTRAN.

Michell Nunes Midlej Maron 111


EMERJ – CP V Direito Penal V

§ 1º A gravação será realizada pelo fabricante ou montador, de modo a identificar o


veículo, seu fabricante e as suas características, além do ano de fabricação, que não
poderá ser alterado.
§ 2º As regravações, quando necessárias, dependerão de prévia autorização da
autoridade executiva de trânsito e somente serão processadas por estabelecimento
por ela credenciado, mediante a comprovação de propriedade do veículo, mantida
a mesma identificação anterior, inclusive o ano de fabricação.
§ 3º Nenhum proprietário poderá, sem prévia permissão da autoridade executiva de
trânsito, fazer, ou ordenar que se faça, modificações da identificação de seu
veículo.”

“Art. 115. O veículo será identificado externamente por meio de placas dianteira e
traseira, sendo esta lacrada em sua estrutura, obedecidas as especificações e
modelos estabelecidos pelo CONTRAN.
§ 1º Os caracteres das placas serão individualizados para cada veículo e o
acompanharão até a baixa do registro, sendo vedado seu reaproveitamento.
§ 2º As placas com as cores verde e amarela da Bandeira Nacional serão usadas
somente pelos veículos de representação pessoal do Presidente e do Vice-
Presidente da República, dos Presidentes do Senado Federal e da Câmara dos
Deputados, do Presidente e dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos
Ministros de Estado, do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da
República.
§ 3º Os veículos de representação dos Presidentes dos Tribunais Federais, dos
Governadores, Prefeitos, Secretários Estaduais e Municipais, dos Presidentes das
Assembléias Legislativas, das Câmaras Municipais, dos Presidentes dos Tribunais
Estaduais e do Distrito Federal, e do respectivo chefe do Ministério Público e ainda
dos Oficiais Generais das Forças Armadas terão placas especiais, de acordo com os
modelos estabelecidos pelo CONTRAN.
§ 4º Os aparelhos automotores destinados a puxar ou arrastar maquinaria de
qualquer natureza ou a executar trabalhos agrícolas e de construção ou de
pavimentação são sujeitos, desde que lhes seja facultado transitar nas vias, ao
registro e licenciamento da repartição competente, devendo receber numeração
especial.
§ 5º O disposto neste artigo não se aplica aos veículos de uso bélico.
§ 6º Os veículos de duas ou três rodas são dispensados da placa dianteira.”

É exatamente esta bifurcação do conceito que gera a controvérsia, porque a placa é


sinal externo de identificação do veículo, na forma do artigo 115, supra, escapando do
conceito restrito do artigo 311 do CP. O STF e o STJ, felizmente, puseram fim a esta
controvérsia, entendendo que a placa é claramente sinal identificador, incidindo sua
adulteração no crime do artigo 311 do CP.
A alteração da identificação para o fim de não pagar multas, ou de enganar terceiros,
ou qualquer outra vantagem, pode configurar também estelionato.
O funcionário público que “esquenta” a documentação do veículo adulterado incide
no § 2º do artigo 311 do CP. Esta conduta é falsidade ideológica, e não material, como se
viu no estudo das premissas da falsidade ideológica – é o funcionário competente para o
preenchimento do documento quem falseia a informação.

Michell Nunes Midlej Maron 112


EMERJ – CP V Direito Penal V

Casos Concretos

Questão 1

ADILSON foi denunciado pelo Ministério Público pela prática da falsidade


prevista no art. 311 do Código Penal, porque foi preso em flagrante ao estar dirigindo o
veículo Fiat Palio, ano 1999, com a placa adulterada. A defesa alega que a expressão "ou
qualquer sinal identificador de veículo automotor" contida no referido dispositivo não
engloba placa adulterada, tratando-se dos casos em que a adulteração tenha sido
realizada apenas nos componentes de fabricação do veículo. Decida a questão.

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 113


EMERJ – CP V Direito Penal V

Apesar de controvertido o tema, o STF e o STJ têm entendido que a adulteração de


placa de carro configura o crime previsto no artigo 311, caput, do CP, na medida em que a
expressão “ou qualquer sinal identificador de veículo automotor” abarca, também, as placas
de tais veículos. Importante consignar que, em virtude de ser crime que deixa vestígio,
necessário se faz o exame pericial do automóvel, por força do artigo 158, do CPP.
Veja os seguintes precedentes:

“HC 79780 / SP STF – Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, j. 14/12/1999, Primeira


Turma.
Crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor (art. 311 do
Código Penal, com o conteúdo introduzido pela Lei nº 9.426-96). Tipifica, em tese,
a sua prática, a adulteração de placa numerada dianteira ou traseira do veículo, não
apenas da numeração do chassi ou monobloco.”

“HC 45082 / ES STJ – Rel. Ministro GILSON DIPP, 5ª TURMA, j. 17/11/2005


CRIMINAL. HC. ADULTERAÇÃO DE SINAL IDENTIFICADOR DE
VEÍCULO AUTOMOTOR. RETIRADA DAS PLACAS. SINAL
IDENTIFICADOR EXTERNO. POSSIBILIDADE DE ENQUADRAMENTO
NOS NÚCLEOS “ADULTERAR” E “REMARCAR”. CORRUPÇÃO DE
MENORES. CRIME FORMAL. DESNECESSIDADE DA DEMONSTRAÇÃO
DA EFETIVA CORRUPÇÃO. ORDEM DENEGADA. Hipótese em que o
paciente foi condenado pela prática, dentre outros, do crime de adulteração de
veículo automotor e corrupção de menores. É possível identificar um veículo tanto
a partir de caracteres gravados no chassi ou no monobloco pelo montador ou
fabricante, quanto pelas placas, dianteira e traseira, sendo esta lacrada, as quais são
identificadores externos do automóvel. Não se pode excluir do elemento do tipo
“qualquer sinal identificador de veículo” as placas, as quais constituem sinal
identificador externo. O objeto jurídico tutelado pelo delito de corrupção de
menores é a proteção da moralidade do menor e visa a coibir a prática de delitos
em que existe sua exploração. A corrupção de menores é crime formal, o qual
prescinde de prova da efetiva corrupção do menor. Precedentes. Ordem denegada.”

Em sentido contrário:

“RESE 2001.051.00278 TJRJ – Rel. DES. NESTOR LUIZ BASTOS AHRENDS,


j. 16/10/2001, 2ª CCrim.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIME CONTRA A FE PUBLICA.
ADULTERACAO DOS NUMEROS DE VEICULO. APREENSAO DE
VEICULO. INOCORRENCIA. REJEICAO DA DENUNCIA. RECEBIMENTO
PARCIAL. RECURSO DO M.P. RECURSO DESPROVIDO. RECURSO EM
SENTIDO ESTRITO. CRIME CONTRA A FÉ PÚBLICA. REJEIÇÃO PARCIAL
DA DENÚNCIA. CABIMENTO. A adulteração de sinal identificador de veículo
automotor, consistente na adulteração de placas, é fato atípico que autoriza a
rejeição da denúncia, quanto mais que o veículo não foi apreendido. Manutenção
da decisão. Leg: art.10, § 2º e 10, § 3º, I da lei 9437/97 e 311, do CP, art.581, I, do
CPP.”

Questão 2

JUVENAL, aluno de direito do 10º Período da Universidade Tabajara, comparece à


13ª DP e registra o extravio de sua carteira de advogado obtendo uma declaração da
Autoridade Policial sobre o citado fato. Dias depois, devidamente nomeado pela parte
(Art. 10 da Lei 10.259/2001), JUVENAL ajuíza ação no Juizado Especial Federal

Michell Nunes Midlej Maron 114


EMERJ – CP V Direito Penal V

subscrevendo a inicial com seu pretenso número de carteira extraviada. Desconfiada da


atitude do advogado, exige a Juíza a apresentação da carteira da ordem sendo exibido o
documento policial. Feita a verificação na OAB, constata-se que JUVENAL não é
advogado tendo apenas registro, já cancelado, de estagiário. Levado à Polícia Federal, é
lavrado termo circunstanciado pela contravenção penal do Art. 47, LCP. Os autos vem ao
MPF que oferece proposta de transação penal pelo delito do Art. 307, CP (falsa
identidade).Na qualidade de membro no Ministério Público, em audiência preliminar, que
providência adota?

Resposta à Questão 2

Os delitos de falso exigem a possibilidade de alteração de verdade jurídica relevante


para sua configuração. Na hipótese se fazem presentes, em tese, delitos de falsa identidade
(atribuição da qualidade de advogado), uso de documento falso (apresentação a funcionário
público federal) e falsidade ideológica (falso registro de extravio de documento). Ocorre
que os dois primeiros não possuem potencialidade ofensiva uma vez que ambos visavam
comprovar uma qualidade de advogado dispensável para a causa em questão (artigo 10 da
Lei 10.259/2001).
Desta forma, resta apenas o delito de falsidade ideológica de competência da justiça
estadual. Na qualidade de membro do MP, pugnaria pelo declínio de competência ante a
insubsistência de crime federal.

Tema XI

Crimes contra a Administração Pública I. Crimes praticados por funcionário público contra a administração
em geral (primeira parte).1) Considerações gerais:a) Definição e evolução histórica. Conceito de
Administração Pública. Bem jurídico tutelado;b) Conceito de funcionário público (art. 327 do CP).2) Crimes
previstos nos artigos 312 a 318 do Código Penal:a) Sujeitos do delito;b) Tipicidade objetiva e subjetiva. 3)
Aspectos controvertidos. 4) Concurso de crimes. 5) Pena e ação penal.

Notas de Aula11

1. Crimes contra a administração pública – introdução

11
Aula ministrada pelo professor Mendelssohn Kieling, em 21/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 115


EMERJ – CP V Direito Penal V

A CRFB trouxe um capítulo inteiro evidenciando a relevância da administração


pública em nosso ordenamento, prevendo especialmente a principiologia que se pretende
regente desta seara. O direito penal segue esta mesma orientação, tutelando estes princípios
tão caros ao sistema em um título próprio.
O bem jurídico do título dos crimes contra a administração pública, portanto, é, lato
sensu, a própria administração pública, tendo o legislador penal operado uma partição dos
bens que a esta são caros em diversos tipos, inseridos em cinco capítulos.
Os crimes funcionais propriamente vêm logo no primeiro capítulo, mas não são os
únicos praticados por funcionários públicos pois, como já se pôde ver, há crimes funcionais
espalhados pelo CP, tal como o do artigo 311, § 1º, há pouco abordado, e o do artigo 289, §
3º, também já visto, dentre outros. Mas estes crimes espargidos pelo CP são designados
como crimes funcionais impróprios justamente por não tutelarem, diretamente, a
administração pública: esta é tutelada apenas de forma secundária.
A legislação extravagante também prevê crimes funcionais próprios. A Lei
4.898/65, por exemplo, trata estritamente de crimes funcionais – o crime de abuso de
autoridade. A Lei 9.605/98, que traz crimes ambientais, apresenta crime contra a
administração pública ambiental, como se vê no artigo 67 desse diploma:

“Art. 67. Conceder o funcionário público licença, autorização ou permissão em


desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja
realização depende de ato autorizativo do Poder Público:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano de
detenção, sem prejuízo da multa.”

A Lei 8.137/90 também traz crimes contra a administração, agora especiais em


relação ao CP por se tratarem de crimes contra a administração tributária. Veja o artigo 3º
desse diploma:

“Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no
Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI,
Capítulo I):
I - extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a
guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente,
acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo ou contribuição social;
II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela,
vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou
cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão,
de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
III - patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração
fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público. Pena - reclusão, de 1
(um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

Há ainda crimes em que a circunstância de ser funcionário público é uma causa de


aumento de pena, como nos já mencionados artigos do CP, que tratam de outras tutelas
penai, mas apenam com maior severidade quando cometidos os delitos por funcionários
públicos.
Os crimes funcionais próprios podem levar à perda do cargo, como dispõe o artigo
92, I, “a”, do CP:

Michell Nunes Midlej Maron 116


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Art. 92 - São também efeitos da condenação:(Redação dada pela Lei nº 7.209, de


11.7.1984)
I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: (Redação dada pela Lei nº
9.268, de 1º.4.1996)
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um
ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a
Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)
(...)
Parágrafo único - Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo
ser motivadamente declarados na sentença. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984).”

Mas veja que não é efeito automático, devendo ser motivado, na forma do parágrafo
único. No caso de condenação pelo crime de tortura, no entanto, a perda do cargo é, sim,
automática, como se vê no artigo 1º, § 5º, da Lei 9.455/97:

“Art. 1º Constitui crime de tortura:


I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe
sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
(...)
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a
interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
(...)”

Idem, também, para os crimes de responsabilidade dos prefeitos, cujo efeito de


perda do cargo é automático, na forma do DL 201/67:

“Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao


julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara
dos Vereadores:
(...)
§ 2º A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo,
acarreta a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o
exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da
reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular.”

Na Lei 7.716/89, por fim, vem a última previsão de perda automática do cargo, nos
crimes resultantes de preconceito de raça ou cor:

“Art. 16. Constitui efeito da condenação a perda do cargo ou função pública, para
o servidor público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular
por prazo não superior a três meses.”

Michell Nunes Midlej Maron 117


EMERJ – CP V Direito Penal V

Outro efeito possível dos crimes funcionais é o que vem previsto no artigo 56,
remetendo ao artigo 47, I, ambos do CP: a interdição temporária de direitos. Veja:

“Art. 56 - As penas de interdição, previstas nos incisos I e II do art. 47 deste


Código, aplicam-se para todo o crime cometido no exercício de profissão,
atividade, ofício, cargo ou função, sempre que houver violação dos deveres que
lhes são inerentes. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

“Interdição temporária de direitos(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)


Art. 47 - As penas de interdição temporária de direitos são: (Redação dada pela Lei
nº 7.209, de 11.7.1984)
I - proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de
mandato eletivo; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
(...)”

Ressalte-se que estes efeitos não são penas, mas sim o que o próprio nomen juris
diz: são efeitos da condenação. Há um caso, porém, em que a perda do cargo é a própria
pena: trata-se do crime de abuso de autoridade, da Lei 4.898/65, no artigo 6º, § 3º, “c”:

“Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e


penal.
(...)
§ 3º A sanção penal será aplicada de acordo com as regras dos artigos 42 a 56 do
Código Penal e consistirá em:
a) multa de cem a cinco mil cruzeiros;
b) detenção por dez dias a seis meses;
c) perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública
por prazo até três anos.
§ 4º As penas previstas no parágrafo anterior poderão ser aplicadas autônoma ou
cumulativamente.
(...)”

1.1. Conceito penal de funcionário público

O artigo 327 do CP oferece o conceito legal de funcionário público:

“Funcionário público
Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora
transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função
em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço
contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração
Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos
neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou
assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista,
empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. (Incluído pela Lei nº
6.799, de 1980)”

Na vigência da redação anterior desse artigo, houve muita discussão sobre o real
alcance do conceito, especialmente sobre a definição do funcionário público equiparado, do
§ 1º. Com a redação atual, a doutrina majoritária apregoa que se adotou a interpretação
extensiva deste conceito de funcionário público equiparado, porque o § 1º estabelece que

Michell Nunes Midlej Maron 118


EMERJ – CP V Direito Penal V

haja exigência de que o indivíduo exerça atividade típica da administração apenas nos casos
de terceirizados e conveniados ao Poder Público; para os demais, pessoas em exercício em
entidades paraestatais e na administração indireta, a equiparação é incondicionada.
Por fim, vale mencionar que a rigor, uma correlação é inegável: todos os crimes
funcionais são também tipicamente atos de improbidade. É discutível a ocorrência de bis in
idem, mas a correlação entre o fato típico penal e o tipo ímprobo existe.
Passemos, agora, ao estudo dos crimes em espécie.

2. Peculato

“Peculato
Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro
bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou
desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.
§ 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse
do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em
proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a
qualidade de funcionário.
Peculato culposo
§ 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
§ 3º - No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença
irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena
imposta.”

O peculato é uma especialização do furto e da apropriação indébita, especialização


que se dá por conta da peculiaridade funcional do agente, e por conta da qualidade da coisa.
Coisas públicas é que são o objeto do delito, mas pode ser que coisas privadas o sejam, se
se tratarem de coisas privadas afetadas ao Poder Público por qualquer forma: se está sob o
poder de império do Estado, pode ser alvejada por peculato; se está apenas incidentalmente
no poder da administração, não há peculato, havendo o crime comum.
Bom exemplo de peculato de coisa particular é o da subtração de um aparelho de
som automotivo, por um policial, de um carro apreendido em uma blitz: o poder de império
exercido gera a condição necessária para que o crime seja perfeito na modalidade especial,
e não de furto. Diferente é o caso de um funcionário público que subtrai a carteira de um
administrado, na repartição: há crime de furto comum, pois a coisa em nada se submeteu ao
poder estatal.
Há que se falar da figura do peculato de uso, que, na leitura mais técnica, inexiste
no CP. Há esta figura no artigo 1º, II, do DL 201/67

“Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao


julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara
dos Vereadores:
(...)
II - utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou
serviços públicos;
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 119


EMERJ – CP V Direito Penal V

Se no CP não se contempla o verbo “utilizar”, como o faz o artigo supra, é porque


esta conduta não é típica do peculato. No CP, portanto, tal conduta seria atípica, porque
ausente o animus rem sibi habendi.
Há peculato-apropriação quando o funcionário tem a posse da coisa pública em
função de seu cargo, e dela se apropria. Fala-se que há peculato-furto quando o agente,
funcionário público, não tem a posse da coisa que captura, mas se vale da sua condição
funcional para conseguir subtraí-la ele próprio, ou fazer com que alguém subtraia. Mas veja
que a qualidade de funcionário tem que ser imprescindível para a consecução do crime, pois
se não o for, o crime é de furto comum.
No crime de peculato não se aplica a teoria da insignificância, pois a res publica
seria sempre relevante, segundo a jurisprudência. Contudo, coisas de uso corriqueiro e que
não representam qualquer valor – clipes de papel, por exemplo – não podem impor
responsabilidade criminal.
O peculato culposo, do § 2º do artigo 312 do CP, é crime peculiar em que se prevê
uma hipótese única de arrependimento posterior, na forma do § 3º do mesmo dispositivo:
até a sentença transitar em julgado, o agente pode extinguir sua punibilidade pela reparação
do dano, e ainda após a condenação final poderá reduzir a pena à metade se o fizer.

