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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Presidente
Paulo Ernani Gadelha Vieira

ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE


JOAQUIM VENÂNCIO

Diretor
Mauro de Lima Gomes

Vice-diretor de Gestão e Desenvolvimento Institucional


José Orbílio de Souza Abreu

Vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico


Marcela Pronko

Vice-diretor de Ensino e Informação


Marco Antônio Santos
Roseli Salete Caldart
Isabel Brasil Pereira
Paulo Alentejano
Gaudêncio Frigotto
Organizadores

2012
Rio de Janeiro • São Paulo
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Expressão Popular
Copyright © 2012 dos organizadores

Catalogação na fonte
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Biblioteca Emília Bustamante

C145d Caldart, Roseli Salete (org.)

Dicionário da Educação do Campo. / Organizado por Roseli Salete


Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio Frigotto. –
Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
Expressão Popular, 2012.

788 p.
ISBN: 978-85-98768-64-9 (EPSJV)
ISBN: 978-85-7743-193-9 (Expressão Popular)

1. Educação. 2. Dicionário. 3. Educação do Campo. 4. Movimentos sociais do


campo. I. Pereira, Isabel Brasil. II. Alentejano, Paulo. III. Frigotto, Gaudêncio.
IV. Título.

CDD 370.91734

Edição de Texto João Sette Camara


Lisa Stuart
Revisão Lisa Stuart
Capa, Projeto Gráfico e Diagramação Zé Luiz Fonseca

Direitos desta edição reservados a:

Escola Politécnica de Saúde Expressão Popular


Joaquim Venâncio/Fiocruz Rua Abolição, 201
Av. Brasil, 4.365 01319-010 - Bela Vista
21040-360 - Manguinhos São Paulo, SP
Rio de Janeiro, RJ Tel: (11) 3105-9500
Tel.: (21) 3865-9797 (11) 3522-7516
www.epsjv.fiocruz.br www.expressaopopular.com.br
Sumário
Apresentação 3

A Acampamento 21
Agricultura camponesa 26
Agricultura familiar 32
Agriculturas alternativas 40
Agrobiodiversidade 46
Agrocombustíveis 51
Agroecologia 57
Agroecossistemas 65
Agroindústria72
Agronegócio 79
Agrotóxicos 86
Ambiente (meio ambiente) 94
Articulações em defesa da Reforma Agrária 103
Assentamento rural 108

C Campesinato 113
Capital 121
Ciranda Infantil 125
Comissão Pastoral da Terra (CPT) 128
Commodities agrícolas 133
Conflitos no campo 141
Conhecimento 149
Cooperação agrícola 157
Crédito fundiário 164
Crédito rural 170
Cultura camponesa 178

D Defesa de direitos 187


Democracia 190
Desapropriação 198
Desenvolvimento sustentável 204
Despejos 210
Direito à educação 215
Direitos humanos 223
Diversidade 229

E Educação básica do campo 237


Educação corporativa 245
Educação de jovens e adultos (EJA) 250
Educação do Campo 257
Educação omnilateral 265
Educação politécnica 272
Educação popular 280
Educação profissional 286
Educação rural 293
Emancipação versus cidadania 299
Ensino médio integrado 305
Escola ativa 313
Escola do campo 324
Escola itinerante 331
Escola Única do Trabalho 337
Escola unitária 341
Estado 347
Estrutura fundiária 353

F Formação de educadores do campo 359


Função social da propriedade 366
Fundos públicos 372

G Gestão educacional 381

H Hegemonia 389
Hidronegócio 395
I Idosos do campo 403
Indústria cultural e educação 410
Infância do campo 417
Intelectuais coletivos de classe 424

J Judicialização 431
Juventude do campo 437

L Latifúndio 445
Legislação educacional do campo 451
Legitimidade da luta pela terra 458
Licenciatura em Educação do Campo 466

M Mística 473
Modernização da agricultura 477
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil) 481
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) 487
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) 492
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) 496
MST e educação 500
O Ocupações de terra 509
Orçamento da educação e superávit 513
Organizações da classe dominante no campo 519

P Pedagogia das competências 533


Pedagogia do capital 538
Pedagogia do movimento 546
Pedagogia do Oprimido 553
Pedagogia socialista 561
Política educacional e Educação do Campo 569
Políticas educacionais neoliberais e Educação do Campo 576
Políticas públicas 585
Povos e comunidades tradicionais 594
Povos indígenas 600
Produção associada e autogestão 612
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 618
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(Pronera) 629

Q Questão agrária639
Quilombolas 645
Quilombos 650
R Reforma Agrária 657
Renda da terra 667
Repressão aos movimentos sociais 673
Residência Agrária 679
Revolução Verde 685

S Saúde no campo 691


Sementes 697
Sindicalismo rural 704
Sistemas de avaliação e controle 712
Soberania alimentar 714
Sujeitos coletivos de direitos 724
Sustentabilidade 728

T Tempos humanos de formação 733


Terra 740
Território camponês 744
Trabalho como princípio educativo 748
Trabalho no campo 755
Transgênicos 759
V Via Campesina 765
Violência social 768

Autores 777
Apresentação
O Dicionário da Educação do Campo é uma obra de produção coletiva. Sua
elaboração foi coordenada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, e pelo Mo-
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sua elaboração envolveu
um número significativo de militantes de movimentos sociais e profissionais da
EPSJV e de diferentes universidades brasileiras, dispostos a sistematizar experi-
ências e reflexões sobre a Educação do Campo em suas interfaces com análises
já produzidas acerca das relações sociais, do trabalho, da cultura, das práticas de
educação politécnica e das lutas pelos direitos humanos no Brasil.
Nosso objetivo foi o de construir e socializar uma síntese de compreensão
teórica da Educação do Campo com base na concepção produzida e defendida
pelos movimentos sociais camponeses. Os verbetes selecionados referem-se prio-
ritariamente a conceitos ou categorias que constituem ou permitem entender o
fenômeno da Educação do Campo ou que estão no entorno da discussão de seus
fundamentos filosóficos e pedagógicos. Também incluímos alguns verbetes que
representam palavras-chave, ou que podem servir como ferramentas, do vocabu-
lário de quem atualmente trabalha com a Educação do Campo ou com práticas
sociais correlatas. Alguns verbetes têm referência direta com experiências, sujei-
tos e lutas concretas que constituem a dinâmica educativa do campo hoje. Outros
representam mediações de interpretação dessa dinâmica.
O Dicionário da Educação do Campo visa atingir a um público bem diversificado:
militantes dos movimentos sociais, estudantes do ensino médio à pós-graduação,
educadores das escolas do campo, pesquisadores da área da educação, profissio-
nais da assistência técnica, lideranças sindicais e políticas comprometidas com as
lutas da classe trabalhadora.
Esta primeira edição do Dicionário inclui 113 verbetes e envolveu 107 autores
em sua produção.
A Educação do Campo está sendo entendida nesta obra como um fenômeno
da realidade brasileira atual que somente pode ser compreendido no âmbito con-
traditório da práxis e considerando seu tempo e contexto histórico de origem. A
essência da Educação do Campo não pode ser apreendida senão no seu movimento
real, que implica um conjunto articulado de relações (fundamentalmente con-
tradições) que a constituem como prática/projeto/política de educação e cujo
sujeito é a classe trabalhadora do campo. É esse movimento que pretendemos
mostrar na lógica de constituição do Dicionário e na produção de cada texto
(considerados os limites próprios a uma obra dessa natureza).
A compreensão da Educação do Campo se efetiva no exercício analítico de
identificar os polos do confronto que a institui como prática social e a tomada
Dicionário da Educação do Campo

de posição (política, teórica) que constrói sua especificidade e que exige a relação
dialética entre particular e universal, específico e geral. Há contradições específi-
cas que precisam ser enfrentadas, trabalhadas, compreendidas na relação com as
contradições mais gerais da sociedade brasileira e mundial. O projeto educativo
da Educação do Campo toma posição nos confrontos: não se constrói ignoran-
do a polarização ou tentando contorná-la. No confronto entre concepções de
agricultura ou de educação, a Educação do Campo toma posição, e essa posição
a identifica. Porém é a existência do confronto que essencialmente define a Edu-
cação do Campo e torna mais nítida sua configuração como um fenômeno da
realidade atual.
Esse posicionamento distingue/demarca uma posição no debate: a especifi-
cidade se justifica, mas ficar no específico não basta, nem como explicação nem
como atuação, seja na luta política seja no trabalho educativo ou pedagógico. A
Educação do Campo se confronta com a “Educação Rural”, mas não se configura
como uma “Educação Rural Alternativa”: não visa a uma ação em paralelo, mas
sim à disputa de projetos, no terreno vivo das contradições em que essa disputa
ocorre. Uma disputa que é de projeto societário e de projeto educativo.
Para a composição do Dicionário tomamos como eixos organizadores da sele-
ção dos verbetes a tríade de alguma maneira já consolidada por determinada tra-
dição de debate sobre a Educação do Campo: temos afirmado que esse conceito
não pode ser compreendido fora das relações entre campo, educação e política pública.
Porém, decidimos incluir no Dicionário um quarto eixo, o de direitos humanos, pe-
las interfaces importantes de discussão que vislumbramos para seus objetivos.
O desafio é duplo e articulado: apreender o confronto ou a polarização prin-
cipal que constitui cada eixo e apreender as relações entre eles. Cada eixo ou cada
parte podem ser entendidos/discutidos especificamente, mas em si mesmos não
são a Educação do Campo, que, como totalidade, somente se compreende na
interação dialética entre essas dimensões de sua constituição/atuação.
A própria questão da especificidade depende da relação: temos afirmado que a
especificidade da Educação do Campo está no campo (nos processos de trabalho,
na cultura, nas lutas sociais e seus sujeitos concretos) antes que na educação, mas
essa compreensão já supõe uma determinada concepção de educação: a que con-
sidera a materialidade da vida dos sujeitos e as contradições da realidade como
base da construção de um projeto educativo, visando a uma formação que nelas
incida. A realidade do campo constitui-se, pois, na particularidade dada pela vida
real dos sujeitos, ponto de partida e de chegada dos processos educativos. Toda-
via, seu horizonte não se fixa na particularidade, mas busca uma universalidade
histórica socialmente possível.
A compreensão do movimento interno aos eixos e entre eles nos ajuda a res-
ponder, afinal, qual é o problema ou a questão específica da Educação do Campo.
No eixo identificado como campo entendemos que o confronto específico
fundamental é o que se expressa na lógica incluída nos termos “agronegócio” e
“agricultura camponesa”, que manifesta, mas também constitui, em nosso tempo,
a contradição fundamental entre capital e trabalho. E que coloca em tela (essa é
uma novidade de nosso tempo) uma contradição nem sempre percebida nesse

14
Apresentação

embate: há um confronto entre modos de fazer agricultura, e a pergunta que os


movimentos sociais situados no polo do trabalho estão colocando à sociedade se
refere ao modo de fazer agricultura que projeta futuro, especialmente consideran-
do a necessidade de produzir alimentos para a reprodução da vida humana, para
a humanidade inteira, para o planeta. Essa é uma questão que não tem como ser
formulada desde o polo do capital (ser agenda do agronegócio) senão como farsa
ou cinismo. Por isso também o capital pode admitir (em tempos de crise) discutir
“segurança alimentar”, mas não pode, sem trair a si mesmo, aceitar o debate acer-
ca da “soberania alimentar” (pautado hoje pela agricultura camponesa).
Integra esse confronto a compreensão de que não é a mesma coisa tratar de
agricultura camponesa e de agricultura familiar: ambos os conceitos se referem
aos trabalhadores, mas há uma contradição a ser explorada em vista do embate de
projetos, com o cuidado de não confundi-la com o confronto principal.
É importante ter presente o movimento desse embate para compreender a
relação com um projeto educativo dos trabalhadores que o assuma: o polo da
agricultura camponesa não tem como ser vitorioso no horizonte da sociedade
do capital. Em uma sociedade do trabalho, porém, o projeto de uma agricultura
de base camponesa certamente terá de ir bem mais longe do que certas posições
assumidas hoje, que a colocam como retorno ao passado, especialmente do ponto
de vista tecnológico, ou no particularismo e isolamento de experiências de grupos
locais. Por sua vez, essas experiências, quando radicais, têm sido combatidas pelo
capital exatamente porque mostram que há alternativas à agricultura industrial
capitalista, e isso desestabiliza sua hegemonia: quanto mais agonizante o sistema
mais desesperadamente precisa fazer com que todos acreditem que não há alter-
nativas fora da sua lógica, em nenhum plano.
Também é necessário ter em foco que a porta de entrada da Educação do
Campo nesse confronto foi a luta pela Reforma Agrária, que trouxe para a sua
constituição originária os movimentos sociais, como protagonistas do enfrenta-
mento de classe, e determinada forma de luta social que carrega junto (nesse eixo e
na relação entre os eixos) a relação contraditória e tensa entre movimentos sociais
(de trabalhadores) e Estado na sociedade brasileira.
É própria desse eixo outra discussão fundamental (justamente para que con-
tradições secundárias não tomem o lugar da contradição principal): estamos com-
preendendo que o conceito de “camponês”, construído desde o confronto prin-
cipal, pode representar o sujeito (coletivo) da Educação do Campo, ainda que no
concreto real os sujeitos trabalhadores do campo sejam diversos e nem todos caibam
no conceito estrito de trabalhadores camponeses. No Dicionário foram incluídos
outros conceitos que nos ajudam a explicitar/trabalhar com a diversidade que
integra a realidade e o debate de concepção em que se move a Educação do Cam-
po, sem comprometer a unidade do polo do trabalho no embate específico entre
projetos de agricultura, que consideramos fundamental na atualidade.
No eixo identificado como educação (concepção de educação) temos no plano
específico o confronto principal com a “educação rural” (também na sua face
atual de “educação corporativa”), mas na base desse confronto está a contra-
dição entre uma pedagogia do trabalho versus uma pedagogia do capital, que se

15
Dicionário da Educação do Campo

desdobrará nas questões fundamentais de objetivos formativos, de concepção de


educação, de matriz formativa, de concepção de escola.
Há uma determinada concepção de educação que tem sustentado as lutas da
Educação do Campo e está presente nos diferentes eixos. Seu vínculo originário,
que se constitui pelas determinações do seu nascimento no eixo campo (tomada
de posição pelos movimentos sociais dos trabalhadores Sem Terra, pela agricultu-
ra camponesa...), é com o que tem sido chamado de “Pedagogia do Movimento”,
formulação teórica constituída desde a pedagogia do MST (sua base empírica e
reflexiva imediata), por sua vez herdeira das práticas e reflexões da pedagogia
do oprimido e da pedagogia socialista, e mais amplamente de uma concepção
de educação e de formação humanas de base materialista, histórica e dialética.
Herança que é fundamento, continuidade, recriação desde a sua materialidade
específica e os desafios do seu tempo.
Há uma disputa de projetos educativos e pedagógicos que se radica no con-
fronto de projetos de sociedade e de humanidade, e se especifica nos embates
desses projetos no pensar e fazer a educação dos camponeses. E há também po-
sições e embates que não representam o confronto principal, mas que precisam
ser enfrentados, na compreensão de qual forma educativa efetivamente fortalece os
camponeses para as lutas principais e para a construção de novas relações sociais,
porque lhes humaniza mais radicalmente e porque assume o desafio de formação
de uma sociabilidade de perspectiva socialista. Desdobram-se desse embate dife-
rentes questões: de concepção de conhecimento, da necessária apropriação pelos
trabalhadores dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade,
mas também sua tomada de poder sobre as decisões acerca de quais conheci-
mentos continuarão a ser produzidos, e o modo de produção do conhecimento,
e sobre qual forma escolar pode dar conta de participar de um projeto educativo
com essas finalidades.
No eixo da política pública, os contornos do confronto principal se situam
entre os direitos universais, que somente podem definir-se no espaço público, e
as relações sociais, afirmadas na propriedade privada dos meios e instrumentos
de produção da existência – e no Estado que a garante. Considerando que a rela-
ção entre movimentos sociais e Estado está na constituição da forma de fazer a
luta pela Reforma Agrária no Brasil que está na origem da Educação do Campo,
entendemos que o confronto que a constitui não está em lutar ou não por polí-
ticas públicas. Porque lutar por políticas públicas representa o confronto com a
lógica do mercado, expressão da liberdade para o desenvolvimento do polo do
capital. Mas uma questão que demarca o confronto diz respeito a quem tem o
protagonismo na luta pela construção de políticas públicas e a que interesses elas
dominantemente atenderão. A disputa do fundo público para educação, forma-
ção técnica, saúde, cultura, apoio à agricultura camponesa e ao acesso à moradia,
entre outros, constitui-se em agenda permanente, dado que, cada vez mais, esse
fundo tem sido apropriado para garantia da reprodução do capital e, no campo,
pelo agronegócio.
Também é fundamental considerar nesse embate que quando o polo do traba-
lho (por meio das organizações dos trabalhadores) apresenta demandas coletivas

16
Apresentação

ao Estado, explicita a contradição entre direitos coletivos e pressão direta pelos


sujeitos de sua conquista concreta versus direitos em tese “universais” (ou univer-
salizados) que devem ser cobrados/atendidos individualmente.
E há ainda um confronto acerca da concepção e dos objetivos mais amplos
das relações necessárias à conquista ou à construção de políticas públicas: a partir
dos movimentos sociais camponeses originários da Educação do Campo, trata-se
de entender que a luta pela chamada “democratização do Estado” (e nos limites
do que se identifica como “Estado democrático de direito”) é uma das lutas desse
momento histórico e não a luta por meio da qual se chegará a uma transformação
mais radical da sociedade. Por sua vez, isso significa entender que negociações e
conquista de espaços nas diferentes esferas do Estado podem ser um caminho a
seguir em determinadas conjunturas, mas definitivamente não substituem, nem
devem secundarizar, em nenhum momento, a luta de massas como estratégia
insubstituível do confronto principal e de formação dos trabalhadores para a
transformação e construção da nova forma social.
O eixo dos direitos humanos aborda essa tensão e como ela deve ser tratada
com vigilância crítica. Chama nossa atenção sobre como a violação dos direitos
humanos integra a forma de instauração dos projetos do grande capital na pe-
riferia, dos projetos de modernização retardatária aos projetos da modernidade
globalizada. A história sem pretensão de salvar ou condenar a dialética negativa e
positiva que se movimenta na/pela práxis humana segue um tempo agonizante,
de fraturas intransponíveis, de memórias reprimidas, um presente estilhaçado por
guerras e muros, por fome, desinteresse e medo, um presente que não vê o mar
do futuro. A dificuldade da visão/imaginação do mar do futuro não elimina a
realidade de desejá-lo, de senti-lo, reatualizando a promessa de vivê-lo enquanto
humanidade, com necessidade de liberdade. Campo e cidade se indiferenciam
na crescente violação dos direitos humanos, que atinge não apenas os militantes
sociais, mas também os trabalhadores, seus filhos e netos, todos desfigurados pela
criminalização da pobreza e de toda luta social que se coloque no horizonte da
emancipação humana.
Hoje, compreender as dimensões da luta política na sociedade brasileira con-
temporânea é encarar a crueldade dos limites e das potencialidades que a luta
pelos direitos humanos nos revela. No Dicionário, esse eixo tem interface direta
com as contradições específicas indicadas no eixo das políticas públicas, especial-
mente no que se refere à ampliação ou à redução do espaço público em nome
dos interesses do capital, e hoje, notadamente, do capital financeiro. A seleção
de verbetes também busca mostrar a relação entre luta por políticas públicas
de interesse dos trabalhadores e pressão (pelas formas de luta assumidas pelos
movimentos sociais) por alternativas à ordem jurídica vigente. Qual o significado
do debate no plano jurídico sobre “função social da propriedade”, “limite de
propriedade”, “sementes modificadas”, “legitimidade das lutas sociais”? O que
representa uma “escola itinerante” de acampamentos de luta pela terra ser uma
escola pública? Ao mesmo tempo, é preciso trazer à tona os movimentos sociais
como sujeitos produtores de direitos que vão além dos direitos liberais a que se
podem vincular hoje as políticas públicas.

17
Dicionário da Educação do Campo

O processo de produção do Dicionário envolveu aproximadamente um ano


de trabalho, após a decisão tomada entre os parceiros sobre sua elaboração. A
experiência anterior da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio de pro-
dução do Dicionário da Educação Profissional em Saúde (2006) foi fundamental para
agilizar decisões metodológicas e de organização coletiva deste trabalho. As de-
cisões principais foram tomadas em oficinas, e a definição de que seguiríamos,
na seleção dos verbetes e seus conteúdos, a lógica dos eixos antes mencionados,
estabeleceu uma dinâmica de trabalho ao mesmo tempo por eixo e entre os eixos,
seja na indicação dos autores e na elaboração das ementas dos verbetes, seja na
interlocução com cada autor e no processo de leitura e discussão coletiva dos
textos produzidos. Foi sem dúvida um processo de formação organizativa de
trabalho cooperado para todos nós.
Houve uma orientação geral aos autores, de modo a garantir conteúdos acor-
des ao debate proposto e certo padrão de formatação dos textos, mas foram
acolhidas as sugestões de conteúdo e as diferenças de estilo de escrita, próprias
do largo espectro de práticas ou de atuação específica do conjunto de autores
envolvido nessa construção. Dada a concepção do Dicionário como obra de re-
ferência, não foi exigido ineditismo dos textos, e alguns verbetes possuem trechos
já publicados por seus autores em outras obras.
O Dicionário, pela seleção e pelo conteúdo dos verbetes, busca materializar
a concepção de produção do conhecimento desde uma perspectiva dialética em
que a parte ou a particularidade somente ganha sentido e compreensão dentro de
uma totalidade histórica. Nessa concepção, os campos e os verbetes resultam do
diálogo com diferentes áreas e diferentes formas de produção do conhecimento.
Buscamos ter, no conjunto da obra, uma coerência básica de abordagem teóri-
ca, respeitando os contraditórios que expressam o movimento real das discussões
e das práticas que compõem hoje o debate da Educação do Campo e para além
dela. Tratamos de questões complexas, sobre as quais não há total consenso ou
posições amadurecidas, mesmo a partir de um determinado campo político. Ten-
tamos não alimentar falsas ou artificiais polêmicas, mas também é nosso objetivo
suscitar debates sobre pontos que têm aparecido como fundamentais no avanço
do projeto educativo e societário assumido.
O Dicionário, embora tenha sido elaborado a partir de eixos, foi organizado
pelos verbetes em ordem alfabética, pelo entendimento de que essa visão interei-
xos é pedagogicamente mais fecunda para o objetivo que temos de firmar uma
concepção de abordagem ou de tratamento teórico e prático da Educação do
Campo.
Agradecemos a disponibilidade, a disciplina e o trabalho solidário do conjun-
to dos autores dessa obra, sem o que ela não teria sido possível nesse tempo e
nem teria a forma que agora apresentamos para a crítica dos leitores. Agradece-
mos igualmente a todos os profissionais/trabalhadores da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio que se envolveram em cada procedimento necessário à
produção e à edição desta obra.

18
Apresentação

Por fim, gostaríamos de fazer um agradecimento especial a algumas pessoas:


Clarice Aparecida dos Santos, Mônica Castagna Molina e Roberta Lobo, que par-
ticiparam conosco da equipe de coordenação do Dicionário, respondendo pe-
los eixos de políticas públicas e direitos humanos, respectivamente;; João Pedro
Stedile, Neuri Domingos Rossetto e Juvelino Strozake, pela contribuição em di-
ferentes momentos da produção desta obra;; e a Cátia Guimarães, pelo trabalho
rigoroso na coordenação do processo de revisão final dos textos.
Caberá a todos nós, autores e leitores, verificar se o conjunto do Dicionário
conseguiu ajudar a pôr alguma ordem nas ideias, evidenciando e contribuindo para a
compreensão das relações que compõem a totalidade complexa de constituição
da Educação do Campo e para a formulação das questões necessárias à continui-
dade dessa elaboração e das lutas práticas que justificam e movem/devem mover
debates como esse.

Os organizadores

19
A

A
ACAMPAMENTO
Bernardo Mançano Fernandes

Acampamento é um espaço de luta ção, manifesta tanto resistência quanto


e resistência. É a materialização de persistência. Em 1962, os sem-terra
uma ação coletiva que torna pública a começaram a organização de acam-
intencionalidade de reivindicar o direi- pamentos no Rio Grande do Sul, por
to à terra para produção e moradia. O meio do Movimento dos Agricultores
acampamento é uma manifestação per- Sem Terra (Master) (Eckert, 1984).
manente para pressionar os governos Esse espaço de luta passou a ser re-
na realização da Reforma Agrária. Par- produzido por centenas de movimen-
te desses espaços de luta e resistência é tos camponeses nas décadas de 1990 e
resultado de ocupações de terra;; outra 2000, com diferentes formas de orga-
parte, está se organizando para prepa- nização, mas sempre com o objetivo de
rar a ocupação da terra. A formação do conquistar a terra (Fernandes, 1996 e
acampamento é fruto do trabalho de 2000;; Feliciano, 2006).
base, quando famílias organizadas em Estar no acampamento é resultado
movimentos socioterritoriais se ma- de decisões difíceis tomadas com base
nifestam publicamente com a ocupa- nos desejos e interesses de quem quer
ção de um latifúndio. Com esse ato, as transformar a realidade. Todavia, deci-
famílias demonstram sua intenção de dir pelo acampamento é optar pela luta
enfrentar as difíceis condições nos e resistência. É preciso saber lidar com
barracos de lona preta, nas beiras das o medo: ir ou ficar? O medo de não dar
estradas;; demonstram também que certo, da violência dos jagunços e mui-
estão determinadas a mudar os rumos tas vezes da polícia. É preciso também
de suas vidas, para a conquista da terra, se preparar para viver em condições
na construção do território camponês. precárias (Feliciano, 2006). Por ser um
Os acampamentos são espaços e espaço de mobilização para pressionar
tempos de transição na luta pela terra. o governo a desapropriar terras, em
São, por conseguinte, realidades em suas experiências, os sem-terra com-
transformação, uma forma de materia- preenderam que acampar sem ocupar
lização da organização dos sem-terra, dificilmente leva à conquista da terra.
trazendo em si os principais elementos A ocupação da terra é um trunfo nas
organizacionais do movimento. Os negociações. Muitos acampamentos fi-
acampamentos são, predominante- caram anos nas beiras das rodovias sem
mente, resultado de ocupações. Assim que os trabalhadores conseguissem ser
sendo, demarcam nos latifúndios e nos assentados. Somente com a ocupação,
territórios do agronegócio os primei- obtiveram êxito na luta. Para impedir o
ros momentos do processo de territo- avanço da luta pela terra por meio das
rialização camponesa. ações de ocupação/acampamento, o
Acampar é uma antiga forma de Governo Fernando Henrique Cardoso
luta camponesa que, associada à ocupa- criou a medida provisória nº 2.109-50,

23
Dicionário da Educação do Campo

de 27 de março de 2001, que suspende enfrentamento com jagunços. Podem


por dois anos a desapropriação de áreas estar localizados na beira das estradas,
ocupadas pela primeira vez e por qua- em fundos de vale ou próximo de es-
tro anos as ocupadas por duas ou mais pigões. Os arranjos dos acampamentos
vezes. Essa medida política foi um dos são predominantemente circulares ou
motivos que levaram a mudanças nas lineares. Nesses espaços, existem lu-
formas dos acampamentos. gares onde, muitas vezes, os sem-terra
Embora os acampamentos mante- plantam suas hortas, estabelecem a
nham a mesma essência de serem es- “escola” e “a farmácia”, e também o
paço de luta e resistência, conforme local das assembleias.
a conjuntura política da luta, os sujei- Ao organizar um acampamento, os
tos mudam a forma de organização sem-terra criam diversas comissões ou
do acampamento. Os acampamentos equipes, que dão forma à organização.
como espaços de luta e resistência são Delas participam famílias inteiras ou
lugares que marcam as histórias de vida parte de seus membros. Essas comis-
dos sem-terra, como o cineasta Paulo sões criam as condições básicas para
Rufino conseguiu exprimir de maneira a manutenção das necessidades dos
tão objetiva quanto poética: acampados: saúde, educação, segu-
rança, negociação, trabalho etc. Dessa
Dos campos, das cidades, das forma, os acampamentos, frequente-
frentes dos palácios, os sem- mente, contam com escolas – ou seja,
terra, este povo de beira de qua- barracos de lona nos quais funcionam
se tudo, retiram suas lições de salas de aula, principalmente as quatro
semente e história. Assim, es- primeiras séries do ensino fundamen-
premidos nessa espécie de geo- tal, além de cursos de alfabetização de
grafia perdida que sobra entre adultos – e com uma “farmácia” im-
as estradas, que é por onde pas- provisada, que funciona em um dos
sam os que têm para onde ir, e barracos. Quando acampados dentro
as cercas, que é onde estão os de um latifúndio, plantam em mutirão,
que têm onde estar, os sem-terra para garantirem parte dos alimentos
sabem o que fazer: plantam. E de que necessitam;; quando acampados
plantam porque sabem que te- na estrada, plantam no espaço entre a
rão apenas o almoço que pude- rodovia e as cercas das propriedades;;
rem colher, como sabem que quando acampados próximos a as-
terão apenas o país que pude- sentamentos, trabalham nos lotes dos
rem conquistar. (Paulo Rufino, assentados como diaristas ou em di-
O canto da terra, 1991) ferentes formas de meação. Também
vendem sua força de trabalho como
À primeira vista, os acampamentos boias-frias para usinas de álcool e açú-
parecem ser ajuntamentos desorgani- car e outras empresas capitalistas ou,
zados de barracos. Todavia, possuem ainda, para pecuaristas.
disposições específicas que decorrem O cotidiano dos acampamentos
da topografia do terreno, das condi- difere pela própria diversidade cultu-
ções de desenvolvimento da resistên- ral e regional, mas todos mantêm as
cia ao despejo e das perspectivas de características fundantes do movimen-

24
Acampamento
A
to, como a resistência e o objetivo de e organizando também novas famílias,
especializar a luta. Nos acampamentos que se integram ao acampamento.
do Nordeste ou do Sudeste, é possí- Ao organizarem a ocupação da
vel observar diferenças e semelhan- terra, os Sem Terra promovem uma
ças nos seus cotidianos (Justo, 2009;; ação concreta de repercussão imedia-
Loera, 2009;; Sigaud, 2009). Além das ta. A ocupação coloca em questão a
diferenças em relação à localização dos propriedade capitalista da terra, quan-
acampamentos, há também diferenças do do processo de criação da proprie-
na sua duração, por causa das ações e dade familiar, pois ao conquistam
reações dos movimentos, governos, la- a terra, os Sem Terra transformam a
tifundiários e capitalistas. grande propriedade capitalista em
Na década de 1980, os acampamen- unidades familiares.
tos recebiam alimentos, roupas e remé- O acampamento é lugar de mobi-
dios, principalmente das comunidades lização constante. Além de espaço de
e de instituições de apoio à luta. Desde luta e resistência, é também espaço
o final dos anos 1980 e o início da dé- interativo e comunicativo. Essas três
cada de 1990, com o crescimento do dimensões do espaço de socialização
número de assentamentos, os assen- política desenvolvem-se no acampa-
tados também passaram a contribuir mento em diferentes situações. No iní-
de diversas formas para a luta. Muitos cio do processo de formação do MST,
cedem caminhões para a realização na década de 1980, em diferentes expe-
das ocupações, tratores para preparar riências de acampamentos, as famílias
a terra e alimentos para a população partiam para a ocupação somente de-
acampada. Esse apoio é mais significa- pois de meses de preparação nos tra-
tivo quando os assentados estão vincu- balhos de base. Desse modo, os Sem
lados a uma cooperativa. Essa é uma Terra visitavam as comunidades, rela-
marca da organicidade do Movimento tavam suas experiências, provocavam o
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra debate e desenvolviam intensamente o
(MST), por exemplo. espaço de socialização política em suas
Na segunda metade da década de dimensões comunicativa e interativa.
1990, em alguns estados, o MST come- Esse procedimento possibilita o esta-
çou uma experiência que denominou belecimento do espaço de luta e resis-
de acampamento permanente ou acam- tência de forma mais organizada, pois
pamento aberto. Esse acampamento é as famílias das comunidades passam a
estabelecido em regiões onde existem conhecer os diferentes tipos de enfren-
muitos latifúndios. É um espaço de luta tamentos da luta. Em seu processo de
e resistência para o qual as famílias de formação, como resultado da própria
diversos municípios se dirigem, a fim demanda da luta, o MST construiu ou-
de participarem da luta organizada pela tras experiências. Assim, nos trabalhos
terra. Desse acampamento permanente, de base, deixou-se de se desenvolver a
os Sem Terra partem para várias ocupa- dimensão interativa, que passou a ter
ções, e podem transferir-se para elas ou, lugar no espaço de luta e resistência.
em caso de despejo, retornar ao acam- E ainda, quando há um acampamento
pamento permanente. Conforme vão permanente ou aberto, as famílias po-
conquistando a terra, vão mobilizando dem iniciar-se na luta, inaugurando o

25
Dicionário da Educação do Campo

espaço comunicativo por meio da ex- menos três dos acampamentos históri-
posição de suas realidades nas reuniões cos no processo de formação e territo-
para organizar as ocupações. É o que rialização do MST: o acampamento da
acontece quando os Sem Terra estão Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta
lutando pela conquista de várias fazen- (RS), de 1980 a 1982;; o acampamento
das, e novas famílias vão se somando no Seminário dos Padres Capuchinhos,
ao acampamento, enquanto outras vão em Itamaraju (BA), de 1988 a 1989;; e
sendo assentadas (Fernandes, 2000). o acampamento União da Vitória, em
No acampamento, os Sem Terra Mirante do Paranapanema, na região
fazem periodicamente análises da con- do Pontal do Paranapanema (SP), de
juntura da luta. Essa leitura política 1992 a 1994 (Fernandes, 1996 e 2000).
pelos movimentos socioterritoriais Garantir a existência do acampamento,
não implica maiores dificuldades, pois por meio da resistência, impedindo a
eles estão em contato permanente com dispersão causada por diferentes for-
suas secretarias, de modo que podem mas de violência, é fundamental para o
fazer análises conjunturais com base sucesso da luta na conquista da terra.
em referenciais políticos amplos, como Os Sem Terra ocupam a terra, pré-
os das negociações em andamento nas dios públicos e espaços políticos diver-
capitais dos estados e em Brasília. As- sos para denunciar os significados da
sim, associam formas de luta local com exploração e da expropriação, lutando
as lutas nas capitais. Ocupam a terra para mudar suas realidades. O acampa-
diversas vezes como forma de pressão mento como espaço de luta e resistên-
para abrir a negociação, fazem marchas cia no processo de espacialização e ter-
até as cidades, ocupam prédios públi- ritorialização da luta pela terra também
cos, fazem manifestações de protesto, promove a espacialidade da luta por
reuniões etc. Pela correspondência en- meio de romarias, caminhadas e mar-
tre esses espaços de luta no campo e na chas. A caminhada é uma necessidade
cidade, sempre há determinação de um para expandir as possibilidades de ne-
sobre o outro. As realidades locais são gociação e gerar novos fatos. Em seus
muito diversas, de modo que tendem a ensinamentos, por meio de suas expe-
predominar nas decisões finais as rea- riências, os Sem Terra tiveram diversas
lidades das famílias que estão fazendo referências históricas. Alguns exem-
a luta. Dessa forma, as linhas políticas plos utilizados na mística do movimen-
de atuação são construídas com base to são a caminhada do povo hebreu
nesses parâmetros. E as instâncias re- rumo à Terra Prometida, na luta contra
presentativas do MST carregam essa a escravidão no Egito;; a caminhada de
espacialidade e essa lógica, pois um Gandhi e dos indianos rumo ao mar,
membro da coordenação ou da direção na luta contra o imperialismo inglês;; as
nacional participa do processo desde marchas das revoluções mexicana e chi-
o acampamento até as escalas mais nesa e da Coluna Prestes, entre outras.
amplas: regional, estadual e nacional De 2001 a 2010, os acampamentos ga-
(Stedile e Fernandes, 1999). nharam novas características. A medida
Todos os acampamentos têm im- provisória nº 2.109-50, promulgada em
portância histórica nas lutas das famílias 2001, diminuiu o número de ocupa-
Sem Terra. Porém, vale destacar pelo ções, e os Sem Terra, estrategicamente,

26
Acampamento
A
passaram a acampar próximo das áreas da família permanecem no acampa-
reivindicadas. Embora, em alguns ca- mento – e, em alguns casos, passou a
sos, recebessem apoio de famílias ser esporádica. Com essas novas ca-
assentadas, a sustentação do acam- racterísticas, os acampamentos, ainda
pamento passou a ser feita principal- que continuem a ser espaços de luta
mente pelas próprias famílias acam- e resistência e que neles se organizem
padas. Outras novas características manifestações e reuniões de negocia-
derivam de fatores como mudanças na ção, já não são mais espaços de perma-
política econômica, com o aumento do nência das famílias acampadas. Porém,
emprego e políticas compensatórias – o acampamento continua sendo essa
do tipo Bolsa Família etc. –, de modo “espécie de geografia perdida” onde
que a participação nos acampamentos os Sem Terra se reúnem para pensar,
deixou de ser de todos os membros da compreender, resistir e lutar por seus
família – apenas um ou dois membros territórios e seu país.

Para saber mais


BRASIL. Medida Provisória nº 2.109-50, de 27 de março de 2001. Diário Oficial da
União. Brasília, 28 mar. 2001.
ECKERT, C. Movimento dos Agricultores Sem-Terra no Rio Grande do Sul. 1984. Disserta-
ção (Mestrado em Ciências de Desenvolvimento Agrícola) – Instituto de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Itaguaí, 1984.
FELICIANO, C. A. Movimento camponês rebelde. São Paulo: Contexto, 2006.
FERNANDES, B. M. Formação e territorialização do MST no estado de São Paulo. São
Paulo: Hucitec, 1996.
______. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
JUSTO, M. G. A fresta: ex-moradores de rua como camponeses. In: FERNANDES,
B. M.; MEDEIROS, L. S.; PAULILO, M. I. Lutas camponesas contemporâneas: condições,
dilemas e conquistas – a diversidade de formas de luta no campo. São Paulo:
Editora da Unesp;; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento
Rural, 2009. p. 139-158.
LOERA, N. C. R. Para além da barraca de lona preta: redes sociais e trocas em
acampamentos e assentamentos do MST. In: FERNANDES, B. M.; MEDEIROS, L. S.;
PAULILO, M. I. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas – a
diversidade de formas de luta no campo. São Paulo: Editora da Unesp;; Brasília:
Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. p. 73-94.
SIGAUD, L. A engrenagem das ocupações de terra. FERNANDES, B. M.; MEDEIROS, L. S.;
PAULILO, M. I. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas – a
diversidade de formas de luta no campo. São Paulo: Editora da Unesp;; Brasília:
Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. p. 53-72.
STEDILE, J. P.;; FERNANDES, B. M. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra
no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 1999.

27
Dicionário da Educação do Campo

AGRICULTURA CAMPONESA
Horacio Martins de Carvalho
Francisco de Assis Costa

Agricultura camponesa é o modo de Os camponeses instauraram, na


fazer agricultura e de viver das famílias formação social brasileira, em si-
que, tendo acesso à terra e aos recur- tuações diversas e singulares, me-
sos naturais que ela suporta, resolvem diante resistências de intensidades
seus problemas reprodutivos por meio variadas, uma forma de acesso li-
da produção rural, desenvolvida de tal vre e autônomo aos recursos da
maneira que não se diferencia o univer- terra, da floresta e das águas, cuja
so dos que decidem sobre a alocação legitimidade é por eles reafirma-
do trabalho dos que se apropriam do da no tempo. Eles investiram na
resultado dessa alocação (Costa, 2000, legitimidade desses mecanismos
p. 116-130). de acesso e apropriação, pela de-
Famílias desse tipo, com essas ca- monstração do valor de modos
racterísticas, nos seus distintos modos de vida decorrentes da forma de
de existência no decorrer da história da existência em vida familiar, vici-
formação social brasileira, teceram um nal e comunitária. A produção
mundo econômico, social, político e estrito senso se encontra, assim,
cultural que se produz, reproduz e afir- articulada aos valores de sociabi-
ma na sua relação com outros agentes lidade e da reprodução da família,
sociais. Estabeleceram uma especifici- do parentesco, da vizinhança e da
dade que lhes é própria, seja em relação construção política de um “nós”
ao modo de produzir e à vida comu- que se reafirma por projetos co-
nitária, seja na forma de convivência muns de existência e coexistência
com a natureza. sociais. O modo de vida, assim es-
As unidades de produção campone- tilizado para valorizar formas de
sas, ao terem como centralidade a repro- apropriação, redistribuição e con-
dução social dos seus trabalhadores di- sumo de bens materiais e sociais,
retos, que são os próprios membros da se apresenta, de fato, como um
família, apresentam uma racionalidade valor de referência, moralidade
distinta daquela das empresas capita- que se contrapõe aos modos de
listas, que se baseiam no assalariamen- exploração e de desqualificação,
to para a obtenção de lucro. Como as que também foram sendo repro-
famílias camponesas reproduzem a sua duzidos no decorrer da existên-
especificidade numa formação social cia da posição camponesa na so-
dominada pelo capitalismo, e dado que ciedade brasileira. (Motta e Zarth,
a economia camponesa supõe os merca- 2008, p. 11-12)
dos, as unidades de produção campone-
sas sofrem influências as mais distintas O modo camponês de fazer agri-
sobre o seu modo de fazer agricultura: cultura não está separado do modo de

28
Agricultura Camponesa
A
viver da família, pois é preciso consi- ou parentes, em coletivos mais
derar que os amplos ou com partes do lote ar-
rendados a terceiros;;
[...] trabalhadores familiares não • há diversificação de cultivos e
podem ser peremptoriamente criações, alternatividade de uti-
dispensados, porque, em geral, lização dos produtos obtidos,
também são filhos. Eles devem seja para uso direto da família, seja
ser alocados segundo ritmos, para usufr uir de oportunida-
intensidade e fases do processo des nos mercados, e presença de
produtivo. São então sustenta- diversas combinações entre pro-
dos nas situações de não traba- dução, coleta e extrativismo;;
lho e integrados segundo proje- • a unidade de produção camponesa
tos possíveis para constituição pode produzir artesanatos e fazer o
e expansão do patrimônio fa- beneficiamento primário de produ-
miliar, para inclusão de novas tos e subprodutos;; tio Claudio

gerações, conforme as alternati- • existe garantia de fontes diversas


vas de sucessão ou de negação de rendimentos monetários para a
da posição. Essas alternativas família, desde a venda da produção
são assim interdependentes da até a de remuneração por dias de
avaliação da posição e das viabi- serviços de membros da família;;
lidades da reprodução da cate- • a solidariedade comunitária (troca
goria socioeconômica. (Neves, de dias de serviços, festividades, ce-
2005, p. 26) lebrações), as crenças e os valores
religiosos por vezes impregnam as
Essa complexa interação, variável práticas da produção;;
nos tempos e nas circunstâncias, apre- • estão presentes elementos da cul-
senta diversas características: tura patriarcal;;
• e, enfim, mas não finalmente, exis-
• os saberes e as experiências de tem relações afetivas e simbóli-
produção vivenciados pelas famí- cas com as plantas, os animais, as
lias camponesas são referenciais águas, os sítios da infância, com a
importantes para a reprodução de paisagem... e com os tempos.
novos ciclos produtivos;;
• as práticas tradicionais, o intercâm- Na racionalidade das empresas ca-
bio de informações entre vizinhos, pitalistas, a única referência é o lucro
parentes e compadres, o senso co- a ser obtido. E, de maneira geral, o lu-
mum, assim como a incorporação cro é encarado independentemente dos
gradativa e crítica de informações impactos sociais, políticos, ambientais
sobre as inovações tecnológicas e alimentares que ele possa provocar.
que se apresentam nos mercados, No modo capitalista de fazer agricultu-
constituem um amálgama que con- ra, é crescente a concentração das ter-
tribui para as decisões familiares ras como resultado do privilegiamen-
sobre o que fazer;; to da produção em escala, que requer
• o uso da terra pode ocorrer de ma- grande extensão contínua de área para
neira direta pela família, em par- a prática do monocultivo e tecnologias
ceria com outras famílias vizinhas com uso intensivo de insumos quími-

29
Dicionário da Educação do Campo

cos, particularmente agrotóxicos, que obter o máximo de produção possí-


maximizam a produção por área e, vel por dada quantidade de recurso,
em combinação com a mecanização, sem deteriorar a sua qualidade;;
alteram e diversificam as formas de • com força de trabalho nem sem-
exploração do trabalho, ainda que pre- pre abundante e com objetos de
domine a contratação de trabalhadores trabalho relativamente escassos, a
assalariados temporários. Como o ob- tendência é de produção diversi-
jetivo central das escolhas na empresa ficada e intensiva por unidade de
capitalista é a máxima lucratividade área explorada;;
possível, a artificialização da agricultu- • como os recursos sociais e os mate-
ra tem sido o caminho entendido como riais disponíveis representam uma
o mais eficiente. unidade orgânica, são apropriados
e controlados por aqueles que estão
Uma das implicações da matriz diretamente envolvidos no proces-
tecnológica e de produção do modo so de trabalho, tendo como refe-
capitalista de fazer agricultura é a de- rência um repertório cultural local
gradação ambiental e das pessoas, além historicamente constituído;;
da indiferença perante os interesses • a lógica da unidade de produção
mais gerais da população, como os camponesa é alicerçada na centrali-
de construção da soberania popular e dade do trabalho, por isso os níveis
alimentar. Para resistirem às pressões de intensidade e desenvolvimento
derivadas da racionalidade dominante, da incorporação e inovação tecno-
as famílias que praticam o modo cam- lógicas dependem criticamente da
ponês de fazer agricultura, afirmando quantidade e qualidade do trabalho;;
valores que determinam a sua condição • o processo de produção é tipica-
camponesa, tendem a orientar as suas mente fundado numa reprodução
escolhas de acordo com as complexi- relativamente autônoma e histo-
dades que emergem da sua tensa bus- ricamente garantida, e o ciclo de
ca por autonomia relativa no que diz produção é baseado em recursos
respeito ao capital e da sua inserção produzidos e reproduzidos duran-
crescente nos mercados. Nessa pers- te ciclos anteriores (Ploeg, 2008,
pectiva, algumas tendências da práxis p. 60-61).
da agricultura camponesa, além das
características referidas anteriormente, O uso corrente da expressão agri-
podem ser assinaladas: cultura camponesa por amplas parce-
las das próprias famílias camponesas
• é orientada para a produção e para no processo de construção da sua
o crescimento do máximo valor identidade social, pelos movimentos
agregado possível e do emprego e organizações populares no campo,
produtivo;; os ambientes econô- por organismos governamentais, pela
micos hostis são enfrentados pela intelectualidade acadêmica e por par-
produção de renda independente, cela dos meios de comunicação de
usando basicamente recursos auto- massa tem sido crescente nas últimas
criados e automanejados;; décadas. Isso decorre, por um lado, da
• como conta com recursos limitados aceitação da concepção, no Brasil con-
por unidade de produção, tende a temporâneo, de que a agricultura cam-

30
Agricultura Camponesa
A
ponesa é expressão de um modo de A expressão agricultura familiar
se fazer agricultura distinto do modo traz como corolário da sua concepção
de produção capitalista dominante, e, a ideia de que a possibilidade de cresci-
nesse sentido, o campesinato se apre- mento da renda familiar camponesa só
senta na formação social brasileira com poderá ocorrer se houver a integração
uma especificidade, uma lógica que lhe direta ou indireta da agricultura fami-
é própria na maneira de produzir e de liar com as empresas capitalistas, em
viver, uma lógica distinta e contrária particular as agroindústrias.
à dominante. Em 24 de julho de 2006, foi sancio-
Por outra parte, o campesinato se nada pelo presidente da República a lei
confronta ideologicamente, e com as con- nº 11.326, que estabeleceu as Diretrizes
sequências daí resultantes, com duas para a Formulação da Política Nacional
expressões já usuais, que se fizeram da Agricultura Familiar e Empreendi-
hegemônicas no campo, e que são de- mentos Familiares Rurais, oficializando
corrência dos interesses das concepções a expressão agricultura familiar com
das empresas capitalistas: agricultura de concepção distinta daquela da empresa
subsistência e agricultura familiar. capitalista no campo.
A expressão agricultura de subsis- A oficialização da expressão agri-
tência, presente nos discursos dominan- cultura familiar teve como objetivo
tes desde o Brasil colonial, discrimina estabelecer critérios para o enquadra-
os camponeses por serem produtores mento legal dos produtores rurais com
de alimentos – uma tarefa considerada certas características que os classifi-
subalterna, ainda que necessária para a cavam como agricultores familiares.
reprodução social da formação social Isso para obtenção, por parte desses
brasileira –, contrapondo-os ao modo agricultores familiares, de benefícios
dominante de se fazer a agricultura, o governamentais, sendo indiferente o
qual se reproduz desde as sesmarias até fato de esses agricultores estarem em
a empresa capitalista contemporânea, situação de subordinação perante as
mantendo a tendência geral de se espe- empresas capitalistas ou se eram repro-
cializar no monocultivo e na oferta de dutores da matriz de produção e tecno-
produtos para a exportação. lógica dominante.
A partir da denominada REVOLUÇÃO Já a expressão agricultura campo-
VERDE na agricultura, iniciada em meados nesa comporta, na sua concepção, a es-
da década de 1950 e revivificada a partir pecificidade camponesa e a construção
dos anos 1980, com a expansão mun- da sua autonomia relativa em relação
dial da concepção de artificialização da aos capitais. Incorpora, portanto, um
agricultura e a ampliação dos contratos diferencial: a perspectiva maior de for-
de produção entre as empresas capitalis- talecimento dos camponeses pela afir-
tas e as famílias camponesas, introduziu- mação de seu modo de produzir e de
se a expressão agricultura familiar, outrora viver, sem com isso negar uma moder-
de uso consuetudinário aqui e acolá, mas nidade que se quer camponesa.
acentuado desde a década de 1990, e con- Nos diversos contextos históricos e
sagrada em lei (Brasil, 2006) como expres- fisiogeográficos em que ela se tem se
são formal, porque utilizada por progra- afirmado e nas ecobiodiversidades nas
mas e políticas públicas governamentais. quais têm praticado os mais distintos

31
Dicionário da Educação do Campo

sistemas de produção agropecuária e Os camponeses que não aceitam


florestal e as mais variadas práticas ex- os processos de exploração eco-
trativistas, sempre no âmbito de suas nômica e de dominação política
estratégias de reprodução social, a agri- pelas classes dominantes capita-
cultura camponesa tem mantido como listas construíram, de certa for-
marca indelével da sua presença a ênfa- ma, uma identidade destinada à
se na produção de alimentos, tanto para resistência [...]. Ela dá origem a
a reprodução da família quanto para o formas de resistência coletiva
abastecimento alimentar da sociedade diante de uma opressão que, do
em sentido amplo. contrário, não seria suportável,
No Brasil, a produção de alimentos em geral com base em identida-
para o mercado interno, apesar de ser des que, aparentemente, foram
considerada pelos valores dominantes definidas com clareza pela his-
como o resultado de uma agricultura tória, geografia ou biologia, fa-
subalterna, torna-se cada vez mais uma cilitando assim a “essencializa-
opção estratégica para se alcançar a so- ção” dos limites da resistência
berania alimentar do país. [...]. (Castells, 1999, p. 25)
Mesmo sendo a principal produtora
de alimentos, a agricultura camponesa Segundo Comerford, tem havido
no país enfrentou, e enfrenta, desde formas cotidianas de resistência e,
o seu surgimento no período colonial
até a época atual, os mais distintos ti- [...] nesse cotidiano tenso, os
pos de empecilhos: dificuldades políti- camponeses mobilizam rela-
cas do acesso à terra, várias formas ções de parentesco, de vizi-
de pressão e repressão para a sua nhança, amizade e compadrio,
subalternização às empresas capita- mais do que organizações for-
listas, exploração continuada da mais de representação de inte-
renda familiar por diversas fra- resses ou de mobilização polí-
ções do capital, indução direta e in- tica. Tais formas “informais”
direta para a adoção de um modelo de resistência, seguindo a linha
de produção e tecnológico que lhes de raciocínio de autores como
era e é desfavorável e a desqualifica- Scott, derivam em boa parte de
ção preconceituosa e ideológica dos sua eficácia do fato de não se
camponeses, sempre considerados assumir como conflito aberto
à margem do modo capitalista de e de não se organizar explici-
fazer agricultura.
tamente como tal. (Comerford,
Essas iniciativas de subjugar a agri- 2005, p. 156)
cultura camponesa foram exercidas
outrora por latifundiários e seus pre- Muito além das diferentes maneiras
postos, mas têm sido contemporanea- de como se dá a resistência social da
mente efetivadas pelas empresas e cor- agricultura camponesa perante as ofen-
porações capitalistas com negócios no sivas do capital, o que está em confron-
campo. O processo histórico de subal- to são dois paradigmas profundamente
ternização dos camponeses estimulou distintos de como se faz agricultura: o
diferentes formas de resistência social: camponês e o capitalista.

32
Agricultura Camponesa
A
Não são raras as situações em cial brasileira contribuiu para o forta-
que unidades familiares camponesas lecimento dos movimentos e organiza-
e empresas capitalistas cooperam ções sociais populares no campo, que
umas com as outras. Não são raras, facilitam, ainda que com contradições,
também, as situações em que os cam- a passagem de uma identidade de re-
poneses tentam imitar a lógica capi- sistência para uma identidade social de
talista, que lhes é antagônica, e na projeto (Castells, 1999, p. 22-23). Essa
maior parte das vezes inviabilizam-se afirmação da identidade social campo-
economicamente por isso. Portanto, nesa concorre para a construção da sua
como sempre, os camponeses estão autonomia como sujeito social e para a
cercados de armadilhas. sua prática social como classe, seja no
Com a expansão crescente das ino- âmbito das lutas de resistência social
vações tecnológicas a partir dos avan- contra a sua exploração pelas distintas
ços na manipulação genética, foram frações dos capitais, seja no âmbito da-
ampliadas as formas de subalternização quelas em que defende e afirma a sua
da agricultura camponesa ao capital, cultura e o seu modo de fazer agricul-
que agora se dão predominantemente tura e de viver.
pelo intenso e impositivo processo de A tendência da agricultura campo-
artificialização da produção agropecuá- nesa contemporânea de afirmar a sua
ria e florestal, em particular pela oligo- autonomia relativa perante as diversas
polização por empresas transnacionais frações do capital, de se apoiar no prin-
com a oferta de sementes transgênicas cípio da coevolução social e ecológica
e de insumos de origem industrial, e e de enveredar pela agroecologia man-
pelo estímulo das agroindústrias à es- tém a possibilidade da sua reprodução
pecialização da produção camponesa. social, dado que constrói socialmente
Desde então, o modelo tecnológico as bases de outro paradigma para se fa-
concebido pelos grandes conglomerados zer agricultura.
empresariais transnacionais relacionados A tensão econômica, social, política
com as empresas capitalistas no campo, e ideológica gerada no confronto entre
e que conta com o apoio de diversas a lógica camponesa e a capitalista de se
políticas públicas estratégicas, tornou-se fazer agricultura permite sugerir que
o referencial para o que se denominou se está, desde o Brasil colonial, peran-
“modernização da agricultura”. E se rei- te uma altercação mais ampla do que
ficou a produção de mercadorias agríco- somente entre modos de se fazer agri-
las (commodities) para a exportação em de- cultura: são concepções e práticas de
trimento da produção de alimentos para vida familiar, produtiva, social, cultural
a maioria da população. e de relação com a natureza que, não
O crescente processo de identidade obstante coexistirem numa mesma for-
camponesa e, portanto, de consciência mação social, negam-se mutuamente,
da sua especificidade na formação so- são antagônicas entre si.

Para saber mais


BRASIL. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006: estabelece as diretrízes para formu-
lação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares
Rurais. Diário Oficial da União, Brasília, 25 jul. 2006.

33
Dicionário da Educação do Campo

CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. (A era da infor-
mação: economia, sociedade e cultura, 2).
CLIFFORD, A. W. et al. (org.). Camponeses brasileiros: leituras e interpretações clássi-
cas. São Paulo: Editora da Unesp;; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desen-
volvimento Rural, 2009. V. 1.
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COSTA, F. A. Formação agropecuária da Amazônia: os desafios do desenvolvimento
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MOTTA, M. (org.). Dicionário da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
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AGRICULTURA FAMILIAR
Delma Pessanha Neves

O termo agricultura familiar corres- dutores (agricultores familiares) a serem


ponde a múltiplas conotações. Apre- alcançados pela categorização oficial
senta-se como categoria analítica, de usuários reais ou potenciais do Pro-
segundo significados construídos no grama Nacional de Fortalecimento da
campo acadêmico;; como categoria de Agricultura Familiar (Pronaf) (decreto
designação politicamente diferenciado- nº 1.946, de 28 de junho de 1996).
ra da agricultura patronal e da agricultura Como categoria analítica, a despeito
camponesa;; como termo de mobilização de algumas distinções reivindicadas no
política referenciador da construção de campo acadêmico, corresponde à dis-
diferenciadas e institucionalizadas ade- tinta forma de organização da produ-
sões a espaços políticos de expressão ção, isto é, a princípios de gestão das
de interesses legitimados por essa mes- relações de produção e trabalho sus-
ma divisão classificatória do setor agro- tentadas em relações entre membros
pecuário brasileiro (agricultura familiar, da família, em conformidade com a
agricultura patronal, agricultura camponesa);; dinâmica da composição social e do
como termo jurídico que define a am- ciclo de vida de unidades conjugais
plitude e os limites da afiliação de pro- ou de unidades de procriação familiar.

34
Agricultura Familiar
A
Por essa definição, advogam os autores corresponde a formas de organização
que investem na respectiva construção da produção em que a família é ao
conceitual, é forma de organização da mesmo tempo proprietária dos meios
produção que se perde no tempo e es- de produção e executora das atividades
paço, e/ou forma moderna de inser- produtivas. Essa condição imprime es-
ção mercantil (ver Abramovay, 1992;; pecificidades à forma de gestão do
Bergamasco, 1995;; Francis, 1994;; estabelecimento, porque referencia ra-
Lamarche, 1993, p. 13-33;; Wanderley, cionalidades sociais compatíveis com
1999). Engloba a pressuposta agricul- o atendimento de múltiplos objetivos
tura de subsistência – isto é, de orien- socioeconômicos;; interfere na criação
tação do uso de fatores de produção de padrões de sociabilidade entre famí-
por referências fundantes da vida fa- lias de produtores;; e constrange certos
miliar e marginais aos princípios de modos de inserção no mercado pro-
mercado (ver Chayanov, 1981;; Silva e dutor e consumidor (ver Veiga, 1995;;
Stolcke, 1981, p. 133-146);; a economia Wanderley, 1995).
camponesa – modo de produzir orien-
Como a capacidade e as condições
tado por objetivos e valores construí-
de trabalho são articuladas com base
dos pela vida familiar e grupos de lo-
em relações familiares, a análise concei-
calidade, nesses termos historicamente
tual da agricultura familiar leva em con-
datado porque articulado à presença do
sideração a diferenciação de gênero, os
Estado, da cidade (suas feiras e merca-
ciclos de vida e o sistema de autorida-
dos, sua correspondente divisão social
de familiar em diferentes contextos:
do trabalho) e da sociabilidade comu-
quando a concepção de família integra
nitária (ver Franklin, 1969;; Galeski,
a prática de seus membros como partes
1977;; Mendras, 1978;; Ortiz, 1974;;
da unidade de produção, rendimentos
Powell, 1974;; Sjoberg, 1967;; Wolf, 1970), e consumo, e, em certos domínios da
mas também produtores mercantis vida social, irmana os afiliados enquan-
constituídos em consonância com or- to coletivo;; ou, por contraposição ana-
denações da especialização da produ- lítica, quando os familiares se orientam
ção – nesses termos, referenciada aos por valores individualizantes, exigindo
fluxos de oferta e demanda do mer- negociações que abarquem projetos
cado, de padronização da mercadoria individuais e coletivos. Em quaisquer
e de inclusão de tecnologia orientada das situações, os trabalhadores familia-
pela interdependência entre agricultura res não podem (ou não devem) ser pe-
e indústria, fatores que operam na re- remptoriamente dispensados (tal como
ordenação das condições de incorpo- ocorre com o assalariamento da força
ração do trabalho familiar (ver Amin de trabalho), porque geralmente são
e Vergopoulos, 1978;; Faure, 1978;; também filhos ou agregados, herdei-
Lenin, 1982;; Lovisolo, 1989;; Neves, ros do patrimônio por direitos formais
1981;; Paulilo, 1990;; Schneider, 1999;; e morais. Em termos gerais, eles são
Wilkinson, 1986). alocados segundo ritmos, intensidades
Para efeitos de construção de uma e fases do processo produtivo compa-
definição geral – isto é, capaz de abs- tíveis com os padrões de definição dos
tratamente referenciar a extensa di- ciclos de vida (meninos, jovens e adul-
versidade de situações históricas e so- tos distintos segundo relações de gêne-
cioeconômicas –, a agricultura familiar ro, sempre situacionais). São eles então

35
Dicionário da Educação do Campo

sustentados nas situações de não traba- orgânica, sistemas agroflorestais etc.).


lho e integrados segundo projetos pos- Ademais, os sentidos moralizantes que
síveis para constituição e expansão do se consagraram no termo agricultura
patrimônio familiar, para inclusão de familiar pressupunham a resistência
novas gerações. Essa inserção em boa política à concentração de meios de
parte é definida segundo plausibilida- produção e à deterioração das formas
des de projeções mediadas por interfe- de inserção do trabalho assalariado na
rências mais amplas dos estilos de vida agroindústria. Abriam assim alterna-
socialmente consagrados ou recomen- tivas para a expansão e a reconstitui-
dados, ou conforme as alternativas de ção de agricultores familiares, mediante
sucessão ou negação da posição dos fi- programas de assentamento rural e de
lhos como agricultores. As alternativas transformação de meeiros e parceiros
são assim interdependentes da avalia- em produtores titulares por crédito
ção da posição por quem a ocupa e das fundiário, bem como todo o combate a
viabilidades de reprodução da catego- formas aviltantes de assalariamento, no
ria socioeconômica ou profissional.1 limite criminalmente qualificadas como
Como termo de designação distintiva trabalho escravo, trabalho análogo ao escravo,
de projetos societários, foi construído vi- trabalho em condições degradantes.
sando demarcar defensivamente os in- A associação da forma agricultura fa-
vestimentos destinados a preservar a miliar à disputa de sentidos atribuídos
reprodução social de agricultores par- aos projetos societários, para além da
celares e relativamente especializados, contraposição à agricultura patronal ou
inclusive por práticas de criação de va- à agroindústria, também veio a consoli-
lor agregado aos produtos e de inserção dar uma distinção em relação ao termo
em nichos de mercado. O horizonte do agricultura camponesa. Esse embate por
projeto político prescrevia a criação construção de sentidos pode ser com-
de meios de luta e reafirmação política preendido pela qualificação da AGRI-
da democracia e da cidadania da popu- CULTURA CAMPONESA neste dicionário.
lação qualificada, em termos de recen- Como termo de mobilização política, a
seamento, como rural. Aqueles senti- agricultura familiar corresponde a enfei-
dos decorreram então de investimentos xamentos de sentidos ideológicos para
acadêmicos e políticos voltados para a legitimar processos de transferência de
reafirmação da existência da produção recursos públicos, consequentemen-
familiar, em contextos de construção da te diferenciados daqueles que apenas
hegemonia do capitalismo neoliberal. contemplem o restrito sentido da re-
A legitimidade dos sentidos atribuídos produção do capital;; ou de recursos
ao termo agricultura familiar pressupu- que circulem na contramão de proces-
nha, em nome daqueles efeitos, certas sos de concentração de meios de pro-
orientações de comportamento (econô- dução. Por isso mesmo, na definição
mico e político) que se contrapusessem do segmento de produtores vincula-
aos efeitos desestruturantes do modelo dos à agricultura familiar, integram-se,
agroindustrial. Demarcavam, então, o como questão fundamental do debate
atrelamento a modelos de desenvolvi- político, as acusações ou defesas do
mento qualificados como sustentáveis caráter social daquelas transferências
(práticas produtivas não predatórias, de recursos na forma de créditos con-
tais como agroecologia, agricultura tratados a juros subsidiados. Tanto que

36
Agricultura Familiar
A
de imediato foi possível, no campo Na modalidade das atividades do meio
do debate político, distinguir vários ti- rural e dos modos de apropriação dos
pos de público, aí integrando os assen- recursos naturais, reconhecem-se di-
tados rurais, antes objeto de programas versas posições sociais e situacionais:
especiais de composição financeira do agricultores, silvicultores, aquicultores,
patrimônio produtivo, além de produ- extrativistas e pescadores. A cada uma
tores antes condenados ao pressuposto dessas posições, correspondem restri-
ou ao desejado desaparecimento – ribei- ções distintivas nos termos da referida
rinhos, extrativistas, pescadores artesanais –, legislação. Portanto, a definição geral é
por generalizações homogeneizan- nesse mesmo ato relativizada, abrindo
tes, por vezes significativamente reco- assim alternativas para novas inclusões,
nhecidos como populações tradicionais. reconhecidas mediante reivindicações
Como termo jurídico, a agricultura fa- políticas de representações delegadas de
miliar exprime percalços e conquistas grupos que se veem como agricultores
alcançadas por investimentos de re- familiares e que lutam por se adequar ou
presentantes do campo acadêmico, dos redimensionar os critérios básicos da re-
espaços de delegação de porta-vozes ferida categorização socioeconômica.
que reafirmam a legitimada constru- A conquista de tais definições e res-
ção de interesses específicos desses pectivos direitos é importante para a
agricultores e de alguns órgãos do Es- diminuição de certo insulamento polí-
tado. Pela convergência de intenções e tico e cultural. E para o enfrentamen-
negociações de sentidos transversais, to da atribuída e imposta precariedade
esses representantes vieram a colocar material dos camponeses, dos pequenos
em prática a constituição do projeto produtores, dos arrendatários, dos parcei-
de designação distintiva de agricultores ros, dos colonos, dos meeiros, dos assenta-
açambarcados pelo termo agricultor fa- dos rurais, dos trabalhadores sem-terra –
miliar. Nessa perspectiva, o termo deve designações mais aproximativas da di-
ser entendido pelos critérios que distin- versidade de situações socioeconômi-
guem o produtor por seus respectivos cas assim abarcadas.
direitos, nas condições asseguradas pela Portanto, os sentidos que no con-
legislação específica (decreto nº 1.946, texto estão implicados no termo agri-
de 28 de junho de 1996, lei nº 11.326, cultura familiar acenam para um padrão
de 24 de julho de 2006, especialmente ideal de integração diferenciada de
artigo 3º, e demais instrumentos que uma heterogênea massa de produtores
vão adequando os desdobramentos e trabalhadores rurais. Tal integração
alcançados e incorporados): agricultor se legitima por um sistema de atitudes
familiar é o que pratica atividades no que lhe está associado, denotativo da
meio rural, mas se torna sujeito de di- inserção num projeto de mudança
reitos se detiver, a qualquer título, área da posição política. Por esse engaja-
inferior a quatro módulos fiscais;; deve mento, os agricultores que aderem ao
apoiar-se predominantemente em mão processo de mobilização tornam-se
de obra da própria família e na gestão concorrentes na disputa por créditos
imediata das atividades econômicas e serviços sociais e previdenciários;; na
do estabelecimento, atividades essas demanda de construção de mercados e
que devem assegurar o maior volume de cadeias de comercialização menos
de rendimentos do grupo doméstico. expropriadoras;; na reivindicação de

37
Dicionário da Educação do Campo

assistência técnica correspondente aos de concentração fundiária e seus des-


processos de trabalho e produção que dobramentos, ainda objetivados pela
colocam em prática;; na reivindicação agroindústria ou pelo agronegócio.
do reconhecimento como protagonis- Pela objetivação do processo, fo-
tas em processos de tomada de deci- ram construídos quadros institucionais
sões políticas que lhes digam respeito para a assistência técnica, especializa-
ou que sobre eles intervenham – o que ções profissionais em plano de forma-
equivale a tentar interferir nos padrões ção graduada e pós-graduada, reco-
de apropriação de recursos públicos nhecimentos de inserções produtivas e
por outros segmentos de produtores de autonomia entre mulheres e jovens
do setor agropecuário brasileiro. Os pertencentes ao segmento em pauta.
sentidos designativos do termo acenam E por fim se consolidou um dinâmico
para desdobramentos e redefinição de mercado editorial temático.
objetivos conquistáveis no processo de
luta pela Reforma Agrária ou pelo aces- A abertura de espaços sociais propi-
so à terra respaldado pelo estatuto da ciadores da elaboração de projetos para
posse, bem como para reivindicações a construção de categoria sociopro-
pelo reconhecimento formal-legal de fissional, em se tratando de processos
formas diferenciadas de apropriação de mudanças politicamente desejadas,
de recursos naturais. exprime o conjunto de respostas a pro-
posições de certos mediadores privi-
Pelos múltiplos significados que con- legiados. As respostas correspondem
templa, o termo agricultura familiar sinali- a formas de reconhecimento público
za ainda para a minimização de conflitos da enorme dívida social para com tais
no campo, por perda de reconhecimento agricultores. Basta então considerar que
de detratores de espíritos mais conserva- eles ainda se apresentam como deman-
dores, dado que por ele se prospecta a dantes de recursos sociais fundamen-
modernidade no campo e se consolida tais, recursos cuja ausência ou negação
a expansão da massa de consumidores – são extravagantes para esse início de
ou, como se costuma laurear, a construção milênio (serviço escolar, serviço médi-
de uma classe média no campo. co, energia elétrica e estradas para me-
Em consequência, o engajamento lhorar a mobilidade espacial e escoar
orientado para a construção de um pro- a produção), mas também recursos
jeto político para agricultores familiares instrumentais para a criação de canais
adquiriu grande importância. Ele cor- de comunicação com outros mundos
respondeu ao deslocamento social de sociais e espaços de diferenciação de
um segmento de trabalhadores e pro- relações de poder. Em síntese, recur-
dutores pobres (nos termos da atribui- sos fundamentais para a incorporação
ção de sentido por abrangência econô- de outras formas de exercício de cida-
mica, política e cultural), secularmente dania, dotadas de meios que reneguem
marginalizados dos privilegiados in- a mutilação cultural e a desqualificação
vestimentos destinados à agricultura – social, tão eficazes se mostraram e se
nesse caso, entenda-se a agroindústria mostram para a condenação dos agri-
exportadora;; ou de trabalhadores poli- cultores pelo atraso e para a ficção da
ticamente emergidos pela expropriação resistência à mudança, tergiversando a
inerente à consolidação de processos vítima em seu próprio algoz.

38
Agricultura Familiar
A
Assim sendo, o termo agricultura fa- mitantes dos objetivos preconizados
miliar vem se consagrando nos quadros para o trabalho acadêmico. A categoria
institucionais de aplicação do Pronaf, analítica agricultura familiar passa então
política de intervenção que constituiu a incorporar o mesmo efeito desejan-
o respectivo setor produtivo e o conso- te da dupla naturalização do familiar.
lidou em estatuto formal-legal. Respei- E de tal modo que, em termos analíticos,
tando tal campo semântico, os signifi- pode-se perguntar: o que se ganha ao
cados que o termo designa devem ser identificar agricultores como familia-
compreendidos (mesmo que de forma res ou uma forma de produzir como
não consensual e, como toda definição familiar, para além da contraposição
política, provisória ou contextual) pela política ao caráter capitalista de certas
definição jurídica que até aqui o termo al- formas de produzir? Que consequên-
cançou, isto é, conforme os conteúdos cias pode ter a simplificação do plano
atribuídos por definições politicamente dos valores familiares aos valores ine-
construídas, conquistadas por negocia- rentes à objetivação dos princípios da
ções de interesses e conquistas relati- reprodução do capital? O que se deixa
vas, cristalizadas nos textos que vão de considerar no domínio das relações
instituindo o Programa Nacional de familiares quando elas aparecem inte-
Fortalecimento da Agricultura Fami- gradas apenas a processos produtivos?
liar. Na conquista desse reconhecimen- E o que se deixa de considerar na pro-
to acadêmico, político e jurídico, a agri- dução estrito senso quando o vetor de
cultura familiar pode, em termos bem compreensão se reduz ao domínio das
gerais ou abstratos, ser consensual- relações familiares?2
mente assim conceituada: modelo de or- Como procurei demonstrar neste
ganização da produção agropecuária onde texto, os traços constitutivos dos agen-
predominam a interação entre gestão e tra- tes produtivos que foram rubricados
balho, a direção do processo produtivo pelos como agricultores familiares não se en-
proprietários e o trabalho familiar, comple- contram tão somente nas relações em
mentado pelo trabalho assalariado. jogo nos termos agricultura e família,
Entrementes, pela necessária am- mas nos diversos projetos políticos de
biguidade que confere especial eficácia constituição de uma categoria socio-
à definição jurídica, o termo se torna econômica (dotada especialmente de
objeto de tantas outras consagrações direitos sociais e previdenciários), ou
políticas. Uma delas diz respeito à ade- em projetos societários concorrentes.
são de pesquisadores, em diversos do- Levando-se em conta esses emara-
mínios das ciências sociais e agrárias, nhados de sentidos, faz-se necessário
que sistematicamente vêm tentando reconhecer que tanto agricultor familiar –
construir meios de interpretação, al- categoria socioprofissional e agente
guns deles acompanhando a imediata social correspondentes ao distintivo
rasteira das mudanças políticas e das segmento da agricultura familiar – quan-
diversas formas de inserção que vão to agricultura familiar são termos clas-
ganhando expressão pública. Essa ade- sificatórios construídos como produ-
são orientada pelo investimento inter- tos de ação política. São termos cujos
pretativo, nos casos em que a sintonia sentidos designados devem se adequar
não é metodologicamente colocada a dinâmicas que se desdobram nos
em questão, corresponde a efeitos li- campos de luta que elaboram catego-

39
Dicionário da Educação do Campo

rizações positivas e negativas. Jamais Diante dos investimentos políti-


podem ser compreendidos como um cos para a construção social da ca-
estado, como substantivos dotados de tegoria socioeconômica (agricultor fa-
essência, pois que eles não têm sentido miliar) ou do exercício do fazer-crer
em si mesmos – salvo quando, no de- uma organização desejada (agricultu-
bate político, essas reificações devam ra familiar versus agricultura patronal,
ser acolhidas para fazer-crer o que se agricultura camponesa), aos cientistas
deseja crível, o que se deseja real, e, sociais cumpre o dever de restituir
por conseguinte, em nome da dissi- o caráter sociológico da categoria:
mulação daquele estatuto que o termo
reconhecer que esses termos evo-
adquire como recurso de mobilização
cam uma designação social e têm
política. Da mesma forma, devem
ser compreendidos como expressão sua eficácia política porque criam
de espaços de luta na constituição de posições e direitos correspondentes.
produtores por diferentes trajetórias, E assim, também reconhecer que
mormente daqueles que, por diversos esses exercícios políticos e acadêmi-
interesses, nem sempre politicamente cos são provisórios, porque sempre
convergentes, querem assim ser so- passíveis de novas interpretações e
cialmente reconhecidos. contra-argumentações.

Notas
1
Sobre o peso dos valores familiares na organização da unidade produtiva, ver Carneiro, 2000.
2
Essas questões têm sido por mim refletidas com maior detalhe em outros textos. Ver
Neves, 1995, 2006 e 2007.