3. Peculato mediante erro de outrem

“Peculato mediante erro de outrem


Art. 313 - Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do
cargo, recebeu por erro de outrem:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Este crime é uma especialização do crime de apropriação indébita mediante erro de


outrem, do artigo 169 do CP, já abordado. Há uma diferença abissal, porém: enquanto na
relação entre apropriação indébita por erro e estelionato, esta se distingue do estelionato
pelo momento em que o agente externa o dolo de haver a coisa para si – na apropriação, o
dolo é posterior à obtenção da coisa, e no estelionato, é antecedente –, no crime do artigo
supra independe: quer o dolo seja anterior ou posterior à obtenção da coisa por erro de
terceiro, o agente incidirá no artigo supra. Por isso é chamado este artigo, também, de
peculato-estelionato.
4. Inserção de dados falsos em sistema de informações e modificação ou alteração não
autorizada de sistema de informações

“Inserção de dados falsos em sistema de informações (Incluído pela Lei nº 9.983,


de 2000)
Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados
falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados
ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem
indevida para si ou para outrem ou para causar dano: (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000))
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983,
de 2000)”

“Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações (Incluído pela


Lei nº 9.983, de 2000)

Michell Nunes Midlej Maron 120


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 313-B. Modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações ou


programa de informática sem autorização ou solicitação de autoridade competente:
(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº
9.983, de 2000)
Parágrafo único. As penas são aumentadas de um terço até a metade se da
modificação ou alteração resulta dano para a Administração Pública ou para o
administrado.(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)”

Estes crimes estão inseridos aqui por serem contra a administração, mas em
absolutamente nada pertinem ao artigo 313 do CP, peculato-estelionato.
É preciso fazer distinção entre o crime do artigo 213-A supra e o do artigo 325, § 1º,
do CP:

“Violação de sigilo funcional


Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva
permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime
mais grave.
§ 1º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou
qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de
informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº
9.983, de 2000)
II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
§ 2º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem:
(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)”

No crime do artigo 313-A, a inserção é feita pelo próprio funcionário; no artigo


supra, se houver inserção, esta é feita por um terceiro que obteve acesso dado pelo
funcionário público, e não por ele mesmo.

5. Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento

“Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento


Art. 314 - Extraviar livro oficial ou qualquer documento, de que tem a guarda em
razão do cargo; sonegá-lo ou inutilizá-lo, total ou parcialmente:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, se o fato não constitui crime mais grave.”

O artigo supra é geral diante do artigo 3º, I, da Lei 8.137/90: se os livros extraviados
são da administração tributária, o crime é deste artigo abaixo:

“Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no
Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI,
Capítulo I):
I - extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a
guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente,
acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo ou contribuição social;

Michell Nunes Midlej Maron 121


EMERJ – CP V Direito Penal V

(...)”

Se a conduta é de “inutilizar”, e é praticada por particular, o crime é o do artgigo


337 do CP:

“Subtração ou inutilização de livro ou documento


Art. 337 - Subtrair, ou inutilizar, total ou parcialmente, livro oficial, processo ou
documento confiado à custódia de funcionário, em razão de ofício, ou de particular
em serviço público:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, se o fato não constitui crime mais grave.”

E se a conduta for praticada por advogado, o crime é o do artigo 356 do CP:

“Sonegação de papel ou objeto de valor probatório


Art. 356 - Inutilizar, total ou parcialmente, ou deixar de restituir autos, documento
ou objeto de valor probatório, que recebeu na qualidade de advogado ou
procurador:
Pena - detenção, de seis a três anos, e multa.”

Quando o particular detém o documento público de que não pode dispor, e o faz, o
crime é o do já visto artigo 305 do CP:

“Supressão de documento
Art. 305 - Destruir, suprimir ou ocultar, em benefício próprio ou de outrem, ou em
prejuízo alheio, documento público ou particular verdadeiro, de que não podia
dispor:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, se o documento é público, e reclusão,
de um a cinco anos, e multa, se o documento é particular.”

6. Emprego irregular de verbas ou rendas públicas

“Emprego irregular de verbas ou rendas públicas


Art. 315 - Dar às verbas ou rendas públicas aplicação diversa da estabelecida em
lei:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.”

No artigo 315, o crime imputa o agente que, dispondo da verba para determinada
despesa pública, realiza despesa diversa – ou seja, gasta o que pode, mas em coisa diversa
da legalmente imposta (desrespeitando a lei de diretrizes orçamentárias, por exemplo).
O crime do artigo 1º, III, do DL 201/67 é especial em relação ao artigo 315 do CP,
quando o agente é prefeito:

“Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao


julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara
dos Vereadores:
(...)
Ill - desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas públicas;
(...)”

Este tipo penal do artigo 315 do CP não deve ser confundido com os crimes dos
artigos 359-A a 359-H do CP. Nestes, o agente contrai obrigações superiores ao erário de
que dispõe, em diversas modalidades – enquanto no artigo 315, como visto, há averba, mas

Michell Nunes Midlej Maron 122


EMERJ – CP V Direito Penal V

aplicada de forma ilegal. Pelo ensejo, vale a pena a simples leitura de todos os artigos
mencionados:

“Contratação de operação de crédito


Art. 359-A. Ordenar, autorizar ou realizar operação de crédito, interno ou externo,
sem prévia autorização legislativa: (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Parágrafo único. Incide na mesma pena quem ordena, autoriza ou realiza operação
de crédito, interno ou externo: (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
I - com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei ou em
resolução do Senado Federal; (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
II - quando o montante da dívida consolidada ultrapassa o limite máximo
autorizado por lei. (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)”

“Inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar (Incluído pela Lei nº


10.028, de 2000)
Art. 359-B. Ordenar ou autorizar a inscrição em restos a pagar, de despesa que não
tenha sido previamente empenhada ou que exceda limite estabelecido em lei:
(Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 10.028, de
2000)”

“Assunção de obrigação no último ano do mandato ou legislatura (Incluído pela


Lei nº 10.028, de 2000)
Art. 359-C. Ordenar ou autorizar a assunção de obrigação, nos dois últimos
quadrimestres do último ano do mandato ou legislatura, cuja despesa não possa ser
paga no mesmo exercício financeiro ou, caso reste parcela a ser paga no exercício
seguinte, que não tenha contrapartida suficiente de disponibilidade de caixa:
(Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.(Incluído pela Lei nº 10.028, de
2000)”

“Ordenação de despesa não autorizada (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)


Art. 359-D. Ordenar despesa não autorizada por lei: (Incluído pela Lei nº 10.028,
de 2000)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 10.028, de
2000)”
“Prestação de garantia graciosa (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Art. 359-E. Prestar garantia em operação de crédito sem que tenha sido constituída
contragarantia em valor igual ou superior ao valor da garantia prestada, na forma
da lei: (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano. (Incluído pela Lei nº 10.028, de
2000)”

“Não cancelamento de restos a pagar (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)


Art. 359-F. Deixar de ordenar, de autorizar ou de promover o cancelamento do
montante de restos a pagar inscrito em valor superior ao permitido em lei:
(Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 10.028, de
2000)”

“Aumento de despesa total com pessoal no último ano do mandato ou legislatura


(Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)

Michell Nunes Midlej Maron 123


EMERJ – CP V Direito Penal V

Art. 359-G. Ordenar, autorizar ou executar ato que acarrete aumento de despesa
total com pessoal, nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato ou da
legislatura: (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000))
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 10.028, de
2000)”

“Oferta pública ou colocação de títulos no mercado (Incluído pela Lei nº 10.028,


de 2000)
Art. 359-H. Ordenar, autorizar ou promover a oferta pública ou a colocação no
mercado financeiro de títulos da dívida pública sem que tenham sido criados por
lei ou sem que estejam registrados em sistema centralizado de liquidação e de
custódia: (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 10.028, de
2000)”

7. Concussão, excesso de exação e corrupção passiva

Os crimes dos artigos 316 e 317 do CP são mais bem abordados em conjunto:

“Concussão
Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.
Excesso de exação
§ 1º - Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria
saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou
gravoso, que a lei não autoriza: (Redação dada pela Lei nº 8.137, de 27.12.1990)
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.137, de
27.12.1990)
§ 2º - Se o funcionário desvia, em proveito próprio ou de outrem, o que recebeu
indevidamente para recolher aos cofres públicos:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.”

“Corrupção passiva
Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
10.763, de 12.11.2003)
§ 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o
pratica infringindo dever funcional.
§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com
infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”

Desde logo, aponte-se artigo especial em relação a estes supra, o 3º, II, da Lei
8.137/90:

“Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no
Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI,
Capítulo I):
(...)

Michell Nunes Midlej Maron 124


EMERJ – CP V Direito Penal V

II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,


ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela,
vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou
cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão,
de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
(...)”

A concussão é exigência da vantagem, e difere da extorsão, do já visto artigo 158 do


CP, é que na concussão jamais existe violência ou grave ameaça.
A distinção entre exigir e solicitar é que na exigência há um condicionamento da
realização do ato de ofício à entrega da vantagem, ou seja, o funcionário dispõe que só
realizará o ato se a vantagem lhe for dada, enquanto na solicitação não há esta subordinação
do ato à obtenção da vantagem – há mera sugestão da vantagem pelo funcionário.
Os artigos 316 e 317 não se correlacionam com o 333, também do CP:

“Corrupção ativa
Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
10.763, de 12.11.2003)
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo
dever funcional.”

O que se passa é que se o agente exige ou solicita vantagem, não há condição lógica
de que o particular possa incidir nas condutas do artigo supra, não tendo como oferecer ou
prometer vantagem. Aquele que é exigido ou solicitado é também vítima do delito, se cede
à exigência ou solicitação criminosa.
Se o administrado oferecer uma contraproposta, porém, a situação se inverte. Se,
tendo sido dele exigido ou solicitado um valor, oferece outro menor, estará cometendo,
agora sim, a corrupção ativa.
O ato de ofício prometido pela vantagem não precisa ser predeterminado, podendo
ser um ato cuja definição ainda esteja por vir. Somente por isso é que é possível que o
agente cometa o crime antes mesmo de estar na função, como permitem os artigos 316 e
317 do CP.
Há uma controvérsia sobre a necessidade de que a vantagem seja econômica, pois
há autores que sustentam que pode ser até mesmo uma vantagem moral. Predomina, porém,
a necessidade de vantagem econômica. De qualquer forma, deve ser vantagem indevida.
O excesso de exação, previsto no § 1º do artigo 316, supra, é a cobrança de tributo
indevido, ou, mesmo que devido, cobrado de forma vexatória. Vale ressaltar que este crime
não é crime tributário, contra a ordem tributária, porque não prejudica o erário – ao
contrário, arrecada-se mais, até. Se o funcionário se apropria da diferença, estará incurso no
§ 2º deste dispositivo.
Os verbos receber ou aceitar vantagem são necessariamente correspondentes à
prática, por outrem, do artigo 333 do CP, pois sem promessa ou oferta não há o que receber
ou aceitar. Por isso, chama-se este crime do artigo 316 de delito de encontro bilateral, mas
note que a recíproca não é verdadeira: a oferta ou promessa, do artigo 333 do CP, se
consuma quer haja aceitação ou não.
O crime do artigo 317, § 2º, não se confunde com o do artigo 319 do CP:

Michell Nunes Midlej Maron 125


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Prevaricação
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-
lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.”

A prevaricação tem móvel íntimo: o agente quer atuar desta forma por vontade
própria, e não por motivação dirigida por um terceiro, corruptor, como no caso do artigo
317.
O § 1º qualifica o artigo 317 do CP, e é chamado de concussão ou corrupção
imprópria, porque, em verdade, não prejudica efetivamente a administração, mas ainda
assim ofende-a na sua moralidade.

Casos Concretos

Questão 1

Em 28/09/2000, MÉVIO, empregado de empresa prestadora de serviços do Detran,


por solicitação de um funcionário deste Órgão e seu amigo, TÍCIO, veio a retirar, mediante
a utilização de senha de acesso restrito deste último (inobstante tenha o mesmo negado tal
circunstância), do banco de dados do sistema informatizado próprio daquele Órgão, três
multas que CAIO havia sofrido, por ter ultrapassado sinal luminoso fechado, o que
importava na contagem de pontos de forma à perda temporária de eficácia de sua
habilitação para dirigir veículos automotores.
a) Algum crime foi praticado pelos envolvidos? Em caso positivo, haveria
coincidência de enquadramento legal no tocante ao comportamento dos mesmos?

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b) MÉVIO pode ser considerado funcionário público para os efeitos penais do


fato?

Resposta à Questão 1

a) Houve significativa alteração no capítulo dos crimes praticados por funcionários


públicos contra a administração pública a partir da edição da Lei 9.983/00, que,
inclusive, inseriu ali diversas novas modalidades delitivas. Em primeiro lugar, o fato
deu-se setenta e quatro dias após a edição desta nova legislação, sendo certo,
contudo, que pelo que dispõe o artigo 4º daquela, a sua vigência estava
condicionada ao transcurso de noventa dias. Assim, mesmo que houvesse
enquadramento típico perfeito, ainda seria forçoso reconhecer-se que não haveria
crime, posto que a novatio legis incriminadora não teria ainda alcançado o seu
período de vigência e eficácia. Certo é que Mévio excluiu, indevidamente, dados
corretos de banco de dados da administração pública, vinculado ao seu sistema
informatizado, e assim o fez com o fim da obtenção de vantagem indevida para
outrem, ou seja, Caio. A questão a ser examinada é se Mévio seria “funcionário
autorizado”, de que fala o artigo 313-A do CP. A resposta deverá ser negativa, tanto
assim que não possuía ele condições de acesso autônomo àquele banco de dados no
sistema informatizado, tendo sido necessária a utilização da senha de acesso restrito
de Tício. Isto nos conduz ao exame da figura descrita nos parágrafos primeiro,
incisos I e II, e parágrafo segundo, do artigo 325 do CP, também originários do
disposto pela Lei 9.983/00. Assim, caso vigente estivesse tal legislação por ocasião
dos fatos em exame, ter-se-ia a prática, em concurso, do delito previsto nesta última
hipótese, na exata medida em que Tício facilitou, mediante fornecimento e
empréstimo de sua senha, o acesso de Mévio, pessoa não autorizada, ao banco de
dados do sistema de informação de um órgão da administração pública, causando
dano a esta última e promovendo a utilização indevida do respectivo acesso restrito.
Caio, desde que tivesse ciência do que se desenvolvia e tivesse moralmente
concorrido para tanto, também responderia pelo mesmo fato, independentemente de
se tratar de particular, já que a condição particular de funcionário publico, mesmo
sendo de caráter pessoal e relativa a Tício e Mévio (segundo o que já se disse acima
e de conformidade com a nova redação dada ao §1º do artigo 327, do CP), seria a
ele transmitida porque elementar do crime (artigo 30 do CP).
b) Caso vigente já estivesse o disposto pela Lei 9.983/00, Mévio poderia ser
considerado funcionário público, para os efeitos penais do fato, diante da alteração
por aquela estabelecida no § 1º do artigo 327 do CP, em que se reconhece uma
condição ampliativa, em face do panorama anterior, para tal conceito

Questão 2

JOCA, funcionário da Prefeitura, convence PAULO a entregar-lhe o valor de R$


100,00 referente ao pagamento de determinado serviço prestado e efetivamente devido pelo
referido devedor. Ocorre que, o citado pagamento deveria ser feito na instituição bancária
indicada na boleta portada por PAULO, e não nas mãos do funcionário JOCA, que
trabalhava no guichê de atendimento do prédio da Prefeitura e sabia perfeitamente o

Michell Nunes Midlej Maron 127


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verdadeiro procedimento de pagamento. De posse do dinheiro, JOCA dele se apropria,


aproveitando-se do erro a que induziu PAULO. Instaurado processo administrativo para
apuração do fato e descoberta a fraude, o evento culminou com a denúncia de JOCA pelo
MP, como incurso nas penas do art. 313 do CP (peculato mediante erro de outrem). Está
correta a denúncia? Por quê?

Resposta à Questão 2

Não, pois o funcionário induziu Paulo em erro e, na hipótese prevista no artigo 313
do CP, o erro deve ocorrer espontaneamente, sendo fruto de uma representação mental que
não corresponde à realidade. Conforme ensina o Prof. Luiz Regis Prado, in “Curso de
Direito Penal Brasileiro”, vol. 4, pág. 349, 2ª Ed., RT: São Paulo, “trata-se de uma
contradição entre a verdade aparente e o fato”. Assim, o funcionário deve responder por
estelionato (artigo 171, caput, CP), pois é nesse dispositivo da Lei Penal que sua conduta
encontra tipicidade.

Questão 3

GILSON é credor de AMARO há dois meses. Amigos de longa data, GILSON


emprestara 300 reais para que AMARO passasse o final de semana com sua nova
namorada em Penedo ficando avençado o pagamento da importância quando do
recebimento do salário de AMARO, cerca de 15 dias depois. Cansado de cobrar o amigo
GILSON deixou a dívida e a amizade de lado. Contudo, tendo sido aprovado no concurso
para a Polícia Militar, toma posse e resolve, diante da nova condição, cobrar a dívida.
Dessa forma encontrando AMARO na rua durante patrulhamento, GILSON desce da
viatura, e em tom ríspido exibindo as algemas, diz para AMARO: ¿você tem até amanhã ao
meio-dia para me pagar, do contrário... espero que tenha entendido¿. Diante dessa ameaça
AMARO vai à 55ª DP (Queimados) e registra a ameaça. A Autoridade Policial, contudo,
entende que os fatos narrados caracterizam concussão, uso da função pública para a
obtenção de vantagem econômica que deveria ser satisfeita por outra forma. A capitulação
dos fatos constante do relatório é então encampada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO que
oferece a denúncia pelo delito mencionado. Tendo em vista as considerações doutrinárias
relativas aos crimes mencionados, está correta a capitulação feita pelo Parquet?

Resposta à Questão 3

A vantagem sendo devida, como era, não permite que haja o crime que foi
imputado. Por isso, o crime seria o de abuso de autoridade, na forma do artigo 3º, “a”, da
Lei 4.898/ 65:

“Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:


a) à liberdade de locomoção;
(...)”

O crime seria de exercício arbitrário das próprias razões, mas como o abuso de
autoridade é especial e mais grave, é estas a capitulação.

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Tema XII

Crimes contra a Administração Pública II. Crimes praticados por funcionário público contra a
administração em geral (segunda parte).1) Crimes previstos nos artigos 319 a 326 do Código Penal. a)
Sujeitos do delito;b) Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4)
Pena e ação penal.

Notas de Aula12

1. Prevaricação

“Prevaricação
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-
lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal:
12
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 22/6/2010.

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EMERJ – CP V Direito Penal V

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa."