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AGRICULTURAS ALTERNATIVAS
Paulo Petersen

As agriculturas alternativas Com base nessa perspectiva histó-


rica, as agriculturas alternativas podem
em um enfoque histórico ser definidas como sistemas socio-
Uma das principais lições aprendi- técnicos desenvolvidos em resposta
das com o estudo da história da agricul- a bloqueios sociais, econômicos e/ou
tura é que a superação de um padrão de ambientais encontrados na agricultura
organização produtiva por outro nunca convencionalmente praticada em con-
ocorreu como resultado automático de textos históricos definidos. Dependen-
novas descobertas tecnológicas. A ado- do das condições políticas e institucio-
ção em larga escala de novos sistemas nais vigentes, esses sistemas técnicos
técnicos na agricultura costuma esbar- alternativos podem permanecer como
rar em obstáculos político-institucio- opções subvalorizadas pela sociedade
nais, mesmo quando esses sistemas já ou podem suplantar os padrões con-
tenham comprovado sua capacidade vencionais de produção. Essa forma
para responder a críticos dilemas en- de compreender a noção de agricultura
frentados pelas sociedades em deter- alternativa está bem ilustrada no livro
minados momentos de suas trajetórias Alternative agriculture (Thirsk, 1997),
históricas. Em outras palavras, são as que realça a importância decisiva das
relações de poder nas sociedades que formas emergentes de agricultura na
determinam os padrões tecnológi- evolução do mundo rural inglês duran-
cos dominantes em suas agriculturas. te os seis últimos séculos.
Exemplos desse fenômeno estão farta Outra importante síntese sobre a
e detalhadamente apresentados no li- evolução histórica da agricultura foi
vro História das agriculturas no mundo: do elaborada por Ester Boserup, autora do
Neolítico à crise contemporânea (Mazoyer livro Evolução agrária e pressão demográfica
e Roudart, 2010) e evidenciam que a (1987). Para Boserup, os dez mil anos
agricultura não fez seu percurso histó- de história da agricultura podem ser
rico por meio de uma sucessão linear interpretados como a incessante bus-
de sistemas técnicos. Pelo contrário, a ca pela intensificação do uso dos solos
situação mais comum foi a convivên- em resposta às crescentes demandas
cia de diferentes sistemas no tempo e alimentares decorrentes dos aumentos
no espaço, sendo uns dominantes (ou demográficos. A autora descreve como
convencionais) e outros emergentes essa evolução foi marcada por mudan-
(ou alternativos). ças na gestão da fertilidade dos solos,

42
Agriculturas Alternativas
A
mediante o encurtamento do tempo agroquímica, a acelerada estruturação
dos pousios e, finalmente, a sua com- de um setor industrial voltado para a
pleta supressão, a adoção de sistemas agricultura (que, em grande medida,
alternativos de manejo da biomassa, foi herdeiro de uma indústria bélica
viabilizados pela introdução de adubos em desativação) e os pesados inves-
verdes e plantas forrageiras, e a maior timentos públicos compôs as condi-
integração ecológica entre a lavoura e ções necessárias para a viabilização da
a pecuária. Até o final do século XIX, REVOLUÇÃO VERDE, também conhecida
as estratégias técnicas para a gestão da como Segunda Revolução Agrícola.
fertilidade eram desenvolvidas com A Revolução Verde disseminou glo-
base no manejo da biomassa localmen- balmente um novo regime tecnológico
te produzida. Porém essas dinâmicas baseado na dependência da agricultura
de interdependência e mútua transfor- em relação à indústria e ao capital fi-
mação entre os sistemas sociotécnicos nanceiro. Esse processo foi alavancado
e os ecossistemas foram profundamen- ideologicamente sob o manto da mo-
te alteradas com o surgimento dos fer- dernização, uma noção legitimadora
tilizantes sintéticos. O “pai da química dos arranjos institucionais que pas-
agrícola”, o alemão Justus von Liebig saram a articular de forma coerente
(1803-1873), comprovou por meio de interesses empresariais com os para-
seus experimentos que as plantas se digmas técnico-científico e econômi-
nutrem de substâncias químicas, procu- co consolidados. Além disso, o rumo
rando assim contestar a teoria humista, que assumiu a agricultura a partir do
um postulado teórico que fundamenta- final do século XIX foi muito funcio-
va a prática da adubação orgânica des- nal para a evolução do capitalismo em
de a Grécia Antiga. As descobertas de um momento histórico de acelerada
Liebig abriram caminho para que o de- industrialização e urbanização. Nesse
senvolvimento tecnológico na agricul- novo contexto histórico, a agroquími-
tura tomasse o rumo da agroquímica, ca assumiu o estatuto de “agricultura
permitindo o paulatino abandono das convencional” com base no qual a no-
práticas orgânicas de recomposição da ção de agricultura alternativa passou a
fertilidade. Configuraram-se assim as ser referida.
condições necessárias para a dissemi-
nação das monoculturas em substitui-
ção às agriculturas diversificadas, ajus- Vertentes de agriculturas
tadas às especificidades ecológicas alternativas à agroquímica
locais, e os avanços posteriores nos
campos da motomecanização e da ge- O sentido adotado atualmente para
nética agrícola. A simplificação ecoló- a noção de agricultura alternativa tem
gica resultante da ocupação da paisa- suas origens ligadas à contestação da
gem agrícola com monoculturas fez agroquímica organizada por “movi-
multiplicar-se exponencialmente o nú- mentos rebeldes”. Essa denominação
mero de insetos-praga e de organismos foi empregada por Ehlers (1996) em
patogênicos, abrindo a frente de inova- seu livro Agricultura sustentável: origens e
ção em direção aos agrotóxicos. Após perspectivas de um novo paradigma. Tendo
a Segunda Guerra Mundial, a conver- emergido quase que simultaneamente
gência entre os avanços científicos na na Europa e no Japão nas décadas de

43
Dicionário da Educação do Campo

1920 e 1930, esses movimentos coin- matéria orgânica e de aditivos para


cidiam na defesa de práticas de mane- a adubação, atualmente conhecidos
jo que privilegiam o vínculo estrutural como “preparados biodinâmicos”,
entre a agricultura e a natureza. Uma que visam reestimular “as forças
excelente síntese sobre a emergência naturais” dos solos. Outra noção-
das agriculturas alternativas nesse pe- chave de Steiner é a concepção da
ríodo foi apresentada no artigo “Eco- propriedade agrícola como um or-
agriculture: a review of its history and ganismo vivo, integrado em si mes-
philosophy” (Merril, 1983). Para a au- mo, ao homem e ao cosmo.
tora, os fundamentos teóricos desses b) Agricultura orgânica: vertente re-
movimentos podem ser encontrados lacionada ao trabalho do botânico
em trabalhos científicos do final do e agrônomo inglês Albert Howard
século XIX, que realçam a importân- (1873-1947). Como todos os agrô-
cia dos processos biológicos para a nomos formados em sua época,
manutenção da fertilidade dos solos Howard foi levado a defender as mo-
agrícolas. Outro texto sobre o tema dernas técnicas agroquímicas como
que se popularizou no Brasil intitula- meio para o progresso na agricultura.
se “Histórico e filosofia da agricultu- Suas convicções foram fortemente
ra alternativa” (De Jesus, 1985). Com abaladas quando tentou transferir os
pequenas variações entre esses autores, postulados agroquímicos para a Ín-
os movimentos alternativos podem ser dia, onde trabalhou por vários anos.
categorizados nas seguintes vertentes: Seus conhecimentos sobre genética e
melhoramento vegetal, associados à
a) Agricultura biodinâmica: intima-
mente vinculada à antroposofia, apurada observação dos métodos de
uma filosofia elaborada pelo austría- manejo tradicionais de fertilização,
co Rudolf Steiner (1861-1925) que abriram-lhe nova perspectiva para a
influenciou o desenvolvimento de investigação nesse campo. Ao enfa-
abordagens metodológicas em di- tizar a importância da matéria orgâ-
ferentes campos do conhecimento, nica na gestão da fertilidade, Howard
tais como a pedagogia, a medicina sustentava que o solo não poderia
e a psicologia. Atribui-se o nasci- continuar sendo concebido como um
mento da agricultura biodinâmica a mero substrato físico, dado que nele
um ciclo de palestras proferidas por ocorrem processos biológicos essen-
Steiner em 1924, nas quais ele enfa- ciais ao desenvolvimento sadio das
tizou a importância da manutenção plantas. Para ele, a fertilidade deve
da qualidade dos solos para que as estar assentada no suprimento de
plantas cultivadas se mantivessem matéria orgânica e, principalmente,
sadias e produtivas. A ênfase dada na manutenção de elevados níveis de
ao tema da sanidade das plantas húmus no solo. Essas ideias o leva-
justificava-se pelo aumento da in- ram a desenvolver o processo indore
cidência de insetos-praga e doen- de compostagem, prática hoje ampla-
ças com o avanço da agroquímica. mente disseminada.
Para lidar com essa questão, Steiner
apresentou propostas de manejo c) Agricultura biológica: o modelo de
dos solos baseadas no emprego de produção agrícola organo-biológico

44
Agriculturas Alternativas
A
teve suas bases lançadas na déca- 1970 atualizou a crítica à agricul-
da de 1930 pelo suíço Hans Peter tura convencional, em particular
Müller. Como político, Müller, ao o seu efeito sobre a diminuição da
realizar sua crítica à agroquímica, qualidade dos alimentos. Há quem
enfatizava questões de natureza defenda que Aubert seja o pai da
socioeconômica, entre elas a preo- agricultura biológica tal como ela
cupação com a crescente perda de é hoje compreendida. Segundo
autonomia por parte dos agriculto- Ehlers (1996), é difícil precisar
res e com a forma que vinha assu- se as ideias de Aubert mantinham
mindo a organização dos mercados ligação com as de Müller e Rush,
agrícolas, ao se alargarem os circui- o que justificaria sua proposta de
tos que encadeiam a produção ao agricultura biológica como uma
consumo de alimentos. Suas elabo- vertente distinta da orgânica e da
rações não foram levadas em con- biodinâmica. Um pesquisador que
sideração por cerca de três déca- certamente exerceu influência so-
das até que o médico alemão Hans bre Aubert foi o biólogo francês
Peter Rush as retomou, centrando Francis Chaboussou, autor da teo-
seu foco de atenção nas relações ria da trofobiose, que correlaciona
entre a qualidade da alimentação e a infestação de insetos-praga e pa-
a saúde humana. A diferença essen- tógenos com o estado nutricional
cial entre essa vertente alternativa das plantas, demonstrando ainda
e a agricultura orgânica tal como que a aplicação de agrotóxicos e
preconizada por Howard é que a de fertilizantes solúveis provoca
associação entre pecuária e agricul- desordens metabólicas que favore-
tura não seria a única forma de ob- cem essas infestações.
ter matéria orgânica para a repro-
d) Agricultura natural: associada à obra
dução da fertilidade. Esse recurso
de dois mestres japoneses, Mokiti
poderia ser proveniente de outras
Okada (1882-1953) e Masanobu
fontes externas à propriedade, in-
Fukuoka (1913-2008), que julgavam
clusive de resíduos urbanos. Além ser essencial a agricultura seguir as
disso, os defensores da agricultura leis da natureza e defendiam que
biológica apregoavam o uso de pós as atividades agrícolas fossem rea-
de rocha como estratégia para a lizadas com um mínimo de inter-
recomposição de minerais no solo. ferência na dinâmica ecológica dos
Dessa forma, ao contrário das no- ecossistemas. Para Fukuoka, tanto a
ções de autossuficiência propug- agricultura convencional quanto as
nadas por outras vertentes alterna- vertentes alternativas orgânica e bio-
tivas, Müller e Rush entendiam que dinâmica fundamentam-se em prá-
a propriedade agrícola deve estar ticas que intervêm profundamente
integrada ecologicamente com ou- nos sistemas naturais. Ele defendeu
tras propriedades e com o sistema o método que denominou “não fa-
do território do qual faz parte. Um zer”, ou seja, não arar a terra, não
importante difusor da agricultura aplicar inseticidas e fertilizantes
biológica foi Claude Aubert, pes- (nem os compostos defendidos por
quisador francês que na década de Howard), não podar as árvores

45
Dicionário da Educação do Campo

frutíferas, não capinar (só limpezas (vegetal e animal) e no manejo da bio-


seletivas) para que assim os pro- massa (adubação verde, forragens e es-
cessos ecológicos naturais possam terco). Já a vertente originada no Japão
guiar a atividade produtiva sem o não preconiza o uso do esterco, prática
emprego desnecessário de energia. já consolidada na Europa há séculos.
Tanto Okada quanto Fukuoka com- Apesar das restrições de ordem filosó-
preendiam a agricultura não apenas fica, como a alegação de que o uso de
como meio de produzir alimentos, excremento animal na fertilização dos
mas também como uma abordagem solos tornaria os alimentos impuros, o
estética e espiritual para a vida cujo fato é que esse recurso não era abun-
objetivo final seria o cultivo da per- dante na agricultura tradicional japone-
feição dos seres humanos. sa. Essa condição material levou a ver-
tente oriental a desenvolver sofisticadas
e) Permancultura: as ideias de Fukuoka técnicas de compostagem de resíduos
difundiram-se e foram desenvolvi- vegetais, incluindo o uso de culturas de
das na Austrália, onde receberam microrganismos que auxiliam a decom-
nova síntese, sob a denominação posição e melhoram a qualidade dos
de permancultura, ou agricultura compostos assim originados.
permanente. Os autralianos Bill
Mollinson e David Holmgren siste-
matizaram e desenvolveram cientifi- Da marginalidade à disputa
camente a proposta. Assim como a pelo reconhecimento como
agricultura natural, a permancultura alternativa
é baseada no desenho de analogias
entre os ecossistemas naturais e os Em um ambiente ideológico do-
agroecossistemas por meio de siste- minado pela ideia de progresso e pelo
mas agroflorestais que valorizem os avanço da civilização urbano-industrial,
padrões naturais de funcionamento os movimentos de agricultura alterna-
ecológico e que permitam o estabe- tiva foram logo desqualificados como
lecimento de agriculturas estáveis, retrógrados e sem validade científica.
produtivas e harmoniosamente in- No entanto, os efeitos negativos da
tegradas à paisagem. agricultura convencional, já denuncia-
dos nas primeiras décadas do século
Apesar das nuances relacionadas XX, irradiaram-se e aprofundaram-se
à origem geográfica e cultural de cada com a disseminação global da agro-
uma das vertentes de agricultura alter- química, desencadeando nova onda
nativa, identifica-se considerável con- de contestações a partir da década de
vergência nos princípios que orientam 1960. O livro A primavera silenciosa, pu-
as práticas que as mesmas defendem. blicado em 1962 pela bióloga norte-
De certa forma, uma das principais con- americana Rachel Carson (1907-1964),
tribuições dos fundadores das correntes representou um marco da repercussão
alternativas europeias foi a sistematiza- planetária para a consciência ecológica,
ção dos princípios técnicos da Primeira ao denunciar os graves efeitos nocivos
Revolução Agrícola, cujas práticas fun- dos agrotóxicos sobre a saúde humana
damentavam-se essencialmente no em- e sobre o meio ambiente. O crescimen-
prego inteligente da agrobiodiversidade to de uma consciência social crítica e

46
Agriculturas Alternativas
A
ativa diante dos efeitos da agricultura vencional. Nessa oportunidade, o NRC
convencional criou o ambiente pro- previa que “o alternativo de hoje será
pício para a reemergência dos movi- o convencional de amanhã” (National
mentos contestadores que, na década Research Center, 1989). No entanto,
de 1970, passaram a ser reconhecidos apesar da acentuação da crise sistêmi-
genericamente como movimentos de ca planetária ocorrida desde então e do
agricultura alternativa. A associação potencial de resposta demonstrado pe-
de um número crescente de pesquisa- las variadas manifestações da agricultu-
dores a esses movimentos resultou em ra alternativa, elas permanecem politi-
importantes desdobramentos nas déca- camente marginalizadas sob a alegação
das seguintes, com a sistematização de de que representam uma opção pelo
um novo enfoque científico: a agroe- retrocesso. Por intermédio da propa-
cologia. Segundo Stephen Gliessman, ganda ideológica e por sua influência
ecólogo da Universidade de Santa determinante nos processos decisórios
Cruz, Califórnia, o interesse pela aná- em âmbitos nacionais e supranacionais,
lise ecológica da agricultura e a busca as corporações do complexo genético-
por sistemas alternativos ampliaram-se industrial se esforçam para ocultar a
no final dos anos 1950. Miguel Altieri, existência de alternativas agronomica-
entomologista chileno e professor na mente inteligentes, socialmente éticas,
Universidade de Berkeley, Califórnia, economicamente viáveis e ecologica-
deu contribuição decisiva para o aper- mente sustentáveis. Em lugar de reais
feiçoamento da perspectiva agroe- alternativas que permitam enfrentar
cológica, ao enfatizar a importância estruturalmente o desafio de superar
dos sistemas agrícolas tradicionais as contradições do sistema nos dias
como fonte de saberes e práticas para de hoje e alimentar 9 bilhões de habi-
o desenvolvimento de métodos de tantes no planeta por volta de 2050, as
manejo produtivo em bases sustentá- propostas promovidas como alternati-
veis. Além das contribuições no pla- vas pelo sistema dominante orientam-
no científico-acadêmico, Gliessman e se para o aprofundamento da interven-
Altieri também foram responsáveis ção no mundo natural, com a utilização
pela divulgação da agroecologia a par- da agricultura transgênica. Suplantar a
tir do final da década de 1980, o que hegemonia da agricultura convencional
permitiu a organizações promotoras para que as agriculturas alternativas se-
da agricultura alternativa maior con- jam amplamente incorporadas nas so-
sistência conceitual e metodológica. ciedades contemporâneas é um desafio
Em 1989, o Conselho Nacional que encerra profundos conflitos de
de Pesquisa (NRC, do inglês National concepção e de poder. Somente uma
Research Center) dos Estados Unidos vontade coletiva forte, atuante e infor-
publicou o relatório intitulado Alter- mada por uma profunda consciência
native agriculture, a primeira manifesta- ecológica criará a correlação de forças
ção oficial de grande repercussão que necessária para isso, abrindo caminho
reconhece o potencial da agricultura para que a humanidade tenha melhores
alternativa para o enfrentamento dos condições de enfrentar os difíceis tem-
desafios colocados pela agricultura con- pos que tem pela frente.

47
Dicionário da Educação do Campo

Para saber mais


BOSERUP, E. Evolução agrária e pressão demográfica. São Paulo: Hucitec, 1987.
EHLERS, E. Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma.
São Paulo: Livros da Terra, 1996.
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MERRIL, M. Eco-agriculture: A Review of its History and Philosophy. Biological
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THIRSK, J. Alternative Agriculture: A History – from the Black Death to the Present
Day. Nova York: Oxford University Press, 1997.

AGROBIODIVERSIDADE
Luiz Carlos Pinheiro Machado

O termo agrobiodiversidade é for- A agrobiodiversidade é um compo-


mado por agro, do latim, campo, cul- nente da biodiversidade e com ela se con-
tura, bio, do grego, vida, diversidade. funde. Não existe na natureza nenhum
Significa, portanto, diversidade da vida bioma singular. Mesmo nas regiões
no campo, das culturas. Segundo o mais inóspitas – geleiras, desertos, pára-
Dicionário Aurélio, “biodiversidade é a mos – há, sempre, várias formas de vida.
existência, numa dada região, de uma A vida sempre depende de outras vidas.
grande variedade de espécies de plan- É a chamada cadeia trófica (ou cadeia
tas, ou de animais” (Ferreira, 2003, alimentar). Quando se interrompe uma
p. 298). E eu acrescento “de ambos”, cadeia biológica com uma monocultura,
animais e vegetais, porque, a não ser por exemplo, todo o bioma é agredido;;
em microambientes controlados para todos os indivíduos e as espécies que
fins de pesquisa, dificilmente existirá um estão inter-relacionados são destruídos.
ecossistema exclusivamente vegetal ou Assim, a agrobiodiversidade é um pres-
exclusivamente animal. Uma proprieda- suposto, uma condição para a existência
de fundamental da matéria viva é ser di- de vida no campo e, por consequência,
versa. Sem essa propriedade, não há vida. na natureza, no mundo.
A diversidade biológica e a diversidade A diversidade é a propriedade de um
cultural alimentam-se mutuamente. conjunto de objetos de serem diferen-

48
Agrobiodiversidade
A
tes e não idênticos, em que cada um (ou de insumos industriais e aos latifundiá-
cada classe) deles difere dos demais, em rios, cujo único objetivo é o lucro.
uma ou mais características. Quando o A agrobiodiversidade não diz res-
vocábulo é aplicado aos seres vivos – peito somente à vida, à fauna e à flora
bio – afirmamos que cada um é sin- da superfície terrestre. Uma parcela de
gular, distinto;; que não existem dois igual importância está debaixo da terra,
organismos idênticos em todas as suas no subsolo. Aí vivem milhares de espé-
características (Halffter et al., 1999). cies vegetais e animais. Em muitos so-
A avaliação da diversidade, a quan- los a vida subterrânea tem peso maior
tidade e a proporção dos diferentes ele- que os animais criados na superfície. A
mentos que o integram, é a medida da diversidade da vida no solo é um indi-
heterogeneidade de um sistema com- cador da sua fertilidade: quanto maior
plexo. Assim, a biodiversidade cor- a biodiversidade, melhor a fertilidade.
responde a um sistema que autogera, A manutenção e o incremento da vida
através do tempo, sua própria hete- do solo são antagônicos às práticas de
rogeneidade (Halffter et al., 1999). A agressão ao solo: arado, grade, subsola-
expansão da fronteira agrícola, com a gem e outras. A diversidade microbiana
destruição do bioma original, agre- é um fator que controla a produtivida-
dindo-o e transformando-o em mono- de e a qualidade do agroecossistema
culturas – de grãos, ou de bovinos, ou (Kennedy, 1999, p. 1).
de árvores – é uma severa agressão à A seleção para alcançar altas pro-
biodiversidade. As monoculturas, ve- duções reduziu a contribuição das
getais ou animais, são, pois, axiomatica- variedades e raças locais que, mercê
mente indesejáveis. A monocultura é a de adaptações milenares, demandam
antítese da agrobiodiversidade. baixos insumos, ou seja, têm melhor
A sustentabilidade do planeta, con- aproveitamento dos nutrientes. Vavilov
cebida em seus mais amplos limites, (1951, p. 2) menciona exemplos em-
começa pelo respeito e a proteção da blemáticos: na ilha de Sakurajima, no
agrobiodiversidade. Protegê-la é dever Japão, ele encontrou uma variedade de
de todos e obrigação de cada um. Isso rabanete cuja raiz pesava de 15 a 17kg!
significa que as técnicas utilizadas no Altas produções, porém, sempre de-
processo de produção agrícola devem pendem de altos insumos energéticos
se pautar pela proteção à biodiversida- (no caso do rabanete gigante, Vavilov
de: rotação de culturas, plantio direto, não informa o tempo do ciclo vegetati-
respeito às culturas locais, ausência de vo, nem se a variedade tinha alta capa-
agrotóxicos, proteção do solo contra cidade de aproveitamento da fotossín-
erosão, sucessão animal/vegetal, en- tese e dos nutrientes do solo).
fim procedimentos tecnológicos que, A fonte energética para altas pro-
respeitando o indispensável critério da duções agroecológicas é o sol. O fluxo
produção em escala, atendam a essas da água de superfície dá uma medida da
condições. A simplificação das tecno- estabilidade e complexidade do sistema:
logias agrícolas a partir do desenvolvi- quanto menor a perda de água super-
mento das monoculturas de soja, milho, ficial e maior a evaporação, mais com-
eucalipto, pínus, bovinos e outras só plexo e melhor é o sistema (Paschoal,
interessa aos fabricantes de máquinas e 1979). A matéria orgânica é a principal

49
Dicionário da Educação do Campo

fração do solo e revela a sua comple- tanto animais quanto vegetais. É neces-
xidade. As monoculturas e as agressões sário usar e proteger a adaptação milenar
ao solo destroem a matéria orgânica, ao ambiente do milho, da mandioca e do
que, ademais, é o principal reservatório feijão, ou mesmo a adaptação centenária
de carbono na superfície terrestre: 1 g de bovinos e suínos ao ambiente.
de matéria orgânica retém 3,67 g de A criação de animais pode manter,
dióxido de carbono (CO2 ). A matéria melhorar ou perturbar a biodiversida-
orgânica é o biocatalisador da vida do de (Blackburn e Haan, 1999, p. 91).
solo (Machado, 2004). Dentre os diver- Por exemplo, no sistema extensivo
sos males provocados pelas monocultu- do latifúndio, os animais promovem
ras, a erosão genética é um dos piores. a compactação do solo e perturbam a
Muitas espécies desapareceram com a biodiversidade. Se, mesmo com a con-
implantação das monoculturas. Isso afeta duta inaceitável do desmatamento, a
a cadeia trófica, porque, se um elo da cor- pastagem for manejada com o pasto-
rente desaparece, a cadeia é destruída. reio racional Voisin,1 há, então, melho-
A produção baseada na proteção de ria da estrutura do solo, incremento da
raças e culturas locais atende às deman- vida subterrânea e melhoria da biodi-
das específicas de populações locais, versidade. Os efeitos desse processo,
mas não resolve o problema mundial entretanto, dependem da combinação
de falta de escala na produção. Assim, é entre a intensidade do pastoreio e as
uma contribuição cujo valor histórico- chuvas, além de outros fatores exter-
cultural qualitativo é mais significativo nos (Blackburn e Hann, 1999, p. 87).
do que o quantitativo. Porém as cultu- As plantas na comunidade vegetal
ras locais têm dado, também, contri- não se deterioram linearmente. Há di-
buições de quantidade. Os incas, por versos níveis, de acordo com a pressão
exemplo, cultivavam uma variedade de que recebem. A produção de biomassa
milho cujo grão era quatro vezes maior e a composição botânica das plantas
do que os grãos atuais (Vavilov, 1951). flutuam e se a pressão de pastoreio é
Esse é um material genético que, se re- relaxada antes do nível crítico – ou seja,
cuperado, pode servir para melhorar a antes do ponto ótimo de repouso –,
produtividade do cereal. a recuperação da comunidade é me-
Além disso, a perda da diversidade lhor. Portanto, o gado bovino pode ter
genética ou da biodiversidade amea- impacto positivo ou negativo sobre a
ça os sistemas de produção animal de biodiversidade, dependendo da forma
todo o mundo, e a diversidade genéti- como é criado e manejado.
ca animal é essencial para satisfazer as A biotecnologia e a transgenia, da
necessidades futuras da sociedade to- forma como têm sido utilizadas na pro-
tal (National Research Council, 1993). dução agrícola, são técnicas reducionistas
Portanto, é essencial que se harmonize que promovem as monoculturas e pro-
o processo produtivo com a manuten- duzem severa erosão genética. Sem men-
ção da biodiversidade. cionar os efeitos nocivos que o consumo
No que diz respeito ao Brasil, para qual- de seus produtos causa à saúde humana,
quer programa de melhoramento e/ou são técnicas que eliminam a diversidade
seleção, é preciso respeitar e usar judi- biológica. E isso impede o melhoramen-
ciosamente os germoplasmas nacionais, to genético natural das produções.

50
Agrobiodiversidade
A
As modificações dos germoplasmas variabilidade entre e dentro das espé-
só podem ser feitas artificialmente por cies – é o elemento fundamental para
meio de genética molecular, que tem al- identificar características genéticas que
tíssimos custos. E elas beneficiam ape- são úteis para produzir novas varieda-
nas as multinacionais que as produzem, des agrícolas, novos medicamentos e
ao mesmo tempo em que implicam a novos produtos (Ribeiro, 2003).
total dependência dos produtores des- Os povos pré-históricos alimenta-
sas empresas. Isso leva ao comprome- vam-se com mais de 1.500 espécies de
timento da soberania alimentar nos ní- plantas, e pelo menos 500 espécies e
veis local e nacional. variedades têm sido cultivadas ao lon-
A produtividade também aumenta go da história. Há 150 anos a humani-
com a diversidade. Conforme relata dade se alimentava com o produto de 3
Pat Mooney: mil espécies vegetais que, em 90% dos
países, eram consumidas localmente.
Um estudo realizado por uma uni- Hoje, quinze espécies respondem por
versidade dos Estados Unidos, 90% dos alimentos vegetais e quatro
que compreende diversas varie- culturas – trigo, milho, arroz e soja –
dades de arroz, na China e nas respondem por 70% da produção e do
Filipinas, mostrou que se forem consumo mundiais. Tende-se, assim, a
cultivadas paralelamente diver- uma perigosa monocultura, e a homo-
sas variedades de arroz, o rendi- geneidade leva à morte, ao passo que a
mento aumenta 89%, enquanto heterogeneidade, que é o estado dinâ-
as doenças reduzem-se 98%. O mico, é a vida.
estudo conclui que a diversi- A homogeneização produzida
dade ultrapassa amplamente o pelos procedimentos da REVOLUÇÃO
desempenho das variedades ge-
V ERDE e pelas chamadas exigências de
neticamente modificadas (trans-
mercado tem levado à morte por pro-
gênicas) e homogêneas. (2002,
p. 154) duzir a paralisação dos processos vi-
tais, esses intrinsecamente dinâmicos
Na mesma linha, Escher (2010), em e dialéticos (Machado, 2003). A diver-
dissertação de mestrado no Programa sidade é um componente essencial de
de Pós-graduação em Agroecossiste- todos os sistemas vivos para alcança-
mas da Universidade Federal de Santa rem a sua estabilidade instável;; e da
Catarina (UFSC), encontrou, na diver- instabilidade dinâmica, cria-se a esta-
sidade da flora e da fauna do entorno da bilidade. É nesse movimento dialético
lavoura, fator decisivo para a sanidade que se fundamenta e se apoia a susten-
da lavoura de arroz ecológico. A biodi- tabilidade. Não existe sustentabilidade
versidade silvestre e agrícola – isso é, a na natureza sem biodiversidade.

Nota
1
Pastoreio racional Voisin é um método de manejo das pastagens que se baseia na divisão
da área e no uso dos pastos em seu “ponto ótimo de repouso”, isto é, quando o pasto tem a
maior disponibilidade de nutrientes e melhor qualidade biológica. O pastoreio é conduzido
pelo ser humano, respeitando os tempos variáveis de repouso do pasto e os tempos variá-
veis de ocupação das parcelas.

51
Dicionário da Educação do Campo

Para saber mais


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AGROCOMBUSTÍVEIS
Frei Sergio Antonio Görgen

Agrocombustíveis são combustíveis, O biodiesel, como combustível,


líquidos ou gasosos, para motores à substitui ou é misturado ao diesel de
combustão, provenientes da agri- petróleo. No Brasil, por meio da lei
cultura. Os mais conhecidos entre os nº 11.116, de 18 de maio de 2005, o go-
agrocombustíveis líquidos são o álcool verno brasileiro estabeleceu, em 2011,
(etanol) e o biodiesel. O biogás é um um percentual de 5% de biodiesel mis-
combustível gasoso que pode ser pro- turado no diesel mineral, mas ele pode
duzido a partir do estrume de porcos, ser usado em percentuais maiores – na
vacas etc., mas seu uso hoje é limitado, Europa, usa-se o biodiesel puro, sem
por causa da necessidade de adaptação necessidade de adaptação de motores
mecânica dos motores. Normalmente é diesel. Convencionou-se denominar
aproveitado para a geração de energia B5 ao diesel que traz 5% de biodiesel
elétrica, uso doméstico e secagem de misturado ao diesel de petróleo, caso
cereais. Já o álcool e o biodiesel são usa- do Brasil;; quando a mistura é de 20%,
dos em larga escala no Brasil, Europa, diz-se B20;; o biodiesel puro, sem mis-
Estados Unidos e Índia. tura, denomina-se B100.
A principal matéria-prima para a O óleo vegetal puro, pré-tratado
produção de álcool é a cana-de-açúcar, e microfiltrado também pode ser uti-
mas ele também pode ser produzido lizado como combustível, bastando
tendo como matéria-prima o sorgo para isso a adaptação dos motores. O
sacarino, a mandioca, a batata-doce, inventor do motor diesel, que se cha-
a beterraba, o milho, o arroz etc. Em mava Rudolf Diesel, fez seus primeiros
princípio, todos os vegetais que con- experimentos com óleo de amendoim.
têm açúcar podem ser matéria-prima Na tecnologia de motores Elsbett,
para a produção de álcool. O álcool, os motores são movidos a óleo vege-
como combustível, substitui a gasolina tal. Infelizmente, as multinacionais das
ou é misturado a ela. indústrias de motores impediram até
Já o biodiesel é produzido tendo hoje a produção em escala dos motores
como matéria-prima os óleos vegetais, movidos a óleo vegetal puro.
mas também podem ser utilizadas gor- No Brasil, há dois modelos antagôni-
duras animais, especialmente sebo bo- cos de produção de agrocombustíveis:
vino e banha de porco. 1) o do agronegócio, de produção em

53
Dicionário da Educação do Campo

grande escala e com a terra organizada ser industrializada e utilizada na produ-


em latifúndios, concentrando riqueza, ção de sabonetes, sabões, cosméticos
com cada vez maior controle das em- ou mesmo na queima para produção de
presas transnacionais, com monocultu- energia. Há também outro método
ras de cana e soja, gerando pobreza e de produção de biodiesel com óleos
fome, sem sustentabilidade ambiental vegetais chamado craqueamento, que
e criando uma competição inaceitável se dá pela quebra e separação de mo-
entre produção de alimentos e energia;; léculas em uma coluna separadora, por
2) o da agricultura camponesa, voltado meio do aumento da temperatura. Em-
para a soberania alimentar e energética bora pouco usado, esse método pode
das comunidades camponesas, combi- ser muito útil para o autoabastecimento
nando produção de alimentos e ener- de pequenas comunidades.
gia com proteção ao meio ambiente A produção de álcool se inicia com
(alimergia – alimento, meio ambiente, o cultivo de plantas ricas em sacarose.
energia), com produção diversificada No Brasil, é utilizada exclusivamente a
e consorciada e sistemas industriais de cana-de-açúcar, mas em alguns países
multifinalidades, de pequeno e médio as matérias-primas fundamentais para
porte, descentralizados. a produção de álcool são a beterraba
A produção de biodiesel se inicia ou o milho. A cana-de-açúcar pode ser
com a produção de grãos oleagino- transportada até a usina ou microusina
sos, e, deles, os mais utilizados hoje de processamento de álcool combustí-
no mundo são soja, canola, girassol, vel, por meio de carretas tracionadas,
amendoim e mamona. Em seguida, é caminhões e outros, onde é descarrega-
feita a extração do óleo, por método da manualmente. A cana também pode
mecânico ou por meio de solvente quí- ser moída diretamente na lavoura, uti-
lizando-se moenda móvel (moenda tra-
mico. Após a extração do óleo vegetal,
cionada a trator), e somente o caldo já
a torta ou farelo restante é um produto
decantado, pronto para ser utilizado na
que pode ser utilizado na alimentação
fermentação, é transportado. A ponta
humana e animal (caso do girassol e da cana é destinada à alimentação de
do amendoim), na alimentação animal bovinos. O bagaço e o bagacilho são
(caso da soja e da canola) e para fazer utilizados como alimentação bovina e
adubos orgânicos (caso da mamona, do para adubação de solo agrícola. Nas
pinhão manso e do tungue). grandes usinas, é queimada para gerar
Por fim, temos a produção do bio- calor e energia elétrica necessárias à
diesel, que pode ser realizada em uni- própria usina.
dades industriais de porte pequeno, Após ser extraída da cana-de-açúcar,
médio ou grande (refinarias) para fazer a garapa é filtrada, processo no qual
o processo da transesterificação, pelo são eliminadas eventuais sujidades pre-
qual o biodiesel é separado da gliceri- sentes nela. A decantação é outra etapa
na mediante uma reação química com da purificação da garapa. O decantador
metanol ou etanol, soda e elevação de possui cinco estágios, para que a ga-
temperatura. No final, temos como rapa fique isenta de qualquer sujidade
produto principal o biodiesel, mas te- que venha a atrapalhar a fermentação
mos também, como subprodutos, o e, consequentemente, o rendimento
próprio álcool e a glicerina, que pode do processo.

54
Agrocombustíveis
A
Após o processo de filtração e de- vapor d’água produzido na caldeira. O
cantação, tem-se o caldo da cana pro- alambique pode atingir temperaturas
priamente dito e pronto para o proces- de até 104ºC e a coluna de destilação, de
so de fermentação (mosto). Devem-se até 80ºC. Com isso, o etanol evapora
medir os sólidos totais (Brix, símbolo e vai, através de tubulações, para as
ºBx) do caldo com a ajuda de um den- colunas de destilação, onde ocorre a
símetro sacarímetro. O mosto deve ser separação do etanol da água. Depois
diluído até 11ºBx para que a fermenta- de separados, ocorre a condensação do
ção ocorra corretamente. vapor de etanol e, por consequência, a
O caldo de cana a 11ºBx é levado, mudança de fase do mesmo, que pas-
por gravidade, para as dornas de fer- sa a ser líquido. Após essa última eta-
mentação. A fermentação é realizada pa, o etanol sai do sistema e vai para
pela adição de fermento específico para o armazenamento.
fermentar o caldo da cana. A levedura O álcool combustível, com gradua-
utilizada é a Saccharomyces cerevisiae. A ção entre 92º e 96ºGL, é armazenado
fermentação ocorre à temperatura am- em um tanque aéreo de aço carbono.
biente, mas é necessário o controle da O vinhoto é o principal resíduo da
temperatura para que a mesma não ul- produção de álcool. Nas microusinas,
trapasse 32ºC, pois a temperatura ideal o vinhoto é armazenado em piscina
de trabalho das leveduras é de 28ºC. A apropriada, com volume máximo de
fermentação alcoólica é a transforma- 120 m3, revestida de uma geomembra-
ção em etanol da sacarose presente no na sintética impermeável de polietileno
caldo da cana. de alta densidade (Pead), com 1 mm de
espessura, a fim de evitar infiltrações.
Pelo controle do Brix presente no
O destino desse vinhoto é a aplica-
mosto é que se sabe quão avançado está
ção na lavoura, pois o vinhoto é mui-
o processo de fermentação. Quando
to rico em matéria orgânica. Além de
o mosto atinge 0ºBx é sinal de que todo o matéria orgânica, o vinhoto contém mi-
açúcar foi transformado em etanol, e nerais, entre os quais o potássio que,
o vinho pode seguir para a destilação. juntamente com o cálcio, aparece com
Deve-se deixar o vinho em repouso por destaque. Também pode ser usado na
aproximadamente três horas, a fim de alimentação de bovinos e porcos.
que ocorra a decantação das leveduras e
se mantenha o pé de cuba – designação
popular para a cultura enzimática que Alimergia
fermenta o caldo de cana, provocando Alimergia é um novo conceito em
a separação do álcool dos demais com- agricultura, pecuária e floresta que pro-
postos químicos – no fundo das dornas, cura desenvolver formatos produtivos
para ser utilizado na próxima fermenta- que integrem, de maneira sinérgica, a
ção. O vinho é, então, transferido para o
produção de alimentos e de energia
alambique por gravidade ou pela utiliza-
com a preservação ambiental. A alimer-
ção de bomba apropriada. Com o vinho
gia visa à soberania alimentar e energé-
na dorna volante, pode-se dar início à
tica das comunidades e dos povos de
destilação do mesmo.
maneira integrada e harmônica com os
O processo de destilação se dá me- ecossistemas locais. No entanto, isso
diante o aquecimento do vinho pelo só será possível com a utilização de

55
Dicionário da Educação do Campo

sistemas agrícolas de base ecológica, nas rururbanas, envolvem muita gente


em especial a agroecologia, que implica e muito trabalho direto, organizando
sistemas complexos de policultivos. sistemas industriais flexíveis e descen-
Porém, a alimergia não é apenas tralizados com circuitos comerciais e
um novo conceito que procura unir, distributivos readequados, conforme a
em um processo produtivo integrado e localização da população. Para isso,
sistêmico, alimentos, meio ambiente é preciso redistribuir as pessoas no es-
e energia. É um novo paradigma, ne- paço geográfico, o que traz a exigência
cessário para responder aos desafios e da Reforma Agrária. Esse novo siste-
às exigências objetivas que a comuni- ma produtivo é possível e necessário,
dade humana e a sobrevivência da vida e o sujeito social qualificado e capaz
da biosfera colocam em termos ener- de construí-lo são os camponeses, que
géticos, alimentares e ambientais para resistiram bravamente nas últimas dé-
o presente e, dramaticamente, para a cadas à voracidade destruidora do ca-
construção do futuro. pitalismo no campo.
Um novo paradigma é uma nova
forma de ver, analisar, pensar, projetar Energias renováveis e
e fazer. A necessidade desse novo para- alternativas
digma, no cenário que analisamos, é ur-
gente. Levá-lo à prática exige reposicio- O centro das discussões atuais é o
nar a ciência e a produção – e, no nosso biodiesel e o álcool combustível como
caso, reorganizar a vida no campo e a alternativas ao petróleo e à poluição
produção agropecuária –, tendo como causada pelos combustíveis fósseis.
eixo organizador da vida social e produ- Contudo, a discussão sobre as energias
tiva o novo paradigma alimérgico. deveria ser tratada de forma mais apro-
Os sistemas camponeses de produ- fundada e ampla. As fontes energéticas
ção, juntamente com as formas indíge- não devem estar limitadas ao petróleo,
nas, respondem melhor e com maior ao carvão e às grandes hidrelétricas.
eficácia a esse novo desafio. Os mo- Existem inúmeras possibilidades de ge-
nocultivos extensivos em grandes la- ração de energia. E, com certeza, mui-
tifúndios encontram-se na contramão tas modalidades de geração de energia
desse novo paradigma, que se coloca podem favorecer pequenas comunida-
como necessário e incontornável para des, como as dos camponeses, gerando
uma comunidade humana que precisa independência e autonomia.
comer com dignidade, diversificar suas
fontes de energia e limpar a atmosfera
Energia eólica
dos gases responsáveis pelo efeito estu-
fa. Isso requer e propõe formatos pro- Os ventos são grandes deslocamen-
dutivos diversificados e multifuncio- tos de ar. Eles se movimentam por causa
nais, geradores de postos de trabalho das diferenças de temperatura e pressão,
e renda, organizadores de sistemas in- quando o ar quente sobe e o frio, desce.
tegrados de produção agrícola, pecuá- Essa força natural pode ser transformada
ria e florestal. em energia elétrica por meio de cataven-
Os novos formatos produtivos nas tos, também conhecidos como pás eólicas
comunidades camponesas, ou mesmo ou aerogeradores.

56
Agrocombustíveis
A
Já na Antiguidade a força do vento O metano, principal componente do
era utilizada como energia para movi- biogás, não tem cheiro, cor ou sabor,
mentar os barcos à vela. Nos moinhos mas os outros gases presentes confe-
de vento, essa força era transformada rem-lhe um ligeiro odor desagradável.
em energia mecânica e utilizada para É uma fonte de energia renovável.
moer grãos e bombear água. É uma Para produzir o biogás, usa-se o
forma renovável e limpa de produção biodigestor. O gás produzido poderá
de energia. servir para gerar energia elétrica, para
secar cereais, como gás de cozinha ou
Energia solar no aquecimento de ambientes, tanto de
uso humano quanto na produção ani-
O Brasil é o país que mais dispõe de mal. Os resíduos da fermentação são
horas de sol por ano no mundo – entre utilizados na adubação agrícola.
2 mil e 3 mil horas, o que significa em tor-
no de 15 trilhões de megawatts por hora
Biomassa
(MWh). O sol é uma fonte praticamente
inesgotável de energia. Porém, a utilização A biomassa se origina da energia
da energia solar ainda é insignificante. solar. As plantas mantêm simultanea-
A energia proveniente dos raios mente dois processos para sobreviver:
solares é renovável, alternativa, limpa, a respiração e a fotossíntese. Por meio
não deixa resíduos no meio ambiente e da fotossíntese, as plantas produzem
não prejudica o ecossistema. Os raios tecidos vegetais, que, por sua vez, cres-
solares podem ser transformados, com cem e se reproduzem. A fotossíntese
recursos e equipamentos adequados, é uma reação bioquímica que converte
em eletricidade (energia fotovoltaica) a energia solar – que é inesgotável em
ou em calor (energia térmica). termos humanos – em energia quími-
Um exemplo de conversão direta da ca, armazenada nos tecidos vegetais
radiação solar em calor são os coletores sob a forma de compostos orgânicos
solares para aquecimento de água. A que formam a biomassa: folhas, caules,
geração de energia elétrica a partir do raízes, sementes, frutos etc.
aquecimento solar da água vem sendo A temperatura tem forte influência
testada para acionar geradores elétricos na intensidade da fotossíntese na maioria
com capacidade de até 200 MW. dos plantios de inverno, que têm seu óti-
mo térmico entre 15ºC e 30ºC;; já os plan-
tios de verão têm seu ótimo térmico entre
Biogás 20ºC e 40ºC. Ou seja, nessas temperatu-
O biogás é um biocombustível ori- ras, as plantas têm o máximo rendimento
ginado da degradação biológica (sem a em termos de produção de biomassa.
presença de oxigênio, de matéria orgâ- A localização de 92% do territó-
nica). É um tipo de mistura gasosa de rio brasileiro na zona intertropical e
dióxido de carbono e metano, produzi- as baixas altitudes do relevo explicam
do pela ação de bactérias em matérias a predominância de climas quentes,
orgânicas, que são fermentadas dentro com médias de temperatura superiores
de determinados limites de temperatu- a 20ºC. Essas condições climáticas dão
ra, teor de umidade e acidez. vantagens para o Brasil na produção

57
Dicionário da Educação do Campo

de biomassa, que, por sua vez, utiliza- se assenta na organização de sistemas


da como alimento, é a principal fonte cooperativados de industrialização,
de energia para os seres vivos, sendo descentralizados, baseados na produ-
indispensável para todas as formas de ção diversificada de matérias-primas
vida terrestre. Além disso, a biomassa e em indústrias multifuncionais. As
pode ser convertida em eletricidade, características principais dos sistemas
combustível ou calor. Os principais de produção de alimentos e energia na
produtos da biomassa que podem ser agricultura camponesa são:
transformados diretamente em energia
são a lenha, o óleo vegetal, o álcool e • soberania alimentar: o objetivo
o biodiesel. primeiro e central é a produção
de alimentos saudáveis e variados,
Uma das grandes polêmicas sobre o
mediante sistemas diversificados
tema dos biocombustíveis é a compe-
de produção;;
tição entre produção de energia e pro-
• soberania energética: a produção
dução de alimentos. O sistema de de energia deve ser um subprodu-
produção de agrocombustíveis propos- to da produção de alimentos e ter
to pelas elites capitalistas de fato pres- como objetivos centrais a autono-
supõe e acirra essa competição. Contu- mia energética das comunidades
do, é possível organizar sistemas pro- camponesas, o atendimento das
dutivos que conciliem a produção de necessidades energéticas regionais
energia e a produção de alimentos, seja e os possíveis excedentes para as
produzindo oleaginosas em sistemas necessidades nacionais;;
agroflorestais, seja utilizando a torta • agroecologia: os sistemas pro-
de oleaginosas como adubo ou como dutivos devem estar baseados na
alimentação animal, enriquecendo as- agroecologia, promovendo-se a
sim as cadeias produtivas de carnes e transição do modelo tecnológico
leite, entre outras. Nos sistemas agro- e superando-se a dependência dos
florestais, podemos implantar cultu- insumos químicos;;
ras arbóreas e lenhosas, ao lado de cul- • biodiversidade: promoção da bio-
turas anuais – criações de abelhas, por diversidade e respeito à existen-
exemplo –, consolidando formas sus- te, aumentando e resgatando a
tentáveis de aproveitamento e uso da diversidade biológica do meio
energia da biomassa, conciliando pro- onde tenha sido degradada;;
dução de alimentos e de energia. • diversidade cultural: respeito aos
O modelo proposto pelas elites valores, costumes, formas de vida
capitalistas é considerado insusten- e sistemas culturais locais, e suas
tável pelos movimentos camponeses. expressões nas formas de trabalho,
Os sistemas industriais implantados produção, culinária, música, ritos,
com base no modelo das elites são religiosidade etc.;;
centralizados e controlados por gran- • formação e capacitação: garantia
des grupos econômicos;; o cultivo se de processo sistemático e continua-
dá em grandes propriedades e, quan- do de formação política e capaci-
do envolve os pequenos agricultores, tação técnica e administrativa que
isto se dá por meio de sua integração deem sentido estratégico e trans-
às indústrias. A proposta camponesa formador na direção de um novo

58
Agroecologia
A
modelo de sociedade que atenda aos como álcool, óleos vegetais, bio-
interesses das classes trabalhadoras;; diesel, biogás e energia elétrica –,
• projetos com viabilidade ambien- juntamente com o armazenamen-
tal, social, técnica e econômica;; to, o beneficiamento e a comercia-
• sistemas industriais descentraliza- lização de alimentos;;
dos e sob o controle de organi- • hegemonia camponesa nos territó-
zações econômicas camponesas;; rios e nas comunidades;;
• produção de alimentos e energia tendo • autonomia científica, tecnológica
como componente indispensável a im- e na produção e melhoramento de
plantação de sistemas agroflorestais sementes e material genético, bem
e agrosilvipastoris;; como das pesquisas e dos conhe-
• organização de sistemas alimentar- cimentos científicos necessários
energéticos completos, integrando ao desenvolvimento dos projetos
as várias fontes de energia – tais implementados.

Para saber mais


GÖRGEN, |frei| S. A. (org.). A agricultura camponesa e as energias renováveis –
um guia técnico. Porto Alegre: Padre Josimo Edições, 2009.

AGROECOLOGIA
Dominique Michèle Perioto Guhur
Nilciney Toná

A agroecologia pode ser considera- agroecologia, resgatando o histórico


da uma construção recente;; portanto, do conceito, bem como as principais
sua definição ainda não está consoli- correntes existentes, e evidenciando o
dada. Constitui, em resumo, um con- seu desenvolvimento no Brasil.
junto de conhecimentos sistematiza-
dos, baseados em técnicas e saberes Uma perspectiva das
tradicionais (dos povos originários e
condições de surgimento
camponeses) “que incorporam princí-
pios ecológicos e valores culturais às da agroecologia
práticas agrícolas que, com o tempo, Para compreender as condições que
foram desecologizadas e desculturali- determinaram o surgimento da agroe-
zadas pela capitalização e tecnificação cologia, é importante ter presente que
da agricultura” (Leff, 2002, p. 42). An- a questão ecológica envolve, na atuali-
tes de nos aprofundarmos no debate dade, “a perenidade das condições de
conceitual, vamos inicialmente consi- reprodução social de certas classes,
derar as condições de surgimento da de certos povos e, até mesmo, de certos

59
Dicionário da Educação do Campo

países” (Chesnais e Serfati, 2003, p. 1), peça fundamental no regime de acu-


destacando-se os camponeses dos paí- mulação financeira que caracteriza a
ses da periferia do capitalismo. Para mundialização do capital.
além de situações meramente conjun- Além de acelerar o processo clás-
turais, a permanência dos camponeses sico de diferenciação do campesinato,
na terra e sua reprodução social encon- “espremendo” os camponeses entre as
tra-se, hoje, gravemente ameaçada pelo indústrias produtoras de insumos e as
modelo tecnológico hegemônico que é, agroindústrias que se utilizam de suas
em nível mundial, a base de sustenta- matérias-primas, os modelos de produ-
ção do agronegócio. ção e tecnológico dominantes oferecem
A expropriação dos camponeses es- hoje um horizonte que pode, enfim, pôr
teve no cerne dos mecanismos da acu- em questão a permanência do campo-
mulação primitiva – a acumulação que nês, concluindo assim o processo de se-
permitiu o surgimento do capitalismo e paração dos produtores diretos de suas
que se caracterizou pela violência, pela condições de produção. É dessa maneira
pilhagem e pelo saque, formas “não que a reprodução social dos campone-
propriamente capitalistas de acumula- ses passa a exigir uma mudança na maneira
ção”. Entretanto, o processo de expro- de produzir, motivando experiências de
priação dos camponeses nunca deixou resistência ao modelo do agronegócio.
de existir, prosseguindo até a atualidade. Paralelamente, as consequências am-
Como destacam Chesnais e Serfati, bientais desastrosas desse modelo e sua
“ele não é atribuível somente às polí- cada vez mais evidente insustentabilida-
ticas do FMI [Fundo Monetário Inter- de acabaram levando à confluência en-
nacional], por mais que seja necessário tre os interesses dos camponeses e de
incriminá-las. É no núcleo das relações de pesquisadores da área.
produção e de dominação que ele se situa”
(2006, p. 15;; grifos nossos). Isso quer
dizer que há uma interconexão entre
Histórico e correntes
as agressões ecológicas e as agressões O termo agroecologia parece ter
contra as condições de existência dos surgido na década de 1930, como sinô-
produtores diretos. nimo de ecologia aplicada à agricultura
O patenteamento dos organismos (Gliessman, 2000). No entanto, no con-
vivos, a tecnologia dos organismos trans- texto do aprofundamento da divisão
gênicos e, mais recentemente, a nano- do trabalho na sociedade capitalista e
tecnologia sustentam uma nova fase da crescente fragmentação dos conhe-
nesse processo de expropriação dos cimentos, e com a expansão do capita-
agricultores produtores diretos, apro- lismo no campo (da qual a Revolução
fundando a modernização dependente Verde é a face mais conhecida), ecologia
e depredadora da agricultura iniciada e agronomia seguiram divorciadas.
com a REVOLUÇÃO VERDE. O objetivo Embora a agroecologia tenha sido
é retirar dos agricultores o controle inicialmente concebida como uma dis-
sobre as sementes e, de maneira mais ciplina específica que estudava os agro-
ampla, sobre a produção no campo, ecossistemas, nas décadas seguintes,
em benefício das grandes corporações outras contribuições foram se soman-
transnacionais, as quais constituem do a essa concepção para dar-lhe sua

60
Agroecologia
A
conformação atual: o ambientalismo, a Desse período inicial, destacam-se
sociologia, a antropologia, a geografia alguns pioneiros na crítica à Revolu-
e o desenvolvimento rural, e o estudo ção Verde no Brasil, cujas obras per-
de sistemas tradicionais de produção – manecem ainda hoje como referência
indígenas e camponeses – de países da para a agroecologia nos trópicos: José
periferia do capitalismo. Lutzenberger, um dos primeiros ati-
O uso do termo agroecologia se vistas ambientais do país, desempe-
popularizou nos anos 1980, a partir nhou papel importante na denúncia
dos trabalhos de Miguel Altieri e, pos- dos malefícios dos agrotóxicos e na
teriormente, de Stephen Gliessman, necessidade de sua regulamentação;;
ambos pesquisadores de universidades Adilson Paschoal, que estudou o efeito
estadunidenses e atualmente conside- dos agrotóxicos nos agroecossistemas;;
rados os principais expoentes da “ver- Ana Primavesi, pesquisadora pioneira
tente americana” da agroecologia. em considerar o solo como um orga-
nismo vivo e na crítica à utilização de
A outra principal vertente da agroe-
tecnologias importadas;; Luiz Carlos
cologia é conhecida como “escola eu-
Pinheiro Machado, que desenvolveu e di-
ropeia”. Surgida em meados dos anos
fundiu o pastoreio racional Voisin-PRV
1980 na Andaluzia, Espanha, represen-
no Brasil (método ecológico de produ-
ta uma agroecologia de viés sociológi-
ção animal à base de pasto);; e Sebastião
co, que busca inclusive uma caracteriza-
ção agroecológica do campesinato. No Pinheiro, que se destacou na denúncia
entendimento dessa escola, a agroe- das contaminações por agrotóxicos e no
cologia surgiu de uma interação entre desenvolvimento de tecnologias para a
as disciplinas científicas (naturais e produção de base ecológica.
sociais) e as próprias comunidades ru- Foi somente a partir de 1989 que
rais, principalmente da América Latina. o termo agroecologia começou a ser
Seus principais expoentes são Eduardo utilizado no Brasil, com a publicação
Sevilla-Guzmán e Manuel González do livro Agroecologia: as bases científicas da
de Molina, ambos ligados ao Institu- agricultura alternativa, de Miguel Altieri
to de Sociología y Estudios Campe- (1989). Em seguida, nos anos 1990,
sinos (ISEC), da Universidade de as organizações não governamentais
Córdoba, Espanha. (ONGs) foram as principais dissemi-
nadoras da agroecologia (Luzzi, 2007).
O desenvolvimento da No final da década de 1990, e com
agroecologia no Brasil maior força a partir do início dos anos
2000, os movimentos sociais populares
No Brasil, a contestação à Revolu- do campo, em especial aqueles vincu-
ção Verde surgiu com o movimento da lados à Via Campesina, incorporaram
“agricultura alternativa” do final da dé- o debate agroecológico à sua estratégia
cada de 1970, mas permaneceu inicial- política e passaram a dar contribuições
mente restrita a um pequeno grupo de importantes. Podemos citar a Jornada
intelectuais, em sua maioria profissio- de Agroecologia (cujo lema é “Terra
nais das ciências agrárias, até meados Livre de Transgênicos e Sem Agrotóxi-
da década de 1980 (ver AGRICULTURAS cos”), realizada anualmente no Paraná
ALTERNATIVAS). desde 2002, com um público médio

61
Dicionário da Educação do Campo

de 4 mil participantes;; a campanha “As estudar, desenhar e manejar agroe-


sementes são patrimônio da huma- cossistemas produtivos e conservado-
nidade”, lançada pela Via Campesina res dos recursos naturais, apropriados
durante o III Fórum Social Mundial, culturalmente, socialmente justos e
em 2003;; e a ocupação do viveiro economicamente viáveis” 2 (Altieri,
de mudas da multinacional Aracruz 1999, p. 9;; nossa tradução), propor-
Celulose, no Rio Grande do Sul, com cionando, dessa maneira, bases cien-
a destruição de mudas ilegais de euca- tíficas para apoiar processos de tran-
lipto transgênico. sição a estilos de agriculturas de base
A realização, em 2002, do I Encon- ecológica ou sustentável (Caporal e
tro Nacional de Agroecologia marcou Costabeber, 2004).
a tentativa de articulação nacional dos Essas definições já indicam aspectos
movimentos e organizações ligados à importantes da agroecologia, e permi-
agroecologia. Em 2003, realizou-se o I tem diferenciá-la de outros processos
Congresso Brasileiro de Agroecologia, dos quais tem sido interpretada como
promovido anualmente desde então. sinônimo, seja do ponto de vista da
Desses dois eventos, resultaram duas elaboração teórica, seja do cotidiano.
entidades de abrangência nacional: a Assim, Caporal e Costabeber (2004)
Articulação Nacional de Agroecologia alertam que não se devem confundir
(ANA), fundada em 2002, e a Associa- os “estilos de agricultura alternativa”
ção Brasileira de Agroecologia (ABA), com a agroecologia, ou mesmo com
fundada em 2004. a agricultura de base ecológica, que se
baseia em orientações e princípios mais
O debate conceitual amplos, ao passo que os objetivos das
agriculturas alternativas (orgânica, bio-
A agroecologia foi definida por lógica, natural, biodinâmica, dentre ou-
Altieri (1989), na primeira publicação tras) podem estar limitados a atender a
mais sistemática sobre o tema,1 como um nicho de mercado “ecologizado” e,
as bases científicas para uma agricultu- por vezes, elitizado.
ra alternativa. Como ciência, a agroe- Um dos conceitos-chave que orien-
cologia emerge de uma busca por su- tam teórica e metodologicamente a agro-
perar o conhecimento fragmentário, ecologia é o de agroecossistema, unidade
compartimentalizado, cartesiano, em de análise que permite estabelecer um
favor de uma abordagem integrada. Seu enfoque comum às várias disciplinas cien-
conhecimento se constitui, mediante a tíficas. Um agroecossistema é, em resu-
interação entre diferentes disciplinas, mo, um ecossistema artificializado pelas
para compreender o funcionamento práticas humanas, por meio do conheci-
dos ciclos minerais, as transformações mento, da organização social, dos valores
de energia, os processos biológicos e culturais e da tecnologia, de maneira que
as relações socioeconômicas como um sua estrutura interna é “uma constru-
todo, na análise dos diferentes proces- ção social produto da coevolução entre
sos que intervêm na atividade agrícola. as sociedades humanas e a natureza”3
A agroecologia pode ser caracteri- (Casado, Sevilla-Guzmán e Molina,
zada como “uma disciplina que fornece 2000, p. 86;; nossa tradução) (ver AGROE-
os princípios ecológicos básicos para COSSISTEMAS).

62
Agroecologia
A
Para o desenvolvimento de uma agri- e consumo que contribuam para
cultura sustentável e produtiva, a fazer frente à atual deteriora-
agroecologia orienta práticas de: apro- ção ecológica e social gerada
veitamento da energia solar através da pelo neoliberalismo. 4 (Sevilla-
fotossíntese;; manejo do solo como um Guzmán, 2001, p. 1;; nossa
organismo vivo;; manejo de processos tradução)
ecológicos – como sucessão vegetal,
ciclos minerais e relações predador– Essa definição amplia significativa-
praga;; cultivos múltiplos e sua associa- mente o entendimento da agroecologia.
ção com espécies silvestres, de modo Um primeiro aspecto dessa ampliação
a elevar a biodiversidade dos agroe- diz respeito ao fato de se conceber a
cossistemas;; e ciclagem da biomassa – agroecologia para além de instrumento
incluindo os resíduos urbanos. Dessa metodológico que simplesmente per-
forma, “o saber agroecológico con- mite melhor compreensão dos sistemas
tribui para a construção de um novo agrários e soluciona problemas produ-
paradigma produtivo ao mostrar a pos- tivos que a ciência agronômica conven-
sibilidade de produzir ‘com a nature- cional não resolve, ou mesmo agrava.
za’” (Leff, 2002, p. 44). Nesse sentido mais amplo, as variáveis
sociais ocupam papel relevante. Ainda
Muito embora não exista produ- que se parta da dimensão técnica de
ção “fora da natureza”, o modelo da um agroecossistema, daí se pretende
Revolução Verde e do agronegócio de- compreender as múltiplas formas de
senvolve-se com base em tecnologias dependência dos agricultores na atual
“contra a natureza”, que bloqueiam ou política e economia. Outros níveis de
impedem processos naturais que são análise dizem respeito à matriz socio-
a base do manejo agroecológico nos cultural ou comunitária, ou seja, à prá-
agroecossistemas – como é o caso do xis intelectual e política, à identidade
uso de herbicidas, que bloqueiam ou local e às relações sociais em que os
mesmo fazem regredir a sucessão eco- sujeitos do campo se inserem. Isso
lógica em determinado ambiente. resulta na inserção da produção ecoló-
Entretanto, a agroecologia não gica em propostas para “ações sociais
pode ser entendida apenas como um coletivas” que superem o modelo pro-
conjunto de técnicas. Com base na es- dutivo agroindustrial hegemônico.
cola europeia, a agroecologia pode ser Um conceito base dessa forma de
definida como compreender a agroecologia é a coe-
volução entre os sistemas naturais e
[...] o manejo ecológico dos re- sociais, entre ambiente e cultura, sen-
cursos naturais mediante for- do que os seres humanos têm a capa-
mas de ação social coletiva que cidade de direcionar essa coevolução
apresentem alternativas à atual (Gliessman, 2000). As populações do
crise civilizatória. E isso por campo, sua cultura e suas formas de or-
meio de propostas participati- ganização e resistência são elementos
vas, desde os âmbitos da produ- centrais no processo de coevolução;; no
ção e da circulação alternativa entanto, não se pode desconsiderar a
de seus produtos, pretendendo hegemonia das relações capitalistas no
estabelecer formas de produção campo no direcionamento dessa coe-

63
Dicionário da Educação do Campo

volução. Esse processo é dinâmico, entre concepção/planejamento e exe-


pois, conquanto os sistemas tradicio- cução, separação cujo objetivo é “dar
nais de produção reflitam a experiên- à direção capitalista do processo de
cia adquirida por gerações passadas, o trabalho os meios de se apropriar
conhecimento que eles materializam de todos os conhecimentos práticos,
continua a se desenvolver no presente, até então, monopolizados, de fato, pe-
num processo permanente de adap- los operários” (Linhart, 1983, p. 79).
tação e mudança (Wilken, 1988, apud Esse processo se evidenciou muito
Gliessman, 2000). mais na indústria (por meio da “gerên-
Essa abordagem, portanto, reco- cia científica” de Taylor), mas também
nhece que as populações do campo se estendeu ao campo e seus sujeitos,
são portadoras de um saber legítimo, que se tornaram meros consumidores
construído por meio de processos de de técnicas e sistemas de produção de-
tentativa e erro, de seleção e aprendi- senvolvidos em centros de pesquisa,
zagem cultural, que lhes permitiram empresas e universidades.
captar o potencial dos agroecossiste- Em sentido inverso, a agroecologia
mas com os quais convivem há gera- exige que o camponês passe a assumir
ções. Basta lembrar que a esmagadora uma posição ativa, de pesquisador das
maioria das espécies agrícolas e dos especificidades de seu agroecossis-
animais domésticos atualmente exis- tema, para desenvolver tecnologias
tentes é obra do trabalho coletivo e apropriadas não só às condições lo-
milenar dos povos camponeses, e não cais de solo, relevo, clima e vegetação,
de institutos de pesquisa, universida- mas também às interações ecológicas,
des ou empresas. sociais, econômicas e culturais. Na
Evidentemente, não se trata de des- perspectiva da agroecologia, essa não
cartar a ciência e a tecnologia, mas da pode ser tarefa de especialistas iso-
necessidade de um diálogo de saberes lados. A agoecologia exige conhecer
que reconheça nos povos do campo a dinâmica da natureza e, ao mesmo
e da floresta sujeitos privilegiados da tempo, agir para a sua transformação.
agroecologia, um diálogo não exclusi- Além disso, ela abre caminho para o
vamente técnico, nem com finalidade desenvolvimento de novos paradigmas
econômica e ecológica apenas, mas da agricultura, pois não se prova nos
também de ordem ética e cultural, e espaços artificializados da experimen-
que se materialize, inclusive, em ações tação científica, mas sim diretamen-
sociais coletivas. Esse diálogo traz pro- te nos campos de produção agrícola,
fundas implicações. superando, dessa maneira, a distinção
A generalização do modelo da Re- entre a produção do conhecimento e
volução Verde levou a um avanço na sua aplicação/concretização: “Por isso,
divisão do trabalho entre a indústria a agroecologia desafia o conhecimento,
e a agricultura: à agricultura restou mas este se aplica e se testa no terre-
apenas a tarefa de produzir matéria- no dos saberes individuais e coletivos”
prima para a agroindústria, a partir de (Leff, 2002, p. 43). O que nos leva à
insumos e máquinas fornecidos pela conclusão de que a agroecologia não
indústria. Porém, além disso, apro- é apenas um corpo de conhecimen-
fundou-se especialmente a separação tos úteis, passíveis de serem aplicados,

64
Agroecologia
A
mas se configura como prática social, riências de agriculturas de base ecológi-
ação de “manejo” da complexidade ca, ressaltando processos de organização
dos agroecossistemas particulares, in- social que se orientam pela luta política e
seridos em múltiplas relações naturais transformação social, indo além da luta
e sociais, relações que eles determinam econômica imediata e corporativa e das
e pelas quais são determinados. ações localizadas, e por vezes assisten-
É evidente que, à medida que se cialistas, junto dos agricultores. De fato,
ampliou o questionamento e a crítica a agroecologia possui uma especificida-
ao padrão de agricultura capitalista da de que referencia a construção de outro
Revolução Verde, os termos “agroeco- projeto de campo. Entretanto, tal projeto
lógico” e “sustentável” passaram a ser de campo é incompatível com o sistema
disputados por setores representantes capitalista e depende, em última instân-
justamente dos interesses capitalistas cia, de sua superação.
que promovem feroz depredação da Em decorrência da separação an-
natureza. Na perspectiva conhecida tagônica entre cidade e campo, e da
como “duplamente verde”, o desenvol- “alienação material dos seres humanos
vimento de novas tecnologias (como os dentro da sociedade capitalista das con-
transgênicos, por exemplo) seria capaz dições naturais que formam a base de
de minimizar os efeitos ambientais no- sua existência” (Foster, 2005, p. 229),
civos da Revolução Verde, garantindo, uma falha irreparável surgiu no meta-
ao mesmo tempo, os atuais níveis de bolismo entre o homem e a terra. Go-
produtividade. Essa perspectiva vem vernar racionalmente esse metabolismo
ganhando força com o biobussines, ou “excede completamente as capacitações
bionegócio, o agronegócio pretensa- da sociedade burguesa” (ibid.). Restau-
mente “sustentável”, porém, diante da rá-lo exige uma ordem social qualita-
tivamente orientada, que só pode ser
alcançada na sociedade dos indivíduos
[...] transformação da geopolítica
livremente associados, que, como sujei-
de uma economia ecologizada que
tos históricos autônomos, estejam no
hoje em dia revaloriza o sentido
pleno controle do processo produtivo,
conservacionista da natureza –
esse conscientemente subordinado à
reabsorve e redesenha a econo-
satisfação das necessidades humanas, e
mia natural dentro das estratégias
não a uma riqueza fetichizada.
de mercantilização da natureza,
reduzindo o valor da biodiver- Nesse sentido, está em gestação uma
sidade em suas novas funções concepção mais recente de agroecologia,
como provedora de riqueza ge- ainda mais ampliada: a partir da prática dos
nética, de valores cênicos e eco- movimentos sociais populares do campo,
turísticos e de sua capacidade de que não a entendem como “a” saída tec-
absorção de carbono (biobussines), nológica para as crises estruturais e con-
a agroecologia se encrava no con- junturais do modelo econômico e agrí-
texto de uma economia política cola, mas que a percebem como parte de
do ambiente. (Leff, 2002, p. 40) sua estratégia de luta e de enfrentamento
ao agronegócio e ao sistema capitalista
Nesse contexto, a agroecologia não de exploração dos trabalhadores e da de-
se restringe ao desenvolvimento de expe- predação da natureza.

65
Dicionário da Educação do Campo

Nessa concepção, “a agroecologia ção e aliança entre os povos do campo


inclui: o cuidado e defesa da vida, pro- e da cidade.
dução de alimentos, consciência políti- A agroecologia se insere, dessa manei-
ca e organizacional” (Via Campesina e ra, na busca por construir uma sociedade
Movimento dos Trabalhadores Rurais de produtores livremente associados para
Sem Terra, 2009). Compreende-se que a sustentação de toda a vida (Via Cam-
ela seja inseparável da luta pela sobera- pesina e Movimento dos Trabalhadores
nia alimentar e energética, pela defesa e Rurais Sem Terra, 2006), sociedade na
recuperação de territórios, pelas refor- qual o objetivo final deixa de ser o lucro,
mas agrária e urbana, e pela coopera- passando a ser a emancipação humana.

Notas
1
A primeira edição do livro, em língua espanhola, é de 1983. Em 1987, a obra foi publicada
nos Estados Unidos e, em 1989, no Brasil.
2
“[...] una disciplina que provee los principios ecológicos básicos para estudiar, diseñar y
manejar agroecosistemas que sean productivos y conservadores del recurso natural, y que
también sean culturalmente sensibles, socialmente justos y económicamente viables.”
3
“[...] una construcción social, producto de la coevolución de los seres humanos con la
naturaleza.”
4
“[...] el manejo ecológico de los recursos naturales a través de formas de acción social co-
lectiva que presentan alternativas a la actual crisis civilizatoria. Y ello mediante propuestas
participativas, desde los ámbitos de la producción y la circulación alternativa de sus produc-
tos, pretendiendo establecer formas de producción y consumo que contribuyan a encarar el
deterioro ecológico y social generado por el neoliberalismo actual.”

Para saber mais


ALTIERI, M. A. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. 2. ed.
Rio de Janeiro: PTA/Fase, 1989.
______. Agroecología: bases científicas para una agricultura sustentable. Montevidéu:
Nordan–Comunidad, 1999.
CAPORAL, F. R.;; COSTABEBER, J. A. Agroecologia: alguns conceitos e princípios.
Brasília: MDA–SAF–Dater-IICA, 2004.
CASADO, G. G.; SEVILLA-GUZMÁN, E.; MOLINA, M. G. Introducción a la agroecología
como desarrollo rural sostenible. Madri: Mundi-Prensa, 2000.
CHESNAIS, F.;; SERFATI, C. “Ecologia” e condições físicas de reprodução social: al-
guns fios condutores marxistas. Crítica Marxista, São Paulo, v. 1, n.16, p. 39-75, 2003.
Disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/16chesnais.pdf.
Acesso em: 25 ago. 2011.
FOLADORI, G. Limites do desenvolvimento sustentável. Campinas: Editora da Unicamp;;
São Paulo: Imprensa Oficial, 2001.

66
Agroecossistemas
A
FOSTER, J. B. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável.
2. ed. Porto Alegre: Universidade–Editora da UFRGS, 2000.
LEFF, E. Agroecologia e saber ambiental. Agroecologia e Desenvolvimento Rural Susten-
tável, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 36-51, jan.-mar. 2002.
LINHART, R. Lenin, os camponeses, Taylor. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
LUZZI, N. O debate agroecológico no Brasil: uma construção a partir de diferentes
atores sociais. 2007. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
SEVILLA-GUZMÁN, E. La agroecología como estrategia metodológica de transformación social.
Córdoba, Espanha: Instituto de Sociología y Estudios Campesinos de la Univer-
sidad de Córdoba, [s.d.]. Disponível em: http://www.agroeco.org/socla/pdfs/
la_agroecologia_como.pdf. Acesso em: 25 ago. 2011.
VIA CAMPESINA. Relatório do encontro. In: ENCUENTRO CONTINENTAL DE FORMA-
DORES YFORMADORAS EN AGROECOLOGÍA, 1. Anais... Barinas, Venezuela: Instituto
Agroecológico Latinoamericano Paulo Freire (IALA), agosto de 2009.
______;; MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). Biodiversidade,
organização popular, agroecologia. In: JORNADA DE AGROECOLOGIA, 5. Anais... Cascavel:
Jornada de Agroecologia, 2006.

AGROECOSSISTEMAS
Denis Monteiro

Observando paisagens, e povoados, metrópoles ou vilas, em


percebendo agroecossistemas ambientes bastante transformados pela
ação humana. Em muitos casos, é difí-
Percorrer o território brasileiro, cil imaginar como eram os lugares an-
observando a natureza e os povos, im- tes da construção das cidades. Vemos
pressiona pela exuberância e diversida- também muitas áreas de natureza de-
de. Nesse caminho, observamos vários gradada, paisagens tristes, latifúndios
biomas, vários ecossistemas;; unida- sem diversidade, pastos erodidos, mo-
des de conservação, parques, reservas nocultivos a perder de vista, terras sem
biológicas, espaços de natureza com gente fruto do avanço do agronegócio.
pouca ou nenhuma presença de ativi- Também nesses casos, olhar as terras
dades econômicas humanas;; cidades degradadas torna difícil imaginar os

67
Dicionário da Educação do Campo

ecossistemas ricos, cheios de vida, que agroecossistemas, a fim de que sejam


um dia ali existiram. Podemos observar produtivos e sustentáveis, e garantam,
também áreas habitadas por agriculto- hoje e no futuro, as condições para que
res familiares, assentados da Reforma a humanidade tenha alimentos, fibras,
Agrária e povos e comunidades tradi- plantas medicinais, aromáticas e cos-
cionais que convivem há séculos com méticas, madeira, água, ar puro, solos e
os ecossistemas. Ali percebemos várias paisagens protegidos.
agriculturas, e certamente reconhece- O conceito de ecossistema é mais
mos os ecossistemas. Vemos povos que conhecido e amplamente utilizado pe-
entram nas matas para coletar frutos e los estudiosos da natureza. Ab’Saber
plantas medicinais nativos, praticando (2006) afirma que o conceito foi usado
o agroextrativismo, a pesca, as plan- pela primeira vez em 1935, por Arthur
tações e criações, com várias espécies Tansley, que dizia ser o ecossistema “o
hoje cultivadas ou criadas que vieram sistema ecológico de um lugar”. Sim-
de todos os cantos do mundo, de ou- ples e brilhante definição.
tros ecossistemas.
Os ecossistemas têm uma estrutura
Essas paisagens são formadas por composta por fatores abióticos: radia-
uma grande diversidade de agroecos- ção solar, temperatura, água e nutrien-
sistemas, pois são fruto da intervenção tes;; e por fatores bióticos: organismos
das práticas de agricultura nos ecossis- vivos que interagem no ambiente. A in-
temas. Nas áreas do agronegócio, os teração entre os fatores abióticos deter-
agroecossistemas são mais artificiali- mina a biodiversidade dos ecossistemas,
zados e geralmente estão degradados. ou seja, as comunidades de organismos
Contudo, em muitos territórios onde vivos. As interações dinâmicas entre os
existe forte presença da agricultura componentes estruturais determinam
camponesa, os agroecossistemas são o funcionamento dos ecossistemas. É
mais biodiversificados, produzem ali- importante perceber a diversidade de
mentos com fartura e diversidade, em espécies que interagem nos ecossiste-
harmonia com a natureza, respeitando mas, plantas, insetos, microrganismos,
seus ciclos e recuperando e manten- pequenos e grandes animais.
do coisas que são essenciais para uma
agricultura verdadeiramente sustentá- Em relação ao funcionamento dos
vel: águas, solos férteis, biodiversidade, ecossistemas, Gliessman (2000) destaca
riqueza cultural e sabedoria dos povos dois processos fundamentais: o fluxo
e comunidades. de energia e a ciclagem de nutrientes.
O sol é a fonte primária de energia. As
plantas convertem energia em biomas-
Entendendo o conceito sa. A energia flui das plantas para os
de ecossistema consumidores e decompositores. Parte
da energia é utilizada pelos organismos,
Para a ciência da agroecologia, que formando biomassa vegetal e animal;;
busca aplicar os princípios da ecologia a outra parte é dissipada no ambiente
à agricultura, o conceito de agroecos- sob a forma de calor, pela respiração
sistema é a unidade básica de análise dos organismos e pela decomposição
e intervenção. A agroecologia fornece da biomassa. Os principais reservató-
as bases para desenhar e manejar os rios de nutrientes para os ecossistemas

68
Agroecossistemas
A
são a atmosfera e os solos. Os nutrien- nhas”, e combatidas com o uso inten-
tes são armazenados na biomassa, e sivo de herbicidas. São utilizadas redu-
retornam aos solos pela decomposição zidas espécies de plantas e animais, em
da matéria orgânica. geral pouco adaptadas às condições
ecológicas locais. A biodiversidade na-
Agronegócio e ecossistemas tiva é destruída, e a base genética das
populações é bem estreita, uma vez que
artificializados
se utilizam variedades de plantas e ra-
O agronegócio, modelo agrícola ças animais desenvolvidas pela pesqui-
hegemônico hoje no Brasil, tem como sa agropecuária para serem uniformes
base técnico-científica a chamada Re- e responderem ao pacote tecnológico
volução Verde, que se disseminou am- agroquímico. Tudo isso provoca ruptu-
plamente no país a partir da segunda ras no equilíbrio ecológico, e os agro-
metade do século XX, transformando ecossistemas adoecem. Populações de
radicalmente as paisagens. insetos e microrganismos se tornam
O avanço do agronegócio no Brasil problemas econômicos graves para os
se fez com a substituição de ecossiste- cultivos e criações, e são atacados com
mas naturais por monocultivos e com doses cada vez maiores de agrotóxicos.
a expulsão de populações tradicionais Esses agroecossistemas têm relações
dos territórios, causando grande des- com mercados distantes, em muitos ca-
truição de agroecossistemas diversifi- sos as colheitas são exportadas para ou-
cados, construídos ao longo de séculos tros países por empresas multinacionais.
por essas populações. As relações sociais são de exploração e
Esse modelo agrícola provoca gran- alienação dos trabalhadores rurais, que
de artificialização dos ecossistemas. A passam a ser vistos como operários de
biodiversidade dá lugar aos monocul- uma indústria, e não como agricultores.
tivos. Os nutrientes são fornecidos às O objetivo é gerar lucro;; não existe a
plantas por meio de fertilizantes sinté- preocupação de conservar a natureza.
ticos. Os ciclos dos nutrientes são alte- Quando os agroecossistemas atingem
rados e muitos se perdem, indo poluir níveis de degradação que os tornam
os cursos d’água e os lençóis freáticos. pouco produtivos ou quando os custos
Além disso, muita energia oriunda de passam a ficar muito altos, as grandes
combustíveis fósseis é empregada, propriedades do agronegócio avançam
pois a mecanização pesada é frequen- sobre outros ecossistemas, gerando no-
te, como também o uso da irrigação, vos ciclos de exploração e degradação.
com águas bombeadas muitas vezes É possível identificar várias paisagens
de locais distantes. O ciclo das águas degradadas pelo avanço desse modelo,
é profundamente alterado pela drástica muitas inclusive já desertificadas.
redução da biodiversidade e pela perda
de matéria orgânica no sistema, pois é A agroecologia a favor da
a matéria orgânica que mantém os so-
los estruturados e retém a água. agricultura camponesa
As plantas espontâneas são vistas Para responder ao desafio de cons-
como espécies “invasoras” ou “dani- truir agroecossistemas produtivos, sus-

69
Dicionário da Educação do Campo

tentáveis e saudáveis, capazes de suprir proposta de análise e intervenção


as necessidades humanas e de recupe- muito diferente do enfoque técnico-
rar e conservar a natureza para as ge- científico convencional, que vê o solo
rações atuais e futuras, o caminho é o como suporte físico para as plantas
fortalecimento da agricultura campo- e enxerga os cultivos, mas não as in-
nesa, o que só é possível com o apoio terações ecológicas, muito menos as
da ciência da agroecologia. relações sociais e econômicas que se
É claro que muitos agroecossiste- processam nos agroecossistemas.
mas manejados pela agricultura cam- O estabelecimento dos limites físi-
ponesa estão subordinados à lógica do cos desse “local de produção agrícola”
agronegócio, e apresentam muitos dos é arbitrário. Organizações que atuam há
problemas descritos acima. 1 A simpli- mais de vinte anos desenvolvendo diag-
ficação dos agroecossistemas gerada nósticos participativos de agroecos-
pela expansão do enfoque técnico- sistemas costumam trabalhar com os
científico da Revolução Verde entre limites das comunidades rurais, sendo
os camponeses é uma das principais elas entendidas como um conjunto
causas da crise vivenciada pela agri- de agroecossistemas. Os limites dos
cultura camponesa no Brasil. Também agroecossistemas podem ser um esta-
nesses casos, a agroecologia faz parte belecimento agrícola, um lote de assen-
da busca por rotas de saída da lógica tamento ou uma propriedade de uma
do agronegócio. família agricultora. O estabelecimento
No entanto, espalhados pelo país, dos limites pressupõe o entendimento da
existem agroecossistemas tradicionais relação dos agroecossistemas com o
construídos pela agricultura camponesa “ambiente externo”, ou seja, os merca-
que guardam muitas semelhanças com dos e as instituições.
os ecossistemas naturais dos lugares e Na análise dos agroecossistemas, é
que têm enorme potencial para avançar preciso dar centralidade ao trabalho da
rapidamente nos processos de transição família, pois é ela que desenha e mane-
agroecológica. Aliás, nos últimos anos, ja os agroecossistemas, em cooperação
fruto de intenso processo de mobiliza- com outras famílias ou até mesmo re-
ção social e experimentação participa- correndo a trabalhos externos. Muitas
tiva, muitos e muitos agroecossistemas vezes os agroecossistemas das famílias
têm sido desenhados e manejados se- extrapolam os limites físicos de uma
gundo os princípios da agroecologia, já propriedade familiar ou de um lote de
dando respostas ao desafio de produzir assentamento, pois há outras áreas às
com fartura e conservar a natureza. quais as famílias têm acesso – locais
Interessa, portanto, aplicar o con- de uso comunitário, rios, lagos, açudes,
ceito de agroecossistema à realidade áreas de mata nativa onde é praticado
da agricultura camponesa no Brasil. É o agroextrativismo, pastos de uso co-
isso o que veremos a seguir. Na defi- mum, entre outras.
nição de Gliessman, “um agroecossis- É importante perceber que o agroe-
tema é um local de produção agrícola cossistema tem uma ecologia que pode
compreendido como um ecossistema” ser analisada à luz dos ecossistemas na-
(2000, p. 61). Compreender o local turais do lugar;; mas também engloba um
de produção como um sistema é uma conjunto de relações sociais e econômi-

70
Agroecossistemas
A
cas. Diferentemente dos ecossistemas • equidade: capacidade do agroecos-
não manejados, os agroecossistemas têm sistema de gerir de forma justa sua
a função de gerar produtos para os se- força produtiva (material e imate-
res humanos. E, para as famílias agri- rial), distribuindo equilibradamente
cultoras, é do agroecossistema que é os custos e benefícios da produtivi-
obtida renda monetária. dade em todos os campos das rela-
Almeida (2001) elenca certos atri- ções sociais em que se insere;; inclui
butos dos agroecossistemas que devem divisão social e técnica do trabalho
ser objeto de atenção quando se quer familiar, relações de gênero e de ge-
promover níveis crescentes de susten- ração, relações com os processos so-
tabilidade da agricultura camponesa ciopolíticos e serviços ambientais;;
por meio da aplicação dos princípios • autonomia: capacidade do sis-
da agroecologia, atributos que a agri- tema de regular e controlar suas
cultura camponesa, em sua estratégia relações com o exterior (bancos,
de reprodução econômica, sempre empresas de insumos, atacadistas,
perseguiu: agroindústria, atravessadores etc.);;
inclui os processos de organização
• produtividade: a capacidade do social e de tomada de decisões, e
agroecossistema de prover o nível a capacidade para definir interna-
adequado de bens, serviços e retor- mente as estratégias de reprodução
no econômico aos agricultores num econômica e técnica, os objetivos, as
período determinado de tempo;; prioridades, a identidade e os valo-
• estabilidade: capacidade do sistema res do sistema.
de manter um estado de equilíbrio Agroecossistemas camponeses, de-
dinâmico estável, ou seja, de manter senhados segundo os princípios
ou aumentar, em condições normais, da agroecologia, buscam relações de
a produtividade do sistema ao longo maior autonomia com o ambiente
do tempo;; econômico externo, seja garantindo
diversidade de produção para auto-
• flexibilidade (ou adaptabilidade):
consumo – e, portanto, gerando ren-
capacidade do sistema de manter
da não monetária –, seja evitando ou
ou encontrar novos níveis de equilí-
minimizando o consumo de insumos
brio – continuar sendo produtivo –
e equipamentos industriais – tratores,
diante de mudanças de longo prazo
equipamentos de irrigação, fertilizan-
nas condições econômicas, biofísi- tes, sementes comerciais e agrotó-
cas, sociais, técnicas etc.;; xicos –,seja buscando diversificar os
• resiliência (ou capacidade de recu- mercados para os produtos agrícolas
peração): capacidade do sistema gerados nos agroecossistemas, priori-
produtivo de absorver os efeitos de zando os mercados locais e evitando,
perturbações graves (secas, inunda- sempre que possível, relações de su-
ções, quebras de colheita, elevação bordinação aos mercados capitalistas.
de custos etc.), retornando ao es- O enfoque agroecológico também
tado de equilíbrio ou mantendo o propõe a construção de relações so-
potencial produtivo;; ciais nos agroecossistemas pautadas em

71
Dicionário da Educação do Campo

noções como cooperação, solidarieda- tivamente na ciclagem dos nutrientes,


de e promoção da participação livre das como não realizar queimadas e não dei-
mulheres e dos jovens, além de promo- xar os solos descobertos, evitando-se o
ver o resgate e aprimoramento do pa- revolvimento excessivo;; inserir plantas
trimônio cultural dos agricultores. adubadeiras capazes de fixar nitrogênio
A essência da estratégia agroeco- atmosférico, e aumentar a disponibili-
lógica está justamente na valorização dade de outros nutrientes;; aproveitar
das funções ecológicas que a biodiver- o esterco dos animais para cultivos e
sidade (planejada e associada) cumpre pastagens;; aproveitar a biomassa pro-
na regeneração da fertilidade e na ma- duzida localmente para alimentação
nutenção da sanidade dos agroecos- dos animais;; utilizar podas e restos de
sistemas para que eles se mantenham cultura para estimular a vida dos solos;;
indefinidamente produtivos (Petersen, e inserir árvores nos sistemas.
Weid e Fernandes, 2009). A segurança hídrica deve ser bus-
Para desenhar agroecossistemas cada de forma a aumentar a fertilida-
produtivos, saudáveis e sustentáveis, os de e a sanidade dos agroecossistemas.
ecossistemas naturais de cada local são Devem ser adotadas práticas de con-
a principal referência. A biodiversidade servação das águas, como a proteção
deve ser estimulada nos agroecossiste- de nascentes e cursos d’água e a esto-
mas, de tal forma que espécies nativas es- cagem de água para os períodos mais
tejam presentes e cumpram não apenas secos do ano. A biodiversidade atua
funções ecológicas – conservação das positivamente na regulação dos ciclos
águas, produção de biomassa, quebra- das águas internamente aos agroe-
ventos, estabelecimento de microclimas, cossistemas, pois evita que as chuvas
refúgio para a biodiversidade –, atinjam diretamente os solos, permite
mas também funções econômicas, armazenar água na biomassa viva e na
criando produtos para o autoconsumo matéria orgânica em decomposição e,
das famílias e para a geração de renda por causa das diferentes profundidades
monetária – alimentos, madeira, lenha, das raízes, minimiza o desvio da água
água para beber, plantas medicinais, para os lençóis subterrâneos.
artesanato. Plantas e animais domes- A aplicação dos princípios da agro-
ticados cultivados ou criados no local ecologia ao desenho e manejo de agro-
também devem ser espécies adaptadas ecossistemas possibilita que se alcance
às condições ecológicas locais. A biodi- maior sanidade dos cultivos e animais
versidade também é promovida ao se- e maior equilíbrio entre populações de
rem priorizadas variedades de plantas e organismos espontâneos. Com isso, a
raças animais com base genética ampla necessidade de controle artificial de in-
e adaptadas localmente, e pela utiliza- setos, fungos e outros organismos es-
ção dos policutivos, diversificação de pontâneos que podem causar prejuízos
forrageiras e sistemas agroflorestais. econômicos é bastante reduzida. O uso
O uso de fertilizantes sintéticos de agrotóxicos deve ser eliminado com-
deve ser evitado ao máximo. Para tal, pletamente. O controle de organismos
é necessário adotar práticas de recu- espontâneos é feito através de agentes
peração e incremento da fertilidade biológicos, produtos naturais feitos à
dos agroecossistemas que atuem posi- base de plantas, armadilhas luminosas,

72
Agroecossistemas
A
catações manuais, podas e outros mé- mas e as agriculturas, herança preciosa
todos que não agridam a natureza. dos povos para a humanidade, forem
resgatados e ressignificados, por meio
de interações entre esses saberes po-
Para concluir: um
pulares e outros, construídos pela pes-
ambiente cultural fértil quisa em agroecologia desenvolvida
O desafio de construir agroecos- em instituições de ensino e pesquisa,
sistemas férteis, saudáveis e produ- fortalecendo, assim, em contraponto
tivos só poderá ser enfrentado se o ao modelo devastador do agronegó-
ambiente cultural da agricultura cam- cio, a agricultura camponesa, capaz de
ponesa também for fértil, se conhe- garantir o futuro para a humanidade e
cimentos valiosos sobre os ecossiste- para o planeta Terra.

Nota
1
A rigor, a subordinação à lógica do agronegócio reduz os níveis de campenização da
agricultura (Ploeg, 2009). O autor faz uma diferenciação entre agricultura camponesa, em-
presarial e capitalista. Essa linha de argumentação também permite pensar em aumentar os
níveis de campenização da agricultura familiar (ou das pequenas unidades de produção),
fortalecendo, dessa forma, a agricultura camponesa em relação ao agronegócio.

Para saber mais


AB’SABER, A. N. Ecossistemas do Brasil. São Paulo: Metalivros, 2006.
ALMEIDA, S. G. Monitoramento de impactos econômicos de práticas agroecológicas (Termo
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AS-PTA, 2009. p. 17-31.

73
Dicionário da Educação do Campo

AGROINDÚSTRIA
Pedro Ivan Christoffoli

Durante o modo de produção feu- passam a depender crescentemente de


dal (conhecido como Idade Média), os relações com o mercado para suprir as
feudos, como unidades fundamentais suas necessidades (Marx, 1988;; Davis e
de produção do período, possuíam re- Goldberg, 1957).
lativa autonomia quanto à produção Tal fato tem importância histórica,
dos principais itens de seu consumo. porque contribuiu para a inviabilização
Alimentos, madeira, fibras e energia crescente das unidades camponesas de
eram produzidos pelos camponeses e produção, visto que grande parte da
artesãos, moradores do próprio feudo, força de trabalho era então empregada,
e apenas pequena parcela do consumo nos tempos livres, na confecção de fer-
era oriunda de relações de troca e co- ramentas, na armazenagem e no proces-
mércio entre feudos ou com as carava- samento dos produtos e na comerciali-
nas de comerciantes. A unidade campo- zação em feiras livres ou vendas diretas.
nesa de produção ligada ao feudo, por Como os produtos feitos pela indústria
sua vez, também buscava sua autono- eram mais baratos e de qualidade e pa-
mia em relação ao mercado, que então dronização superiores (ferramentas de
era pouco desenvolvido, absorvendo trabalho e roupas, por exemplo), os
a força de trabalho familiar nas ativi- agricultores deixaram de produzi-los
dades agrícolas e mantendo atividades em suas casas ou nas vilas rurais, o que
artesanais nos períodos de inverno e resultou na formação de excedentes
intervalos dos labores agrícolas, visan- insustentáveis de força de trabalho nas
do suprir as necessidades de alimentos, unidades camponesas. Essa foi a origem
ferramentas, vestimentas, moradia etc. inicial do êxodo rural e da desestrutura-
A agroindústria como atividade ção camponesa ainda na fase inicial do
autônoma em relação à agricultura so- capitalismo industrial.
mente se desenvolve plenamente com A atividade agroindustrial pode
a expansão do capitalismo a partir dos ser analisada de vários ângulos, entre
séculos XVIII e XIX. É com o desen- eles os aspectos de organização técni-
volvimento da indústria capitalista que, ca (aspectos internos de organização e
gradativamente, partes do processo funcionamento produtivos) e os aspec-
produtivo agrícola foram se autono- tos socioeconômicos e as relações de
mizando em relação aos agricultores e poder estabelecidas com seu entorno
passaram a ser transferidas para vilas e com o conjunto da cadeia produtiva.
e cidades. As unidades familiares de Analisaremos principalmente o segun-
produção, que até então exerciam to- do bloco de questões.
das as operações inerentes à produção, Do ponto de vista técnico, na agro-
ao processamento, ao armazenamen- indústria são organizados processos
to e à distribuição dos bens agrícolas visando à transformação e à conser-
e de alguns produtos manufaturados, vação dos produtos agrícolas para sua

74
Agroindústria
A
posterior utilização e consumo. Para sileiro, foi coordenado politicamente
isso, são utilizados insumos e pro- pelo Estado e ocorreu após o final da
cessos que visam alterar as condições Segunda Guerra Mundial, quando a
físico-químicas dos produtos agrícolas, apropriação do valor gerado pelo tra-
a fim de aumentar suas possibilidades balho na agricultura e na agroindústria
de uso e conservação. Com a evolução passou a ser condição necessária para
das tecnologias de produto e processo a acumulação capitalista de parcela da
e a constituição de mercados urbanos indústria de bens de capital (Müller,
em escala internacional, cada vez mais 1981). Com isso, constituiu-se uma
os produtos agrícolas são processados interdependência intersetorial na agri-
industrialmente, alterando-se signifi- cultura que acabou por se refletir na es-
cativamente sua composição e formas trutura e na dinâmica do setor agrícola
de apresentação. Os mercados são for- (transformações técnico-econômicas),
mados crescentemente por produtos e também na sua estrutura social. A
industrializados, processados e modifi- utilização do termo industrialização
cados artificialmente, reduzindo-se os da agricultura significa que houve uma
espaços para produtos in natura, mais artificialização crescente do modelo
característicos das produções campo- produtivo na agricultura. Houve certa
nesas (ainda que periodicamente sur- autonomização relativa da produção
jam movimentos sociais e de consumi- agrícola em relação às limitações natu-
dores reagindo a essas tendências). rais (reprodução da fertilidade da terra,
A cadeia agroalimentar se refere, diminuição do tempo de produção gra-
portanto, a um conjunto de produto- ças ao emprego de conhecimentos de
res e empresas que estão envolvidos na engenharia genética, por exemplo) e à
produção agrícola e na sua transforma- destreza do trabalho humano (empre-
ção. Sua estrutura é caracterizada por go de máquinas, implementos, herbici-
um subsetor a montante (que fornece das, por exemplo) (ibid.).
os bens de produção), pelo subsetor A expansão dos serviços financei-
agrícola e por um subsetor que trans- ros para a agricultura, iniciada com a
forma e distribui os produtos agrícolas implantação do Sistema Nacional de
e alimentares (Malassis, 1973). Enquan- Crédito Rural (SNCR) nos anos 1960,
to atividade econômica, a agroindústria provocou alterações profundas nas re-
tem importância crescente em termos lações de produção da agricultura. A
de retenção do valor gerado na cadeia crescente dependência de financiamen-
produtiva. Os segmentos de forneci- to externo, com a consequente apro-
mento de máquinas e insumos para a priação, já a partir dos anos 1960, do
agricultura, e, principalmente, o seg- valor gerado na agricultura pelo setor
mento interno à “porteira”, estão gra- financeiro, conduziu à gradativa finan-
dativamente perdendo peso comparati- ceirização dos serviços e dos critérios
vamente com o segmento posterior, de de rentabilidade adotados pelo setor
industrialização e comercialização dos (Delgado, 1985).
produtos agrícolas. O complexo agroindustrial (CAI)
A esse fenômeno alguns autores é conceituado como “o conjunto de
denominam processo de industrialização da processos técnico-econômicos e so-
agricultura, processo que, no caso bra- ciopolíticos, que envolvem a produção

75
Dicionário da Educação do Campo

agrícola, o beneficiamento e sua trans- zado pelas políticas públicas, além de


formação, a produção de bens indus- discriminado pela sociedade.
triais para a agricultura e os serviços Nos anos 1990-2000, emerge uma
financeiros correspondentes” (Müller, nova agricultura, resultante das modi-
1982, p. 48). No Brasil, os CAIs so- ficações estruturais trazidas pela crise
mente são implantados após a indus- econômica e de financiamento para a
trialização da agricultura e sua crescen- agricultura, reflexo da crise da dívida
te subordinação ao capital industrial. externa nos anos 1980 e da abertu-
Em sua maioria, as empresas multina- ra neoliberal dos mercados nos anos
cionais voltadas para o fornecimento 1990. O termo empregado para desig-
de máquinas e insumos foram atraídas nar o processo produtivo agroindus-
pelo Estado brasileiro com o intuito de trial nessa fase do capitalismo brasilei-
reduzir importações e criar um parque ro foi o de agronegócio, tropicalização
industrial nacional voltado para a agri- do termo agribusiness empregado nos
cultura. A fim de viabilizar economica- Estados Unidos desde os anos 1950, e
mente essas empresas, o Estado brasilei- que engloba “a soma de todas as ope-
ro também buscou constituir mercados rações envolvidas no processamento e
para esses produtos, incentivando o seu distribuição de insumos agropecuários,
consumo pelos agricultores, mediante a as operações de produção na fazenda,
imposição, pelos sistemas estatais de ex- e o armazenamento, processamento e
tensão rural, dos pacotes tecnológicos da a distribuição dos produtos agrícolas
chamada Revolução Verde, adquiridos derivados”1 (Davis e Goldberg, 1957,
por meio do crédito rural subsidiado p. 2;; nossa tradução).
(Erthal, 2006;; Fonseca, 1985). Com a va- O termo agronegócio designa,
lorização das terras ocorrida no período numa versão crítica, a articulação téc-
1960-1980 e a redução de empregos de- nica, política e econômica dos elos
corrente da mecanização da agricultura, representados pelos segmentos pro-
mais de 30 milhões de camponeses foram dutivos de insumos para a agricultura,
expulsos para as cidades, criando-se as ba- do mercado de trabalho e de produção
ses da atual situação de esvaziamento do agrícola, bem como as etapas de ar-
campo e de “territorialização do capital” mazenagem, processamento e distri-
(Kageyama et al., 1987). Nesse período, buição dos produtos agrícolas, agora
também surgem os desertos verdes: gran- articulados pelo capital financeiro em
des extensões de terras cultivadas, mas escala internacional, numa dinâmica
com poucos camponeses nelas residindo de abertura de mercados e globaliza-
ou trabalhando. ção neoliberal da economia. Portanto,
Do campesinato que resistiu no é um conceito que reúne mais do que
campo nesse período, importante par- apenas os aspectos técnicos e de orga-
cela passa a se subordinar diretamen- nização da cadeia produtiva. Represen-
te à agroindústria fornecedora de ta as relações econômicas e políticas de
matérias-primas e consumidora de in- coordenação do processo produtivo e
sumos e máquinas, e grande parte for- também de disputa pela hegemonia em
ma o contingente de sem-terras e de relação às políticas públicas relaciona-
agricultores semiproletarizados, um das ao setor. O conceito explicita que
segmento empobrecido e marginali- a fase atual de expansão capitalista da

76
Agroindústria
A
agricultura subordina diretamente a assegura à empresa industrial o forne-
exploração da natureza e da força de cimento de matéria-prima padroniza-
trabalho no campo à dinâmica deter- da, a custos controlados, sem incorrer
minada pela expansão do capital finan- nos riscos diretos de produção e nas
ceiro em nível internacional. Significa amarras e peso da legislação trabalhis-
também a recomposição das políticas ta. E o produtor tem acesso assegurado
públicas em vista dos interesses maio- a capital, tecnologia e, principalmente,
res do capital financeiro internacional mercados, além de uma renda relati-
e das suas ramificações na agricultura vamente estável, dependendo do pro-
(para aprofundamento desse conceito, duto integrado. O sistema de integra-
ver AGRONEGÓCIO). ção permitiu constituir fortes grupos
As grandes agroindústrias brasi- agroindustriais no Brasil nas últimas
leiras foram constituídas a partir do décadas, ainda que em grande medida
estímulo governamental ocorrido nos sejam hoje, em sua maioria, controla-
anos 1950, e impulsionada pela acu- dos pelo capital financeiro (fundos de
mulação industrial e pelo processo de pensão, bancos e empresas cotadas em
fusão de capitais nos vários ciclos de bolsa de valores).
expansão/crise capitalista no campo Como reação ao crescente poder
nas décadas de 1970 a 2000. Dessa di- das agroindústrias, agricultores e movi-
nâmica resultam, cada vez mais, gigan- mentos sociais do campo têm buscado
tescos conglomerados produtivos que estabelecer estratégias de resistência,
asseguram a apropriação do valor ge- visando à agregação de valor à produ-
rado na agricultura por meio de vários ção camponesa, por meio da criação
mecanismos, entre eles os contratos de agroindústrias cooperativas e asso-
de integração. ciativas, sob controle dos trabalhado-
O sistema de integração consiste no res. Essas agroindústrias associativas
estabelecimento de contratos de forne- procuram estabelecer estratégias dife-
cimento entre indústria e agricultores renciadas em relação às agroindústrias
no quais a empresa adianta capital (na capitalistas, seja no campo tecnológico,
forma de insumos e tecnologia) e assis- estimulando a agroecologia e a produ-
tência técnica, e os agricultores, em ge- ção em pequena escala, seja na forma
ral pequenos, produzem em suas uni- de organização social da base e na luta
dades matéria-prima que será coletada, por um novo modelo de desenvolvi-
transportada e processada pelas unida- mento do meio rural, com políticas pú-
des industriais. Os principais tipos de blicas diferenciadas.
integração encontram-se na produção No entanto, muitas dessas indús-
de fumo, na avicultura de corte, na sui- trias originadas dos movimentos so-
nocultura, na criação do bicho-da-seda ciais, em sua maioria de pequeno porte,
e na produção de leite e, de forma cres- terminam por sucumbir à concorrência
cente, de hortaliças (integrada a redes com as demais agroindústrias capitalis-
de supermercados). A integração en- tas, entrando em crise após curto perío-
volve cerca de meio milhão de famílias do de existência, ou convertendo-se
de pequenos agricultores nas mais di- gradualmente em cópias quase fiéis
versas regiões do Brasil, em especial no das agroindústrias capitalistas, mui-
Centro-Sul. O contrato de integração tas vezes abandonando as propostas

77
Dicionário da Educação do Campo

alternativas do início da experiência. Apesar dessas dificuldades, o de-


Isso se dá pelas pressões concorren- bate sobre a propriedade dos meios de
ciais, que as obrigam, na luta pela so- produção é uma questão central e que
brevivência no mercado, a adaptações sempre deve ser posta pelo movimento
graduais na concepção do projeto e camponês. Afinal, as estratégias tecno-
na forma organizacional adotada. Tal lógicas e mercantis adotadas pelas
fato remete também a uma questão agroindústrias determinam a possibili-
fundamental a ser discutida: a tendência, dade de repartição dos excedentes eco-
dentro do capitalismo, à concentração e nômicos e, em grande medida, que tipo
à centralização de capitais, também pre- de matéria-prima será utilizada, qual o
sente no segmento agroindustrial (Marx, perfil dos agricultores fornecedores,
1988). Isso implica que, a despeito das além de aspectos tecnológicos funda-
iniciativas dos agricultores e de suas pe- mentais para estratégias alternativas de
quenas agroindústrias, poucas empresas desenvolvimento rural.
sociais terão condições de sobreviver Ademais da questão de quem de-
e gerar ganhos econômicos e sociais têm a propriedade sobre os meios
para a massa do campesinato dentro de produção, a localização física das
do capitalismo. agroindústrias tem tido importância
Isso é ainda mais certo no caso das crescente no debate sobre as estraté-
microagroindústrias. Existe no meio gias para o desenvolvimento do meio
rural uma situação em que as famílias rural. A agroindústria, uma vez locali-
camponesas organizam o trabalho de zada fisicamente no meio rural e con-
forma a executar a transformação das trolada pelos próprios agricultores,
matérias-primas ainda dentro da unida- constitui atividade que permite incre-
de de produção, numa espécie de res- mentar e reter parcelas do valor gerado
gate da antiga tradição camponesa da na produção das economias campone-
indústria rural. Esse tipo moderno de sas, por meio da localização no meio
agroindústria familiar rural é uma forma rural de ações como seleção, lavagem,
de organização em que a família rural classificação, conservação, transforma-
produz, processa e/ou transforma par- ção, embalagem, e armazenamento da
te de sua produção agrícola e/ou pe- produção (Boucher e Riveros, 1995,
cuária, visando, sobretudo, assegurar apud Wesz Junior., Trentin e Filippi,
a realização da produção de valor de 2006). A geração de postos de traba-
troca, que se realiza na comercialização lho no meio rural é, portanto, questão
(Mior, 2005). Ainda que sua intenção estratégica para um desenvolvimento
seja louvável, tal alternativa represen- rural “com gente” (em contraposição
ta parcela muito pequena da produção aos “desertos verdes”) e com qualidade
nacional agroindustrial que tende, pe- de vida.
los motivos anteriormente menciona- No entanto, é comum que as agro-
dos, a ser absorvida pela concorrência indústrias se localizem nas sedes dos
ou continuar marginal e localizada, sem municípios e não na zona rural. Isso
expressão econômica relevante2 (na decorre das facilidades existentes,
maioria dos casos, essas microagroin- como meios de transporte, mercado de
dústrias estão à margem da legalidade trabalho de profissionais especializados
e não conseguem cumprir os padrões (trabalhadores qualificados necessários
sanitários mínimos). à manutenção e à gestão das agroindús-

78
Agroindústria
A
trias) e facilidade de acesso a serviços duráveis no tempo e sejam capazes de
e comunicação. A despeito disso, uma influenciar o desenvolvimento local em
das bandeiras dos movimentos sociais bases equitativas, é fundamental a sua
rurais no Brasil tem sido a de, sempre inserção em estratégias de intercoope-
que possível, localizar fisicamente as ração, por meio da formação de redes
indústrias dentro ou próximo dos as- e agrupamentos cooperativos articula-
sentamentos e comunidades rurais, de dos aos movimentos sociais que pos-
modo que a riqueza gerada, inclusive os sibilitem o enfrentamento, ao menos
postos de trabalho criados, circule e se parcial, da concorrência capitalista e
consolide nos assentamentos, benefi- das tendências de centralização de ca-
ciando diretamente a população rural. pitais (Christoffoli, 2010).
Mesmo diante dos limites e con- Ou seja, a forma de buscar construir
tradições trazidos pela implantação de estratégias de resistência aos grandes con-
agroindústrias rurais, autores e movi- glomerados capitalistas agroindustriais
mentos sociais em geral concordam estaria na constituição de redes de coope-
que elas têm grande importância nas rativas populares, geridas autonomamen-
estratégias de desenvolvimento rural te em regime de autogestão e articuladas
da perspectiva da inclusão social, con- a grupos cooperativos empresariais, com
tribuindo para: a) elevação da renda fa- padrão de eficiência comparável aos gru-
miliar no meio rural;; b) diversificação e pos capitalistas, de forma que a força
fomento das economias locais;; c) ade- combinada de uma organização política
quação da produção à estrutura fundi- de base esteja acompanhada de padrões de
ária existente (pequenas propriedades eficiência técnica comparáveis aos capi-
rurais diversificadas como fornecedo- talistas e com dimensões e estruturas de
ras da matéria-prima, visto que a estra- coordenação socioeconômica compatí-
tégia de agregação de valor nas peque- veis com o estágio tecnológico e finan-
nas agroindústrias é obtida por meio ceiro atual. Para isso, é fundamental um
da diferenciação, e não do volume);; movimento educativo de ampla enver-
d) valorização e preservação dos hábi- gadura na base camponesa, tendo em
tos culturais locais;; e) descentralização vista a sua escolarização e a sua efetiva
das fontes de renda (por causa do au- incorporação à dinâmica autogestioná-
mento no número e da maior diversi- ria, e o desenvolvimento de tecnologias
dade de agroindústrias no território);; e processos inovadores, pelo desenho e
f) estímulo à proximidade social (orga- a implantação de estratégias de desen-
nização comunitária, venda em feiras volvimento inclusivas e capazes de dar
livres ou redução de intermediários);; conta dos desafios da sociedade para a
g) ocupação e geração de renda no meio agricultura, numa perspectiva ecologi-
rural;; h) redução do êxodo rural;; i) estí- camente sustentável.
mulo ao cooperativismo e associativis- Portanto, a permanência de agroin-
mo;; j) valorização das especificidades dústrias familiares em mercados ca-
locais;; k) preservação do meio ambien- pitalistas cada vez mais competitivos
te e dos recursos naturais;; e l) mudança dependerá de uma série de fatores, em
nas relações de gênero e poder (Wesz especial de sua capacidade de interação
Junior, Trentin e Filippi, 2006). com macrocomponentes de políticas
No entanto, para que essas agroin- públicas – mercados, gestão, tecnologia
dústrias resultem de fato em iniciativas e infraestrutura –, de suas organização

79
Dicionário da Educação do Campo

e coesão internas e da possibilidade uma grande agroindústria cooperativa,


de criação ou de envolvimento em re- nesse caso.
des de intercooperação com outras Finalizando, vemos que a agroindús-
unidades semelhantes, para o desenvol- tria rural tem importante contribuição
vimento de produtos diferenciados e a a dar para o desenvolvimento do espa-
atuação em nichos de mercado ou, em ço rural, onde fatores organizacionais
casos excepcionais, com seu crescimen- possibilitem a constituição de unidades
to e aumento de escala a ponto de per- integradas de produção–transforma-
mitir o enfrentamento das tendências ção–comercialização em rede e com ca-
capitalistas de centralização de capitais pacidade competitiva de sobrevivência
(conforme Marx, 1988), tornando-se aos ditames do mercado capitalista.

Notas
1
“[...] the sum total of all operations involved in the manufacture and distribution of farm
supplies;; production operations on the farm;; and the storage, processing and distribution
of farm commodities and items made from them.”
2
Enquanto 97,2% das agroindustriais de pequeno e médio porte geram 43,9% do valor
adicionado, os outros 2,8%, correspondentes aos grandes sistemas e complexos agroindus-
triais, geram 66,1% desse valor (Lourenzani e Silva, 2004, apud Nycha e Soares, 2007).

Para saber mais


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ria brasileira? In: TEDESCO, J. C. (org.). Agricultura familiar: realidades e perspecti-
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1957.
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AGRONEGÓCIO
Sergio Pereira Leite
Leonilde Servolo de Medeiros

O termo agronegócio, de uso relati- (tanto de produtos destinados à agri-


vamente recente em nosso país, guar- cultura quanto de processamento da-
da correspondência com a noção de queles com origem no setor), comer-
agribusiness, cunhada pelos professores cial e de serviços. Para os introdutores
norte-americanos John Davis e Ray do termo, tratava-se de criar uma pro-
Goldberg nos anos 1950, no âmbito posta de análise sistêmica que supe-
da área de administração e marketing rasse os limites da abordagem setorial
(Davis e Goldberg, 1957). O termo foi então predominante.
criado para expressar as relações eco- No Brasil, o vocábulo agribusiness
nômicas (mercantis, financeiras e tec- foi traduzido inicialmente pelas expres-
nológicas) entre o setor agropecuário sões agroindústria e complexo agroindustrial,
e aqueles situados na esfera industrial que buscavam ressaltar a novidade do

81
Dicionário da Educação do Campo

processo de modernização e industriali- dustriais” e “agronegócio” não


zação da agricultura, que se intensificou são exatamente coincidentes
nos anos 1970. Outros termos também [...]. O uso de “máquinas e in-
foram utilizados para destacar o caráter sumos modernos” está presente
sistêmico e não exclusivamente setorial nas três expressões, mas o di-
da produção agrícola: sistema agroalimen- recionamento para exportação
tar, cadeia agroindustrial, filière etc. (Leite, não tem nas duas primeiras o
1990). Desde os anos 1990, o termo mesmo peso que na última. A
agribusiness começou a ganhar espaço, integração agricultura–indústria
mas, já no início dos anos 2000, a pala- não era o maior destaque que se
vra agronegócio foi se generalizando, tan- dava à “agricultura moderna”
to na linguagem acadêmica quanto na tal como formulada nos anos
jornalística, política e no senso comum, 1970. O gerenciamento de um
para referir-se ao conjunto de atividades negócio que envolve muito mais
que envolvem a produção e a distribui- que uma planta industrial ou um
ção de produtos agropecuários. conjunto de unidades agrícolas
é uma das tônicas da ideia de
“agronegócio”. Mesmo que a
Os caminhos da análise grande propriedade territorial
da modernização da esteja associada às três formas,
agricultura brasileira na segunda, ela é vinculada às
práticas de “integração” que
Analisando as transformações da
envolvem também pequenos
agricultura brasileira, David (1997) cha-
produtores;; e na terceira, mes-
ma atenção para o fato de que as inter-
mo que as grandes propriedades
pretações sobre esse processo tenderam
sejam uma marca das atividades
a assumir uma perspectiva dicotômica: os
rurais do “agronegócio”, a refe-
anos 1960 foram marcados pela contra-
rência à propriedade territorial
posição entre as reformas estruturais e as
desaparece das formulações de
políticas de modernização;; a década de
seus técnicos e há até quem ten-
1970, pelo embate entre produção para
te, no plano ideal dos projetos,
exportação e produção de alimentos;; os
associá-la com perspectivas fa-
anos 1980 envolveram análises que re-
voráveis aos pequenos produto-
forçavam a ideia de industrialização da
res. (2010, p. 160)
agricultura (ou a emergência do comple-
xo agroindustrial) em oposição àquelas Nos anos 1980 e início dos 1990,
que apontavam o caráter anticíclico do autores com diferentes formações dis-
setor. A essas dicotomias, pode-se acres- ciplinares e com referenciais teóricos
centar aquela que, nos anos 1950 e 1960, e ideológicos os mais variados come-
opôs minifúndio e latifúndio e a que, em çaram a substituir a expressão “agri-
anos recentes, vem opondo agronegócio cultura (ou agropecuária) moderna”
e agricultura familiar (Sauer, 2008). De por “agroindústria”, e a figura dos
acordo com Heredia, Palmeira e Leite: “complexos agroindustriais” passou
a ser moeda corrente. A preocupação
As fronteiras entre “agricultura era assinalar a integração agricultura/
moderna”, “complexos agroin- indústria pelas “duas pontas”: insumos

82
Agronegócio
A
e produtos, expressão que teria assu- tanto nas reflexões sobre as circuns-
mido a “industrialização da agricultu- tâncias que informam o movimento de
ra” formulada por Kautsky no início expansão das atividades que estariam
do século XX. Como chamam atenção compreendidas nessa definição quanto,
Heredia, Palmeira e Leite, “a ideia do igualmente, para pensarmos a validade
‘agronegócio’ se tornará uma espécie do seu contraponto, isto é, o conjun-
de radicalização dessa visão, em que to de situações sociais e atividades que
o lado ‘agrícola’ perde importância e o não estariam representadas e/ou le-
lado ‘industrial’ é abordado tendo gitimadas pelo emprego desse termo:
como referência não a unidade indus- agricultores familiares, assentados de
trial local, mas o conjunto de atividades projetos de Reforma Agrária, comuni-
do grupo que a controla e suas formas dades tradicionais etc. Em boa medida,
de gerenciamento” (2010, p. 160). a permanência dessas últimas no cená-
Da perspectiva da análise dos eco- rio agrário atual tem sido identificada,
nomistas rurais, é interessante notar, pelos segmentos mais conservadores,
adicionalmente, que a resistência da como “obstáculo”, “atraso” ou, ain-
corrente dominante ao uso de uma da, como portadora de experiências
abordagem intersetorial agricultura– “obsoletas” num meio rural cada vez
indústria até meados dos anos 1980 mais industrializado.
(por considerarem que tal perspectiva A análise dos processos sociais rurais
feria a propriedade do setor agrícola que informam a análise do agronegócio não
em atestar os atributos de concorrência pode estar desvinculada da análise de prá-
pura ou perfeita na análise das funções ticas, mecanismos e instrumentos de po-
econômicas e produtivas) é comple- líticas – setoriais ou não – implementa-
tamente revertida no início da década dos pelo Estado brasileiro. Ainda que tal
posterior, quando se verifica, da pers- forma de intervenção tenha se alterado
pectiva de uma análise econômica do ao longo do tempo (por exemplo, da po-
novo estatuto do setor agropecuário, lítica de crédito rural dos anos 1970 à re-
agora funcionando de forma integra- negociação de dívidas no final dos anos
da, uma adesão aos novos termos e à 1990 e ao longo da década de 2000), ela
sua capacidade explicativa (Heredia, é importante para identificar as diferen-
Palmeira e Leite, 2010). tes políticas públicas que subsidiam a
Assim, é preciso compreender os expansão dessas atividades, aliviando os
processos sociais, econômicos, polí- constrangimentos financeiros, ambien-
ticos e institucionais relacionados à tais, trabalhistas, logísticos etc. (Silva,
emergência do termo agronegócio na vi- 2010), ou mesmo promovem a produção
do conhecimento técnico necessário ao
rada dos anos 1980 para os anos 1990
aumento da sua produtividade física nas
como dimensões que extrapolam o
mais diferentes regiões do país.
mero crescimento agrícola/agroindus-
trial e o simples aumento da produtivi-
dade física dos setores envolvidos na A dinâmica recente
cadeia de produtos e atividades, e que do agronegócio
são comumente associadas ao termo
nos debates e reportagens jornalísticas No que diz respeito ao perfil do
sobre o setor. Isso deve ser observado agronegócio hoje, o que se observa é,

83
Dicionário da Educação do Campo

por um lado, sua tendência a controlar para exportação, sem nenhum benefi-
áreas cada vez mais extensas do país e, ciamento no Brasil.
por outro, a concentração de empresas Processos semelhantes podem ser
com controle internacional. Tomando identificados na produção de etanol e
o caso da soja como exemplo, verifica- biodiesel e na indústria florestal.
se que, até 1995, a Cargill destacava-se
como a grande empresa com unidades
de esmagamento no Brasil. Como apon- Agronegócio, trabalho
ta Wesz Junior (2011), após dois anos e terra
de intenso processo de fusões e aquisi-
ções, ADM, Bunge e Dreyfus-Coinbra O que hoje se denomina agronegócio
também passaram a ter controle sobre relaciona-se, como já indicado, com a
a propriedade de unidades de benefi- alta tecnologia agrícola. As tecnologias
ciamento do grão. Assim, em 2004, o diferem bastante segundo o ramo que
número de agroindústrias controladas se toma como referência. Assim, se
pelo Grupo ABCD (que, a partir de a soja e o algodão têm sua produção
2001, passou a contar com a presença marcada, tanto no plantio quanto na
da Amaggi) alcançou trinta plantas in- colheita, pela presença de insumos quí-
dustriais. Esse movimento corresponde, micos, biotecnologias e mecanização, o
no caso da soja, a uma nova regionaliza- mesmo não se dá, por exemplo, com
ção das empresas, que buscam situar-se o café, que exige abundância de mão
de forma mais próxima às regiões pro- de obra na colheita. A própria cana-de-
dutoras, como é o caso do Mato Grosso açúcar, que pode ser cortada mecani-
e do oeste baiano. camente em áreas planas, em áreas de
Esse processo de concentração é relevo irregular exige corte manual.
marcado também pela verticalização: Mesmo culturas que são mecanizadas
os grandes grupos controlam hoje a demandam mão de obra para recolher
produção de insumos, o armazena- os restos deixados pelas máquinas (al-
mento, o beneficiamento e a venda. Sua godão, cana), plantio de mudas (euca-
estratégia é desenhada com base na sua lipto) ou combate a pragas (formiga no
dinâmica de inserção nos mercados in- eucalipto). Assim, embora tenha ha-
ternacionais. Comentando o caso par- vido uma redução de mão de obra no
ticular da soja, Wesz Junior (2011) res- setor agrícola, o emprego do trabalho
salta que, em 2010, as empresas Bunge, assalariado em atividades braçais está
Cargill, ADM, Dreyfus e Amaggi do- longe de desaparecer. Consolidou-se
minavam 50% da capacidade de esma- um mercado de trabalho composto por
gamento da oleaginosa;; 65% da pro- trabalhadores permanentes e temporá-
dução nacional de fertilizantes;; 80% rios os quais correspondem, embora
do volume de financiamento liberado não exatamente, àqueles com direitos
pelas tradings para o cultivo do grão;; trabalhistas assegurados e outros que
85% da soja produzida no país;; 95% vivem à margem desses direitos. Boa
das exportações in natura da soja bra- parte deles mora nas periferias das ci-
sileira;; e 8,1% das exportações nacio- dades próximas aos polos do agrone-
nais. O autor afirma ainda que, no mí- gócio. Ao mesmo tempo, verifica-se, no
nimo, um terço da soja produzida por interior das unidades produtivas agrí-
esse grupo de empresas segue direto colas, a presença de uma mão de obra

84
Agronegócio
A
qualificada, composta por operadores últimos anos: por mais que suas terras
de máquinas, mecânicos, agrônomos, possam ser “produtivas”, a necessida-
técnicos agrícolas etc., indicando uma de de manter outras como reserva para
segmentação do mercado de trabalho sua expansão faz de qualquer mudança
ainda muito pouco estudada. nos índices de produtividade agrícola
Finalmente, a expansão do agrone- uma ameaça à lógica de reprodução do
gócio tem levado à reprodução de for- agronegócio (Medeiros, 2010).
mas degradantes de trabalho, em es-
pecial nas áreas em que as matas estão Sentidos políticos
sendo derrubadas, denunciadas por en-
tidades como a Organização Interna-
do agronegócio
cional do Trabalho (OIT) e a Comissão Desde que seu uso se impôs, o ter-
Pastoral da Terra (CPT) como sendo mo agronegócio tem um sentido amplo
condições análogas à escravidão. e também difuso, associado cada vez
Outro aspecto a ser ressaltado é mais ao desempenho econômico e à
que a lógica da expansão do agronegó- simbologia política, e cada vez menos
cio no Brasil está intimamente ligada à às relações sociais que lhe dão carne,
disponibilidade de terras. Assim, para uma vez que opera com processos não
os empresários do setor, além das ter- necessariamente modernos nas dife-
ras em produção, é necessário ter um rentes áreas e regiões por onde avança
estoque disponível para a expansão. a produção monocultora.
Isso tem provocado um constante au- Dessa perspectiva, a generalização
mento dos preços das terras, tanto em do uso do termo agronegócio, mais do
áreas onde o agronegócio já se implan- que uma necessidade conceitual, cor-
tou quanto nas áreas que podem pos- responde a importantes processos so-
sibilitar o crescimento da produção. ciais e políticos que resultaram de um
A permanente necessidade de novas esforço consciente para reposicionar
terras tem sido o motor de intensos o lugar da agropecuária e investir em
debates, em especial na esfera legis- novas formas de produção do reconhe-
lativa, em torno da concretização de cimento de sua importância. Ela indica
medidas que possam regular e colocar também uma nova leitura de um mes-
limites ao uso da terra. Isso se aplica mo processo de mudanças, acentuan-
tanto ao interior das unidades produ- do determinados aspectos, em especial
tivas (matas ciliares, áreas de preserva- sua vinculação com o cotidiano das
ção, por exemplo, e que foram o cen- pessoas comuns.
tro dos debates em torno do Código Os anos 1990 viram nascer institui-
Florestal) quanto fora delas (expansão ções como a Associação Brasileira do
de áreas indígenas, reconhecimento de Agribusiness, hoje Associação Brasi-
terras tradicionalmente ocupadas, deli- leira do Agronegócio (Abag), que teve
mitação de reservas, controle das terras importante papel na generalização do
pelo capital estrangeiro etc.). É nesse uso do termo agribusiness, inicialmente,
quadro de demanda crescente de terras e depois agronegócio. Insistindo na ne-
que também se situa o debate em tor- cessidade de uma abordagem sistêmi-
no da mudança nos índices de produ- ca, agribusiness passou a ser relacionado
tividade da agricultura que marcou os pelas entidades do setor não só com

85
Dicionário da Educação do Campo

a produção agropecuária, mas com pode ser dissociado das instituições


outros assuntos correlatos, entre eles, que o disseminaram, como a Abag,
a segurança alimentar e a produção ou que falam em nome dele, como é
de objetos de uso cotidiano (a roupa o caso das entidades patronais rurais –
que se veste, por exemplo). Buscando em especial, a Confederação Nacional
firmar a nova categoria, procurou-se da Agricultura (CNA) e a Sociedade
mostrar que ela não é o mesmo que Rural Brasileira (SRB), das associa-
agroindústria, que representa apenas uma ções por produtos e multiprodutos,
parte do agribusiness. Segundo a Abag tais como a Associação Brasileira das
(Associação Brasileira do Agronegó- Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove),
cio, 1993), fazem parte do agribusiness a Associação Brasileira dos Criado-
não só produtores, processadores e dis- res de Zebu (ABCZ), a Organização
tribuidores (elementos contidos na ca- das Cooperativas Brasileiras (OCB), a
tegoria agroindústria), mas também as Associação Brasileira dos Produtores de
empresas de suprimentos de insumos e Soja (Abrasoja), a Associação Brasileira
fatores de produção, os agentes finan- dos Produtores de Algodão (Abrapa),
ceiros, os centros de pesquisa e expe- a União Brasileira de Avicultura
rimentação e as entidades de fomento (UBA) etc. (Bruno, 2010;; ver também
e assistência técnica. Ele é composto ORGANIZAÇÕES DA CLASSE DOMINANTE
ainda por entidades de coordenação, NO CAMPO).
como “governos, contratos comerciais, Essa busca pela construção de uma
mercados futuros, sindicatos, asso- imagem perante a opinião pública,
ciações e outros, que regulamentam a reveladora de posições no debate po-
interação e a integração dos diferentes lítico, também se expressa na disputa
segmentos do sistema” (ibid., p. 61). pelo tamanho que o agronegócio tem
Houve, assim, um debate conceitual na economia brasileira, o que geral-
que se relacionava tanto com a precisão mente leva a infindáveis controvérsias
da imagem quanto com a sua redefini- metodológicas sobre como medir o
ção: tratava-se de produzir a percepção peso desse segmento (Nunes e Contini,
do setor como dinâmico, moderno, 2001). Por trás dessa guerra metodo-
produtor de divisas para o país, susten- lógica e de números, esconde-se uma
táculo do desenvolvimento. Com isso, disputa pelo acesso aos recursos públi-
esperava-se romper com a imagem do cos, tão mais legitimado quanto maior
estritamente agrícola e da propriedade for o peso que se atribui ao agronegócio.
latifundiária, e com os estigmas a ela Assim, como aponta José Graziano
relacionados – atraso tecnológico, im- da Silva (2010), a dimensão simbólica
produtividade, exploração do trabalho. construída pelo setor faz que se acre-
Cabe ressaltar que essa percepção dite num tamanho e numa dimensão
já se faz presente no início da Nova muito maiores do que o segmento efe-
República, quando é estruturada a tivamente representa, quer em termos
Frente Ampla da Agricultura Brasileira econômicos, na mensuração do produ-
(Faab), criada em 1986 e considerada to, quer em termos políticos, quando
pelo ex-ministro da Agricultura Ro- tomada sua expressão no Congresso
berto Rodrigues (2003-2006) como a Nacional, por meio da chamada Ban-
semente da organização do agribusiness cada Ruralista (ver ORGANIZAÇÕES DA
no Brasil. Hoje, o termo agronegócio não CLASSE DOMINANTE NO CAMPO).

86
Agronegócio
A
No entanto, essa construção de o agronegócio. Esse deslocamento
imagem como esforço político en- traz consigo novas vertentes: à críti-
contra outras apropriações possíveis. ca à concentração fundiária soma-se a
Assim, à medida que o termo agro- denúncia do próprio cerne do agrone-
negócio se impõe como símbolo da gócio, sua matriz tecnológica. Assim,
modernidade, passa a ser identificado, surgem críticas ao uso de sementes
pelas forças sociais em disputa, como transgênicas, ao uso abusivo de agro-
o novo inimigo a ser combatido. Já no tóxicos, à monocultura. Ao modelo
início do ano 2000, verifica-se, por do agronegócio passa a ser contrapos-
exemplo, entre os militantes do Movi- to o modelo agroecológico, pautado
mento dos Trabalhadores Rurais Sem na valorização da agricultura campo-
Terra (MST) e da Via Campesina um nesa e nos princípios da policultura,
deslocamento de seus opositores: cada dos cuidados ambientais e do controle
vez menos o adversário aparece como dos agricultores sobre a produção de
sendo o latifúndio e cada vez mais é suas sementes.

Para saber mais


ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO AGRONEGÓCIO (ABAG). Segurança alimentar: uma aborda-
gem do agribusiness. São Paulo: Abag, 1993.
BRUNO, R. Um Brasil ambivalente. Rio de Janeiro: Mauad–Edur, 2010.
DAVID, M. B. A. Les Transformations de l’agriculture brésilienne: une modernisation
perverse (1960-1995). Paris: EHESS/CRBC, 1997.
DAVIS, J. H.; GOLDBERG, R. A. A Concept of Agribusiness. Boston: Division of
Research, Graduate School of Business Administration, Harvard University,
1957.
HEREDIA, B.;; PALMEIRA, M.; LEITE, S. Sociedade e economia do agronegócio no
Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 74, p. 159-176, out. 2010.
LEITE, S. Estratégias agroindustriais, padrão agrário e dinâmica intersetorial. Araraquara:
FCL/UNESP, 1990. (Rascunho, 7).
MEDEIROS, L. S. A polêmica sobre a atualização dos índices de produtividade da
agropecuária. Carta Maior, 6 fev. 2010. Disponível em: http://www.cartamaior.com.
br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4539. Acesso em: 31 ago. 2011.
NUNES, E. P.; CONTINI, E. Complexo agroindustrial brasileiro: caracterização e dimen-
sionamento. Brasília: Abag, 2001.
SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo
brasileiro. Brasília: Embrapa, 2008. (Texto para discussão, 30).
SILVA, J. G. da. Os desafios das agriculturas brasileiras. In: GASQUES, J. G. et. al.
(org.). A agricultura brasileira: desempenho, desafios e perspectivas. Brasília: Ipea,
2010. p. 157-183.
WESZ JUNIOR, V. Características, dinâmicas e estratégias empresariais das indústrias esma-
gadoras de soja no Brasil. Rio de Janeiro: E-papers, 2011.

87
Dicionário da Educação do Campo

AGROTÓXICOS
Raquel Maria Rigotto
Islene Ferreira Rosa

De acordo com a lei federal Entretanto, há cerca de sessenta


nº 7.802, de 11 de julho de 1989, regu- anos, o uso de agrotóxicos vem se di-
lamentada pelo decreto nº 4.074, de 4 fundindo intensamente na agricultura,
de janeiro de 2002, os agrotóxicos são e também no tratamento de madeiras,
na construção e na manutenção de es-
[...] produtos e componentes de tradas, nos domicílios e até nas cam-
processos físicos, químicos ou panhas de saúde pública de combate à
biológicos destinados ao uso malária, doença de Chagas, dengue etc.
nos setores de produção, arma- (Silva et al., 2005).
zenamento e beneficiamento de Essa escalada inicia-se na segunda
produtos agrícolas, nas pasta- metade do século XX, quando empre-
gens, na produção de florestas endedores de países industrializados,
nativas ou implantadas, e em por meio de um conjunto de técnicas,
outros ecossistemas e também prometiam aumentar estrondosamente
ambientes urbanos, hídricos e a produtividade agrícola e responder
industriais;; cuja finalidade seja ao problema da fome nos países em
alterar a composição da flora e desenvolvimento. E a chamada REVOLU-
da fauna, a fim de preservá-las da ÇÃO VERDE passa a se conformar como
ação danosa de seres vivos con- modelo de produção racional voltado
siderados nocivos. São consi- para a expansão das agroindústrias e
derados, também, como agro- baseado na utilização intensiva de se-
tóxicos, substâncias e produtos mentes híbridas e de insumos químicos
como desfolhantes, dessecan- (fertilizantes e agrotóxicos), na mecani-
tes, estimulantes e inibidores de zação da produção e no uso extensivo
crescimento. (Brasil, 2002) de tecnologia (Moreira, 2000). Findas
as duas grandes guerras, a agroindús-
Desde a Antiguidade clássica, agri- tria foi o caminho encontrado pelas in-
cultores desenvolvem maneiras de lidar dústrias de armamentos para manter
com insetos, plantas e outros seres vi- os grandes lucros: os materiais explosi-
vos que se difundem nos cultivos, com- vos transformaram-se em adubos sinté-
petindo pelo produto. Escritos de ro- ticos e nitrogenados, os gases mortais,
manos e gregos mencionavam o uso de em agrotóxicos e os tanques de guerra,
produtos como o arsênico e o enxofre em tratores (Fideles, 2006).
nos primórdios da agricultura. A partir No Brasil, o Plano Nacional de
do século XVI, registra-se o emprego Desenvolvimento Agrícola (PNDA),
de substâncias orgânicas, como a nicoti- lançado em 1975, incentivava e exigia o
na e piretros extraídos de plantas, tanto uso de agrotóxicos, oferecendo investi-
na Europa quanto nos Estados Unidos. mentos para financiar esses “insumos”

88
Agrotóxicos
A
e também para ampliar a indústria de químicos. As principais companhias
síntese e formulação no país, que pas- agroquímicas que controlam o mer-
saria de 14 fábricas em 1974 para 73 cado são Syngenta, Bayer, Monsanto,
em 1985 (Fideles, 2006). Basf, Dow AgroSciences, DuPont e
Embora tenha havido aumento sig- Nufarm. Na América Latina, um im-
nificativo da produtividade no campo, portante e crescente mercado dentro
é importante salientar que não foi re- do contexto mundial, o faturamento lí-
solvido o problema da fome, pois boa quido na venda de agrotóxicos cresceu
parte dos excedentes agrícolas gerados 18,6% de 2006 a 2007, e 36,2% de 2007
atualmente são commodities,1 e a fome a 2008 (Sindicato Nacional da Indús-
segue assolando cerca de 1 bilhão dos tria de Produtos para Defesa Agrícola,
seres humanos subalimentados do 2009). Desde 2008, o Brasil tornou-se
planeta (United Nations Development o maior consumidor mundial de agro-
Programme, 2004). tóxicos, movimentando 6,62 bilhões de
dólares em 2008 para um consumo de
Nesse processo de modernização
725,6 mil toneladas de agrotóxicos – o
da agricultura conduzido pelos inte-
que representa 3,7 quilos de agrotóxi-
resses de grandes corporações transna-
cos por habitante. Em 2009, as vendas
cionais, configurou-se o AGRONEGÓCIO
atingiram 789.974 toneladas (ibid.).
como sistema que articula o latifún-
dio, as indústrias química, meta- A partir de 1997, o governo fede-
lúrgica e de biotecnologia, o capital ral passou a conceder isenção de 60%
financeiro e o mercado (Fernandes e no Imposto sobre Circulação de Mer-
Welch, 2008), com fortes bases de apoio cadorias e Serviços (ICMS) para os
no aparato político-institucional e tam- agrotóxicos e isenção total do Imposto
bém no campo científico e tecnológico. sobre Produtos Industrializados (IPI),
Esse sistema ampliou a monocultura e além de dispensa de contribuição para
aumentou a concentração de terras, de o Programa de Integração Social/
renda e de poder político dos grandes Programa de Formação do Patrimô-
produtores. Elevou também a intensida- nio do Servidor Público (PIS/Pasep)
de do trabalho, a migração campo–cidade e para a Contribuição para o Financia-
e o desemprego rural. Por sua vez, a mento da Seguridade Social (Cofins).
apropriação dos frutos dessa produti- Como elemento das disputas por in-
vidade reverteu no aumento dos lucros vestimentos do agronegócio mediante
capitalistas para os grandes proprietá- guerra fiscal, alguns estados – caso do
rios rurais e as multinacionais envolvi- Ceará, por exemplo – ampliaram es-
das (Porto e Milanez, 2009). sas isenções para 100%, beneficiando
Frutos desse processo, atualmen- a indústria química e comprometendo
te existem no mundo cerca de vinte o financiamento de políticas públicas
grandes indústrias fabricantes de agro- como as de saúde ou meio ambiente
tóxicos, com um volume de vendas da (Teixeira, 2010).
ordem de 20 bilhões de dólares por Os agrotóxicos são utilizados em
ano e uma produção de 2,5 milhões grande escala no setor agropecuário,
de toneladas de agrotóxicos, dos quais especialmente nos sistemas de mo-
39% são herbicidas;; 33%, inseticidas;; nocultivo em grandes extensões. Em
22%, fungicidas;; e 6%, outros grupos conjunto com a acelerada expansão da

89
Dicionário da Educação do Campo

área cultivada – 39% nas regiões Sul e vimento (Miranda, 2007). Numa série
Sudeste e 66% na região Centro-Oeste acumulada de 1989 a 2004 (Fundação
nos últimos três anos –, a soja foi Oswaldo Cruz, 2004), foram notifica-
responsável por cerca da metade do dos no Brasil 1.055.897 casos de in-
consumo de agrotóxicos no país em toxicação humana por agrotóxicos e
2008, seguida das lavouras de milho e 6.632 óbitos pelo mesmo motivo. Em
cana, essa última associada à produção 2008, 32,7% das intoxicações no Brasil
de agrocombustíveis – supostamente tiveram como principal agente tóxico
“limpos” – para exportação (Sindica- envolvido os agrotóxicos de uso agrí-
to Nacional da Indústria de Produtos cola. Vale ressaltar que a OMS indica
para Defesa Agrícola, 2009). que, para cada caso notificado de in-
Além do amplo uso de agrotó- toxicação por agrotóxicos, existem 50
xicos, ainda há uma ampla gama de casos não notificados (Marinho, 2010).
produtos disponíveis, o que complexi- Os agrotóxicos também podem causar
fica a exposição e a avaliação de seus diversos efeitos crônicos:
impactos sobre o ambiente e a saúde. • inseticidas organofosforados e car-
São inseticidas, fungicidas, herbicidas, bamatos: alterações cromossômicas;;
raticidas, acaricidas, desfoliantes, ne- • fungicidas fentalamidas e herbici-
maticidas, molusquicidas e fumigantes. das fenoxiacéticos: malformações
Atualmente, existem pelo menos 1.500 congênitas;;
ingredientes ativos distribuídos em 15 • nematicidas dibromocloropropano
mil diferentes formulações comerciais etc.: infertilidade masculina;;
no mercado mundial (Brasil, 2004). • fungicidas ditiocarbamatos, herbici-
No país, estão registrados 2.195 pro- das dinitrofenóis, pentaclorofenóis,
dutos comerciais, elaborados com 434 fenoxiacéticos etc.: câncer;;
ingredientes ativos (Brasil, 2010). E os • organofosforados e organoclora-
investimentos para encontrar novas dos: neurotoxicidade;;
moléculas de ingredientes ativos con- • alquilfenóis, glifosato, ácido diclo-
tinuam crescendo: se antes dos anos rofenoxiacético, organoclorados
1990 a chance era de 1/5.000 molécu- (metolacloro, acetocloro, alacloro,
las estudadas, atualmente são gastos em clorpirifós, metoxicloro) e piretroi-
média dez anos para se combinar 150 des sintéticos: interferência endó-
mil componentes, com investimentos crina;;
de US$ 256 milhões, até se chegar a um • organoclorados, herbicidas dipiridi-
novo produto (Carvalho, 2010). los: doenças hepáticas;;
Como biocidas, os agrotóxicos in- • inseticidas piretroides sintéticos,
terferem em mecanismos fisiológicos ditiocarbamatos e dipiridilos: doen-
de sustentação da vida que são também ças respiratórias;;
comuns aos seres humanos e, portanto, • organoclorados: doenças renais;;
estão associados a uma ampla gama de • organofosforados, carbamatos, di-
danos à saúde. Segundo a Organização tiocarbamatos e dioiridilos: doen-
Mundial de Saúde (OMS), os biocidas ças dermatológicas (Franco Neto,
produzem, a cada ano, de 3 a 5 milhões 1998;; Koifman e Meyer, 2002;; Peres,
de intoxicações agudas no mundo, es- Moreira e Dubois, 2003;; Mansour,
pecialmente em países em desenvol- 2004;; Queiroz e Waissmann, 2006).

90
Agrotóxicos
A
No Brasil, a classificação toxicoló- lizada pulverização aérea de agrotóxi-
gica dos agrotóxicos está a cargo do cos herbicidas ou fungicidas.
Ministério da Saúde. Essa classificação Há ainda contaminação de alimen-
está elaborada segundo a dose letal tos com resíduos de agrotóxicos. No
50 – estabelecida de acordo com os Brasil, o Ministério da Saúde, por meio
miligramas de produto tóxico por quilo da Agência Nacional de Vigilância
de peso necessários para levar a óbito Sanitária (Anvisa), monitora a presença
50% dos animais de teste. São essas as de 234 ingredientes ativos em vinte ali-
classes: I – extremamente tóxico;; II – mentos. Para o ano de 2009, os resulta-
muito tóxico;; III – tóxico;; e IV – pou- dos mostraram que 29% deles apresen-
co tóxico. tavam resultados insatisfatórios, seja
De forma análoga, os agrotóxicos por estarem acima do limite máximo
são classificados de I a IV de acordo de resíduos permitido (> LMR), seja
com o seu potencial de degradação por apresentarem resíduos de agrotó-
ambiental, que leva em conta a bioa- xicos não autorizados e não adequados
cumulação, a persistência no solo, a para aquele cultivo (NA), seja por esses
toxicidade a diversos organismos e os dois motivos associados.
potenciais mutagênico, teratogênico Diante do uso intenso e difuso dos
e carcinogênico. agrotóxicos no Brasil, é possível consi-
As regiões de expansão dos mo- derar que a maior parte da população
nocultivos do agronegócio têm apre- está exposta a eles de alguma forma.
sentado também problemas graves de O conceito de justiça ambiental auxilia
contaminação ambiental das águas sub- a dar visibilidade às diferentes magni-
terrâneas, caso dos aquíferos Guarani tudes dessa exposição. Os trabalhado-
e Jandaíra, nos estados do Ceará e do res são certamente os que entram em
Rio Grande do Norte respectivamente contato mais direto, e por mais tempo,
(Ceará, 2009). Também tem sido en- com esses produtos, seja nas empresas
contrada contaminação das águas su- do agronegócio, seja na agricultura fa-
perficiais de rios, lagoas, açudes e até miliar ou camponesa – onde a cultura
mesmo das águas disponibilizadas da Revolução Verde também penetra e
pelos sistemas de abastecimento às comu- tenta se impor –, seja nas fábricas quí-
nidades, nas quais já foram encontra- micas onde são formulados, seja, ainda,
dos até doze ingredientes ativos dife- nas campanhas de saúde pública onde
rentes numa única amostra (Rigotto e são utilizados. Um segundo grupo se-
Pessoa, 2010). Estudos conduzidos pela riam as comunidades situadas em tor-
equipe do professor Wanderlei Pignati no desses empreendimentos agrícolas
(2007), da Universidade Federal do ou industriais, onde comumente vivem
Mato Grosso, encontraram, na região as famílias dos trabalhadores, nas cha-
de monocultivo de soja, contaminação madas “zonas de sacrifício”, em áreas
por agrotóxicos no leite materno e na rurais ou urbanas. Um terceiro grupo
água da chuva. De forma similar, ocor- é formado pelos consumidores de ali-
re contaminação do solo, do ar e dos mentos contaminados;; nele está incluí-
locais de vida e produção de comuni- da praticamente toda a população, de
dades vizinhas a grandes empreen- acordo com os dados do Programa
dimentos, especialmente quando é rea- de Análise de Resíduos de Agrotóxicos

91
Dicionário da Educação do Campo

em Alimentos (Para), da Anvisa, men- Trabalho e Emprego determina que


cionados acima (Brasil, 2010). os empregadores realizem avaliações
Do ponto de vista cultural, o campo dos riscos para a segurança e a saú-
hegemônico tem produzido e difundi- de e adotem medidas de prevenção e
do o mito de que sem os agrotóxicos proteção, hierarquizadas em ordem de
não é possível produzir – negando prioridade, ficando os equipamentos
assim os 10 mil anos de desenvolvi- de proteção individual (EPIs) como
mento da agricultura que antecederam última alternativa. A primeira me-
o boom atual dos venenos, iniciado há dida prevista na NR 31 da portaria
cerca de sessenta anos, e negando a ri- nº 3.214/1978 (Brasil, 1978) é a elimi-
queza das experiências de agroecologia nação dos riscos, aplicável, no campo
que florescem em diversos biomas, no da higiene do trabalho, a todos os ris-
Brasil e no mundo. Difundem também cos, mas muito especialmente àqueles
a ideia de que é possível o uso seguro de maior gravidade, como seria o caso
dos agrotóxicos, ou seja, que podem da maioria dos agrotóxicos;; segue-se
ser estabelecidas regras para garantir a a essa medida o controle de riscos na
proteção das diferentes formas de vida fonte;; a redução do risco ao mínimo
expostas a esses biocidas. pela introdução de medidas técnicas
Essa é a base conceitual de toda ou organizacionais e de práticas segu-
a legislação brasileira para a regu- ras, inclusive mediante a capacitação;; a
lação dos agrotóxicos. Assim, a lei adoção de medidas de proteção pessoal,
nº 7.802/1989 e o decreto nº 4.074/ sem ônus para o trabalhador, de forma
2002 atribuem aos ministérios da Agri- complementar ou caso ainda persistam
cultura, do Meio Ambiente e da Saúde temporariamente fatores de risco. Essa
a competência de “estabelecer diretri- norma sublinha ainda o direito dos tra-
zes e exigências objetivando minimizar balhadores à informação, ao determi-
os riscos apresentados por agrotóxicos, nar que se forneçam a eles instruções
seus componentes e afins” (art. 2º, inci- compreensíveis sobre os riscos e as
so II). Entre elas estão a obrigatorieda- medidas de proteção implantadas, os
de do registro dos agrotóxicos, após (re) resultados dos exames médicos e com-
avaliação de sua eficiência agronômica, plementares a que forem submetidos,
de sua toxicidade para a saúde e de sua os resultados das avaliações ambientais
periculosidade para o meio ambiente;; realizadas nos locais de trabalho etc.
o estabelecimento do limite máximo Entretanto, no contexto atual, é
de resíduos aceitável em alimentos e do possível fazer valer o uso seguro dos
intervalo de segurança entre a aplicação agrotóxicos? Além do enorme volume
do produto e sua colheita ou comercia- de agrotóxicos consumidos no Brasil
lização;; a definição de parâmetros para nos últimos anos, o problema estaria
rótulos e bulas;; a fiscalização da produ- presente nos 5,2 milhões de estabe-
ção, importação e exportação;; as ações lecimentos agropecuários espalhados
de divulgação e esclarecimento sobre o por todo o país e que ocupam área
uso correto e eficaz dos agrotóxicos;; a correspondente a 36,75% do território
destinação final de embalagens etc. nacional. O setor envolve 16.567.544
No que diz respeito aos trabalha- pessoas (incluindo produtores, seus
dores, a legislação do Ministério do familiares e empregados temporários

92
Agrotóxicos
A
ou permanentes), que correspondem a ameaça que representam os agrotó-
quase 20% da população ocupada no xicos, denunciando assim todos os
país. Há que considerar ainda as condi- seus efeitos degradantes à saúde, ao
ções institucionais para o Estado fazer meio ambiente etc.;;
valer as leis e normas ante a extensão 2) denunciar e responsabilizar as em-
socioespacial do país, as deficiências presas que produzem e comerciali-
das políticas públicas marcadas pelo zam agrotóxicos;;
neoliberalismo, a composição dos qua- 3) pautar na sociedade a necessidade
dros de pessoal, a infraestrutura para de mudança do atual modelo agrí-
execução das ações e a correlação de cola, que produz comida envene-
forças políticas. nada;;
Em resposta a esses desafios, enti- 4) fazer da campanha um espaço
dades como a Assessoria e Serviços a de construção de unidade entre
Projetos em Agricultura Alternativa ambientalistas, camponeses, tra-
(AS-PTA) desenvolvem a Campanha balhadores urbanos, estudantes,
por um Brasil Livre de Transgênicos e consumidores e todos aqueles que
Agrotóxicos;; além disso, foi lançada, em prezam pela produção de um ali-
abril de 2011, a Campanha Permanen- mento saudável que respeite ao
te contra os Agrotóxicos e pela Vida, à meio ambiente;;
qual já aderiram mais de trinta entidades 5) explicitar a necessidade e o poten-
da sociedade civil brasileira, entre mo- cial que o Brasil tem de produzir
vimentos sociais, entidades ambientalis- alimentos diversificados e saudá-
tas, estudantes, organizações ligadas à veis para todos, em pleno convívio
área da saúde e grupos de pesquisado- com o meio ambiente e com base
res. Ela tem como objetivos: em princípios agroecológicos.
1) construir um processo de cons- (Campanha Permanente contra os
cientização na sociedade sobre a Agrotóxicos e pela Vida, 2011)

Notas
1
Commodities são produtos de origem mineral ou vegetal, geralmente em estado bruto ou
com pouco beneficiamento, produzidos em massa e com características homogêneas, in-
dependentemente da sua origem. Seu preço, normalmente, é definido pela demanda, e não
pelo produtor. Alguns exemplos de commodities são soja, café, açúcar, ferro e alumínio.