O bem jurídico protegido, no crime supra, além do macro – a administração pública


–, é a normalidade funcional da administração. O desempenho de ato de ofício indevido,
ou a sua não feitura em tempo hábil, é uma perturbação da ordem do serviço administrativo
que merece a tutela penal. Veja que o sentimento ou interesse pessoal não é, sozinho,
suficiente para configurar o delito: é preciso que para atendê-los haja a prática ou omissão
indevida; se o ato praticado ou a sua não realização forem devidos, mesmo que o
funcionário os pratique ou renegue por sentimento pessoal, não há crime.
A omissão do funcionário, o retardo ou não realização do ato quando devido, é, por
lógica, sempre indevida, mas se esta omissão não for motivada por interesse ou satisfação
própria do agente, não há crime.
Ato de ofício, pelo ensejo, é aquele que é das atribuições regulares do funcionário
público. Não se confunda com o ato que deve ser praticado sem motivação, o ato ex officio,
porque a prevaricação pode ter por objeto atos ex officio ou motivados, em nada influindo
esta natureza na configuração do crime.
O ato só será irregular se contrariada a expressa previsão de lei, em interpretação
restritiva. A norma penal incriminadora deve ser interpretada restritivamente, e por isso não
há prevaricação quando a conduta for praticada contra disposição em ato normativo, por
exemplo. A contrariedade deve ser contra lei em sentido formal.
Aqui reside a principal diferença deste crime para o de corrupção passiva
privilegiada, do artigo 317, § 2º:

“Corrupção passiva
Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
10.763, de 12.11.2003)
§ 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o
pratica infringindo dever funcional.
§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com
infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”

No crime supra, não existe a necessidade do especial fim de agir, da satisfação de


interesse ou sentimento pessoal, e não há necessidade de que haja contrariedade a lei forma,
bastando que seja quebrado um dever funcional, qualquer que seja a origem do dever.
O crime de prevaricação não admite tentativa nas modalidades negativas – deixar ou
retardar –, mas na modalidade positiva é possível tentativa, em tese.
Quanto ao especial fim de agir, o interesse é uma vantagem qualquer pretendida
pelo funcionário, não se confundindo com a propina, pois se o for o crime é de corrupção. A
vantagem aqui não é econômica, mas de qualquer outra natureza – sexual, inclusive.
Quanto ao sentimento pessoal, pode este ser de qualquer natureza, nobre ou ignóbil –
amizade, amor, ódio, inveja, superioridade, arrogância, etc. A atuação do funcionário
público deve ser impessoal, e por isso não se tolera que se valha de seu mister para atender
a ânimos pessoais. Veja o julgado abaixo:

Michell Nunes Midlej Maron 130


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“RHC 8479 / SP. RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS. Relator


Ministro FELIX FISCHER. Órgão Julgador - QUINTA TURMA. Data do
Julgamento; 03/02/2000. Data da Publicação/Fonte. DJ 28/02/2000.
Ementa: PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS
CORPUS. PREVARICAÇÃO. DENÚNCIA. INÉPCIA. ELEMENTO
SUBJETIVO DO TIPO. TRANCAMENTO DA AÇÃO.
I - No crime de prevaricação (art. 319 do CP), é inepta a denúncia que não
especifica o especial fim de agir do autor, limitando-se a afirmar apenas que o
acusado agiu para satisfazer interesse ou sentimento pessoal através de singela
reprodução dos termos da lei. Precedentes do STF e do STJ.
II - O trancamento de ação por falta de justa causa somente é viável desde que,
para ser reconhecida, prescinda do cotejo do material cognitivo.
Recurso parcialmente provido.”

A desídia do funcionário, a sua má vontade, não são causas suficientes a identificar


prevaricação. São ilícitos administrativos, mas ao se amoldam ao tipo penal, para a maioria
da doutrina e jurisprudência.
Um embate comum da praxe forense consiste na imputação de prevaricação ao
delegado, pelo MP, quando a autoridade policial relata uso de entorpecentes ao final de
inquérito instaurado por requisição do MP para investigação de tráfico. Neste caso, não há,
via de regra, demonstração de interesse ou sentimento pessoal do delegado, e tampouco se
percebe qualquer violação de disposição expressa de lei – o delegado tem
discricionariedade, fundamentada, para formar sua opinião no relatório. Não há
prevaricação.
O crime é formal: mesmo que o interesse ou sentimento pessoal do funcionário não
seja satisfeito, ainda assim se consuma, pelo mero atentado à normalidade funcional da
administração.

1.1. Prevaricação especial


“Art. 319-A. Deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público, de cumprir seu
dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que
permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo: (Incluído
pela Lei nº 11.466, de 2007).
Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.”

O crime é omissivo próprio, consumando-se na inação do agente público que é


responsável por vedar o acesso ao aparelho telefônico pelos presos. O sujeito ativo é o
diretor da penitenciária – qualquer tipo de casa de custódia, em verdade – ou o agente
público que tenha tal dever.
Repare que o dever não é apenas de obstar a entrada: é de vedar acesso, qualquer
que seja a forma: se o preso já está com o aparelho, e o funcionário não lhe toma, está
cometendo o crime.
Neste caso especial de prevaricação, não se exige especial finalidade de agir, como
no artigo 319 do CP. Não é preciso sentimento ou interesse pessoal do funcionário a
motivá-lo.
Se o funcionário público é quem entra com o aparelho no presídio, sua conduta não
é mais omissiva: está agindo comissivamente. Por isso, entra no artigo 349-A do CP, tipo
penal recentemente criado:

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“Art. 349-A. Ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de


aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização
legal, em estabelecimento prisional. (Incluído pela Lei nº 12.012, de 2009).
Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano. (Incluído pela Lei nº 12.012, de
2009).”

Se há propina envolvida, o crime é de corrupção, e não de prevaricação especial,


não incidindo nem no artigo 319-A, nem no 349-A, supra.
O crime, por óbvio, é doloso. A omissão deve ser intencional. Se deixa de vedar
acesso porque foi negligente, apenas, não há o crime, pois não se previu modalidade
culposa.

2. Condescendência criminosa

“Condescendência criminosa
Art. 320 - Deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado
que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não
levar o fato ao conhecimento da autoridade competente:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.”

Este crime nada mais é do que uma forma mais branda de prevaricação. Aqui, há
negativa de efetivação da prática de ato específico de ofício – o ato punitivo ou
comunicação de infração a quem deva punir – , e o sentimento pessoal também é
específico, qual seja, a indulgência, piedade, compaixão – sentimento este que reduz a
reprovabilidade desta prevaricação especial, perante a comum.
Repare que se deixar de agir como determina o artigo supra – deixa de punir ou
comunicar – mas a motivação não é a pura indulgência, o crime é de prevaricação comum.
Omissivo próprio, este crime não admite tentativa, pela unisubsistência da conduta.
A comunicação deve ser imediata, segundo as normas administrativistas, e por isso
qualquer demora injustificada em punir ou comunicar já pode consumar o crime em tela.

3. Advocacia administrativa

“Advocacia administrativa
Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a
administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
Parágrafo único - Se o interesse é ilegítimo:
Pena - detenção, de três meses a um ano, além da multa.”

O artigo 91 da Lei 8.666/93 é especial em relação a este crime supra:

“Art. 91. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a


Administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato,
cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.”
O artigo 3º, III, da Lei 8.137/90 é também uma especialização da advocacia
administrativa comum:

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“Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no
Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI,
Capítulo I):
(...)
III - patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração
fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público. Pena - reclusão, de 1
(um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

Os tipos penais tutelam, aqui, especialmente a impessoalidade da administração


pública. Privilegiar interesse de terceiro perante a administração pública, seja o interesse
legítimo ou ilegítimo, é a conduta do funcionário público que se quer reprimir. Se o
interesse patrocinado for ilegítimo, a conduta é mais reprovável, na forma do parágrafo
único do artigo 321 do CP.
Bom exemplo desse caso é o do fiscal que, logo após autuar um particular, oferece a
ele os serviços de defesa daquela imputação administrativa (defesa que será subscrita por
terceiro, mas sendo feita efetivamente pelo funcionário, de fato).
Veja que o agente não está atuando com corrupção, porque não está cobrando por
ato de ofício seu: o ato que pretende alcançar é o provimento de uma defesa, por exemplo,
ato este que estará a cargo de outro funcionário. Está cobrando realmente para advogar pelo
terceiro, valendo-se dos meios que sua função pública lhe entrega. Repare que se o
funcionário não se vale de sua função, atuando como um despachante qualquer, não há o
crime.
O crime é formal, não sendo necessário ter o sucesso no ato a que se dispôs
patrocinar. Contudo, pode ser tentado, eis que a conduta pode ser fracionada,
plurisubsistente.
O artigo 117, IX, da Lei 8.112/90, estabelece uma exceção importante:

“Art. 117. Ao servidor é proibido: (Vide Medida Provisória nº 2.225-45, de


4.9.2001)
(...)
XI - atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo
quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o
segundo grau, e de cônjuge ou companheiro;
(...)”

É permitido patrocinar estes interesses específicos do dispositivo supra, surgindo


uma causa de exclusão do crime.

4. Violência arbitrária

“Violência arbitrária
Art. 322 - Praticar violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la:
Pena - detenção, de seis meses a três anos, além da pena correspondente à
violência.”

A doutrina em peso, quase unânime, entende que este artigo restou revogado pelo
artigo 3º, “i”, da Lei 4.898/65:

“Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:


(...)

Michell Nunes Midlej Maron 133


EMERJ – CP V Direito Penal V

i) à incolumidade física do indivíduo;


(...)”

O dispositivo especial resolveu, de fato, todos os questionamentos acerca da


péssima redação do artigo 322 do CP. Por isso, a revogação seria a mais correta
interpretação, de fato.
Entretanto, Magalhães Noronha entende que não houve esta revogação, e o que é
pior, sua tese é encampada pelo STF e pelo STJ. Veja o HC 48.083 do STJ, ementa e
íntegra do voto:

“HC 48083 / MG. HABEAS CORPUS. Relatora Ministra LAURITA VAZ. Órgão
Julgador - QUINTA TURMA. Data do Julgamento 20/11/2007. Data da
Publicação/Fonte: DJe 07/04/2008
Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. ARTIGO 322 DO CÓDIGO PENAL.
CRIME DE VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA. EVENTUAL REVOGAÇÃO PELA
LEI N.º 4.898/65. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES DO STF.
1. O crime de violência arbitrária não foi revogado pelo disposto no artigo 3º,
alínea "i", da Lei de Abuso de Autoridade. Precedentes da Suprema Corte.
2. Ordem denegada.”
Voto: De início, cumpre asseverar que, ao contrário do contido na manifestação
ministerial, não há supressão de instância na presente hipótese. É que, tratando-se
de habeas corpus impetrado contra acórdão proferido no julgamento de recurso de
apelação, ocorre o efeito devolutivo amplo, ou seja, é prescindível constar
expressamente no aresto a tese defendida na impetração.
Feita a ressalva, observa-se que o objeto da presente impetração diz respeito à
alegação de que, tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátrias, têm se
manifestado pela completa absorção do tipo do artigo 322 do Código Penal, cuja
pena máxima é de três anos, pelo artigo 3º, alínea "i", da Lei de Abuso de
Autoridade, que tem o limite de seis meses de reclusão.
Tal alegação, contudo, não merece acolhida.
Com efeito, a violência arbitrária, tipificada no art. 322 do Código Penal ("Praticar
violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la"), é entendida como
aquela ilegalidade do funcionário público que, violando o Direito da
Administração Pública, age arbitrariamente, isto é, sem autorização de qualquer
norma legal que lhe justifique a conduta, contra o cidadão. E, por sua vez, não está
compreendida no "atentado à incolumidade física do indivíduo", previsto na alínea
i, do art. 3º, da Lei n. 4.898⁄65, norma referente ao abuso de autoridade ou
exercício arbitrário de poder, pela qual o funcionário, ao executar sua atividade,
excede-se no Poder Discricionário, que facultaria a escolha livre do método de
execução, ou desvia, ou foge da sua finalidade, descrita na norma legal que
autorizava o Ato Administrativo, ocorrendo aí uma lesão de direito que no campo
penal toma forma de abuso de poder ou exercício arbitrário de poder.
A corroborar tal entendimento, calha trazer à colação a lição apresentada por RUI
STOCCO, in verbis:
"(...) No que concerne à revogação do art. 322 do CP pela alínea ‘i' do art. 3º da Lei
4.898, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que tal não ocorreu, como se verá
adiante. (...) Há acirrada discussão jurisprudencial quanto a estar, ou não, revogado
o art. 322 do CP⁄40 pela Lei 4.898⁄65, art. 3º, ‘i'. Em lapidar voto vencedor, o Juiz
Roberto de Rezende Junqueira (Rec. 49.547, de S. Paulo, julgado em 27.9.73) traz
a lume os seguintes esclarecimentos que, em parte, transcrevemos: ‘Todo ato
administrativo, por princípio, é discricionário, por que a Administração Pública
deve manter-se nos princípios da legalidade, a fim de que o Estado, que tutela o
direito, não venha a ser o primeiro a desrespeitar as regras de que tem sob custódia.
‘O Poder Discricionário, que o justifica, caracteriza-se, ensina Pinto Ferreira (RDP

Michell Nunes Midlej Maron 134


EMERJ – CP V Direito Penal V

21⁄24), por uma certa margem de livre escolha entre as várias possíveis soluções ou
por um elenco de resoluções válidas, no limite da lei; neste caso o Código de
Processo Penal. ‘Desse modo dir-se-á que a atividade discricionária do funcionário
público somente é lícita quando há uma norma ou ordem legal que tenha criado
aquela possibilidade de escolha, sempre presente na execução das normas
administrativas, que sofrem as contingências acidentais decorrentes do momento,
das pessoas e das coisas. ‘Não obstante, casos há em que o funcionário, ao
executá-la, excede-se no Poder, ou desvia, ou foge da sua finalidade, ocorrendo aí
uma lesão de direito que no campo penal toma forma de abuso de poder. ‘Essa
figura, nessas condições, pressupõe em primeiro lugar a existência de norma legal
que autorizava o Ato Administrativo; em segundo, o Poder Discricionário, que
facultaria o funcionário a escolher livremente o método de execução e, finalmente,
a escolha que fez, consciente e voluntariamente, excedendo-se, desviando o poder
conferido ou a finalidade do ato. ‘O crime em apreço, outrora definido pelo art.
350 do CP, difere-se da ‘violência arbitrária' definida no mesmo estatuto legal, no
art. 322, porque neste último o funcionário público, violando o Direito da
Administração Pública, age arbitrariamente, isto é, sem autorização de qualquer
norma legal que lhe justificasse a conduta. ‘Nesta última hipótese o réu impõe a
sua vontade, desvinculada de qualquer forma lícita, para praticar violência no
exercício da função ou a pretexto de exercer. ‘O art. 350, acima citado, foi
inteiramente substituído pela Lei 4.898, permanecendo vigente e na sua própria
redação, o art. 322 do dito CP. ‘A jurisprudência, porque não distinguiu com
precisão o ato discricionário, que informa o primeiro, do ato arbitrário, que é o
fulcro do segundo, tem entendimento que essa nova lei também revogara o mesmo
Código na parte concernente ao crime de violência arbitrária. ‘O signatário desse
voto também se confundira a esse propósito, conforme se verifica do JUTACRIM
XIX⁄330 e 331; porém, não é tarde para rever a matéria, decidindo e concluindo de
acordo com o Supremo Tribunal Federal que, nos arestos constantes da RTJ
54⁄304, 56⁄131 e 62⁄266, conclui que o art. 322 do CP não foi revogado pela Lei
4.898⁄65. ‘Disse o Min. Oswaldo Trigueiro, no RE 73.914 de S. Paulo: ‘Não estou
convencido que tenha ocorrido esse fenômeno (o da revogação)' em abono ao que
já fora dito em outra oportunidade: ‘A legislação brasileira não confundiu os
crimes de violência arbitrária com os de abuso de poder; este está definido no
capítulo dos crimes contra a administração da justiça, enquanto que aquele se
encontra entre os delitos praticados por funcionário contra a Administração (RTJ
56⁄131)' (Cf. Juricrim - Franceschini 2⁄126-127). A argumentação do Supremo
Tribunal Federal é no sentido de que o art. 322 do CP não foi revogado pela Lei
4.898⁄65. Afirma que na legislação penal brasileira não se confundem os crimes de
violência arbitrária e de abuso de poder. O crime de abuso de poder está definido
no art. 350 do CP, no capítulo dos crimes contra a administração da justiça. O art.
322, que descreve a violência arbitrária, se encontra entre os delitos praticados por
funcionário público contra a Administração em geral, sendo que a violência deve
ser cometida no exercício de função ou a pretexto de exerce- la. Pode ser
constituída por vias de fato, lesões corporais ou homicídio. Ora, esse crime, punido
além da sanção, corresponde à violência (lesão corporal ou homicídio), com
detenção de seis meses a três anos, não absorvido pelo de abuso de autoridade
previsto na Lei 4.898, cuja pena detentiva é de dez dia a seis meses. Além disso, a
Lei nova não revogou expressamente o art. 322, com ele não é incompatível e nem
regulou exaustivamente o que ele dispunha. E os comentadores mais recentes do
Código Penal vigente não fazem referência à revogação da norma descritiva da
violência arbitrária. Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal é minoritário
na jurisprudência estadual. Em S. Paulo, as seis Câmaras do Tribunal de Alçada
Criminal, embora haja divergência a respeito da questão do abuso de autoridade
com lesão corporal, entendem que o art. 322 do CP se encontra revogado pela Lei
4.898⁄65. (Cf. Revista Justitia - Jurisprudência, do Ministério Público de São
Paulo, vol. I⁄15, 1975). E. Magalhães Noronha, discorrendo sobre o delito de

Michell Nunes Midlej Maron 135


EMERJ – CP V Direito Penal V

‘violência arbitrária' (art. 322), aduz o seguinte, in verbis: ‘Encerremos este


capítulo, dizendo que se tem entendimento que o art. 322 foi revogado pela Lei
4.898⁄65. Assim não pensamos. A finalidade desse diploma foi outra, como se
expõe no n. 1.522-A' (Código Penal, 8ª ed., vol. 4º⁄292, Saraiva, 1976). (...)" (in
LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR INTERPRETADA, Rui Stoco, Ed. RT, 7ª
edição, 2002, páginas 09, 24⁄25).
Favoravelmente à tese da não revogação do art. 322, do Código Penal pelo
disposto no art. 3º, i, da Lei n.º 4.898⁄65, confiram-se, ainda, os seguintes excertos
doutrinários:
"Encerremos este capítulo, dizendo que se tem entendido que o art. 322 foi
revogado pela Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965. Assim não pensamos. A
finalidade desse diploma foi outra, como se expõe no n. 1.511.
(...)
1511. (...)
Como se observa, a lei, no art. 3º, fica em generalidades, e, no art. 4º, quando
define especificamente crimes, não reproduz os incisos I, II e IV do parágrafo
único do art. 350 do Código, que nem por isso estão revogados.
Não se poderá objetar que esses incisos estão compreendidos na disposição
genérica do art. 3.º, pois, se assim fosse, também nele estariam compreendidos -
máxime em suas alíneas a e i - quase todos os delitos previstos no art. 4º,
desnecessários sendo, conseqüentemente, as alíneas a, b, c, d e e deste.
A razão do art. 3º parece-nos outra. É que a lei teve em vista, principalmente, o
processo para os crimes de abuso de autoridade, e, assim, no referido artigo, tratou
de genericamente mencionar delitos tipificados, em regra, em outras leis, que terão
esse rito quando se verificar o referido abuso. Assim, por exemplo, o art. 3.º, b,
alude à inviolabilidade domiciliar, e a transgressão dela é crime definido no art.
150 do Código; conseqüentemente, quando praticado por autoridade, o processo
será o da lei n. 4.898." (in DIREITO PENAL, vol. 4, E. Magalhães Noronha, Ed.
Saraiva, 24ª edição, 2003, páginas. 283 e 414)
"Reina profunda controvérsia jurisprudencial a respeito de achar-se o presente
dispositivo revogado, ou não, pela Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965.
Conforme a primeira orientação, o dispositivo não se acha revogado. É o
entendimento esposado pela Suprema Corte do País, conforme constantes da RTJ,
54:304, 56:131 e 62:266, seguidas por outros Tribunais.
A argumentação é no sentido de que os crimes de violência arbitrária, que fazem
parte integrante dos crimes contra a administração pública e abuso de poder,
inserido este último entre os delitos contra a administração da justiça, não se
confundem em nosso sistema legal. Desse modo, o crime de violência arbitrária,
praticado por funcionário no exercício de sua função ou a pretexto de exercê-la,
não foi absorvido pelo abuso de poder, previsto pela Lei nº 4.898.
A segunda orientação jurisprudencial entende revogado o art. 322 pela Lei nº
4.898. É ela adotada pelo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em reiteradas
decisões (JTACrim, 11:152 e 248, 13:323, 14:372 e 31:340). De acordo com ela, a
lei regulamentou inteiramente os crimes de abuso de poder, gênero a que pertencia
a violência arbitrária. Tal se deu após inúmeras críticas e sugestões de reforma que
se fizeram, na aplicação do art. 322. A nova lei, editada em razão das sugestões e
críticas, permitiu ao julgador maior elasticidade e eqüidade na aplicação da pena,
diante da gravidade dos fatos.
A doutrina acha-se igualmente dividida. Magalhães Noronha e nós entendemos que
a Lei nº 4.898 continua em vigor, mesmo porque não declarou expressamente que
revogava o art. 322; Heleno Fragoso e Damásio de Jesus sustentam que não." (in
CÓDIGO PENAL, Paulo José da Costa Jr., 8ª edição, Ed. DPJ, 2005, p. 1054.)
Em sendo assim, em que pese realmente a existência de divergência doutrinária e
jurisprudencial acerca do assunto, filio-me à corrente adotada pelo Supremo
Tribunal Federal - conforme os precedentes a seguir transcritos -, de que o crime

Michell Nunes Midlej Maron 136


EMERJ – CP V Direito Penal V

de violência arbitrária não foi revogado pelo disposto no artigo 3º, alínea "i", da
Lei de Abuso de Autoridade. Confira-se:
"CRIME DE VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA. O ART. 322 DO CÓDIGO PENAL
NÃO FOI REVOGADO PELA LEI 4.898⁄65. RECURSO CONHECIDO E
PROVIDO." (RE n.º 73.914⁄SP, Rel. Min. OSWALDO TRIGUEIRO, 1ª Turma, DJ
de 11⁄08⁄1972.)
"HABEAS CORPUS. EMENDATIO LIBELLI. SÚMULA 453. ABUSO DE
AUTORIDADE. VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA. 1. A SÚMULA 453 REFERE-SE A
HIPÓTESE DE MUTATIO LIBELLI E NÃO A DE EMENDATIO LIBELLI. 2.
EVENTOS CONFIGURADORES DE ABUSO DE AUTORIDADE E DE
VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA QUE SE REVELAM DISTINTOS,
AUTORIZANDO A CONDENACÃO POR AMBOS OS DELITOS." (HC n.º
63.612⁄GO, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, 2ª Turma, DJ de 25⁄04⁄1986.)
"HABEAS-CORPUS - A DECRETAÇÃO DA EXTINÇÃO DA
PUNIBILIDADE, PELA PRESCRIÇÃO, OU OUTRA CAUSA, NÃO SE
CONFUNDE COM O SIMPLES ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
POLICIAL, POR FALTA DE ELEMENTOS PARA A DENUNCIA. NAQUELA
HIPÓTESE O JUIZ OU O TRIBUNAL PODERÁ DECRETAR, OU NÃO A
PRESCRIÇÃO. A CARACTERIZAÇÃO DO CRIME, DEPENDENTE DE
AMPLO EXAME DA PROVA, E INSUSCETÍVEL DE APRECIAÇÃO EM
HABEAS-CORPUS. NAO FOI ABSORVIDA A FIGURA DA VIOLÊNCIA
ARBITRÁRIA, DO ART. 322 DO CÓDIGO PENAL, PELO CRIME DE ABUSO
DE AUTORIDADE DA LEI 4.898, DE 9.12.1965." (HC n.º 47.837⁄GO, Rel. Min.
ELOY DA ROCHA, 2ª Turma, DJ de 18⁄09⁄1970.)
No mesmo sentido, aliás, é o parecer ministerial:
"[...] após a edição da Lei n.º 4.898⁄65 instaurou-se, inequivocamente, o conflito
aparente de normas, que à jurisprudência coube solucionar.
Hoje, quarenta anos após o advento da Lei Específica, persiste a controvérsia
quanto ao entendimento jurisprudencial no sentido de se saber se foi ou não
revogado pela Lei Nova, o artigo 322 do Código Penal.
A Lei n.º 4.898⁄65 define os crimes de abuso de autoridade, prevendo como ilícito
qualquer atentado à incolumidade física individual. diante desse diploma legal,
passou-se a questionar se ainda vige o art. 322, do Código Penal. Neste sentido
esclarece Júlio Fabrini Mirabete, em sua obra Código Penal Interpretado, Atlas,
2005, pág. 2384: 'Embora já se tenha decidido pela não-revogação do referido
dispositivo do estatuto básico, não mais tem sido ele aplicado por se entender que
prevalece agora a lei especial, tanto que não se tem mais notícias de processos com
fundamento no art. 322, mas sim com base na lei de abuso de autoridade.'
Dessa forma, a doutrina, de modo geral, afirma a revogação, a jurisprudência dos
tribunais na sua maioria, também. No entanto, remanesce incontestável, até este
momento, o posicionamento em contrário do Supremo Tribunal Federal.
Ademais, a Lei n.º 4.898⁄95 foi criada com o objetivo de aumentar o campo de
incidência da repressão penal aos funcionários públicos que exercem suas
atribuições fora dos parâmetros da legalidade e não para criar condições de
impunidade." (fls. 41⁄42)
Ante o exposto, DENEGO A ORDEM.
É como voto.
MINISTRA LAURITA VAZ
Relatora.”

Haveria, portanto, diferença entre violência arbitrária e violência abusiva, sendo


esta última uma violência excessiva, ou seja, o agente tem consigo a razão para agir com
uso de força, mas se excede violentamente, e por isso há o abuso da Lei 4.898/65. No caso
da violência arbitrária, do artigo 322 do CP, o agente não tem qualquer justificativa para
usar a força, ou seja, qualquer violência é indevida, no caso, mesmo que seja moderada

Michell Nunes Midlej Maron 137


EMERJ – CP V Direito Penal V

5. Abandono de função

“Abandono de função
Art. 323 - Abandonar cargo público, fora dos casos permitidos em lei:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.
§ 1º - Se do fato resulta prejuízo público:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 2º - Se o fato ocorre em lugar compreendido na faixa de fronteira:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.”

Tutela-se também aqui a normalidade funcional, especialmente a continuidade do


serviço. O sujeito ativo simplesmente abandona seu cargo, mas este abandono deve ser
realmente configurado, não bastando a mera desídia ou falta ao serviço para tanto.
O abandono deve ser por tempo juridicamente relevante, ou seja, deve ser um tempo
tal que gere risco para a continuidade do serviço.
Veja que o artigo fala em abandono de cargo, e não função, como o nome do
dispositivo o faz. Vale, para a tipificação, o que está escrito no artigo, ou seja, somente é
crime o abandono de cargo, e não da função. Assim, o jurado, ou mesário, que abandona
sua função, não responde por este crime, eis que é função sem cargo público.
Para a maior doutrina, o crime é comissivo, e admite tentativa, mas há quem
defenda ser crime omissivo e unisubsistente, consumando-se quando se preenche o tempo
juridicamente relevante.
É crime formal, não sendo exigido o resultado danoso do abandono; porém, se há
este resultado, o crime se qualifica, na forma do § 1º do artigo em tela.
Se o crime é cometido por servidor aduaneiro, em área de fronteira, é ainda mais
grave, porque a segurança nacional está sendo arriscada. Mas note-se que só comete o
delito o funcionário público que trabalha na proteção das fronteiras, e não qualquer
funcionário público lotado na área de fronteira, mas cuja função em nada pertina à defesa
aduaneira. Por exemplo, um médico de hospital público localizado em cidade fronteiriça
não incidirá nesta qualificadora, se abandonar seu cargo; um policial federal da aduana,
sim.

6. Exercício funcional ilegalmente antecipado ou prolongado

“Exercício funcional ilegalmente antecipado ou prolongado


Art. 324 - Entrar no exercício de função pública antes de satisfeitas as exigências
legais, ou continuar a exercê-la, sem autorização, depois de saber oficialmente que
foi exonerado, removido, substituído ou suspenso:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.”

A tutela da normalidade administrativa, aqui, se concentra na proteção da validade


dos atos administrativos, pois a prática de atos nulos, como serão os do agente não mais
apto a exercê-los, desestabiliza a administração pública de forma relevante.
Se o ato é praticado por particular, há o crime de usurpação da função pública, do
artigo 328 do CP:

“Usurpação de função pública


Art. 328 - Usurpar o exercício de função pública:

Michell Nunes Midlej Maron 138


EMERJ – CP V Direito Penal V

Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.


Parágrafo único - Se do fato o agente aufere vantagem:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.”

Vale mencionar que se quem pratica o ato for um funcionário público, mas em cargo
que lhe é completamente alheio, estará incurso no crime supra, eis que é, aqui, tratado
como um particular qualquer. Por exemplo, o promotor de justiça que se senta na cadeira do
juiz e profere sentença.
Uma ressalva que se deve fazer em relação a este crime do artigo 324 do CP (e que
vale também para o artigo 328, supra), é que se o agente tem a clara intenção de ajudar a
administração pública, não haverá o crime. Se produz o ato antes de poder fazê-lo, ou após
perder atribuição, mas com intenção de colaborar com a administração, estará ausente o
dolo de exercer ilegalmente a função pública.
O crime não precisa de efetivo dano para se consumar, bastando o risco de
desordenar a administração pública.

7. Violação de sigilo funcional

“Violação de sigilo funcional


Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva
permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime
mais grave.
§ 1º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou
qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de
informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº
9.983, de 2000)
II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
§ 2º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem:
(Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)”

O funcionário público que tem ciência de dados sigilosos deve mantê-los assim, não
podendo revelá-los ou facilitar que sejam revelados.
O sigilo é determinado em lei, sendo incidente no crime, por exemplo, aqueles que
liberam questões de prova de concurso público. A rigor, poderia haver subsunção à
prevaricação, mas há o tipo específico acima, que prevalece.
Há ainda outras normas extravagantes que predominam, por serem ainda mais
específicas, como o artigo 94 da Lei 8.666/93; o artigo 10 da LC 105/ 01; os artigos 13, 14
e 21 da Lei 7.170/83; e o artigo 144 do CPM:

“Art. 94. Devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório,


ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:
Pena - detenção, de 2 (dois) a 3 (três) anos, e multa.”

“Art. 10. A quebra de sigilo, fora das hipóteses autorizadas nesta Lei
Complementar, constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de reclusão, de um

Michell Nunes Midlej Maron 139


EMERJ – CP V Direito Penal V

a quatro anos, e multa, aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo
de outras sanções cabíveis.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem omitir, retardar
injustificadamente ou prestar falsamente as informações requeridas nos termos
desta Lei Complementar.

“Art. 13 - Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo


ou grupo
estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos
ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do
Estado brasileiro, são classificados como sigilosos.
Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.
Parágrafo único - Incorre na mesma pena quem:
I - com o objetivo de realizar os atos previstos neste artigo, mantém serviço de
espionagem ou dele participa;
II - com o mesmo objetivo, realiza atividade aerofotográfica ou de sensoreamento
remoto, em qualquer parte do território nacional;
III - oculta ou presta auxílio a espião, sabendo-o tal, para subtraí-lo à ação da
autoridade pública;
IV - obtém ou revela, para fim de espionagem, desenhos, projetos, fotografias,
notícias ou informações a respeito de técnicas, de tecnologias, de componentes, de
equipamentos, de instalações ou de sistemas de processamento automatizado de
dados, em uso ou em desenvolvimento no País, que, reputados essenciais para a
sua defesa, segurança ou economia, devem permanecer em segredo.”

“Art. 14 - Facilitar, culposamente, a prática de qualquer dos crimes previstos nos


arts. 12 e 13, e seus parágrafos.
Pena: detenção, de 1 a 5 anos.”

“Art. 21 - Revelar segredo obtido em razão de cargo, emprego ou função pública,


relativamente a planos, ações ou operações militares ou policiais contra rebeldes,
insurretos ou revolucionários.”
Pena: reclusão, de 2 a 10 anos.
O crime se consuma quando a informação sigilosa chega a terceiros,
independentemente de qualquer resultado danoso.
O § 1º deste artigo 325 não se confunde com os artigos 313-A e 313-B, como já se
pôde antever. Aqui, apenas se permite acesso ao sistema de informações ou banco de dados,
sem alteração de dados ou do próprio sistema. Também não se exige dano, mas se o há, o
crime se qualifica.
O artigo 94 da Lei 8.666/93, supra, também acabou por revogar o artigo 326 do CP:

“Violação do sigilo de proposta de concorrência


Art. 326 - Devassar o sigilo de proposta de concorrência pública, ou proporcionar a
terceiro o ensejo de devassá-lo:
Pena - Detenção, de três meses a um ano, e multa.”

Michell Nunes Midlej Maron 140


EMERJ – CP V Direito Penal V

Casos Concretos

Questão 1

FERDINANDO, Prefeito Municipal, deixou de efetivar os repasses dos recursos


previstos em lei e devidos à Câmara Legislativa, omissão que levou à impetração de
Mandado de Segurança por essa última, tendo sido a segurança concedida, e determinado
que fossem feitos os pagamentos dos mencionados recursos. Ao efetivar os repasses,
FERDINANDO o fez na ordem de 5% da arrecadação do município, sendo certo que a lei
orçamentária municipal estabelecia que o percentual devido ao Poder Legislativo
Municipal era de pouco mais de 9% da receita do município. A Procuradoria-Geral de
Justiça ofereceu denúncia contra FERDINANDO, imputando-lhe a conduta tipificada no
art. 319 do CP, narrando os fatos acima mencionados, e concluindo que o Prefeito agira
com dolo, já que sua omissão não decorrera de erro ou interpretação da sentença, só
podendo haver a conclusão de que ele teria algum interesse pessoal em não cumprir a lei e
nem a decisão judicial. Deve a denúncia ser recebida? Por quê?

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 141


EMERJ – CP V Direito Penal V

A denúncia deve ser rejeitada, porque o fato narrado não é típico.


Veja o julgado abaixo:

“HC 30792 / PI STJ – Rel. Ministro PAULO MEDINA, 6ª TURMA, j. 25/11/2003.


PENAL E PROCESSUAL. PREVARICAÇÃO. DENÚNCIA. DOLO
ESPECÍFICO. DESCRIÇÃO E DEMONSTRAÇÃO. AUSÊNCIA. INÉPCIA.
DEFESA. CERCEAMENTO. O delito prevaricação exige, para sua configuração,
dolo específico, consistente no intuito de satisfazer interesse ou sentimento pessoal
(art. 319, última parte, CP). A denúncia conterá a exposição do fato criminoso com
todas as suas circunstâncias (art. 41 do CPP). A ausência de descrição de qualquer
elementar do tipo penal mutila a acusação, cerceia o exercício do direito de defesa
e torna inepta a denúncia. Precedentes do STJ e do STF. Ordem concedida, para
anular a decisão que recebeu a denúncia, impondo o trancamento da ação penal e a
revogação do afastamento do paciente do cargo de Prefeito Municipal de Jaicós,
imposto pela Câmara Criminal.”

Tema XIII

Crimes contra a Administração Pública III. Crimes praticados por particular contra a administração em
geral. 1) Crimes previstos nos artigos 328 a 337-D do CP. a) Sujeitos do delito;b) Tipicidades objetiva e
subjetiva. 2) Aspectos controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula13

1. Crimes praticados por particular contra a administração pública – introdução

De início, consigne-se que funcionário público pode incidir em crimes deste


capítulo do CP, desde que: o faça de forma dissociada de sua função, quando então atua
como particular; ou não haja crime próprio de funcionário que seja mais adequado.
Por exemplo, não pode o promotor de justiça se encaminhar à delegacia e desacatar
o delegado, porque incidirá no crime de desacato – mesmo que o promotor esteja no
exercício da função.
Antes de tudo, vale definir o conceito de funcionário público, neste ponto em que
ele deixa de ser autor do crime para ser vítima ou objeto. A maioria da doutrina adota
conceito restrito para o funcionário, aqui: enquanto há quem defenda que para configurar
13
Aula ministrada pelo professor Ricardo Ribeiro Martins, em 22/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 142


EMERJ – CP V Direito Penal V

funcionário público como autor o conceito é amplo (havendo quem entenda que é restrito
também no pólo ativo), no caso do crime praticado pelo particular, o conceito de
funcionário é restrito. Mas aqui, igualmente, há duas correntes, havendo quem defenda que
se aplica o § 1º do artigo 327 do CP também neste capítulo. A questão ainda é bastante
controvertida.
Veja o RE 107.813 e o HC 79.823 do STF:
“RE 107813 / RJ - RIO DE JANEIRO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator
Min. FRANCISCO REZEK. Julgamento: 14/03/1986. Órgão Julgador: Segunda
Turma. Publicação: DJ 11-04-1986.
Ementa: FUNCIONÁRIO PÚBLICO. DIRIGENTE DE SOCIEDADE DE
ECONOMIA MISTA. SUJEITO PASSIVO DE DELITO CONTRA A HONRA.
ALCANCE DO ART-327, PAR-1. DO CÓDIGO PENAL. E QUANDO MENOS
RAZOAVEL E ENTENDIMENTO DE QUE A EQUIPARAÇÃO ESTATUIDA
NO ART-327,PAR-1.DO CÓDIGO PENAL NÃO ALCANCA O SERVIDOR
SENAO QUANDO SUJEITO ATIVO DE DELITO. DISSIDIO DOUTRINARIO.
HIPÓTESE DE NÃO-CONHECIMENTO DO RECURSO EXTREMO.”