Para saber mais


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AMBIENTE (MEIO AMBIENTE)


Carlos Walter Porto-Gonçalves

Todo conceito tem uma história, e o concepção, normalmente, a noosfera


de meio ambiente não foge à regra. Até (esfera do conhecimento), a psicosfera
muito recentemente, a noção de am- (a esfera da formação do psiquismo) e
biente, ou simplesmente meio, tinha um a tecnosfera (o mundo das técnicas).
sentido vago. Além disso, até os anos Enfim, o conceito de meio ambiente
1960 a discussão sobre o que hoje cha- tem sido capturado por uma visão que
mamos questão ambiental estava restrita o reduz ao mundo das ciências naturais.
a cientistas preocupados com a preser- Não devemos esquecer que a tradição
vação/conservação da natureza (pre- científica hegemônica, de origem eu-
servacionismo e conservacionismo). ropeia, traz as marcas de uma tradição
Dos anos 1960 para cá, o debate acerca filosófica que opera com a separação
do meio ambiente passa a estar relacio- entre homem e natureza, consagrada
nado ao desenvolvimento das sociedades na separação entre ciências naturais e
e, portanto, amplia-se e se complexifica. ciências humanas, que, modernamente,
Sai dos gabinetes e vem para as ruas. vai ser afirmada na separação entre su-
Do ponto de vista científico, a no- jeito e objeto – nas palavras de René
ção de ambiente (meio ambiente) se Descartes (1596-1650), res cogitans e res
referia basicamente ao meio biogeofí- extensa. Outro filósofo, Francis Bacon
sico com o qual os homens haviam de (1561-1626), considerado o pai da ciên-
se relacionar. Sendo assim, o conceito cia moderna, vai acolher essa visão da
predominante nos meios científicos natureza como objeto, natureza que,
sobre meio ambiente tem um forte segundo ele, deveria ser torturada para
viés das ciências naturais, na medida revelar seus mistérios. Essa visão con-
em que remete aos meios biótico (a sagrada que separa homem e natureza
biosfera animal e vegetal) e abiótico comandará o fazer científico e é um dos
(a litosfera – geologia e geomorfologia – pilares do imaginário do que se chama
e a atmosfera). Ficam de fora dessa mundo moderno, um mundo no qual,

96
Ambiente (Meio Ambiente)
A
em grande parte, o homem domina isso, os deuses foram expulsos da Terra
a natureza. e enviados aos céus. E a natureza, sem
Ora, a ideia de dominação da natu- deuses, podia, enfim, ser dominada:
reza só tem sentido se consideramos todo o conhecimento construído por
que a espécie humana não é parte da inúmeros povos originários e grupos
natureza, pois, se considerarmos que camponeses entre os quais a nature-
somos natureza, nos vemos diante do za impunha limites à dominação, por
paradoxo de saber quem vai dominar o ser habitada pelo sagrado, é destruído
dominador. Pode-se dizer que grande como misticismo, animismo, crendice,
parte do desafio ambiental contempo- saberes inferiores...
râneo está relacionado com esse imagi- Assim, todo um rico acervo de
nário de dominação da natureza, sobre conhecimentos, criativamente desen-
o qual se edificou o mundo da ciência volvido e adaptado a circunstâncias
moderna. A ideia de dominação da na- locais, foi inferiorizado por uma visão
tureza, assim como a própria ideia de colonial que desperdiçou essa imensa
dominação, implica, sempre, que o ser experiência humana, desenvolvida ao
a ser dominado – sejam grupos sociais longo de milhares de anos, por milha-
(gênero, “raça”, opção sexual), classes res de povos. O conhecimento desses
sociais, etnias ou a natureza – não seja povos, grupos sociais e etnias é fun-
considerado em sua plenitude, em suas damental em qualquer política séria e
múltiplas virtualidades e potencialida- responsável que vise cuidar do patri-
des, mas sim em razão daquilo que nele mônio natural da humanidade. Essa é
interessa ao dominador. Assim, todo a fonte de informação da maior parte
ser dominado é, sempre, mais do que dos remédios de que a humanidade
aquilo que é sob a dominação. dispõe hoje, em grande parte objeto
Não devemos esquecer ainda que a de etnobiopirataria, pois as informa-
dominação da natureza pelos homens ções geradas por essas populações são
acabou por autorizar a dominação de apropriadas por laboratórios de gran-
povos/etnias e grupos sociais assimi- des corporações para fins de acumula-
lados à natureza. Povos selvagens, por ção, e não socializadas como o foram
exemplo, sendo das selvas, sendo das até muito recentemente, quando eram
matas, são da natureza e, assim, podem trocadas livremente com base na reci-
ser dominados pelos povos civilizados. procidade. Agora vemos interromper-
É possível dizer o mesmo das “raças” se essa tradição milenar de partilha e
inferiores, geralmente negros e “ama- enriquecimento mútuo como resultado
relos” (os indígenas e orientais), que de leis de patenteamento que cada vez
devem ser dominadas pelas “raças” su- mais beneficiam os laboratórios das gran-
periores, quase sempre brancos. des corporações, sob os ditames da Orga-
A ideia de dominação da natureza, nização Mundial do Comércio (OMC).
ao colocar o homem como sujeito – O mito segundo o qual o desen-
polo ativo numa relação – e a nature- volvimento da ciência permitiria o
za como objeto – polo passivo –, viu- domínio da natureza se desfaz quando
se obrigada a dessacralizar a natureza, vemos que o país mais desenvolvido
pois se ela estivesse povoada por deu- do ponto de vista técnico-científico,
ses não haveria como dominá-la. Por os Estados Unidos, não consegue

97
Dicionário da Educação do Campo

produzir aquilo que a natureza fez e Presidência da República, em 1974,


que utiliza no seu processo de desen- caso fosse eleito, que cada francês teria
volvimento/acumulação. Afinal, ne- direito a um automóvel. Como se vê, o
nhum país, nenhuma sociedade, pro- produtivismo se faz presente nos dois
duz água, oxigênio, carvão, petróleo, lados do espectro ideológico na tradi-
energia solar (fotossíntese): somos ção iluminista.
extratores, somos usuários e devemos Desde então, o debate ambien-
legar esses recursos, como boni patres tal veio afirmando uma longa lista de
familia – como disse Karl Marx, assim questões – efeito estufa, aquecimento
mesmo em latim – às gerações futu- global, perda da diversidade biológica
ras. Como somos extratores, devemos (extinção de espécies), buraco na ca-
nos preocupar com o uso dos recur- mada de ozônio, poluição industrial
sos que não fazemos e em relação aos das águas, da terra e do ar, desmata-
quais dependemos que a natureza os mento, perda de solos por erosão, lixo
faça. Eis uma das lições que os serin- urbano, lixo tóxico... Nenhuma dessas
gueiros, sob a liderança político-inte- questões havia sido debatida de modo
lectual de Chico Mendes, nos legaram tão amplo como passou a ser após os
com suas reservas extrativistas. Ao se anos 1960. O desafio ambiental está
assumirem como extrativistas, viam- vinculado ao período histórico que se
se diante da necessidade de respeitar inicia nos anos 1960-1970, e pode-se
a produtividade biológica primária, mesmo dizer que o ambientalismo é
respeito que, segundo Enrique Leff um dos vetores instituintes da ordem
(2009), é um dos pilares de outra ra- mundial que então se inicia.
cionalidade, a ambiental, em contra- A superação do desafio ambien-
posição à racionalidade hegemônica, tal inscrito no cerne da globalização
a econômico-mercantil. Por isso, os neoliberal requer a compreensão das
Estados Unidos mantêm milhares de questões colocadas pelos movimentos
bases militares em todo o mundo para sociais dos anos 1960, uma vez que a
garantir pela força o que não podem fa- globalização neoliberal que se desenvol-
zer pela razão tecnocêntrica. verá logo a seguir é precisamente uma
O período de globalização neolibe- resposta contra aquele movimento.
ral (de 1970 aos dias de hoje) já nascerá A questão ambiental está no centro
sob o signo do desafio ambiental, de- das contradições do mundo moderno-
safio que não se colocou para nenhum colonial. Afinal, a ideia de progresso –
dos períodos anteriores da globaliza- e sua versão mais atual, desenvolvi-
ção. Isso porque a natureza era consi- mento – é, rigorosamente, sinônimo de
derada, até então, fonte inesgotável de dominação da natureza ! Portanto, aquilo
recursos, como deixa claro o fordismo que a questão ambiental coloca como
e sua pretensa sociedade de consumo desafio é, exatamente, aquilo que o
de massas, em que cada operário po- projeto civilizatório, nas suas mais di-
deria adquirir um carro. Nisso Henry ferentes visões hegemônicas, acredita
Ford (1863-1947) se assemelha ao se- ser a solução, ou seja, a dominação da
cretário-geral do Partido Comunista natureza, ideia que comanda o imagi-
francês George Marchais (1920-1997), nário do mundo moderno-colonial. A
que prometeu em sua candidatura à questão ambiental coloca-nos diante

98
Ambiente (Meio Ambiente)
A
do fato de que há limites para a domi- se momento, os chamados países de-
nação da natureza. Assim, estamos não senvolvidos, países urbano-industria-
apenas diante de um desafio técnico, lizados, começaram a transferir para
mas também de um desafio político alguns países subdesenvolvidos, países
e civilizatório. agrícolas e rurais, suas plantas indus-
Os anos 1960 comportam uma triais, inicialmente as mais poluidoras,
ambiguidade em relação à ideia de como a indústria de papel e celulose
desenvolvimento, e essa ambiguidade e a de alumínio, dando início a uma
terá importantes efeitos na nova eta- nova divisão internacional do traba-
pa do processo de globalização nos lho. Essa nova divisão do trabalho se
anos 1970. Ao mesmo tempo em que mostra hoje mais claramente;; nela os
se questiona o desenvolvimento lá mesmo países hegemônicos no sistema mundo
onde ele parecia ter dado certo – isto é, moderno-colonial são “sociedades da
na Europa e nos Estados Unidos –, a informação” ou “sociedades do conhe-
ideia de desenvolvimento, na perspec- cimento”;; já os países coloniais e semi-
tiva de superar o subdesenvolvimento, coloniais, exportadores de commoditties –
ganha corpo na América Latina, na característica, aliás, que remonta ao
África e na Ásia. É preciso verificar que século XVI –, são, hoje, países que se
a própria ideia de subdesenvolvimento industrializam (vide a China e outros
traz em si a sua superação, na medida países asiáticos, além do Brasil, por
em que o prefixo sub indica que se está exemplo) numa perversa divisão do tra-
aquém de algo que se toma como pa- balho mundial. Nela, os países coloniais
râmetro, no caso o desenvolvimento: a e semicoloniais são “mão de obra” da
superação do subdesenvolvimento dar- obra desenhada, planejada e projetada
se-á pelo desenvolvimento. pelos que pensam, ou seja, pela cabe-
ça dos designers, dos executivos e dos
Desse modo, o desenvolvimentis-
intelectuais dos países hegemônicos
mo passou a ganhar corpo nos países
do sistema mundo moderno-colonial.
coloniais e semicoloniais, como Lenin
Além disso, as atividades “limpas” –
bem os caracterizou, no mesmo mo-
conhecimento e informação – ficam lo-
mento em que o desenvolvimento era
calizadas nos centros hegemônicos e as
questionado nos países hegemônicos.
atividades “sujas” – agricultura e seus
É emblemática a posição do governo
brasileiro na primeira grande reunião agrotóxicos, a indústria e seus rejeitos –,
da Organização das Nações Unidas nos países coloniais e semicoloniais. É
(ONU) sobre o meio ambiente, reali- enfim, uma geografia socialmente desi-
zada em Estocolmo em 1972, ao afir- gual dos proveitos e dos rejeitos.
mar que a pior poluição era a pobreza, Até os anos 1960, a principal crítica
convidando a que se trouxesse o desen- feita ao desenvolvimento provinha do
volvimento por meio de investimentos marxismo, que assinalava o caráter ne-
no Brasil. Na época, dizia-se “venham cessariamente desigual em que se funda
poluir no Brasil”, numa aceitação abso- o desenvolvimento capitalista. Porém,
lutamente acrítica de que o desenvol- a crítica era dirigida à desigualdade do
vimento naturalmente está associado à desenvolvimento, e não ao desenvolvi-
degradação ambiental: “é o preço que mento em si, das forças produtivas ca-
se paga pelo progresso”. A partir des- pitalistas. Com isso, os que criticavam a

99
Dicionário da Educação do Campo

desigualdade do desenvolvimento con- pos sociais, povos e etnias que man-


tribuíam para fomentá-lo, na medida tinham uma relação profunda com
em que consideravam que a superação a natureza foram desterritorializados
da desigualdade e da miséria seria feita pelo avanço de uma “agricultura sem
com mais desenvolvimento. agricultores”, conforme a lúcida carac-
Outro dos paradoxos constituti- terização do argentino Miguel Teubal
vos do mundo moderno-colonial é o (2011). O desmatamento generalizado
de que a superação da desigualdade se e a perda de solos e da diversidade bio-
transforma, na verdade, numa busca lógica foram acompanhados, ainda, da
para que todos sejam iguais a um padrão perda de diversidade cultural, quando
cultural, o europeu ocidental, e o do seu se jogaram nas cidades populações que,
filho bem-sucedido, os Estados Unidos. por serem pobres, viram-se obrigadas
Parece até mesmo absurdo dizer-se a ocupar os fundos de vales, os man-
que todos têm direito a ser iguais aos gues urbanos, as encostas instáveis –
ianomâmis, aos yukpas ou aos habitan- e, assim, estão, paradoxalmente, mais
tes da Mesopotâmia (Al Iraque, em ára- vulneráveis às intempéries do quando
be). Entretanto, o aparente absurdo só estavam nas áreas rurais.
o é na medida em que a colonização do A questão ambiental urbana se ins-
pensamento nos fez crer que há povos creve como aquela socialmente mais
atrasados e adiantados, como se houves- grave. Acrescente-se que esse perío-
se um relógio1 que servisse de parâme- do histórico que se inaugura nos anos
tro universal. Assim, confunde-se a luta 1970 foi aquele em que os Estados
contra a injustiça social com uma se viram obrigados, pela orientação
luta pela igualdade seguindo uma visão neoliberal que lhes foi imposta por
eurocêntrica: um padrão cultural que se organismos ditos multilaterais como
crê superior e, por isso, passível de o Banco Mundial, o Fundo Monetá-
ser generalizado. Com isso, contribui- rio Internacional (FMI) e a OMC, a
se para que se suprima a diferença e a abandonar suas responsabilidades so-
diversidade, talvez o maior patrimônio ciais em prol do mercado. Com isso,
da humanidade. essas populações tiveram de se virar
Vivemos, hoje, a contradição de ja- por si mesmas.
mais ter sido tão vasto e profundo o Não por acaso, a maior parte dos
processo de dominação e devastação da núcleos habitacionais das periferias
natureza quanto nesses últimos trinta a urbanas que se formaram desde então
quarenta anos, período em que a questão são baseadas em autoconstruções, fei-
ambiental se instituiu como tema cen- tas, quase sempre, mediante práticas
tral. Talvez não tenha havido, em todo sociais indígeno-camponesas, como os
o mundo, uma região tão emblemática mutirões, e nas quais a solidariedade
das contradições da globalização do de- concreta de ajuda mútua, em grande
senvolvimento quanto a América Lati- parte fundada em relações de paren-
na e, dentre suas regiões, a Amazônia.2 tesco, garante a sobrevivência, mes-
Nesse período tivemos, ainda, a maior mo que sob o convite permanente ao
onda expropriatória de camponeses e individualismo feito pela mídia, com
povos originários de toda a história da suas celebridades do mundo esportivo
humanidade. Em outras palavras, gru- e outros entretenimentos.

100
Ambiente (Meio Ambiente)
A
O controle da subjetividade se tor- no interior do campo ambiental entre
na vital, conforme comprova o fato de, perspectivas mais técnico-científicas e
em 1998, uma empresa de fabricação outras mais abertamente preocupadas
de tênis pagar a um só homem, ao jo- com questões culturais e políticas. Não
gador de basquete Michael Jordan, mais é a primeira vez que se vai observar esse
do que pagou a todos os que fabrica- deslocamento do campo social e polí-
ram seus tênis em todos os cantos do tico para o campo técnico. Lembremos
mundo. Enfim, os talentos esportivos que a expressão “REVOLUÇÃO VERDE”
e artísticos são destacados, e o sonho se opõe à “Revolução Vermelha”, que
de ser um deles é, por definição, a im- ganhou grande visibilidade na luta con-
possibilidade de todos o serem. O so- tra a fome quando milhões de campo-
nho de cada um desses filhos de em- neses brandiram suas bandeiras verme-
pregados dessa empresa de tênis deve lhas na Revolução Chinesa de 1949.
ser ter um tênis e ser um esportista fa- Desde então há um esforço siste-
moso, como o Sr. Michael Jordan. Há, mático para demonstrar que a questão
provavelmente, alguma organização da fome é um problema técnico, a ser
não governamental (ONG) ensinando solucionado com uma “Revolução Ver-
a essas crianças a ter autoestima e a não de”, ideia que pouco a pouco se afir-
entrar no mundo do crime! maria contra a ideia de que é necessária
Em finais dos anos 1960, o Clube a Reforma Agrária e uma revolução de
de Roma, criado por um grupo de em- outra cor nas relações sociais e de po-
presários e executivos transnacionais der. O êxito produtivo da Revolução
de empresas como Xerox, IBM, Fiat, Verde parece incontestável, e hoje con-
Remington Rand e Ollivetti coloca vivemos com o paradoxo de mais de
em debate, entre outras questões, o 1 bilhão de habitantes passarem fome
lado da demanda por recursos não re- ao lado da enorme produção de ali-
nováveis. O Relatório Meadows do MIT mentos. A concentração fundiária em
(Massachusetts Institute of Technology), grandes monocultivos, os pacotes tec-
patrocinado pelo Clube de Roma, nológicos que subjugam os agriculto-
tem um título ilustrativo: The limits to res com seu alto consumo de energia
growth (Limites do crescimento) (Meadows e insumos, inclusive agrotóxicos, e o
et al., 1972). Embora partindo de controle das sementes, cada vez mais
uma hipótese simplificadora, o docu- produzidas nas novas fábricas-labo-
mento assinalava o esgotamento dos ratórios das grandes corporações – e
recursos naturais caso fossem manti- não mais pelos camponeses e povos
das as tendências de crescimento até originários em seus próprios lugares –
então prevalecentes. adaptadas criativamente às mais varia-
Com isso, o debate ambiental co- das situações ecológicas, não só são
meça a ganhar o reconhecimento do capazes de produzir muitas toneladas
campo científico e técnico e, com ele, o de grãos, como também produzem mi-
próprio campo ambiental torna-se mais lhões de pobres expropriados de suas
complexo, na medida em que é captu- terras, bosques, campos, várzeas...
rado pelo discurso técnico-científico, É importante recuperar a origem da
antes objeto de duras críticas. Desde constituição do campo ambiental, com
então, veremos aproximações e tensões suas questões e conceitos próprios,

101
Dicionário da Educação do Campo

assim como a tensão que se estabelece consomem cerca de 80% das matérias-
com o modo de produção de verdades no in- primas e da energia do mundo, estamos
terior da sociedade moderno-colonial, diante de um fato limite, o de que seriam
no qual a ciência e a técnica ocupam necessários cinco planetas para ofere-
um lugar de destaque. Ora, o discurso cermos a todos os habitantes da Terra
científico e técnico se constituiu exa- o atual estilo de vida que, vivido pelos
tamente como o discurso de verdade ricos dos países ricos e pelos ricos dos
(da Verdade, com maiúscula, prefere- países pobres, é pretendido pela maior
se) no mundo moderno-colonial. Com parte dos que não partilham dele. E po-
isso, trouxe a desqualificação de outros demos concluir que não é a população
saberes, de outros conhecimentos, de pobre que está colocando o planeta e a
outras falas. O que se vê no Relatório humanidade em risco, como insinua o
Meadows é o deslocamento da questão pobre discurso malthusiano – afinal, os
ambiental em seus aspectos culturais 80% mais pobres do planeta consomem
e políticos e sua assimilação à lógica somente 20% dos recursos naturais, sen-
técnico-científica. do o seu impacto sobre o destino eco-
A ideia de que é preciso colocar lógico menor. Mahatma Gandhi colocou
limites ao crescimento seria refor- bem a questão, quando indagou: “Para
çada ainda quando cientistas como desenvolver a Inglaterra foi necessário
Ulrich Beck e Anthony Giddens (Beck, o planeta inteiro. O que será necessário
Giddens e Lasch, 1995) começam a falar para desenvolver a Índia?”.
de “sociedade de risco” para designar as Estamos diante de uma mudança de
contradições da sociedade moderna. escala na crise atual de escassez por po-
A caracterização da sociedade como luição do ar, de escassez por poluição
sociedade de risco traz um componente da água, de escassez (limites) de mine-
interessante para o debate ambiental, na rais, de escassez (limites) de energia, de
medida em que aponta para o fato de que perda de solos (limites) – os quais
os riscos corridos pela sociedade con- demandam um tempo, no mínimo, geo-
temporânea são, em grande parte, deriva- morfológico, para não dizer geológico,
dos da própria intervenção da sociedade para se formarem –, perda, enfim, de
humana no planeta (reflexividade), parti- elementos (ar, água, fogo, terra) que
cularmente aquela derivada das interven- eram vistos como dados e que a cultura
ções feitas pelo sistema técnico. Assim, ocidental e/ou ocidentalizada acredita-
sofremos reflexivamente os efeitos da va poder dominar. O efeito estufa, o
própria intervenção que a ação humana buraco na camada de ozônio, a mudan-
provoca por meio do poderoso sistema ça climática global, o lixo tóxico, para
técnico de que modernamente se dispõe. não falar do lixo propriamente, são os
É possível observar, então, que o modelo indícios mais fortes desses limites co-
de ação humana europeu ocidental e es- locados em escala global, ainda que sua
tadunidense, ao se expandir pelo mundo, dinâmica se evidencie melhor em outras
está colocando em risco o planeta intei- escalas (local, regional, nacional).
ro, além do fato de distribuir de modo Agora não é mais uma cultura ou
desigual seus benefícios e malefícios. um povo específico que coloca em risco
Quando se sabe que, segundo a sua própria existência. A globalização
ONU, os 20% mais ricos do planeta de uma mesma matriz de racionalida-

102
Ambiente (Meio Ambiente)
A
de, comandada pela lógica econômica mica que nos fará conter os riscos que,
em sentido estreito, nos conduz inexo- reflexivamente, a sistematização global
ravelmente a uma economia que igno- moderno-colonial está promovendo,
ra sua inscrição na Terra – isto é, no como tampouco é o conhecimento das
ar, na água, no solo, no subsolo (nos leis da gravidade que nos impede de
minérios), nos ciclos vitais das cadeias nos lançarmos do alto de um edifício,
alimentares, de carbono, de oxigênio – muito embora devamos admitir com
e, assim, a humanidade toda, embora Josué de Castro que a pulsão da fome
sofrendo de modo desigual, está sub- seja criativa, assim como o é a pulsão
metida a riscos derivados de ações de- da sexualidade, como explicou Freud.
cididas por alguns poucos. Além disso, Elmar Altvater nos alerta:
Enfim, a vida é, também, responsá-
vel pelo equilíbrio dinâmico do plane- [...] só saberemos tudo quando
ta, conforme atesta a teoria de Gaia.3 for cientificamente tarde de-
O conhecimento dessas complexas mais para evitar uma catástrofe
relações pode (e deve) ter importantes climática ou a destruição das
implicações de ordem ética e política, espécies. A ciência positivis-
sobretudo no que diz respeito à utili- ta é uma “ciência ex post ”, por
zação dos combustíveis fósseis a partir precisar estar diante do aconte-
da segunda revolução prometeica – a cimento para poder analisá-lo
Revolução Industrial, quando uma es- com seus métodos refinados.
pécie viva, o ser humano, começou a As tendências são separadas de
usar amplamente a energia solar acu- seus contextos, portanto, tam-
mulada sob a forma mineral, energia bém não há prognósticos acer-
produzida num tempo geológico de ca do desenvolvimento do todo
milhões de anos e que um motor a ex- sobre a base de análises e diag-
plosão, em fração de segundos, devol- nósticos de suas partes. (1995,
ve à atmosfera. Aqui, mais uma vez, a p. 302-303)
vida biológica, por meio de um arte- O que está em jogo com a questão
fato criado pelo homem, interfere nas ambiental é a reapropriação social da na-
condições de equilíbrio dinâmico do tureza. Com o capitalismo, as comuni-
planeta, produzindo efeitos não pre- dades camponesas e os povos originá-
tendidos e indesejados, e testando os rios foram expulsos de seus territórios.
seus limites, tal como havia feito com Desterritorializados e dispersos, torna-
a agricultura quando da primeira revo- ram-se indivíduos que nas cidades ti-
lução prometeica. E agora, quando a veram de vender sua força de trabalho,
agricultura começa, com os agrocom- transformaram-se em mercadorias da
bustíveis, a produzir energia para as mesma forma que as suas terras ago-
máquinas, e as terras para a produção ra, com a sua expulsão, passaram a ser
de alimentos passam a ser disputadas objeto de compra e venda. Assim, no
para a produção de energia, nos vemos capitalismo, a separação ser humano/
na iminência de uma terceira revolução natureza não é só uma questão de
prometeica. Novos desafios. paradigma, mas também uma ques-
Entretanto, sabemos que não é o tão que constitui a sociedade, promo-
conhecimento das leis da termodinâ- vendo a separação da maior parte da

103
Dicionário da Educação do Campo

humanidade das suas condições natu- lo íntimo com aquele significado origi-
rais de existência. nário. É que a política é a arte de definir
Enfim, com a separação da natu- os limites: tirania é quando um define os
reza, o capital a submete aos seus de- limites para todos;; oligarquia é quando
sígnios de acumulação e joga por terra poucos definem os limites para todos;; e
a promessa iluminista de uma razão a democracia é quando todos participam
serviço da emancipação. O limite do da definição dos limites.
capital é o dinheiro, e o dinheiro, sendo Portanto, é preciso resgatar a polí-
uma expressão quantitativa da riqueza, tica, no seu sentido mais profundo de
não tem limites. A luta ambiental sina- arte de definir os limites, sentido que
liza, hoje, mais do que qualquer outra só é pleno com democracia social e
luta, que o sentido da emancipação econômica. Não há limites imperativos
humana passa pela reapropriação so- à relação das sociedades com a natu-
cial da natureza e, por isso, é contra a reza. Esses limites, necessariamente,
mercantilização do mundo, essência do haverão de ser construídos pelos ho-
capitalismo e seus fetiches. mens e mulheres de carne e osso, seja
por meio das lutas sociais, inclusive
Assim, é preciso resgatar um sen- de classes, seja por meio do diálogo
tido que os gregos reservaram para de saberes entre modalidades distintas
os limites, o termo pólis, forma como, de produção de conhecimento, seja no
originariamente, designavam o muro interior de uma mesma cultura, seja en-
que delimitava a cidade do campo. So- tre culturas distintas. A espécie humana
mente depois pólis passou a designar o terá de se autolimitar! Os limites são,
que estava contido no interior do muro: antes de tudo, políticos! Contra o capi-
a cidade. Entretanto, a pólis, a política, a talismo e a colonialidade (que sabemos
cidade e a cidadania mantêm um víncu- que sobrevive ao fim do colonialismo)!

Notas
1
Na verdade há um parâmetro, sim, que meridianamente diz a hora certa do mundo:
Greenwich. Não sem sentido, Greenwich é um subúrbio de Londres, ele mesmo marco da he-
gemonia britânica a partir do século XIX, substituindo outro meridiano – o de Tordesilhas –
que servira de marco da hegemonia ibérica. A história geografiza-se.
2
Isso talvez se explique pelo fato de a América Latina ser, de todas as regiões coloniais e
semicoloniais do mundo, aquela mais ocidentalizada, onde até mesmo o nome da região
é uma homenagem a um europeu, Américo Vespúcio. Isso não impediu que aqui se formas-
se uma rica tradição de pensamento crítico (a teoria da dependência, a teologia da liberta-
ção, a pedagogia do oprimido, o socioambientalismo) contra essa colonialidade que tão bem
caracteriza o pensamento dependente de boa parte das elites.
3
A teoria de Gaia, criada pelo cientista inglês James Lovelock, em 1969, sustenta que a Terra é
um ser vivo e que possui capacidade de autossustentação, ou seja, é capaz de gerar, manter
e alterar suas condições ambientais. De início, a teoria foi aceita apenas por ambientalistas e
defensores da ecologia;; porém, atualmente, com o problema das mudanças climáticas, está
sendo revista, e muitos cientistas tradicionais já aceitam algumas de suas ideias.

104
Articulações em Defesa da Reforma Agrária
A

Para saber mais


ALPHANDÈRY, P.; BITOUN, P.; DUPONT, Y. O equívoco ecológico: riscos políticos. São
Paulo: Brasiliense, 1992.
ALTVATER, E. O preço da riqueza. São Paulo: Editora da Unesp, 1995.
BARTRA, A. El hombre de hierro: los límites sociales y ambientales del capital.
México, D.F.: UACM–Itaca–UAM, 2008.
BECK, U.; GIDDENS, A.; LASCH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e
estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 1995.
CORDEIRO, R. C. Da riqueza das nações à ciência das riquezas. São Paulo: Loyola,
1995.
DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.
LEFF, E. A racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
______. Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade ambiental.
Petrópolis: Vozes, 2009.
MEADOWS, D. et al. (1972). Limites do crescimento: um relatório para o projeto do
Clube de Roma sobre o dilema da humanidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no
Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
______. Os (des)caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 1989.
TEUBAL, M. Apuntes sobre el desarrollo. In: GIARRACA, N. (org.). Bicentenarios
(otros) transiciones y resistencias. Buenos Aires: Ventana, 2011.

ARTICULAÇÕES EM DEFESA DA REFORMA AGRÁRIA


Sérgio Sauer

Com o processo de redemocratiza- retomaram e deram um caráter nacio-


ção política do Brasil, o qual teve iní- nal às lutas por terra. Surgem novos
cio em fins dos anos 1970, resultando movimentos sociais (ver MOVIMEN-
no primeiro governo civil, em 1985, e TO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
no processo Constituinte, entre 1987 e TERRA) que, associados às organizações
1988, os movimentos sociais agrários e entidades já existentes (ver COMISSÃO

105
Dicionário da Educação do Campo

PASTORAL DA TERRA e SINDICALISMO gação de pessoas de vários matizes, de


RURAL), ampliaram as lutas e intensifi- pesquisadores universitários e autôno-
caram as demandas por Reforma Agrá- mos;; uma escola de Reforma Agrária,
ria em todo o Brasil. um centro de pensamento e de ação”
Anterior a esse processo de abertu- (2006, p. 28).
ra política, enfrentando os duros anos Já nos anos de abertura política, a
da ditadura militar (1964-1985), foi Abra – como “lugar de acolhimento e
criada, em 1969, a Associação Brasi- incentivo aos movimentos sociais” en-
leira de Reforma Agrária (Abra), sob a tão em ascensão – mobilizou e partici-
coordenação de José Gomes da Silva. A pou ativamente nas lutas políticas, auxi-
história e o compromisso da Abra com liando nas formulações e mobilizações
os temas do campo, na verdade, estão por um país democrático e no processo
intimamente ligados a seu idealizador, Constituinte, com José Gomes da Silva
fundador e principal liderança. Assim atuando como um dos principais ani-
como seu principal coordenador, a madores da participação popular e
Abra e os acadêmicos a ela vinculados como o formulador da emenda cons-
foram incansáveis na articulação e na titucional de Reforma Agrária (Silva,
defesa da Reforma Agrária, mesmo 1987), assumida pela Campanha Na-
nos anos mais duros da ditadura. cional pela Reforma Agrária (CNRA)
Como lembra Sônia Moraes, José e entidades do campo, a exemplo da
Gomes da Silva, um engenheiro agrô- CPT, Abra, Contag, e do então recém-
nomo e militante incondicional da criado Movimento dos Trabalhadores
Reforma Agrária, “era um obstinado Rurais Sem Terra (MST).
pela justiça no campo” (2006, p. 15). A Campanha Nacional pela Refor-
Suas posições e militâncias, portanto, ma Agrária (CNRA) foi organizada nos
faziam-se presentes na agenda e arti- anos 1980 e coordenada pelo Betinho
culações da Abra, especialmente nos (Herbert de Souza), então liderança
debates teóricos e no “apoio à luta pela importante de uma organização não
terra”, sendo a associação um “lugar de governamental, o Instituto Brasileiro
acolhimento e incentivo aos movimen- de Análises Socioeconômicas (Ibase),
tos sociais existentes no país” (Moraes, sediado no Rio de Janeiro. Essa cam-
2006, p. 16). panha desembocou, já nos anos 1990,
Em um contexto de constantes no Fórum Nacional pela Reforma
ameaças, perseguição política e repres- Agrária e Justiça no Campo (FNRA),
são, a Abra fez coro com outras en- outra rede importante nos processos
tidades e organizações do campo – a de articulação, mobilizações e lutas por
exemplo da Comissão Pastoral da Terra terra no Brasil.
(CPT), criada em 1975, e da Confede- Em pleno processo de redemocra-
ração Nacional dos Trabalhadores na tização política e de ascensão das lutas
Agricultura (Contag), criada em 1963 – por terra, várias entidades articularam a
na defesa dos povos do campo, no in- CNRA a partir de 1983, como uma ma-
centivo a grupos de estudo e reflexão, neira de apoiar as demandas populares
e em ações e mobilizações em prol da e as lutas por Reforma Agrária. Segun-
Reforma Agrária. Segundo Carvalho, do depoimento de Betinho, no início
a Abra se tornou “um espaço de agre- parecia “difícil construir um discurso

106
Articulações em Defesa da Reforma Agrária
A
e formular uma proposta de interven- e as entidades agrárias nesse período.
ção social que unisse, pelo menos par- Em meados dos anos 1990, com a fi-
cialmente, a CPT, a Linha 6 da CNBB liação da Contag à CUT, essa central
[Conferência Nacional dos Bispos do dissolveu o DNTR, mas ações sindi-
Brasil], a Contag, o Cimi [Conselho In- cais ampliaram a bandeira da Reforma
digenista Missionário] e a Abra”, mas, Agrária (ver SINDICALISMO RURAL). No
“depois de nove meses de conversas e início da década de 1990, federações
articulações, nasceu a CNRA” (Souza, sindicais e sindicatos de trabalhadores
1997, p. 13). rurais (STRs) do sistema Contag, além
A CNRA desempenhou importan- da histórica defesa da aplicação do Es-
te papel político, articulando diferen- tatuto da Terra, também “passaram a
tes atores e dando maior visibilidade mobilizar famílias sem-terra e a ocupar
às lutas do campo e aos muitos casos áreas exigindo a desapropriação para
de violência (assassinatos, tentativas fins de Reforma Agrária” (Sauer, 2002,
de assassinatos, ameaças de morte etc.) p. 149).
contra os trabalhadores rurais e suas Diante de toda essa pressão pela
lideranças. Junto com a Abra, contri- Reforma Agrária, o Governo Sarney,
buiu nas mobilizações em torno do ao lançar o I PNRA em 1985, prome-
Plano Nacional de Reforma Agrária teu assentar 1,4 milhões famílias em
(I PNRA), lançado em 1985 pelo Go- quatro anos. No entanto, as alianças
verno Sarney, e nas formulações e políticas – especialmente as alian-
propostas ao texto da Constituição de ças com setores ruralistas que deram
1988 (Silva, 1987). sustentação ao primeiro governo ci-
Nesse processo de redemocratiza- vil pós-ditadura – inviabilizariam o
ção política e rearticulação popular, I PNRA;; diante do fracasso do mes-
consolida-se também, a partir do fi- mo, as mobilizações pela Reforma
nal da década de 1980, “uma estrutura Agrária se concentraram no processo
sindical paralela ao sindicalismo oficial de elaboração da nova Constituição, a
da Contag, com a criação do Departa- partir de 1987 (Sauer, 2010).
mento Nacional dos Trabalhadores Ru- Associada a outras entidades e mo-
rais (DNTR)” (Picolotto, 2011, p. 2), vimentos – Abra, Contag, MST, Cen-
como prolongamento da Articulação tral Única dos Trabalhadores, CPT,
Sindical Sul, formada em 1984 por li- Ibase, Instituto de Estudos Socioeco-
deranças e entidades ligadas ao campo, nômicos (Inesc), entre outros, a CNRA
como a própria CPT, e o então recém- sensibilizou, mobilizou e pressionou
criado Movimento de Atingidos por membros (deputados e senadores) da
Barragens (MAB). Assembleia Nacional Constituinte a
O DNTR, departamento da Central incluir um capítulo sobre a Reforma
Única dos Trabalhadores (CUT), além Agrária na nova Constituição (Silva,
de defender a “liberdade e autonomia 1987). Nesse processo, as entidades da
sindical” (Picolotto, 2011, p. 2), articu- CNRA apresentaram uma “Emenda
lou sindicatos de trabalhadores rurais e Popular da Reforma Agrária”, subscri-
departamentos estaduais (DETRs) em ta por um milhão e duzentas mil pes-
lutas por direitos e por terra. Isso for- soas, emenda com o maior número de
taleceu a bandeira da Reforma Agrária apoios (Russo, 2008).

107
Dicionário da Educação do Campo

Apesar dessa mobilização e do am- Trabalhadores da Agricultura Familiar


plo apoio à emenda, os embates e dis- (Fetraf), o Movimento dos Atingidos
putas com as entidades patronais (ver por Barragens, o Movimento dos Peque-
ORGANIZAÇÕES DA CLASSE DOMINANTE nos Agricultores (MPA) e o Movimento
NO CAMPO) resultaram em um texto de Mulheres Camponesas (MMC Brasil),
constitucional ambíguo, o qual levou entre outras organizações e entidades de
as entidades e redes a avaliações nega- apoio às lutas por justiça no campo.
tivas, alguns inclusive o consideraram Como articulação nacional e espaço
uma grande derrota (Souza e Sauer, de debate e de aliança, as ações (campa-
2009). Apesar de a emenda popular ter nhas, assembleias, seminários, audiên-
sido acolhida e a Reforma Agrária fazer cias públicas...) do FNRA são orga-
parte da Constituição (art. 184 a 186), a nizadas por temas consensuais, como
inclusão do conceito de “terras produ- base de atuação conjunta.1 Mesmo ha-
tivas” (e a proibição de desapropriação vendo consenso, o FNRA é um espaço
das mesmas, conforme art. 185) foi – e de articulação e discussão, sem que as
continua sendo – considerada uma der- organizações membro sejam obrigadas
rota (Souza e Sauer, 2009), levando as seguir as suas decisões (Sauer, 2010).
entidades e movimentos a retomar Com base em acordos políticos, as
as mobilizações e lutas diretas por terra. entidades do FNRA passaram a atuar
As ocupações de terra se amplia- em temas como reivindicação de atua-
ram e, no início da década de 1990, o lização dos índices de produtividade e
governo federal regulamenta os artigos campanha pelo estabelecimento de li-
da Constituição, promulgando a “lei da mite à propriedade da terra, em 2010
Reforma Agrária” (lei nº 8.629, de 25 (Sauer, 2010). O FNRA organizou al-
de fevereiro de 1993). A crescente con- guns eventos nacionais com relativo
centração de ações políticas no plano sucesso – entre eles campanhas, semi-
nacional levou ao deslocamento da nários e conferências, como a Confe-
CNRA, antes sediada no Ibase, no Rio rência Nacional de Terras e da Água,
de Janeiro, para o Fórum Nacional pela realizada em 2004, que contou com a
Reforma Agrária e Justiça no Campo participação de mais de 10 mil campo-
(FNRA), sediado em Brasília. As mobi- neses sem-terra, agricultores familiares,
lizações em defesa da Reforma Agrária lideranças indígenas, famílias atingidas
resultaram, em meados dos anos 1990, por barragens, mulheres camponesas,
na articulação do FNRA, dando segui- entre outros.
mento às ações e articulações da Cam- Assim como o FNRA e a Abra,
panha Nacional pela Reforma Agrária. existem várias redes, associações e fó-
O FNRA foi estabelecido nacio- runs que lutam pela transformação do
nalmente por volta de 1995;; atualmen- modelo agrário, a exemplo da Articula-
te, é composto por mais de quarenta ção Nacional de Agroecologia (ANA).
movimentos sociais, organizações do A ANA é uma rede de entidades que,
movimento sindical rural, entidades de fundamentalmente, promove, incenti-
representação, pastorais sociais e orga- va, apoia, divulga e articula as experiên-
nizações não governamentais (ONGs) cias em agroecologia (ver AGROECO-
(Sauer, 2010). Fazem parte dele mo- LOGIA) como uma forma diferente de
vimentos e entidades como o MST, produzir no campo e de se relacionar
a Contag, a Federação Nacional dos com o meio ambiente. Essas redes exis-

108
Articulações em Defesa da Reforma Agrária
A
tem como esforços e articulações que ambientalmente predatórias e social e
procuram ampliar a histórica luta por politicamente excludentes de apropria-
Reforma Agrária e alterar as formas ção e uso da terra no Brasil.

Nota
1
As entidades do FNRA, historicamente, tomaram posição conjunta pela Reforma Agrária
e contra a violência no campo, com ações como a realização da “Conferência Nacional da
Terra e da Água” (ver Sauer, 2007), realizada em 2004. Posicionaram-se, também, contra
os programas de “Reforma Agrária de mercado”, capitaneados pelo Banco Mundial, entre
1996 e 2000, e, mais recentemente, articularam a campanha nacional pelo limite máximo de
propriedade da terra no Brasil.

Para saber mais


CARVALHO, A. V. de. Homenagem a José Gomes da Silva. Revista da Abra, v. 33,
n. 2, p. 19-30, ago.-dez. 2006.
GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo.
Petrópolis: Vozes;; Rio de Janeiro: Fase, 1987.
MORAES, S. H. N. Biografia de José Gomes da Silva. Revista da Abra, v. 33, n. 2,
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PICOLOTTO, E. L. A formação de um sindicalismo de agricultores familiares no
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RUSSO, O. A Constituinte e a Reforma Agrária. São Paulo, 2008. Disponível em:
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FNRA, 2007.
______. Terra e modernidade: a dimensão do espaço na aventura da luta pela terra.
2002. Tese (Doutorado em Sociologia) – Departamento de Filosofia, Instituto de
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______. Terra e modernidade: a reinvenção do campo brasileiro. São Paulo:
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SILVA, J. G. da. Buraco negro: a Reforma Agrária na Constituinte de 1987-88. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989.
SOUZA, H. de. Prefácio. In: SECRETARIADO NACIONAL DA CPT. A luta pela terra: a
Comissão Pastoral da Terra vinte anos depois. São Paulo: Paulus, 1997. p. 11-13.
SOUZA, M. R.;; SAUER, S. A Reforma Agrária e a Constituinte. In: COMISSÃO DE
LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA. Constituição 20 anos: Estado, democracia e participação
popular. Brasília: Câmara dos Deputados, 2009. p. 145-150.

109
Dicionário da Educação do Campo

ASSENTAMENTO RURAL
Sergio Pereira Leite

A emergência dos assentamentos vezes com um trajetória anterior no


rurais no cenário da questão agrária meio rural, que buscam a (re)conver-
brasileira é um dos fatos marcantes que são aos espaços proporcionados pela
caracterizam especialmente o período Reforma Agrária.
que vai da década de 1980 até os dias A segunda questão diz respeito à
atuais. Com os assentamentos, ganham diversidade de lutas que têm na de-
projeção também os seus sujeitos di-
manda e no acesso à terra (portanto,
retos, isto é, os assentados rurais, bem
em boa medida, na construção dos as-
como os movimentos e as organizações
sentamentos rurais) seu principal obje-
que, em boa parte dos casos, garanti-
ram o apoio necessário para que o es- tivo. Não é desconhecido o fato de que
forço despendido ao longo de lutas as existe hoje no Brasil grande número
mais diversas resultasse na constituição de movimentos organizados que lutam
de projetos de Reforma Agrária, tam- pelo acesso à terra e aos recursos natu-
bém conhecidos como assentamentos rais e constroem a realidade pós-assen-
rurais. Assim, em diferentes situações, tamento das formas mais diferenciadas
número expressivo de trabalhadores possíveis. Essas diferentes lutas são,
que participaram de processos de ocu- de fato, responsáveis pela implantação
pação de terra deixaram de ser acampa- dos projetos de assentamento. A lite-
dos para se tornarem, num momento ratura especializada (Leite et al., 2004,
seguinte, assentados. por exemplo) tem destacado o fato de
a política de assentamentos do gover-
Duas questões parecem centrais
no vir a reboque da ação dos setores
nesse movimento. A primeira delas é
que não podemos reduzir esse processo organizados mobilizados em torno da
a um único “modelo”, seja em relação bandeira da Reforma Agrária.
à origem do trabalhador que reivindi- Esses aspectos levam à necessidade
ca terra, seja à organização da luta, do de compreender melhor o significado
acampamento e do próprio assenta- e a dimensão que esses novos sujeitos
mento, seja, ainda, às atividades prati- e essas novas unidades (de produção,
cadas nesses novos espaços e a forma consumo, trabalho, moradia, lazer,
pela qual eles se materializam. Assim, vida etc.) passam a cumprir no seio
são válidas e legítimas as lutas de traba- da chamada questão agrária brasileira.
lhadores que, tendo sua última moradia Mesmo que ainda reduzido ante a for-
e/ou local de trabalho no meio rural, te concentração fundiária que marca o
passam a se engajar nos movimentos caso brasileiro, o número de projetos
pela democratização da terra, como são de assentamentos rurais vem aumen-
igualmente válidas as reivindicações de tando, permitindo afirmar que existe
trabalhadores oriundos do meio ur- certa “irreversibilidade” nesse proces-
bano (metropolitano ou não), muitas so e uma quantidade não desprezível

110
Assentamento Rural
A
de famílias que acionam o novo “esta- te do universo da agricultura familiar
tuto” de assentado para a construção e/ou camponesa) ao processo produ-
de novas formas de organizar a vida, a tivo, com base na desapropriação de
produção etc., bem como para acessar terras ociosas ou, ainda, na aquisição
um conjunto de bens, serviços, merca- de imóveis rurais e fornecimento de
dos e políticas públicas. crédito fundiário, ainda que essa últi-
Grosso modo, a expressão assen- ma prática não possa ser caracterizada
tamento rural (criada na esteira dos necessariamente como um processo
processos de assentamentos urba- de Reforma Agrária (servindo muito
nos) parece datar de meados dos anos mais ao modelo implementado pelo
1960, sobretudo como referência em Banco Mundial em diferentes países,
relatórios de programas agrários ofi- como África do Sul, Brasil e Colômbia,
ciais executados na América Latina, entre outros).
designando a transferência e a alocação Em diversos programas oficiais de
de determinado grupo de famílias de assentamentos rurais, o projeto de as-
trabalhadores rurais sem-terra (ou com sentamento já foi compreendido, inclu-
pouca terra) em algum imóvel rural sive, como uma unidade administrativa
específico, visando à constituição de do Estado, o que levaria ao extremo a
uma nova unidade produtiva em um ideia de que tais áreas resultam de e ex-
marco territorial diferenciado, como pressam apenas a lógica da intervenção
frisou Fernandes (1996). Bergamasco e governamental, negligenciando-se os
Noder (1996) referem-se ao caso ve- esforços empreendidos pelos deman-
nezuelano, dessa mesma época, para dantes de terra e suas organizações.
indicar o emprego do termo nos pro- No entanto, pode-se concordar com o
gramas de reforma e/ou reestrutura- fato de que a criação do assentamento,
ção fundiária. E sugerem que essa prá- enquanto unidade de referência desses
tica encontra exemplos semelhantes no processos (políticas públicas e lutas
contexto dos ejidos mexicanos ou dos por terra), demanda necessariamente
kibutzim e moshavim israelenses. algum marco legal, passível de uma
No Brasil, o termo assentamento ru- ação do Estado.
ral esteve atrelado, por um lado, à atu- Em documento oficial de meados da
ação estatal direcionada ao controle e à década de 2000, o Estado brasileiro de-
delimitação do novo “espaço” criado e, fine o projeto de assentamento como
por outro, às características dos proces-
sos de luta e conquista da terra empreen- [...] um conjunto de ações pla-
didos pelos trabalhadores rurais. nejadas e desenvolvidas em área
No que diz respeito à atuação es- destinada à Reforma Agrária,
tatal, a definição governamental dada de natureza interdisciplinar e
ultimamente ao termo tem mantido multissetorial, integradas ao
diferenças e semelhanças com outras desenvolvimento territorial e
situações afins, como a colonização regional, definidas com base em
dirigida e a regularização fundiária, e diagnósticos precisos acerca do
enfatizado a criação e a integração de público beneficiário e das áreas
novas pequenas propriedades rurais a serem trabalhadas, orientadas
(atualmente compreendidas como par- para a utilização racional dos

111
Dicionário da Educação do Campo

espaços físicos e dos recursos situações criadas que poderiam vir a


naturais existentes, objetivan- integrar o conjunto dos assentamentos
do a implementação dos sis- rurais. Nesse sentido, parece-nos que, a
temas de vivência e produção despeito das peculiaridades dos distin-
sustentáveis, na perspectiva do tos programas de intervenção pública
cumprimento da função social que marcaram a implantação de proje-
da terra e da promoção econô- tos no campo e das formas diferencia-
mica, social e cultural do traba- das de luta pela terra que pontuaram
lhador rural e de seus familiares. os vários movimentos, podemos con-
(Brasil, 2004, p. 148) ceituar como assentamentos as seguin-
tes modalidades: projetos de Reforma
Embora relativamente vaga, a defi- Agrária com base nos instrumentos de
nição acima ressalta a ideia do cumpri- desapropriação por interesse social
mento da função social da terra como de imóveis rurais que não cumprem
base para a própria ação do Estado no a sua função social;; reassentamentos
processo de arrecadação dos imóveis derivados da realocação de população
ociosos e também como resultado da rural em razão da construção usinas
prática observada com a constituição hidrelétricas, especialmente durante
dos assentamentos rurais, que devem os anos 1980;; projetos de colonização
atender os requisitos para que um imó- dentro do programa oficial de coloni-
vel rural cumpra com sua função social. zação ocorrido, sobretudo, no perío-
No segundo caso, ou seja, em re- do 1970-1985;; projetos de valorização
lação às características dos processos das terras públicas, frutos da ação dos
de luta e conquista da terra, as desig- distintos governos, principalmente es-
nações assentamento/assentado pare- taduais, na utilização de recursos fun-
cem estar muito mais associadas à ideia diários públicos para fins de Reforma
de Reforma Agrária do que à de colo- Agrária, prática em voga durante os
nização, visto que o termo vem carre- anos 1980 e início dos anos 1990;; e,
gando, historicamente, um confronto ainda, reservas ou projetos (agro)extra-
de projetos políticos. Se, da perspec- tivistas advindos do plano de demarca-
tiva do Estado, a referência básica ção de reservas, com ênfase na região
era o programa de colonização con- Norte do país, implantados nas déca-
duzido sob um esquema de segurança das de 1980-2000, e que compreen-
nacional (entre os anos 1970 e 1980), dem, no período recente, aquilo que
do prisma dos movimentos sociais e vem sendo denominado pelo Instituto
entidades de apoio à luta pela terra, a Nacional de Colonização e Reforma
conquista de novas áreas traduzia um Agrária (Incra) – órgão governamen-
movimento mais geral de afirmação e tal responsável pela gestão da política
visibilidade política, dando nova colo- de assentamentos no país – projetos
ração a uma “categoria” classificada especiais de assentamento, os chama-
pelas agências governamentais como dos projeto ambientais: Florestas Na-
eminentemente técnica. cionais (Flonas), projetos agroextra-
Apreender a dimensão exata do tivistas, de assentamento florestal,
exposto anteriormente é tarefa com- de desenvolvimento sustentável e as
plicada. Em primeiro lugar, por causa reservas extrativistas e de desenvolvi-
da própria caracterização das diversas mento sustentável.

112
Assentamento Rural
A
Assim, a diversidade de lutas e ex- lias;; organizados e/ou politicamente
periências que caracterizaram o mo- representados por associações de as-
vimento organizado de trabalhadores sentados, cooperativas, movimentos
rurais e a prática das políticas públicas, sociais, religiosos, sindicais, etc. –, mas
com diferenciações regionais significa- significarão sempre, malgrado as pre-
tivas, pode, de certo modo, ser unifi- cariedades que ainda caracterizam nú-
cada conceitualmente na terminologia mero expressivo de projetos, um ponto
proposta. Dessa forma, ao mesmo de chegada e um ponto de partida na
tempo em que se identificam trajetórias trajetória das famílias beneficiadas/
e estratégias comuns em um marco es- assentadas. Ponto de chegada enquan-
trutural em que todo o processo se de- to um momento que distingue funda-
senvolve, a busca por uma compreen- mentalmente a experiência anterior de
são de caráter globalizante permite, vida daquela vivenciada após a entrada
ainda, esboçar um quadro político de no projeto (muitas vezes representada
representação desses atores e um canal pela ideia de liberdade comparada às
específico de diálogo com o Estado de situações de sujeição às quais esta-
forma ampliada. vam presos os trabalhadores);; pon-
Os assentamentos assumem, então, to de partida como conquista de
configurações distintas – coletivos/in- um novo patamar do qual se pode
dividuais;; agrícolas/pluriativos;; habita- acessar um conjunto importante de
ções em lotes/em agrovilas;; frutos de políticas (de crédito, por exemplo),
programas governamentais estaduais/ mercados e bens, inacessíveis na si-
federais;; com poucas/muitas famí- tuação anterior.

Para saber mais


BERGAMASCO, S., NORDER, L. C. O que são assentamentos rurais? São Paulo: Brasiliense,
1996.
BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO (MDA). INSTITUTO NACIO-
NAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA). Instrução normativa Incra
nº 15, de 30 de março de 2004. Diário Oficial da União, n. 65, seção 1, p. 148,
5 abr. 2004.
FERNANDES, B. M. MST: formação e territorialização. São Paulo: Hucitec, 1996.
LEITE, S. Assentamento rural. In: MOTTA, M. M. (org.). Dicionário da terra. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 43-45.
LEITE, S. et al. Impactos dos assentamentos: um estudo sobre o meio rural brasileiro.
São Paulo: Editora da Unesp;; Brasília: Nead, 2004.
______;; ÁVILA, R. Um futuro para o campo: Reforma Agrária e desenvolvimento
social. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2007.
MEDEIROS, L. Reforma Agrária no Brasil: história e atualidade da luta pela terra. São
Paulo: Perseu Abramo, 2003.

113
Dicionário da Educação do Campo

______;; LEITE, S. (org.). A formação dos assentamentos rurais no Brasil: processos so-
ciais e políticas públicas. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.
______ et al. (org.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo:
Editora da Unesp, 1994.
ROMEIRO, A.; GUANZIROLI, C.; LEITE, S. (org.). Reforma agrária: produção, emprego
e renda. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
SILVA, M. A. M. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Editora da
Unesp, 2004.
STEDILE, J. P. (org.). A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular,
2005-2007. 4 v.
TEÓFILO, E. (org.). A economia da Reforma Agrária: evidências internacionais.
Brasília: Nead, 2001-2002. 2 v.

114
C
C
CAMPESINATO
Francisco de Assis Costa
Horacio Martins de Carvalho

Campesinato é o conjunto de famí- trições das realidades locais, regionais


lias camponesas existentes em um ter- e nacionais, que findam por definir a
ritório. As famílias camponesas existem sua forma de existência. Nessa condição
em territórios, isto é, no contexto de concreta, constituem um campesinato.
relações sociais que se expressam em Dada a historicidade dos territó-
regras de uso (instituições) das dispo- rios – os países mudam seus modos de
nibilidades naturais (biomas e ecossis- produção e, nesses, distintos regimes
temas) e culturais (capacidades difusas e padrões de regulação alteram regras
internalizadas nas pessoas e aparatos fundamentais das relações entre os ho-
infraestruturais tangíveis e intangíveis) mens, entre eles e o Estado, entre eles
de um dado espaço geográfico politica- e as capacidades ancestrais acumuladas,
mente delimitado. entre eles e os elementos da natureza –,
Camponesas são aquelas famílias mudam também as formas de existência
que, tendo acesso à terra e aos recursos dos camponeses que neles habitam –
naturais que ela suporta, resolvem seus seus campesinatos.
problemas reprodutivos – suas necessi- Dada a territorialidade da história –
dades imediatas de consumo e o enca- a cada momento há distintas forma-
minhamento de projetos que permitam ções sociais, países com diferentes
cumprir adequadamente um ciclo de modos de produção e diferentes re-
vida da família – mediante a produção gimes de acumulação, países com um
rural, desenvolvida de tal maneira que mesmo regime em graus distintos de
não se diferencia o universo dos que desenvolvimento, com diversidades
decidem sobre a alocação do trabalho ampliadas pelas distinções internas,
dos que se apropriam do resultado des- de natureza e de cultura –, períodos
sa alocação (Costa, 2000, p. 116-130). historicamente relevantes são marca-
Unidades camponesas produzem dos, também, por terem como con-
orientadas pela finalidade comum da temporâneas formas muito distintas
reprodução dos respectivos grupos fa- de campesinatos.
miliares, em perspectiva que incorpora Tal multiplicidade de formas de
consistência entre gerações – a geração existência de camponeses e as particu-
operante se vê parte constitutiva das laridades que apresentam nas interações
realizações de seus ascendentes e des- com o desenvolvimento das socieda-
cendentes. Validam essa natureza essen- des de que fazem parte têm suscitado
cial, entretanto, em combinações indi- debates. Particularmente, o papel dos
vidualizadas de capacidades privadas, camponeses no desenvolvimento do
condicionadas por possibilidades e res- capitalismo tem sido razão para conti-

115
Dicionário da Educação do Campo

nuadas e controversas reflexões, cujas interna das próprias unidades campo-


repercussões práticas têm afetado a nesas: uma cumulação de vantagens
história moderna dos camponeses e a econômicas que faria os camponeses
saga das suas relações com as socieda- mais ricos tornarem-se cada vez mais
des hodiernas, por rotas de conforma- ricos, até o ponto de mudarem sua na-
ção e ajustamento, em alguns casos, ou tureza sociológica, vindo a se tornar
de tensão e conflito, em outros. empresários capitalistas que absorve-
Em essência, a questão a responder riam tanto as terras quanto a capacida-
seria se essas distintas formas expres- de de trabalho das famílias camponesas
sam a fortaleza ou a debilidade históri- pobres, que perderiam sua autonomia
ca dos camponeses, isto é, se indicam produtiva. Ao final, seja seguindo um
restar-lhes uma condição de classe trajeto ou o outro, à concentração da
transitória, historicamente efêmera, ou propriedade da terra se seguiria a con-
se lhes são próprias as capacidades para centração da produção, com a resul-
se estabelecerem na condição de classe tante de uma agricultura convertida em
no capitalismo (Bottomore, 1988.) nada mais que um ramo da indústria.
A resposta marxista clássica enun- Nessa ótica, as diferenças entre os di-
ciava que a concorrência com a grande versos campesinatos seriam expressões
agricultura destruiria inexoravelmen- de estágios, ou combinações, desses di-
te a produção camponesa, em parte ferentes modelos.
porque se tinham como certos ganhos Outra perspectiva observa as dife-
de escala na assimilação de insumos rentes formas de existência campone-
industriais, em parte porque se enten- sa como manifestações da capacidade
dia que o que havia de específico na de os camponeses se constituírem
racionalidade camponesa bloquearia a em, ou se afirmarem como, classe no
sua capacidade de se modernizar para capitalismo – como, de resto, em ou-
o pesado embate com a concorrência. tros modos de produção, pré e pós-
A transitoriedade do campesinato se da- capitalistas. Esse ponto de vista herda
ria, isso posto, por dois caminhos. Pela dos populistas russos a noção de que a
“via prussiana”: ali onde as condições condição dual de unidades de consumo
institucionais fossem marcadas por um e de produção (Chayanov, 1923) torna
domínio latifundiário, o acesso à terra as famílias-empresas camponesas sen-
se manteria sob o controle de uma aris- síveis ao inexorável crescimento das
tocracia ou de uma oligarquia. Nesse necessidades ao longo do desenvolvi-
caso, as grandes propriedades se mo- mento natural da família e ao risco de
dernizariam em empresas capitalistas. não poderem satisfazer tais exigências.
Em contraste com esse caminho, pró- Em relação a isso, as empresas cam-
prio de um “capitalismo autoritário”, a ponesas mostraram capacidade adap-
“via democrática” se desenvolveria ali tativa, a par da disposição de investir,
onde as instituições se conformassem constituindo, a partir disso, um modo
por meio da quebra do domínio lati- de produção estável, porque capaz de
fundiário, com a formação correlata de evoluir. Os diferentes campesinatos se
um campesinato de grandes dimensões. explicariam, agora, pelos diferentes
Nessas situações, a transição para o ca- trajetos evolutivos resultantes, por um
pitalismo seria feita por diferenciação lado, das estratégias adaptativas das

116
Campesinato

C
unidades camponeses ao ambiente ins- famílias com relações cliente–patrão,
titucional e natural de cada país e, no que mantêm os camponeses em graus
interior deles, de cada região que lhes elevados de subordinação.
sirva de habitat – os territórios, de que No entanto, ainda que de forma
são partes constitutivas – e, por ou- presente, as instituições comunitárias
tro lado, da configuração do ambiente vão muito além do caráter de uma eco-
institucional de uma perspectiva polí- nomia moral que provê segurança às fa-
tica, derivada das relações estratégicas, mílias, com relações cliente–patrão. Isso
mediadas pelo Estado, entre as demais porque a comunidade rural camponesa,
classes e os camponeses. sendo um elemento central no modo de
Assim, nos países industriais ricos, vida camponês, lhes dá suporte econô-
e particularmente nos Estados Unidos, mico, político e ideológico para as re-
dominam a cena agrícola formas cam- sistências sociais que permeiam os seus
ponesas apoiadas em movimentos coo- cotidianos, numa afirmação conflituosa
perativos e na introdução de inovações de suas especificidades:
tecnológicas garantidas por sistemas
de crédito e de produção de tecnolo- Na comunidade há o espaço da
gia fluentes – nem sempre adequadas a festa, do jogo, da religiosidade,
um convívio harmonioso social e com do esporte, da organização, da
a natureza –, além de mecanismos de solução dos conflitos, das ex-
controle do risco. Em troca, vêm ga- pressões culturais, das datas
rantindo produtos baratos aos setores significativas, do aprendizado
urbanos. Esses camponeses lutam com comum, da troca de experiências,
êxito por um posto na sociedade de da expressão da diversidade, da
mercado (Shanin, 1983). política e da gestão do poder,
Os países em situação econômica da celebração da vida (aniver-
pobre, por seu turno, são marcados pela sários) e da convivência com a
existência de um grande número de cam- morte (ritualidade dos funerais).
poneses economicamente pobres, por Tudo adquire significado e todos
vezes com dificuldades de suprir a si pró- têm importância na comuni-
prios, dado o tipo de tecnologia pouco dade camponesa. Nas comunidades
apropriada ao contexto onde se situam camponesas as individualidades
ou à precariedade relativa de meios fun- têm espaço. As que contrastam
damentais, como a terra. Essas realida- com o senso comum encontram
des se caracterizam pela relevância do meios de influir. Os discretos são
papel dos comerciantes e proprietários notados. Não há anonimato na
de terras, por vezes fundidos em um só comunidade camponesa. Todos se
agente, na mediação entre o campesinato conhecem. As relações de paren-
e a sociedade envolvente, seja nas rela- tesco e vizinhança adquirem um
ções econômicas, seja nas relações po- papel determinante nas relações
líticas (Bernstein, 1982;; Badoury, 1983;; sociais do mundo camponês. Nis-
Díaz-Polanco, 1977). Essas redes so- to se distingue profundamente das
ciais assumem geralmente o caráter de culturas urbanas e suas mais varia-
economia moral, que combina instituições das formas de expressão. (Görgen,
comunitárias, que provêm segurança às 2009, p. 5)

117
Dicionário da Educação do Campo

O campesinato, enquanto uni- O camponês, enquanto unidade fa-


dade da diversidade camponesa, miliar de produção e de consumo, assim
se constitui num sujeito social como o campesinato, enquanto classe
cujo movimento histórico se social em construção, enfrentam desa-
caracteriza por modos de ser e fios fundamentais para garantir a sua re-
de viver que lhe são próprios, produção social numa formação social
não se caracterizando como ca- sob a dominação do modo de produção
pitalistas ainda, que inseridos na capitalista: o camponês, para a afirma-
economia capitalista. (Carvalho, ção da sua autonomia relativa perante as
2005, p. 171) diversas frações do capital;; o campesi-
nato, para a construção de uma identi-
Nessa diversidade camponesa, dade social que lhe permita constituir-
insere-se uma multiplicidade de famí- se como classe social e, portanto, como
lias que não se autodenominam ne- sujeito social na afirmação de seus inte-
cessariamente de camponesas. Uma resses de classe. Ambas, a afirmação da
ampla variedade de autonomeações autonomia relativa camponesa como a
pode ser identificada no Brasil, resul- construção do campesinato como classe
tante de suas histórias de vida e de social se inter-relacionam numa dinâmi-
seus contextos, ca social marcada por relações de poder
em disputa.
[...] desde os camponeses pro-
No entanto, se é da maior relevân-
prietários privados de terras aos
cia, do ponto de vista da historicida-
posseiros de terras públicas e
de dos territórios, a compreensão das
privadas;; desde os camponeses
distintas formas de campesinatos neles
que usufruem dos recursos na-
existentes, é indispensável, por outra
turais públicos como os povos
parte, ressaltar que, para a compre-
das florestas, os agroextrati-
ensão da especificidade camponesa,
vistas, a recursagem,1 os ribeiri-
conforme Shanin, “o cerne de suas
nhos, os pescadores artesanais
características determinantes parece
lavradores, os catadores de
repousar na natureza e na dinâmica do
caranguejos e lavradores, os
estabelecimento rural familiar, enquan-
castanheiros, as quebradeiras
to unidade básica de produção e meio
de coco babaçu, os açaizeiros,
de vida social” (2005, p. 5).
os que usufruem dos fundos de
pastos, até os arrendatários não Assumindo as consequências lógi-
capitalistas, os foreiros e os que cas e teóricas da centralidade da razão
usufruem da terra por cessão;; reprodutiva que afirma a especificidade
desde camponeses quilombolas da racionalidade camponesa, a autono-
a parcelas dos povos indígenas mia relativa do camponês perante as di-
já camponeizados;; os serranos, versas frações do capital com as quais
os caboclos e os colonizadores, se relaciona, direta ou indiretamente,
assim como os povos das fron- na dinâmica da sua reprodução social
teiras no Sul do país. E os novos pode ser compreendida num mode-
camponeses resultantes dos as- lo baseado em três premissas (Costa,
sentamentos de Reforma Agrá- 2000, cap. 4) sobre as unidades de pro-
ria. (Carvalho, 2005, p. 171) dução e de vida camponesas. Deveras,

118
Campesinato

C
a construção da autonomia relativa dar conta de um conjunto de ativida-
camponesa é um processo político e des cujos resultados entram direta ou
economicamente necessário para que indiretamente no processo produtivo,
o campesinato se afirme como classe na forma de meios de produção, ou
social, como sujeito da realização dos no processo reprodutivo da família, na
seus interesses de classe social que forma de meios de consumo.
são distintos daqueles que motivam as Um padrão reprodutivo é, portan-
ações de classe seja da burguesia, seja to, constituído de um hábito de consumo
do proletariado. familiar ajustado a uma rotina de trabalho,
A primeira premissa é a de que a um e outro entendidos – isto é, subje-
unidade produtiva camponesa tende a ser tivamente avaliados – como adequados.
regulada em seu tamanho e em sua ca- Devido a distintas variáveis que afetam
pacidade de mudar pela capacidade de a alocação da força de trabalho, um
trabalho que ela possui enquanto família. padrão reprodutivo alcança um ponto
A capacidade de trabalho total de uma de acomodação num determinado ní-
família camponesa tenderá a apresen- vel de aplicação de trabalho, nível esse
tar um limite, tanto para garantir a re- que é necessariamente menor ou igual
produção social da família quanto para à capacidade de trabalho potencial to-
empreender inovações nos processos tal (primeira premissa) que a família
de trabalho que desejem concretizar. possui. Esse ponto de acomodação na
Essa premissa permite que se alocação da força de trabalho familiar
estabeleçam desdobramentos sobre num determinado momento da unidade
a extensão e a intensidade do uso da de produção camponesa é denominado
capacidade de trabalho própria à famí- orçamento de reprodução.
lia tanto nas suas alocações diretas nas O orçamento de reprodução é, portanto,
atividades a campo quanto na gestão constituído de dois componentes: um
do processo produtivo. Os resultados equivale aos bens diretamente consu-
desejados da unidade produtiva são li- midos pela família, componente que é
mitados por essa capacidade interna de resultante do hábito de consumo familiar;;
trabalho familiar. e outro equivale ao que Tepicht (1973)
A segunda premissa afirma que, na chamou de consumo produtivo da família,
dinâmica da reprodução social da fa- quer dizer, a necessidade de manuten-
mília, emergem forças que promovem ção dos meios de produção utilizados,
tensões contrárias: umas originadas das que são decorrentes da rotina de traba-
necessidades reprodutivas da família, lho estabelecida.
que impulsionam ao trabalho, e ou- Por fim, de acordo com a terceira
tras que apelam ao lazer.2 Estabelece- premissa, as relações entre a família
se, assim, pela experiência pessoal dos camponesa (na dinâmica da unidade
componentes da família e sua vivência de produção/consumo) e os demais
cultural, um padrão reprodutivo. setores da sociedade (local, regional ou
O que aqui se denomina de padrão nacional) são realizadas por múltiplas
reprodutivo é a resultante conjuntural, mediações, algumas imediatas outras
num dado momento da vida da famí- mediatas, relações essas que estabele-
lia camponesa, que envolve certa ma- cem as condições de realização do orça-
neira na distribuição do trabalho para mento de reprodução (segunda premissa).

119
Dicionário da Educação do Campo

Assim, em decorrência dessas relações Quando o dispêndio efetivo de tra-


com outros setores, ou do envolvimen- balho se distancia do orçamento reprodu-
to da família camponesa com a socie- tivo, a disposição à mudança cresce e,
dade envolvente, é que se estabelecerá com ela, a disposição ao investimen-
o dispêndio efetivo de trabalho dos mem- to. Essa disposição se transforma em
bros da família para que se realize o investimentos reais, tangíveis e intan-
orçamento de reprodução. gíveis, a depender do ambiente insti-
O que estabelece a diferença entre tucional que faz a mediação entre os
o dispêndio efetivo de trabalho e o traba- camponeses e a sociedade envolvente.
lho efetivamente demandado por de- Se o ambiente institucional é adequa-
terminado orçamento reprodutivo são as do à economia camponesa – ou seja, se
condições de permuta entre o trabalho há recursos tecnológicos e formas de
despendido pelos membros da família, acesso a eles compatíveis com as for-
mediado pelas condições próprias da mas de existência dos camponeses –,
unidade produtiva, e o trabalho desen- a disposição ao investimento e à mu-
volvido em outros ramos e setores pro- dança é canalizada em meios de efi-
dutivos, bem como em outras esferas cientização da reprodução (consumo e
do sistema econômico – entre as quais trabalho) das famílias camponeses;; se
se destaca a esfera da circulação de o ambiente institucional é hostil, a dis-
mercadorias como a mais evidente. posição à mudança e ao investimento é
A unidade de produção familiar se- inibida, tolhida ou mesmo bloqueada.
ria, portanto, um sistema inserido nos O Estado tem desempenhado papel
mercados, relacionado com diversas decisivo na conformação do ambiente
instituições públicas e cujas necessi- institucional que envolve os campone-
dades reprodutivas organizam-se aten- ses, em geral orientado por estratégias
dendo a dois conjuntos de forças e a que tornam os camponeses eficientes
uma restrição fundamental. Atende às na perspectiva da indústria e das ne-
forças que estabelecem o orçamento re- cessidades gerais dos setores urbanos.
produtivo (hábito de consumo familiar e Não menos decisivo, também, tem sido
consumo produtivo da família) e às que o desempenho político dos próprios
estabelecem dispêndio efetivo de trabalho camponeses na conformação desses
dos membros da família (tendências e ambientes. Todavia, a ausência de con-
instabilidade do sistema envolvente). cepções e propostas de afirmação da
As forças que tensionam para um autonomia relativa camponesa pode
determinado dispêndio efetivo de traba- comprometer o papel do Estado cujas
lho no sentido de alcançar um dese- estratégias de eficientização dos cam-
jado orçamento reprodutivo, levando poneses tenderiam a conduzi-los a uma
as famílias camponesas a buscarem maior dependência perante as diversas
maior equilíbrio entre o trabalho des- frações do capital.
pendido e a qualidade da vida e do De um modo ou de outro, a persis-
trabalho, materializam-se em esfor- tência da presença camponesa na his-
ços de investimento, isto é, na apli- tória e os graus de autonomia relativa
cação de trabalho extraordinário para que podem vir a desfrutar dependem
a mudança e os ajustes na base e no das trajetórias tecnológicas que possam
processo produtivo. seguir em uma estratégia continuada de

120
Campesinato

C
mudanças que, ao mesmo tempo, pos- vezes exitosas, da expansão da raciona-
sam responder às tensões para o cresci- lidade capitalista, seja pela indução a
mento da produtividade do trabalho – uma diferenciação social em curso, seja
uma exigência da convivência com as pelo estabelecimento de relações sociais
leis de reprodução do próprio sistema de dominação que lhes subalternizam,
capitalista – e para garantir a lógica re- venha ocorrendo em uma multiplicida-
produtiva baseada na família que é pró- de de formas e de contextos sociais, a
pria da racionalidade camponesa. possibilidade de uma autonomia relati-
O esforço das famílias camponesas va da unidade de produção camponesa
para encontrarem um padrão reproduti- pressuporá que tais famílias já estejam
vo que lhes permita a reprodução social em fase de redefinição de sua identi-
da família sem tenderem para uma di- dade, de uma identidade de resistência
ferenciação social – quer pela hipótese para outra identidade social, que se su-
da proletarização, quer por sua transfor- põe de projeto.
mação em pequenos burgueses agrários, A redefinição de ou a passagem para
com a introdução de relações sociais de essas identidades se manifesta mais além
produção de assalariamento –, pressu- do nível do indivíduo. Elas revelam a
põe que, mesmo em distintos contextos afirmação do campesinato como sujeito
sociais, afirmem a sua autonomia relati- social, como ator social coletivo cuja di-
va perante as diversas frações do capital reção principal das ações está orientada
com as quais se relacionam nos diversos para a superação das relações de domi-
mercados onde se inserem. nação e de subalternidade a que ele se
Essa afirmação da autonomia relati- encontre submetido. A mediação dos
va camponesa está diretamente relacio- movimentos e organizações sociais cam-
nada com a construção de uma identi- ponesas está presente nesse processo.
dade que supere a identidade de resistência Na formação social brasileira, a
para alcançar, conforme Castells (1999, construção de uma identidade social de
p. 22 e seg.), uma identidade de projeto. projeto do campesinato deverá pressu-
Essa última se constitui quando atores por não apenas a afirmação da autono-
sociais, utilizando-se de qualquer tipo mia relativa dos camponeses perante os
de material cultural ao seu alcance, capitais – portanto, de uma concepção
constroem uma nova identidade capaz de campesinato portadora da lógica que
de redefinir sua posição na sociedade assevera a especificidade camponesa –,
e, ao fazê-lo, transformam toda a es- como a presença, em maior ou menor
trutura social. grau de explicitação, de uma maneira
Ainda que a resistência social cam- de se fazer agricultura diferente daque-
ponesa às tentativas, na maior parte das la presente no paradigma capitalista.

Notas
1
Recursagem é um potencial da natureza recursado pelo conhecimento sistematizado e
conjunto de técnicas da família, que está embasado numa classificação e discriminação do
meio, passada de geração a geração. Ver Mazzetto, 1999.
2
Ou substanciam uma aversão à penosidade do trabalho. Alguns autores acham que essa
é a característica mais marcante da racionalidade camponesa. Ellis (1988, p. 102-119) en-

121
Dicionário da Educação do Campo

tende, até, que a teorização de Chayanov dá conta apenas de um “drudgery-averse peasant”


(a versão camponesa ao trabalho penoso).

Para saber mais


BADOURY, A. La estructura económica de la agricultura atrasada. México, D.F.: Fondo de
Cultura Económica, 1983.
BERNSTEIN, H. Notes on Capital and Peasantry. In: HARRIS, J. (org.). Rural Develop-
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University Press, 1982. p. 160-177.
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1988.
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informação: economia, sociedade e cultura.
CHAYANOV, A. Die Lehre von der bäuerlichen Wirtschaft: Versuch einer Theorie der
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COSTA, F. A. Formação agropecuária da Amazônia: os desafios do desenvolvimento
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ELLIS, F. Peasant Economics: Farm Households and Agrarian Development.
Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1988.
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MAZZETTO, C. E. S. Cerrados e camponeses no norte de Minas: um estudo sobre a sus-
tentabilidade dos ecossistemas e das populações sertanejas. 1999. Dissertação
(Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal de
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SHANIN, T. La clase incómoda. Madri: Alianza, 1983.
______. A definição de camponês: conceituações e desconceituações – o
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T E PI C H T , J. Marxisme et agriculture: le paysan polonais. Paris: Ar mand
Colin, 1973.