“HC 79823 / RJ - RIO DE JANEIRO. HABEAS CORPUS. Relator Min.


MOREIRA ALVES. Julgamento: 28/03/2000. Órgão Julgador: Primeira Turma.
Publicação. 02-02-2001.
EMENTA: - "Habeas Corpus". Interpretação do artigo 327 do Código Penal. - O
artigo 327 do Código Penal equipara a funcionário Público servidor de sociedade
de economia mista. - Essa equiparação não tem em vista os efeitos penais somente
com relação ao sujeito ativo do crime, mas abarca também o sujeito passivo. - O
crime previsto no artigo 332 do Código Penal pode ser praticado por particular
para obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto
de influir em ato praticado por funcionário público por equiparação no exercício da
função. "Habeas corpus" indeferido.”

Passemos, doravante, ao estudo dos crimes em espécie.

2. Usurpação de função pública

“Usurpação de função pública


Art. 328 - Usurpar o exercício de função pública:
Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.
Parágrafo único - Se do fato o agente aufere vantagem:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.”

O crime é simples: trata-se da prática de ato de ofício público por um particular.


Protege-se também a normalidade funcional da administração pública.
O ato de apenas se fazer passar por funcionário público, sem com isso praticar
nenhum ato de ofício, não incide aqui, mas sim na contravenção penal do artigo 45 do
Decreto 3.688/41:

“Art. 45. Fingir-se funcionário público:


Pena – prisão simples, de um a três meses, ou multa, de quinhentos mil réis a três
contos de réis.”

Michell Nunes Midlej Maron 143


EMERJ – CP V Direito Penal V

Como já se viu, pode o próprio funcionário público praticar este crime, desde que
usurpe a função pública de outro funcionário público, praticando ato de oficio de outro
funcionário, alheio a suas atribuições.
É crime comissivo plurisubsistente, podendo ser tentado.
Não há crime se o intento do agente, ao praticar o ato de oficio, o faz para ajudar a
administração pública. O dolo deve ser de perturbar a administração.
O parágrafo único do artigo 328 conflita com o estelionato, mas prevalece sobre o
artigo 171 por ser especial, e mais grave.

3. Resistência, desobediência e desacato

Os crimes dos artigos 329, 330 e 331 do CP são mais bem estudados em conjunto:

“Resistência
Art. 329 - Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a
funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio:
Pena - detenção, de dois meses a dois anos.
§ 1º - Se o ato, em razão da resistência, não se executa:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 2º - As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à
violência.”

“Desobediência
Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.”

“Desacato
Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”

É importante antecipar, desde logo, que não há como existirem, em um mesmo


contexto fático, resistência e desobediência, da mesma forma que não é possível haver em
um só contexto furto e roubo – há sempre um ou outro. No cotejo entre resistência e
desobediência, vê-se desde logo que na resistência há o emprego de violência ou ameaça
como elementares alternativas, enquanto na desobediência não. Em síntese: a resistência é
uma desobediência violenta.
Nos dois casos, porém, a tutela é a mesma: a autoridade da administração pública.
O crime de resistência é formal: basta que o agente se oponha à execução do ato
legal, valendo-se de violência ou ameaça, que o crime se consuma, conseguindo ou não que
o ato não se execute. Se efetivamente consegue seu intento – o ato não se realiza – o crime
é qualificado, na forma do º 1º do artigo 329.
A violência deve ser real, pois sempre que o CP menciona apenas o termo violência,
é assim que se interpreta. E a ameaça sequer precisa ser grave, como se vê. Se a violência
restar consumada, o § 2º ainda permite o cúmulo das imputações, em concurso formal
imperfeito (uma só conduta ataca dois bens jurídicos diversos) ou material, a depender da
corrente que se adote – responde pelo crime contra a administração pública e pela lesão, de
qualquer intensidade, contra o funcionário público.
A resistência pressupõe ataque ao funcionário, com violência ou ameaça. O mero
esbravejar, debater-se, não representa resistência, e sim desobediência.

Michell Nunes Midlej Maron 144


EMERJ – CP V Direito Penal V

Sujeito passivo do crime de resistência é o funcionário competente para o ato e


questão, pois se não for competente, o ato não é legal, e por isso não há resistência. O
particular que esteja auxiliando o funcionário público também será vítima do crime, mas
não aquele particular que age sozinho, mesmo podendo, como quando captura alguém em
flagrante delito: sendo vítima de ameaça ou violência, o agente não será imputado por
resistência, mas sim pelo crime de ameaça ou pela lesão que causar.
Se o agente, no curso da resistência, agride três funcionários, por exemplo, ainda
assim responderá por um só crime de resistência, vez que o bem jurídico primário é a
autoridade da administração pública. Responderá, também, por quantas violências tenha
praticado, mas só por uma resistência.
Se o ato da autoridade for ilegal, não há resistência, por atipicidade. Se o ato for
injusto, no entanto, haverá o crime, pois se formalmente legal, mesmo que injusto, ainda
preenche a tipicidade do crime em análise. Na dúvida, deve o agente se submeter ao ato do
funcionário público, pois este goza de presunção relativa de legalidade.
O crime de resistência absorve, naturalmente, o de desobediência, mas pode haver
concurso entre um desses dois e o crime de desacato.
Há um entendimento jurisprudencial forte de que a embriaguez excluiria o dolo do
agente que resiste ou desobedece, porque o embriagado não teria condições de analisar a
legalidade do ato de autoridade que lhe é dirigido. Todavia, é incompreensível a não
aplicação da actio libera in causa neste crime, porque se aplicaria perfeitamente.
No crime de desobediência, resistência pacífica, pode haver conduta comissiva ou
omissiva, a depender da ordem desobedecida, respectivamente de não fazer ou fazer. No
caso de desobediência a ordem de não fazer, comissiva, o crime pode ser tentado.
Não há crime na desobediência à lei, em abstrato, mas sim à ordem legal, ato
concreto de autoridade de funcionário público. Nem mesmo a desobediência a uma
sentença configura o crime, mas sim à ordem proveniente da sentença – o descumprimento
de um mandado, por exemplo.
A ordem, para ser desobedecida, deve ser de conhecimento do agente, por óbvio. Se
não sabe da ordem a si dirigida, não há nem como desobedecê-la, por óbvio.
Só pode ser sujeito ativo do crime de desobediência aquele que tem o dever de
obedecer à ordem. Se não é obrigado a tanto, a ordem não é legal, e por isso não há
desobediência. Bom exemplo é o exame de alcoolemia: se o motorista não é
contitucionalmente obrigado a soprar o bafômetro, não há crime em desobedecer a ordem
do policial que o manda fazê-lo.
Havendo sanção de outra natureza, não penal, para a conduta de desobediência, a
reprimenda penal não será empreendida, a não ser que a própria norma administrativa ou
cível imponha a cumulação, nos moldes da seguinte construção: “tal conduta implica multa
administrativa, sem prejuízo da sanção penal por desobediência”.
A desobediência também pode ser praticada por funcionário público. Veja o REsp.
abaixo:

“REsp 556814 / RS. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro ARNALDO


ESTEVES LIMA. Órgão Julgador - QUINTA TURMA. Data do Julgamento
07/11/2006. Data da Publicação/Fonte: DJ 27/11/2006 p. 307
Ementa: ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO.
PENSÃO POR MORTE. PARCELAS DEVIDAS APÓS O TRÂNSITO EM
JULGADO DO ACÓRDÃO QUE RECONHECE O DIREITO À
INTEGRALIDADE. PRECATÓRIO. DESNECESSIDADE. DECISÃO DE

Michell Nunes Midlej Maron 145


EMERJ – CP V Direito Penal V

CARÁTER MANDAMENTAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. SUJEITO


ATIVO. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. ADMISSIBILIDADE. CRIME DE MENOR
POTENCIAL OFENSIVO. PRISÃO EM FLAGRANTE. IMPOSSIBILIDADE.
LEI 9.099/95. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE
PROVIDO.
1. A decisão que determina o pagamento da integralidade da pensão por morte
possui caráter mandamental, motivo pelo qual a execução das parcelas vencidas
após seu trânsito em julgado independe de precatório. Precedentes.
2. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento firmado no sentido da
possibilidade de funcionário público ser sujeito ativo do crime de desobediência,
quando destinatário de ordem judicial, sob pena de a determinação restar
desprovida de eficácia.
3. Nos crimes de menor potencial ofensivo, tal como o delito de desobediência,
desde que o autor do fato, após a lavratura do termo circunstanciado, compareça ou
assuma o compromisso de comparecer ao Juizado, não será possível a prisão em
flagrante nem a exigência de fiança. Inteligência do art. 69, parágrafo único, da Lei
9.099/95.
4. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.”

Se o ato do funcionário configurar prevaricação, este tipo prevalece. Se a ordem for


de superior hierárquico, não há crime de desobediência, resolvendo-se a questão
administrativamente, no campo disciplinar.
Se o cumprimento da ordem for impossível, o fato é atípico. Por exemplo, se há
mandado de entrega de medicamentos, e o responsável simplesmente não dispõe destes, o
crime não existe.
O delegado que se nega a instaurar inquérito requisitado pelo MP ou pelo juízo
comete o crime de desobediência. É claro que se a requisição for absolutamente infundada,
sem qualquer substância, se torna esta uma ordem ilegal, e por isso seu descumprimento
não seria desobediência.
O indivíduo que está empreendendo fuga e se nega a obedecer a ordem de um
policial que ordena que ele pare não incide em crime de desobediência. A fuga é fato
atípico.
No desacato, por seu turno, o que se tutela é o respeito e prestígio à administração
pública. Desacatar é menosprezar, menoscabar, por palavras, gestos ou atos. O crime de
injúria que normalmente é praticado no cometimento do desacato resta absorvido, mas há
também quem entenda absorvida até mesmo a lesão corporal praticada no desacato –
posição esta minoritária e inacatável.
A presença física do funcionário público é fundamental; sem esta, resta apenas o
crime contra a honra, com aumento de pena, eventualmente apurado. A presença, porém,
não precisa ser face a face: se o agente sabe que o funcionário está ouvindo a ofensa em
uma sala contígua, pela porta, por exemplo, haverá desacato. O que não existe é desacato
por telefone, por exemplo.
A ofensa deve guardar nexo com o exercício da função. Se o teor da ofensa é
completamente desvinculado do exercício funcional do ofendido, não há desacato, havendo
crime contra a honra.
A calúnia não resta nunca absorvida pelo desacato, e Nelson Hungria entende que
apenas a injúria, e nem mesmo a difamação, restaria absorvida.
O mero protesto por um suposto serviço público mal prestado não consiste em
desacato. É um direito do administrado criticar o serviço mal prestado. Também não há
desacato se o funcionário público provoca deliberadamente o indivíduo.

Michell Nunes Midlej Maron 146


EMERJ – CP V Direito Penal V

A mesma exclusão do dolo pela embriaguez é defendida pela doutrina, no desacato:


se o agente não tem condições de julgar o teor da ofensa, não há o crime.
Há quem defenda que o ânimo exaltado afasta o crime de desacato: se a pessoa
estiver extremamente agitada, o desacato não seria uma ofensa dolosamente proferida. É
tese insustentável, de difícil explicação, inclusive, mas existe.
O funcionário público também pode cometer desacato, sem ressalvas, mas há quem
entenda que não há desacato se houver relação de hierarquia – outra tese que causa
estranheza.

4.Tráfico de influência e exploração de prestígio

O crime do artigo 332 é bastante similar ao do artigo 357 do CP, mudando apenas o
tipo de agente público que é alvejado, e o capítulo em que se situa. Por isso, mesmo com
estas diferenças, ao tratar do tráfico de influência, pode-se reprisar as informações para o
crime de exploração de prestígio, com as devidas adaptações:

“Tráfico de Influência (Redação dada pela Lei nº 9.127, de 1995)


Art. 332 - Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou
promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário
público no exercício da função: (Redação dada pela Lei nº 9.127, de 1995)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
9.127, de 1995)
Parágrafo único - A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que
a vantagem é também destinada ao funcionário. (Redação dada pela Lei nº 9.127,
de 1995).”

“Exploração de prestígio
Art. 357 - Solicitar ou receber dinheiro ou qualquer outra utilidade, a pretexto de
influir em juiz, jurado, órgão do Ministério Público, funcionário de justiça, perito,
tradutor, intérprete ou testemunha:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
Parágrafo único - As penas aumentam-se de um terço, se o agente alega ou insinua
que o dinheiro ou utilidade também se destina a qualquer das pessoas referidas
neste artigo.”

Aquela pessoa que “vende” os funcionários públicos, dependendo de qual seja o


funcionário, incide nos crimes supra. A conduta do tráfico de influência, para Nelson
Hungria, é a do “vendedor de fumaça”, uma espécie de estelionato que desmoraliza a
administração pública, jogando-a no descrédito e enlameando o nome do funcionário
público.
È uma “venda de fumaça”, como diz Hungria, porque aquele que promete a
influência não a pode exercer: o agente não conta com poder algum de influenciar o ato do
funcionário público, mas, a pretexto de ter tal influência, tenta obter vantagem. É o termo
“pretexto” que implica a inexistência da influência alegada, porque pretexto é o falso
motivo, em conceito dicionário.
Veja, portanto, que se o agente realmente tiver a influência que alega, o crime
inexiste. O lobby efetivo desnatura o tráfico de influência e a exploração de prestígio. O
fato, do particular que tem esta influência, é atípico.

Michell Nunes Midlej Maron 147


EMERJ – CP V Direito Penal V

Se o estelionatário especial destes artigos alega para a vítima que a vantagem que
está pretendendo também favorecerá o próprio funcionário de quem provirá o ato, a pena é
mais alta, como se vê no parágrafo único de cada artigo.
As penas dos artigos supra são diferentes por um puro erro legislativo: na reforma
do artigo 332, se esqueceram de reformar também o artigo 357.

5. Corrupção ativa

“Corrupção ativa
Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
10.763, de 12.11.2003)
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo
dever funcional.”

O crime em tela guarda íntima correlação com o crime de corrupção passiva, do já


abordado artigo 317 do CP. Na corrupção ativa, o agente criminoso tem a iniciativa do fato,
ou seja, é o particular quem inicia o fato criminoso, buscando o funcionário que estava
inerte e oferecendo-lhe ou prometendo-lhe vantagem qualquer para que este realiza ato de
ofício de forma indevida. Por ser assim, o crime pode subsistir sozinho, sendo
desnecessário para a consumação que o funcionário público aceite a vantagem. Se aceita ou
recebe, estará incurso no artigo 317, enquanto o particular está neste artigo 333; se não
adere à corrupção, o funcionário não comete crime, mas mesmo assim o crime do
particular, aqui, resta consumado. Revejamos o artigo 317 do CP:

“Corrupção passiva
Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
10.763, de 12.11.2003)
§ 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o
pratica infringindo dever funcional.
§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com
infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”

De outro lado, se o funcionário é quem tem a iniciativa, solicitando a vantagem para


praticar ato de ofício, incorre no artigo 317, supra, mas o particular que cede à solicitação
não comete crime algum: não há, no artigo 333, a previsão de conduta nuclear passiva, de
ceder à solicitação de indevida vantagem. O “dar”, como contrapartida do “solicitar” (e o
mesmo vale para o “exigir”, da concussão), é fato atípico.
Se o particular de quem é solicitada a vantagem oferece uma contraproposta, a
situação se inverte: a partir dali há uma oferta de sua parte, e estará incurso no artigo 333.
Nelson Hungria, por sua vez, entende que se oferecer e prometer são típicos do
artigo 333, muito mais o seria o ato de dar a vantagem. Todavia, é uma interpretação que
não pode prevalecer, porque viola diretamente a reserva legal in malam partem, o que não

Michell Nunes Midlej Maron 148


EMERJ – CP V Direito Penal V

se admite. E, mais que isso, o legislador não colocou o verbo dar no crime em questão
propositalmente, porque esta conduta pode ser passiva na prática, como no caso em que
corresponde à solicitação iniciada pelo funcionário, e neste caso o particular não comete
mesmo o crime – a corrupção é ativa, do particular, tendo ele que ser o iniciador da
conduta.
Veja que no artigo 337-B do CP o legislador adotou postura diferente, fazendo dali
constar a conduta de dar expressamente. Assim, a maior prova da atipicidade do ato de dar
no artigo 333 é a previsão expressa de tal conduta no artigo 337-B:

“Corrupção ativa em transação comercial internacional


Art. 337-B. Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida
a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a
praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial
internacional: (Incluído pela Lei nº 10467, de 11.6.2002)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 10467, de
11.6.2002)
Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço), se, em razão da vantagem
ou promessa, o funcionário público estrangeiro retarda ou omite o ato de ofício, ou
o pratica infringindo dever funcional. (Incluído pela Lei nº 10467, de 11.6.2002).”