122
Capital

C
C

CAPITAL
Guilherme Delgado

A tradição marxista, diferentemente o pagamento do trabalho diretamente


das tradições clássica e neoclássica, tra- envolvido no processo de produção. O
ta o capital como uma relação social de terceiro componente essencial da com-
apropriação de todos os meios de pro- posição do capital é a mais-valia, “M”, o
dução, convertidos em mercadoria, di- excedente bruto ou lucro bruto que se in-
nheiro e capital, a serviço da produção corporará ao valor do produto no final do
da mais-valia, que será definida mais processo produtivo, quando a mercado-
adiante. Já o pensamento clássico e neo- ria for vendida. A mais-valia é o motor de
clássico opera com a noção de capital todo o processo de produção de merca-
como fator ou meio de produção numa dorias e é a chave teórica da teoria do
função de produção, à semelhança das capital e da exploração do trabalho – a
partes e peças de uma engrenagem teoria do valor trabalho marxiana.
mecânica que se combinam a outros Por seu turno, essa relação de
“fatores” para gerar o output final. Nes- apropriação do valor que determina-
te texto, utilizaremos a conceituação da classe social é capaz de impor nos
marxiana, de modo que a noção con- mercados organizados por, pressupõe
vencional de capital da economia neo- várias condições específicas da vida
clássica aparecerá, em alguns casos, social, condições que são próprias do
como contraponto. capitalismo em sua fase industrial, dis-
Em Marx, a concepção abstrata e tintamente de outros modos de produ-
geral do capital assume na forma di- ção que o antecederam. Nas socieda-
nheiro seu caráter mais universal de des pré-capitalistas, a apropriação do
“equivalente geral” (para troca das excedente econômico, como bem sin-
mercadorias) ou de encarnação univer- tetizou Celso Furtado (2000), em geral
sal do trabalho humano abstrato, capaz se faz sob coerção da autoridade;; já no
de expressar a relação entre trabalhos capitalismo, essa apropriação se dá sob
particulares e o trabalho social total a forma mercantil, ainda que também
(Marx, 1980). A forma dinheiro do va- seja necessário que exista um Estado
lor, como se verá em seguida, assume garantidor das condições de funciona-
caráter ainda mais abstrato no conceito mento da chamada ordem econômica
de capital financeiro, de que trataremos burguesa – garantia da propriedade
mais adiante. privada, da adimplência dos contratos
O capital, nessa concepção de equi- mercantis e da segurança pública.
valente geral, sob a forma de dinheiro, A forma específica que o capital as-
inicia o processo produtivo decompos- sume em diferentes setores produtivos,
to em dois componentes: “C”, que é ou mesmo fora da esfera produtiva, na
o capital constante, a ser despendido no esfera da circulação, comporta distin-
gasto com meios de produção, e “V”, ções materiais importantes, susceptí-
que é o capital variável, a ser gasto com veis de incorporar grandes diferenças

123
Dicionário da Educação do Campo

ao processo produtivo e ao proces- pela frente um meio de produção do


so da circulação, que são essenciais à qual precisa se apropriar, mas que não
compreensão das relações sociais que é produzido nem reproduzido pelo ca-
lhe são subjacentes – veremos essas pital: a terra e todos os recursos natu-
distinções pouco mais adiante. Assim, rais superficiais e subjacentes.
quando Marx escreveu os livros 1 e 2 Segundo a teoria marxista do valor,
de O capital (“O processo de produ- parcelas do capital constante precisam
ção do capital” e “O processo de cir- ser despendidas na aquisição de meios
culação do capital”, respectivamente), de produção – aqui, especificamente,
estava observando, explicitamente, a Marx (1980) pressupõe o arrendamen-
produção da mercadoria sob a base to de terras, mas também poderia ser a
da produção técnica da maquinaria e compra de terras, que se transformaria
grande indústria na era da Revolução num componente do capital fixo. Esse
Industrial. Nesse contexto, a revolução componente do capital imobilizado em
tecnológica e o domínio da inovação, terra, portanto capital fixo na lingua-
comandados pelo capital industrial na gem marxiana do processo de circula-
esfera da produção, e a metamorfo- ção do capital, como todo capital fixo,
se do capital comercial, no processo incorpora-se ao valor da mercadoria de
da circulação mercantil, configuram maneira muito lenta, porém extrai renda
capitais materialmente distintos, pro- fundiária imediatamente – e, portanto,
duzidos em escala nacional, mas com gera excedente ou mais-valia – quando
clara tendência a se globalizarem e as- da realização da produção. Essa ren-
sumirem a forma do equivalente geral, da será tão mais elevada quanto maior
perseguindo em cada setor ou ramo da for a demanda pelos produtos-
circulação uma taxa diferente de lu- mercadorias da terra, expressa pelos
cro. Essas distintas taxas de lucro, su- seus preços de mercado.
jeitas à concorrência intercapitalista,
Desde os primórdios da teoria do
convergem para uma taxa média geral.
capital, o capital agrário pressupõe o
Por sua vez, quando Marx trata na componente do capital fundiário, que,
mesma obra dos problemas mais espe- de certa forma, é uma excrescência à teo-
cíficos do capital agrário (Livro 3, “O ria do capital e do dinheiro. Isso por-
processo global de produção capitalis- que os meios de produção fundiários,
ta”), já o faz numa perspectiva teórica que geram rendas e mais valia diferen-
da distribuição ou da apropriação in- ciais, de acordo com a fertilidade e/ou
tercapitalista da mais-valia. Ele discute a localização dos recursos naturais, não
aprofundadamente a categoria renda são produzidos pelo trabalho huma-
fundiária, mas não está interessado no, mas sim apropriados pelo capital,
em destacar diferenças fundamentais, segundo condições históricas muito
no processo de acumulação de capital, diferentes em cada país. Na realidade
desse setor em relação aos demais. Afi- histórica concreta da Inglaterra à época
nal, o circuito dinheiro–mercadoria– de Marx, os capitalistas não eram pro-
dinheiro também segue nele a mesma prietários dos meios de produção fun-
norma mercantil. diários, e sim uma classe de landlords,
A diferença crucial do capital que de origem feudal. No Brasil, o longo
migra para o setor agrário é que ele terá processo de cinco séculos de apropria-

124
Capital

C
ção dos recursos naturais pelo capital processos produtivos agrícola e indus-
é distinto do padrão europeu, mas não trial é a mais lenta rotação do capital
deixa de ser também um processo coer- na agricultura.
citivo de apropriação da renda fundiá- Não obstante as diferenças aponta-
ria em diferentes condições históricas, das, o processo produtivo agrícola tam-
até o presente, e que está muito bem bém será “modernizado” pelo capital
documentado em Terras devolutas e la- industrial, por meio da combinação de
tifúndio, texto clássico de Ligia Osorio inovações mecânicas, biológicas e físico-
Silva (2008). químicas que tendem a elevar a pro-
O fato de o capitalismo penetrar di- dutividade do trabalho na agricultura.
retamente no mercado de terras, trans- O aumento da produtividade se dará
formando-as em ativo mercantil com- pela substituição da energia muscular e
pletamente ajustado às necessidades da animal por tração mecânica, pela ace-
expansão da produção de commodities, leração dos processos de absorção da
não elimina a contradição original, pois fotossíntese e pelo incremento da ab-
a terra não é mercadoria – ou seja, um sorção de nutrientes do solo (NPK +
produto do trabalho humano – e, por- micronutrientes), combinados com o
tanto, não pode ser convertida em mer- uso intenso de agrotóxicos.
cadoria pela apropriação capitalista dos Por sua vez, como os períodos de
recursos naturais. Assim, o mercado de produção não são contínuos, mas de-
terras continua sendo uma questão es- pendentes dos calendários estacionais,
sencialmente jurídica ligada à conota- o processo de circulação das mercado-
ção do estatuto do direito da proprie- rias produzidas também comportará
dade fundiária em cada país, e não uma defasagens, sob a forma de distribuição
questão estritamente mercantil. irreversível do estoque produzido no
Retomando as distinções materiais ano. Isso terá consequências na forma-
do capital agrário nos processos de ção dos preços agrícolas, introduzin-
produção e circulação de mercadorias, do neles elementos de estacionalidade
convém fazer dois destaques de certa e volatilidade que são específicos dos
importância conceitual. O processo de produtos agrícolas.
produção de mercadorias na agricul- Finalmente cabe uma digressão
tura está sujeito ao regime natural das específica sobre o capital financeiro e,
fases adequadas de plantio e colheita, em especial, acerca de sua relação com
e aos tratos culturais. Diferentemente a agricultura, consideradas as particu-
dos processos produtivos na indústria, laridades que levantamos neste texto:
o período de produção é descontínuo, e capital fundiário e renda fundiária, ino-
o trabalho humano se ajusta aos ritmos vações técnicas e diferenças no proces-
naturais de absorção da energia da fo- so produtivo e comercial.
tossíntese. Isso impõe um ritmo e uma Retornando ao tema inicial deste
forma de produzir mercadoria essen- texto, quando tratamos do equivalente
cialmente dependentes dos recursos da geral – dinheiro transformado em ca-
natureza, algo que também é distinto pital, tendo em vista acrescer seu valor
dos processos urbano-industriais. Uma pela produção da mais-valia –, temos
diferença crucial para a teoria do ca- nessa formulação a mediação necessária
pital oriunda dessa distinção entre os dos processos de produção e circulação

125
Dicionário da Educação do Campo

mercantis como condição à exploração campo propício à operação do capital


do trabalho humano para produção do financeiro global.
valor. Há, porém, uma categoria im- As expressões “financeirização do
plícita nessa formulação: a das massas capital” e “globalização do capital”, mui-
líquidas de capital dinheiro, suscetíveis to em uso nas últimas três décadas, con-
originalmente de se aglutinarem, como têm aspectos históricos comuns: cor-
fundos aplicáveis em distintos proces- respondem a processos históricos bem
sos produtivos, como capital bancário. marcados dos anos 1980 até o presente,
Com o processo de desenvolvimento mas que, de certa forma, já estavam ins-
das instituições financeiras no capita- critos na natureza essencial do capital.
lismo, o capital financeiro adquire cres- A primeira – a financeirização – sugere
cente autonomia. o predomínio crescente das instituições
O eixo explicativo aqui considerado centralizadoras e mobilizadoras do ca-
do capital financeiro continua a ser o de pital (bancos, holdings, grandes empresas
uma “relação social abstrata e geral do multinacionais, grandes conglomerados
capital consigo próprio, que comanda emissores de títulos portadores de renda
da órbita financeira a centralização e etc.), em sua forma líquida de dinheiro
mobilidade do capital, organiza mono- ou em títulos patrimoniais, na direção
polisticamente também os mercados do processo de acumulação de capital
agrícolas e diversifica suas aplicações em escala nacional. A segunda – a glo-
multissetorialmente em busca de uma balização – indica que, sob a hegemonia
taxa média de lucro do conglomerado” do capital financeiro, operou-se a mun-
(Delgado, 1985, p. 13). dialização da acumulação do capital, o
Em especial, a operação concreta que implica sua completa liberdade de
do capital financeiro se dá no sistema ir e vir e a chamada abertura da conta
de crédito bancário, com função de pro- capital dos balanços de pagamentos dos
ver liquidez aos processos produtivo e países. Isso evidentemente terá conse-
comercial da agricultura capitalista, mas quências monetárias, cambiais, fiscais
também de propiciar a adoção das ino- etc., provocando enormes movimentos
vações tecnológicas introduzidas pela reais e especulativos do capital em es-
indústria. Contudo, é no mercado de ter- cala global e criando um potencial de
ras que haverá uma voraz perseguição da crises financeiras muito mais frequentes
renda fundiária. Assumindo a forma e profundas.
de capital fundiário, o capital financeiro Finalmente, é preciso fazer uma
na agricultura funcionará como grande observação final. É fundamentalmen-
alavanca dos agronegócios, apresentan- te pelo controle do Estado que o ca-
do atualmente, inclusive, certa tendên- pital financeiro opera na agricultura e
cia à internacionalização. A captura dos em outros setores da economia, pois,
“ganhos de fundador” e outras rendas sem o domínio dos sistemas de crédi-
especulativas, especialmente atrativas to público e finanças públicas, e sem a
nas etapas de expansão da produção de cooptação e a colaboração das agências
commodities, converte todos esses merca- reguladoras dos ativos patrimoniais
dos – as próprias commodities, os créditos, fundiários, é impossível essa forma de
os títulos comerciais, e especialmente os capital realizar sua estratégia de apro-
títulos patrimoniais fundiários – em priação do valor econômico.

126
Ciranda Infantil

C
Para saber mais
DELGADO, G. C. Capital financeiro e agricultura no Brasil: 1965-1985. Campinas:
Ícone–Unicamp, 1985.
FURTADO, C. Introdução ao desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural. São Paulo:
Paz e Terra, 2000.
MARX, K. O capital. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. L. 1-3.
SILVA, L. O. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

CIRANDA INFANTIL
Edna Rodrigues Araújo Rossetto
Flávia Tereza da Silva

Ciranda Infantil é um espaço edu- Cooperação e Meio Ambiente do MST,


cativo da infância Sem Terra, organiza- e todos os integrantes dos assentamen-
do pelo Movimento dos Trabalhadores tos foram convidados a participar do
Rurais Sem Terra (MST) e mantidos por processo. No início do trabalho, for-
cooperativas, centros de formação e maram-se os laboratórios de produção.
pelo próprio MST, em seus assentamen- Para permitir a participação das mu-
tos e acampamentos. O nome foi esco- lheres, foram criados setores como o
lhido pelo fato de ciranda remeter à cul- refeitório coletivo e a creche.
tura popular e estar presente nas danças, Inicialmente, a Ciranda Infantil es-
brincadeiras e cantigas de roda vivencia- tava dirigida apenas a crianças de 0 a 6
das pelas crianças no coletivo infantil. anos. Com o passar do tempo e com o
Em março de 1997, o nome Ciran- desenvolvimento do trabalho das coo-
da Infantil foi o mais votado numa reu- perativas e das ações do movimento,
nião do coletivo nacional do MST, e, em colocou-se um novo desafio para aque-
julho de 1997, o setor de educação já les que vinham desenvolvendo o tra-
organizava a primeira Ciranda Infantil balho pedagógico com as crianças na
Itinerante Nacional, sendo o nome das Ciranda Infantil: contemplar a inserção
creches dos assentamentos e seus pro- de todas as crianças do assentamento,
jetos político-pedagógicos substituídos independentemente de sua idade ou do
por Ciranda Infantil. Na ocasião, foram fato de seus pais serem ou não sócios
definidos também dois tipos de Ciran- das cooperativas – até então, a Ciranda
da: permanente e itinerante. Infantil atendia apenas filhos dos sócios
As primeiras experiências das Ci- das cooperativas. Por isso, atualmente,
randas Infantis Permanentes do MST, a idade das crianças que frequentam a
entre 1989 e 1995, contaram com a Ciranda Infantil alcança crianças com
organização o Setor de Produção, até 12 anos de idade, ampliando-se o

127
Dicionário da Educação do Campo

número de meninos e meninas que as atividades na cooperativa exigem


participam desse processo pedagógico mais tempo dos adultos no trabalho, as
no qual as crianças Sem Terra emergem crianças menores, que não frequentam
como sujeitos que constroem a sua par- a escola, ficam o dia inteiro na Ciranda;;
ticipação histórica na luta pela terra, su- do contrário, permanecem na Ciranda
jeitos que, na condição de “crianças Sem Infantil somente o tempo necessário
Terrinha”, desenvolvem e assumem o para que os educadores e educadoras
sentido de pertença a essa luta. possam desenvolver as atividades pe-
A organização da Ciranda Infantil dagógicas previstas.
Permanente se dá pela composição do Como as crianças frequentadoras da
núcleo de base, de acordo com o nú- Ciranda Permanente são de várias ida-
mero de crianças que estejam partici- des, em diversos momentos as crianças
pando da Ciranda Infantil. Os núcleos maiores, com 7 a 12 anos, brincam com
de base geralmente são compostos ob- as mais novas, ajudando-as também em
servando-se alguns critérios – idade e suas atividades pedagógicas. Todas as
gênero, por exemplo. O núcleo de base crianças em idade de escolarização fre-
também é a forma como as famílias se quentam a escola do assentamento em
organizam nos acampamentos e assen- outro período, e a Ciranda passa a ser
tamentos para participar da coletivida- um espaço de encontro das crianças,
de. Na Ciranda, essa forma organizati- ou seja, um espaço educativo onde as
va tem como um de seus objetivos o de crianças constroem relações entre si,
trabalhar a dimensão da auto-organiza- com os adultos e com a comunidade;;
ção das crianças um espaço de referência para o de-
O trabalho pedagógico se funda nas senvolvimento de um trabalho com a
necessidades das crianças ou está basea- infância e com as famílias do assenta-
do no trabalho das mulheres envolvidas mento;; um espaço em que elas apren-
na cooperativa. Nessa perspectiva, os dem a viver coletivamente, a respeitar
educadores organizam e planejam os es- o seu companheiro, a fazer amizade
paços pedagógicos de forma a garantir o com as outras crianças, a compartilhar
equilíbrio entre as diferentes atividades – o lápis, o brinquedo, o lanche... É o es-
dirigidas, livres, individuais ou coleti- paço no qual constroem sua identidade
vas – e considerando os sujeitos envol- de crianças Sem Terrinha e inventam,
vidos, a fim de que as atividades sejam criam e recriam as coisas. Nas Ciran-
adequadas e prazerosas para as crianças. das Infantis, as crianças exercitam sua
O ambiente educativo das Cirandas capacidade de inventar, sentir, decidir,
Infantis é organizado de maneira a que arquitetar, reinventar, se aventurar,
as experiências pedagógicas apareçam agir para superar os desafios das brin-
nesse ambiente. Por ambiente educati- cadeiras, apropriando-se da realidade
vo, entendemos tudo o que acontece na e demonstrando, de forma simbólica,
vida da Ciranda, dentro e fora dela. os seus desejos, medos, sentimentos,
Em relação ao tempo de funcio- agressividade, suas impressões e opi-
namento da Ciranda Infantil ou de niões sobre o mundo que as cerca.
permanência da criança no espaço, ele É assim que a Ciranda vai tor-
varia segundo a necessidade das mães nando-se um lugar de referência para
ou a necessidade da criança. Quando as crianças, um espaço de direito da

128
Ciranda Infantil

C
criança Sem Terra e de referência para • quinto e último núcleo: crianças de
as famílias, não apenas por permitir 9 a 12 anos;; para cada doze crian-
que mães, pais e responsáveis possam ças, havia um/a educador/a.
empreender suas tarefas, mas princi-
palmente por implicar a construção de As crianças que participaram do
um coletivo infantil por meio do qual processo de luta pela terra possuem ca-
as crianças sentem-se parte do MST. racterísticas coletivas que contribuem
para o seu processo de formação e que
As Cirandas Infantis Itinerantes se manifestam nas atitudes cotidianas,
são organizadas sempre que a partici- na família, na Ciranda Infantil, na escola
pação das mulheres em instâncias, di- e no grupo social no qual convivem, ou
reções, cursos, reuniões, congressos e seja, no meio em que estão inseridas.
marchas – enfim, no processo de luta
É nesse cirandar da Ciranda que as
pela terra – o exige. Como são orga-
crianças vão compreendendo o pro-
nizadas especialmente para as crianças jeto de sociedade que o Movimento
que acompanham seus pais e mães em dos Trabalhadores Rurais Sem Ter-
ações e atividades do processo de luta ra está construindo e vão realizando
pela terra, elas têm data para começar e sua infância, pois esse processo não
para terminar. O MST do Ceará foi um precisa ser isolado do espaço da luta
dos primeiros a introduzir a experiência. de classe. A coletividade vivenciada
No âmbito nacional, a primeira Ciranda pelas crianças nas Cirandas Infantis
Infantil Itinerante ocorreu em 1997, no tem uma intencionalidade pedagógi-
Encontro Nacional dos Educadores/ ca vinculada ao projeto educativo que
as da Reforma Agrária (Enera), em vem sendo desenvolvido no interior
Brasília, e contou com a participação do MST. E pelas vivências no cole-
de 80 crianças de todo o país. tivo infantil as crianças têm possibi-
Na Ciranda Itinerante do V Con- lidade de se apropriar dos elementos
gresso do MST, que ocorreu de 11 a 15 do processo histórico para a compre-
de junho de 2007 em Brasília, e do qual ensão da realidade.
participaram 18 mil delegados de todos Por fim, o coletivo infantil é uma
os assentamentos e acampamentos do construção conjunta da qual partici-
Brasil, a organização das crianças foi feita pam crianças, educadores e educado-
por núcleos de base, da seguinte forma: ras, com a Ciranda Infantil constituin-
do uma referência para as crianças,
• primeiro núcleo: bebês de até 1 pois possibilita a sua participação na
ano de idade;; para cada dois bebês, luta pela terra. A Ciranda se configura
havia um/a educador/a;; como espaço de resistência e reafirma-
• segundo núcleo: bebês de 2 a 3 ção da identidade tanto de Sem Terra
anos idade;; para cada três bebês, quanto de ser criança. Isso ocorre por
havia um/uma educador/a;; intermédio das brincadeiras, jogos, pa-
• terceiro núcleo: crianças de 4 a 6 lavras de ordens, místicas, enfim, pela
anos de idade;; para cada dez crian- vivência da infância no movimento. As
ças, havia um/a educador/a;; crianças estão em constante movimen-
• quarto núcleo de base: crianças de 7 to na Ciranda Infantil e são as vivên-
a 8 anos;; para cada dez crianças, há cias nesse coletivo infantil que desper-
um/a educador/a;; tam nelas uma verdadeira prática de

129
Dicionário da Educação do Campo

educação emancipadora. É nessa coleti- so faz do seu tempo de infância um mo-


vidade que as crianças vão se aproprian- vimento pedagógico em luta, na luta pela
do de elementos que contribuem para o terra, pela Reforma Agrária, umaa luta
seu processo de formação, e esse proces- pela transformação da sociedade.

Para saber mais


ARENHART, D. Infância, educação e MST: quando as crianças ocupam a cena.
Chapecó: Argos, 2007.
ALVES, S. C. As experiências educativas das crianças no acampamento Índio Galdino do
MST. 2001. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Educação infantil: movi-
mento da vida, dança do aprender. Caderno de Educação, MST, São Paulo, n. 12,
nov. 2004.
_______. A Escola Itinerante Paulo Freire no 5° Congresso no MST. Fazendo
Escola, Brasília, n. 4, 2008.
ROSSETO, E. R. A. Essa ciranda não é minha, ela é de todos nós: a educação das crianças
Sem-Terrinha no MST. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade
de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT)


Antonio Canuto

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) ção especial para os submetidos a con-


é um organismo pastoral, ecumênico, dições análogas ao trabalho escravo.
vinculado à Igreja Católica e a outras Trataremos aqui do contexto em que
igrejas cristãs, de modo particular à surgiu a CPT, sua missão e organiza-
Igreja Evangélica de Confissão Lute- ção, os temas acentuados, a preocupa-
rana no Brasil, à Igreja Anglicana e à ção com a formação e os compromis-
Igreja Metodista. Desenvolve sua ação sos e objetivos de sua atuação.
junto dos homens e mulheres do cam-
po em toda a sua diversidade: pequenos
proprietários, agricultores familiares, Contexto
agricultores sem-terra, camponeses e
camponesas de diversos matizes – qui- O regime militar estabeleceu como
lombolas, ribeirinhos, extrativistas e uma das suas metas de desenvolvimen-
outros muitos –, trabalhadoras e traba- to a ocupação da Amazônia, com a pa-
lhadores rurais assalariados, com aten- lavra de ordem “levar os homens sem

130
Comissão Pastoral da Terra (CPT)

C
terra para uma terra sem homens”. A Em 1972, realizou-se, em Santarém/
fim de tornar viável esse objetivo, foi PA, um encontro inter-regional dos
criada a Superintendência de Desen- bispos de toda a Amazônia. O en-
volvimento da Amazônia (Sudam). Por contro foi um marco histórico da
meio da Sudam, foram oferecidos in- caminhada da Igreja na região, ao defi-
centivos fiscais às empresas que se dis- nir “Linhas prioritárias da pastoral da
pusessem a investir no desenvolvimen- Amazônia”. Essas linhas prioritárias
to da Amazônia. Dessa forma, grandes tinham como uma de suas diretrizes
bancos e empresas dos mais diferentes básicas a encarnação da Igreja na rea-
ramos, para terem acesso aos recursos lidade do povo;; entre suas prioridades
dos incentivos fiscais, adquiriram ex- estavam a Pastoral Indigenista e a ação
tensas áreas de terra, onde iriam con- diante da abertura de estradas e de ou-
cretizar seus projetos. Consideravam tras frentes pioneiras.
como inabitadas as áreas adquiridas, Em 1975, a Comissão Brasileira
mesmo se nelas houvesse aldeias indí- de Justiça e Paz, vinculada à Confe-
genas e vilarejos de sertanejos, a maior rência Nacional dos Bispos do Brasil
parte constituída de posseiros. (CNBB), convocou os bispos e prela-
O resultado imediato dessa política dos da Amazônia a uma reunião em
foi a invasão dos territórios indígenas Goiânia, para intercâmbio de conhe-
e a expulsão de milhares e milhares de cimentos sobre a realidade da região e
famílias sertanejas. Ao mesmo tempo, busca de uma ação conjunta da Igreja
de outras partes do país, sobretudo do diante da mesma. O encontro termi-
Nordeste, eram trazidos milhares de nou com algumas propostas, entre
trabalhadores para derrubar as matas, a elas a de se constituir uma comissão
fim de nelas se estabelecerem as ativida- de terras que interligasse, assessorasse
des agropecuárias dos projetos aprovados. e dinamizasse os que trabalhavam em
Foi o início de um longo período favor dos homens sem-terra e dos tra-
de conflitos e violência contra os tra- balhadores rurais. Em reuniões sub-
balhadores, que não tinham qualquer sequentes para dar corpo à comissão,
forma de organização. Quem compar- acabou-se por nomeá-la Comissão
tilhou com os trabalhadores e trabalha- Pastoral da Terra.
doras essa situação foi a Igreja, única Nascida da premência e da urgên-
instituição presente na região. cia da realidade amazônica, a recém-
Em 1971, por ocasião de sua ordena- criada CPT começou a se articular não
ção episcopal, dom Pedro Casaldáliga, só na Amazônia, mas em praticamente
bispo da recém-criada Prelazia de São todas as regiões do Brasil, de tal forma
Félix do Araguaia, no Mato Grosso, pu- que logo estava implantada em quase
blicou uma carta pastoral com o título todo o território nacional, adquirin-
“Uma igreja da Amazônia em conflito do, em cada região, tonalidade dife-
com o latifúndio e a marginalização so- rente, de acordo com os desafios que
cial”. Nela, descreve a realidade dura e a realidade regional colocava. Hoje a
violenta em que viviam as comunida- CPT está organizada em 21 seções
des indígenas e sertanejas e os peões regionais, com equipes de base em
(trabalhadores das fazendas). várias dioceses.

131
Dicionário da Educação do Campo

Missão direção onde eles existiam, mas eram


subservientes aos interesses dos pro-
A missão da CPT se alicerça no cla- prietários ou do governo.
mor que vem dos campos e florestas, na memó- Em algumas regiões, os atingidos
ria subversiva do Evangelho e na fidelidade pelos grandes projetos oficiais, de
ao Deus dos pobres e aos pobres da terra. Ser modo particular pelas barragens
uma presença solidária, profética, ecu- de hidrelétricas, tiveram um acompa-
mênica, fraterna e afetiva, que presta nhamento mais intenso, com desta-
um serviço educativo e transformador que para a construção da barragem de
para os povos da terra e das águas, a Sobradinho, no rio São Francisco,
fim de estimular e reforçar o seu pro- Bahia, e Itaipu, no Paraná. A organi-
tagonismo, contribuindo para articular zação dos trabalhadores que tentavam
as iniciativas das comunidades campo- resistir à Usina Hidrelétrica de Itaipu,
nesas, ao mesmo tempo em que busca ou pelo menos reivindicavam indeni-
envolver toda a sociedade na luta pela zações justas, serviu de baliza para o
terra e na terra, é assim que a CPT ex- surgimento, mais tarde, do MOVIMENTO
pressa sua forma de agir. DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS (MAB),
apoiado e estimulado pela CPT.
Acentos na trajetória Mais adiante, o acento da ação da
CPT foi o apoio à conquista da terra
No decorrer de sua história, certas pelos sem-terra. A primeira reunião
realidades e situações foram mais acen- de sem-terras convocada pela CPT se
tuadas no conjunto das ações da CPT, realizou em Goiânia, em 1982. Dois
conforme as necessidades eram mais anos mais tarde, surgiu o Movimento
ou menos intensas, ou de acordo com dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
o que a conjuntura exigia. (MST).
O que a Comissão Pastoral da Terra garantida ou conquistada, o
Terra nunca esqueceu é que ela existe desafio é o de nela sobreviver. A pro-
como um serviço à causa dos traba- dução, a comercialização e a agricul-
lhadores e trabalhadoras e como um tura familiar passaram a ter destaque
suporte para a sua organização. É o especial, mas não qualquer produção,
trabalhador que define os rumos que pois o meio ambiente tem de ser res-
deseja seguir, seus objetivos e metas. peitado e a produção precisa ser sau-
A CPT o acompanha, não cegamen- dável. Os pequenos agricultores que
te, mas com espírito crítico. E desde não se sentiam representados pelos
o começo tinha clareza de que os pro- sindicatos criaram, com o apoio da
tagonistas dessa história são eles, os CPT, o M OVIMENTO DOS P EQUENOS
trabalhadores e as trabalhadoras. A GRICULTORES (MPA).
Os posseiros foram os que primei- Novos elementos começaram a fa-
ro mereceram a atenção da CPT – e zer parte da compreensão da CPT. A
constatou-se que existiam posseiros terra não é só espaço de produção, mas
em todas as regiões do Brasil. A co- lugar da vida;; e, nesse espaço, devem ser
missão incentivou os trabalhadores desenvolvidas relações harmoniosas
a organizar sindicatos onde eles não com a natureza e com todos os seres
existiam, ou a conquistar espaços e vivos que a habitam. E a CPT incor-

132
Comissão Pastoral da Terra (CPT)

C
porou uma atenção especial à água, sumam as rédeas de suas lutas, sendo
com suas múltiplas dimensões e usos. protagonistas de sua história. A CPT
Incorporou também o conceito de nunca desenvolveu processos de edu-
território na defesa do direito à terra, cação formal, a não ser de alfabetiza-
sobretudo pelas comunidades indíge- ção de adultos em alguns lugares, mas
nas, quilombolas e outras comunidades dedicou e dedica parte significativa de
tradicionais. seu tempo e de seus recursos a realizar
A atenção aos trabalhadores e tra- encontros e cursos de formação que
balhadoras assalariados, os boias-frias, ajudem os trabalhadores e trabalhado-
foi um dos acentos na trajetória da ras a ler com olhos críticos a realidade
CPT;; com isso, os boias-frias consegui- na qual estão inseridos, a conhecer os
direitos que a lei lhes garante, a reivindi-
ram, por algum tempo, ganhar a cena,
car direitos que a lei lhes nega e a de-
mas hoje enfrentam dificuldades de or-
senvolver práticas de cultivo e cuidado
ganização e articulação.
da terra que melhorem a sua produção,
Desde sua origem, a CPT se preo- respeitando os direitos da natureza.
cupou com os peões das fazendas, mui-
Também desenvolveu e desenvolve
tas vezes submetidos a condições aná-
ações de formação com grupos específi-
logas ao trabalho escravo, e denunciou
cos de camponeses, como os ribeirinhos,
esse tipo de exploração. Em 1997, lan-
os quilombolas, os seringueiros e outros.
çou uma Campanha Nacional contra o Ao mesmo tempo, tem dado atenção à
Trabalho Escravo, que, além de denun- formação das mulheres camponesas,
ciar a continuidade dessa chaga social, incentivando-as a se empoderarem e
promove ações de conscientização nas a defenderem suas próprias causas. A
regiões de onde saem os trabalhadores CPT acompanhou com carinho e aten-
e busca dar apoio aos resgatados. ção a formação da Articulação Nacio-
Apesar das ênfases diferentes, uma nal das Mulheres Trabalhadoras Rurais
linha comum entrelaça os diferentes (ANMTR), que se converteu no atual
períodos: a dos direitos. Na sua ação, MOVIMENTO DAS MULHERES CAMPONESAS
explícita ou implicitamente, o que (MMC Brasil).
sempre esteve em jogo foi o direito Como suporte às ações de forma-
do trabalhador, de tal forma que se ção, a organização produziu, em todos
pode dizer que a CPT é também uma os cantos do país, cartilhas sobre a
entidade de defesa dos direitos huma- realidade brasileira, os direitos das di-
nos, ou uma pastoral dos direitos dos versas categorias de trabalhadores do
trabalhadores e trabalhadoras da terra. campo – posseiros, meeiros, arrendatá-
rios, ribeirinhos, quilombolas – e sobre
A formação, mola mestra práticas de saúde alternativa e popular,
de cultivo da terra e de preservação
da ação e recuperação de fontes e nascentes.
Desde os primeiros momentos até Também produziu cartilhas de alfabe-
hoje, a Comissão Pastoral da Terra tização dentro do espírito e do método
considerou a formação um elemento de Paulo Freire.
essencial para a sua ação e para que os Nesse contexto, a CPT também não
homens e as mulheres do campo as- descurou da formação de seus agentes

133
Dicionário da Educação do Campo

para que pudessem prestar um serviço tre si e que fortaleçam sua própria
mais qualificado aos grupos e às co- identidade, compreendendo os de-
munidades com as quais trabalhavam safios da realidade e as ciladas do
e trabalham. modelo atual de desenvolvimento.
4) A luta pela terra e pelos territórios, com-
batendo o latifúndio e o agronegócio e in-
Reafirmação de corporando na luta a convivência com os
compromissos diversos biomas e as diversas culturas dos
povos que ali vivem e resistem, buscando
A CPT, ao longo de sua história, foi
formar comunidades sustentáveis: a luta
avaliando sua ação e, a fim de manter
pela terra não é só a luta por um
fidelidade à sua missão, reafirmou seus
pedaço de chão para trabalhar, mas
compromissos e assumiu novos que
a luta pela defesa de territórios, nos
melhor respondessem aos desafios da
quais as comunidades exercem sua
realidade. São eles:
autonomia, definem suas próprias
1) A promoção da vida dos seres humanos e formas de ocupação e organizam
do planeta terra: a luta pela terra não seu espaço de vida e relações.
pode estar dissociada da luta pela 5) O enfrentamento ao modelo predador do
Terra, o planeta, que sofre contínu- ambiente e escravizador da vida de pessoas e
as agressões e manifesta o estresse comunidades: o modelo de desenvolvi-
a que foi submetida. mento capitalista só enxerga a nature-
2) A construção de práticas e valores no za como fonte de riqueza que deve
campo que criem novas relações entre pes- ser explorada até o esgotamento para
soas, famílias, comunidades e povos numa gerar lucros cada vez maiores, lan-
perspectiva de solidariedade: a CPT çando mão de relações de trabalho,
entende que um projeto novo ex- superadas como o trabalho escravo,
ige práticas novas ou o resgate de para que seus lucros sejam cada vez
práticas antigas que o modelo de maiores. A CPT propõe que esse
desenvolvimento imperante fez modelo seja enfrentado com clareza
abandonar, mas que carregam sa- e firmeza.
beres e dinâmicas capazes de salvar
o planeta e as boas relações. Por isso, a CPT, atuando como su-
3) O protagonismo dos camponeses e das porte e parceira solidária, tem como
camponesas, dos trabalhadores e das objetivo estratégico de sua ação que as
trabalhadoras, em busca do fortaleci- comunidades camponesas conquistem práticas,
mento do poder po pular: campon- valores e direitos que promovam e defendam a
eses e camponesas, trabalhadores vida dos seres humanos e do planeta Terra e
e trabalhadoras devem assumir as que, ao mesmo tempo, garantam o protagonis-
rédeas de sua história;; não podem mo das populações camponesas e dos traba-
ficar subordinados ao que ditam as lhadores e trabalhadoras do campo.
elites, que determinam o que todos Nessa luta, a CPT não está sozinha.
têm de fazer, para garantir seus Articula-se com as pastorais sociais das
próprios interesses. Por isso, a ação Igrejas e com os movimentos, associa-
da CPT junto das comunidades ções e organizações de camponeses e
camponesas pretende que elas es- camponesas. A CPT é parte integran-
tejam organizadas e articuladas en- te do Fórum Nacional pela Reforma

134
Commodities Agrícolas

C
Agrária e Justiça no Campo (FNRA) e balhadores e trabalhadoras do campo,
da Via Campesina. Por ser a Via Cam- a CPT, como entidade de assessoria e
pesina uma articulação internacional apoio, dela participa ativamente, ainda
de movimentos e entidades dos tra- que na qualidade de convidada.

Para saber mais


COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Pastoral e compromisso. Petrópolis: Vozes, 1983.
______. Conquistar a terra, reconstruir a vida: CPT, dez anos de caminhada.
Petrópolis: Vozes, 1985.
_____. A luta pela terra: a Comissão Pastoral da Terra 20 anos depois. São Paulo:
Paulus, 1997.
POLETTO, I.;; CANUTO, A. Nas pegadas do povo da terra: 25 anos da Comissão Pastoral
da Terra. São Paulo: Loyola, 2002.

COMMODITIES AGRÍCOLAS
Nelson Giordano Delgado

O termo commodity, que em portu- Isso significa que a produção de


guês significa mercadoria, tem longa mercadorias é um atributo de um
tradição de uso tanto na economia sistema de mercado e não apenas do
política quanto em sua crítica. Diz-se capitalismo. Uma economia de peque-
que um recurso, um bem ou um servi- nos produtores mercantis é um siste-
ço torna-se uma mercadoria quando é ma que produz mercadorias, embora
comprado e/ou vendido no mercado, não seja um sistema capitalista. No
adquirindo, portanto, um preço. As- entanto, é apenas no capitalismo que
sim, o arroz torna-se uma mercadoria o mercado se torna o grande poder
quando é produzido para ser vendi- organizador do sistema econômico e
do no mercado, o que não acontece social, de modo que os mercados pas-
quando é consumido diretamente pelo sam a controlar a sociedade humana,
produtor ou canalizado para os con- que vira “um acessório do sistema
sumidores por outros mecanismos econômico”, como diz Polanyi (2000,
que não os do mercado (por exemplo, p. 97), e a produção de mercadorias
sua distribuição direta por agências se generaliza por toda a economia. No
governamentais ou organizações de capitalismo, a sociedade é, fundamen-
produtores). Da mesma forma, a for- talmente, uma sociedade produtora
ça de trabalho humana torna-se uma de mercadorias, de tal forma que a ri-
mercadoria apenas quando é vendida queza, na expressão de Marx, aparece
no mercado, obtendo um preço repre- como uma “imensa coleção de merca-
sentado pelo salário monetário. dorias” (1983, p. 45).

135
Dicionário da Educação do Campo

O termo commodity primária refere- pão, o macarrão e outros produtos


se a produtos que são produzidos para derivados do trigo e que passam por
serem transacionados unicamente no processos manufatureiros.
mercado – nesse caso específico, no Usualmente, as commodities agrícolas
mercado internacional – e está associa- são classificadas em commodities tropi-
do a um tipo de organização da produ- cais ou “leves” e commodities “duras”.
ção que representou historicamente a As primeiras incluem produtos como
integração das economias e sociedades café, cana-de-açúcar, banana, cacau e
periféricas à divisão do trabalho no sis- chá, produzidos em países periféricos
tema capitalista internacional.
de clima tropical, com sua produção
Uma definição “oficial” de commodi- originariamente destinada aos países
ty primária é apresentada pela Carta de centrais, para consumo direto ou in-
Havana, aprovada na Conferência das dustrialização. As commodities agrícolas
Nações Unidas sobre Comércio e Em- “duras” incluem produtos como algo-
prego, realizada em Havana em março dão, trigo, soja, carnes, arroz, milho
de 1948: e outros, produzidos tanto em países
periféricos quanto em países centrais
[...] qualquer produto originá- de clima temperado, de modo que sua
rio de atividade agropecuária, forma de produção e seus preços são
florestal ou pesqueira ou qual- afetados por fatores diversos daqueles
quer mineral em sua forma na- que afetam os produtos tropicais.
tural ou que tenha passado por
processamento costumeiramen- As chamadas commodities agrícolas
te requerido para prepará-lo tropicais estão, em grande parte, iden-
para comercialização em volume tificadas com a história dos países pe-
substancial no comércio interna- riféricos desde o período colonial ou,
cional. (Delgado, 2009, p. 128) mais recentemente, desde a sua inser-
ção na divisão internacional do traba-
Assim, nas commodities primárias lho a partir do século XIX. No caso
estão incluídos, além das chamadas do Brasil, basta pensarmos nos cha-
commodities agrícolas, produtos como mados ciclos da cana e do café para
cobre, alumínio, gás natural, petró- percebermos a importância decisiva
leo bruto, peixes, madeira bruta etc. das commodities agrícolas na formação
O termo commodities agrícolas englo- da sociedade e da economia brasilei-
ba produtos originários de atividades ras e no padrão de integração do país
agropecuárias, vendidos em quantida- ao sistema capitalista internacional até
des consideráveis, no mercado interna- meados do século XX.
cional, em sua forma natural ou após Foi principalmente para as com-
passarem por um processamento ini- modities agrícolas tropicais e para os
cial necessário à sua comercialização. países que as produziam – seja através
Commodities agrícolas não são, portan- de sistemas de plantation, seja utilizan-
to, produtos industrializados, os quais do pequenos produtores rurais – que
incorporam significativo valor, adi- se colocou historicamente o chamado
cionado às matérias-primas utilizadas “problema das commodities” (Depart-
para a sua produção. O trigo em grão ment for International Development,
é uma commodity agrícola, mas não o 2004, p. 6), que buscava descrever uma

136
Commodities Agrícolas

C
dupla tendência: 1) o declínio nos ter- cução de projetos de industrialização
mos de troca entre commodities agríco- orientados e estimulados pela ação da
las e produtos manufaturados a longo política econômica dos Estados na-
prazo;; e 2) a enorme volatilidade nos cionais, visando superar sua condição
preços dessas commodities a curto pra- de países “vocacionados” para a pro-
zo. Essa volatilidade usualmente está dução de commodities primárias.
associada aos hiatos temporais entre as A segunda ocorrência que merece
decisões de produzir e a capacidade de registro no tema das commodities agrí-
entregar as mercadorias no mercado;; colas foram as tentativas de enfrentar
aos choques de oferta causados por mu- os problemas oriundos da deterioração
danças climáticas ou perturbações na- dos termos de intercâmbio e, princi-
turais inesperadas;; à baixa elasticidade- palmente, da volatilidade dos preços
renda da demanda desses produtos;; e à por meio da realização de acordos in-
inelasticidade-preço de sua oferta.1 ternacionais ou intergovernamentais
Duas ocorrências merecem des- sobre commodities. Embora intentos de
taque na consideração das commodities concretização desse tipo de acordos
agrícolas tropicais (e das commodi- tivessem sido feitos anteriormente
ties primárias em geral) e do “problema (em grande parte de forma bilateral),
das commodities”, acima assinalado. Em foi no processo de negociação da or-
primeiro lugar, a análise do comporta- dem comercial internacional a vigorar
mento histórico da relação de trocas no segundo pós-guerra que surgiram
entre os preços das commodities e os pre- tentativas de retomar a discussão des-
ços dos produtos industriais, as primei- ses acordos internacionais nos fóruns
ras exportadas pelos países da periferia internacionais em construção (Depart-
e os segundos exportados pelos países ment for International Development,
centrais, tornou-se um dos pilares da 2004;; Delgado, 2009).
pioneira teoria do desenvolvimento e Inicialmente, Keynes, em sua pro-
do subdesenvolvimento econômicos posta de reorganização da ordem finan-
formulada, no quase imediato pós- ceira e comercial internacional apre-
Segunda Guerra Mundial, pela Comis- sentada na reunião de Bretton Woods,
são Econômica para a América Latina incluiu a criação de agências internacio-
e o Caribe (Cepal) (Prebisch, 1964;; nais para o controle dos preços das com-
Furtado, 1961). A deterioração históri- modities primárias, mediante uma política
ca desses termos de troca ou intercâm- de estoques, intento abortado devido à
bio está associada, na concepção de oposição dos Estados Unidos e sua de-
Prebisch e Furtado, à insuficiência di- fesa da liberalização comercial.
nâmica do desenvolvimento baseado Também nas discussões prepara-
em commodities agrícolas ou primárias em tórias para a elaboração de uma pro-
geral, que, além disso, não pode ser posta de Organização Internacional do
enfrentada de forma equitativa por Comércio (abandonada pelos Estados
intermédio dos mecanismos de mer- Unidos em 1950), a questão dos acor-
cado. Daí a proposição que se tor- dos intergovernamentais sobre com-
naria fundadora da reivindicação de modities esteve presente em abordagens
desenvolvimento econômico dos paí- alternativas, algumas das quais implica-
ses periféricos no pós-guerra: a exe- vam ampla intervenção governamental.

137
Dicionário da Educação do Campo

Porém, novamente prevaleceu a posi- também do predomínio nos países


ção hegemônica dos Estados Unidos de centrais do princípio da liberalização
defesa do princípio do liberalismo como comercial, que cada vez mais se iden-
eixo da política comercial mundial;; nes- tificou com a defesa do livre-comércio,
sa visão, os acordos sobre commodities se- da abertura dos mercados dos países
riam permitidos apenas como exceções periféricos às empresas transnacionais
às regras da liberalização e com duração e da integração à globalização financei-
e caráter bastante limitados. E é dessa ra e comercial, em especial a partir da
forma que foram incorporados na Carta década de 1980.
de Havana e na normativa do Acordo A situação em relação às commodities
Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt, agrícolas “duras”, como mencionado
do inglês General Agreement on Tariffs anteriormente, é muito diversa daque-
and Trade), instituição que se tornou la das commodities agrícolas tropicais: as
reguladora do comércio internacional commodities “duras” passaram a domi-
no pós-guerra, até a criação da Organi- nar as negociações agrícolas interna-
zação Mundial do Comércio (OMC) na cionais pelo menos a partir da década
década de 1990. de 1960, tornando-se o foco principal
Por fim, houve uma tentativa de dos conflitos no comércio mundial
reintroduzir a questão dos acordos so- agropecuário. Uma característica par-
bre commodities em 1955, no Gatt, com ticular das commodities agrícolas duras
o Acordo Especial sobre as Disposi- é o fato de terem peso considerável
ções para Commodities (SACA, do in- nas agriculturas dos países centrais
glês Special Agreement on Commodity e desempenharem papel decisivo na
Arrangements), visando regular sua estrutura do sistema agroalimentar
oferta e demanda no comércio mun- mundial, dominado por grandes em-
dial;; outra tentativa foi feita na Con- presas transnacionais e enormemente
ferência das Nações Unidas sobre Co- influenciado pelas políticas agrícolas
mércio e Desenvolvimento (Unctad, daqueles países (Wilkinson, 1989 e
do inglês United Nations Conference 2009;; Cartay e Ghersi, 1996).
on Trade and Development) nos anos Outra característica é que as com-
1970, através de um Programa Integra- modities agrícolas “duras” passaram a
do para as Commodities (IPC, do inglês ocupar um lugar muito mais impor-
Integrated Program for Commodities);; tante do que as commodities agrícolas
e outra foi realizada em 1980, com a as- tropicais em muitos países periféricos,
sinatura de um acordo estabelecendo o representando um componente prin-
Fundo Comum para Commodities (CFC, cipal da sua renda agrícola e da sua
do inglês Common Fund for Com- pauta de exportações, e influenciando,
modities). Todas essas tentativas direta ou indiretamente, mas sempre
estavam fundadas na ideia do esta- de forma marcante, as tendências e
belecimento de estoques reguladores possibilidades de desenvolvimento dos
internacionais cuja operação busca- segmentos capitalista e familiar de suas
ria estabilizar os preços mundiais. E agriculturas. Não deixa de ser impac-
todas essas tentativas fracassaram ou tante constatar que muitos países pe-
tornaram-se letra morta diante não só riféricos, inclusive o Brasil, passaram a
da oposição dos Estados Unidos, mas reconstruir a originária “vocação agrí-

138
Commodities Agrícolas

C
cola”, tão cara às suas elites agrárias, modities agrícolas no início da década de
a partir da década de 1970 – com as 1980, dando origem aos conflitos co-
mudanças ocorridas no comércio e no merciais entre Estados Unidos e CEE
sistema agroalimentar mundiais – e du- (atual União Europeia), que passaram
rante as décadas de 1980 e de 1990 – a dominar o cenário das negociações
com as mudanças da política econô- agrícolas internacionais desde então.
mica e a abertura dos mercados, in- Ademais, com a necessidade de os
duzidas pela crise da dívida externa e países periféricos aumentarem consi-
pela adoção do receituário neoliberal deravelmente suas exportações de com-
(Delgado, 2010). A diferença funda- modities agrícolas “duras”, em virtude
mental é que essa reconstrução está da crise da dívida e das transformações
baseada agora na especialização em do sistema agroalimentar mundial, as
commodities agrícolas “duras” e não mais políticas protecionistas dos países cen-
em commodities agrícolas tropicais, con- trais passaram a influenciar igualmente
tornando algumas condições de insu- as possibilidades não apenas de cresci-
ficiência dinâmica do desenvolvimento mento da agricultura e das exportações
associado a essas últimas, mas não en- agrícolas, mas também de equilíbrio na
frentando – e muitas vezes obstaculi- balança comercial desses países.
zando – as mudanças estruturais de- O exame do comportamento histó-
fendidas por Prebisch e Furtado para rico dos preços das commodities agríco-
as economias periféricas. las “duras” indica substancial variabi-
O preço internacional, a quantidade lidade de preços, alternando elevações
produzida e a rentabilidade das commodi- e quedas periódicas nos preços reais
ties agrícolas “duras” são determina- com evidências, embora controversas,
dos em grande medida pelas políticas de tendência declinante de seus preços
agrícolas protecionistas dos países cen- reais a longo prazo (Hathaway, 1987,
trais. Essas políticas foram inauguradas cap. 1 e 2). Assim, na década de 1960,
na década de 1930 nos Estados Uni- o comércio agrícola mundial cresceu
dos, em resposta aos efeitos devasta- lenta mas continuamente, e os preços
dores da Grande Depressão, de 1929 das commodities permaneceram relativa-
sobre o meio rural, e se fortaleceram mente estáveis. Essa situação mudou
bastante no pós-guerra, após a decisão consideravelmente na década de 1970,
norte-americana de impedir que as com- quando o volume do comércio de com-
modities agrícolas fossem submetidas às modities agrícolas aumentou, em termos
regras do Gatt, e com o surgimento, reais, quatro vezes mais do que a sua
na década de 1950, da Política Agrí- produção, provocando aumentos con-
cola Comunitária, a PAC, que repre- sideráveis nos preços mundiais (nomi-
sentou um componente politicamente nais e reais). Nessa década, dentre as
importante no processo de construção transformações ocorridas no comércio
da Comunidade Econômica Europeia mundial de commodities, cabe destacar o
(CEE) no período. Como resultado, a grande aumento das exportações agrí-
produção agrícola cresceu extraordi- colas dos Estados Unidos, estimulado
nariamente nos Estados Unidos e na pela política de desvalorização do dó-
Europa, de modo que essa última pas- lar – o que tornou a sua agricultura
sou a ser exportadora líquida de com- mais dependente das exportações – e

139
Dicionário da Educação do Campo

o enorme aumento da produção agrí- da Europa Central;; à intensificação da


cola europeia em resposta aos estímu- preocupação com a preservação e a
los da PAC. sustentabilidade ambientais;; e à emer-
Na década de 1980, ocorre, portan- gência dos países asiáticos, em parti-
to, um considerável excesso de oferta cular da China, como eixo dinâmico
nos mercados mundiais de commodities, do comércio mundial agroalimentar.
acompanhado de uma relativa estagna- De modo geral, o comportamento dos
ção da demanda, tanto nos países cen- preços das principais commodities agrí-
trais quanto nos periféricos (em decor- colas foi bastante volátil na década,
rência da crise da dívida externa), que alternando entre um vigoroso cresci-
provocou grave crise no mercado mun- mento na primeira metade seguido de
dial, especialmente na primeira metade uma igualmente vigorosa queda na se-
da década, com drástica queda dos gunda metade da década.
preços internacionais, em termos reais. Por fim, a primeira década dos
Como consequência, intensificaram-se anos 2000 trouxe um comportamen-
os conflitos comerciais em torno das to novamente volátil para os preços
commodities agrícolas. Isso estimulou das commodities agrícolas, embora com
o lançamento da Rodada Uruguai do viés de alta, associado a novas preocu-
Gatt, a criação da OMC e a formulação pações com a possibilidade de crises
de um acordo agrícola que, pela primei- alimentares e com a insustentabilida-
ra vez na história do pós-guerra, busca- de do sistema agroalimentar mundial,
va trazer a agricultura, por assim dizer, além das consequências da severa crise
“para dentro das regras do Gatt”, com financeira internacional ocorrida em
o objetivo de tentar controlar o prote- 2008 nos países centrais (Abbot,
cionismo e seus efeitos deletérios so- 2009;; Ghosh, 2011;; Ploeg, 2010;;
bre o comércio mundial de commodities. United Nations Conference on Trade
Os efeitos desse acordo da OMC para and Development, 2010).
a agricultura sobre a redução do prote- As explicações para a tendência
cionismo nos países centrais foram, no de elevação dos preços das commodities
entanto, pouco importantes, de modo agrícolas destacam tanto aspectos da
que os impasses em torno das nego- demanda quanto da oferta desses pro-
ciações agrícolas internacionais perma- dutos (Ghosh, 2011). No que diz res-
necem até hoje, especialmente quando peito à demanda, o grande peso recai
observados da perspectiva do interesse sobre a China e a Índia, especialmente
dos países periféricos. no caso do enorme crescimento da de-
A conjuntura dos anos 1990 no manda por soja por parte da China. No
mundo das commodities agrícolas foi que diz respeito à oferta, um conjun-
bastante complexa, pois, além dos con- to de fatores são elencados: o destino
flitos comerciais, essa década assistiu à crescente de áreas cultiváveis e de com-
generalização do receituário neoliberal modities plantadas para a produção de
e da ideologia da globalização entre agrocombustíveis em vez de alimentos
os países periféricos, em especial na (como é exemplificado pelo caso do
América Latina;; à crescente importân- milho nos Estados Unidos);; o aumento
cia de arranjos de integração comercial dos custos dos insumos como resulta-
regional;; à reorganização institucional do da elevação do preço do petróleo;;

140
Commodities Agrícolas

C
a queda dos rendimentos agrícolas por mente voláteis e sua evolução futura
causa da destruição dos solos e dos é extremamente incerta. Na medida
investimentos públicos inadequados em que a especulação excessiva não
e insuficientes em pesquisa agrícola e ex- for contida, a forte presença de in-
tensão rural;; o impacto das mudanças vestidores financeiros continuará a
climáticas sobre as safras agrícolas;; e a adicionar instabilidade nesses mer-
redução dos estoques mundiais de com- cados” 4 (United Nations Conference
modities. Além disso, também são men- on Trade and Development, 2010,
cionados fatores como a desvalorização p. 11;; nossa tradução).
do dólar e a redução das taxas de juros, Por fim, para muitos analistas este
notadamente nos Estados Unidos. comportamento internacional das com-
No entanto, número crescente de modities agrícolas na primeira década de
análises sugere que variações na oferta 2000 reflete, na verdade, a existência
e na demanda não são suficientes para de uma verdadeira “crise agrária e ali-
explicar a explosão de preços ocorrida mentar”. Para Ploeg, por exemplo, esta
em 2007, e, especialmente, no início crise emerge da interação de três fatores:
de 2008, que parece estar associada ao
processo de “financeirização das com- 1) uma parcial, mas progressiva
modities”, ou seja, à especulação finan- industrialização da agricultura;;
ceira, que se deslocou para o setor de 2) a emergência do mercado
commodities primárias com a crise finan- mundial como o princípio or-
ceira internacional, desencadeada pela denador da produção e da co-
inadimplência do subprime2 nos Estados mercialização agrícolas;; e 3) a
Unidos. A maior preocupação dos reestruturação das indústrias
analistas é que a especulação finan- processadoras, das grandes em-
ceira tenha se tornado um novo presas comercializadoras e das
componente estrutural explicativo cadeias de supermercados em
da volatilidade dos preços das com- ‘impérios alimentares’ que exer-
modities agrícolas, como parece ser cem um poder monopolista
exemplificado pelo que ocorreu na crescente sobre a cadeia de ofer-
metade de 2008, quando muitos ta de alimentos como um todo.5
investimentos financeiros tiveram (2010, p. 99;; nossa tradução)
de abandonar o mercado de com-
modities para cobrir perdas e prover A interação desses fatores, asso-
liquidez em outras atividades, pro- ciada à constatação de que o mercado
vocando uma queda em seus preços. mundial é um princípio organizador
Como diz Ghosh, “os mercados in- intrinsecamente instável do sistema
ternacionais de commodities começa- agroalimentar internacional, tende a
ram progressivamente a desenvolver tornar a turbulência, segundo Ploeg,
muitas das características dos mer- uma característica permanente do re-
cados financeiros” 3 (2011, p. 54;; gime alimentar, com consequências
nossa tradução). sobre o aumento da volatibilidade dos
De acordo com o relatório da preços das commodities agrícolas, em de-
Unctad de 2010, “em geral, os preços trimento tanto de produtores quanto
das commodities têm permanecido alta- de consumidores.

141
Dicionário da Educação do Campo

Notas
1
Os termos de troca entre commodities agrícolas e produtos manufaturados indicam a rela-
ção entre os preços desses produtos (Pcommodities/Pindustrializados, onde P=índice de
preços). Se essa relação é declinante ao longo do tempo, isso significa que os preços dos
produtos industrializados aumentam mais rapidamente do que os preços das commodities
agrícolas, acarretando, como consequência, uma transferência de recursos dos produtores
de commodities agrícolas para os produtores de manufaturas. Uma baixa elasticidade-renda da
demanda denota que, quando a renda aumenta, o incremento da demanda por commodities
agrícolas dela derivado ocorre numa proporção inferior – usualmente muito inferior – à ele-
vação da renda. A inelasticidade-preço da oferta sugere que, quando o preço das commodities
agrícolas aumenta, a quantidade ofertada aumenta em menor proporção do que o preço
e quando o preço cai, a quantidade ofertada diminui também em menor proporção.
2
Crédito de risco concedido a um tomador de empréstimos que não oferece garantias
suficientes;; no caso dos Estados Unidos, o termo designa especificamente as hipotecas do
setor imobiliário.
3
“[...] international commodity markets increasingly began to develop many of the features
of financial markets.”
4
“In general, commodity prices have remained highly volatile, and their future evolution
is extremely uncertain. As long as excessive speculation on commodity markets is not
properly contained, the strong presence of financial investors will continue to add
instability to these markets [...].”
5
“(1) a partial but constantly ongoing industrialization of agriculture;; (2) the emergence of
the world market as the ordering principle for agricultural production and marketing;; and
(3) the restructuring of processing industries, large trading companies and supermarket
chains into ‘food empires’ that increasingly exert a monopolistic power over the entire food
supply chain.”

Para saber mais


ABBOTT, P. Developments Dimensions of High Food Prices. OECD Food,
Agriculture and Fisheries Working Papers, n. 18, 2009.
CARTAY, R.;; GHERSI, G. El escenario mundial agroalimentario. Caracas: Fundación
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DELGADO, N. G. O regime de Bretton Woods para o comércio mundial: origens, institui-
ções e significado. Rio de Janeiro: Mauad X;; Seropédica: Edur, 2009.
DELGADO, N. G. O papel do rural no desenvolvimento nacional: da moderniza-
ção conservadora dos anos 1970 ao Governo Lula. In: MOREIRA, R. J.;; BRUNO, R.
(org.). Dimensões rurais de políticas brasileiras. Rio de Janeiro: Mauad X;; Seropédica:
Edur, 2010. p. 17-53.
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FURTADO, C. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de
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142
Conflitos no Campo

C
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modities: Selected Writings from 2008-2011. Minneapolis: IATP, 2011. p. 51-56.
HATHAWAY, D. E. Agriculture and the Gatt: Rewriting the Rules. Washington (D.C.):
Institute for International Economics, 1987.
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Journal of Agrarian Change, v. 10, n. 1, p. 98-106, Jan. 2010.
POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de
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PREBISCH, Raúl. Dinâmica do desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Fundo
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and Development Report, 2010. Nova York: United Nations, 2010.
WILKINSON, J. O futuro do sistema agroalimentar. São Paulo: Hucitec, 1989.
WILKINSON, J. The Globalization of Agribusiness and Developing World Food
Systems. Monthly Review, p. 41-53, Sept. 2009.

CONFLITOS NO CAMPO
Clifford Andrew Welch

O título deste verbete expressa uma mo, a história dos conflitos e a situa-
frase que virou marca da C OMISSÃO ção atual.
PASTORAL DA TERRA (CPT), organiza-
Os relatórios da CPT estabelecem
ção ecumênica fundada em 1975, com
categorias de análise para registrar os
a missão de defender os interesses dos
conflitos. Os organizadores dos rela-
camponeses. Desde 1985, a organiza-
ção publica Conflitos no campo Brasil, tórios destacam os temas terra, água,
inicialmente um relatório ocasional trabalho, violência e manifestações.
e depois uma série, com um volume Para aprofundar a análise, a CPT criou
anual, e livro-testemunho da situação subcategorias, como “despejos,” “ex-
socioeconômica dos trabalhadores ru- pulsões,” “tempos de seca,” “áreas de
rais e de sua resistência aos ataques garimpo,” “políticas públicas” e “sin-
constantes contra seus direitos tra- dicatos.” Além disso, a CPT procura
balhistas e posses territoriais. Vamos registrar todas as “ações de resistên-
utilizar a CPT como ponto de partida cia e enfrentamento” que ocorrem
para examinar a conceituação do ter- no Brasil.

143
Dicionário da Educação do Campo

A perspectiva da CPT segue sua vo- o comércio de pau-brasil, que marcou


cação como protagonista e intermediá- profundamente as representações do
ria dos “trabalhadores e trabalhadoras Brasil como país pacífico. Nos mapas
do campo”. Desses sujeitos, a organiza- do início da época colonial, o interior
ção registra uma diversidade de ativida- (ainda desconhecido pelo colonizador)
des econômicas, relacionando posseiros, foi usado como pano de fundo para
assentados, remanescentes de quilom- que criativos cartógrafos retratassem
bos, parceleiros, pequenos arrendatá- o processo de extração da madeira pe-
rios, pequenos proprietários, ocupantes, los índios tupinambás. Enquanto os
sem-terras, seringueiros, quebradeiras homens nativos aparecem negociando
de coco babaçu, castanheiros, faxina- na costa com comerciantes europeus,
lenses etc. Nos “etc.”, estão englobados as mulheres são retratadas no interior,
assalariados, escravos, ribeirinhos, atin- caçando, cuidando de crianças ou co-
gidos por barragens, pescadores, garim- zinhando (Rocha, Presotto e Cavalhei-
peiros e grupos indígenas. Esses sujei- ro, 2007). As cenas são prosaicas, uma
tos, que não são “mansos”, “herdarão vez que sugerem uma relação suposta-
a terra e se deleitarão na abundância da mente harmoniosa entre os elementos
paz” (Salmos 37:11), com a asserção do indígena e português. Essas imagens
papel testemunhante da CPT. A lista de retratam um momento de uso da terra
protagonistas ainda não é completa. em resposta à demanda europeia que,
Na categoria “manifestações”, estão mesmo sem ter durado muito tempo,
incluídos os movimentos socioterrito- era relativamente livre de conflitos
riais, tais como o movimento sindical (Fausto, 1997).
rural, principalmente a Confederação Ainda que a exploração do solo
Nacional dos Trabalhadores na Agricul- brasileiro tivesse sido concedida ao
tura (Contag), e o Movimento dos Tra- Estado português por decreto papal,
balhadores Rurais Sem Terra (MST), que as demais monarquias europeias não
lutam há décadas pela Reforma Agrária. respeitavam a autoridade do Vaticano.
Outros sujeitos essenciais para traçar Para proteger e desenvolver o seu novo
os conflitos são os ruralistas. Os cam- território, a Coroa Portuguesa estabe-
poneses são protagonistas dos conflitos leceu, a partir de 1530, uma rede de
no campo hoje, mas só porque donatá- “capitanias” e passou o controle des-
rios, senhores de engenho, fazendeiros, sas subdivisões a uma classe de nobres
grileiros, agroindustriais, agronegocian- de sua total confiança. Esses “dona-
tes e políticos ruralistas o foram ontem. tários” se comprometiam a povoar,
Não fosse pela agressão, pela acumula- desenvolver, defender e administrar
ção primitiva da terra e pela exploração os territórios em nome da Coroa, sob
do trabalho, os camponeses não teriam pena de perder as terras.
motivos para se engajarem nos confli- Um legado importante do sistema
tos. Por isso, qualquer abordagem do de capitanias foi a proliferação de uma
tema teria de começar no período colo- série de sesmarias. Trata-se, essencial-
nial, a fim de conseguir explicar os con- mente, de áreas extensas, no interior
flitos no campo no século XXI. das capitanias, que foram sublocadas
Numa perspectiva histórica, os a terceiros pelos donatários (Fausto,
conflitos modernos começaram com 1997;; Motta, 2009). O sistema de ses-

144
Conflitos no Campo

C
marias implantado na colônia precisa outras áreas. O abandono do cultivo da
ser examinado, uma vez que permane- terra não resultou em devolução, pois a
ce influenciando os conflitos no campo fiscalização sempre foi muito precária
até o presente. (Alveal e Motta, 2005).
O sistema original de sesmaria foi Dessa forma, a sesmaria atribuída
criado em 1375, em Portugal. Com ele, a determinado nobre no Brasil tornar-
buscou-se promover o desenvolvimen- se-ia permanente, como uma grande área
to rural por meio do cultivo de cereais, particular. É ela a base de um sistema de
além de segurar os camponeses na ter- latifúndio pouco produtivo, que contri-
ra. O sistema ajudou a amenizar a cri- buiu para a problemática da formação
se alimentar que devastara Portugal e social do país. Como dificilmente as
causara grande êxodo do campesinato. sesmarias coloniais eram devolvidas ao
No século XV, o rei Afonso V utilizou rei, o significado de “terras devolutas”
a mesma lei para promover a coloniza- também diferiu no Brasil, referindo-se
ção das áreas de fronteira, aumentar a essencialmente às terras ainda não doa-
produção e assegurar as fronteiras de das ou desenvolvidas – isto é, a grande
Portugal contra a invasão espanhola maioria daquilo que viria a ser o Brasil
pelo Reino de Castela. Quem não con- independente a partir de 1822.
seguisse cultivar as terras num prazo Parece claro que o período colo-
previamente determinado, precisava nial produziu uma tendência a permi-
devolvê-las. Essas “terras devolutas” tir que o poderoso controlasse gigan-
deviam ser repassadas, com as mesmas tescas porções de terras e sustentasse
restrições, para novos sesmeiros (aque- suas vantagens através dos tempos. O
les que recebiam a doação) (Motta, elemento português menos influen-
2009, p. 15-17). te possuía a terra de modo precário,
No Brasil – onde os “piratas” como arrendatário, meeiro ou mesmo
franceses e holandeses ameaçavam a posseiro;; os índios e africanos foram
hegemonia portuguesa –, os motivos escravizados. E isso transferiu para as
para a utilização do sistema não esta- futuras gerações uma estrutura fun-
vam muito distantes daqueles que ha- diária dualista, de terras subutilizadas
viam inspirado o uso prévio da política em forma de latifúndio e de terras su-
pela monarquia lusa. Uma vez doado pela perutilizadas em forma de minifúndio,
Coroa, ficava a cargo do sesmeiro culti- bem como uma formação social alta-
var, medir e demarcar o território. mente estratificada.
Entretanto, as exigências do sistema Outra herança do sistema colonial,
de sesmaria não tiveram efeito prático argumenta a historiadora Márcia Motta
no Brasil. O arrendatário, que recebia (2009, p. 263-266), é o uso pelos tribu-
porções de sesmarias para desenvol- nais da data de concessão da sesmaria
vê-las, alugava parcelas delas para pe- como referência para determinar a ti-
quenos agricultores, mas ninguém se tularidade. Em caso de conflito sobre
interessou em medi-las ou demarcá- a legitimidade de um título de terra, os
las. Muito pelo contrário, os grandes tribunais geralmente exigem a realiza-
arrendatários aproveitavam a madeira ção de um processo de discriminação, a
produzida pelo desbravamento e pres- fim de comprovar o direito original de
sionavam os camponeses a desmatar uso e posse da sesmaria.

145
Dicionário da Educação do Campo

A ironia dessa busca de legitimida- que o Estado imperial queria garantir


de é que, além da alteração do signi- a disponibilidade dos escravos libertos
ficado da palavra sesmaria no Brasil, no mercado de trabalho que teria de
a exigência “cultive ou perca” perma- ser criado quando a abolição eliminas-
neceu cega. Assim, em vez de desle- se, de vez, a força de trabalho baseada
gitimar a reivindicação daqueles que na escravidão (Guimarães, 1968;; Costa,
pretendiam documentar seus títulos, a 1985;; Martins, 1986).
descoberta da subvenção original ge- Contudo, como demonstra a his-
ralmente confirmava o patrimônio de toriadora Ligia Osorio Silva (1996),
uma área, apesar de mostrar que as ter- os elaboradores da lei buscavam exa-
ras em litígio são, quase por definição, tamente o oposto: queriam criar um
não desenvolvidas. Até agora, então, o mercado de terras seguro para atrair
Judiciário tem interpretado o descober- investidores e imigrantes com a pro-
to como confirmação da legalidade do messa de poderem virar proprietários
reclamante e não como prova da falha no Brasil. Isso levou os latifundiários
total de cumprir as condições estabele- que dominavam o Parlamento a resis-
cidas pelo rei para garantir o usufruto tirem à aplicação da lei até que seus
da área. efeitos pudessem ser controlados. No
A busca por títulos originais tor- contexto da próxima transição política,
nou-se especialmente importante após quando da reinvenção do Brasil como
a promulgação da Lei de Terras, de 18 República, conseguiram descentralizar
de setembro de 1850. Com o fim do a administração da lei, passando a res-
período colonial e o início do Império, ponsabilidade de sua execução aos
os funcionários imperiais tentaram fa- governos estaduais recém-formados
zer coincidir suas demandas com aque- (Silva, 1996;; Linhares e Silva, 1999).
las da monarquia inglesa. Sob a pres- Ao tornar os estados responsáveis
são britânica para abolir a escravidão, pela questão da terra, o governo federal
conceberam a Lei de Terras, que pro- deixou a questão agrária nas mãos do
curava valorizar a propriedade da terra, grupo mais interessado em não implan-
regulamentando a sua comercialização, tar a “via farmer”: a oligarquia agrícola
e atrair trabalhadores imigrantes com que governaria o país durante a maior
todo tipo de promessa (Silva, 1996, parte do século XX. Dependendo
p. 127-139). do estado e da região, problemas do
Muitos estudiosos têm interpretado uso e da posse da terra raramente
a lei como intencionalmente projetada foram abordados por legisladores esta-
pela classe dominante para impedir que duais. Quando isso ocorreu, foram ge-
a “via farmer”1 servisse como modelo ralmente resolvidos pelos próprios go-
de desenvolvimento agrário. Para esses vernadores estaduais, muitos dos quais
pensadores, o que a classe dominante fazendeiros e dependentes do apoio
tinha em mente era a transformação da dos ricos locais, não somente na busca
terra em mercadoria para que a vasta por recursos, mas também por votos.
maioria de posseiros brasileiros, imi- Ao centro do sistema que conferia
grantes e escravos libertos não tivesse poder aos estados estava a figura do
recursos suficientes para adquiri-las. “coronel”, indivíduo que controlava
Além disso, acreditam esses estudiosos o voto de dezenas, centenas ou mi-

146
Conflitos no Campo

C
lhares de trabalhadores. Os coronéis agricultura de pequena escala sobrevi-
eram políticos locais que manipula- via precariamente, dependendo, mui-
vam o apoio eleitoral dos seus agre- tas vezes, da grande propriedade para
gados e dependentes, buscando que o continuar a existir (Guimarães, 1968;;
aparelho do Estado atendesse às suas Linhares e Silva, 1999).
reivindicações imediatas e de longo Após 1930, as mudanças políticas
prazo (Silva, 1996;; Fausto, 1997), num no Brasil permitiram a instituição de
sistema onde “uma mão lavava a ou- um governo central forte, que procurou
tra.” Ao longo do tempo, formas de reduzir a influência da oligarquia rural
registro da terra foram estabelecidas e priorizando uma política desenvolvi-
a data-limite para a garantia de direi- mentista. O Estado Novo getulista se
tos adquiridos de imóveis, nos termos estendeu de 1937 a 1945 e, no período,
da Lei de Terras de 1850, foi adiada de decretos-leis procuraram reforçar as
1854, para 1878 e, depois, para vários relações capitalistas no campo. Entre
anos entre 1900 e 1930, dependendo as contribuições do regime semifascis-
dos interesses dos governos estaduais ta de Getúlio Vargas, destaca-se a pro-
e de coronéis e latifundiários. moção da organização social e política
A necessidade da documentação das classes rurais, inclusive a criação de
original de aquisição e utilização efe- uma estrutura associativa e o estabele-
tiva no interior do Brasil criou um cimento do sistema judiciário do traba-
novo protagonista para os conflitos no lho, usado para regular os conflitos no
campo: o grileiro. O valor da terra em campo (Welch, 2010).
São Paulo e o medo do proprietário de A partir de então, as estruturas or-
perdê-la para especuladores são fatores ganizativas se tornaram objeto de dis-
que contribuíram para tornar a prática puta política até os anos de 1960, quan-
bastante comum no estado. O grileiro do o governo determinou a criação de
falsificava documentos e os registrava um sistema de sindicatos tanto para os
oficialmente, corrompendo os oficiais latifundiários quanto para os campone-
dos cartórios que, muitas vezes, fize- ses. No entanto, esse ato fez agravar o
ram parte do processo de falsificação medo da oligarquia rural, uma vez que
de títulos de propriedades. A prática sinalizou a possibilidade da perda de
da grilagem continuou a falsificar do- seu poder e o aumento do controle
cumentos para a apropriação de terras do Estado sobre a terra. Dessa forma,
que pertenceram aos estados (Silva, os proprietários de terra preferiram rea-
1996;; Linhares e Silva, 1999). gir e garantir a dominação mediante o
A descentralização do sistema de golpe militar de 1964 (Welch, 2010).
registros e o poder de influência das Numa aparente contradição, a admi-
oligarquias r urais tomaram for mas nistração inicial da ditadura militar con-
diversas nas diferentes regiões do seguiu aprovar no Congresso Nacio-
Brasil. Em todos os casos, no entanto, nal a primeira lei de Reforma Agrária,
prevaleceu a tendência de reafirmação em novembro de 1964. O Estatuto da
do sistema latifúndio-minifúndio. Os Terra definiu Reforma Agrária como
grileiros aumentavam o tamanho e a “o conjunto de medidas que visam a
quantidade dos latifúndios por meio promover melhor distribuição da ter-
da obtenção de documentos falsos e a ra mediante modificação no regime de

147
Dicionário da Educação do Campo

posse e uso, a fim de atender aos prin- Os conflitos no campo documen-


cípios de justiça social e do aumento tados pela CPT desde 1985 são novos
da produtividade” (apud Bruno, 1995, capítulos de uma longa história. São os
p. 5). Contudo, tal como a Lei de Terras conflitos pela terra que demarcam a his-
de 1850, o estatuto de 1964 foi escri- tória do Brasil, determinando as tran-
to “pra inglês ver”. O documento foi sições políticas, sustentando ou derru-
elaborado por um comitê executivo de bando governos, formando as classes
revisores do próprio regime, com vis- sociais, selecionando os privilegiados e
tas a eliminar o latifúndio e promover a os marginalizados, estabelecendo os sis-
agricultura familiar pela redistribuição temas de dominação e resistência e dei-
de terras, apostando na formação de xando para a geração atual um punhado
uma classe média rural. A essência do de memórias de vencedores e vencidos.
estatuto final, entretanto, foi transfor- Sabemos do guerreiro Zumbi e da
mada pelos representantes dos latifun- resistência do quilombo de Palmares
diários no Congresso. durante o século XVII, da defesa dos
Temendo a sua utilização por parte guaranis, orientados por Sepé Tiaraju,
dos camponeses, os ruralistas se arti- contra a sua redução a escravos em mea-
cularam para alterar a linguagem e os dos do século XVIII, da rebelião dos
objetivos do estatuto, de modo que o camponeses do Nordeste contra os no-
apoio estatal ficou restrito à moder- vos regulamentos de registro na oitava
nização da agricultura de larga escala, década do século XIX, da contribuição
consolidando a agroindústria nacio- dos africanos escravizados ao fim da es-
nal. Essa mudança delineou a face da cravidão em 1888, da perseverança até a
REVOLUÇÃO VERDE no Brasil, um pro- última gota de sangue dos flagelados de
cesso que intensificou as expropria- Canudos nos anos 1890, dos colonos
ções, os despejos e as expulsões, agra- grevistas de São Paulo que deram par-
vando o êxodo rural, com a chegada de tida ao movimento sindical camponês
mais de 20 milhões de camponeses às no início do século XX, do Partido Co-
periferias das cidades (Palmeira, 1989;; munista Brasileiro (PCB), que susten-
Bruno, 1995;; Gonçalves Neto, 1997). tou durante décadas o movimento, da
Essas manobras revelam a influên- insistência das Ligas Camponesas de
cia contínua dos latifundiários no regi- Francisco Julião na Reforma Agrária
me e nas políticas fundiárias. Sua capa- radical como única solução para os gra-
cidade de dissimular a luta de classes ves problemas do país no começo dos
foi sempre muito grande, bem como anos 1960, da coragem dos fundadores,
de impedir ou de abortar políticas pú- em 1963, da Confederação dos Tra-
blicas para as populações camponesas. balhadores da Agricultura, dos guerri-
Com essa prática de controle territo- lheiros do Araguaia, membros do Par-
rial, as oligarquias rurais fizeram que tido Comunista do Brasil (PCdoB),
o problema fundiário fosse mantido, e único partido que tentou, durante
ele se intensificaria nas décadas seguin- anos, mobilizar os camponeses do
tes, com o aumento dos conflitos no sertão na guerra contra a ditadura
campo no contexto do fim da ditadura que ameaçava destruir o seu modo de
militar e da redemocratização do Brasil vida nos anos 1970 (Medeiros, 1989;;
nos anos 1980. Welch, 2006).

148
Conflitos no Campo

C
Relembrar as lutas sociais de des- de pessoas – representadas por cerca
taque na história subalterna do campo de 30 organizações de diversas orien-
não é um exercício de história social, e tações. O novo camponês mora e tra-
sim a tentativa de caracterizar pontos- balha em mais de 8.500 assentamentos,
chave na tradição inventada do movi- estabelecidos pelos governos estaduais
mento camponês do fim do século XX e federal, e que ocupam quase 80
e no início do século XXI, que conse- milhões de hectares – 20% da terra
guiu elevar os eventos a mitos entre explorada pela agricultura (Núcleo
os seus seguidores, se não na popula- de Estudos, Pesquisas e Projetos de
ção em geral. A história subalterna é Reforma Agrária, 2010). A gran-
a escrita da narrativa do passado pela de maioria dessas famílias foi assentada
perspectiva dos vencidos, dos subor- depois de 1988, quando foi promulga-
dinados, que se colocam eles mesmos da a nova Constituição, que especificou,
no papel de protagonistas dos eventos. como dever do Estado, a desapropria-
A tentativa de territorializar a história ção para fins de Reforma Agrária, de
é outra marca dos conflitos no campo. propriedades em violação das leis traba-
Mitos, longe de serem contos de deu- lhistas, ambientais ou simplesmente im-
sas falsas, são a liga cultural que serve produtivas. Os artigos constitucionais,
como memória coletiva de comunida- apesar de oferecerem menos do que
des, tais como os movimentos socio- fora exigido, são produtos dos conflitos
territoriais (Fernandes, 2000). no campo.
As histórias das lutas camponesas – Outras estatísticas são reveladoras
relembradas em cartilhas ou recriadas das complexidades dessas conquistas.
em místicas – fortalecem o movimento Nos embates provocados entre porta-
camponês, dando sentido e fundamen- vozes da Via Campesina e do agrone-
to aos conflitos contemporâneos no gócio, é clara a impossibilidade de diá-
campo. Eles não são conflitos isolados, logo entre as partes: a Via Campesina
mas parte de um fio histórico. A luta prega a Reforma Agrária e a segunda,
de hoje faz parte de uma luta contínua a extinção da mesma. Por isso, a CPT
e permanente que precisa de seus sol- relatou que as ocorrências de conflitos
dados tanto quanto as lutas do passa- de terra aumentaram bastante entre
do. Um dia seremos “nós” os sujeitos 2001 (625) e 2010 (853);; as incidências
inspiradores de mais uma fase da luta de trabalho escravo aumentaram mais
pela territorialização do campesinato do que cinco vezes, de 45 (2001) para
no Brasil. 204 (2010);; os conflitos pela água pu-
A fase atual, testemunhada pela laram de 14 (2002) para 87 (2010);; e a
CPT, é a mais rica de todas em termos média dos assassinatos – para mencio-
de avanços dos movimentos socioter- nar só a forma mais extrema de vio-
ritoriais. Enquanto o camponês tradi- lência praticada no campo – foi de 38,
cional, vivendo na terra durante gera- com alta de 73 em 2003 e baixa de 26
ções, sofreu brutais transformações no em 2009 (Comissão Pastoral da Terra,
Brasil, o camponês produto da luta 2011). Com tragédias e vitórias como
pela Reforma Agrária nunca esteve tão essas, os conflitos no campo continua-
bem organizado. São mais de 1 milhão rão a criar novos territórios e memórias
de famílias – por volta de 5 milhões de resistência.

149
Dicionário da Educação do Campo

Nota
1
“Via farmer” é uma expressão utilizada desde o século XIX para descrever o modelo de
desenvolvimento rural utilizado inicialmente no nordeste dos Estados Unidos da América,
caracterizado pela predominância do pequeno agricultor.

Para saber mais


ALVEAL, C.; MOTTA, M. Sesmarias. In: MOTTA, M. (org.) Dicionário da terra. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 427-431.
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e Agricultura, n. 5, p. 5-31, nov. 1995.
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Comissão Pastoral da Terra, 2011.
COSTA, E. V. The Brazilian Empire: Myths and Histories. Chicago: The University
of Chicago Press, 1985.
FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1997.
FERNANDES, B. M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
GONÇALVES NETO, W. Estado e agricultura no Brasil: política agrícola e modernização
econômica brasileira, 1960-1980. São Paulo: Hucitec, 1997.
GUIMARÃES, A. P. Quatro séculos de latifúndio. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
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MEDEIROS, L. S. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989.
MOTTA, M. M. M. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito 1795-1824. São
Paulo: Alameda, 2009.
NÚCLEO DE ESTUDOS, PESQUISAS E PROJETOS DE REFORMA AGRÁRIA (NERA). Rela-
tório DATALUTA – Banco de dados da luta pela terra – 2009. Presidente Prudente:
Nera, 2010.
PALACIOS, G. Campesinato e escravidão: uma proposta de periodização para a his-
tória dos cultivadores pobres livres no Nordeste oriental do Brasil (1700-1875).
In: WELCH, C. A. et al. (org.). Camponeses brasileiros: leituras e interpretações clássi-
cas. São Paulo: Editora da Unesp, 2009. p. 145-178.
PALMEIRA, M. Modernização, Estado e questão agrária. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 3, n. 7, p. 87-108, 1989.
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nia echinata (Brazilwood) in Sixteenth and Seventeenth-Century Maps. Anais da
Academia Brasileira de Ciências, v. 79, n. 4, p. 751-765, 2007.

150
Conhecimento

C
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da Unicamp, 1996.
WELCH, C. A. A semente foi plantada: as raízes paulistas do movimento camponês,
1924-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
______. Movimentos sociais no campo: a literatura sobre as lutas e resistências
dos trabalhadores rurais do século XX. Revista Lutas e Resistências, Londrina, n. 1,
p. 60-75, set. 2006.

CONHECIMENTO
Márcio Rolo
Marise Ramos

O termo conhecimento, derivado cimento, como no verbo “reconhecer”.


do latim cognoscere, possui várias acep- A afirmação: “Não o reconheci quando
ções. Ele pode significar: a) uma sim- você passou por mim na rua” compar-
ples “informação” ou a “ciência” de tilha da acepção “a”;; já a afirmação: “Eu
algo ou de um fato particular, como reconheci o meu erro” se reporta ao sen-
em: “Eu não tinha conhecimento deste tido de “e”, na medida em que se refere
fato até que ela me falou”;; b) “discerni- ao ato de apreensão das inter-relações
mento”, “critério”, “distinção”, como cognitivas de um objeto.
em: “Conheço se um quadro é de Van Percebe-se, então, como as diver-
Gogh pelos seus tons de amarelo”;; sas acepções da palavra conhecimento
c) “experiência”, como em: “Como jor- apresentam como critério de sua estru-
nalista, ele conheceu o melhor e o pior turação uma forma de relação que o co-
dos mundos”;; e e) um objeto apropria- nhecimento mantém com o seu objeto.
do pelo pensamento por meio de um Essa relação pode ser tanto imediata e
processo sistematicamente elaborado direta – como é o caso do seu sentido
no qual os passos pelos quais se chega de “notícia” ou “experiência” – quanto
ao resultado fazem parte de sua estru- mediada e processual – como é o caso
tura, como em: “O conhecimento bio- do seu sentido “científico” ou “artís-
lógico representará para o século XXI tico”. Essa última relação se repor-
o que a física-matemática representou ta a um universo bem mais amplo de
para o século XX”. questões, na medida em que se refere
Uma afirmação como: “Não conheço ao conhecimento como uma sequência
pessoalmente as pessoas que fazem parte aberta de operações, um processo per-
da comissão, mas conheço muito a res- manente de construção, um devir.
peito delas” contrasta a acepção “a” com Eis por que se pode falar de dife-
a acepção “e”. Esses sentidos podem ser rentes tipos de saber ou de conheci-
apreendidos também em algumas for- mento: conhecimento sensível, intui-
mas verbais derivadas do termo conhe- tivo, afetivo;; conhecimento intelectual,

151
Dicionário da Educação do Campo

lógico, racional;; conhecimento artísti- o façam é preciso, antes, um esforço do


co, estético;; conhecimento axiológico;; pensamento de descobrir as suas estru-
conhecimento religioso;; e, mesmo, turas e as suas leis de funcionamento.
conhecimento prático e conhecimento Esse esforço implica simultaneamente
teórico (Saviani, 2005, p. 7). Isso nos o surgimento da compreensão concei-
permite dizer que as formas como o tual dos fenômenos e sua expressão
ser humano apreende o real são varia- adequada por meio de uma linguagem.
das, incluindo tanto os aspectos de co- O descompasso entre o que se apre-
nhecimento das propriedades do mun- senta aos sentidos humanos na forma
do real (ciência) quanto também os de de aparência e as estruturas ou leis que
valorização (ética) e de simbolização presidem e explicam os fenômenos faz
(arte) desse mundo. surgir a relação sujeito–objeto.
Mesmo a aproximação das pro- Ora, uma vez que o conhecimento
priedades do mundo real não ocorre não é imediato, caberia perguntar pela
de uma única forma. Ela pode se dar, natureza desse termo lógico – a media-
inicialmente, como uma aproximação ção – que se coloca entre o sujeito e
sensível, nos limites da aparência das o objeto do conhecimento, estabele-
coisas, produzindo o conhecimento cendo a relação entre eles. A consciên-
cotidiano. Uma investigação metódica cia filosófica cheia de contradições
e sistematizada, por sua vez, é típica da dos últimos 25 séculos esteve dividida
produção do conhecimento científico. acerca desse problema. A exigência de
Mesmo essa, dependendo da concep- definir, ou mesmo superar, a oposição
ção de mundo e de “verdade”, pode sujeito–objeto acha-se no fundamento
ser orientada por distintas referências da filosofia ocidental, e a aventura de
teórico-metodológicas, levando-nos a percorrê-la desde a Antiguidade grega,
ter como questão o quanto determina- passando por Parmênides, Heráclito,
do conhecimento, considerado como Platão, Aristóteles, bem como por
“científico”, resultou da aplicação cor- Tomás de Aquino, Descartes, Kant,
reta de um método, isto é, o quanto ele Nietzsche e Hegel, leva-nos a perce-
corresponde às determinações concre- ber os pontos de vista contraditórios
tas de um objeto. assumidos por cada um desses autores
Com efeito, a pergunta “o que é o para pensar essa relação. Por vezes, a
conhecimento” não teria importância natureza processual do conhecimento
significativa se as coisas se apresen- é atribuída a uma limitação que reside
tassem para os nossos sentidos e para no objeto do conhecimento: uma vez
o nosso pensamento “tais como elas que cada coisa ou processo modifica-
são” – isto é, de um modo imediato se no tempo, os juízos sobre a reali-
e manifesto. Se assim fosse, bastaria dade têm um prazo de validade limi-
descrever do modo mais objetivo pos- tado pela própria natureza do objeto.
sível o que vemos, o que ouvimos ou Outras vezes essa limitação é atribuída
sentimos – e teríamos todos a mesma ao sujeito cognoscitivo: nesse caso, o
consideração a respeito das coisas do conhecimento não seria determinado
mundo. O modo como as coisas são apenas pelo objeto, mas também pelas
em sua essência não se manifesta ime- particularidades individuais ou cultu-
diatamente ao homem, e para que elas rais do homem. As formas com que as

152
Conhecimento

C
opiniões subjetivas se destacam ou se no de modo adequado” (Marx, 2008a,
agregam irremediavelmente à objetivi- p. 128).
dade passam a ser um problema teóri- As considerações de Marx se re-
co de grande complexidade. portam à determinada abertura que
Marx – um dos pensadores moder- permite instalar o conhecimento como
nos que se dedicaram a compreender processo. Sem jamais duvidar da in-
como as coisas podem ser conhecidas dependência que o mundo material
para que possam ser transformadas – tem em relação ao homem, ele chama
afirmou que toda ciência seria supérflua a atenção, entretanto, para o aspecto
se a forma de aparecimento (forma fe- sempre problemático e criador que ca-
nomênica) e a essência das coisas ime- racteriza o método por meio do qual o
diatamente coincidissem. Há, segundo conhecimento nasce e se estabiliza no
ele, um descompasso entre o que perce- interior de uma formação social.
bemos com os nossos sentidos e aquilo Vale a pena nos deter na relação aci-
que as coisas são quando explicadas me- ma mencionada: a relação entre método
diante categorias científicas. Esse des- de conhecimento e sociedade. Em um de
compasso se evidencia, por exemplo, no seus primeiros livros, os Manuscritos
campo da economia política. A forma econômico-filosóficos, Marx relacionou os
acabada das relações econômicas – tal sentidos humanos – segundo ele, a
como elas se mostram em sua superfí- base de toda ciência – com o conjunto
cie, em sua existência real – é bastante das relações sociais nas quais os ho-
diferente e, de fato, contrária ao conceito mens vivem e se formam, mostrando
que corresponde a ela. que o trabalho, a cultura, a linguagem,
Pode-se ver a não imediaticidade em suma, a história do homem, são
entre essência e fenômeno em diver- uma condição inerente ao modo como
sos campos do conhecimento. No livro se engendram os sentidos humanos e,
Contribuição à crítica da economia política, por conseguinte, o conhecimento. Para
Marx desenvolve uma densa reflexão Marx, os homens se “efetivam” objeti-
sobre o descompasso entre o modo vamente no mundo não somente por
com a mercadoria se apresenta aos ho- meio do pensamento, mas também pe-
mens – aparentemente como uma coi- los sentidos, e a formação desses sen-
sa sem relação com os homens – e o tidos não é senão um processo social:
que ela é na verdade, isto é, uma relação “A formação dos cinco sentidos é um
entre os homens. Esse descompasso trabalho de toda a história do mundo
entre os sentidos e as categorias cien- até aqui” (Marx, 2008b, p. 110).
tíficas pode evidenciar-se, igualmente, É preciso abandonar o ponto de
no âmbito das ciências da natureza. De vista a partir do qual as coisas são da-
acordo com Marx, a verdade científica das como imediatas, para descobri-las
é sempre um paradoxo se julgada pela em seu condicionamento histórico.
experiência cotidiana (a lua não pare- Apoiado na noção de que a consciência
ce mover-se no céu segundo um mo- humana só nasce mediante outra cons-
vimento para nós inteiramente falso?) ciência, Marx dirá que o sensível é tanto
e, por isso, ele dirá: “a natureza não uma forma social definida pela práxis hu-
está, nem objetiva nem subjetivamente, mana – isto é, pela ação transformado-
imediatamente disponível ao ser huma- ra do homem – quanto um objeto social

153
Dicionário da Educação do Campo

apreendido – isto é, um objeto construído no decurso de um processo, a concep-


na coletividade humana e apropriado ção marxista de conhecimento se opõe
individualmente por cada homem. ao positivismo, uma concepção de co-
Não há, pois, um conhecimento nhecimento que preconiza uma relação
a-histórico, um conhecimento das coi- direta e sem mediações entre essência e
sas definitivo e elaborado a partir de fenômeno. A concepção positivista de
categorias não humanas, atemporais. conhecimento nasceu no século XVIII
Todo fenômeno se exterioriza num como uma utopia crítico-revolucionária
campo de sociabilidade, e ele nada é da burguesia antiabsolutista, para tor-
para-o-homem fora das determinações nar-se, no decorrer do século XIX até
dadas por esse campo. As formas como os nossos dias, uma ideologia conser-
essa atividade se realiza, Marx as enten- vadora identificada com a ordem in-
de por efetivação humana. O homem efeti- dustrial burguesa. Ela acha-se fundada
va sua humanidade quando contempla- no seguinte conjunto de pressupostos
se a si mesmo no mundo criado por epistemológicos: 1) crença na neutra-
ele. Esse mundo pode ser o da arte, da lidade científica;; 2) existência de um
ciência, da religião. método universal de conhecimento,
Percebe-se como a filosofia mar- 3) crença numa objetividade científica
xista, recusando os pressupostos das a-histórica;; 4) fetichização das catego-
filosofias “intuicionistas”, para quem a rias científicas isoladas, pensadas fora
intuição é meramente um “encontro” de uma totalidade;; 5) crença num cogi-
da sensibilidade com o objeto a ser to cartesiano, isto é, num EU fechado
apreendido, postula uma nova forma em si mesmo e independente do mun-
de conceber o sujeito na sua relação do;; e 6) conceito de natureza abstraído
com o dado sensível. Aqui, o conceito de toda relação humana.
de “dado” é esvaziado de seu sentido Ora, uma vez que, para Marx, a for-
filosófico tradicional, como aquilo que mação dos sentidos mediante os quais
é fornecido imediatamente a um sujeito apreendemos as relações entre as coisas
considerado um espectador imparcial “é um trabalho de toda a história”, per-
do processo de construção do conhe- cebe-se como, mais do que meramente
cimento, para assumir um sentido de “condicionado pelas relações sociais”,
trabalho, de mediação, de inventividade o conhecimento é, em si, uma relação so-
dos meios de se fazer “coincidir teo- cial. Através dos sentidos humanos, os
ricamente” o fenômeno e a aparência. determinantes essenciais do processo
O método por meio do qual se elabora histórico penetram o conhecimento em
o conhecimento é uma “relação aber- seu núcleo mais íntimo, moldando-o
ta”, engajada num campo de sociabi- segundo as características de uma dada
lidade que se efetiva mediante a ativi- formação social.
dade humana. Por conta desta abertura Por isso, o conhecimento que temos
Marx dirá que “o sentido de um ob- do real não é propriamente de coisas,
jeto para mim vai precisamente tão entidades, seres etc., mas sim de rela-
longe quanto vai o meu sentido” ções que a investigação trata de desco-
(Marx, 2008b, p. 110). brir, determinar, apreender no plano do
Ao afirmar que o dado científico pensamento. Apreender e determinar
nunca é imediato, mas que ele só ocorre essas relações exige um método que

154
Conhecimento

C
parte do que é dado imediatamente, da tem por base o materialismo histórico-
forma como a realidade se manifesta – dialético, a saber, a relação constituti-
o concreto empírico –, e, mediante uma va, necessária, entre as formas concretas de
determinação mais precisa através da existência de uma sociedade e as formas de
análise, chega a relações gerais que são consciência social que essa sociedade produz.
determinantes da realidade concreta. A forma como os homens trabalham e
Essas relações gerais constituem a sín- produzem suas condições de existên-
tese, isto é, a forma geral do conceito cia material determina a forma como
que reúne o conjunto de propriedades eles pensam, sentem e representam o
reveladas pela análise, e que represen- mundo em que vivem. O conjunto das
ta “com a maior fidelidade possível” o relações de produção constitui a estru-
concreto do qual se partiu. “O método tura econômica da sociedade, a base
que consiste em elevar-se do abstrato concreta sobre a qual se eleva uma su-
ao concreto não é senão a maneira de perestrutura jurídica e política e à qual
proceder do pensamento para se apro- correspondem determinadas formas
priar do concreto, para reproduzi-lo de consciência social.
como concreto pensado” (Marx, 1978, Todo conhecimento traz inscrito
p. 117). São as apreensões assim elabo- no corpo de suas proposições as mar-
radas e formalizadas que constituem a cas da história a quem ele deve sua
teoria e os conceitos. A ciência é a par- gênese, e essa história, sabe-se, gira
te do conhecimento expresso na forma essencialmente em torno dos diversos
de conceitos representativos das rela- modos que o homem cria para suprir
ções determinadas e apreendidas da rea- as suas condições materiais de vida. O
lidade considerada. O conhecimento trabalho é um aspecto estruturante da
de uma seção da realidade concreta, ou vida humana, sem ele não há vida hu-
a realidade concreta tematizada, consti- mana, e por isso não se pode pensar o
tui os campos da ciência. conhecimento, a linguagem, os concei-
Colocado nessa perspectiva, o co- tos independentemente dele.
nhecimento do real é tanto histórico Com isso, torna-se claro que o co-
quanto dialético, uma vez que as mo- nhecimento é parte constituinte do tra-
tivações e as formas de se conhecer balho, ele é a dimensão refletida da ex-
são orientadas historicamente pelos periência que o homem faz da natureza,
problemas que a humanidade se coloca autonomizando-se gradativamente, à
e pelas delimitações e contornos teóri- medida que ganha aspectos de genera-
cos, metodológicos e políticos que as lização. Ora, conquanto tenha ter por
relações sociais de produção impõem base o conjunto das relações de pro-
ao processo de produção do conheci- dução, a consciência não mantém com
mento. Por essa razão, nenhum conhe- elas, entretanto, uma relação imediata,
cimento é neutro, absoluto ou estático, mas pode vir a assumir a forma de di-
podendo vir a ser superado pelo mo- versas mediações. “A consciência” –
vimento histórico e contraditório do diz Luckács – “se torna certamente
real, que contempla superações e re- sempre mais difusa, sempre mais au-
construções de tais limites. tônoma, e no entanto continua ineli-
Chegamos assim ao aspecto cen- minavelmente, embora através de mui-
tral da definição de conhecimento que tas mediações, em última análise, um

155
Dicionário da Educação do Campo

instrumento da reprodução do ho- dominante, não nos permitindo colo-


mem” (1972, p. 27). car outros problemas – cujo enfrenta-
As mediações entre o trabalho e o mento é de interesse da classe domina-
conhecimento se desdobram na história da – como prioritários para a ciência.
em relações que vão afetar tanto o sujei- A ciência acha-se na origem dessa força
to quanto o objeto: “O olho se tornou essencial estranha que a classe dominante
olho humano, da mesma forma como o procura criar “sobre o outro”, na me-
seu objeto se tornou um objeto social, dida em que concorre para transformar
humano, proveniente do homem para o as práticas produtivas que favorecem
homem. Por isto, imediatamente em sua a expansão do valor de uso em cone-
práxis, os sentidos se tornaram teoréticos” xão com a expansão do valor de troca.
(Marx, 2008b, p. 110;; grifos do origi- Ciência e capital se relacionam pela via da
nal). O homem engendra o seu objeto fruição do artefato tecnológico disposto
de conhecimento tanto quanto o ob- na forma-mercadoria mediante um pro-
jeto do conhecimento, historicamente cesso no qual as faculdades humanas
constituído, engendra o homem. vão sendo constrangidas, pela criação
Destaquemos esse último aspecto: permanente de novas necessidades.
o conhecimento percorre uma trajetó- Poderíamos aqui multiplicar indefi-
ria que vai do homem para o homem. nidamente a lista de exemplos em que
Sujeito e objeto não existem um para a ciência, a serviço da reprodução am-
o outro em si e fora da história, mas pliada do capital, é “fabricada” contra
cada um deles somente existe median- os interesses universais humanos. É o
te o outro, num processo dialético de caso, por exemplo, das doenças negligen-
continuidades e rupturas. Se o sujeito ciadas, o conjunto das doenças que, por
é o objeto do conhecimento mediatiza- afetarem as populações mais pobres,
do, o objeto é, por sua vez, o sujeito do não constituem um mercado lucrativo
conhecimento mediatizado. para a indústria farmacêutica – e por
Devemos, pois, a partir dessa base isso suas formas de tratamento não são
mais geral de sua definição, interrogar investigadas pela ciência. É o caso tam-
como o conhecimento vem se consti- bém da ciência transgênica: prometendo
tuindo na sociedade moderna e contem- eliminar a fome por meio do aumento
porânea. Ora, uma vez que o conheci- da produtividade das colheitas, o agro-
mento acha-se condicionado em última negócio nada mais faz do que acentuar
instância pelo trabalho, e na medida a colonização pelo capital daqueles se-
em que este, na sociedade capitalista, tores do campo relativamente infensos
tornou-se alienado em relação ao ho- a ele. Por fim, poder-se-ia falar do caso
mem ao assumir a forma-mercadoria, o da energia atômica, uma matriz energé-
conhecimento produzido pelo homem tica extremamente interessante para
contemporâneo é também um conhe- o capital, mas de efeitos devastadores
cimento alienado, ele se volta contra o para a humanidade.
homem, acirrando ainda mais as contra- As considerações de Marx sobre a
dições do capital. ciência se erigem, pois, em torno dessa
Inserido no quadro de interesses contradição constitutiva entre os dois
do capital, o conhecimento científico é modos de exteriorização do conheci-
determinado pelos interesses da classe mento: entre o que ele é, por um lado,

156
Conhecimento

C
como potência construtiva na sua for- as relações de produção (a propriedade
ma universal – o conhecimento é uma privada, na sua forma universal, ganha
força universalizante e um local de a forma de propriedade coletiva) etc. –,
confirmação das forças essenciais hu- o que somente acontecerá na sociedade
manas – e, por outro, entre o que ele é sem classes.
em ato, isto é, uma sequência dos vá- A ciência entra, pois, no projeto
rios momentos particularizados que ele societário de Marx como uma media-
assume como resultado das formas de ção fundamental da formação social
existência. A ciência tal como é prati- capitalista, como uma das instâncias
cada no capitalismo é somente um mo- mais relevantes de extração de mais-
mento particular do conhecimento, um valia, e daí advém a cuidadosa explici-
momento no qual ele se constitui como tação analítica empreendida por ele no
uma força que se opõe ao homem. decorrer de sua obra, examinando-a,
É possível ver o movimento dialéti- metodicamente, nas suas relações con-
co que caracteriza as funções sociais da cretas e contraditórias com o capital e
ciência na história. De início, a ciência o trabalho, com a questão da proprie-
desempenhou uma importante fun- dade privada, da tecnologia, da sensibi-
ção civilizatória, quando se contrapôs lidade humana e da formação humana,
à realidade socioeconômica do mundo ou seja, com todas as instâncias consti-
feudal – daí o papel revolucionário que tutivas da totalidade social.
cumpriram pensadores como Giordano De acordo com a lição de Marx,
Bruno, Descartes, Galileu, dentre mui- para que o homem possa realizar todo
tos outros, ao se posicionarem contra o seu potencial emancipatório de vida
o dogmatismo obscurantista da Igreja é preciso que ele liberte, antes, todas
Católica –, mas veio a se tornar, no interior as instâncias sociais, a ciência entre
da dinâmica histórica, um dos elemen- elas, da força destrutiva do capital – o
tos centrais de reprodução do sociome- que só poderá ser feito pela classe dos que
tabolismo do capital (Mészáros, 1981). vivem do trabalho. “A suprassunção
Hoje, indubitavelmente, o capital preci- da propriedade privada”, afirma Marx,
sa da ciência para a sua reprodução. “é a emancipação completa de todas
A verdade científica, do ponto de as qualidades e sentidos humanos”
vista dialético, é sempre contraditória, (2008b, p. 109).
e Marx não se cansa de sublinhar que A aceitação irrefletida, por parte
precisamente as forças que hoje cons- da classe dominada, das relações so-
trangem a ciência em seu papel huma- ciais que subordinam o conhecimento
nístico podem vir a ser uma platafor- científico à hegemonia ideológica da
ma para a construção de um espaço de classe dominante resulta de uma forma
conhecimento baseado em trocas múl- de consciência “passiva e impotente”.
tiplas, multilaterais e solidárias. Daí a Desconstruir o movimento histórico
asserção marxista de que a ciência deve que deu origem a essa forma de cons-
ser tensionada rumo ao desenvolvi- ciência exige a compreensão de que a
mento da sua forma universal – a ciên- realidade humano-social não se reduz
cia se universalizará na medida mesmo à forma reificada que assumiu na so-
em que também se universalizem o tra- ciedade contemporânea, mas que ela
balho, as forças produtivas, a riqueza, pode ser “reinventada” segundo uma

157
Dicionário da Educação do Campo

multiplicidade de possibilidades pela em meio às relações que a vinculam


práxis humana. Afinal, se é mesmo com o ambiente social, se diferencia
verdade – como afirmou Marx – que por um viés ético, pela criação de va-
o homem capta a realidade e dela se lores próprios e autônomos. Por isso,
apropria com sentidos que são, eles no sentido próprio da palavra, a arte é,
próprios, um produto histórico-social, ao mesmo tempo, desmistificadora e
então é preciso – é uma necessidade revolucionária, pois conduz o homem
ético-política – que ele procure as for- das suas representações e preconceitos
mas sociais de desenvolver os sentidos sobre a realidade até a própria realida-
humanos a fim de que os objetos, os de e à sua verdade. “Na arte autêntica
acontecimentos e os valores tenham e na autêntica filosofia revela-se a ver-
um sentido, para ele, real e universal. dade da história: aqui a humanidade se
Nessa perspectiva, compreendem- defronta com a sua própria realidade”
se os papéis que os diversos modos (Kosik, 1976, p. 117).
de conhecimento – a ciência, a arte e O conhecimento do real como to-
a filosofia – devem desempenhar num talidade constituída por relações, por-
projeto coletivo de libertação do ho- tanto, não se completa exclusivamente
mem. A ciência, de acordo com Kosik com a ciência, com a ética ou com a
(1976), é um meio pelo qual o homem estética. Nem se dá pela intuição ou
chega ao conhecimento de setores par- pelo relato objetivo sobre os fatos. Es-
ciais da realidade humano-social – um sas dimensões da práxis humana, con-
meio necessário, mas nem de longe o quanto se confrontam dialeticamente,
único. A ela devem juntar-se também a constituem as formas históricas de se
filosofia e a arte – dois outros “meios” apreender e (re)construir o mundo.
de que o homem dispõe para compre- Sob a perspectiva abordada, produ-
ender a realidade humana no seu conjunto zir conhecimento em educação implica
e para descobrir a verdade da realidade buscar compreender a história da for-
na sua autenticidade. mação e da (de)formação humanas por
A prevalência da arte num proje- meio do desenvolvimento material, da
to de reconstrução do conhecimento determinação das condições materiais
é explicada pelas próprias caracte- da existência humana;; apreender as de-
rísticas que a distinguem das outras terminações dos processos de emanci-
formas de conhecimento. Embora as pação e de alienação da classe trabalha-
interpretações mecanicistas quisessem dora configuradas nas relações sociais
ver nela tão somente “uma reação dos de produção, tendo o trabalho como a
homens às condições dadas” ou uma mediação fundamental em sua relação
mera “expressão histórica da realidade com a ciência e com a cultura.
social” – reduzindo assim o seu alcan- O conhecimento produzido na,
ce e a sua função –, a arte é, pelo con- pela e para a educação contribui, nesse
trário, uma forma de conhecimento sentido, para que o trabalho educativo
que detém uma positividade própria: produza, direta e intencionalmente, em
mais do que apenas uma intuição ou cada indivíduo singular, a humanida-
uma expressão, ela é um fazer que en- de que é produzida histórica e coleti-
frenta os problemas de sua própria vamente pelo conjunto dos homens
materialidade. É por conta desse âm- (Saviani, 2005). Para isso, a apreensão
bito próprio de jurisdição que a arte, dos elementos econômicos, históricos

158
Cooperação Agrícola

e culturais das relações humanas e so- de conhecimento a que nos referimos.


C
ciais, assim como dos elementos cien- Em confronto com o senso comum,
tíficos e tecnológicos da produção e da eles devem ajudar a superá-lo dialeti-
vida contemporânea, compreendidos camente, isto é, incorporando os ele-
em sua historicidade, são objetos tan- mentos virtuosos da experiência e do
to para a pesquisa em educação quanto cotidiano no processo de elaboração
para o ensino. Como objetos de ensino, do pensamento e de elevação cultural,
por sua vez, esses conhecimentos pre- intelectual e moral das massas. De ou-
cisam ser assimilados pelos indivíduos tro lado, e concomitantemente, estão
a fim de que eles desenvolvam seus as formas mais adequadas para atingir
sentidos de apreensão do real. Tais esse objetivo, ou seja, os métodos de
elementos se reúnem nos campos das conhecer e de ensinar. O trabalho edu-
ciências, da natureza e da sociedade, cativo fecundo constitui essa unidade
da ética e da estética, como universos de conteúdo e método.

Para saber mais


HORKHEIMER, M. Teoria crítica I. São Paulo: Perspectiva, 2006.
KOSIK, K. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
LUKÁCS, G. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1972.
______. Per uma ontologia dell’essere sociale. Roma: Riuniti, 1981. Cap. 1.
MARX, K. A ideologia alemã. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1991.
______. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular,
2008a.
______. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. São Paulo: Boitempo, 2008b.
______. O capital. São Paulo: Abril, 1988. Livro 1, v. 1.
______. Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
p. 103-132.
MÉSZÁROS, I. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2005.
C

COOPERAÇÃO AGRÍCOLA
Pedro Ivan Christoffoli

Cooperação é “a forma de trabalho 1988, p. 246). A aplicação da coopera-


em que muitos trabalham planejada- ção ao processo de trabalho permite:
mente lado a lado, no mesmo processo a) um encurtamento do tempo ne-
de produção ou em processos de pro- cessário à produção de determinado
dução diferentes, mas conexos (Marx, produto, isto é, confeccionam-se mais

159
Dicionário da Educação do Campo

produtos em menos tempo, pois é pos- lho social gerado é sempre maior que
sível distribuir as diversas operações a soma de todos os trabalhos indivi-
entre diversos trabalhadores e, por con- duais. “Quando o trabalhador coopera
seguinte, executá-las simultaneamente, sistematicamente com outros, livra-se
reduzindo o tempo necessário para dos grilhões de sua individualidade e
a produção do produto total;; b) uma desenvolve as possibilidades de sua
extensão do espaço em que se pode espécie” (Marx apud Bottomore,
realizar o trabalho;; c) um aumento da 1993, p. 80).
produção num menor tempo e espaço O capitalismo, como modo de
de ação (no caso da agricultura). Nesse produção, desenvolve a cooperação
caso, a brevidade do prazo em que se
em grau amplo e avançado por toda a
executa o trabalho é compensada pela
sociedade. Para isso é necessário que
magnitude da massa de trabalho lança-
o capitalista detenha grande concen-
da, no momento decisivo, ao campo de
tração de meios de produção em suas
produção – por exemplo, na colheita
mãos (capital fixo). Nesse contexto, é o
ou numa roçada (Marx, 1988).
capital que mantém e estimula a coo-
A cooperação baseia-se no princípio peração, posto que os trabalhadores
elementar de que a junção dos esforços encontram-se numa posição passiva:
individuais cria uma força produtiva são considerados mercadorias pelo
superior à simples soma das unidades fato de venderem sua força de trabalho
que a integram. Cria-se a força coletiva ao capitalista.
do trabalho. Segundo Marx,
Embora também tenha existido nos
[...] a soma mecânica das forças modos de produção anteriores ao capi-
de trabalhadores individuais di- talismo, só nesse modo de produção a
fere da potência social de forças cooperação é sistematicamente explo-
que se desenvolve quando mui- rada e transformada em necessidade
tas mãos agem simultaneamen- objetiva para o capital. A busca por
te na mesma operação indivisa. maximização da exploração do traba-
[...] O efeito do trabalho com- lho cooperado é que vai dar origem à
binado não poderia neste caso administração tipicamente capitalis-
ser produzido ao todo pelo tra- ta de empresas, que visa disciplinar e
balho individual ou apenas em extrair conhecimento dos trabalhado-
períodos de tempo muito mais res em prol da valorização do capital
longos ou somente em ínfima (Bottomore, 1993).
escala. Não se trata aqui apenas A autogestão socialista é uma das
do aumento da força produtiva formas mais avançadas de cooperação.
individual por meio da coope- Refere-se à condição de autogoverno
ração, mas da criação de uma for- dos trabalhadores em relação ao seu
ça produtiva que tem de ser, em trabalho e às suas condições de vida.
si e para si, uma força de massas. A autogestão pode se dar no nível da
(Marx, 1988 p. 246-247) empresa, de empresas de um mesmo
ramo, ou do conjunto das empresas e
O ser humano, na cooperação, da vida (da comunidade, da região, do
como resultado do contato social, su- país, internacional). Os domínios de
pera seus limites pessoais, e o traba- decisão numa organização autogestio-

160
Cooperação Agrícola

C
nária podem envolver: a) o domínio aplicar esse princípio. Em alguns
da organização do trabalho – delimita- países, levava-se em consideração,
ção das tarefas e das funções, ritmo de além do tempo de trabalho, a quali-
trabalho, chefias etc.;; b) o domínio do ficação do trabalhador e da função
pessoal – carreira profissional, promo- e a dificuldade do trabalho.
ções, demissões etc.;; c) a gestão comer- 4) A organização do trabalho se dava
cial e financeira;; d) os meios tecnoló- por meio de equipes semiautôno-
gicos de produção;; e e) a organização mas de trabalho (nas cooperativas
geral da empresa – estrutura, direção maiores) ou por setores especializa-
etc. (Chauvey, 1975). dos de trabalho (nas cooperativas
Nos países do antigo Bloco Socialista menores).
(Cuba, Leste Europeu e parte da Ásia), as 5) As instâncias diretivas da cooperativa
cooperativas coletivas de trabalhadores em geral eram compostas por uma
rurais receberam uma série de condições assembleia geral, que era a instância
favoráveis e estímulos para seu estabele- máxima de decisão, e por diretorias
cimento e desenvolvimento e responde- eleitas pelos associados, com prazo de
ram pela geração dos principais exceden- mandato variável e podendo ou não
tes agrícolas destinados ao abastecimento se reeleger – a reeleição era vetada na
do mercado interno. De maneira geral, Iugoslávia (Flavien e Lajoinie, 1977).
essas cooperativas coletivas apresenta- Lenin, ao liderar a experiência de
vam as seguintes características: construção socialista na Rússia, iden-
1) O agricultor entrava com a terra e tificou alguns elementos-chave que
os meios de produção e a coopera- constituiriam os princípios para o es-
tiva o reembolsava gradualmente tímulo à cooperação na agricultura:
por esses bens, seja mediante a • respeito absoluto à voluntariedade
compra dos mesmos, seja pela des- do camponês – não permitir ne-
tinação de uma proporção da renda nhum tipo de coação;;
distribuída para os cooperantes
• necessidade de um paciente e pro-
que ingressaram com a terra (essa
longado trabalho de persuasão e
proporção variou entre 40% e 20%
convencimento;;
da renda total distribuída entre os
• desenvolvimento gradual do mo-
cooperantes). Gradualmente esse
vimento cooperativo: das formas
percentual tendeu a ser reduzido e
simples às formas superiores e das
eliminado.
pequenas às grandes cooperativas;;
2) De forma geral, os agricultores
supostamente tinham livre escolha, • elevação constante do nível cul-
tanto para a entrada nas cooperativas tural do campesinato sem a qual é
quanto para a saída. Em alguns paí- impossível o domínio das técnicas
ses, esse preceito foi de fato exercido modernas;;
livremente, enquanto foi cerceado • absoluto cumprimento da demo-
em outros. cracia cooperativista: elegibilidade
3) A distribuição dos resultados era dos órgãos de direção, direito dos
feita basicamente em função do cooperativistas à crítica etc.;;
trabalho aportado pelo sócio. Havia • necessidade de ajuda material, técni-
algumas diferenças na forma de ca e financeira por parte do Estado;;

161
Dicionário da Educação do Campo

• subordinação dos interesses da agropecuárias são realizadas de forma


produção cooperativa aos interes- individual pelas famílias ali residentes.
ses gerais da economia nacional Em outras regiões do país, os “fundos
sem que isso implique administra- de pasto” ou “ter ras de santo” são
ção pelo Estado;; áreas de usufruto coletivo, porém sem
• necessidade de manter o vínculo que a exploração do trabalho se efetue
estreito entre a cooperativa e o de forma coletiva.
campesinato que a rodeia (Barrios, Ainda no meio rural, é tradicional o
1987 p. 5-6). desenvolvimento de formas mais em-
brionárias de cooperação, tais como os
No Brasil há poucos registros his-
mutirões, as trocas de dias de serviço,
tóricos com relatos e análises de expe-
as roças comunitárias. Essas formas de
riências coletivas/comunitárias de pro-
cooperação remontam aos tempos
dução. Os povos indígenas brasileiros
da colonização e se perpetuam até os
tradicionalmente desenvolveram uma
dias atuais. Elas têm origem nas práti-
economia organizada com base no
cas tradicionais dos primeiros colonos
modo de produção comunal primitivo, portugueses e também dos povos afri-
pautado principalmente na caça, na co- canos, que conformaram parte signifi-
leta de frutos e na agricultura rudimen- cativa do campesinato brasileiro. A par-
tar de subsistência. Posteriormente, tir dos anos 1950-1960, essas formas
sem mencionar as experiências desen- associativas primárias, como as trocas
volvidas pelos índios guaranis (nas re- de serviço, mutirões e roças comuni-
duções jesuíticas) e, possivelmente, as tárias, passaram a ser estimuladas tan-
experiências comunitárias nos quilom- to pelo Partido Comunista Brasileiro
bos (Palmares e outros, sendo muitos (PCB), como pelos setores progressistas
remanescentes até os dias atuais), há da Igreja Católica (Martins, 1984). Mais
poucos registros desse tipo de expe- recentemente, o Movimento dos Tra-
riências produtivas. balhadores Rurais Sem Terra (MST) e
Nos séculos XVIII e XIX surgiram outros movimentos sociais e sindicais –
algumas experiências localizadas de como o Movimento dos Pequenos
colônias coletivistas influenciadas pelo Agricultores (MPA), a Federação Na-
socialismo utópico europeu (Owen, cional dos Trabalhadores e Trabalha-
Fourier, Gide...). Pode-se destacar, no doras na Agricultura Familiar (Fetraf)
Paraná, a Colônia Tereza Cristina, de e a Confederação dos Trabalhadores
base cooperativa (1847) e, no municí- na Agricultura (Contag) – procuraram
pio de Palmeira, a organização, no ano organizar distintas formas de coopera-
de 1889, da Colônia Cecília, que sub- ção no meio rural, criando milhares de
sistiu até 1894 (Chacon, 1959). formas organizativas associativas dos
Também é digna de nota a existên- mais variados tipos: associações, coo-
cia de terras comunitárias denominadas perativas coletivas, cooperativas mistas
de “faxinais”, especialmente na região regionais e grupos de trabalho coletivo
Sul do Brasil. Os faxinais compõem-se e semicoletivo.
em geral de áreas de mata e pastagens A luta pela terra e pela Reforma
utilizadas de forma comunitária, forne- Agrária no Brasil resultou em acúmu-
cendo pastagem e madeira para uso dos los importantes em termos das formas
moradores. No entanto, as explorações de organização e princípios de funcio-

162
Cooperação Agrícola

C
namento das experiências de coope- nizações. Não está acima deles. A
ração, sintetizados pela Confederação cooperativa deve alinhar sua atua-
das Cooperativas de Reforma Agrária ção do dia a dia com os princípios
do Brasil (Concrab) (1997): e objetivos estratégicos da luta pela
Reforma Agrária.
• É fundamental desenvolver a coope- • O que determina o avanço da coope-
ração em suas mais diversas formas, ração são as condições objetivas
pois o importante não é a forma, e não apenas a vontade dos asso-
mas o ato de cooperar. A cooperativa ciados. A forma de cooperação a
é apenas uma dessas formas, e não ser adotada, bem como o grau de
deve ser a única a ser impulsionada. desenvolvimento que a mesma
• É preciso respeitar a voluntariedade pode alcançar dependem tanto
das pessoas, mas lembrar que “a ne- de condições objetivas (mercado,
cessidade comanda a vontade”. Ou meios de produção, capacitação e
seja, nem sempre os agricultores qualificação da força de trabalho
participam porque estão conscientes etc.) quanto de condições subje-
da necessidade de cooperação ou tivas (vontade das pessoas, seus
de seu papel estratégico, mas sim sonhos e projetos). A coopera-
porque estão necessitados. A ideia ção deve estimular o aumento da
é partir das necessidades objetivas produtividade do trabalho de seus
para ir construindo uma forma de associados, resguardados os as-
cooperação que dê conta dos pro- pectos de sustentabilidade e equi-
blemas e necessidades dos sócios e dade social.
avance em sua conscientização. • A cooperativa deve ser vista
• A cooperação deve ser um espaço como um instr umento de estabi-
de gestão democrática no qual os lização econômica, mas também
sócios possam exercer sua sobera- contribuir como instrumento de
nia. Cada experiência de cooperação transfor mação social.
deve definir espaços (instâncias) e • As atividades da cooperativa de-
formas que permitam, organiza- vem contribuir com a sustentabili-
damente, a participação de todos. dade ambiental e fomentar a pro-
A direção da cooperação deve ser teção da agrobiodiversidade e das
exercida por um coletivo de mili- sementes, como patrimônio dos
tantes, rompendo com a prática do povos a serviço da humanidade,
personalismo do poder. com a agroecologia como estraté-
• É fundamental desenvolver a inter- gia produtiva básica.
cooperação entre as diversas formas • A cooperação deve promover a
associativas existentes nos assenta- organicidade de base, mediante a
mentos, ou seja, as formas de coope- constituição de núcleos de associa-
ração também devem cooperar entre dos, viabilizando e estimulando a
si para terem mais força e maior ca- participação política das pessoas, a
pacidade de enfrentamento da con- conscientização e a superação das
corrência capitalista e de criação de desigualdades sociais e econômicas.
riqueza sob a forma associativa.
• O econômico deve estar ligado aos No meio rural brasileiro, e em par-
objetivos estratégicos das orga- ticular nos assentamentos, desenvol-

163
Dicionário da Educação do Campo

veram-se diversas formas de coope- assistência técnica e à prestação de ser-


ração a partir da experiência concreta viços de máquinas (tratores, transporte
dos trabalhadores e suas organizações. etc.) e de organização da produção (de-
Vamos elencar as principais delas e finição da estratégia de desenvolvimen-
suas características. to da região, linhas de produção etc.).
Podem também, observadas as condi-
ções objetivas, desenvolver a agroindús-
Associações sem fins lucrativos tria para agregação de valor à produção
Essa é a forma organizativa mais dos associados. Podem ter abrangência
abundante no meio rural brasileiro e de atuação apenas dentro de um assen-
também nos assentamentos. Juridica- tamento, no âmbito de um município,
mente, a associação não pode desen- ou até mesmo envolver vários municí-
volver atividades econômicas, mas na pios e milhares de associados.
prática acaba exercendo esse papel, ao
menos nos estágios iniciais de organi- Cooperativas de produção coletiva
zação do processo de cooperação. Al-
gumas das principais vantagens da as-
(CPAs) e grupos coletivos
sociação sem fins lucrativos são a pouca Organizam o trabalho de seus as-
exigência burocrática para fundação e sociados de forma coletiva. Exigem
funcionamento;; o fato de os sócios não um grau mais elevado de organização
responderem com o seu patrimônio interna e de consciência de seus par-
caso a associação enfrente dificuldades ticipantes. A CPA é uma experiência
financeiras;; A grande flexibilidade que na qual os associados exercem a au-
permite uma ampla gama de arranjos togestão, no nível da unidade produ-
sociais e organizativos, além de, na tiva, de forma plena. O conteúdo e
prática, contemplar grande variedade o ritmo do trabalho, além da política
de atividades, desde as comunitárias e de redistribuição dos excedentes eco-
culturais/recreativas, até a representa- nômicos gerados são regulados pelas
ção política e a dinamização de ativida- decisões coletivas. Algumas das expe-
des econômicas. Dentre as atividades riências mais avançadas de coopera-
econômicas que essas associações de- ção existentes nos assentamentos se
senvolvem, podemos citar: associações organizam na forma de CPAs para a
para compartilhamento de máquinas produção agropecuária. Usualmente
(tratores, caminhões etc.), associações são cooperativas pequenas (as maio-
para venda da produção, realização de res chegam a ter pouco mais de 100
feiras livres e comercialização e indus- trabalhadores, mas, em média, não
trialização de produtos. passam de 30 a 40 associados), de
atuação local e em pequeno número
Cooperativas de comercialização nos assentamentos.
e prestação de serviços
Cooperativas de crédito
Dedicam-se basicamente à comer-
cialização (compra e venda de insumos As cooperativas de crédito são formas
e equipamentos, e venda da produção de cooperação que procuram viabilizar o
dos seus associados), à prestação de acesso ao crédito e a recursos públicos, e

164
Cooperação Agrícola

C
a mobilização de recursos locais em vis- coletivamente sua força de trabalho,
ta do apoio a atividades econômicas que de forma a prestar serviços técni-
promovam o desenvolvimento regional e cos, executar obras, produzir bens
a melhoria de condições de vida de seus etc., com autonomia e autogestão,
associados. A cooperativa de crédito fun- a fim de melhorar suas condições
ciona fortemente com base na confiança de vida e trabalho, dispensando a
de seus associados e, portanto, depende, intervenção de patrões ou empre-
além de uma adequada gestão de emprés- sários. Nos assentamentos, as co-
timos e cobranças, de solidez financeira operativas de trabalho técnico, que
e política. prestam serviços de assistência téc-
nica às famílias assentadas e às suas
Cooperativas de trabalho entidades, são as mais comuns. Le-
galmente, as CPAs também podem
As cooperativas de trabalho reú- ser caracterizadas como cooperati-
nem trabalhadores que organizam vas de trabalho.

Para saber mais


BARRIOS, A, M. (org.). Lenin: sobre la cooperación. Havana: Ministerio de la
Educación Popular, 1987.
BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
CHACON, V. Cooperativismo e comunitarismo. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de
Estudos Políticos, 1959.
CHAUVEY, D. O que é a autogestão. Lisboa: Edições 70, 1975.
CHRISTOFFOLI, P. I. O desenvolvimento de cooperativas de produção coletiva de trabalhado-
res rurais no capitalismo: limites e possibilidades. 2000. Dissertação (Mestrado em
Administração) – Faculdade de Administração, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2000.
CONFEDERAÇÃO DAS COOPERATIVAS DE REFORMA AGRÁRIA DO BRASIL (CONCRAB).
Sistema cooperativista dos assentados. Caderno de cooperação agrícola, São Paulo,
1997.
FLAVIEN, J; LAJOINIE, A. A agricultura nos países socialistas da Europa. Lisboa: Avante,
1977.
MARTINS, J. S. Prefácio. In: ESTERCI, N. (org.). Cooperativismo e coletivização no campo:
questões sobre a prática da igreja popular no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/
Iser, 1984.
MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988. V. 1.

165
Dicionário da Educação do Campo

CRÉDITO FUNDIÁRIO
João Márcio Mendes Pereira

No início dos anos 1990, o Banco desapropriação de propriedades rurais


Mundial (BM) passou a estimular inte- que não cumprem com a sua função
lectual e financeiramente a adoção de social –, alegando tratar-se de um mo-
políticas agrárias neoliberais – em par- delo conflitivo, discricionário, lento,
ticular na América Latina, em parte da centralizado, burocratizado, caro, inefi-
África e da Ásia e na ex-União Soviética – ciente e fracassado, visto que não teria
com o objetivo de mercantilizar o aces- aumentado a eficiência econômica nem
so à terra, acelerar a atração de capital reduzido a pobreza onde foi imple-
privado para o campo, aumentar a pro- mentado. Segundo o BM, a razão do
dutividade econômica e, assim, reduzir esgotamento do modelo residiria em
a pobreza rural. Tais políticas se con- seu caráter estatista, que teria substi-
centraram na promoção de relações tuído, em vez de dinamizar, os merca-
de arrendamento e de compra e venda de dos de terra. Por contraste, o futuro da
terras, bem como na privatização de pro- Reforma Agrária passaria pela adoção
priedades coletivas e estatais e na privati- de um novo enfoque, que fosse “ami-
zação de terras públicas e comunais. gável com o mercado”. Assim, o BM
Em países marcados por altos índi- trabalhou para que a RAM fosse aceita,
ces de concentração fundiária, tensões política e conceitualmente, como uma
sociais no campo e governos afinados modalidade de Reforma Agrária, ao
com o programa político neoliberal, o mesmo tempo em que negava a atua-
BM impulsionou a chamada “Refor- lidade da ação desapropriacionista e
ma Agrária de mercado” (RAM) como redistributiva do Estado.
mecanismo de novo tipo para mer- Esse modelo não é uma modali-
cantilizar o acesso à terra, aumentar a dade de Reforma Agrária redistributiva,
produtividade econômica na agricultu- pois tem como princípio a compra e a
ra e reduzir a pobreza rural. Iniciada venda voluntárias de terra entre agen-
em 1994 na Colômbia, a RAM assu- tes privados, acrescidas de uma parcela
miu diferentes formatos e foi adotada variável de subsídio para investimentos
nos anos seguintes em diversos paí- socioprodutivos. Já a Reforma Agrária
ses, como África do Sul, Guatemala, redistributiva consiste em uma ação do
Honduras, México, Maláui, El Salvador Estado que, num prazo relativamente
e Filipinas. No Brasil, a experiência curto, redistribui uma quantidade sig-
teve início em 1997. nificativa de terras privadas monopo-
Para legitimar a RAM, o BM pro- lizadas por grandes proprietários. Seu
cedeu a uma crítica radical ao que ele objetivo é democratizar a estrutura
mesmo denominou de Reforma Agrá- agrária, o que pressupõe transformar
ria “tradicional” ou “conduzida pelo as relações de poder econômico e po-
Estado” – baseada no instrumento da lítico responsáveis pela reprodução da

166
Crédito Fundiário

C
concentração fundiária. Como política ma Agrária” era pensada sem qualquer
redistributiva, implica, antes de tudo, a relação com a transformação da estru-
desapropriação “punitiva” (isto é, me- tura fundiária brasileira, a democratiza-
diante indenização abaixo do preço de ção do poder político, o crescimento da
mercado ou sem indenização) de terras produção agrícola e a mudança do mo-
privadas que não cumprem a sua fun- delo de desenvolvimento econômico,
ção social. entendida como a ampliação e o fortale-
Como mostra a experiência histó- cimento do mercado interno de massas
rica e vem sendo insistentemente rei- e a redistribuição substantiva de renda e
terado pelos movimentos camponeses riqueza. Tratava-se, tão somente, da
contemporâneos de todo o mundo, realização pontual e dispersa de assen-
a Reforma Agrária precisa vir acom- tamentos de trabalhadores sem-terra a
panhada de um conjunto de políticas fim de aliviar a pobreza rural. Não por
complementares nas áreas de infraes- acaso, quando teve início o primeiro go-
trutura, educação, saúde e transporte, verno de Fernando Henrique Cardoso
bem como de uma política agrícola (FHC), o programa de Reforma Agrária
que favoreça o campesinato, baseada foi vinculado ao programa Comunidade
na oferta pública de crédito, assistência Solidária, de caráter assistencialista.
técnica e acesso a mercados. Em outras Apesar das orientações minimalis-
palavras, seu objetivo central é redis- tas do Governo FHC, o tema da Re-
tribuir terras e garantir as condições forma Agrária retornou à agenda po-
de reprodução social do campesinato, lítica nacional pela confluência de um
atacando as relações de poder na socie- conjunto de pressões e acontecimentos
dade que privilegiam os grandes pro- desencadeados no biênio 1996-1997.
prietários – que podem ser, inclusive, Desses, foram fundamentais: a) a enor-
grandes empresas e bancos (nacionais
me repercussão internacional que tive-
ou estrangeiros). Por tudo isso, a Re-
ram os massacres de trabalhadores ru-
forma Agrária exige o fortalecimento
rais em Corumbiara (Rondônia, agosto
do papel do Estado na provisão de
de 1996) e, sobretudo, em Eldorado
bens e serviços públicos essenciais à
dos Carajás (Pará, abril de 1996);; b) o
melhoria das condições de vida dos
aumento em praticamente todo o país
camponeses assentados e ao desempe-
das ocupações de terra organizadas
nho econômico do setor reformado.
pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) e, em alguns
A implantação da estados, por sindicatos e federações
Reforma Agrária de ligados à Confederação Nacional dos
mercado no Brasil Trabalhadores na Agricultura (Contag);;
c) a tensão social crescente no Pontal
O programa do Partido da Social do Paranapanema (São Paulo) em vir-
Democracia Brasileira (PSDB) apresen- tude do aumento das ocupações de
tado na campanha eleitoral de 1994 re- terra e da violência paramilitar pratica-
conhecia a necessidade de mudanças em da por latifundiários;; d) a Marcha Na-
favor da desconcentração da proprieda- cional por Reforma Agrária, Emprego
de da terra e do fortalecimento da agri- e Justiça, organizada pelo MST, que
cultura familiar. No entanto, a “Refor- chegou a Brasília em abril de 1997 –

167
Dicionário da Educação do Campo

um ano após o massacre de Eldorado necessidade de políticas governamen-


dos Carajás – e acabou catalisando a tais que aliviassem de maneira seletiva
insatisfação popular contra as políti- o impacto da implantação do Plano
cas neoliberais, transformando-se na Real no campo.
primeira grande manifestação popular Em 1996, na esteira do aumento
contra o governo FHC e o neolibera- das ocupações de terra e da politiza-
lismo no Brasil. ção da questão agrária, o BM oferecera
Esse conjunto de pressões e acon- ao governo brasileiro o seu novo pro-
tecimentos deu visibilidade nacional e duto, a RAM, alegando que o modelo
internacional ao quadro de violência de ação fundiária vigente no Brasil era
e impunidade vigentes no campo bra- lento, caro e conflituoso. Para o BM e
sileiro, bem como à luta por Reforma o governo federal, a introdução de pro-
Agrária no Brasil. Em resposta, o go- gramas de crédito que financiassem a
verno federal criou, ainda em 1996, o compra de terras negociadas voluntá-
Gabinete do Ministro Extraordinário ria e diretamente entre trabalhadores e
de Política Fundiária, com o objetivo de proprietários desligaria a conexão entre
retomar a iniciativa política e pautar o ocupações e desapropriações, recolo-
tratamento da questão fundiária. cando em novo patamar o tratamento
O Governo FHC iniciou, então, um das questões fundiárias. Assim, a ação
conjunto de ações relacionadas à Re- governamental não mais estaria a rebo-
forma Agrária e aos conflitos no cam- que de fatos políticos provocados pela
po. Relativamente dispersas no início, ação dos movimentos sociais. Ademais,
tais ações foram ganhando coerência as projeções do BM indicavam que a
ao longo do triênio 1997-1999. Foram RAM teria um custo por família finan-
elas: a) baratear e acelerar as desapro- ciada mais baixo do que o do modelo
priações para fins de Reforma Agrária;; convencional, o que favoreceria a sua
b) reprimir as ocupações de terra, im- difusão pelo país.
pedindo que propriedades ocupadas Sem dúvida, a rapidez e a escala
fossem desapropriadas;; c) criminalizar com que a RAM foi implantada no
as ocupações, utilizando os grandes Brasil não têm paralelo no cenário in-
meios de comunicação para criar uma ternacional. Em agosto de 1996, teve
imagem negativa dos “sem-terra” e da início no Ceará o projeto São José (ou
sua forma de luta social;; d) implantar o “Reforma Agrária Solidária”) e o pri-
processo de descentralização político- meiro financiamento para a compra
administrativa da Reforma Agrária, o de terras foi liberado em fevereiro de
que implicava “desfederalizar” a exe- 1997. As negociações com o BM para
cução da política fundiária;; e e) intro- um projeto maior já estavam em anda-
duzir a Reforma Agrária assistida pelo mento, culminando em abril de 1997
mercado do BM no Brasil. com a criação do projeto-piloto Cédula
Desde 1995, o BM recomendava ao da Terra, previsto para financiar 15 mil
governo federal a adoção de medidas famílias em cinco estados da federação
que dinamizassem relações de compra (Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão
e venda como a forma mais “eficiente” e Minas Gerais).
de acesso à terra para agricultores po- Paralelamente, em fevereiro de 1997,
bres e trabalhadores rurais sem-terra. foi protocolado no Senado um projeto
Ao mesmo tempo, o BM prescrevia a de lei para a criação de um fundo nacio-

168
Crédito Fundiário

nal de terras, o que se consumaria em fe- tando que o projeto Cédula da Terra:
C
vereiro de 1998, com a criação do Ban- a) não estava sendo implantado como
co da Terra pelo Congresso Nacional. projeto-piloto, uma vez que não havia
Note-se que, naquela altura, o Cédula da sido sequer avaliado e que o BM já as-
Terra mal havia começado e nem sequer sumira o compromisso com a sua am-
fora feita a avaliação intermediária pre- pliação, consumada na criação do Ban-
vista no acordo de empréstimo com o co da Terra;; b) estava sendo executado
BM. Além disso, todas as organizações como alternativa, e não como comple-
nacionais de representação de trabalha- mento à desapropriação, revogando, na
dores rurais do país eram contrárias à prática, o papel do Estado de garantir
criação do Banco da Terra. Mesmo as- o cumprimento da função social da
sim, o governo federal acionou a sua propriedade, previsto na Constituição
base parlamentar para aprová-lo, utili- Federal de 1988;; c) havia sido dirigido
zando como argumento o fato de que para estados com grande estoque de ter-
o programa contaria com empréstimos ras desapropriáveis, possibilitando que
significativos do BM. terras mantidas como reserva de valor
Em outras palavras, partindo de durante décadas fossem remuneradas à
uma experiência pontual no estado vista a preço de mercado;; d) aquecia o
do Ceará até a mobilização do “rolo mercado fundiário, contribuindo para
compressor” do governo federal no a elevação do preço da terra, reverten-
Congresso Nacional, em apenas um do a tendência de queda relativa até
ano e seis meses o Brasil conheceu três então observada;; e) suas condições de
projetos direcionados para a mesma fi- financiamento eram proibitivas, o que
nalidade: instituir o financiamento pú- geraria inadimplência e perda da terra;;
blico para a compra privada de terras f) o projeto não atendia, por essa mesma
como mecanismo alternativo à Refor- razão, o objetivo de “combate à pobre-
ma Agrária, a fim de aliviar as tensões za rural” preconizado pelo BM;; g) não
sociais no campo e reconstituir o pro- se tratava de um processo transparente
tagonismo político do governo na con- e participativo, na medida em que não
dução da política agrária. havia publicização de informações aos
Contra essa tentativa de substitui- mutuários ou às suas organizações de
ção da política de Reforma Agrária representação, nem tampouco mecanis-
posicionaram-se, de 1997 e 1999, a mos de consulta e participação social;;
Contag, o MST e uma enorme gama de h) permitia a reprodução de relações
organizações sociais articuladas no Fó- tradicionais de dominação e patrona-
rum Nacional pela Reforma Agrária e gem no meio rural, na medida em que a
Justiça no Campo. Tais programas eram negociação em torno do preço da terra,
vistos como extensão da agenda neoli- longe de ser uma transação mercantil
beral para o campo brasileiro. Naquela entre iguais, era controlada pelos agen-
conjuntura, a crítica a tais programas tes dominantes no plano local (proprie-
serviu como referência para uma críti- tários e políticos).
ca mais geral às ações do governo fede- Em maio de 1999, o Painel de Ins-
ral no meio rural. peção julgou improcedentes todos os
Assim, o Fórum encaminhou, em argumentos do Fórum e não recomen-
outubro de 1998, uma solicitação ao dou à diretoria do Banco Mundial a in-
Painel de Inspeção do BM,1 susten- vestigação solicitada. Imediatamente, o

169
Dicionário da Educação do Campo

governo brasileiro usou tal recusa como A situação só foi superada em


prova da suposta eficiência do projeto. 2000, quando a Contag incluiu na pau-
Na ocasião, inclusive, o Painel chegou ta do Grito da Terra Brasil – a sua ma-
a desqualificar a representatividade das nifestação anual mais importante – a
organizações que compunham o Fó- demanda por crédito fundiário e deci-
rum, considerando suas reivindicações diu negociar com o governo federal e
de caráter “filosófico”. o BM a criação de um programa para
Amparado por farta documentação, esse fim. O BM, então, desviou mo-
liberada pelo governo brasileiro tão mentaneamente o seu apoio ao Banco
somente porque dois parlamentares da Terra para o novo Crédito Fundiá-
haviam assinado um pedido oficial de rio de Combate à Pobreza Rural, um
informações, o Fórum fez nova solici- programa muito semelhante ao Cédu-
tação ao Painel de Inspeção em agosto la da Terra. Com o apoio da Contag,
de 1999. Em dezembro, novamente o a diretoria do BM aprovou, em 2001,
pedido foi negado, sob a alegação de o pedido de empréstimo para implan-
que o Fórum não havia esgotado todos tar o crédito fundiário em 14 estados.
os canais de negociação com o BM e Assim, ampliou-se sensivelmente a ex-
o governo federal antes de solicitar a periência do Cédula da Terra, que nem
inspeção. Naquela altura, o BM exalta- sequer havia sido concluído. A partir
va a experiência brasileira com a RAM desse momento, a Contag passou a
como um caso de sucesso e um exem- diferenciar o programa de crédito fun-
plo para outros países. diário, apoiando-o como algo distinto
da experiência anterior do Cédula da
Todavia, a Contag e o MST, prin- Terra. Já o BM reconheceu que todos
cipais organizações nacionais de re- integravam a mesma matriz.
presentação de trabalhadores rurais,
posicionaram-se em bloco, por inter-
médio do Fórum Nacional pela Refor- Continuidades e
ma Agrária e Justiça no Campo, contra descontinuidades no
o novo modelo de mercado. Essa re- governo Lula
sistência desafiava o discurso do BM
de que o caso brasileiro era bem-su- Durante o governo FHC, foram
cedido e contava com a “participação implantados quatro programas, sendo
da sociedade civil”. Nesse contexto, o o de São José uma experiência peque-
empréstimo que o BM havia prometi- na, limitada ao Ceará. Esse proje-
do ao governo federal para financiar to financiou em torno de 800 famílias
a ampliação do Banco da Terra para no ano de 1997. Já o Cédula da Ter-
o âmbito nacional enfrentava um im- ra, apesar de ser também um projeto-
passe: como legitimar uma operação piloto, foi mais abrangente, pois atingiu
que enfrentava tanta resistência políti- quase 16 mil famílias de cinco estados.
ca? Com a irrupção da crise do Plano O Cédula da Terra acabou oficialmen-
Real no final de 1998 e as dificuldades te em dezembro de 2002. O caso do
do governo brasileiro para garantir a Banco da Terra é diferente, pois não
contrapartida necessária ao emprésti- se trata apenas de uma linha de cré-
mo do BM, esse impasse ganhou in- dito transitória, mas de um fundo que
grediente adicional. pode captar recursos de diversas fon-

170
Crédito Fundiário

C
tes (inclusive externas) para financiar tidade de representação rural (patronal
a compra de terras por trabalhadores ou de trabalhadores) considerava que o
rurais. Constitui, por isso, um instru- Governo Lula tinha intenção de subs-
mento de caráter permanente. tituir o modelo convencional de Refor-
O primeiro governo de Lula, rede- ma Agrária pela Reforma Agrária de
finindo alguns parâmetros, incorporou mercado. A segunda descontinuidade
esse instrumento à sua política fundiá- diz respeito à legitimação dada por or-
ria, fortalecendo-o como fonte da con- ganizações sindicais de representação
trapartida nacional aos empréstimos de trabalhadores rurais aos programas de
do BM para a implantação da Reforma crédito fundiário, como a Contag e a
Agrária de mercado. Por outro lado, Federação dos Trabalhadores na Agri-
enquanto linha de crédito, o Banco da cultura Familiar da Região Sul do Brasil
Terra foi renomeado de Consolida- (Fetraf-Sul). Durante o primeiro Go-
ção da Agricultura Familiar (CAF) em verno Lula, a luta contra esse modelo
outubro de 2003. O nome mudou, os de ação fundiária deixou de aglutinar o
itens financiáveis foram ampliados e as conjunto das entidades de representa-
condições de financiamento foram re- ção do campesinato pobre. Depois da
divisão política do Fórum em 2000, os
vistas, mas a lógica permaneceu a mes-
movimentos contrários a tal modelo
ma. Por sua vez, o Crédito Fundiário de
(como o MST e os demais integrantes
Combate à Pobreza Rural não apenas
da Via Campesina-Brasil) relegaram
teve continuidade, como foi ampliado
essa questão a um plano secundário,
no Governo Lula, sendo renomeado de
para evitar atritos com as entidades
Combate à Pobreza Rural (CPR).
sindicais e por entenderem que a
Em novembro de 2003, foi criado o contradição principal no meio rural
Programa Nacional de Crédito Fundiá- brasileiro durante aquele período era
rio (PNCF), responsável pela gestão do entre o agronegócio exportador e os
CPR e do CAF. A instrumentalidade trabalhadores rurais sem-terra, e não
do PNCF foi tecnicamente aperfeiçoa- entre a desapropriação e o crédito
da para dar continuidade ao financia- fundiário.
mento público à compra de terras por A expansão dos programas de cré-
agentes privados potencialmente em dito fundiário entre 2003 e 2010 fez da
todo território nacional. experiência brasileira a mais abrangen-
Se, do ponto de vista técnico, os te em âmbito internacional, tanto em
programas não apenas tiveram con- número de famílias financiadas quan-
tinuidade como foram ampliados, do to em volume de recursos gastos. Ne-
ponto de vista político houve desconti- nhum outro país contratou tal volume
nuidades relevantes em relação ao qua- de empréstimos com o BM para finan-
dro de disputas que marcara o governo ciar a compra de terras, negociadas por
anterior. A primeira é que nenhuma en- trabalhadores e proprietários.

Nota
1
O Painel de Inspeção foi criado em 1994 para proporcionar um fórum “independente”
aos agentes sociais que se sentissem prejudicados direta ou indiretamente pela realização de
projetos financiados pelo Banco Mundial. A reclamação deveria demonstrar que os efeitos

171
Dicionário da Educação do Campo

negativos decorriam da não observância das normas e procedimentos do banco na elabora-


ção, execução e avaliação dos projetos financiados.

Para saber mais


BARROS, F.; SAUER, S.; SCHWARTZMAN, S. (org.). Os impactos negativos da política
de Reforma Agrária de mercado do Banco Mundial. Brasília: Rede Brasil–MST–Via
Campesina–FIAN–Environmental Defense–CPT, 2003.
BORRAS JR., S. M. Questioning the Pro-market Critique of State-led Agrarian
Reforms. European Journal of Development Research, v. 15, n. 2, p. 109-132, Dec.
2003.
BURKI, S. J.; PERRY, G. The Long March: A Reform Agenda for Latin America and
the Caribbean in the Next Decade. Washington (D.C.): The World Bank, 1997.
MEDEIROS, L. S. de. Movimentos sociais, disputas políticas e Reforma Agrária de mercado
no Brasil. Rio de Janeiro: CPDA-UFRRJ–UNRISD, 2002.
PEREIRA, J. M. M. A política de Reforma Agrária de mercado do Banco Mundial: funda-
mentos, objetivos, contradições e perspectivas. São Paulo: Hucitec, 2010.
V AN Z YL , J.;; K IRSTEN , J.;; B INSWANGER , H. (org.). Agricultural Land Reform
in South Africa: Policies, Markets and Mechanisms. Nova York: Oxford
University Press, 1996.
WORLD BANK. Land Policies for Growth and Poverty Reduction. Washington (D.C.): The
World Bank, 2003.
______. Rural Development: From Vision to Action – a Sector Strategy.
Washington (D.C.): The World Bank, 1997.

CRÉDITO RURAL
Sergio Pereira Leite

Em qualquer atividade produtiva, antecipação monetária (empréstimo)


seja no setor agropecuário, industrial, de entregue ao tomador (produtor) dos re-
comércio ou de serviços, a existência cursos, que fará uso do financiamento.
de uma linha de crédito é fundamental Assim, na ausência de recursos próprios
para viabilizar as despesas com insumos, que permitam custear a produção, dis-
mão de obra, investimentos (em máqui- por de um programa de crédito para um
nas, equipamentos, edificações etc.) e setor específico tem sido uma estratégia
comercialização dos produtos objeto importante para sustentar a produção e,
dessa atividade. O crédito, nesse senti- consequentemente, a oferta de um bem
do, pode ser compreendido como uma e/ou serviço. Além do crédito para ati-

172
Crédito Rural

C
vidades produtivas, há também linhas dos empréstimos (o produtor), o uso
de crédito direcionadas ao consumo, do financiamento somente será inte-
por exemplo. No nosso caso, vamos nos ressante quando a expectativa de retor-
deter no crédito orientado à produção, no e a rentabilidade da sua produção
em particular àquela existente no meio compensarem o custo (juros, admi-
rural brasileiro. nistração, seguro etc.) de fazer uso do
Primeiramente devemos lembrar dinheiro emprestado. Caso contrário, a
que estamos tratando de um emprés- capacidade de pagamento das dívidas
timo que, para tanto, pressupõe algu- contraídas com esses empréstimos fi-
mas condições prévias, entre as quais: cará seriamente comprometida.
instituições devidamente reconhecidas Uma segunda lembrança que nos
e/ou credenciadas para operar esses parece importante fazer aqui refere-se
financiamentos (bancos, públicos ou às especificidades da atividade agrope-
privados, por exemplo1) e que contem cuária e seu rebatimento sobre as mo-
com fundos disponíveis para tanto, dalidades de empréstimo. Como nos re-
prazos para a devolução dos recursos corda Delgado (2000), nem sempre os
emprestados, cobrança de taxas pela gestores da política macroeconômica
antecipação dos recursos financeiros (que engloba a política monetária) são
(taxas de juros), cobrança de taxas sensíveis ou estão atentos às particu-
administrativas para viabilizar a ope- laridades dos setores com os quais a
ração, garantias exigidas do tomador política interage. Isso é mais evidente
(que variam de acordo com o tipo de no setor rural, visto o caráter majori-
financiamento, a instituição financeira tariamente urbano da sociedade e da
envolvida, o programa governamen- economia brasileiras. Aspectos como
tal etc.), assinatura de contrato entre diferenças entre o tempo de produção
as partes envolvidas, enquadramento e o tempo de trabalho (sendo o primei-
do beneficiário nos critérios previstos ro maior do que o segundo na agricul-
para a linha de financiamento, seguro tura), maior suscetibilidade aos riscos
do valor financiado. É bom frisar que climáticos (secas, geadas, intempéries
a política de crédito está, por definição, etc.), forte instabilidade de preços, pe-
atrelada à política monetária propria- recibilidade dos produtos, inflexibilida-
mente dita, pois depende das taxas de de na escala produtiva após o plantio,
juros praticadas pelo sistema financeiro calendário agrícola (safra, entressafra,
e, em especial, definidas pelas autorida- época de plantio, época de colheita etc.)
des monetárias (no caso brasileiro, pelo levam o setor agropecuário a demandar
Banco Central). Ou seja, num contexto instrumentos de políticas relativamen-
de política monetária que vise à con- te adequados às suas condições produ-
tenção da inflação por intermédio de tivas. No caso dos programas de crédi-
uma frenagem da capacidade de gasto, to, isso tem implicado algumas ações,
o aumento da taxa de juros geral da entre elas: a) taxa de juros média prati-
economia certamente influenciará as cada no setor em geral inferior àquela
condições de operação de programas praticada no restante da economia (vis-
específicos de crédito, podendo torná- to que os riscos para a produção são
los mais “caros” aos interessados em maiores na agricultura e os retornos
recorrer a esse tipo de recurso. Assim, mais baixos);; b) adaptação do crono-
podemos deduzir que, para o tomador grama de disponibilidade de recursos

173
Dicionário da Educação do Campo

para empréstimos adaptados ao calen- nem na sustentação de preços domés-


dário agrícola (liberação de recursos ticos elevados, nem em pagamentos di-
após o período de plantio compromete retos aos produtores rurais. Igualmen-
a viabilidade da safra, por exemplo);; te não se verificou aqui a estruturação
c) segmentação do crédito em linhas de de um conjunto de instituições priva-
custeio, comercialização e investimen- das financiadoras de atividades produ-
to com prazos e taxas diferenciados de tivas de longo prazo, quer mediante a
acordo com a modalidade (e, em alguns montagem de um sistema bancário efi-
casos, diferenciados segundo o tipo de ciente ou mesmo pela construção de
produto financiado – lavouras tempo- um sólido mercado de capitais.
rárias, lavouras permanentes, atividade Podemos, grosso modo, dividir a polí-
criatória, extrativismo, silvicultura, be- tica de crédito rural no Brasil, a partir
neficiamento e agroindustrialização);; da criação do Sistema Nacional de Cré-
d) o tomador deve enquadrar-se na ca- dito Rural (SNCR),3 em dois grandes
tegoria de produtor rural, isto é, pos- períodos: um primeiro, que abrange
suir uma área (terra), no mínimo, desti- o intervalo de 1965 a 1985;; e outro, a
nada à atividade agropecuária, mesmo partir de 1986. Os vinte anos iniciais
não sendo proprietário do local (como da política caracterizam-se pela relativa
é o caso de arrendatários, meeiros, ex- facilidade da expansão creditícia e das
trativistas etc.). condições de repasse aos beneficiários.
Devemos ressaltar ainda que a polí- Nota-se ainda a presença significativa
do orçamento do governo federal como
tica de crédito, assim como a política de
fonte originária dos recursos e a atua-
preços agrícolas, atua complementar-
ção do Banco do Brasil como agente
mente como sinalizadora das áreas, se-
intermediário privilegiado. Já no final
tores e/ou produtos que o governo quer
desse primeiro período, com a espi-
estimular ou conter. Ou seja, ao praticar
ral inflacionária emergindo no turbu-
uma política de empréstimos com gran- lento cenário econômico nacional, os
de volume de recursos oferecidos a ta- empréstimos passam a ser indexados
xas de juros relativamente baixas (ou até por indicadores de correção monetá-
negativas2) para financiar a produção de ria. No segundo período, dada a unifi-
um determinado cultivo, o governo si- cação orçamentária4 e o encerramento
naliza claramente a sua opção por um da “conta movimento”5 no Banco Cen-
aumento da oferta desse produto, seja tral, essas facilidades se reduzem (e o
visando à sua comercialização no mer- sistema se torna um pouco mais trans-
cado doméstico, seja visando aumentar parente, com a criação do Orçamento
a sua disponibilidade para exportação. das Operações Oficiais de Crédito –
OOC), como também a participação
Um breve resgate da do Tesouro Nacional no financiamento
do programa. Verifica-se ainda a cria-
política de crédito ção de novos instrumentos de captação
rural no Brasil de recursos, como a poupança rural e
a emissão de títulos privados (Leite,
Em contraposição aos casos ame- 2009).6 Com a estabilização macroe-
ricano e europeu, a política de finan- conômica em 1994, por intermédio do
ciamento rural brasileira não se apoiou Plano Real, e o consequente aumento

174
Crédito Rural

C
do grau de monetização da economia, crédito;; b) uma elevação no montante
verificou-se igualmente um acréscimo de recursos ofertados;; c) a criação de
dos recursos do crédito lastreados nas títulos privados de financiamento;; d) o
exigibilidades bancárias. surgimento de linhas diferenciadas de
É amplamente sabido, conforme crédito (praticando taxas de juros mais
atesta a literatura especializada, que o baixas ou com prazos mais elásticos
crédito rural atuou como mola mestra para pagamento) que atendiam seg-
do processo brasileiro de moderniza- mentos do meio rural historicamente
ção agrícola, especialmente no interva- excluídos do programa;; e e) o cresci-
lo 1965-1980. Nessa época, a deman- mento do processo de endividamento.
da por crédito rural pelos produtores Os dois últimos pontos demandam
comportou-se ascendentemente, quer alguns comentários adicionais. Em re-
pelas exigências de recursos que o au- lação aos mecanismos diferenciados de
mento da produção e a utilização de crédito, a referência ao Programa Espe-
insumos “modernos” requeriam, quer cial de Crédito para a Reforma Agrária
ainda pelo estímulo que os vultosos (Procera) e ao Programa Nacional de
subsídios implícitos ao sistema causava Fortalecimento da Agricultura Fami-
nos tomadores (Guedes Pinto, 1981). liar (Pronaf) parece-nos obrigatória. O
Assim, além de financiar a chamada Procera, voltado para o financiamen-
“moderna agricultura”, o sistema fi- to de atividades produtivas (custeio e
nanciava, por “tabela”, as indústrias investimento), o fomento e a habita-
produtoras de insumos e equipamen- ção nos assentamentos rurais iniciou
tos que integravam o pacote da REVO- suas atividades na segunda metade da
LUÇÃO VERDE e que passaram a ser década de 1980. Operado a princípio
utilizados pelos agricultores (semen- de forma totalmente descontínua, o
tes, agrotóxicos, fertilizantes, vacinas, programa se consolidou na década de
tratores, colheitadeiras etc.). De forma 1990, respondendo pelo acesso dos as-
muito rápida, poderíamos dizer que a sentados aos insumos e equipamentos
utilizados na produção agropecuária
política de crédito nesse período prio-
em áreas reformadas. Atuando com ta-
rizou os médios e grandes produtores,
xas diferenciadas, e mesmo assim ainda
em particular aqueles localizados na re-
onerosas para o público beneficiário ao
gião Centro-Sul do país que produziam qual se dirigia, o volume crescente de
bens destinados à exportação (com- recursos aplicados nessa política foi re-
modities). No entanto, dados os subsí- sultado de um persistente processo de
dios acima referidos, não foram pou- pressão política exercido pelas organi-
cos os desvios de recursos oriundos do zações de representação política de as-
crédito, aplicados em outras atividades sentados, além do aumento no número
(Sayad, 1984). de projetos de assentamentos existen-
Na década de 1990, uma série de tes no país. Em 1999, esse instrumento
reformas na política agrícola envolveu foi extinto, dando lugar à chamada “li-
também a área de financiamento rural nha A” do Pronaf.7
(Helfand e Rezende, 2001). Podemos Em 1996, passou a ser operaciona-
destacar alguns aspectos desse perío- lizado o Pronaf (resolução nº 2.191,
do: a) o já comentado aumento dos re- de 24 de agosto de 1995). Essa linha de
cursos obrigatórios na composição do financiamento dirige-se ao agricultor

175
Dicionário da Educação do Campo

familiar, não vinculando o crédito ao agricultores brasileiros, concentrada,


produto/criação praticados, mas exi- segundo estudo de José Graziano da
gindo, entre outras coisas, que 80% Silva (2010), nos produtores que to-
da renda advenha do trabalho na pro- maram empréstimos de R$ 200 mil ou
priedade rural, a contratação de no mais a partir de 1995. Com efeito, nas
máximo dois empregados e o limite negociações que resultaram no progra-
do tamanho da área a quatro módulos ma de securitização de 1995,8 os con-
fiscais. Os recursos são destinados ao tratos de até R$ 50 mil representavam
custeio e investimento. Em 1999, o 65% do número total de operações e
programa criou uma série de grupos 8% dos recursos;; já os contratos acima
(A, B, C, D, E), enquadrando os toma- de R$ 200 mil compunham 14% das
dores segundo critérios, entre outros, operações e 71% do estoque da dívida.
de renda. Mais à frente, foram ainda Alguns anos depois, na renegociação
objeto de criação de algumas linhas dos contratos maiores conhecida como
específicas: Pronaf–Jovem, Mulher, Programa Especial de Saneamento de
Semiárido, Agroflorestal, Agroindús- Ativos (Pesa), a participação dos peque-
tria etc. Nos últimos anos da década de nos contratos (de até R$ 50 mil) soma-
2000, criou-se também o Pronaf Mais va 19% das operações e praticamente
Alimentos, fortemente orientado para nada do estoque do endividamento do
a mecanização dos estabelecimentos setor;; já as grandes operações (acima de
familiares. De forma geral, podemos R$ 200 mil) respondiam por 50% dos
dizer que houve um aumento signifi- contratos e 98% do total da dívida. Isso
cativo no número de contratos e nos indica que a política de financiamento
valores praticados pelo Pronaf entre representa, em termos de custo para o
1996 e 2010, chegando a alcançar qua- Estado, uma contrapartida importante
se 2 milhões de contratados em 2006. nos gastos, quando a situação de endi-
O programa, que começara concen- vidamento passa a desempenhar papel
trando suas operações na região Sul do central nas negociações entre governo
país, espraiou-se para outras regiões ao e produtores rurais em torno das polí-
longo da primeira metade da década de ticas agrícolas, como aquelas que têm
2000, voltando a se concentrar nela a marcado a agenda agrícola nos anos
partir de 2007. mais recentes, incluindo a “rolagem”
Nossa análise ficaria comprometida assumida em 2009.
se levássemos em conta tão somente o Um levantamento realizado pela
lado da oferta de recursos de emprés- Assessoria de Gestão Estratégica do
timo. Para um tratamento correto do Ministério da Agricultura, Pecuária e
tema, é preciso compreender as despe- Abastecimento (Mapa) mostra que,
sas com o custo do carregamento da de 1997 a 2006, o custo público com
dívida do setor agrícola e com as cha- a rolagem da dívida atingiu o valor de
madas equalizações de preços e juros, R$ 10,433 bilhões, enquanto o subsí-
como alertamos nas medidas tomadas dio ao exercício das políticas setoriais
a partir dos anos 1990, mencionadas chegou a R$ 16,328 bilhões. Ou seja,
anteriormente. praticamente 40% dos recursos gover-
Especial atenção deve ser dada ao namentais com essas despesas setoriais
processo de renegociação da dívida dos “indiretas” foram direcionados para o

176
Crédito Rural

C
saneamento das dívidas do agronegó- Frota de Tratores Agrícolas e Imple-
cio. Dados coletados na Assessoria da mentos Associados e Colheitadeiras
Presidência da República informavam (Moderfrota), que impactou decisi-
que, num universo de 3 milhões de vamente o aumento da venda de tra-
agricultores, 10 mil se encontravam na tores e equipamentos agrícolas no
situação de devedores, e que o grosso Brasil (Vidotto, 1995;; Faveret Filho
do endividamento se concentrava em et al., 2000).
não mais de 1.800 contratos. A distribuição dos recursos entre
Todas essas medidas estiveram em as modalidades de financiamento (cus-
voga a partir dos anos 1990 e permane- teio, investimento e comercialização)
cem vigentes, com variações, até hoje, permaneceu praticamente inalterada
compondo, de certa forma, o arcabou- durante todo o período. Contudo,
ço de instrumentos da política agrícola quando consideramos os produtos agrí-
direcionado ao setor rural, em especial colas financiados, podemos observar
ao segmento identificado pelas institui- o aumento da participação da soja no
ções financeiras como “agronegócio”, total de recursos obtidos. Com base
em contraposição ao crédito direciona- nos registros do SNCR, os empréstimos
do à “agricultura familiar”. Alguns as- à soja, ao milho e ao café somam cer-
pectos adicionais podem ser lembrados. ca de 60% de todo o crédito destinado
Os bancos públicos – em especial o às lavouras. Alguns produtos, como a
Banco do Brasil, o Banco do Nordeste própria soja e a cana-de-açúcar, contam
e, de forma crescente, o Banco Nacio- ainda com financiamentos oriundos
nal de Desenvolvimento Econômico do setor privado não regulados pelo
e Social (BNDES) – ainda se mantêm SNCR (como empréstimos internacio-
como os principais responsáveis pela nais, adiantamentos proporcionados
oferta de dinheiro ao setor rural (ten- pelas tradings, cédula do produto rural
do em vista a “timidez” que caracteriza etc.). Em estados como o Mato Grosso,
o setor financeiro privado nessa área). O por exemplo, a soja vem representan-
BNDES adentrou os anos 1990 com do isoladamente mais de 60% dos re-
um pesado financiamento, viabilizado cursos do SNCR para as lavouras. Essa
por intermédio do Finame Agrícola, e, característica, entre outras, mostra que
no período mais recente (pós-1999), a política permanece ainda concentrada
com ênfase no primeiro mandato do em termos de produtos e em médios/
Governo Lula, com a implementação grandes produtores (esses medidos pelo
do Programa de Modernização da valor médio dos contratos).