Outra distinção está no momento da prática do ato que se quer que o funcionário
realize. Magalhães Noronha tem uma frase bastante elucidativa: a corrupção ativa é
“oferecer para que se faça, e não oferecer por que se fez”. Explique-se: se o particular não
promete ou oferece a vantagem antes do ato, para que o funcionário o efetue, mas sim após
a prática deste ato, não há corrupção ativa. A mera recompensa posterior ao ato, por
gratidão, não é crime, nem do particular nem do funcionário – recaindo este, porém, na lei
de improbidade.
O crime do artigo 337-B supriu uma lacuna legal que existia até então: a corrupção
de funcionário estrangeiro não era conduta típica para o particular, sendo que o funcionário
estrangeiro era punido pelas regras de seu próprio país. Hoje, a corrupção ativa de
funcionário público estrangeiro, nos moldes ali previstos – apenas em transação comercial
– é crime do particular, sendo a estrutura deste crime similar á da corrupção ativa comum.
Veja que se a corrupção é de funcionário público estrangeiro que nada tem a ver com
transações comerciais, não há crime do particular.
Há ainda que se mencionar a corrupção ativa especial do artigo 343 do CP, além da
do artigo 337-B, supra. Veja:

“Art. 343. Dar, oferecer ou prometer dinheiro ou qualquer outra vantagem a


testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete, para fazer afirmação falsa,
negar ou calar a verdade em depoimento, perícia, cálculos, tradução ou
interpretação: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)
Pena - reclusão, de três a quatro anos, e multa.(Redação dada pela Lei nº 10.268,
de 28.8.2001)
Parágrafo único. As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é
cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal
ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou
indireta. (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001).”

6. Contrabando ou descaminho

Michell Nunes Midlej Maron 149


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Contrabando ou descaminho
Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o
pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo
de mercadoria:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
§ 1º - Incorre na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 4.729, de
14.7.1965)
a) pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; (Redação
dada pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)
b) pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho; (Redação
dada pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)
c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em
proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial,
mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou
importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no
território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; (Incluído
pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)
d) adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de
atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira,
desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que
sabe serem falsos. (Incluído pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)
§ 2º - Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer
forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive
o exercido em residências. (Redação dada pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965)
§ 3º - A pena aplica-se em dobro, se o crime de contrabando ou descaminho é
praticado em transporte aéreo. (Incluído pela Lei nº 4.729, de 14.7.1965).”

Contrabando é importar ou exportar mercadoria proibida. Não é crime tributário,


mas sim contra a administração pública, porque não há tributação envolvida. Sempre que a
importação ou exportação de um determinado item proibido for especialmente punida em
outro tipo, este prevalecerá, como ocorre no tráfico internacional de drogas; no contrabando
de armas reais e de brinquedo; no contrabando de moeda falsa, do artigo 289, § 1º, do CP;
no contrabando de peles de animais, da Lei de Crimes Ambientais; e no contrabando de
itens protegidos por direitos autorais.
O momento consumativo do crime de contrabando, segundo a corrente majoritária,
é o seguinte: se existir barreira alfandegária, o crime se consuma quando esta barreira for
ultrapassada, na entrada ou saída; se não há barreira, o crime se consuma com a entrada ou
saída do território nacional. Veja o HC 120.586, do STJ:

“HC 120586 / SP. HABEAS CORPUS. Relator Ministro NILSON NAVES. Órgão
Julgador - SEXTA TURMA. Data do Julgamento: 05/11/2009. Data da
Publicação/Fonte: DJe 17/05/2010.
Ementa: Contrabando (condenação). Bolsas e porta-maquiagens (marca
contrafeita). Território nacional (ingresso). Crime (consumação/tentativa). Pena-
base (cálculo). Habeas corpus (correção da pena).
1. Há vozes, e de bom tempo, por exemplo, a de Fragoso nas "Lições", segundo as
quais, "se a importação ou exportação se faz através da alfândega, o crime somente
estará consumado depois de ter sido a mercadoria liberada pelas autoridades ou
transposta a zona fiscal".
2. Assim, também não há falar em crime consumado se as mercadorias destinadas
aos pacientes foram, no caso, apreendidas no centro de triagem e remessas postais
internacionais dos correios.

Michell Nunes Midlej Maron 150


EMERJ – CP V Direito Penal V

3. No cálculo da pena-base, o juiz há de dar toda atenção às circunstâncias


estabelecidas pelo art. 59 do Cód. Penal. Unicamente a elas, é o que a melhor
técnica recomenda.
4. Não se justifica a pena fixada no dobro do mínimo, quando, como no caso, a
sentença só se refere às circunstâncias do crime ? importação de mercadoria
falsificada.
5. Havendo excesso de pena-base na sentença, é admissível a sua correção no
julgamento da ação de habeas corpus.
6. A norma penal prevê a possibilidade de se aplicarem sanções outras que não a
pena privativa de liberdade para crimes de pequena e média gravidade, como meio
eficaz de combater a crescente ação criminógena do cárcere.
7. Ordem concedida para se reduzir a pena e para se substituir a privativa de
liberdade por restritiva de direitos.”

A competência para persecução do contrabando é da justiça federal do local da


apreensão dos bens, na forma da súmula 151 do STJ:

“Súmula 151, STJ: A competência para o processo e julgamento por crime de


contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da
apreensão dos bens.”

O descaminho, por seu turno, é crime de natureza tributária, pois se trata justamente
de iludir a administração tributária na entrada ou saída de item que é permitido e tributado
na transação comercial. É um crime de sonegação fiscal, e por isso se submete à sistemática
dos crimes tributários, como se vê no HC 48.805 do STJ:

“HC 48805 / SP. HABEAS CORPUS. Relatora Ministra MARIA THEREZA DE


ASSIS MOURA. Órgão Julgador - SEXTA TURMA. Data do Julgamento:
26/06/2007. Data da Publicação/Fonte: DJ 19/11/2007 p. 294.
Ementa: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. DESCAMINHO.
EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PAGAMENTO DO TRIBUTO ANTES DO
OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. APLICAÇÃO DO ART. 34 DA LEI N.º
9.249/95. UBI EADEM RATIO IBI IDEM IUS.
1. Não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta
daquela dispensada aos crimes tributários em geral.
2. Diante do pagamento do tributo, antes do recebimento da denúncia, de rigor o
reconhecimento da extinção da punibilidade.
3. Ordem concedida.”

Repare que para ser crime, não basta o mero inadimplemento do tributo. É preciso o
engodo, a fraude ao fisco, para que haja repercussão penal – como indica o verbo “iludir”
do artigo em tela.
Há que se mencionar aqui o entendimento do STF, bastante estranho, que reputa que
o crime comporta bagatela, e mais, até a quantia de dez mil reais. O problema é que o
Estado não acha irrelevante esta quantia sonegada: ele quer obter este valor, mas apenas
não tem estrutura para cobrar tal quantia sem prejudicar a própria máquina. O STJ, mais
corretamente, entendia que a bagatela era até cem reais – quando o crédito fica extinto, e
não suspenso, como no caso dos dez mil; todavia, com o posicionamento do STF, o STJ
acabou por seguir a tese absurda da Suprema Corte, mudando seu entendimento – também
entende bagatelar o crime tributário até dez mil reais. Veja o julgado abaixo:

Michell Nunes Midlej Maron 151


EMERJ – CP V Direito Penal V

“REsp 1112748 / TO. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro FELIX FISCHER.


Órgão Julgador - TERCEIRA SEÇÃO. Data do Julgamento 09/09/2009. Data da
Publicação/Fonte: DJe 13/10/2009.
Ementa: RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA
CONTROVÉRSIA. ART. 105, III, A E C DA CF/88. PENAL. ART. 334, § 1º,
ALÍNEAS C E D, DO CÓDIGO PENAL. DESCAMINHO. TIPICIDADE.
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
I - Segundo jurisprudência firmada no âmbito do Pretório Excelso - 1ª e 2ª Turmas
- incide o princípio da insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem o
limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei nº
10.522/02.
II - Muito embora esta não seja a orientação majoritária desta Corte (vide EREsp
966077/GO, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 20/08/2009), mas em prol da
otimização do sistema, e buscando evitar uma sucessiva interposição de recursos
ao c. Supremo Tribunal Federal, em sintonia com os objetivos da Lei nº 11.672/08,
é de ser seguido, na matéria, o escólio jurisprudencial da Suprema Corte.
Recurso especial desprovido.”

Casos Concretos

Questão 1

JOÃO, barbeiro e cabeleireiro, a pretexto de divulgar seus serviços, estacionou seu


veículo nas proximidades de uma igreja, onde se realizava uma quermesse. Sendo
observado por vigilantes policiais à paisana, foi flagrado quando, pouco após atender
chamado telefônico em seu celular, forneceu a um indivíduo não identificado um pacotinho
suspeito, recebendo dinheiro. Interpelado pelos policiais, que se identificaram como tais,
reagiu investindo com socos e pontapés e, finalmente dominado, foi conduzido à DP onde
foram apreendidos cinco sacolés de cocaína em seu poder, tendo novamente praticado
vias-de-fato contra os policiais, no interior da delegacia. Está configurado crime contra a
Administração Pública? Decida em forma de sentença.
- Ao sentenciar, apresente a fundamentação e o dispositivo correspondentes.
- Responder, justificando, a aceitação ou não dos elementos probatórios da autoria
do crime.
- Fixar a resposta penal final.
- Avaliar a admissibilidade de alternativa à pena privativa de liberdade.

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 152


EMERJ – CP V Direito Penal V

Há resistência, que é infração de menor potencial ofensivo; tráfico; e vias de fato,


que não restam absorvidas ante a diversidade de seu desígnio da resistência. Não caberá, ao
final, a pena alternativa, por conta da intensidade da pena do tráfico, principalmente.

Questão 2

EDILSON foi denunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 334, caput,
do Código Penal. Contra a decisão que recebeu a denúncia, a defesa de EDILSON
impetrou habeas corpus, objetivando o trancamento da ação penal por falta de justa
causa, já que a tributação perfaz o valor de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) e a
conduta do paciente é amplamente aceita nos grandes centros urbanos. Argumento
reforçado, inclusive, pelo fato de o mesmo se achar desempregado, lutando por sua
sobrevivência. Também suscitou a questão de que o paciente já teria sofrido sanção
administrativa (apreensão do bem).Os autos foram conclusos. Você, na qualidade de juiz
da causa, como decidiria? A resposta deve ser fundamentada e as controvérsias devem ser
descompatibilizadas com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do
Superior Tribunal de Justiça.

Resposta à Questão 2

Em posicionamento muito criticado, as Cortes maiores entendem que o crime


tributário em valor inferior a dez mil reais é bagatelar, e por isso não pode haver persecução
penal, por falta de tipicidade material.

Questão 3

PEDRO e PAULO, agindo em comunhão de desígnios, e portando cada qual uma


pistola 9mm, resolveram roubar um automóvel que se encontrava parado em um sinal da
rua Ataulfo de Paiva, no Leblon. Assim, com o emprego das armas, obrigaram o motorista
a sair do veículo e fugiram com o carro. Ao mesmo tempo em que os ladrões fugiam, vinha
passando uma patrulha da polícia militar. A vítima imediatamente alertou os policiais
sobre o roubo, a tempo ainda de os policiais verem o carro dobrando a esquina com a rua
Bartolomeu Mitre. Iniciada a perseguição, houve intensa troca de tiros até o elevado Paulo
de Frontin, local onde o automóvel foi cercado e os roubadores foram presos. Autuados em
flagrante delito, o Ministério Público ofereceu denúncia pelos crimes previstos nos artigos
157, § 2º, I e II, do Código Penal, em concurso material com o delito insculpido no artigo
329 do mesmo Diploma Penal.
a) Está correta a classificação dos fatos empreendida pelo Ministério Público?
b) E se a perseguição tivesse se iniciado, casualmente, uma hora depois da
subtração do veículo?
c) No exemplo dado, caso a perseguição tivesse sido realizada por particulares,
haveria crime de resistência?

Resposta à Questão 3

Michell Nunes Midlej Maron 153


EMERJ – CP V Direito Penal V

a) A classificação empreendida pelo MP não está correta porque, neste caso, não se
configurou o crime autônomo de resistência, cujo bem jurídico vem a ser a própria
administração pública. Conquanto exista dissenso doutrinário e jurisprudencial a
respeito do tema, a nosso sentir, o melhor posicionamento é no sentido de
reconhecer-se que a resistência realizada foi cometida para possibilitar a
consumação do crime de roubo, não tendo havido, portanto, o crime autônomo
praticado contra o Estado. Além disso, igualmente, o roubo não se consumou, uma
vez que os ladrões não mantiveram sobre o objeto material do delito, uma posse
mansa e pacífica, ainda que transitória.
b) Se, ao contrário, a perseguição tivesse se iniciado posteriormente à consumação
do delito, aí sim haveria concurso material com crime de roubo circunstanciado.
c) Caso a perseguição tivesse sido empreendida por particulares, não haveria crime
de resistência, haja vista que o sujeito passivo principal é o Estado e, o secundário, é
o funcionário competente. No crime em exame, portanto, o particular somente
poderá ser sujeito passivo do crime se estiver auxiliando o funcionário competente
para executar uma ordem legal.

Tema XIV

Crimes contra a Administração Pública IV. Crimes contra a administração da justiça. 1) Crimes previstos
nos artigos 338 a 359 do CP. a) Sujeitos do delito;b) Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos
controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula14

1. Crimes contra a administração da justiça – introdução

O bem jurídico protegido, aqui, é um aspecto especial da administração pública,


qual seja, a administração judicial. O bem jurídico é a administração pública no sentido da
regularidade da distribuição da justiça pelo Estado, tendo em vista que o monopólio estatal
visa a garantir tranqüilidade e paz social, sendo perturbados, estes objetivos, por estas
condutas aqui incriminadas.
Os crimes atentam, portanto, contra os atos de prestação jurisdicional e todo o
aparato que os cerca. A justiça, aqui, é vista em seu sentido lato, e não exclusivamente
judicial.
A vítima desses crimes é o Estado. Vejamos, portanto, os crimes em espécie.

2. Reingresso de estrangeiro expulso


14
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 23/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 154


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Reingresso de estrangeiro expulso


Art. 338 - Reingressar no território nacional o estrangeiro que dele foi expulso:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, sem prejuízo de nova expulsão após o
cumprimento da pena.”

O estrangeiro expulso não se confunde com o estrangeiro clandestino, que ingressa


de forma desautorizada no território nacional, o qual é tratado na Lei 6.815/80, o Estatuto
do Estrangeiro, no artigo 125, I:

“Art. 125. Constitui infração, sujeitando o infrator às penas aqui cominadas:


(Renumerado pela Lei nº 6.964, de 09/12/81)
I - entrar no território nacional sem estar autorizado (clandestino):
Pena: deportação.
(...)”

O estrangeiro expulso é aquele que padece de uma ordem presidencial de expulsão,


ordem direta do Presidente da República. Mesmo por isso, Nelson Hungria critica a
colocação deste crime sob a epígrafe de crime contra a administração da justiça, porque é
um crime contra a administração pública em sentido amplo, em nada afetando o exercício
da jurisdição especificamente. Veja o artigo 66 da Lei 6.815/80:

“Art. 66. Caberá exclusivamente ao Presidente da República resolver sobre a


conveniência e a oportunidade da expulsão ou de sua revogação. (Renumerado
pela Lei nº 6.964, de 09/12/81)
Parágrafo único. A medida expulsória ou a sua revogação far-se-á por decreto.”
O crime é de mão própria, personalíssimo: só o próprio estrangeiro expulso pode
reingressar no país, e com isso cometer o delito.
É um crime doloso, mas não se admite tentativa, porque mesmo que ela fosse
possível, por ser fracionável a execução, se não chega a acontecer o reingresso
efetivamente, o fato que seria tentado é irrelevante ao direito brasileiro, porque acontecido
fora do limite territorial nacional, por estrangeiro – não recaindo nas exceções da
extraterritorialidade.
O crime é de competência da justiça federal, porque se trata, como dito, de
descumprimento de ordem do Presidente da República.
É crime permanente, consumando-se no exato momento do reingresso e enquanto
estiver no território brasileiro. Assim, onde quer que seja capturado, será flagrado, e ali se
perseguirá, sendo competente o juízo federal do local.

3. Denunciação caluniosa

“Denunciação caluniosa
Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial,
instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade
administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente:
(Redação dada pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.
§ 1º - A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve de anonimato ou de
nome suposto.
§ 2º - A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.”

Michell Nunes Midlej Maron 155


EMERJ – CP V Direito Penal V

A denunciação caluniosa deve alvejar pessoa determinada. Imputações sem


apontamento de autoria recaem no artigo 340 do CP, tópico seguinte.
O crime só comporta dolo direto, por conta da expressão “de que o sabe inocente”,
constante do caput. Não se admite dolo eventual.
A doutrina reputa este delito como uma forma de calúnia judiciária, pois é uma
calúnia agregada a uma comunicação oficial à autoridade. É assim um crie complexo, em
sentido amplo: trata-se de uma imputação mendaz, mentirosa, de crime a alguém que se
sabe inocente, visando provocar a atuação dos órgãos de persecução penal em face daquela
pessoa.
Trata-se também de um crime pluriofensivo, pois atinge a administração pública e
também a honra da pessoa imputada – é uma calúnia, afinal.
Se o agente comunica ao delegado o cometimento de crime que sequer existiu,
imputando-o a alguém, é claro que está cometido o crime. Mas se o agente comunica ao
delegado a ocorrência de um roubo, sabedor de que o que o agente imputado cometeu foi
um furto (que realmente ocorreu), ainda assim há o crime em tela: se o fato que está sendo
descrito não foi praticado pelo imputado, e o denunciante é sabedor disso, mesmo tendo
havido outro crime, a denunciação é caluniosa (sendo o crime real mais grave ou mais
brando, não importa).
Diferente é a imputação falsa não de um crime diverso, como no exemplo do roubo
acima, mas de uma qualificadora ou de uma causa de aumento de pena: não há denunciação
caluniosa, nesse caso. Veja: se o agente denuncia que o imputado cometeu crime de roubo
com uso de arma de fogo, sabendo que o roubo não envolveu emprego de arma, está apenas
imputando falsamente a qualificadora, e a tipicidade formal exige imputação de crime para
se configurar. O mesmo vale para a imputação de causa de aumento de pena: é também
atípica.
Advogados, membros do MP, juizes, e delegados podem cometer este crime, desde
que fique evidente o dolo de causar a investigação indevida. O exercício do seu efetivo
múnus, mesmo quando a investigação demonstrar que ao final não havia o crime imputado,
sem o dolo de caluniar mediante a instauração do procedimento investigativo, não há crime.
Só haverá denunciação caluniosa se a autoridade ou o advogado sabe que o que imputa é
falso.
A imputação de falso ato infracional análogo a crime a um adolescente preenche a
tipicidade da denunciação caluniosa? Há duas correntes a disputar esta resposta. Damásio
defende que o fato tem que ser típico e ilícito, e por isso a culpabilidade – momento em que
se verifica a inimputabilidade penal – é irrelevante, e por isso haveria a denunciação
caluniosa também neste caso. Nelson Hungria defende posição similar, entendendo que
para que haja denunciação caluniosa, basta que o fato seja descrito como crime, e seja
falsamente imputado ao menor.
Se o fato não puder dar ensejo à instauração de investigação penal porque a
narrativa vem complementada de uma excludente de ilicitude, mesmo que tudo seja falso,
não se preenche a tipicidade. Veja um exemplo: se o agente narra que o imputado “matou
uma pessoa, mas o fez em legítima defesa”, sabendo que não houve homicídio algum, não
há denunciação caluniosa, porque não haverá persecução. Outro exemplo seria a narrativa
falsa de um crime já prescrito. Todavia, em ambos os casos, haverá o crime de calúnia, que
não depende da instauração de investigação para se configurar.