Notas
1
No setor agropecuário, é comum a ocorrência de antecipações monetárias realizadas por
empresas do setor agroindustrial para os produtores dos quais a empresa compra a matéria-
prima. Nesse caso, não se trata de uma operação formalmente reconhecida como crédito,
embora envolva empréstimos que serão saldados no momento da entrega dos produtos à em-
presa, invariavelmente corrigidos por taxas acima daquelas vigentes no mercado financeiro.
No setor da produção de oleaginosas, essa modalidade ficou conhecida como contratos de
“soja-verde” ou, ainda, operando modalidades que foram denominadas de “CPRs (cédulas
de produto rural) de gaveta”.

177
Dicionário da Educação do Campo

2
Ao longo da década de 1970, por exemplo, a política de crédito rural brasileira praticou
taxas de juros reais negativas. Isto é, ao corrigir os valores emprestados somente pela taxa
de juros nominal e não imputar a variação inflacionária do período, o resultado efetivo da
operação representou um repasse líquido de recursos do governo para os tomadores
de crédito, visto que a amortização da dívida era inferior ao valor original do empréstimo
corrigido pela variação inflacionária (Delgado, 1985). Essa prática induziu muitas empresas
e pessoas não associadas ao setor rural a buscarem terra, especialmente na região Norte do
país, para o acesso a essa política de crédito “facilitada”, o que ficou conhecido, num deter-
minado momento, como “territorialização da burguesia” (Kageyama, 1986). Vale ressaltar
ainda que essa “busca” por terras foi baseada em boa medida em processos de expropriação
de pequenos agricultores, repasse de terras públicas ao setor privado e outros mecanismos
menos convencionais (Palmeira e Leite, 1998).
3
O SNCR, criado pela lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965, e regulamentado pelo decre-
to nº 58.380, de 10 de maio de 1966, era constituído pelo Banco Central, Banco do Brasil,
bancos regionais de desenvolvimento, bancos estaduais, bancos privados, caixas econômi-
cas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, cooperativas e órgãos de assis-
tência técnica e extensão rural. Tinha como propósito compartilhar a tarefa de financiar a
agricultura entre instituições financeiras públicas e privadas. No entanto, a participação dos
bancos privados, com base nas exigibilidades sobre os depósitos à vista (isto é, um percen-
tual fixado pelo governo dos depósitos à vista que deveria financiar a atividade rural ou,
caso o banco não atuasse nessa área, ser objeto de repasse ao Banco Central), apresentou-se
constantemente decrescente, impondo uma participação maior dos recursos lastreados pelo
Tesouro Nacional, repassados, sobretudo, pelo Banco do Brasil. Vale acrescentar que, como
lembra Guedes Pinto (1981), entre 1970 e 1979, dois terços das aplicações dos bancos
privados direcionavam-se ao crédito de comercialização, reforçando o argumento de que
a esfera propriamente produtiva (custeio e investimento) era bancada pelo setor público.
Os recursos públicos provinham da administração de fundos e programas (recursos fiscais
e parafiscais) feita pelo Banco Central e também dada a vigência das “contas em aberto”
no orçamento monetário (peça orçamentária na qual estavam alocadas rubricas da política
de crédito), da categoria “recursos não especificados” inscrita no orçamento (Oliveira e
Montezano, 1982). Tais recursos contavam, ainda, com o lastro da captação de recursos
externos e com a oferta expansionista do crédito por parte do Banco do Brasil, coberta pela
emissão monetária. Esses instrumentos atuavam no sentido de suprir o diferencial entre as
necessidades do programa e o volume de crédito oriundo das exigibilidades sobre os de-
pósitos à vista “líquidos” dos bancos comerciais privados. No período recente (pós-1999),
com o aumento do peso dos recursos obrigatórios (exigibilidades) no total do crédito,
aumentou também a participação dos bancos privados no repasse do mesmo.
4
Em 1986, com a unificação dos orçamentos monetário, fiscal e das empresas estatais, foi
constituído o Orçamento Geral da União (OGU).
5
A conta movimento representava um passivo do Banco do Brasil em relação ao Banco Cen-
tral, esse último concebido na reforma do sistema financeiro da década de 1960, e foi criada
para atuar como instrumento transitório. A sua manutenção até a década de 1980 facultou
a política expansionista do crédito praticada pelo Banco do Brasil (que atuava de fato como
autoridade monetária) sem registro no orçamento geral do governo (Delgado, 1985).
6
Dentre esses últimos, destacamos a CPR, criada pela lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994,
que consiste na alocação de recursos privados para o financiamento da comercialização de
produtos agropecuários, constituindo-se num título cambiário líquido e certo, representa-
tivo de promessa de entrega da mercadoria, e operacionalizado sobretudo pelo Banco do
Brasil (Nuevo, 1996). Alguns anos depois, criou-se ainda a CPR Financeira, que permitiu
a liquidação financeira do título. Em dezembro de 2004, foi objeto da política agrícola um

178
Crédito Rural

C
conjunto de novos títulos privados, dessa vez batizados de “títulos do agronegócio”, entre
os quais as Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), que chegaram a ter atuação destacada
no período recente (Oliveira, 2007 e 2010).
7
Em 1999, com a instituição da política conhecida à época como “Novo Mundo Rural”,
o governo extinguiu o Procera e transformou o Pronaf em diversas linhas de crédito, di-
ferenciadas quanto ao público e à atividade a ser financiada. Nesse sentido, o Pronaf A
destinou-se a financiar as atividades produtivas dos assentados em projetos de Reforma
Agrária, substituindo o antigo Procera.
8
O termo securitização é empregado para designar, na prática, “a conversão de emprésti-
mos bancários e outros ativos em títulos (securities) para a venda a investidores, que passam
a ser os novos credores dessa dívida” (Sandroni, 2005, p. 759). Tal conversão tem facilitado,
em boa parte dos casos, a negociação de dívidas contraídas em programas – como aquele
do financiamento rural – e a sua liquidação em mercados de derivativos – envolvendo ou-
tros agentes que passam a adquirir/vender tais títulos –, bem como aumentado os prazos
que envolvem tais operações.

Para saber mais


DELGADO, G. Capital financeiro e agricultura no Brasil. Campinas: Ícone, 1985.
DELGADO, N. As relações entre a macroeconomia e a política agrícola: provoca-
ções para um debate interrompido. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro,
n. 14, abr. 2000.
FAVERET FILHO, P. et al. O papel do BNDES no financiamento ao investimento agropecuá-
rio. Rio de Janeiro: BNDES, 2000.
GUEDES PINTO, L. C. Notas sobre a política de crédito rural. Campinas: Editora da
Unicamp, 1981.
HELFAND, S. M.; REZENDE, G. C. A agricultura brasileira nos anos 1990: o impacto
das reformas de políticas. In: GASQUES, J. G.; CONCEIÇÃO, J. C. P. R. (org.). Trans-
formações da agricultura e políticas públicas. Brasília: Ipea, 2001.
K AGEYAMA, A. Os maiores proprietários de terra no Brasil. Reforma Agrária,
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LEITE, S. Padrão de financiamento, setor público e agricultura no Brasil. In:
______ (org.). Políticas públicas e agricultura no Brasil. 2. ed. Porto Alegre: Editora
da Universidade, 2009.
NUEVO, P. A. S.. A cédula do produto rural (CPR) como alternativa para financiamento
da produção agropecuária. 1996. Dissertação (Mestrado em Economia Agrária) –
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Piracicaba, 1996.
OLIVEIRA, C. Financiamento agrícola no Brasil: uma análise dos novos títulos de cap-
tação de recursos privados. 2007. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) – Programa de Pós-Graduação de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2007.

179
Dicionário da Educação do Campo

______. Os títulos do agronegócio brasileiro: uma análise comparativa entre a percep-


ção existente no seu lançamento e a situação atual. In: CONGRESSO DA SOCIEDA-
DE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL (SOBER), 48.
Anais... Campo Grande: Sober, 2010.
OLIVEIRA, J. C.; MONTEZANO, R. M. S. Os limites das fontes de financiamento
à agricultura no Brasil. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 139-160,
ago.-nov. 1982.
PALMEIRA, M.; LEITE, S. Debates econômicos, processos sociais e lutas políticas.
In: COSTA, L. F.; SANTOS, R. N. (org.). Política e Reforma Agrária. Rio de Janeiro:
Mauad, 1998.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SANDRONI, P. (org.). Dicionário de economia do século XXI. São Paulo: Record, 2005.
SAYAD, J. Crédito rural no Brasil: avaliação das críticas e das propostas de reforma.
São Paulo: Pioneira/Fipe, 1984.
S ILVA, J. G. da. Os desafios das agriculturas brasileiras. In: GASQUES , J. G. et.
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Ipea, 2010.
VIDOTTO, C. A. Banco do Brasil: crise de uma empresa estatal do setor financeiro
(1964-1992). 1995. Dissertação (Mestrado em Economia) – Instituto de Econo-
mia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995.

CULTURA CAMPONESA
José Maria Tardin

Cultura é uma palavra de origem la- neamente transformam a si próprios.


tina, colere, que significa “cultivar, criar, Essas transformações se dão na ordem
tomar conta, cuidar” (Chauí, 1997, material, quando a criação e a recriação
p. 292) e expressa ação marcada pelo como ato humano tomam materiais da
cuidado. Tomada abstratamente, para natureza, dando a eles formas que não
alcançarmos seu significado geral, cul- possuíam até então.
tura é toda criação humana resultante Essa materialidade nova se volta
das relações entre os seres humanos e sobre o seu criador, alterando seu esta-
deles com a natureza que leva ao esta- do material de vida e abrindo um novo
belecimento de modos de vida. Trata-se campo de possibilidades e necessida-
da criação e da recriação que emergem des que o impulsiona à contínua trans-
daquelas relações em que os humanos, formação. Alcança também a ordem
ao transformarem o mundo, simulta- imaterial, levando-o a expressar sua

180
Cultura Camponesa

C
subjetividade por meio das artes, teo- campo, cultivar o campo – como ex-
rias, ciências, religiões, ideologias etc. pressões diferenciadas das relações das
O ser humano vai, assim, impri- campônias e dos campônios no campo
mindo suas marcas na natureza, “tendo e com o campo. Recomenda-se a lei-
essa como mediadora às suas relações tura dos verbetes AGRICULTURA CAM-
e comunicações entre si e com ela pró- PONESA e A GROECOLOGIA, por exemplo,

pria” (Souza, s. d.). E, com isso, hu- para uma revitalização etimológica da
maniza a natureza, na medida em que palavra cultura e, talvez, da prática re-
imprime nela seus objetivos e a reso- lacional que ela propõe.
lução prática de situações em benefí- A agricultura traduz, sem equívoco,
cio da satisfação das suas necessidades uma relação humano–natureza marca-
humanas. Na condição de ser biológico da pelo sentido de forte conexão, de
e natural, vai histórica e espacialmente pertencimento, de ato transformador
realizando transformações crescentes e criador, uma relação fundada no cui-
e constituindo assim sua humanização, dado, como assinalado anteriormente.
distinguindo-se na natureza como por- É, portanto, identidade humano/na-
tador de cultura, com um novo “modo tureza. Assinalamos um conjunto de
de ser radicalmente inédito, o ser so- aspectos que serão desenvolvidos em
cial” (Netto e Braz, 2010, p. 36). seguida e que podem nos levar a uma
Em se tratando do campesinato, primeira aproximação ao entendimen-
ele se constitui a partir de uma diversi- to das culturas camponesas, por meio
dade de sujeitos sociais históricos que da formulação relativa à experiência do
se forjaram culturalmente numa íntima campesinato brasileiro: influências étni-
relação familiar, comunitária e com a cas, relações cotidianas com a nature-
natureza, demarcando territorialidades za, conhecimento empírico amplo,
com as transformações necessárias à oralidade e prática, espiritualidade,
sua reprodução material e espiritual, religiosidade, estética, relações diver-
gerando uma miríade de expressões sificadas de cooperação, forte predo-
particulares que, ao mesmo tempo, minância patriarcal, e relação família,
respaldam-se em elementos societários comunidade e território.
gerais, marcando sua humanização e Ademais desses aspectos, aos quais
humanizando a natureza, em um intri- certamente se somam outros não de-
cado complexo de agroecossistemas. senvolvidos aqui, há de se considerar
Nesses termos, o campesinato con- que o campesinato como sujeito social
firma e exige tomar o tratamento da histórico se forja em condições sociais,
cultura em sua pluralidade;; trata-se, materiais e políticas acentuadamente
portanto, de culturas do modo de ser adversas que marcarão suas culturali-
de cada sociedade, nas quais se supe- dades. Aqui destacaremos três elemen-
ra a pretensão de que haja “a cultura” tos, a saber: sofre violências e contí-
e, fora dela, a “não cultura”, como, na nuas agressões no percurso da história;;
particularidade no campo, tem-se as é historicamente ativo em processos
culturas camponesas. de rebeliões;; e apresenta elevado grau de
Há que tratar então das “agri-cul- radicalidade na sua ação política.
turas” – do grego ager e do latim colere, No Brasil, povos originários, po-
que significa cuidar do campo, criar no vos africanos negros e povos europeus

181
Dicionário da Educação do Campo

foram condicionados historicamente a sidade e agrobiodiversidade. A cada


se encontrar neste vasto território, sob uma dessas espécies, de uso alimentar,
o domínio das nobrezas de alguns pa- condimentar, medicinal, ornamental;;
íses europeus, notadamente Portugal e fibras e madeira;; espécies necessárias à
Espanha, e vão conformando o mis- fertilização e à proteção de fontes, rios
cigenado campesinato brasileiro (ver e solo;; ou que precisam ser mantidas
implicações desses condicionamentos visando a fins conservacionistas e de
em CAMPESINATO). Essa miscigenação preservação, corresponde uma multi-
tem continuidade histórica no país não plicidade de conhecimentos e saberes
só em decorrência da vinda de outros relativos aos seus manejos e usos, e dos
povos para o Brasil, mas também pelo instrumentos de trabalho utilizados em
intenso processo migratório existen- cada situação.
te no campo até os dias atuais. Essa Em sua generalidade, o ser camponês
constituição pluriétnica cada vez mais está imbricado à natureza numa relação
miscigenada vai gestar tipos humanos cotidiana, e essa interação se dá por um
diferenciados e regionalizados territo- contínuo conhecer, pelas descobertas,
rialmente, os quais, em suas interações por uma práxis empírica ampla e, pre-
com os ambientes específicos de ca- ponderantemente, pela experimentação
da lugar, vão configurar as paisagens durante largo lapso de tempo, efetivando
com suas peculiaridades culturais: os tentativas que levam a acertos e erros, e,
povos originários, majoritariamente com isso, orientam as escolhas.
na Amazônia e dispersos nas demais Impõe-se ao camponês a exigência
regiões;; o sertanejo, no Agreste nor- de conhecimentos amplos, entre outros,
destino;; os quilombolas, dispersos em sobre as plantas cultivadas e os animais
várias regiões;; o ribeirinho, às margens silvestres criados;; saberes sobre repro-
de rios;; o caipira, em partes do Sudes- dução, produção, proteção, conser-
te;; o caboclo, em partes do Nordeste vação, transformação e armazenagem;;
e da Amazônia;; o gaúcho, nos pampas sobre usos que incluem a gastronomia,
sulinos;; o colono imigrante europeu, a terapêutica e a transformação do-
no Sul e em partes do Sudeste, entre méstica;; sobre os solos e a água – seus
outros. Na condição predominante de manejos e conservação, que implicam
trabalhadores sem-terra, estão o peão obras e equipamentos variados;; sobre
de boiadeiro, o pantaneiro, o agregado, o clima – vento, temperatura, chuva,
o meeiro, o parceiro e, nas vilas e cida- seca, geada;; sobre as estações do ano e
des predominantemente, o boia-fria. o ciclo lunar;; sobre fertilizantes, ferra-
O mundo camponês é formado por mentas e máquinas de trabalho;; sobre
ecossistemas complexos, dos quais é construção;; e sobre produção artesanal –
preciso recolher e/ou transformar os roupas, calçados, adornos...
materiais da natureza para assegurar a Nesses conhecimentos está implíci-
satisfação das necessidades vitais e a ta a exigência de habilidades, destrezas e
reprodução social. A paisagem natural competências do fazer prático direcio-
vai sendo aculturada com os cultivos nado para o alcance de soluções objeti-
agrícolas, a criação de rebanhos e o vas, o que proporciona constituir sujei-
extrativismo florestal, que envolvem tos com amplo desenvolvimento de suas
o manejo de incomensurável biodiver- capacidades e possibilidades humanas.

182
Cultura Camponesa

C
A natureza do conhecimento cam- Esses sistemas aparecem ao longo
ponês faz dele um efetivo práxico- da história camponesa, e muitas expe-
empírico, que preponderante e ne- riências alcançam elevado nível de coo-
cessariamente faz ensinando e ensina peração complexa, nas quais todos os
fazendo, ao mesmo tempo em que co- meios de produção e o trabalho são pos-
munica oralmente explicações dos sabe- suídos e geridos coletivamente e a re-
res intrínsecos a cada objeto e prática. partição da produção social e de seus
Estão presentes em suas relações resultados econômicos é feita de for-
sociais acentuados valores humanos fun- ma igualitária ou mediante uma base
damentais, entre os quais a solidarie- geral igualitária que estabelece dife-
dade e a fraternidade, que se concre- renciações segundo a posição que cada
tizam em múltiplas práticas de ajuda membro associado ocupa no trabalho –
mútua entre vizinhos, em situações de periculosidade, jornada de trabalho etc.
catástrofes, perdas de safra, doenças e Também estão à frente de sistemas de
mortes, ou mesmo na organização de cooperativas de crédito ou de serviços,
festividades comunitárias ou casamen- e, tanto na forma de associações ou
tos, batizados, entre outras. cooperativas quanto nas demais ati-
Da mesma forma, a ajuda mútua vidades econômicas, voltam-se ainda
faz parte não apenas do seu cotidiano – para a realização de atividades culturais
com sementes, animais de trabalho ou e sociais.
para a reprodução, com ferramentas Sua imbricação e cotidianidade com
e máquinas –, mas também do seu tra- a natureza colocam o camponês ante a
balho – seja nas trocas de dias ou nos grandiosidade e a complexidade dos fe-
mutirões, sendo que esses últimos re- nômenos naturais, o que vai ser apreen-
sultam sempre em festividade ao final dido muito mais na sua aparência do
das tarefas realizadas. que em sua essência fenomênica, mar-
Essa tradição cultural leva-os a pra- cando profundamente a subjetividade
ticarem vários trabalhos coletivos para camponesa. Emerge daí um sentimen-
o bem comum da comunidade, reali- to de pertencimento, um vínculo umbi-
zando obras públicas voluntariamente – lical com a “mãe Terra”, mito primitivo
manutenção de estradas, bueiros e que persiste no tempo.
pontes, escolas, postos de saúde – de Essa relação com a natureza vai ca-
acordo com as suas necessidades, mui- racterizar uma espiritualidade própria,
tas vezes ausência e por causa do des- que será traduzida numa estética de ex-
caso do Estado. pressão variada, que se revela em músi-
Também se verifica a formalização cas de estilos variados, danças, poética,
de sistemas organizativos voltados para teatro, bailes e festividades, instrumen-
o alcance de resultados econômicos tos musicais, causos e contos, histórias
mais vantajosos, como as associações e lendas, artesanato, artes plásticas, ri-
comunitárias ou de produtores espe- tos, mitos e outros.
cializados em determinadas mercado- Esse contágio com o mistério na-
rias ou as cooperativas de porte comu- tural, seja pela via da contemplação,
nitário ou municipal, havendo também seja pela via do medo, do sentir-se pe-
iniciativas de alcance regional, estadual queno, frágil e vulnerável, seja, ainda,
e nacional. por sentir-se afagado, acolhido e con-

183
Dicionário da Educação do Campo

templado, vai traduzir-se, também, na hierarquia familiar e nas representações


constituição do sagrado como estado no espaço público. A divisão do trabalho
superior e exterior, mas também iguali- segue tradicionalmente uma base sexual
tário e interior. que em geral sobrecarrega a mulher;; por
O sentimento e a percepção do sa- isso, ela, ademais de cumprir com toda a
grado vão levar à demarcação de am- gama de trabalhos de manutenção e cui-
bientes naturais ou culturais especiais à dado da família no âmbito domiciliar,
sua manifestação, com a determinação também executa um conjunto de traba-
de mitos e rituais particulares. Os ri- lhos na produção agropecuária.
tuais se voltam diretamente tanto para A magnitude e a complexidade
a natureza – olhos d’água, cachoeiras, de seu quefazer exigem das mulheres
lagos, montanhas, grutas, bosques e amplos conhecimentos e habilidades
florestas – quanto para processos do vistos como obrigações de uma boa
trabalho – preparação da terra, se- mulher e como ajuda ao marido. É um
meadura e colheita, ou mesmo para a contexto secularmente opressor e re-
matança e a preparação de animais, vi- pressor no qual a relevância dos seus
sando ao consumo ou para fins exclu- afazeres e a dignidade do seu ser em
sivamente ritualísticos, momentos em geral não alcançam o devido reconhe-
que se faz uso de simbologias diversas: cimento, seja no interior da família ou
entoações de vozes, cantos, ritmos, no âmbito social.
oráculos, rezas, vestes e roupas, velas, A essa opressão secular, acrescen-
incenso, ervas e madeiras de cheiro. tam-se muitas outras manifestações de
O culto ao sagrado se concretiza na violência, na forma de agressões mo-
expressão de cosmovisões panteístas, rais e físicas, e de sociabilidade res-
politeístas ou monoteístas, alcançando tringida, levando a um sentimento de
formas sincréticas de religiosidade po- obediência e de inferioridades física
pular, em muitos casos refutadas, ou e subjetiva e à sua menor participação
mesmo proibidas e perseguidas como tanto na gerência do trabalho e dos
inculturadas em determinados períodos negócios quanto na repartição dos be-
históricos, sob a hegemonia das reli- nefícios dos resultados econômicos
giões oficiais, sobretudo a cristã católica. do trabalho da família.
O sagrado vai marcar também festi- A dominação patriarcal erguida e
vidades fixadas no calendário anual, es- sustentada por milênios se materializa
tabelecendo as formas de expressão de em cada período histórico de diferen-
momentos especiais no interior das fa- tes maneiras, expressando-se na di-
mílias e comunidades, em eventos como visão sexual e social do trabalho, e é
o nascimento, o batizado, a crisma e o reforçada diferentemente pelas distintas
casamento – ou seja, a iniciação e a maio- formas de consciência social, nas quais
ridade –, ou na morte e no funeral. as concepções do sagrado e as religiões
Outro traço geral das culturas cam- vão exercer destacada influência.
ponesas advém do patriarcalismo cons- O politeísmo, que inclui divindades
titutivo do paradigma historicamente masculinas e femininas, e que se ex-
hegemônico nas diferentes sociedades. pressa em panteísmo, tem uma influên-
É notória a supremacia do homem na cia diferente do monoteísmo – o qual

184
Cultura Camponesa

C
é sempre patriarcal e atribui à mulher ção do trabalho solidário e cooperado
culpabilidades como o pecado origi- e da sociabilidade mais intensa, espa-
nal, responsabilizando-a, por exemplo, ço que, para muitos, é praticamente o
não só pelo sofrimento humano, mas único local conhecido. De outra parte,
também pelo sofrimento da divindade as relações externas estão limitadas ao
encarnada. Toda essa complexidade contato apenas para a resolução de
está acentuadamente posta nos marcos necessidades pontuais. Esse horizonte
culturais do campesinato brasileiro e restrito fragiliza a tomada de consciên-
vai, por sua vez, imprimir no homem cia política, a organização de classe e a
camponês um sentido de superioridade exponenciação de sua humanização. A
que o autolegitima como portador de invasão cultural burguesa, aí consolida-
certa autoridade, um sentido exterio- da em suas formas prática e ideológica,
rizado na sua estética física e no seu também turva a sua capacidade de se
vestuário, na expressão de bravura e autoperceberem como sujeito social
valentia, na supervalorização de ser o complexo e de conceberem o seu espaço
macho, num sentir exacerbado da hon- como território, aspecto menos acen-
ra, da austeridade e de ser trabalhador tuado nos povos originários e nas co-
e na acentuada capacidade para o sacri- munidades quilombolas, para as quais
fício diante das asperezas do ambiente a existência social, que expressa uma
e do labor. visão de totalidade histórico-espacial
O horizonte imediato do campe- e populacional com recorte étnico,
sinato é a família, que, forçosamente está diretamente vinculada a determi-
consolidou-se aqui sob a forma cultu- nado território.
ral europeia cristã capitalista, reforçan- A contenção, o impedimento de
do as relações patriarcais, ao mesmo acesso à terra e a exploração do seu
tempo em que impediu, seja pela for- trabalho constituem expressão da vio-
ça jurídica e policial, seja pela ordem lência histórica e estrutural que perdu-
social moral, outras formas típicas dos ra sobre os povos camponeses;; para
povos originários ou africanos. isso, o Estado burguês e os agentes do
Ocupando o epicentro imediato capital fizeram uso das mais variadas
de sua visão de mundo, os membros do formas de agressão. Porém, ainda que
campesinato brasileiro vão organizar condicionados a situações materiais
e direcionar suas ações em geral e seu precárias e inferiores, povos originários,
trabalho em particular preponderante- africanos e o campesinato miscigenado
mente para a busca de satisfação das lançaram mão de sua indignação, capa-
suas necessidades individuais e familia- cidade organizativa e conhecimento e
res, ao mesmo tempo em que demar- ergueram-se em rebeliões com elevado
cam seus horizontes existenciais pela grau de radicalidade, realizando com-
incumbência maior de deixar aos des- bates armados com seus inimigos ex-
cendentes uma herança material supe- propriadores e exploradores.
rior à que receberam. Na sua relação com a natureza, o
Do imediato familiar, as relações se camponês utiliza meios e instrumentos
estendem para o plano da comunidade, de trabalho que em geral exigem muito
como espaço da vizinhança, da realiza- esforço físico. Além disso, ele está posto

185
Dicionário da Educação do Campo

diante de realidades que exigem sua ação MENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS
direta familiar ou coletiva, essa associada (MAB), o MOVIMENTO DOS PEQUENOS
a seu grupo étnico ou de vizinhança na AGRICULTORES (MPA), o MOVIMENTO
comunidade. O mesmo ocorre nas rela- DAS M ULHERES C AMPONESAS (MMC
ções de produção e de busca de territó- Brasil), os quais, por sua vez, e de
rios, na medida em que sempre encontra- maneira inédita, vão integrar a arti-
rá forças inimigas no seu encalço. culação internacional camponesa Via
Esses condicionamentos históricos – Campesina (ver SINDICALISMO RURAL).
e portanto persistentes – não só cons- Ao mesmo tempo, é organizada, na
tituem sua experiência prática, como Amazônia, uma ampla coalizão entre os
também vão se imprimir em sua subje- Povos da Floresta e o Conselho Nacio-
tividade, sendo comunicados em causos, nal dos Seringueiros (CNS), enquanto os
repentes, trovas, cordéis e músicas, povos originários e quilombolas se re-
ocupando o seu imaginário e seu acervo posicionam, com vigor renovado, na
cultural. Os povos originários se de- luta política.
frontaram com os invasores europeus;; A ditadura militar instalada no país
os povos africanos negros, com os se- em 1964 impôs a REVOLUÇÃO VERDE
nhores escravistas, europeus e nativos;; que implica a utilização de todo um
e o campesinato se deparou, e ainda se aparato industrial, financeiro, científi-
depara, com latifundiários e oligarcas, co, tecnológico, educacional, agroin-
com o agronegócio e o Estado bur- dustrial e comercial por meio de ações
guês. As rebeliões radicalizadas no en- do Estado e do capital privado, con-
frentamento armado se efetivaram ora figurando um poderoso sistema e um
localizadamente, ora ocupando vastos bloco de poder burguês que invade am-
territórios, a exemplo de Canudos, plos territórios camponeses, impondo-
no sertão baiano, da comunidade de lhes a modernização conservadora e a
Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, condição de subalternidade, seja como
no Ceará, e da Guerra do Contestado “produtores menores” de alimentos e
em Santa Catarina e Paraná. de determinadas matérias-primas, seja
Se nesses processos de rebelião a como trabalhadores semiassalariados
desumanidade imposta ao extremo ou assalariados em processos produti-
somou-se às inspirações messiânicas vos agrícolas e agroindustriais.
e colocou o campesinato em guerras, Na atualidade, esse sistema e bloco
sua resistência se atualiza e alcança ou- de poder, reconfigurados sob a hegemo-
tra qualidade política inicialmente com nia do capital financeiro e das empresas
a influência do ideário comunista e, transnacionais – os quais ampliam e
depois, com a teologia da libertação. aprofundam a dominação e a exploração,
Tais influências revitalizam a criativi- impondo novas tecnologias no campo,
dade e a radicalidade do homem do notadamente as biotecnologias, tendo
campo, levando o campesinato a esta- à frente os cultivares transgênicos, os
belecer novas formas de organização associados a determinados agrotóxicos,
política, como as Ligas Camponesas mas também as nanotecnologias e uma
e, mais recentemente, entre outros, série de outras tecnologias baseadas na
o M OVIMENTO DOS T RABALHADORES informática satelitizada – passaram a ser
RURAIS SEM TERRA (MST), o MOVI- identificados como “agronegócio”.

186
Cultura Camponesa

C
Tudo isso se associa às mudanças atualidade, tomada em sua totalidade
gerais nas legislações impostas por or- social. Sua autocrítica e sua crítica à or-
ganismos internacionais multilaterais a dem burguesa no âmbito do seu modo
fim de legitimar a permissividade para de produção – relações sociais e com a
a maior dominação, a exploração do natureza – vai levá-lo a formular diretri-
trabalho e a depredação e mercantili- zes e ações que, sob a orientação cientí-
zação da natureza em escala planetária fica da agroecologia como fundadora de
pelo agronegócio. uma práxis comprometida com a “re-
Essa expansão e invasão do capi- construção ecológica da agricultura”,
tal no campo são devastadoras para o priorizam a soberania alimentar.
campesinato, seja por imporem a mer- A violência histórica e estrutural
cantilização – um padrão de produção do capital, agora exponenciada em seu
e consumo absolutamente distante da apogeu imperialista, segue encontran-
sua trajetória cultural, étnica, familiar do o parapeito camponês, que resiste
e comunitária –, seja por alterarem in- criando e recriando-se culturalmente.
tensamente suas bases materiais pro- Seu posicionamento como sujeito so-
dutivas, até então profundamente vin- cial consciente e organizado se expres-
culadas aos processos ecológicos e às sa historicamente em significativos pro-
tecnologias endógenas, seja, ainda, por cessos de rebelião, com elevado grau
elevarem as contradições a ponto de de radicalidade em suas ações. Isso não
fazerem irromper novo ciclo de lutas apenas se inscreve em seu imaginário,
camponesas no país. expressando-se em sua estética cultu-
Nesse novo ciclo, agrega-se o que ral, mas continua sendo ativado de for-
há de mais avançado politicamente no ma renovada no tempo.
movimento camponês brasileiro, com É notório, no presente, que a maior
claro posicionamento de classe de parcela do campesinato brasileiro se en-
orientação filosófico-teórica e organi- contra subsumida na alienação e na ma-
zativa marxista, que direciona sua for- nipulação ideológica, enquanto outra
mulação estratégica e sua ação política, parte se situa no estado de consciência
de caráter socialista, para o combate de classe em si e uma fração menor,
anticapitalista. Ademais de apreender e mas significativa, toma a frente da sua
situar-se de forma consciente em rela- organização e ação em movimentos
ção à sua condição de classe explorada sociais com clara consciência de clas-
e expropriada dos meios de produção e se para si, qualificando sua prática
da renda do seu trabalho pelo capital, política e produtiva e traduzindo-a na
esse movimento integra a consciência e elaboração autônoma do seu projeto
a prática internacionalistas e a memória de campo e de sociedade, em arti-
histórica das lutas libertárias e de eman- culação e diálogo com os setores po-
cipação humana, elaborando diretrizes pulares urbanos e outras forças sociais
e lutas unificadas e ampliando enorme- da classe trabalhadora e em interação
mente o seu referencial cultural. internacionalista. Uma realidade tão
O movimento social camponês se clara e reveladora da sua significativi-
situa culturalmente na contemporanei- dade histórica e cultural, e, ao mesmo
dade, forjando respostas aos desafios da tempo, tão oculta e ocultada.

187
Dicionário da Educação do Campo

Para saber mais


ALENCAR, C. et al. História da sociedade brasileira. 18. ed. Rio de Janeiro: Ao Livro
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BOGO, A. O MST e a cultura. 3. ed. São Paulo: Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, 2009. (Caderno de formação, 34).
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 9. ed. São Paulo: Ática, 1997.
DIAMOND, J. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. 3. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2002.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
______. Pedagogia do oprimido. 37. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
HEISER JUNIOR., C. B. Sementes para a civilização: a história da alimentação humana.
São Paulo: Companhia Editora Nacional–Edusp, 1977.
KHATOUNIAN, C. A. A reconstrução ecológica da agricultura. Botucatu: Agroecológica,
2001.
MARTINS, J. de S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1986.
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empresarial. São Paulo: Expressão Popular, 2002.
M ORISSAWA, M. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2001.
NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política – uma introdução crítica. 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2010.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
SOUZA, Ana Inês. Material didático usado em aula na Escola Milton Santos.
Maringá (Paraná), [s.d.]. (Mimeo.).

188
D D
DEFESA DE DIREITOS
Marcus Orione Gonçalves Correia

O tema que discutiremos é bastan- não raras vezes indevida, do primeiro


te amplo e pode ser analisado a partir conceito. E, aqui, há um problema, pos-
de três aspectos: a relação entre justiça to que o direito, em si, tem verdadeira
e política, a resistência e a conquista de dificuldade em lidar com a noção de
direitos, e a justiciabilidade. Para melhor igualdade, típica do conceito de justiça.
desenvolver nossa análise, faremos um É interessante perceber como, em
estudo de cada um desses aspectos, e, diversas oportunidades, a liberdade e
por fim, tentaremos uni-los em uma a igualdade são vistas como conceitos
perspectiva comum. Comecemos com a antagônicos. A equação, em geral, é a
relação entre justiça e política. seguinte: liberdade versus igualdade.
De início, deve-se observar a política Essa observação não se cinge ao direi-
como o espaço por excelência de reali- to, mas atinge os mais diversos cam-
zação maior do homem. Na sua relação pos científicos de observação de ambas
com o outro, a expressão de uma vida (sociologia, filosofia e outros afins).
comunitária melhor somente se faz pelo No direito, a questão se acentua,
exercício constante de um diálogo entre visto que a liberdade é, como se dá em
iguais. Para que esse diálogo entre iguais qualquer fenômeno jurídico, diminuída
se estabeleça, não devem existir sujeitos na sua real extensão. A explicação é
com maiores vantagens do que os ou- clara: o positivismo jurídico está ha-
tros no sistema de escolhas do destino bituado a realizar recortes, evitando a
da coisa pública. Assim, para que haja totalidade. Assim, a liberdade ou
uma verdadeira participação política, a a igualdade apenas são representadas,
idéia de igualdade é indispensável. Por no direito, por traços que mais se pare-
outra parte, a noção de igualdade cons- cem com caricaturas de uma realidade
titui a base da concepção de justiça. muito mais ampla e densa.
Portanto, e de forma sintética, política É fato, já de início, que, no ca-
e justiça se unem a partir do conceito pitalismo, a liberdade é, em si mes-
de igualdade. Somente entre iguais é ma, uma ficção. Na verdade, estamos
possível que homens, realmente livres, muito mais limitados nos nossos ru-
estabeleçam parâmetros para uma vida mos do que pensamos e mais limita-
melhor em sociedade. dos no agir do que imaginamos. Isso,
Por sua vez, deve-se ter o cuidado não obstante, é realçado e mesmo
para não se fazer qualquer confusão acentuado pela dimensão do direito.
entre o direito e a justiça. A noção de Assim, temos, na Consolidação das
justiça é muito maior do que a noção Leis do Trabalho (CLT), a jornada li-
de direito, que, como construção de mitadora de trabalho, e o que aparece
poder, costuma realizar uma limitação, como uma conquista da civilização, na

189
Dicionário da Educação do Campo

medida em que houve a sua diminui- em eleição popular. É claro que aqui
ção;; porém, esta mesma jornada imposta não podemos nos sentir confortá-
pode ser vista, pelo viés do trabalhador, veis com tais “frases feitas” e de pou-
como algo que restringe a liberdade. No co conteúdo no mundo dos fatos. O
direito civil, podemos citar os limites às mundo real, aquele que palpita lá fora,
nossas ações por cláusulas contratuais, mostra que os poderes hoje são apenas
às quais, mais aparentemente do que arremedo da vontade popular.
qualquer outra coisa, encontramo-nos Ora, se os próprios interessados
livres para aderir. No direito penal, a estão alijados do processo de escolhas,
imposição da pena é fator restritivo de não há como se admitir que serão livres
nossa liberdade. com a imposição de condições que al-
Logo, o direito é apenas mais um guns acreditam que lhes farão livres. A
instrumento eficaz de restrição das li- lógica de capacidades para a constru-
berdades. É claro que alguns utilitaristas ção de liberdades, assim, merece crí-
imediatamente irão lembrar que a liber- ticas: que capacidades? Decididas por
dade de um começa onde a liberdade do quem? Para fazer construir que tipo de
outro termina. Portanto, qualquer um é mundo? Aliás, aqui estamos diante
completamente livre, desde que não im- de qualquer crítica que se possa fazer
pinja, em nome de sua liberdade, ônus à à meritocracia, e devemos nos lembrar
liberdade de outra pessoa. das palavras de Paulo Freire, para quem
Não é de se estranhar que esse ra- ninguém deve ser considerado titular
ciocínio simplista remonte ao século da autonomia do outro.
XIX, às observações de Stuart Mill em Caso não se observem as críticas
sua clássica obra Sobre a liberdade. No anteriores, não estamos jogando um
entanto, no capitalismo, a apuração jogo de iguais. E liberdade sem igual-
da liberdade a ser preservada em face da dade não significa coisa alguma.
liberdade de outro não passa de sim-
Por isso, entende-se por que alguns
ples ilusão. A liberdade, nessa lógi-
preferem fazer uma leitura dicotômica
ca, é substituída imediatamente pela
ideia de interesse. O que era liberdade, da igualdade em relação à liberdade.
no capitalismo, equivale a liberdade/ Colocadas em lados opostos, fica muito
interesse. A noção de interesse, por sua mais fácil para a lógica capitalista a sua
vez, está intimamente relacionada com própria consolidação. Um capitalismo
a de poder. Prevalecem as liberdades, em que igualdade e liberdade, e acres-
isto é, os interesses dos que detêm o cento aqui, solidariedade, fossem postas
poder. Logo, no capitalismo, liberdade lado a lado, certamente seria muito difí-
é o mesmo que interesse/poder. cil – se não impossível – de concretizar.
A igualdade, nesse contexto, passa a Logo, a relação entre política e jus-
ser uma dimensão menor. Não se pode tiça, observados ainda os limites do di-
fazer que alguém desigual possa, para reito posto, está na busca da superação
receber certo benefício social, esco- dos limites de igualdade/liberdade im-
lher se pretende, ou não, submeter-se postos pela ordem capitalista.
às regras de alguém mais poderoso que Agora já temos elementos para o
escolheu por ele. Dizer que a lei é obra de segundo aspecto: o direito de resistên-
todos é uma falácia, pois o Legislativo, cia como espaço para a conquista de
que impingiu as condições, é escolhido novos direitos. Somente a arena políti-

190
Defesa de Direitos

ca, na condição de lugar de resistência, ria ser considerada, de forma bastante


é capaz de fazer gerar maior criação de simplista, a possibilidade de se levar
justiça como lugar da igualdade/liber- aos canais institucionais a luta pelos D
dade. Sem a primeira, a segunda não se direitos, conseguidos por meio da re-
realiza;; sem a segunda, a primeira é im- sistência, que se realiza pela política e
possível. Portanto, a resistência a uma se concretiza, também institucional-
ordem estabelecida conforme certos mente, pelo direito à resistência. Nessa
padrões indicados pela lógica poder/ esfera, a justiça busca se realizar por in-
interesse de certos setores menos com- termédio da luta nos canais instituídos,
prometidos com o bem-estar geral da para a construção de uma sociedade
coletividade é a única forma de esta- mais justa. Essa justiciabilidade geral-
belecer uma sociedade mais justa. So- mente é concebida em uma noção mais
mente mediante o exercício do direito restrita, confundindo-se com a busca
de resistência é que podem surgir no- pelos direitos no Poder Judiciário. Pre-
vos direitos, com o que a justiça se fará ferimos acreditar em uma noção mais
mais presente. ampla, em que ela apareça como a pró-
Diante da violência existente em pria expressão da resistência, com base
uma sociedade contra determinados na noção de justiça, em todos os canais
grupos, admite-se o direito de resistên- instituídos em que se dá a construção
cia. Há os que falam em direito à deso- do direito (inclusive nos poderes Legis-
bediência civil, postulado por autores lativo e Executivo).
liberais como Ronaldo Dworkin, em Política, justiça, resistência, con-
sua conhecida obra Levando os direitos quista de direitos e justiciabilidade são
a sério. Há os que falam em direito à expressões que se complementam na
revolução, alcunhada pelo prestigiado busca de uma sociedade que supere as
constitucionalista Friedrich Müller, no limitações daquela sociedade forma-
seu Fragmento (sobre) o poder constituinte tada nos atuais moldes restritivos do
do povo, que narra o seguinte episódio: capitalismo. Para tanto, é indispensável
“O último governante da dinastia de uma leitura sempre crítica do direito
Habsburgo reagiu à informação: ‘Majes- e a percepção de que a superação so-
tade, revolução!’ com a pergunta ‘Pois mente se faz a partir de uma socieda-
é, mas será que eles podem fazer isso?’” de mobilizada, para a qual a noção de
(Müller, 2004, p. 14). justiça como expressão da igualdade é
Preferimos, em consonância com a mais importante do que o próprio di-
mais moderna teoria dos direitos huma- reito. Somente a participação política é
nos, falar em direito de resistência ou de forma de concretização da igualdade.
legítima defesa social nos casos em que Concluímos lembrando que o direito
haja o desrespeito aos direitos fundamen- não emancipa ninguém. São as próprias
tais dos segmentos mais pobres da socie- pessoas, livres, iguais e, especialmente,
dade, direitos ligados ao que há de mais interagindo dentro de organizações,
básico e rudimentar na existência huma- movimentos populares, partidos políti-
na;; coisas como direito à terra, à moradia, cos, sindicatos, associações, descobrin-
à alimentação e ao trabalho, por exemplo. do-se como agentes da sua história e
Passamos, por fim, para o último da história do seu país, aprendendo a
item de nossa análise, em que tratamos intervir e intervindo coletivamente na
da noção de justiciabilidade. Ela pode- sociedade, que se emancipam.

191
Dicionário da Educação do Campo

Para saber mais


CANOTILHO, J. J. G.; CORREIA, E. P. B.; CORREIA, M. O. G. Direitos fundamentais
sociais. São Paulo: Saraiva, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
LYRA FILHO, R. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MÜLLER, F. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004.

DEMOCRACIA
Virgínia Fontes

O tema da democracia é um dos tolhida se não tem acesso às decisões


mais fascinantes e mais difíceis de tra- cruciais da vida econômica, se elas per-
balhar nas ciências humanas, pois es- manecem blindadas sob a propriedade
pelha fortes tensões na vida social, que do capital. A democracia denota na atua-
se refletem no interior da produção lidade ao mesmo tempo um conjunto
de conhecimento. de reivindicações e uma forma institu-
Para alguns, o conceito pode ser cional, muitas vezes conflitantes.
politicamente circunscrito ao quadro Sob o capitalismo, hoje mundial-
jurídico do Estado e ao seu arcabouço mente dominante e produtor de desi-
institucional e, sobretudo, eleitoral. A gualdades, a conquista de direitos, fruto
democracia seria uma forma específica de lutas sociais e políticas, quando res-
de organização da vida política e ad- trita ao âmbito jurídico-político, per-
mitiria viés descritivo (e prescritivo). manece limitada. Conquistas políticas –
Aproximado à noção de cidadania, reais e significativas – são coaguladas
expressaria um ponto culminante na pela disparidade do poder econômico,
história humana, em razão da aquisi- político, social e cultural que emana
ção de direitos civis, políticos e sociais da grande propriedade. As lutas pela
(Marshall, 1967). Mesmo para esses, a democracia, se não enfrentam o con-
democracia é muitas vezes apresentada junto das determinações da vida social,
de maneira fluida, como uma “ideia”, podem alcançar relevantes vitórias par-
simples, atrativa, renitente e, por vezes, ciais, mas também podem se converter
assustadora (Dunn, 1995, p. 9-11). em formas de acomodação de alguns
Para outros, dentre os quais me in- setores populares, como muitas vezes
cluo, o conceito não pode ser definido ocorreu no processo histórico.
de maneira isolada das demais condi- Tomaremos o termo em seu senti-
ções socioeconômicas e culturais que do mais amplo e não circunscrito. Em
organizam a vida social: a política resta lugar de considerar a “democracia”

192
Democracia

como algo finalizado com a implanta- ao conjunto das relações sociais das
ção de um regime político, como suge-
re a primeira definição, introduziremos
quais emergem. D
o viés da reivindicação democrática
ou da democratização (Lukács, 1998,
A democracia ateniense
p. 15-16) como correspondendo a uma É difícil datar o momento preciso
antiquíssima aspiração, o que não a im- em que as lutas pela democracia se ini-
pede de ser mais atual do que nunca: ciam: o relato histórico raramente con-
assegurar a igualdade (que é diferente solida as lutas dos subalternos, e tende
da homogeneidade) de todos os seres a registrá-los apenas quando a subver-
sociais, garantir a liberdade de todos e são da ordem é dramática ou quando
de cada um, proceder de maneira que a conquistam alguma vitória importan-
direção do destino coletivo emane de te, ainda que débil e frágil. A datação
todos, e que os benefícios e prejuízos clássica relaciona o nascimento da de-
das decisões, com seus erros e acertos, mocracia à Atenas do século V a.C.,
revertam a todos. onde se forjou o próprio termo. Essa
As reivindicações democráticas não é uma referência fundamental, pois ali
se limitam a um anseio genérico, mas se instaurou um regime social com teor
remetem a lutas concretas de classes radicalmente distinto dos até então
exploradas, de subalternos e oprimidos, conhecidos, com intensa participação
em diferentes sociedades e em diversos popular e iniciativas igualitárias. Tal
períodos históricos. A história dos ex- ênfase na experiência grega é todavia
perimentos democráticos é complexa: parcial, pois esquece as lutas anteriores
muitas vezes reivindicações democráti- de muitos outros povos – mesmo se os
cas obtiveram melhores condições para termos empregados fossem outros –
alguns setores subalternos, ou a incor- e que, mesmo derrotadas, deixaram
poração de alguns grupos na dinâmica marcas nos seus sucessores;; esquece as
social dominante, sem necessariamente influências recíprocas entre os povos;;
colocar em xeque o conjunto da desi- e, finalmente, é uma atitude que pode
gualdade e sem assegurar para todos as confortar eurocentrismos, como se as
liberdades experimentadas por alguns. lutas por democracia começassem na
A reivindicação democrática será trata- Europa, e isso garantisse uma espécie
da aqui como a constante atualização de qualidade superior e única à expe-
das lutas dos subalternos pela demo- riência europeia (Dussel, 2005). Mui-
cratização permanente, isto é, pela rea- tos autores sublinham a existência de
lização concreta das aspirações à liber- diversas influências anteriores à expe-
dade e à igualdade. riência ateniense – influências negras,
As variadas experiências históri- oriundas do Egito;; influências fenícias
cas de democratização revelam-se ao (Hornblower, 1995) –, demonstrando
mesmo tempo originais e limitadas, que o processo histórico não é linear,
demonstrando a intensidade de sua mas complexo e contraditório.
persistência. As lutas democratizan- Assim, se as lutas sociais não se
tes e suas experiências concretas rara- iniciam com Atenas, ou, melhor dizen-
mente se circunscreveram à forma de do, com a Ática – o território da ci-
governo;; ao contrário, relacionam-se dade-Estado no qual se situava Atenas,

193
Dicionário da Educação do Campo

local da atual capital grega –, foi ali que vel contradição: ao resistirem contra a
a democracia encontrou não apenas a sua própria escravidão, esses campone-
sua primeira realização mais duradoura, ses admitiram o crescente ingresso de
mas também suscitou intensa literatura. escravos de outras regiões, que, dora-
O termo democracia, em grego, embo- vante, realizariam as tarefas que ante-
ra signifique governo do povo, repre- riormente lhes incumbiam nas terras
sentou bem mais do que isso, envol- dos grandes proprietários, no traba-
vendo modificações expressivas na lho das minas e nos serviços domés-
vida social. A construção da experiência ticos. Democracia e escravidão em
democrática grega é muito contraditó- Atenas estiveram unidas de maneira
ria, porém riquíssima do ponto de vista inseparável (Wood, 2003, p. 161).
da consolidação prática de uma expe- Esses embates não se limitaram,
riência original e das tensões que ex- porém, à libertação dos camponeses
plicitou precocemente sobre a relação atenienses, e desembocaram numa cres-
entre forma de governo e vida social cente participação dos homens adultos
(Mazzeo, 2009). atenienses – mulheres e estrangeiros li-
A cidade-Estado (pólis) de Atenas vres estavam excluídos – nos processos
era predominantemente agrária, porém de decisão coletiva e na garantia de uma
o crescimento das desigualdades e a crescente igualdade entre eles. Por essa
constituição de grandes famílias levara razão, é difícil afirmar – como o fazem
a processos de escravização por dívi- muitos – que a experiência democrática
das, opondo grandes e pequenos pro- grega se limitou ao terreno da política,
dutores agrários. A origem ateniense embora seja considerada o momento da
da democracia remete, portanto, à luta “invenção da política” (Finley, 1985).
entre pequenos camponeses e grandes Vejamos algumas das inovações da de-
proprietários de terras. A escravidão mocracia ateniense. Lembremos que
era disseminada no mundo antigo sob Atenas, durante o auge da experiência
múltiplos formatos. Para Ellen Wood democrática, contava com uma popu-
“os gregos não inventaram a escravi- lação de algo mais de 200 mil pessoas,
dão, mas, em certo sentido, inventaram dentre as quais um máximo de 40 mil
o trabalho livre” (2003, p. 157), pois a homens adultos (livres e cidadãos), e
luta camponesa contra a sua escravi- seu contingente de escravos situava-se
zação tornaria evidente a conexão da em torno de 80 mil pessoas.
liberdade com a igualdade. Wood en- Atenas, no período democrático
fatiza a importância desse caráter cam- mais significativo, era dirigida por um
ponês da democracia ateniense: “Não conselho com quinhentos integrantes,
seria exagero afirmar, por exemplo, provenientes de todas as circunscri-
que a verdadeira característica da pólis ções, urbanas ou rurais (os demoi), que
como forma de organização de Estado somente poderiam ser indicados duas
é exatamente essa, a união de trabalho e vezes em toda a sua vida, o que garan-
cidadania específica da cidadania campo- tia uma participação rotativa e ampliada
nesa” (ibid., p. 162). nas decisões da vida social. Seus inte-
A importância dessa luta pela liber- grantes tinham direito a uma remune-
tação camponesa não pode ser diminuí- ração pública, assim como os jurados,
da, mesmo se resultou numa formidá- permitindo a participação plena dos

194
Democracia

camponeses pobres. Tratava-se de uma tenham atingido o patamar ateniense.


democracia direta, e não representati-
va: todos os cidadãos podiam assistir
Mencionando o período final da Re-
pública Romana, Finley diz que “os
D
à assembleia: inexistiam funcionários e oradores e os escritores desse perío-
burocracia. O governo era exercido de do mostram uma consciência de clas-
fato pelos homens atenienses adultos, se tão explícita que apenas um histo-
que conquistaram pleno direito à fala. riador moderno muito limitado pode
A assembleia decidia sobre todos os silenciar sobre as divisões de classe”2
assuntos, realizando pelo menos qua- (Finley, 1985, p. 24;; nossa tradução).
renta reuniões por ano e era composta Apesar de importantes conquistas ple-
por milhares de cidadãos de mais de 20 beias – como o direito aos casamentos
anos. As decisões eram tomadas por mistos, o fim da escravidão por dívi-
maioria simples. Grande parte dos car- das, a criação de tribunos da plebe (e
gos era ocupada por sorteio. Isso favo- de suas votações, os plebiscitos) –,
recia a disseminação do conhecimento elas permaneceram subordinadas às
prático das questões sociopolíticas e câmaras integradas pelos patrícios e,
impedia a formação de um corpo de em muitos casos, foram posteriormente
profissionais da política. eliminadas pela aristocracia patrícia.
As guerras e a expansão imperial
ateniense trariam ainda mais complexi- Democracia e capitalismo
dade a esse quadro. As difíceis vitórias
de Atenas contra as tentativas de in- Será com a consolidação do capi-
vasão persa (as guerras médicas, entre talismo, sobretudo a partir do final do
490 e 479 a.C.) resultaram na expansão século XVIII, que as reivindicações de-
imperial da cidade-Estado, mediante mocratizantes voltarão à cena histórica
o seu predomínio na Confederação de de maneira mais frequente e com no-
Delos. A riqueza assegurada pelo Impé- vos desdobramentos, porém também
rio permitiria a redução das tensões e reatualizando antigos impasses. Trata-
lutas internas, levando um grande espe- se de uma peculiar configuração histó-
cialista a asseverar: “de fato, o que eu rica e social que revolucionou comple-
sustento é que o sistema plenamente tamente as relações sociais anteriores,
democrático da segunda metade do sé- baseadas na vida camponesa e servil das
culo V a.C. não teria sido introduzido grandes massas e na existência de uma
se não houvesse o Império ateniense”1 nobreza guerreira. A dinâmica capitalis-
(Finley, 1976, p. 105;; nossa tradução). ta recolocaria sob outro formato o tema
As profundas contradições que marca- da liberdade e da igualdade sociais.
ram a democracia ateniense seriam rea- Para apreender as complexas deter-
tualizadas em muitos outros períodos minações que envolvem o tema da de-
históricos, razão pela qual devem evitar- mocracia, permitindo refletir sobre ela
se julgamentos apressados dessas ex- de maneira mais ampla, convém averi-
periências históricas, quer tornando-as guar os fundamentos da liberdade e da
“modelares”, quer desqualificando-as. igualdade em sociedades regidas pela
Também em Roma ocorreram lógica capitalista. Como sabemos, o
formidáveis lutas, com algumas sig- capitalismo é uma forma específica de
nificativas conquistas, embora jamais relação social, na qual a grande maioria

195
Dicionário da Educação do Campo

da população é desprovida de meios de de tipo contratual: para uns, vender a


assegurar a própria existência (despro- força de trabalho é condição necessária
vida de meios de produção). Essa mas- e urgente para garantir a própria sub-
sa urbana e livre originou-se da expro- sistência;; ademais, o crescimento da
priação do povo do campo que, sem população exacerba a concorrência
poder assegurar sua sobrevivência, teve entre eles. Assim, a venda da força de
de vender o que lhe restava: a capacidade trabalho precisa ser assegurada não
de trabalhar. Esse trágico processo de apenas eventualmente, mas de manei-
expulsão camponesa, entretanto, será ra permanente. Ora, mesmo quando
apresentado como a realização da anti- o trabalhador consegue vendê-la, não
ga aspiração de liberdade, uma vez que tem nenhuma garantia de conseguir a
agora os trabalhadores livres não estão sua permanência: o risco da demissão é
mais submetidos ao controle direto de sempre iminente. A própria existência
um proprietário (como estavam os ser- está em jogo.
vos ou os escravos). Essa nova liberda- Para os proprietários, os trabalha-
de, a de não mais depender diretamen- dores serão admitidos ou demitidos,
te de um senhor, revela-se incompleta, segundo a conveniência para a valori-
pois é a condição da sujeição aos capri- zação de seu capital, e eles tendem a
chos do mercado de trabalho. figurar apenas como mais uma peça na
Vejamos agora o que concerne à engrenagem do processo produtivo.
igualdade. Os proprietários de meios Sem trabalhadores, a dinâmica capita-
de produção (os detentores da rique- lista não pode existir, mas lhe é indi-
za econômica) compram essa força de ferente – e mesmo conveniente – que
trabalho como qualquer outra merca- haja enorme quantidade de trabalha-
doria, pelo seu valor, que corresponde dores procurando trabalho, ofertando-
ao tempo socialmente necessário para se ao menor preço. Dessa forma, será
reproduzir o próprio trabalhador, mas possível obter maior obediência dos
dispõem do uso dessa força por certo trabalhadores, atemorizados com a
lapso de tempo, no qual podem fazê-lo concorrência e com a demissão.
trabalhar muito mais do que o corres- A desigualdade social – o contraste
pondente ao valor dessa força. O ser entre a riqueza e a necessidade – é a
humano é capaz de produzir muito base da suposta igualdade na relação de
mais do que necessita para sobreviver, e compra e venda da força de trabalho.
é esse excedente de trabalho que cons- Essa relação é traduzida juridicamen-
titui o fundamento do lucro capitalista. te na forma do “contrato” – forma
A relação que se estabelece entre os que, inclusive, fornece o modelo para
detentores de meios de produção (meios a suposição de que o próprio Estado
que permitem produzir bens e assegurar resultaria de uma adesão voluntária a
a reprodução da existência) e os trabalha- um “pacto” ou “contrato” realizado
dores necessitados de vender sua força igualmente por todos e, por essa razão,
de trabalho é considerada uma relação tornado legítimo e insuperável. Trata-
entre iguais, como a que supostamente se de uma igualdade apenas formal,
ocorre em qualquer relação mercantil, cuja essência preserva e aprofunda a
qualquer relação de compra e venda. desigualdade entre os seres sociais.
Como se observa, uma profunda A liberdade e a igualdade existentes
desigualdade se oculta nesta relação sob o capitalismo são contraditórias.

196
Democracia

Expressam conquistas históricas, mas de igualdade, ao abordar todos os


reforçam e resultam de desigualdades elementos da vida real do povo
sociais que tolhem a liberdade da gran- do ponto de vista do Estado. D
de maioria. Marx e Engels realizaram a Contudo, o Estado deixa que a
mais profunda crítica da sociedade ca- propriedade privada, a cultura e
pitalista. Mostraram claramente como a ocupação atuem a seu modo, isto
a ordem jurídica burguesa – inclusive a é, como propriedade privada,
que rege os processos eleitorais – resul- como cultura e como ocupação,
ta de uma profunda cisão social, tradu- e façam valer a sua natureza es-
zida na contraposição entre o âmbito pecial. Longe de acabar com es-
privado e o público. Essa cisão exaspe- tas diferenças de fato, o Estado
ra dois níveis de contradição: preserva a só existe sobre tais premissas,
propriedade privada, que condensa só se sente como Estado político
e concentra crescentemente o poder e só faz valer sua generalidade em
econômico, ao mesmo tempo em que contraposição a estes elementos
idealiza o Estado, como se ele respon- seus. (Marx, 2005, p. 22)
desse a todos de maneira homogênea,
como se fosse uma razão acima da vida No segundo nível de contradição,
social. A igualdade formal perante a lei Marx sublinha como a forma da pro-
legitima e protege a desigualdade real.
dução organizada pelos grandes pro-
Marx, comentando sobre a separa- prietários tende a ser socializada, isto é,
ção entre Estado e religião, considera- realizada de maneira cooperada por to-
va que “não há dúvida de que a eman- dos os trabalhadores, cada vez mais in-
cipação política [do Estado diante das tegrados numa extensa e complexa ca-
religiões particulares] representa um deia produtiva e que abrange territórios
grande progresso” (Marx, 2005, p. 22). cada vez maiores, enquanto a forma da
Não obstante, esse progresso perma- propriedade e da organização da vida
nece insuficiente no que diz respeito à social segue regida pela propriedade pri-
emancipação real da humanidade, que vada, cada dia mais concentrada. Rea-
somente pode fundar-se na sua prática
firma a urgência da superação da cisão
concreta de produção e reprodução da
entre a vida efetiva da grande maioria – a
existência. O papel real da propriedade
socialização do processo produtivo –
privada na vida social capitalista é ocul-
e a forma pela qual ela se apresenta,
tado sob a forma cindida da política,
na qual predomina a idealização formal alienada à propriedade privada, sob o
da igualdade: Estado capitalista. Antonio Gramsci,
o grande pensador italiano, acrescentaria
O Estado anula, a seu modo, as que as lutas históricas dos trabalhadores
diferenças de nascimento, de status envolviam tanto a socialização real da
social, de cultura e de ocupação, ao existência (com o fim da propriedade
declarar o nascimento, o status privada dos meios de produção) quanto
social, a cultura e a ocupação a socialização da política.
do homem como diferenças A reiteração cotidiana dessas con-
não políticas, ao proclamar todo tradições suscita no conjunto das pes-
membro do povo, sem atender soas comuns a percepção tanto das
a estas diferenças, coparticipan- limitações de sua liberdade quanto da
te da soberania popular em base inexistência efetiva de igualdade em

197
Dicionário da Educação do Campo

contratos (formalizados ou não) esta- Essa nova organização concreta e a


belecidos entre desiguais. As reivindi- cada dia mais sólida de trabalhadores
cações democratizantes, portanto, se passou a atemorizar os setores domi-
intensificam sob o capitalismo, procu- nantes, resultando em modalidades
rando superar as limitações impostas gradativas (mas segmentadas) de de-
por essa forma social de existir que ao mocratização, cuja expressão mais
mesmo tempo exalta a importância da conhecida é o direito à sindicalização
liberdade e da igualdade e as reduz a e ao sufrágio, implantados a partir
palavras com escasso sentido. de finais do século XIX. Esse último
Duas grandes guerras civis marca- somente se tornaria universal poste-
ram o novo poder burguês: as revolu- riormente, já bem entrado o século
XX, quando ocorreu o acesso ao voto
ções inglesas do século XVII e a Revo-
para as mulheres.
lução Francesa de 1789. As palavras de
ordem desta última, “Liberdade, Igual- Novamente, foram conquistas sig-
dade e Fraternidade”, demonstram a nificativas e contraditórias. Com sua
marca popular mesclada com as propo- incorporação à política, os trabalhado-
sições da burguesia então ascendente, res, em maior número, poderiam (ao
limitadas a uma reorganização do Esta- menos em princípio) alterar a forma da
do. Derrotados os setores populares, a organização da vida social. No entan-
Revolução Francesa traduziria a vitória to, as conquistas tiveram também um
política da burguesia sobre a nobre- gosto amargo, levando alguns autores
za precedente. Entretanto, o Estado a considerá-las uma “domesticação”
que se seguiu a tais lutas nada tinha elitista (Hobsbawm, 1988, p. 125-162),
de democrático. pois a institucionalização do sufrágio
levou ao desmantelamento da lógica da
Ao longo de todo o século XIX, organização nacional dos trabalhado-
trabalhadores europeus lutaram ardua- res e uma nova retórica velada dos par-
mente, com objetivos de abrangências lamentares substituía o debate franco e
diversas: reivindicavam sobretudo di- aberto. Além disso, o ingresso no par-
reito ao trabalho (jamais conseguido), lamento modificava a atuação de certos
à participação nos processos de sele- representantes dos trabalhadores que,
ção de dirigentes, à educação pública afastados de seu meio de origem, se
e laica;; e construíram formas próprias acostumavam aos ambientes luxuosos
de organização, enfrentando longuíssi- e passavam a atuar conjuntamente com
ma e violenta proibição da associação as classes dominantes. Os custos das
de trabalhadores etc. Muitas dessas lu- campanhas eleitorais, que demonstra-
tas foram derrotadas em verdadeiros vam a importância crescente do poder
banhos de sangue, como ocorreu na econômico, fizeram pensadores libe-
Comuna de Paris em 1871, quando os rais como Schumpeter, em meados do
trabalhadores e a população assumiram século XX, dizerem abertamente que o
seu autogoverno, em todas as dimen- sufrágio universal não significava uma
sões da vida: econômica, cultural, edu- escolha popular, antes expressava a
cativa, política etc. constituição de um mercado eleitoral.
As lutas sociais expressavam a pos- A Revolução Russa de 1917 e a
sibilidade efetiva de transformar com- persistência da União Soviética após
pletamente a forma de ser social, de a Segunda Guerra Mundial introdu-
revolucionar o conjunto da existência. ziram uma tensão constante entre

198
Democracia

um projeto socialista, de democracia critério essencial de democra-


social com forte teor igualitário, e o cia. Essa definição nos permite
mundo capitalista, que exibia uma de- invocar a democracia contra a D
mocracia política sob a qual se gene- oferta de poder ao povo na es-
ralizaram importantes direitos sociais, fera econômica. Torna mesmo
sobretudo para as populações euro- possível invocar a democracia
peias e estadunidenses, no que ficou em defesa da redução dos di-
conhecido como o “Estado de bem- reitos democráticos em outras
estar social”. A experiência soviética, partes da “sociedade civil” ou
cuja influência foi relevante para asse- no domínio político, se isso for
gurar conquistas sociais em inúmeros necessário para proteger a pro-
países, apesar de ter resultado de um priedade e o mercado contra
formidável processo revolucionário, o poder democrático. (Wood,
converteu-se numa ditadura partidária 2003, p. 202)
com reduzida participação das grandes
massas na condução da vida social, o Antes mesmo do final da União
que levaria ao crescimento de desigual- das Repúblicas Socialistas Soviéticas
dades internas que minavam o discurso (URSS), ao longo de toda a década de
oficial e levariam à sua derrocada. 1980, também nos países capitalistas, as
As prerrogativas democráticas mo- conquistas de teor democrático estive-
dernas, duramente conquistadas em ram sob ataque. Crescia o processo de
diversos países, sobretudo a partir do blindagem do controle econômico (e mi-
século XIX, são, entretanto, constan- diático) em relação às decisões políticas,
temente revertidas no seu contrário: acarretando sucessivas perdas de direi-
pelo seu amesquinhamento, ao serem tos sociais, que prosseguem em nossos
reduzidas à “liberdade da circulação dias. Neste ano de 2011, multiplicam-se
da propriedade e de mercado”, ou pe- em todo o mundo reivindicações e lu-
los recursos cada vez mais faraônicos tas democratizantes, seja para superar
envolvidos nos processos eleitorais, ditaduras, como nos países árabes, seja
o que reafirma o poder econômico para denunciar o caráter incompleto de
(e cultural) na institucionalidade do Es- procedimentos eleitorais que se limitam
tado. Embora o sufrágio universal seja a reproduzir as desigualdades do capital
vitória da imensa maioria da popula- e do mercado, como na Espanha.
ção, a permanência das classes sociais A democracia é um conceito ina-
impede a sua evolução democratizante cabado e em processo. As reivindica-
(Macpherson, 1978), gerando cinicamen- ções democratizantes incorporam as
te reduções da liberdade e da igualdade: lutas por igualdade e por liberdade,
que não podem estar isoladas. Por essa
A própria condição que torna razão, limitar a definição de democra-
possível definir democracia cia unicamente ao âmbito político faz
como se faz nas sociedades li- submergir as reivindicações igualitárias
berais capitalistas modernas é sob o peso da institucionalização da
a separação e o isolamento da propriedade do capital. Porém, a cons-
esfera econômica e sua invul- trução de uma efetiva socialização da
nerabilidade ao poder demo- existência supõe a mais ampla e livre
crático. Proteger essa invul- participação das massas em todos os
nerabilidade passou a ser um processos decisórios.

199
Dicionário da Educação do Campo

Notas
1
“Ce que je soutiens en fait, c’est que le sustème pleinement démocratique de la seconde
moitié du Ve. s. av. J.C n’aurait pas été introduit s’il n’y avait eu l’Empire athénien.”
2
“[...] les orateurs et les écrivains de cette période (ou ceux qui en parlent) montrent une
conscience de classe si explicite que seul un historien moderne très borné peut garder un
silence total sur les divisions de classe.”

Para saber mais


DUNN, J. (org.). Democracia: el viaje inacabado (508 a.C.-1993 d.C.). Barcelona:
Tusquets, 1995.
DUSSEL, E. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, E. A colonialidade
do saber. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 55-70.
FINLEY, M. I. Démocratie antique et démocratie moderne. Paris: Payot, 1976.
______. L’Invention de la politique. Paris: Flammarion, 1985.
HOBSBAWM, E. J. A Era dos Impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
HORNBLOWER, S. Creación y desarrollo de las instituciones democráticas en la anti-
gua Grecia. In: DUNN, J. (org.). Democracia: el viaje inacabado (508 a.C.-1993 d. C.).
Barcelona: Tusquets, 1995. p. 13-29.
LUKÁCS, G. Socialisme et démocratisation. Paris: Messidor, 1989.
MACHPERSON, C. B. A democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MARX, K. A questão judaica. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2005.
MAZZEO, A. C. O voo de Minerva. São Paulo: Boitempo/Editora da Unesp, 2009.
WOOD, E. M. Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.