Michell Nunes Midlej Maron 156


EMERJ – CP V Direito Penal V

A instauração efetiva do inquérito policial é condição para consumar a denunciação


caluniosa? Há quatro correntes.
Nucci defende que a denunciação caluniosa precisa, para se configurar, de um
indiciamento, pois até então aquela pessoa sequer está sendo formalmente investigada – é
preciso o inquérito com o indiciamento, ou a ação penal diretamente proposta.
Para Nelson Hungria, é necessário que haja apenas a instauração de uma
investigação – na polícia civil, por exemplo, uma verificação de procedência de
informações, ou verificação preliminar de inquérito (VPI). Não é necessária a efetiva
instauração do inquérito, bastando que haja a mobilização indevida, mas formal, da
máquina investigativa.
Para Pierangelli, em posição que é a acatada na jurisprudência do STF e STJ, é
preciso a instauração formal do inquérito, não bastando a VPI, mas também não é exigido o
indiciamento.
Capez e Mirabete entendem que se o crime é contra a administração da justiça,
qualquer ato que as autoridades venham a conduzir em função da denunciação já será uma
perturbação da justiça, e por isso qualquer ato de investigação empreendido já consuma o
delito.
Veja que há uma diferença nas posições de Capez e Hungria: para Nelson, é preciso
que haja uma investigação formal, sendo dispensado o inquérito e o indiciamento, mas que
haja a instauração de ao menos uma VPI (ou qualquer ato investigativo formal). Para Capez
e Mirabete, não é exigida qualquer formalidade: o mero ato de o policial sair da delegacia
para ir até o local, sem qualquer registro formal, consuma a denunciação caluniosa.
É claro que a produção de um termo circunstanciado de ocorrência, nas infrações de
menor potencial ofensivo, também pode consumar o delito – é o equivalente ao inquérito.
Quando há o intento em cometer denunciação caluniosa no dolo do agente, mas
acontece de o imputado realmente ter cometido o crime, não há tipicidade. Entenda: o
agente pretendia cometer a denunciação caluniosa, mas sem que soubesse acabou por
denunciar fato verdadeiro. Neste caso, o que se dá é a denunciação caluniosa putativa: o
agente imputou fato que acredita não ter ocorrido, mas que de fato ocorreu.
A doutrina divergia quanto à natureza do processo que seria instaurado pela
denunciação, acerca da aptidão para configurar-se denunciação caluniosa quando o
processo resultante não fosse criminal. A atual redação do artigo 339 do CP afasta a
divergência: o processo não precisa ser exclusivamente criminal, consumando-se o crime
na instauração de inquérito civil ou mesmo administrativo. Mesmo assim, Capez é o único
que ainda entende que somente a provocação de processos criminais indevidos pode
configurar denunciação caluniosa. Prevalece, portanto, a posição de Pierangelli, de que
processos judiciais são quaisquer, criminais ou cíveis.
Diante da inclusão do processo por improbidade administrativa como resultado
consumativo da denunciação caluniosa, nesse artigo 339 do CP, a doutrina questionou se o
artigo 19 da Lei de Improbidade Administrativa, Lei 8.429/92, teria sido revogado. Veja:

“Art. 19. Constitui crime a representação por ato de improbidade contra agente
público ou terceiro beneficiário, quando o autor da denúncia o sabe inocente.
Pena: detenção de seis a dez meses e multa.
Parágrafo único. Além da sanção penal, o denunciante está sujeito a indenizar o
denunciado pelos danos materiais, morais ou à imagem que houver provocado.”

Michell Nunes Midlej Maron 157


EMERJ – CP V Direito Penal V

O artigo 19 supra ainda subsiste: seu enquadramento é especial apenas nos casos em
que o fato comunicado for exclusivamente ato de improbidade, ou seja, não for crime que
consubstancia improbidade. Sendo crime e improbidade, a tipicidade é a do artigo 339 do
CP; sendo a imputação falsa de um fato que se define unicamente como ato de
improbidade, e não crime, a capitulação do denunciante é no artigo 19, supra.
Por conta da previsão de investigações administrativas no artigo 339 do CP, a
representação caluniosa contra algum servidor público que leve à instauração de processo
administrativo consiste no crime de denunciação caluniosa.
Se em decorrência da denunciação caluniosa forem instaurados dois procedimentos
investigativos ou mais, há um só crime, pois o bem jurídico é a administração da justiça. A
pena será majorada, decerto, pelas consequências do delito, mas o crime é único.
A denunciação caluniosa absorve a calúnia praticada no mesmo contexto, pois trata-
se de um crime pluriofensivo, que já atinge a honra quando cometido, nestes moldes
caluniosos. Já a difamação e a injúria não seriam absorvidas, porque são modos diversos de
ataque ao bem jurídico e não são meios de execução da denunciação caluniosa. Há que se
atentar, porém, que se as ofensas à honra forem cometidas todas num mesmo ato, prevalece
a denunciação caluniosa somente.
Para que a denunciação seja considerada efetivamente caluniosa, é necessário que o
inquérito aberto em razão da denunciação tenha sido arquivado, ou não há esta relação de
prejudicialidade concreta? Aqui se observa novamente a controvérsia acerca da
consumação deste crime, com as quatro correntes já mencionadas mantendo suas posições.
Vejamos.
Hungria defende que mesmo que a existência de inquérito não seja fundamental
para consumar o delito, não existindo a prejudicialidade, é preciso que, se instaurado, seja
arquivado, para o fim de evitar contradições teratológicas, pois pode acontecer, por
exemplo, de haver a condenação por denunciação caluniosa, e o inquérito que esta originou
contra o caluniado findar depois, azoar ação penal, e haver condenação – absurdo dos
absurdos.
Mirabete entende que não há qualquer prejudicialidade, porque o crime de
denunciação pode ser provado por qualquer meio, e não apenas pela extinção do inquérito.
É posição estranha, pois ignora a ponderação de Hungria sobre as possíveis decisões
contraditórias que podem vir a ocorrer.
Capez defende que não é preciso o arquivamento, e que de fato podem haver
decisões contraditórias, mas mesmo assim não se pode reputar que haja prejudicialidade. É
posição igualmente estranha.
Pierangelli, por fim, entende que o inquérito pode prosseguir, pode haver denúncia,
mas não poderá haver sentença contra o denunciante até que haja a apuração da imputação
que ele fez ao supostamente caluniado.
O ideal, em relação à denunciação caluniosa, é aguardar o arquivamento do
inquérito ou a absolvição do acusado pelo denunciador, evitando assim que haja decisões
contraditórias.
Denúncia anônima pode ser meio para a prática do crime de denunciação caluniosa?
A resposta passa por saber se a denúncia anônima pode gerar instauração de procedimento
investigativo. O ministro Marco Aurélio entende que como a CRFB veda o anonimato, é
inadmissível a instauração de inquérito para apurar denúncia anônima, mas não é posição
razoável. Hungria defende que a autoridade pública não pode deixar de investigar qualquer

Michell Nunes Midlej Maron 158


EMERJ – CP V Direito Penal V

indício de crime, e por isso vai ser possível a instauração da investigação por este meio.
Todavia, como é um meio que dificulta a persecução do eventual caluniador, é mais
reprovável, e por isso há a causa de aumento de pena do § 1º deste artigo 339 do CP.

4. Comunicação falsa de crime ou de contravenção

“Comunicação falsa de crime ou de contravenção


Art. 340 - Provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de crime
ou de contravenção que sabe não se ter verificado:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.”

A diferença fundamental deste crime para o do artigo 339, a denunciação caluniosa,


é que enquanto na denunciação se alveja pessoa determinada pela imputação, neste crime
supra a comunicação não aponta pessoa certa: a comunicação é genérica, apontando crime
ou contravenção que não existiu, mas sem imputar autoria.
O crime é doloso, mas não é exigido o ânimo especial de perturbar a administração
da justiça, para Damásio: mesmo que o agente provoque a ação da autoridade por mero
animus jocandi, ainda assim haverá o crime consumado. Nelson Hungria, por seu turno,
exigia o especial fim de agir consubstanciado na intenção de perturbar a administração da
justiça.
A autoridade a que o artigo se refere, para Nelson Hungria, é tão somente o
delegado. A comunicação de fato típico a um juiz, por exemplo, não consuma o crime, a
não ser que o juiz requisite a instauração do inquérito. O restante da doutrina, porém,
entende que no termo “autoridade” estão incluídos também o juiz e o parquet.
O agente que comunica um falso crime para o fim de obter pagamento de seguro
está cometendo apenas o crime de estelionato, porque a comunicação do falso crime é o
meio fraudulento de que se valeu o agente para cometer o delito. Esta é a posição de
Hungria, bastante coerente.

5. Auto-acusação falsa

“Auto-acusação falsa
Art. 341 - Acusar-se, perante a autoridade, de crime inexistente ou praticado por
outrem:
Pena - detenção, de três meses a dois anos, ou multa.”

Este crime doloso também consiste na movimentação da máquina judiciária para a


persecução de quem não é o criminoso, perturbando a administração judiciária. A CRFB
reprova o erro judiciário, e a conduta de se auto incriminar é indutora deste erro.
Suponha-se que o agente tenha cometido um roubo, e se dirige à delegacia se auto-
acusando de furto, para ter persecução por crime mais brando: há crime de auto-acusação
falsa ou há mero exercício de defesa? Nucci entende que há o crime, porque o direito de
defesa não inclui a perturbação da máquina administrativa judiciária.

Michell Nunes Midlej Maron 159


EMERJ – CP V Direito Penal V

Casos Concretos

Questão 1

CAIO, cidadão simples, analisando balancete sobre a aplicação de verbas


públicas, concluiu que determinado Secretário Municipal as havia aplicado indevidamente
e comunicou o fato ao Ministério Público, dando causa à instauração de uma ação de
improbidade administrativa. Realizadas as investigações apurou-se que as verbas foram
empregadas regularmente.
a) CAIO cometeu algum crime?A solução se alteraria, caso:
b) CAIO fosse um especialista e tivesse certeza de que as verbas tinham sido
regularmente aplicadas?
c) O equívoco de CAIO fosse evidente e o Promotor de Justiça, apesar da certeza
quanto a regularidade no emprego das verbas, providenciasse a instauração da
ação de improbidade administrativa?
d) CAIO, tivesse certeza da inocência do Secretário Municipal e se utilizasse de
serviço de "disque denúncia", ocultando sua identidade?
e) CAIO, na dúvida, comunicasse o fato a um advogado, que sendo adversário
político do Secretário, mesmo ciente de sua inocência, comunica o fato ao
Ministério Público?
f) Uma pessoa, mediante a promessa de dinheiro, prestasse depoimento
incriminando o Secretário?
g) Na hipótese anterior, fosse um contador que realizasse uma perícia?

Michell Nunes Midlej Maron 160


EMERJ – CP V Direito Penal V

h) O Promotor fosse ameaçado para instaurar o procedimento contra o Secretário?


i) O advogado contratado pelo Secretário, aliado aos seus inimigos, perdesse
importante prazo processual?

Resposta à Questão 1

a) Não. Caio não agiu com dolo, acreditava que as verbas teriam sido aplicadas
indevidamente. A questão visa colher argumentos sobre a boa-fé na comunicação de
fatos considerados ilícitos e a função da elementar do tipo “de que o sabe inocente”.
b) Sim, teria agido com dolo. Estaria incurso nas penas do artigo 339 do CP;
c) O promotor e outras autoridades podem ser autores do delito.
d) Debater a causa de aumento de pena do artigo 339, § 1º, do CP. A causa de
aumento é exigida em razão da maior dificuldade na apuração da denunciação
caluniosa.
e) A denunciação caluniosa foi praticada pelo advogado.
f) Falso testemunho com aumento de pena (artigo 342, § 2º, CP).
g) Mesma solução. Em ambos os casos quem prometeu o suborno responde pelo
artigo 343 do CP. Exceção dualista.
h) Trata-se do crime do artigo 344 do CP. O artigo 147 é subsidiário.
i) Patrocínio infiel, do artigo 355 do CP:

“Patrocínio infiel
Art. 355 - Trair, na qualidade de advogado ou procurador, o dever profissional,
prejudicando interesse, cujo patrocínio, em juízo, lhe é confiado:
Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa.”

O delito admite a modalidade comissiva por omissão. Para a configuração do delito


deve ficar demonstrada ainda a existência de dano, conforme a elementar
“prejudicando interesse”.

Questão 2

ANTONIA, empregada de uma padaria estabelecida em Itaperuna, mãe da menor


CRISTINA, vive em união estável com CARLOS, residindo naquele mesmo município. O
Ministério Público ajuizou ação penal pública atribuindo a ANTONIA a violação do
preceito proibitivo contido na regra do artigo 342, § 1º do CP. Os fatos narrados na
denúncia são os seguintes:Em 28 de maio de 2006, arrolada como testemunha pelo MP,
devidamente compromissada, em audiência realizada no processo em que seu amásio
responde por crime de atentado violento ao pudor cometido contra CRISTINA, sua filha
menor, ANTONIA teria feito afirmação falsa, protegendo mentirosamente seu amásio, em
detrimento de sua condição de mãe. Em sua defesa, ANTONIA aduz ter sido ludibriada na
delegacia e sendo pessoa simplória, de poucas letras, não chegou a ler as declarações
iniciais quando do incidente com sua filha, mas em momento algum agiu de má-fé,
devendo prevalecer a versão que inocenta CARLOS. Pergunta-se:
a) Configura-se o crime de falso testemunho?
b) Comente o entendimento jurisprudencial acerca da possibilidade da prática do
crime: pela companheira do réu; e pela mãe da vítima.

Michell Nunes Midlej Maron 161


EMERJ – CP V Direito Penal V

c) Qual o objeto jurídico da tutela penal em questão?


d) Verifica-se, no caso, o especial fim de agir?

Resposta à Questão 2

Veja o seguinte julgado:

“ACrim 1999.050.02486 TJRJ – Rel. DES. MURTA RIBEIRO, j. 15/02/2000, 2ª


CCrim. FALSO TESTEMUNHO - FATO TIPICO DO ARTIGO 342
PARAGRAFO 1º DO CODIGO PENAL- SENTENCA ABSOLUTORIA QUE SE
APRESENTA CONFORME A PROVA PRODUZIDA - RECURSO
MINISTERIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. SE, CONFORME
COMPROVADO NOS AUTOS, A ALEGACAO FEITA EM JUIZO NAO SE
REVESTIA DA INTENCAO DE OFENDER A ADMINISTRACAO PUBLICA,
NO PARTICULAR ASPECTO DA ADMINISTRACAO DA JUSTICA, POR
ISSO QUE SE DESMENTIA O NAO AFIRMADO NA DELEGACIA
POLICIAL, CORRETO O JUIZO ABSOLUTORIO. INVIAVEL A TESE
RECURSAL DE QUE VERDADEIRA SERIA A VERSAO INICIAL
TRANSCRITA NO DEPOIMENTO POLICIAL, SE, NA VERDADE, SEMI-
ANALFABETA E SIMPLORIA A RECORRIDA E QUE NAO CHEGOU A LER
AS DECLARACOES INICIAIS CORNO AFIMOU. ADEMAIS, A PROPRIA
VITIMA NO PROCESSO ORIGINARIO AONDE SE TERIA VERIFICADO O
PERJURIO AQUI E AGORA PERSEGUIDO, ANTES, JA HAVIA
INOCENTADO SEU PAI. NA VERDADE A FALSIDADE ESTA NA MA FE, E,
NAO, NA SIMPLES CONTRADICAO. RECURSO MINISTERIAL, POIS, A
QUE SE NEGA PROVIMENTO.”

Tema XV

Crimes contra a Administração Pública V. Crimes contra as finanças públicas. 1) Crimes previstos nos
artigos 359-A a 359-H do CP. a) Sujeitos do delito;b) Tipicidade objetiva e subjetiva. 2) Aspectos
controvertidos. 3) Concurso de crimes. 4) Pena e ação penal.

Notas de Aula15

1. Falso testemunho ou falsa perícia

“Falso testemunho ou falsa perícia


Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha,
perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo,
inquérito policial, ou em juízo arbitral: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de
28.8.2001)
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
§ 1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado
mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir
efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da
administração pública direta ou indireta.(Redação dada pela Lei nº 10.268, de
28.8.2001)
§ 2º O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o
ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.(Redação dada pela Lei nº 10.268,
de 28.8.2001).”

15
Aula ministrada pelo professor José Maria de Castro Panoeiro, em 23/6/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 162


EMERJ – CP V Direito Penal V

Na análise deste delito, elegemos apenas a testemunha como autora, pois tudo que
for dito em relação a esta serve para os demais agentes ativos ali nomeados – perito,
contador, tradutor ou intérprete.
A teoria que se adota, no nosso ordenamento, para definir o que seja o falso
testemunho é a subjetiva: é falso aquela declaração diversa do que o depoente percebeu, ou
seja, contrária ao que sabe, e não aquilo que é diferente do que efetivamente ocorreu, mas
que está na mente do depoente como se verdade fosse. Não é falso testemunho o
depoimento narrando fatos diversos dos realmente ocorridos, se a testemunha acredita no
que está dizendo.
O crime é de mão própria, não podendo ser cometido por ninguém que não o
próprio depoente, e pessoalmente.
O falso testemunho, mesmo em contendas de interesse eminentemente privado, é
crime que afeta a coletividade, pois que perturba a condução da justiça, o interesse público
na veracidade do depoimento.
Em relação ao sujeito ativo, o artigo 202 do CPP determina que todos podem ser
testemunhas, e os artigos 206 e 207 do mesmo diploma tratam das especificidades
referentes a proibidos ou suspeitos. Veja:

“Art. 202. Toda pessoa poderá ser testemunha.”

“Art. 206. A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor. Poderão,


entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim em linha reta,
o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do
acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a
prova do fato e de suas circunstâncias.”

“Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério,
ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte
interessada, quiserem dar o seu testemunho.”

Se alguém proibido de depor vier a fazê-lo, comete o crime do artigo 154 do CP:

“Violação do segredo profissional


Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão
de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a
outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”

Um padre que revela segredos do confessionário está incurso no crime acima. Se o


confidente permite, porém, que o padre testemunhe sobre sua confissão, o artigo supra não
se aperfeiçoa.
O artigo 203 do CPP trata do compromisso de veracidade no depoimento, e o 208
de sua inexigibilidade:

“Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade
do que souber e lhe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu
estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é
parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer
delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as
circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade.”

Michell Nunes Midlej Maron 163


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Art. 208. Não se deferirá o compromisso a que alude o art. 203 aos doentes e
deficientes mentais e aos menores de 14 (quatorze) anos, nem às pessoas a que se
refere o art. 206.”

Quando aquele de quem não se colhe compromisso vier a testemunhar por qualquer
motivo, ele poderá cometer o crime de falso testemunho, porque o fato de não precisar
prestar compromisso não lhe permite mentir em prejuízo da administração. O compromisso
não é elemento do crime de falso testemunho. Nucci, porém, defende que sem o
compromisso de dizer a verdade, o dever de veracidade não surge, e por isso não há como
quebrá-lo, incidindo na conduta do falso testemunho – mas é minoritário, porque o dever de
dizer a verdade existe para todos, eis que de todos é exigida a cooperação com a justiça,
não surgindo da prestação do compromisso, como defende Nucci.
Dessarte, para Pierangelli, STF e ETJ, se presta testemunho, como testemunha
fidedigna ou informante, e mente dolosamente, o crime existe, não se diferençando entre as
categorias de depoentes para tanto. O compromisso seria uma exortação moral, e não a
fonte da obrigação de dizer a verdade, a qual sempre existe para depoentes (exceto o
próprio réu, por óbvio, que pode mentir à vontade em sua defesa).
Vale dizer, porém, que há alguns julgados, no TJ/RS e TJ/SP, que acolhem a tese de
que os descompromissados não cometeriam o crime, mas são julgados esparsos. E veja um
julgado do STJ, recente, altamente controverso:

“HC 92836 / SP. HABEAS CORPUS. Relatora Ministra MARIA THEREZA DE


ASSIS MOURA. Órgão Julgador - SEXTA TURMA. Data do Julgamento:
27/04/2010. Data da Publicação/Fonte: DJe 17/05/2010.
Ementa: PENAL E PROCESSUAL. FALSO TESTEMUNHO. AÇÃO PENAL.
TRANCAMENTO. RELAÇÃO DE AFETIVIDADE. RÉU MARIDO DA
DEPOENTE. PRECEDENTE DO STJ.
1 - Para a caracterização do crime de falso testemunho não é necessário o
compromisso. Precedentes.
2 - Tratando-se de testemunha com fortes laços de afetividade (esposa) com o réu,
não se pode exigir-lhe diga a verdade, justamente em detrimento da pessoa pela
qual nutre afeição, pondo em risco até a mesmo a própria unidade familiar.
Ausência de ilicitude na conduta.
3 - Conclusão condizente com o art. 206 do Código de Processo Penal que autoriza
os familiares, inclusive o cônjuge, a recusarem o depoimento.
4 - Habeas corpus deferido para trancar a ação penal.”

O advogado que instiga a testemunha a mentir comete o crime como partícipe,


tecnicamente, sendo que há julgados do STF entendendo haver coautoria. Há, porém,
posição defensiva entende que o advogado está, neste caso, atuando no limite do direito de
defesa de seu cliente, e por isso não cometeria crime – assim se posiciona Damásio,
minoritariamente.
A conduta daquele que mente culposamente é atípica, mas a conduta daquele que
induz a testemunha a depor falsamente, com dolo de que ela cometa o falso testemunho em
erro, seria típica? Não existe, em nosso ordenamento, participação dolosa em crime
culposo, mas há o que Zaffaroni chama de autoria por determinação, que nada mais é do
que a autoria mediata em crime de mão própria.
É possível alegar falta de potencialidade lesiva no crime de falso testemunho,
quando a mentira é tão patente que não tem qualquer chance de perturbar a ordem da

Michell Nunes Midlej Maron 164


EMERJ – CP V Direito Penal V

administração judiciária. Assim, se a mentira é completamente evidente, trata-se de crime


impossível.
Mas repare que o momento consumativo do falso testemunho é na assinatura do
termo de depoimento pela testemunha. Por isso, se somente após este momento, em ato
posterior do processo – na sentença, por exemplo –, é que se descobre a falsidade
testemunhal, não se trata de crime impossível: o crime restou não só possível, como
consumado.
A prisão em flagrante pelo falso testemunho só é possível no plenário do júri, pela
seguinte lógica: a verificação da falsidade só se dá na sentença, pois se for constatada de
plano, como se disse, o crime é impossível – e até lá já se desfez o flagrante. No júri,
porém, a valoração da prova testemunhal pelos jurados é imediata, remanescendo a
testemunha em flagrante até o veredicto. Hoje, com a audiência una, e rito concentrado, se
a dinâmica similar à do júri ocorrer – a sentença ser proferida na presença das testemunhas
– pode-se pensar em flagrante também fora do júri.
É claro que o próprio réu não é imputável pelo falso testemunho que preste acerca
de seu crime, pois está acobertado pelo direito de defesa e de não auto-incriminação –
nemo tenetur se detegere.
A mentira no curso do inquérito e também no curso da ação penal, sobre o mesmo
fato, representa crime único, pois o bem jurídico é a administração da justiça, afetada uma
só vez.
Se o processo em que o sujeito cometeu o falso testemunho for declarado nulo, é
como se nada houvesse existido, para Nelson Hungria. Por isso, não há crime. Já se houver
acordo entre as partes, o que torna dispensável a instrução, inclusive o testemunho falso,
mesmo assim persiste o crime.
Pode haver a denúncia antes que o processo em que o falso testemunho se deu
chegue ao fim, mas o processo criminal pelo crime de falso deverá aguardar o termo
daquele em que foi cometida a falsidade.
O § 2º do artigo em estudo diz que o fato deixa de ser punível se, antes da sentença
no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade. Veja que esta
retratação assume ares de arrependimento eficaz. O arrependimento posterior à sentença é
apenas uma circunstância atenuante.
A retratação extrajudicial do falso testemunho não tem validade, precisando ser
ratificada em juízo para ter qualquer valor.
O artigo 343 do CP trata de crime correlato, que é idêntico, em essência, ao delito
do artigo 333 do mesmo Código, a corrupção ativa, variando apenas quanto aos ocupantes
do pólo ativo e passivo do delito. Veja:

“Art. 343. Dar, oferecer ou prometer dinheiro ou qualquer outra vantagem a


testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete, para fazer afirmação falsa,
negar ou calar a verdade em depoimento, perícia, cálculos, tradução ou
interpretação: (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001)
Pena - reclusão, de três a quatro anos, e multa.(Redação dada pela Lei nº 10.268,
de 28.8.2001)
Parágrafo único. As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é
cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal
ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou
indireta. (Redação dada pela Lei nº 10.268, de 28.8.2001).”

Michell Nunes Midlej Maron 165


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Corrupção ativa
Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
10.763, de 12.11.2003)
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo
dever funcional.”

2. Coação no curso do processo

“Coação no curso do processo


Art. 344 - Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse
próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona
ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em
juízo arbitral:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à
violência.”

A ameaça a qualquer pessoa do processo configura este crime supra – promotor,


juiz, oficial de justiça, etc. O crime exige especial fim de agir, qual seja, o favorecimento de
interesse próprio ou alheio.
A ameaça de mal legítimo não configura coação. Como exemplo, o delegado que
adverte uma testemunha de que se mentir estará cometendo crime não está, é claro,
cometendo este crime.

3. Exercício arbitrário das próprias razões

“Exercício arbitrário das próprias razões


Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora
legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente
à violência.
Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante
queixa.”

Este crime atinge a administração da justiça porque ofende o monopólio estatal para
fornecer meios à busca de algumas pretensões.
A pretensão que o agente satisfaz arbitrariamente tem que ser efetivamente legítima,
não bastando que ele a julgue legítima: deve ser correta perante o ordenamento em si, e não
apenas para o próprio agente, por óbvio. Apenas aquilo que ele pode reclamar em juízo é
legítimo.
Este crime, de justiça com as próprias mãos, pode ser cometido por meio de
violência, grave ameaça ou mesmo fraude.
O momento consumativo deste delito, para Hungria, se dá na substituição da justiça
judiciária pela justiça própria, ou seja, na efetivação da pretensão. Luiz Régis Prado, por
sua vez, reputa que se consuma quando a violência, ameaça ou fraude é empregada – o que
não parece muito correto, porque o crime é fazer a justiça, efetivamente.
O crime do artigo 346 do CP, correlato ao antecedente, é apenas uma forma de
exercício arbitrário, para parte da doutrina. Hungria, porém, entende que este crime está
mais próximo do furto do que do exercício irregular de pretensão legítima. Veja:

Michell Nunes Midlej Maron 166


EMERJ – CP V Direito Penal V

“Art. 346 - Tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria, que se acha em
poder de terceiro por determinação judicial ou convenção:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.”

4. Fraude processual

“Fraude processual
Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou
administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a
erro o juiz ou o perito:
Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.
Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal,
ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.”

Trata-se de crime doloso e de atuação bastante vinculada. O artigo 312 do CTB


deve ser observado, aqui, eis que traz uma especialização deste delito:
“Art. 312. Inovar artificiosamente, em caso de acidente automobilístico com
vítima, na pendência do respectivo procedimento policial preparatório, inquérito
policial ou processo penal, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, a fim de
induzir a erro o agente policial, o perito, ou juiz:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto neste artigo, ainda que não iniciados, quando
da inovação, o procedimento preparatório, o inquérito ou o processo aos quais se
refere.”

É crime do artigo 347 do CP mudar uma cerca de lugar para ludibriar o juiz, ou
fazer uma cirurgia plástica em um criminoso para não ser identificado, etc.
Veja um julgado interessante do STJ sobre este delito:

“RHC 5373 / RS. RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS. Relator


Ministro ANSELMO SANTIAGO. Órgão Julgador - SEXTA TURMA. Data do
Julgamento: 02/06/1997. Data da Publicação/Fonte DJ 04/08/1997.
Ementa: RECURSO DE "HABEAS CORPUS" - FRAUDE PROCESSUAL –
ESTELIONATO TENTADO - TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL -
RECURSO PROVIDO.
1. ADVOGADO E ESTAGIARIO QUE PETICIONAM EM PROCESSO-CRIME,
ANEXANDO "TELEX" SUPOSTAMENTE ORIUNDO DO SEGUNDO GRAU,
ONDE TERIA SIDO EXTINTA A PENA DO PROCESSADO (CLIENTE DO
ESCRITORIO), PELA OCORRENCIA DA PRESCRIÇÃO.
2. REU, NO ENTANTO, QUE TIVERA SEU RECURSO DE APELAÇÃO
IMPROVIDO, ESTANDO, DESTARTE, A FALTA DE QUALQUER RECURSO,
DEFINITIVAMENTE CONDENADO.
3. DENUNCIA QUE OS ENQUADRA NO ART. 347, P. UNICO DO CPB, SEM
NO ENTANTO, INDICAR O QUE TERIA SIDO INOVADO,
ARTIFICIOSAMENTE, NO PROCESSO CRIMINAL, EM RELAÇÃO AO
ESTADO DE LUGAR, DE COISA, OU DE PESSOA.
4. ACORDÃO DENEGATORIO DO "WRIT" QUE ACENA COM
ESTELIONATO TENTADO, SEM APONTAR, POREM, A VANTAGEM
PATRIMONIAL DECORRENTE DO EPISODIO.
5. CRIME DE FALSIDADE QUE TAMBEM NÃO SE VISLUMBRA, POIS
TRATANDO-SE DE DOCUMENTO REPRODUZIDO EM "XEROX", SEM
AUTENTICAÇÃO, NÃO SE O CONSIDERA, PARA EFEITOS PENAIS, COMO
DOCUMENTO.

Michell Nunes Midlej Maron 167


EMERJ – CP V Direito Penal V

6. FATO ATIPICO, IMPLICANDO NA REJEIÇÃO DA DENUNCIA, COM O


CONSEQUENTE ARQUIVAMENTO DA AÇÃO PENAL.
7. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.”

Casos Concretos

Questão 1

MARIA GENECY foi prefeita da cidade de Itaocara entre 1997 e 2000 e, nesta
qualidade, contratou, em julho de 2000, operação de crédito para o Município,
descumprindo os limites estabelecidos em lei federal que materializou o comando de
limitação ao endividamento dos entes federativos em consonância com a Lei de
Responsabilidade Fiscal (Art. 1º e 30 da LC 101/2000). Por tal razão, o Parquet estadual
denunciou MARIA GENECY pelo crime do Art. 359-A § único, inciso I do CP. Ocorre que,
em 2005, o Presidente da República edita medida provisória autorizando a operação
contratada e determinando a retroatividade dos efeitos da MP a julho de 2000. Diante
desse quadro e da conversão em lei da MP, a ex-prefeita impetra habeas corpus no
TRIBUNAL DE JUSTIÇA, pleiteando o trancamento da ação penal diante da extinção da
punibilidade. À luz dos preceitos correlatos à responsabilidade fiscal na gestão pública e
do direito penal, deve ser deferido o writ?

Resposta à Questão 1

O writ deve ser deferido, uma vez que o STF admite que medidas provisórias
veiculem matéria penal:

“RE 254818 / PR STF – Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, j. 08/11/2000,


Tribunal Pleno
I. Medida provisória: sua inadmissibilidade em matéria penal - extraída pela
doutrina consensual - da interpretação sistemática da Constituição -, não
compreende a de normas penais benéficas, assim, as que abolem crimes ou lhes
restringem o alcance, extingam ou abrandem penas ou ampliam os casos de
isenção de pena ou de extinção de punibilidade.

Michell Nunes Midlej Maron 168


EMERJ – CP V Direito Penal V

II. Medida provisória: conversão em lei após sucessivas reedições, com cláusula de
“convalidação” dos efeitos produzidos anteriormente: alcance por esta de normas
não reproduzidas a partir de uma das sucessivas reedições. III. MPr 1571-6/97, art.
7º, § 7º, reiterado na reedição subseqüente (MPr 1571-7, art. 7º, § 6º), mas não
reproduzido a partir da reedição seguinte (MPr 1571-8 /97): sua aplicação aos fatos
ocorridos na vigência das edições que o continham, por força da cláusula de
“convalidação” inserida na lei de conversão, com eficácia de decreto-legislativo.”

Além disso, em que pese normas financeiras não terem caráter retroativo, isto é, as
normas possuem um caráter temporal vinculado ao princípio da anualidade do orçamento,
no caso concreto houve retroativa expressa e tal dispositivo acaba por operar, forte no
princípio da retroatividade benéfica a extinção da punibilidade. Em precedente análogo o
STF arquivou IPL com base no entendimento acima apresentado:

“Inq 2591 / SP STF – Rel. Min. MENEZES DIREITO, j. 08/05/2008, Tribunal


Pleno
Penal. Processo penal. Crime contra as finanças públicas. Crime de
responsabilidade de prefeito. Programa RELUZ. Atipicidade da conduta.
Precedentes da Corte.
1. O pedido de arquivamento formulado pelo Ministério Público, quando tem por
fundamento a prescrição ou a atipicidade da conduta, não vincula o Magistrado.
2. A Lei nº 11.131/05 alterou a Medida Provisória nº 2.185-31 para admitir que as
operações de crédito relativas ao Programa RELUZ não se submetam aos limites
ordinários de refinanciamento das dívidas dos municípios.
3. A disposição legal está a indicar que referidas operações são autorizadas por lei,
afastando-se, assim, o elemento normativo do tipo “sem autorização legislativa”
mencionado no caput do artigo 359 do Código Penal.
4. A previsão contida na Lei nº 11.131/05 autoriza descaracterizar qualquer
violação em torno dos incisos VIII, XVII e XX do artigo 1º da Lei de
Responsabilidade Fiscal.
5. Inquérito arquivado.”

Veja o artigo do CP:

“Contratação de operação de crédito


Art. 359-A. Ordenar, autorizar ou realizar operação de crédito, interno ou externo,
sem prévia autorização
legislativa: (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
Parágrafo único. Incide na mesma pena quem ordena, autoriza ou realiza operação
de crédito, interno ou externo: (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
I - com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei ou em
resolução do Senado Federal; (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)
II - quando o montante da dívida consolidada ultrapassa o limite máximo
autorizado por lei. (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000).”

Veja o que diz a Lei Complementar 101:

“Art. 1º Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas


para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI
da Constituição.
§ 1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente,
em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das
contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e

Michell Nunes Midlej Maron 169


EMERJ – CP V Direito Penal V

despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita,


geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas
consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de
receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
(...)”

“Art. 30. No prazo de noventa dias após a publicação desta Lei Complementar, o
Presidente da República submeterá ao:
I - Senado Federal: proposta de limites globais para o montante da dívida
consolidada da União, Estados e Municípios, cumprindo o que estabelece o inciso
VI do art. 52 da Constituição, bem como de limites e condições relativos aos
incisos VII, VIII e IX do mesmo artigo;
II - Congresso Nacional: projeto de lei que estabeleça limites para o montante da
dívida mobiliária federal a que se refere o inciso XIV do art. 48 da Constituição,
acompanhado da demonstração de sua adequação aos limites fixados para a dívida
consolidada da União, atendido o disposto no inciso I do § 1º deste artigo.
§ 1º As propostas referidas nos incisos I e II do caput e suas alterações conterão:
I - demonstração de que os limites e condições guardam coerência com as normas
estabelecidas nesta Lei Complementar e com os objetivos da política fiscal;
II - estimativas do impacto da aplicação dos limites a cada uma das três esferas de
governo;
III - razões de eventual proposição de limites diferenciados por esfera de governo;
IV - metodologia de apuração dos resultados primário e nominal.
§ 2º As propostas mencionadas nos incisos I e II do caput também poderão ser
apresentadas em termos de dívida líquida, evidenciando a forma e a metodologia
de sua apuração.
§ 3º Os limites de que tratam os incisos I e II do caput serão fixados em percentual
da receita corrente líquida para cada esfera de governo e aplicados igualmente a
todos os entes da Federação que a integrem, constituindo, para cada um deles,
limites máximos.”

Michell Nunes Midlej Maron 170

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