DESAPROPRIAÇÃO
Miguel Lanzellotti Baldez

Para bem entender o conceito ju- público, ato discriminatório da autori-


rídico de desapropriação constitu- dade administrativa, que pode executá-
cionalizado no Brasil como modo de lo sem dar satisfação ou pedir licença
aquisição da propriedade pelo poder a qualquer outro poder institucional,

200
Desapropriação

é necessária uma rápida consideração registro imobiliário quando se trate de


política sobre o papel do direito numa
sociedade dividida em classes como a
ato entre vivos (venda e compra, que
exige disponibilidade de dinheiro, mo-
D
nossa. Pois bem, o direito imposto no nopolizado pelo Estado em benefício do
Brasil, disfarçado ou dissimulado em capital, e a raríssima doação), sucessão
regras abstratas – quer dizer, normas hereditária, que serve para consolidar
que consideram todos iguais, sem dis- patrimônios já formados, usucapião –
tinguir diferenças sociais nem econô- hoje até certo ponto democratizado,
micas –, é o direito construído histori- mas que historicamente serviu para
camente pela classe dominante, a classe agregar terra ao latifúndio –, e acessão,
burguesa, hoje representada de modo modos de aquisição claramente limita-
predominante pelo capital internacio- tivos e inacessíveis aos trabalhadores.
nal. Essa preliminar é fundamental Resta-lhes a posse ou apossamento
para bem entender-se que a desapro- individual, como se dá nas favelas, ou
priação é instrumento de intervenção coletivo, como se dá principalmente no
administrativa vinculada e submissa à campo pelo Movimento dos Trabalha-
propriedade e, consequentemente, um dores Rurais Sem Terra (MST), ou ain-
direito instituído como salvaguarda de da, na cidade, quando os trabalhadores,
quem seja proprietário. Ou seja, embo- afirmando coletivamente a necessidade
ra tratada como efeito jurídico que ex- ética de morar, ocupam a terra. Aí o
tingue a propriedade individual, consti- trabalhador, inevitavelmente definido
tui, na verdade, o meio que assegura ao no campo do direito oficial como pos-
expropriado a substituição do bem por suidor, ainda tem de lutar contra a vio-
outro de igual valor, a indenização (que lência contida nas entranhas do capital,
etimologicamente significa deixar sem para a conservação da posse.
danos o patrimônio do proprietário),
Em suma, quando o poder público
cujo pagamento deve ser prévio, em di-
nheiro e conforme valor de mercado. exige das classes trabalhadoras, nas ci-
dades, a casa ou o terreno em que mo-
E o trabalhador alguma hora é pro- ram para destinar o bem a qualquer fim
prietário? Às vezes é, mas sendo, sem- público definido na Constituição ou
pre, ou quase sempre, construir a casa
em leis infraconstitucionais relativas à
própria exige dele grande sacrifício.
desapropriação, o método, tratando-se
Compra ou ocupa um terreno e vai aos
do trabalhador, é a violência contida na
poucos construindo a casa na medida
própria dialética da sociedade brasilei-
em que lhe sobra, no correr do tempo,
do parco salário ou da noite de sobre- ra, nas práticas de remoções coletivas
trabalho, um tanto qualquer para iniciar sabidamente admitidas por juízes e tri-
e prosseguir na construção, até que, pas- bunais, cuja leitura da realidade é sem-
sados cinco, oito, dez anos, tem a casa pre contaminada pela ideologia jurídica
pronta, ou, no mínimo, habitável... própria de sua formação burguesa.
Mas é muito difícil que, no campo Vale ressaltar que, no campo, em
ou na cidade, o trabalhador consiga face da tradição das lutas camponesas
tornar-se proprietário, pois o Códi- que confluíram para a bem-sucedida e
go Civil, tanto o de 1916-1917 quanto estratégica ação do MST relativamente
o atual, de 2002-2003, só admite qua- à terra, o instituto da desapropriação
tro modos de aquisição da propriedade: foi utilizado, de modo muito sutil e

201
Dicionário da Educação do Campo

difícil de perceber, para dificultar, re- no campo quando trata da proteção à


tardar ou impedir a Reforma Agrária. propriedade individual ou latifundiária.
Entenda-se: nas desapropriações para Por isso, vale abordá-la nos termos e
Reforma Agrária, a terra expropriada com as formalidades de seu tratamento
só será suscetível de desapropriação pelos tribunais e juristas do sistema.
quando for comprovadamente impro- Nesses termos, desapropriação é
dutiva, abrindo-se assim largo lapso de modo de aquisição da propriedade
tempo, em processo administrativo e pelo poder público, ato administrati-
judicial para que o latifúndio, valendo- vo de caráter discricionário quanto ao
se de meios legais ou ilegais, fabrique mérito, pois cabe apenas à autorida-
uma duvidosa prova da produtivida- de competente reconhecer e declarar
de da terra. Só depois de decorrido a conveniência e a oportunidade da
esse lapso de tempo estará definitiva- desapropriação, desde que obedeci-
mente concluído o ciclo necessário à dos os parâmetros formais definidos
aquisição da terra e à consumação do na Constituição Federal e nas leis in-
assentamento. Isso se o processo e o fraconstitucionais. Em regra, é ato da
procedimento forem bem-sucedidos e competência privativa da Presidência
diferentes da desapropriação tradicio- da República, dos governadores dos
nal, historicamente definida como ato estados e dos prefeitos municipais, nos
de império do poder público, cujo pro- limites espaciais de cada unidade fede-
cedimento é ágil e eficaz quando visa rativa. Modo originário de aquisição
aos interesses, legítimos ou não, das ca- de bens, a desapropriação repercute no
madas privilegiadas da população, ten- campo do direito privado mediante a
do de longe e à espreita a especulação perda da propriedade. Formal e rela-
imobiliária, essa paroxística modalidade tivamente ao bem objeto da desapro-
de produção capitalista da cidade. priação, ocorre assim, mas, na essên-
Com relação ao trabalhador cuja cia, a legislação constitui, no modo de
igualdade se esgota no caráter abstra- produção capitalista, a garantia maior
to da norma jurídica, a desapropriação da propriedade individual. Isso por ins-
tem uma face dupla, ou não se aplica, tituir-se na Constituição (artigo 5º,
quando poderia, na cidade, favorecer inciso XXIV) que a desapropriação só
o possuidor do imóvel, assegurando- se consumará depois de pago ou depo-
lhe o recebimento da indenização pela sitado o justo preço, em suma, depois
perda do bem, como prevê a Consti- de substituído o valor do bem pelo
tuição Federal;; já no campo, quando valor indenizatório (que etimologica-
se desapropria para efetuar a Reforma mente significa deixar sem danos);; im-
Agrária, modifica-se a estrutura legal plica, portanto, uma troca de valores
de seu procedimento com obstáculos economicamente iguais.
e dificuldades formais cujo objetivo é Ainda no campo das relações jurí-
retardar ou impedir de vez a conclusão dicas privadas, o Código Civil, como
da Reforma Agrária. não poderia deixar de ser, vai pontuar
No entanto, a desapropriação em todas as hipóteses de incidência do ato
sua tecnicidade, traçada pelo direi- expropriatório nos interesses indivi-
to burguês, é o ritual de que mais se duais, merecendo destaque a tredesti-
vale o Estado tanto na cidade quanto nação, ou desvio de finalidade. Embora

202
Desapropriação

se permita ao expropriante variar seus quias, em virtude de sentença, à siste-


motivos, desde que obedeça ao elenco
dos pressupostos legais autorizativos da
mática dos precatórios com obediência
à ordem de apresentação. Anote-se que,
D
declaração de utilidade ou necessidade em se tratando de desapropriação, não
pública e de interesse social, a tredes- se pode falar de dívida em virtude de
tinação fora desses limites é proibida. sentença, porque ela só existe nos casos
Contudo, apesar de proibida a tredesti- de sentença condenatória, e a sentença
nação, não se admite, no direito positi- na ação expropriatória, admitindo-se a
vo brasileiro, a retrocessão ou retorno contenciosidade da ação, tem natureza
do bem expropriado ao patrimônio meramente declaratória. Consequente-
privado, cabendo ao antigo proprietá- mente, pode-se dizer que a aplicabili-
rio, em caso de desistência da desapro- dade do artigo 100 da Constituição às
priação pelo poder público, apenas o hipóteses de pagamento da indenização
direito de preferência na alienação do por desapropriação deve-se a princípios
bem, reconhecido subsequentemente éticos de conveniência administrativa.
à desapropriação, como desnecessá- Sob o ângulo dos interesses priva-
rio ao fim a que se destinava. É o que dos, pode-se afirmar que a desapro-
dispõe o artigo 519 do Código Civil. priação constitui um dos principais
Quanto ao preço, desde que não haja instrumentos de que dispõe a indústria
entre expropriante e expropriado acor- imobiliária para a produção capitalis-
do sobre seu valor, a indenização será ta da cidade, admitindo-se inclusive a
fixada em ação de procedimento espe- cedência da prática expropriatória às
cial – a chamada ação de desapropria- concessionárias de serviços públicos.
ção. Nela não se admite, na tradição São várias as modalidades objetivas
do direito processual brasileiro, a even- de desapropriação na produção do
tual discutibilidade do mérito do de- urbano. Além da forma mais usual e
creto declaratório e constitutivo da comum – a aquisição do bem para des-
desapropriação, à exceção de pontuais tinação individuada prevista no decre-
vícios formais, limitando-se o mérito to –, admite-se a desapropriação por
da demanda – realizadas as condições da zona e a modalidade, pouco comum
ação e os pressupostos do processo –, no Brasil, chamada excess condemnation,
restritamente ao valor da indenização, algumas vezes confundidas e reduzidas
ou seja, à fixação do preço que o ex- a uma titulação abrangente das duas
propriante deverá pagar para adquirir modalidades. Deve-se notar, porém,
pela desapropriação o bem expropria- que a desapropriação por zona tem por
do;; nos termos da Constituição, o justo objetivo evitar que, a partir do ato vin-
preço do imóvel. cadamente comprometido com o bem
Cabe aqui uma indagação processual necessário à finalidade institucional,
sobre a natureza da sentença de proce- outros de seu entorno sejam exagera-
dência nas ações de desapropriação ou damente valorizados, ao passo que a
de fixação da indenização expropriató- excess condemnation é meio de captação
ria, a fim de que se entenda a sua sujei- de recursos para financiamento da
ção à regra do artigo 100 da Constitui- obra pública ou reposição dos recursos
ção Federal, que subordina o pagamento absorvidos pelo vulto da obra. Como
das dívidas da Fazenda federal, estadual exemplo histórico, pode-se apontar,
e municipal e suas respectivas autar- no Rio de Janeiro, a abertura da ave-

203
Dicionário da Educação do Campo

nida Presidente Vargas. As duas mo- mento em títulos da dívida pública res-
dalidades estão previstas no artigo 4º gatáveis no prazo de vinte anos, só será
do decreto-lei nº 3.365, de 1941, sob possível quando se tratar de desapro-
o nome “desapropriação por zona” priação de terra improdutiva – a única
(Brasil, 1941). susceptível de desapropriação para Re-
A Constituição de 1988, ao erigir forma Agrária, por não cumprir a sua
a função social da propriedade como função social, como preveem os arti-
garantia fundamental, incluiu o uso da gos 184 e 186 da Constituição.
propriedade no elenco das garantias in- Nessas duas situações de desapro-
dividuais e coletivas (artigo 5º, inciso priação por interesse social para fins
XXIII). Em consequência, previu a de- que atendam a interesses coletivos e
sapropriação dos imóveis urbanos ou modifiquem política e juridicamente o
rurais que não cumprirem, segundo os tratamento estrutural e estratégico da
critérios que estabelece, sua função so- terra, como já se anotou sobre o caráter
cial (artigo 182, inciso III, e artigos 184 político da desapropriação, configura-
e 186). Há um dado que merece desta- se importante repercussão no processo
que nestas modalidades de desapropria- expropriatório em toda a sua extensão
ção: seu compromisso com o interes- e na chamada ação de desapropriação,
se coletivo, uma vez que esse modelo introduzindo-se, no campo amplo do
constitucional não se limita à dicção do processo e no campo específico da
interesse historicamente definido como ação, a discutibilidade tanto do méri-
público na divisão maior do direito em to do ato administrativo, formalizado
público e privado, alcançando em seus no decreto declaratório do interesse
efeitos as necessidades fundamentais de social, quanto do mérito, em sentido
camadas despossuídas da coletividade. processual civil, da ação de desapro-
A desapropriação prevista no arti- priação. Isso permite à processualística
go 182, inciso III, relativa aos imóveis que, nas ações típicas para a reforma
urbanos, significa a etapa derradeira urbana ou Reforma Agrária, discuta-se
da sequência de sanções estabelecidas também, em benéfico do expropriado,
como penas pelo não uso ou mau uso da proprietário de casas urbanas ou de
propriedade. Esse tipo de sanção, cujo latifúndios rurais, a legalidade do ato
preço poderá ser pago em títulos da administrativo, ou seja, se a terra cum-
dívida pública com prazo de regaste de pre ou não sua função social, dificul-
até dez anos – uma exceção à regra que tando-se, ou protelando-se no tempo,
exige pagamento prévio e em dinheiro –, a prática dos atos processuais, sempre
só será possível depois de esgotadas, que se trate de desapropriação no inte-
em ordem sucessiva prevista na Cons- resse dos despossuídos.
tituição Federal, as duas anteriores es- Algumas ponderações devem ser
pécies de sanção: parcelamento ou edi- feitas em relação à eventual urgência
ficação compulsórios e impostos sobre da desapropriação. O poder público
propriedade predial e territorial urbana pode declarar, por meio de decreto,
progressivos no tempo, sujeitos ambos quando necessário, o caráter urgente
a demorado procedimento. da desapropriação, qualquer que seja
Quanto à desapropriação para fim seu fundamento e a finalidade à que se
de Reforma Agrária mediante paga- destina. Com a declaração de urgência,

204
Desapropriação

fica o expropriante autorizado a imitir- propriação, efeitos constitutivos, como


se (entrar) na posse do bem mediante
o depósito do valor que garanta, sem
a permissão à autoridade competente
para penetrar no bem e nele praticar
D
prejuízo do expropriando, a imissão os atos necessários à medição e iden-
definitiva na posse do bem quando, tificação da área exproprianda. Com
afinal, for pago o preço pelo qual o ex- a imissão provisória, suspende-se,
propriante pode adquirir de vez o dito nessa área, a incidência de impostos
bem. Na hipótese de imissão provisó- relativos ao bem. Paga ou deposita-
ria, trata-se de caução, mera garantia. da a indenização e imitido o expro-
Cabe, ainda, uma consideração so- priante na posse definitiva do bem,
bre a eficácia do decreto expropriatório. encerra-se a expropriação. E por tra-
Não é ato, com ou sem imissão provisó- tar-se de aquisição originária, o re-
ria, de eficácia meramente declaratória, gistro do imóvel, se houver, simples-
apesar do nome jurídico, pois produz, mente servirá para dar publicidade à
além de declarar a finalidade da desa- cadeia dominial.

Para saber mais


BRASIL. Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941: dispõe sobre desapro-
priações por utilidade pública. Diário Oficial da União, Brasília, p. 14.427, 18 jul.
1941.
BALDEZ, M. L. A luta pela terra urbana. Revista de Direito da Procuradoria Geral do
Estado do Rio de Janeiro, n. 51, p. 152-170, 1998.
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DREIFUSS, R. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989.
MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
______. A Reforma Agrária e os limites na nova República. São Paulo: Hucitec, 1986.
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SANTOS, B. S. O Estado, o direito e a questão urbana. Revista Crítica de Ciências
Sociais, n. 9, p. 9-86, 1982.

205
Dicionário da Educação do Campo

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Carlos Eduardo Mazzetto Silva

O termo desenvolvimento susten- mento sustentável vai se consolidar


tável deve ser compreendido no con- como caminho do meio, uma aborda-
texto da evolução das discussões relati- gem capaz de encontrar, finalmente, a
vas às contradições entre crescimento equação milagrosa da harmonia entre
econômico e conservação da natureza. crescimento econômico e conserva-
Esse debate tem um marco históri- ção da natureza. Essa legitimidade tem
co e institucional, a Conferência de como fato antecedente fundamental a
Estocolmo de 1972, que teve como publicação do relatório da Comissão
tema o meio ambiente humano. Mundial sobre o Meio Ambiente e
Desde a segunda metade da década Desenvolvimento Nosso futuro comum –
de 1960, as denúncias de degradação e popularmente chamado “Relatório
poluição ambiental se intensificaram. Brundtland” (1988) –, que vai disse-
Entre os novos movimentos sociais minar definitivamente o conceito do
que ascenderam nesse período da con- desenvolvimento sustentável.
tracultura, estava o movimento am-
bientalista. A subordinação à sociedade Um conceito anterior:
de consumo, a alienação em relação à
natureza e os modos de vida urbano-
o ecodesenvolvimento
industriais que nos distanciam dela são É importante ressaltar que o de-
fenômenos que vão se explicitando senvolvimento sustentável é herdeiro
na chamada crise ambiental. O modelo de um conceito anterior, da década de
de produção e consumo ocidental- 1980, que já procurava discutir a ques-
capitalista, baseado no crescimento tão dos estilos de desenvolvimento. Deno-
econômico infinito, agora é posto em minado ecodesenvolvimento, esse conceito
cheque do ponto de vista de sua perdu- tocava em questões cruciais, como a
rabilidade material. Começa a ser colo- importação imposta do modelo de de-
cada a ideia dos limites do crescimento: senvolvimento dominante em sentido
o planeta não é infinito e seus recursos unilateral, do Primeiro Mundo para o
não são infindáveis. O esgotamento Terceiro Mundo, como se chamavam
dos recursos e a entropia1 gerada pelo nessa época o centro e as margens do
modo industrial de apropriação da na- sistema-mundo. Questões como a rela-
tureza se traduzem em poluição e dete- ção Norte–Sul, a opressão das dívidas
rioração da qualidade ambiental. externas dos países do Terceiro Mun-
Um longo percurso conceitual- do e a transferência acrítica de tecnolo-
ideológico vai ser trilhado até chegar à gia aparecem na abordagem de Ignacy
ECO-92,2 a conferência mundial sobre Sachs (1986) como geradoras de pro-
meio ambiente e desenvolvimento mais blemas socioambientais e impedidoras
importante da história da humanidade. da construção de novos estilos de de-
A partir dela, a noção do desenvolvi- senvolvimento no Sul. Esses novos es-

206
Desenvolvimento Sustentável

tilos deveriam incorporar noções como contém dois conceitos-chave:


participação local, diversidade cultural
e ecológica, soluções localmente adap-
o conceito de necessidades es-
senciais dos pobres do mundo,
D
tadas, pluralismo tecnológico, solida- que devem receber a máxima
riedade intergeracional, integração das prioridade;; e a noção das limita-
diferentes dimensões (social, ecológica, ções que o estágio da tecnologia
cultural, econômica, territorial), mode- e da organização social impõe
los econômicos mais autossuficientes ao meio ambiente, impedindo-o
e ênfase na produção baseada na bio- de atender às necessidades pre-
massa local (energia renovável). sentes e futuras. (Comissão
Sachs (1986) introduz o conceito Mundial sobre Meio Ambiente e
de ecorregião como unidade de plane- Desenvolvimento, 1988, p. 46)
jamento, visando à operacionalização
desses novos estilos de desenvolvi- Percebe-se que o relatório adota
mento. O Estado cumpriria aqui papel um discurso de combate à pobreza
fundamental no planejamento e im- e simultânea conservação ambiental
plantação desse processo, mas também para as gerações futuras. As contra-
se enfatiza a participação social local. dições, entretanto, são inúmeras, pois
Segundo Sachs, “a grande chance para acaba afirmando a necessidade do
a realização de verdadeiros Estados do crescimento econômico e arrefecendo
bem-estar pertence aos países do Ter- a crítica à sociedade industrial e aos
ceiro Mundo” (ibid., p. 26). Para tanto, países desenvolvidos. Ele menciona cau-
deve-se buscar uma relação Norte–Sul telosamente os interesses nacionais e
mais horizontal, não atribuir um espa- mantém sempre um tom diplomáti-
ço excessivo à ajuda externa, evitar a co – provavelmente, uma das causas
atuação ilimitada do mercado e procu- da sua grande aceitação. O “Relatório
rar gratificação em esferas não mate- Brundtland” define, ou pelo menos
riais da vida, impondo-nos, voluntaria- descreve, o nível do consumo míni-
mente, um teto de consumo material mo partindo das necessidades básicas,
e enfatizando a dimensão cultural da mas é omisso na discussão detalhada
natureza humana. do nível máximo de consumo nos paí-
ses industrializados. Além do mais,
“Relatório Brundtland” propaga que a superação do subdesen-
volvimento no hemisfério sul depende
e sua crítica do crescimento contínuo nos países
O conceito básico de desenvolvi- industrializados (Brüseke, 1995).
mento sustentável contido no “Relató- Durante a década de 1990, alguns
rio Brundtland” é o seguinte: autores abordam a passagem do dis-
curso do ecodesenvolvimento para o
O desenvolvimento sustentável do desenvolvimento sustentável. Na
é aquele que atende às neces- verdade, essa mudança está relacionada
sidades do presente sem com- com a conjuntura dos anos 1980, em
prometer a possibilidade de as particular da América Latina, quando
gerações futuras atenderem a esses países se viram aprisionados pela
suas próprias necessidades. Ele dívida externa e pelos consequentes

207
Dicionário da Educação do Campo

processos inflacionários e reces- de desenvolvimento, nos anos 1990 o


sivos. A recuperação econômica, discurso neoliberal afirma o desapareci-
subordinada aos países centrais e ao mento da contradição entre ambiente e
Fundo Monetário Internacional (FMI), crescimento. Nessa perspectiva, os pro-
passa a ser a prioridade das políticas blemas ecológicos não surgem como
governamentais. Nesse contexto, o resultado da acumulação de capital. Ao
Estado planejador, no qual estavam contrário, supõe-se que, ao assegurar di-
ancoradas as estratégias de adoção das reitos de propriedade e preços aos bens
propostas do ecodesenvolvimento, vai comuns, as clarividentes (ainda que ce-
perdendo esse papel. Configuram-se, a gas) leis de mercado se encarregam de
partir daí, os programas neoliberais em ajustar os desequilíbrios ecológicos e as
diferentes países, ao mesmo tempo em diferenças sociais (Leff, 1998).
que avançam e se tornam mais com- O “Relatório Brundtland” vem cum-
plexos os problemas ambientais. Nesse prir assim, naquele momento históri-
momento, começa a cair em desuso o co, a função de construir, diplomatica-
discurso do ecodesenvolvimento, que, mente, um terreno comum no qual se
no momento de ascensão do neolibera- possa propor uma política de consenso
lismo e do advento da globalização eco- capaz de dissolver as diferentes visões
nômica, é substituído pelo de desenvol- e interesses de países, povos e classes
vimento sustentável. Apesar de alguns sociais. Embora reconhecendo que a
princípios comuns a ambos os discursos pobreza e as disparidades sociais e eco-
(ecodesenvolvimento e desenvolvimen- nômicas devem ter tratamento priori-
to sustentável), as estratégias de poder
tário, articulando-se às ações de pro-
da ordem econômica dominante modi-
teção ambiental, o relatório adota um
ficaram o conceito ambiental crítico do
tom diplomático, evitando tocar tanto
discurso do ecodesenvolvimento para
nas questões de fundo das relações
submetê-lo à racionalidade do cres-
homem–sociedade–natureza quanto
cimento econômico (Leff, 1998). No
nas relações de poder que estabele-
lugar do planejamento estatal de estra-
cem as ordens nacionais e global.
tégias e iniciativas no rumo do ecode-
senvolvimento, agora o mercado global Na verdade, a concepção do “Re-
é o agente milagroso capaz de conduzir latório Brundtland” se ajusta à arti-
ao crescimento sustentado. Como diz Leff, culação dos Estados coordenada pela
“neste processo, as estratégias de apro- Organização das Nações Unidas
priação dos recursos naturais nos mar- (ONU) e às instituições internacionais
cos da globalização econômica, transfe- encarregadas de impor a modernização
riram seus efeitos de poder ao discurso e o desenvolvimento com base na iden-
da sustentabilidade”3 (1998, p. 7;; nossa tidade etnoecossistêmica europeia-ocidental ao
tradução). A retórica do desenvolvi- resto do mundo: o Banco Mundial e o
mento sustentável vai, assim, diluindo FMI. Sendo assim, o conceito oficial
e pervertendo as abordagens mais crí- do desenvolvimento sustentável adota-
ticas relativas à crise ambiental. Se nos do por vários governos, políticos, em-
anos 1970 a crise ambiental fez que se presários e mesmo por algumas orga-
proclamasse o freio ao crescimento, nizações não governamentais (ONGs)
com o discurso do ecodesenvolvimento implica a continuidade do processo de
propondo os princípios de novos estilos homogeneização cultural e ecológica,

208
Desenvolvimento Sustentável

que hoje é mais do que nunca coman- riscos ambientais. Essas contradições
dado pelo capital transnacional. Para esses
poderosos atores do cenário mundial, não
entre a racionalidade capitalista e o
discurso da sustentabilidade vêm se
D
há contradição entre o processo de acu- constituindo na verdadeira questão de
mulação capitalista (e suas escandalosas fundo do debate, acabando por expli-
desigualdades sociais e desastres ecológi- car o fracasso das iniciativas globais em
cos) e a perspectiva de sustentabilidade. reduzir o aquecimento global e reverter
o processo de deterioração dos indica-
As questões que ficam dores ambientais. Desde a ECO-92,
ao invés de melhorar, esses índices
O esforço diplomático e consensual vêm piorando.
em torno do desenvolvimento susten- Apesar das críticas, o desenvolvimen-
tável não conseguiu diluir os diferentes to sustentável se tornará uma espécie de
interesses em jogo, os quais estão rela- consenso tácito e inconsciente que define
cionados a diferentes visões de mundo, os limites do problematizável (Carneiro,
em especial aquelas que, de uma forma 2005). Esse limite exclui não apenas o
ou de outra, não sucumbiram inteira- questionamento do sistema produtor
mente à forma ocidental/moderna de de mercadorias – o grande responsável
pensar. Aí, as contradições e os dissen- pela crise ambiental contemporânea –,
sos na discussão da sustentabilidade
mas também o que se chamou de se-
vêm à tona. Afinal, trata-se de definir o
gunda contradição do capitalismo, que
que e a quem se quer realmente susten-
diz respeito às condições naturais para
tar. Esses conflitos se manifestam, por
o processo de produção de mercadorias,
exemplo, quando os Estados Unidos
condições que têm de ser continuamente
se recusaram a assinar a Convenção
produzidas, reproduzidas e fornecidas.
da Biodiversidade durante a ECO-92.
Nesse sentido, o capitalismo destrói a
Aí estão em jogo estratégias e direitos
sua própria base: “é o próprio funcio-
relativos ao processo de apropriação
namento de um sistema de produção de
da natureza. Nessas negociações, os
mercadorias [...], estruturalmente orien-
países do Norte defendem os interes-
tado pela busca da maior rentabilidade
ses das empresas transnacionais de
na acumulação de riqueza abstrata, que
biotecnologia de se apropriarem, por
conduz à degradação daquelas condições
meio dos direitos de propriedade in-
naturais das quais depende visceralmen-
telectual, de recursos genéticos locali-
te” (ibid., p. 29).
zados no Terceiro Mundo. Ao mesmo
tempo, grupos indígenas e camponeses Nos limites dados por esse contex-
defendem sua diversidade biológica e to, o consenso em torno do desenvol-
étnica, ou seja, seu direito de se apro- vimento sustentável é a saída para os
priarem de seu patrimônio histórico de impasses atuais deste sistema de pro-
recursos naturais e culturais. A mesma dução de mercadorias, mas não para
contradição se coloca no momento em reformular a relação com a natureza,
que a biossegurança se confronta com nem para construir possíveis socie-
a introdução de variedades transgêni- dades sustentáveis. Esse consenso é,
cas, quando o princípio da precaução “simultaneamente, condição e produto
sucumbe à fome de lucro, introduzindo dos conflitos implicados na ‘questão
produtos e processos que ampliam os ambiental’” (Carneiro, 2005, p. 42).

209
Dicionário da Educação do Campo

O desenvolvimento sustentável vai No contexto da redução da proble-


se tornar, assim, a concepção pela qual mática sociedade–natureza às estraté-
a questão ambiental se institucionaliza- gias de gestão e adequação ambiental, o
rá e ganhará normatização nas socie- desenvolvimento (ao estilo industrial-
dades capitalistas (Amazonas e Nobre, capitalista) vence o ambiente. Esse
2002). O sentido não é, naturalmente, deve ser tratado no sentido de não ser
o de transformar nem os estilos de um impedimento à inexorabilidade e à
desenvolvimento, como queria Sachs, necessidade absoluta do primeiro. Não
nem o modelo hegemônico de produ- é a toa que, na expressão do desenvol-
ção e consumo com base no contexto/ vimento sustentável, desenvolvimento
problemática socioambiental, mas de é substantivo e sustentável é adjetivo: o
implantar uma estratégia de adequação sustentável serve para tentar renovar
ambiental ao desenvolvimento produ- o caráter colonial e predatório do de-
tivista. Esse desenvolvimento, e a tec- senvolvimento – a promessa civilizatória
nociência moderna associada a ele, não que o centro do sistema-mundo vende
é questionável;; representa, ainda, a vi- (e impõe) para suas margens. Não são
gência do dogma moderno do progres- os ecossistemas, suas características e
so inexorável. O meio ambiente deve especificidades ecológicas, sua história
ser, então, objeto de gestão. Isso implica de ocupação, as relações que os povos
o licenciamento ambiental e as medi- dos lugares estabelecem com eles, que
das mitigadoras e compensatórias nele vão definir possíveis projetos emanci-
contidas, e uma educação ambiental padores e duráveis para esses lugares/
individualista e alienante do tipo “cada ecossistemas. É o desenvolvimentismo
um faça a sua parte”. modernizador dos “de fora” (donos do
A progressiva institucionalização capital ou, às vezes, o próprio Estado),
da questão ambiental não se dará sem guiados pela fórmula sagrada da moder-
perdas para o ambientalismo. O prag- nidade (prenhe da colonialidade do po-
matismo foi substituindo o radicalis- der), que vai sacramentar o seu destino.
mo, e os pensamentos e ações se con- A população torna-se, portanto, atingida
centraram no ajuste de certo controle (como bem ilustra o MOVIMENTO DOS
ambiental, dentro do modo de produ- ATINGIDOS POR BARRAGEM e o caso atual
ção e consumo instituído. Na impossi- da Usina Hidrelétrica de Belo Monte),
bilidade de mudar o modelo de socie- e acaba tendo de se defender e de fazer
dade, parte importante do movimento parte das medidas mitigadoras/com-
ambientalista passou a tentar torná-lo pensatórias, isso quando a expropriação
menos predatório. A isso se chamou de não é explicitamente violenta e escapa
ambientalismo de resultados. aos controles institucionais.

Notas
1
Entropia é um conceito relativo à segunda lei da termodinâmica (transforma-
ção da for ma de energia). Para nossos propósitos neste texto, importa o que
Georgescu-Roegen (1971) afirmou sobre sua relação com o crescimento econômico: o
processo econômico é, do ponto de vista físico, uma transformação de energia e de recur-
sos naturais disponíveis (baixa entropia – energia ordenada e útil) em lixo e poluição (alta
entropia – energia desordenada e inútil). Essa transformação, entre outras coisas, gera calor,
daí a desordem ambiental e o aquecimento global.

210
Desenvolvimento Sustentável

2
O nome oficial da ECO-92 ou Rio-92, que se realizou entre 3 e 14 de junho de 1992 no
Rio de Janeiro, é Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvi-
mento (Cnumad). D
3
“Las estrategias de apropiación de los recursos naturales en el marco de la globalización
económica han transferido sus efectos de poder al discurso de la sustentabilidad.”

Para saber mais


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SACHS, I. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986.

211
Dicionário da Educação do Campo

DESPEJOS
Antonio Escrivão Filho

Os despejos consistem em ações po- tro lado da questão, apesar de o Código


liciais ou privadas (estas sempre ilegais) de Processo Civil, no artigo 440, reco-
de retirada forçada de comunidades ou mendar que ele o faça, pela chamada
famílias de fazendas, terrenos ou pré- inspeção judicial.
dios urbanos, ocupados por movimen- Isso significa que todo despejo
tos sociais quando essas propriedades realizado pela polícia, sobretudo em
não cumprem a sua função social (ver áreas de particulares, foi autorizado por
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE). Eles um juiz, ou seja, pelo Poder Judiciário –
em geral são consequência de um pe- alguns mais desavisados diriam, pela
dido judicial de reintegração de posse justiça. Porém, muitas vezes o Judici-
do imóvel ocupado, feito por alguém ário age de modo contrário à justiça
que se acha no direito de retirar famílias social, porque está histórica, mas não
ou comunidades inteiras do exercício de eternamente, ligado aos interesses das
seus direitos humanos fundamentais. elites do país. O fato de todo despejo
O despejo é o resultado, portan- realizado pela polícia depender de au-
to, de uma ação judicial iniciada por torização judicial coloca aos movimen-
um suposto proprietário do imóvel tos sociais o desafio de compreender
ocupado pela comunidade ou movi- e atuar em prol de um Judiciário mais
mento social;; é uma ação que chama democrático e compromissado com os
o Estado (inicialmente o Poder Judi- direitos humanos.
ciário, depois, o aparato policial) a se Outro tipo de despejo é o realizado
movimentar, em prol de um suposto por milícias privadas, sem autorização
direito de propriedade (às vezes do de ordem judicial, que são despejos
próprio Estado 1), contra as famílias ainda mais violentos do que os realiza-
que estão ali exercendo seus direitos dos pela polícia, e constituem em si um
sociais de acesso à terra, ao trabalho, crime contra as famílias despejadas e
à saúde, à educação, ao lazer, à cultu- contra toda a sociedade. Todo despejo
ra e à moradia, dentre outros direitos realizado por milícias armadas consti-
humanos fundamentais. tui crime, ainda que os jagunços ajam
Antes de ocorrer um despejo (tam- sob o nome e a forma de uma empresa
bém chamado no direito de reintegração de segurança. De fato, as empresas de
de posse), portanto, o suposto proprie- segurança apresentam-se hoje como a
tário, arrendatário ou muitas vezes gri- forma histórica da pistolagem no cam-
leiro, faz saber ao Poder Judiciário, por po e na cidade.
meio de um juiz, que houve uma ocu- Do ponto de vista dos direitos hu-
pação, mas isso geralmente apenas por manos e da Constituição de 1988 (os
papéis e fotos, pois raramente o juiz vai direitos humanos constituem o núcleo
até o local para conhecer a ocupação, fundamental do Estado democrático de
conversar com as famílias e saber o ou- direito brasileiro desde a Constituição

212
Despejos

de 1988), quando o povo organizado Culturais da Organização das Nações


luta pelos direitos sociais de acesso à
terra, ao trabalho e à moradia, ocupando
Unidas (ONU).
Com o avanço do capitalismo e da
D
imóveis que não cumprem a sua função especulação imobiliária, áreas histori-
social e áreas vazias, ele exerce os seus camente ocupadas por comunidades
direitos humanos de manifestação, pres- marginalizadas do processo urbanístico
são e reivindicação de políticas públicas do Estado e do capital, e outras antes
que constituem dever do Estado. abandonadas ao léu e agora ocupadas
Este direito de manifestação vem por famílias sem teto, são alvo hoje da
se realizando no Brasil no campo e na ganância tardia de supostos proprietá-
cidade, desde a tomada de consciência rios, que enxergam apenas a imagem
do povo acerca de seus direitos. Seja do lucro e da acumulação financeira
em ocupações de imóveis rurais impro- em terrenos e prédios que garantem o
dutivos, que degradam o meio ambien- direito humano à moradia de centenas
te, oprimem os trabalhadores ou que de famílias.
causam conflitos e tensão social – em Com o recente processo neode-
outras palavras, seja em propriedades senvolvimentista realizado nas bases
rurais que não cumprem a sua função do Estado, é o próprio Poder Públi-
social –, seja em prédios e terrenos co que dá impulso à expansão ter-
urbanos abandonados à especulação ritorial do capital sobre o campo e
imobiliária, a ocupação de movimentos a cidade. Tratando-se da cidade, os
sociais vem conferir à propriedade a le- chamados “megaeventos”, como a
gitimidade da função social. Copa do Mundo de 2014 e as Olimpía-
das de 2016, vêm dando a tônica do
Despejos urbanos processo de reorganização territorial
do capital sobre áreas ocupadas por
As ocupações urbanas têm se desta- trabalhadores e suas famílias.
cado hoje pelo caráter de reivindicação É neste sentido que se observam
política do direito à moradia, mas tam- diversos processos de remoção de co-
bém ocorreram historicamente de ma- munidades inteiras para a realocação de
neira espontânea e difusa, ao longo do empreendimentos revestidos de inte-
processo de urbanização brasileira. resse público, mas voltados ao projeto
O acesso à moradia adequada é um de acumulação capitalista, agravando,
direito fundamental de acordo com o assim, a marginalização e a desigual-
artigo 6º da Constituição. Além dis- dade social no País, o que afronta di-
so, a moradia é um direito humano a retamente o artigo 3º da Constituição
ser promovido pelos órgãos públicos Federal, quando diz que “constitui ob-
e entidades privadas, como dispõem jetivo fundamental da República erra-
os tratados internacionais de direitos dicar a pobreza, marginalização e desi-
humanos assinados pelo Estado bra- gualdades sociais”.
sileiro, especialmente o Pacto Inter- Por seu turno, movimentos sociais,
nacional sobre Direitos Econômicos, comunidades e famílias sem-teto, alia-
Sociais e Culturais (Pidesc) e os co- dos a organizações de direitos humanos,
mentários gerais nº 4 e nº 7 do Conse- vêm lutando pelo direito à cidade2 para
lho de Direitos Econômicos, Sociais e toda a população, tanto na efetivação do

213
Dicionário da Educação do Campo

direito à moradia quanto no acesso aos Apenas como exemplo, basta lem-
serviços públicos e equipamentos urba- brar que a primeira vez que o Exército
nos coletivos necessários à vida digna, brasileiro fez uso de canhões foi na Guer-
como estruturas de saneamento, trans- ra de Canudos, ao passo que o primeiro
porte, cultura e lazer. uso militar de aviões ocorreu na Guerra
Em oposição ao processo estrutu- do Contestado contra os camponeses.
ral de remoção (ou seja, de despejo) de Com a Constituição de 1988, a
comunidades dos espaços ocupados, chamada Constituição Cidadã, o Esta-
reivindica-se uma atuação estatal pau- do brasileiro assumiu a forma de Es-
tada pelo princípio da não remoção,3 tado democrático de direito, elegendo
que implica o Estado buscar esgotar os direitos humanos como direitos
primeiro as vias de regularização fun- fundamentais a serem garantidos e
diária destas comunidades nos locais promovidos pelo Estado e pela pró-
onde estão. pria sociedade.
Em último caso, quando esgotadas Assim, a repressão estatal contra a
todas as possibilidades de regularização luta pela terra ganhou também o reves-
fundiária das famílias nos locais onde timento jurídico deste Estado demo-
construíram a sua história, o Estado crático de direito, realizando-se na for-
deve garantir a sua retirada por meio do ma (histórica) dos despejos, mediante
diálogo e do respeito ao interesse social, procedimentos judiciais e policiais que
realizando o deslocamento das famílias visavam conferir legalidade à repres-
para áreas que sejam de seu interesse e são, quer dizer, visavam dizer que o
consentimento, de maneira digna e ga- despejo, mesmo quando violento, está
rantindo-lhes uma justa indenização. “dentro da lei”. Mas não está. O despe-
jo forçado e violento não está “dentro
da lei” porque ignora aspectos da legis-
Despejos rurais lação, justamente a parte mais impor-
No campo, os despejos apresentam- tante dela, que diz respeito aos direitos
se como a forma atual de uma históri- humanos. É como se o juiz, o promo-
ca e violenta repressão aos indígenas, tor de justiça e os policiais escolhessem
quilombolas e camponeses que não se algumas leis para usar, e fechassem os
submetem ao jugo do latifúndio e lu- olhos para outras – no caso, as leis re-
tam por seus direitos de acesso à terra. ferentes aos direitos humanos. Porém,
fechar os olhos para determinadas leis é
De fato, seja na resistência indígena
ilegal, e quando isso ocorre, os despejos
ao trabalho para o branco, seja na es-
forçados transformam-se em crimes do
tratégia de fuga, organização e comba-
próprio Estado.
te nos quilombos (Moura, 1981), seja
na posse familiar ou ocupação de mo- Daí a importância dos movimentos
vimentos sociais organizados de cam- sociais e de suas assessorias jurídicas
poneses, a história da questão agrária populares para transformarem a justiça
demonstra que a luta pela direito à e fazer que o Estado, os juízes, promo-
terra do povo brasileiro, desde as suas tores e policiais respeitem os direitos
diferentes dimensões culturais, sempre humanos do povo brasileiro (Frigo,
foi reprimida com muita violência por 2010). Como dizia o poeta Bertold
forças do latifúndio e do Estado. Brecht em seu “Elogio da dialética”:

214
Despejos

“De quem depende que a exploração pelo latifúndio e pelos poderes que es-
continue? De nós. E de quem depende
que ela se acabe? Também de nós!”.
tiveram historicamente à sua disposi-
ção, como a mídia e o Judiciário. Além
D
Por isso as ocupações de terra no da violência, os movimentos sociais
Estado democrático de direito são legí- sofrem também com a criminalização
timas, porque é pelas ocupações que os das suas atividades e manifestações,
movimentos sociais pressionam o Es- que ocorre quando o Estado atribui a
tado a promover e efetivar os direitos condição de crime às manifestações so-
humanos do povo, desestabilizando o ciais e a suas lideranças, com vistas a
poder econômico do latifúndio crimi- intimidar e inviabilizar a luta social.
noso, que degrada o meio ambiente, A repressão e a criminalização ocor-
que não produz alimentos, que explora rem, como é sabido, porque, pelos mo-
o trabalho escravo, que assassina de- vimentos sociais e pelas ocupações, o
fensores dos direitos humanos e que povo, organizado, adquire a potência que
causa conflitos e tensão social. Tudo permite desafiar o latifúndio na correla-
isso, conforme a Constituição de 1988. ção de forças em disputa pelo Estado.
A propósito, vale fazer uma leitura Como resultado da atuação dos
conjunta dos artigos 1º, 3º, 5º, 170, 184 movimentos sociais, posições mais mo-
e 186 da Constituição e, a partir daí, dernas dos juízes preocupados com a
pensar qual deveria ser a postura de efetivação dos direitos humanos – ex-
juízes, promotores e policiais dian- ceções que merecem reconhecimento
te das ocupações do Movimento dos para que possam também ganhar força
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), dentro da instituição – exigem que o
e das retomadas de terras realizadas fazendeiro comprove o cumprimen-
por indígenas e quilombolas no chama- to da função social da sua posse (ver
do Estado democrático de direito. Fachin, 1988;; Alfonsin, 2003) e pro-
Segundo o filósofo Enrique Dussel priedade para que a reintegração de
(2007), os direitos humanos refletem posse seja deferida judicialmente. Esta
as conquistas históricas da consciên- atitude ainda constitui uma exceção
cia política de um povo. De fato, assim na atuação de juízes, mas tende a se con-
como a resistência indígena, quilombo- solidar com o aumento da pressão social.
la e camponesa no passado, as ocupa- Mediante uma ocupação ou reto-
ções de terras indicam que hoje a cons- mada de terras, o Estado deve movi-
ciência política dos movimentos sociais mentar-se de modo a assentar famílias
de sem-terra, indígenas e quilombolas sem-terra, titular territórios quilom-
estão à frente do próprio Estado – na bolas ou demarcar reservas indígenas
verdade, à frente da consciência políti- e extrativistas conforme o interesse
ca dos agentes que historicamente ocu- social, que é o interesse mais próxi-
pam o Estado brasileiro. mo do núcleo fundamental dos direi-
Todos os direitos humanos reco- tos humanos, em oposição ao interesse
nhecidos pelos Estados resultaram da público (do Estado ou governo) e ao
luta, manifestação e pressão popula- interesse privado.
res (ver Comparato, 2003;; Lyra Filho, Em último caso, esgotadas todas as vias
1995). Por este motivo, as ocupações e possibilidades de manter as famílias no
de terra são tão criticadas e reprimidas local, o Estado deve garantir uma retirada

215
Dicionário da Educação do Campo

digna, por meio do diálogo e do reassen- Os despejos caracterizam-se, por-


tamento em outro local, mediante prévio tanto, como uma resposta violenta
acordo e indenização da comunidade. do capital – seja por meio do aparato
O Estado tem total responsabilidade público (Judiciário e polícia), seja por
sobre todos os atos praticados por seus meio de milícias privadas – à luta pe-
agentes nas ações de despejo, tendo a los direitos humanos dos movimentos
obrigação de indenizar qualquer vítima sociais e comunidades marginalizadas.
de violência ou abuso policial. Além Geralmente, os despejos configuram
disso, tem também absoluta responsa- crimes e violações de direitos huma-
bilidade sobre o destino das famílias, nos. Quando realizados por milícias,
devendo somente realizar a sua retirada são sempre criminosos.
mediante negociação com o movimen- Entende-se que, na maioria das
to social, após a definição de novo local ocasiões, os despejos são completa-
para o seu assentamento definitivo. mente evitáveis. Em muitos casos,
não há que se falar em necessidade
de despejo, mas no direito à perma-
Considerações finais
nência das comunidades e das famí-
Apresentamos o conceito de despe- lias organizadas em torno dos seus
jos, as condições históricas da sua rea- direitos à moradia, ao acesso à terra,
lização, e os atores envolvidos: o povo ao trabalho, à alimentação, à cultura
organizado em luta pelos seus direitos, e ao lazer, que devem sempre preva-
em oposição a um Estado que atua me- lecer em relação aos direitos privados
diante os interesses do capital. de propriedade.

Notas
1
Atualmente o Poder Público, via Ministério Público e municípios, tem também requerido
o despejo de famílias em áreas urbanas, sob a alegação de risco ou degradação ambiental.
No entanto, e não por acaso, são somente famílias de baixa renda que sofrem tais ações do
Estado, uma vez que não se observa qualquer ação deste tipo sobre os condomínios fecha-
dos nas margens de rios e encostas de morros.
2
Ver Saule Junior (2004) e os sítios da Relatoria do Direito à Cidade/Plataforma Dhesca
Brasil (http://www.dhescbrasil.org.br), da Terra de Direitos (http://www.terradedireitos.
org.br), do Instituto Pólis (http://www.polis.org.br) e do Fórum Nacional da Reforma
Urbana (FNRU) (http://www.forumreformaurbana.org.br).
3
Ver o Manifesto da Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos (http://www.concidades.pr.gov.
br/arquivos/File/Resumo_das_Propostas_da_Plataforma_Brasileira_para_Prevencao_de_Despejos.
pdf) e as recomendações do II Encontro Nacional do Fórum de Assuntos Fundiários/CNJ (http://
www.cnj.jus.br/images/programas/forumdeassuntosfundiarios/urbano_iiencontro.pdf).

Para saber mais


ALFONSIN, J. T. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimen-
tação e moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Saraiva, 2003.

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Direito à Educação

DUSSEL, E. Vinte teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.


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MOURA, C. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense, 1981.
SAULE JUNIOR, N. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004.

DIREITO À EDUCAÇÃO
Sérgio Haddad *

Educação como direito produzir conhecimentos, de pensar


humano sobre sua própria prática, de utilizar
os bens naturais para seus fins e de se
Conceber a educação como direi- organizar socialmente.
to humano significa incluí-la entre os A educação é um elemento funda-
direitos necessários à realização da mental para a realização dessas caracte-
dignidade humana plena. Assim, dizer rísticas. Não apenas a educação escolar,
que algo é um direito humano é dizer que mas a educação no seu sentido amplo,
ele deve ser garantido a todos os seres a educação pensada como uma ação
humanos, independentemente de qual- humana geral, o que implica a edu-
quer condição pessoal. Esse é o caso cação escolar, mas não se basta nela,
da educação, reconhecida como direi- porque o processo educativo começa
to de todos após diversas lutas sociais, com o nascimento e termina apenas no
posto que por muito tempo foi tratada momento da morte. A educação pode
como privilégio de poucos. ocorrer no âmbito familiar, na comuni-
Por meio da educação, são acessa- dade, no trabalho, junto com amigos,
dos os bens culturais, assim como nor- nas igrejas etc. Os processos educati-
mas, comportamentos e habilidades vos permeiam a vida das pessoas.
construídos e consolidados ao longo Os sistemas escolares são parte des-
da história da humanidade. Tal direi- se processo e, neles, algumas aprendi-
to está ligado a características muito zagens básicas são desenvolvidas. Nas
caras à espécie humana: a vocação de sociedades modernas, o conhecimento

*
Com a colaboração de Ester Rizzi e Filomena Siqueira, assessoras da organização não
governamental Ação Educativa.

217
Dicionário da Educação do Campo

escolar é quase uma condição para a o exercício do direito humano à edu-


sobrevivência e o bem-estar social. Ao cação. O dever de proteger exige que o
mesmo tempo, pessoas que passam por Estado resguarde o direito para evitar
processos educativos, em particular pelo que terceiros (pessoas, grupos ou em-
sistema escolar, exercem melhor sua ci- presas, por exemplo) impeçam o seu
dadania, pois têm melhores condições exercício. Por fim, o dever de promover
de realizar e defender os outros direitos é a principal obrigação ativa do Estado e
humanos (saúde, habitação, meio am- refere-se às ações públicas que devem
biente, participação política etc.). ser adotadas para a realização e o exer-
A educação escolar é base consti- cício pleno dos direitos humanos.
tutiva na formação das pessoas, assim Além disso, o reconhecimento do
como as auxilia na defesa e na promo- direito à educação como direito hu-
ção de outros direitos. Por isso, tam- mano o torna exigível tanto em âmbi-
bém é chamada um direito de síntese, to nacional quanto internacional. Ser
porque, ao mesmo tempo em que é um exigível significa recorrer às possibili-
fim em si mesma, ela possibilita e po- dades oferecidas pelos sistemas de jus-
tencializa a garantia de outros direitos, tiça para impedir, evitar a continuidade
tanto no sentido de exigi-los quanto da ou reparar a violação do direito à
no de desfrutá-los – atualmente, uma educação, seja por omissão (por exem-
pessoa que nunca frequentou a escola plo, falta de vagas na escola, recusa de
tem maiores dificuldades em realizar o matrículas, não oferecimento de educa-
direito ao trabalho, por exemplo. ção de jovens e adultos), seja por ação
Pelo menos desde 1948, no artigo (como o número excessivo de estudan-
26 da Declaração universal dos direitos hu- tes por sala de aula, usar o dinheiro da
manos, a ordem jurídica internacional educação em outra área).
reconhece o direito de todas as pessoas No caso do Brasil, o direito à edu-
à educação. Ao reconhecê-lo como cação está estabelecido no artigo 205
direito humano, elege sua realização da Constituição Federal de 1988:
universal como objetivo prioritário de
toda a organização social. Ao lado A educação, direito de todos e
da declaração, muitas outras normas in- dever do Estado e da família,
ternacionais reconhecem e avançam na será promovida e incentivada
definição das características do direito com a colaboração da socie-
à educação: o Pacto internacional dos di- dade, visando ao pleno de-
reitos econômicos, sociais e culturais, de 1966 senvolvimento da pessoa, seu
(art. 13 e 14);; a Convenção relativa à luta preparo para o exercício da ci-
contra as discriminações no campo do ensino, dadania e sua qualificação para
de 1960;; a Convenção sobre os direitos da crian- o trabalho.
ça, de 1989 (art. 28 e 29), entre outros.
Signatário dos tratados internacio- Ocorre que a garantia do direito à
nais, o Brasil tem o dever de respeitar, escolarização antecedeu a sua efetiva-
proteger e promover os direitos humanos, ção, e sua realização plena não se efe-
entre eles o direito à educação. O de- tivou até hoje. Ao mesmo tempo, nos
ver de respeitar significa que o Estado últimos anos, em virtude da influência
não pode criar obstáculos ou impedir das políticas neoliberais e pela força

218
Direito à Educação

hegemônica dos valores do merca- Disponibilidade – significa que a edu-


do, poucas vezes a educação tem sido
lembrada como formação para a cida-
cação gratuita deve estar à disposição
de todas as pessoas. A primeira obri-
D
dania. O discurso que prevalece é o gação do Estado brasileiro é assegurar
de reduzir a educação a seu aspecto que existam escolas de ensino funda-
funcional em relação ao desenvol- mental para todas as pessoas. O Estado
vimento econômico, ao mercado de não é necessariamente o único investi-
trabalho, à formação de mão de obra dor na realização do direito à educa-
qualificada... A educação como direito ção, mas as normas internacionais de
humano pressupõe o desenvolvimen- direitos humanos obrigam-no a ser o
to de todas as habilidades e potencia- investidor de última instância.
lidades humanas, entre elas o valor Acessibilidade – é a garantia de aces-
social do trabalho, que não se reduz à so à educação pública disponível, sem
dimensão do mercado. qualquer tipo de discriminação. A não
O reconhecimento do direito à discriminação é um dos princípios pri-
educação implica que sua oferta deve mordiais das normas internacionais de
ser garantida para todas as pessoas. direitos humanos e se aplica a todos os
A equidade educativa significa igualar direitos. A não discriminação deve ser
as oportunidades para que todas as de aplicação imediata e plena.
pessoas possam ter acesso, permane- Aceitabilidade – é a garantia da qua-
cer e concluir a educação básica e, ao lidade da educação, relacionada aos
mesmo tempo, desfrutem de um en- programas de estudos, aos métodos
sino de alta qualidade, independen- pedagógicos e à qualificação dos(as)
temente de sua origem étnica, racial, professores(as). O Estado está obriga-
social ou geográfica. do a assegurar que todas as escolas se
ajustem aos critérios mínimos de quali-
A educação entre os dade e a certificar-se de que a educação
seja aceitável tanto para os pais quanto
direitos humanos para os estudantes.
Uma das primeiras características Adaptabilidade – requer que a escola
dos direitos humanos, em geral, e da se adapte a seus alunos e alunas e que a
educação, em particular, é a universa- educação corresponda à realidade ime-
lidade e a não discriminação.1 A edu- diata das pessoas – respeitando sua cul-
cação, em todas as formas e em todos tura, costumes, religião e diferenças –,
os níveis, deve ter quatro caracterís- assim como às realidades mundiais, em
ticas: disponibilidade, acessibilidade rápida evolução.
material e acessibilidade econômica,
aceitabilidade e adaptabilidade;; e, ao Escolarização no Brasil – um
se “considerar a correta aplicação des- direito a ser conquistado
tas características inter-relacionadas e
fundamentais, deverão ser levados em Nos últimos trinta anos, o Brasil
conta os supremos interesses dos alu- deu um salto importante na garantia do
nos”.2 Costumamos definir tais carac- direito à educação para todos. Ampliou
terísticas da seguinte forma: o acesso e as garantias legais e incluiu

219
Dicionário da Educação do Campo

um enorme contingente de pessoas nas cação brasileira, em seus diversos ní-


redes de ensino públicas. No entanto, veis e modalidades, a pouca qualidade
tal movimento foi realizado sem con- da educação se mantém como aspecto
seguir garantir qualidade e universali- central do problema. São 7,5 anos em
dade na oferta e, principalmente, sem média de escolarização para pessoas
criar as condições necessárias para fa- com 15 anos ou mais, variando entre
zer da educação um forte instrumento regiões e segmentos sociais. Essa mé-
de justiça social. dia está abaixo dos nove anos defini-
A rápida ampliação na oferta de dos como obrigatórios por lei para o
vagas no ensino público não acompa- ensino fundamental. Esses números
nhada pela melhora em sua qualida- se agravam entre pessoas que vivem
de colaborou para o fortalecimento do na zona rural (4,8 anos), negros (6,7
setor educacional privado, acentuan- anos) e aqueles que vivem no Norte e
do a separação entre os estudantes no Nordeste, as regiões mais pobres do
economicamente mais favorecidos e país (7,1 e 6,3 anos, respectivamente).
aqueles da grande maioria da popula- As regiões mais ricas do país, por sua
ção de baixa renda. As precárias con- vez, apresentam os maiores índices: o
dições de trabalho e de formação do Sul e o Sudeste têm uma média de 7,9 e
professorado, aliadas aos insuficientes 8,2 anos respectivamente. Entre a po-
e desqualificados apoios materiais e pulação branca, a média de estudo é de
pedagógicos, produziram a seguinte 8,4 anos.2
equação inversa: mais vagas com me- Os principais fatores identificados
nos qualidade. Além do mais, a falta pelo Observatório da Equidade são a
de integração entre a multiplicidade de persistência de elevado contingente
sistemas de ensinos – redes munici- de jovens e adultos analfabetos – 14,1
pais, estaduais e federal – prejudica a milhões de pessoas, 9,7% da popula-
qualidade da oferta, visto não haver ção acima de 14 anos;; o acesso restrito
um sistema nacional de educação que à educação infantil de qualidade, so-
universalize a mesma escolarização para bretudo para crianças de 0 a 3 anos –
todos, relegando às redes mais pobres apenas 18,4% das crianças nessa faixa
o desafio de fazer mais com menos. E etária frequentam creches;; os níveis
a escola pública, por causa do fraco de- insuficientes e desiguais de desempe-
sempenho no ensino e na aprendizagem nho e conclusão do ensino fundamen-
de um grande contingente de estudantes, tal;; o acesso limitado para alunos com
acabou tornando-se uma “escola pobre deficiência;; os níveis insuficientes de
para os pobres”. acesso, permanência, desempenho e
O último relatório do Observa- conclusão do ensino médio;; o acesso
tório da Equidade do Conselho de restrito e desigual ao ensino superior
Desenvolvimento Econômico e Social (Brasil, 2011).
da Presidência da República, produzi- A desigualdade na frequência e na
do em 2011, afirma que o macropro- qualidade da educação logo nos pri-
blema da educação brasileira continua meiros anos de vida da criança cola-
sendo o baixo e desigual nível de es- bora para uma formação distinta ao
colaridade da população. Apesar dos longo dos anos de ensino seguintes.
avanços recentes no panorama da edu- A escolarização infantil é fundamental

220
Direito à Educação

para desenvolver nas crianças as bases reito à educação está no campo. Além
cognitivas para futuras aprendizagens.
Mesmo com um aumento tímido nos
dos fatores mencionados anteriormente,
a análise das matrículas mostra que nas
D
últimos anos, a taxa de frequência es- escolas rurais, para cada duas vagas
colar de crianças entre 0 e 3 anos conti- nos anos iniciais do ensino fundamen-
nua baixa. As que menos têm acesso ao tal, existe apenas uma nos anos finais
atendimento de creches são as do meio (50%). E essa proporção se acentua
rural e as mais pobres: apenas 8,9% ainda mais quando se comparam as sé-
das crianças com 0 a 3 anos de idade ries finais do ensino fundamental com
da área rural têm acesso à educação in- as vagas dos anos iniciais do ensino mé-
fantil;; na área urbana esse índice sobe dio: seis vagas para uma (17%). Já nas
para 20,5%. As taxas de frequência na regiões urbanas, a taxa é de quatro vagas
pré-escola são ainda mais alarmantes: nas séries iniciais, três nas finais (75%) e
cerca de 1,5 milhões de crianças nessa duas no ensino médio (50%). A ausência
faixa etária (4 a 5 anos) estão fora da de políticas efetivas e específicas para o
escola (25,2%). campo colabora na perpetuação dos ní-
O acesso ao ensino fundamental é veis desiguais de quantidade e qualidade
considerado universalizado para a faixa de instituições escolares quando com-
dos 6 aos 14 anos, embora ainda exis- parados ao meio urbano.
tam cerca de 740 mil crianças e ado- Portanto, não se atingiu a universa-
lescentes não atendidos e um enorme lização da oferta pública dos serviços
contingente de pessoas com mais de educacionais, visto haver limites na sua
14 anos que não conseguiu completar acessibilidade para setores da sociedade,
esse nível de ensino. No ano de 2008, esse em virtude das suas condições de ren-
número atingiu quase 60 milhões entre da, raça e local de moradia, indicando
jovens e adultos que não têm o ensino que há pouca aceitabilidade e adaptabili-
considerado fundamental. Dentre eles, dade nos serviços ofertados. Estamos,
14,1 milhões são analfabetos, e o mes- portanto, muito longe de cumprir com
mo número de pessoas têm menos de o direito humano à educação. A situa-
3 anos de escolarização, e são conside- ção revela um quadro de desafios para
radas analfabetas funcionais: pessoas a educação pública no que se refere à
que passaram pela escola mas não universalização do acesso ao ensino
conseguiram adquirir o conhecimento de qualidade. As causas dessa situação
mínimo necessário para serem consi- estão relacionadas a fatores internos e
deradas letradas. externos ao sistema educativo.
Outro dado alarmante é a distorção Entre os fatores externos, um dos
idade–série, com dois ou mais anos de problemas centrais são as desigualda-
atraso na escolarização em relação à des socioeconômicas e étnico-raciais
faixa etária adequada. Entre as razões que estruturam a sociedade brasileira.
para esse fenômeno, estão ingresso tar- Embora a educação seja vista, tanto
dio, repetências, evasões e reingressos. pelo senso comum quanto por espe-
Os dados do relatório As desigualda- cialistas, como um fator essencial para
des na escolarização no Brasil (Brasil, 2011) a melhoria das condições de vida, a
mostram que um dos principais grupos verdade é que no Brasil a expansão
populacionais não favorecidos pelo di- do ensino ocorreu num quadro de

221
Dicionário da Educação do Campo

permanente e profunda concentração vas e pedagógicas estabelece quem será


de renda. Os indicadores educacio- bem ou malsucedido nos estudos.
nais, interpretados conjuntamente Para haver avanços nas políticas
com os dados socioeconômicos, étnico- educacionais, é necessária a institucio-
raciais e territoriais, demonstram que nalização da educação como política de
o padrão brasileiro de exclusão cau- Estado, aliada a uma integralidade nos
sa impacto na apropriação da oferta períodos escolares – infantil, básico, pro-
educacional. fissional e universitário – e ao critério de
As políticas educacionais permane- equidade na distribuição de recursos na
cem absolutamente insuficientes para urgente luta pela redução das desigualda-
reverter as consequências perversas des de toda a natureza. Somado a isso, é
das condições de desigualdades em que preciso ampliar a receita auferida para a
vive a população brasileira, dada a bai- área;; e regulamentar os níveis municipal,
xa qualidade da educação e a distribui- estadual e federal, buscando a formação
ção desigual dos insumos educacionais de um sistema coeso e integrado de edu-
previstos nas políticas públicas. Essa cação. Além disso, também é necessário
dinâmica perversa se reproduz regio- priorizar as ações voltadas para a redução
nalmente, nos municípios, nos bairros do analfabetismo absoluto ou funcional
e até dentro de uma mesma escola. É e investir na conscientização sobre a im-
uma lógica recorrente o fato de quem portância da educação escolar nos pri-
mais necessita, menos recebe. O resul- meiros anos de vida.
tado dessa articulação de fatores, como Hoje, no Brasil, o reconhecimento
demonstra Mônica Peregrino (2005), é normativo do direito humano à educa-
a predeterminação das trajetórias es- ção está consolidado. Contudo, a sua
colares: assim, numa mesma escola, a realização plena está longe de aconte-
organização das variáveis administrati- cer. Muito ainda há por ser feito.

Notas
1
A Convenção relativa à luta contra as discriminações no campo do ensino, da Unesco, entende por
discriminação: “1) [...] toda distinção, exclusão, limitação ou preferência fundada na raça,
na cor, no gênero, no idioma, na religião, nas convicções políticas ou de qualquer outra ín-
dole, na origem nacional ou social, na posição econômica ou no nascimento que tenha por
finalidade destruir ou alterar a igualdade de tratamento na esfera de ensino, e em especial:
a) Excluir uma pessoa ou um grupo do acesso aos diversos graus e tipos de ensino. b) Limi-
tar a um nível inferior a educação de uma pessoa ou de um grupo. c) [...] instituir ou manter
sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para pessoas ou grupos. d) Colocar uma
pessoa ou um grupo em uma situação incompatível com a dignidade da pessoa humana”
(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 1960).
2
Para obter mais informações e compreensão sobre o tema, ver Organización de las
Naciones Unidas, 1999.
3
Sobre o Observatório da Equidade e seus relatórios, ver o site do Conselho de Desenvolvi-
mento Econômico e Social da Presidência da República do Brasil http://www.cdes.gov.br.

222
Direito à Educação

Para saber mais


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em: 15 set. 2011.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA
(UNESCO). Declaração de Hamburgo: agenda para o futuro. Brasília: Sesi/Unesco, 1999.
Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001297/129773porb.
pdf. Acesso em: 15 set. 2011.
______.Convenção relativa à luta contra as discriminações no campo do ensino.
Paris: Unesco, 1960. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001325/132598por.pdf. Acesso em: 15 set. 2011.

224
Direitos Humanos

D
D
DIREITOS HUMANOS
Jacques Távora Alfonsin

Onde podem ser encontradas as dependem de previsão legal. É a lei que


razões pelas quais alguns direitos são está subordinada a eles, obrigada a res-
denominados “direitos humanos”? Os peitá-los, reconhecendo sua existência,
outros direitos não se referem, igual- sua validade e sua eficácia concretas.
mente, a pessoas? Quando isso não acontece, qual-
Este verbete pretende questionar as quer Estado com poder político de
razões dessa denominação e das dife- editar leis que demonstre incapacida-
renças que os direitos humanos guar- de de garantir esses direitos, pode ter
dam em relação a outros direitos. questionada a sua condição de Estado
Os direitos humanos são direitos democrático e de direito. As ditaduras,
inerentes a cada pessoa, quando conside- então, como aquela que o Brasil so-
rada individualmente, e a todas as pes- freu com o golpe militar de 1964, são
soas, nesse caso, consideradas social- formas injustas, ilegais e inaceitáveis
mente. Aí se encontra o motivo pelo de governo.
qual se distinguem direitos humanos Muito resumidamente, podemos
individuais e direitos humanos sociais, identificar alguns sentidos relacio-
também chamados de coletivos. Trata- nados aos direitos humanos: além de
se de uma separação mais didática, de serem inerentes ao próprio corpo das
ordem teórica, pois, em verdade, os pessoas, eles se referem à satisfação de
direitos humanos formam uma unidade necessidades vitais. Por tudo isso, con-
orgânica que reflete a própria unidade vém examinar as razões pelas quais a
individual das pessoas. Isso é suficiente sua defesa é sempre inadiável, e precisa
para demonstrar como a ameaça ou a de cuidados diferentes daqueles refe-
lesão a um direito humano, mesmo in- rentes aos outros direitos. Há que se
dividual, lesa a humanidade inteira. lutar não só contra quem é responsável
Assim, o que mais convém salientar pelas ameaças e violações desses direi-
aqui é o fato de que os direitos huma- tos, mas também porque há toda uma
nos estão incorporados em cada ser cultura ideológica que a eles se opõe,
humano e pretendem garantir de fato, exemplificada em frases como “coisa
e não só na previsão da lei, a vida, a que defende bandido”, “meio de pro-
liberdade, a igualdade entre todas as teger vagabundo”, e assim por diante.
pessoas, independentemente de sexo, Para uma melhor compreensão des-
idade, etnia, riqueza ou pobreza, nacio- te tema, portanto, os direitos humanos
nalidade, estado civil etc. vão ser analisados sob três enfoques
É na satisfação das necessidades vi- principais, nos quais se busca demons-
tais de cada pessoa, então, que se pode trar, muito resumidamente, as diferen-
avaliar se os direitos humanos estão ças existentes entre eles, e entre eles e
sendo efetivamente respeitados. Ine- outros direitos que, não raro, provo-
rentes a todo o ser humano, eles não cam graves conflitos sociais.

225
Dicionário da Educação do Campo

O primeiro dos enfoques é o da delas padecem. Pela redação das leis que
realidade econômica, social e política na reconhecem os direitos humanos, de-
qual esses direitos estão presentes, vem elas merecer um cuidado preferen-
para avaliar se os direitos humanos cial, justamente por força dos precon-
são, efetivamente, respeitados. O se- ceitos que pesam sobre elas. Constituir
gundo é o da responsabilidade que cada os direitos humanos nos atos da admi-
pessoa, cada povo e o próprio Estado nistração pública e do Judiciário como
têm quando ocorre ameaça ou viola- uma exceção e não como regra cria um
ção desses direitos. O terceiro é o dos círculo vicioso. Relegados à desconside-
encargos exigíveis de cada ser huma- ração e até à indiferença, os seus efeitos
no, da sociedade e do Poder Público, jurídico-sociais se frustram, impondo, a
identificando-se a responsabilidade do cada período histórico, novas formula-
segundo enfoque, e se deve impedir ções e novas afirmações da urgência de
ou reparar os efeitos da ameaça ou da serem respeitados.
violação desses direitos. No Brasil, a sucessão histórica de
democracias, quando menos formais,
Uma realidade que interrompidas por ditaduras comprova
desafia o respeito aos esses fatos. Se os direitos humanos são
universais, indivisíveis, interdependen-
direitos humanos tes e inalienáveis, basta a ausência de
A miséria e a pobreza de multidões uma dessas características, na realidade
brasileiras, como se verifica entre as/ da convivência humana, para se ter cer-
os índias/os, as/os quilombolas, as/os teza de que estão sendo violados.
sem-terra, as/os sem-teto, as/os cata- Convém, então, lembrar a classi-
doras/es de material e outros grupos, ficação desses direitos, pelo menos a
não são consideradas violações de di- mais geral, com o objetivo de empode-
reitos humanos. Essa é, talvez, a causa rar a sua defesa, evitando-se acentuar
principal de os direitos humanos ainda o desvio ideológico que os coloca em
não terem alcançado plena efetividade, nível inferior aos patrimoniais ou que
ou, ao menos, efetividade igual à dos simplesmente, os ignora.
direitos patrimoniais, como o direito São reconhecidas três espécies
de propriedade, por exemplo. Embora tradicionais de direitos humanos,
nossa realidade ateste uma profunda e além de uma quarta espécie, o direi-
inaceitável injustiça social, a maior par- to de solidariedade humana, que está
te das pessoas vítimas dessa situação em fase de debate há bastante tempo,
não sabem que têm direito (!) de satisfa- embora sobre ele não exista consenso.
zer as suas necessidades vitais, sem as Os três primeiros são: os direitos civis
quais suas vidas e liberdades passam a e políticos;; os direitos sociais, tam-
estar sob permanente risco. bém chamados de coletivos;; e os di-
A fome, a doença, a ignorância, a reitos culturais e ambientais. Depen-
insegurança, entre outros males que dendo do período histórico em que
afetam multidões de brasileiros e bra- foram reconhecidos, são identifica-
sileiras, continuam sendo consideradas dos também por “gerações”, em cada
fatalidades ou, pior, são atribuídas à res- uma das quais se reconhecem os direi-
ponsabilidade das próprias pessoas que tos “econômicos”.

226
Direitos Humanos

Atualmente, por causa da explo- segurança, a previdência social, a pro-


ração predatória da terra e da agres-
são progressiva à fauna e à flora, os
teção à maternidade e à infância, a as-
sistência aos desamparados, na forma
D
níveis de poluição do ar e das águas desta Constituição”.
acentuaram-se nos últimos anos – de Esses são direitos a uma vida digna.
modo particular com o uso de se- De nada adianta reconhecer o direito à vida
mentes transgênicas e agrotóxicos –, sem garantir-se o direito aos meios de vida,
está-se estudando uma subclasse dos realidade essa que, por si só, questiona o po-
direitos ambientais, a dos direitos de sicionamento de quantas/os não consideram
gerações futuras. pobreza ou miséria como violação de direito.
Os direitos humanos civis e polí- A maior diferença, portanto, entre
ticos impõem limitações ao próprio os direitos humanos civis e políticos e
poder de intervenção do Estado sobre os sociais se encontra na efetividade das
o gozo e o exercício deles. São as li- garantias que uns e outros têm. Nós não
berdades próprias desses direitos que precisamos do Poder Público para emi-
obrigam as nações a respeitá-los. Nesse tir opinião sobre determinado assunto
caso – pelo menos segundo as leis que que afete um interesse ou um direito
preveem esses direitos –, as ações do nosso, por exemplo. Nós mesmos nos
Poder Público que afetem essas liber- garantimos o exercício de tal direito,
dades somente se justificam no caso de desde que essa opinião não ameace
elas se encontrarem sob ameaça ou te- ou viole o direito alheio, como ocorre
rem sido violadas. Servem de exemplo, quando alguém fala em favor da prática
entre outras, as liberdades de ir e vir, de de um crime.
opinião, de associação, de crença e de
Se estamos sofrendo de uma doen-
escolha de representantes do povo nos
ça grave, porém, e não temos dinheiro
governos, por meio do voto.
para pagar um médico ou a internação
Tanto a Declaração Universal dos em hospital, é do Estado a obrigação
Direitos Humanos, de 1948, quanto a de nos proporcionar os meios para que
nossa Constituição Federal reconhe- essa assistência seja garantida. Por se tra-
cem tais direitos. Diz a última, por tar de um direito social, a obrigação de
exemplo: “ninguém será obrigado a garanti-lo é principalmente do Estado.
fazer ou deixar de fazer alguma coi-
Em relação aos direitos humanos
sa senão em virtude de lei” (artigo 5º,
culturais e ambientais, considerados de
inciso III).
terceira geração, vale muito do que se
Já os direitos humanos sociais, disse anteriormente sobre os sociais,
também chamados de coletivos, são inclusive pelo fato de, neles, verificar-
aqueles que, para serem efetivamente se a possibilidade permanente de con-
garantidos, exigem o posicionamento flito com os patrimoniais. Basta que se
ativo do Estado, uma movimentação lembre, a respeito, pressão que sofrem
concreta da sua administração a seu os povos indígenas e os quilombo-
favor. Servem de exemplo, entre ou- las pelo avanço do agronegócio sobre
tros, os direitos lembrados pelo artigo suas terras. A história tem demonstra-
6º da nossa Constituição: “São direitos do como a exploração predatória da
sociais a educação, a saúde, a alimen- terra e as agressões ao meio ambiente
tação, o trabalho, a moradia, o lazer, a ocorrem aí.

227
Dicionário da Educação do Campo

Caberia examinar ainda neste ver- lidade, está mais presente a qualidade
bete os crimes praticados contra a in- de vida, a ética, o respeito aos valores,
tegridade física e moral das pessoas a justiça distributiva, ao passo que na
(como os hediondos, de abuso de racionalidade importa mais a quan-
poder, de cárcere privado, de assédio tidade, a técnica, a justiça retributiva.
sexual, de racismo, de tortura, de ho- Assim, para dar solução a um conflito
mofobia, de exploração do trabalho envolvendo multidão pobre, quando se
escravo, de negação do direito de defe- invoca a necessidade de se obedecer ao
sa para pessoas processadas ou presas, devido processo legal, muito raramen-
e tantos outros), mas os limites deste te se questiona se essa legalidade não
texto não permitem que isso seja feito. está inviabilizando o devido processo
É suficiente a lembrança de que, para social, inerente aos direitos humanos.
os direitos humanos, é a dignidade da A nossa Constituição Federal pre-
pessoa que está ameaçada ou é agredi- viu, no seu artigo primeiro, a dignidade
da de modo particular em tais casos,
humana e a cidadania como dois dos
não se permitindo em nenhum deles a
fundamentos da República, e colocou
condescendência com a impunidade.
os direitos civis e políticos juntamen-
Já é hora, então, de relembrar, te com os “coletivos” num mesmo
mesmo resumidamente, as responsa- capítulo, justamente o dos “direitos e
bilidades próprias de cada pessoa, da garantias fundamentais”, dando-lhes
sociedade e do Poder Público, no con- abrigo em “cláusulas pétreas” no seu
cernente às garantias devidas aos direi- artigo 60.
tos humanos.
A Constituição visou garantir pelo
menos duas coisas: que nenhum con-
Desafios relacionados a flito entre brasileiras/os possa ser de-
responsabilidades inerentes cidido sem consulta e respeito ao dis-
posto sobre tais condições de vida e de
aos direitos humanos liberdade, e que, estando em lide com
Os direitos humanos ainda estão outros direitos, exige a superior hierar-
longe de alcançar a efetividade na ga- quia dos direitos humanos que não se-
rantia de uma convivência solidária en- jam eles os sacrificados.
tre as pessoas e na eliminação de injus- Trata-se da difícil garantia de tornar
tiças sociais, como preveem as leis que compatíveis os direitos de liberdade e
os instituem. de segurança com os de igualdade e de
Por isso, a interpretação e a aplica- emancipação. Há muito debate teórico
ção dessas leis carece de um “envolvi- e prático sobre a igualdade, entre quem e
mento maior”, capaz de comprometer sobre o que ela deve ser referida. Em
a administração pública e o Judiciário matéria de direitos, por paradoxal que
com uma postura suficiente para ga- pareça, pretender a igualdade significa
rantir esses direitos de forma concreta. respeitar diferenças.
A “racionalidade” que preside a apli- Em realidade, os direitos humanos
cação das leis no que diz respeito a que garantem a igualdade visam, princi-
outros direitos precisa ser substituída palmente, eliminar desigualdades que não se
pela “razoabilidade” quando estão em justificam, nem econômica, nem política, nem
causa os direitos humanos. Na razoabi- socialmente, como as de um tratamento

228
Direitos Humanos

público que discrimine as pessoas pelo tuinte” dos direitos sociais, culturais e
seu poder econômico. Vale lembrar, por
isso, que as leis sobre responsabilidade
ambientais, que estão em permanente
processo de construção e reconheci-
D
jurídica preveem quatro elementos, de mento. Se até os já “constituídos” de-
regra, para a responsabilidade poder ser mocraticamente (reconhecidos em lei),
reconhecida como imputável a alguém: permanecem, pelo menos em parte, sem
a capacidade (coisa que é suficiente para efetividade, os que ainda são devidos
eximir de responsabilidade uma crian- têm a sua vigência prorrogada sempre
ça ou um débil mental), o fator causal para um remoto e pouco provável futu-
(nexo provado entre a ocorrência de um ro. Os direitos humanos que dependem
fato e o sujeito que o provocou), o papel das reformas agrária, urbana, tributária
social (situação do indigitado responsá- e política dão exemplo desse fato.
vel dentro do convívio, do poder que ele É por essa razão que os direitos so-
exerce sobre os demais) e a sancionabi- ciais, culturais e ambientais dependem
lidade (previsão legal dos efeitos que a muito mais da democracia econômica e
imputabilidade acarreta). participativa do que, somente, de uma
Ora, por tudo isso é que os direitos democracia representativa. Esta não
humanos, particularmente os sociais, tem conseguido caracterizar, de forma
sofrem muito da ameaça e da violação, plena, um Estado como efetivamente
que são consequências do movimen- democrático, social e de direito, como
to do chamado livre mercado, porque comprova a simples preferência verifica-
esse é dotado de um poder tal que aca- da no destino dado às verbas orçamen-
ba por garantir irresponsabilidades. tárias pelas administrações públicas.
Não por acaso, a injustiça social, tão Que o Estado não deve descurar da
presente em nosso país, conserva suas proteção aos direitos civis e políticos,
causas e seus perversos efeitos, justa- bem como aos patrimoniais, isso nin-
mente pela fraqueza com que a inter- guém discute. Aos sociais, ambientais
pretação e a aplicação das leis relacio- e culturais, então, como aqui já se de-
nadas aos direitos humanos alcançam monstrou, o apoio do Estado, inclusive
efetividade. Assim, importa analisar financeiro, é indispensável.
os encargos próprios dessas respon- É fato notório, por outra parte,
sabilidades, objetivando, também re- que o direito de propriedade ocupa (se
sumidamente, esclarecer como podem não na lei) na realidade econômico-
ser identificados. social do Brasil uma posição prefe-
rencial, com poder suficiente para
Desafios públicos e privados pôr em risco garantias e liberdades
e direitos humanos próprias de outros direitos. Em razão
da chamada “liberdade de iniciativa”,
Pelo exposto até aqui, é impossível prevista no artigo 170 da Constituição
negar que os direitos humanos sofrem Federal, qualquer intervenção públi-
de uma histórica anemia e vivem sob ca ou privada que afete o direito de
crise permanente. Se ela é menos visí- propriedade pode ser julgada como
vel nos direitos civis e políticos, pela infração da lei que o sustenta, passível
sua própria condição de autonomia, de responsabilização civil ou penal de
pode ser identificada como “consti- quem a pratique.

229
Dicionário da Educação do Campo

É o livre mercado que dita a conve- Sempre que os encargos próprios


niência, então, de os contratos criarem do direito de propriedade são desobe-
a circulação das coisas, das mercado- decidos, os encargos de quem inter-
rias, mediante compra e venda, mesmo preta e aplica as leis que o disciplinam
que essa liberdade ponha em risco ou, são os de conferir não só se a aquisição
exceções à parte, comprometa a liber- da propriedade se deu de forma lícita,
dade alheia. O poder econômico das mas também se o direito de proprie-
empresas transnacionais sobre o nosso dade ainda se conserva como capaz de
território, na era da nova globalização, ser reconhecido e garantido como tal.
dá exemplo desse fato. Aí se encontra, Um direito de propriedade que infrin-
talvez, a principal razão de a função ge outros direitos não pode ser tratado
social da propriedade, aquela parte das e respeitado, sem mais, como direito
obrigações que esse direito comporta, adquirido. Esse direito somente pode
refletir-se tão pouco em nossa realida- ser considerado conservado (!) uma vez
de, e o Poder Público carecer da capa- que tenham sido cumpridas as obri-
cidade efetiva de fiscalizá-la. A defesa gações que lhe incumbem. Portanto,
da função social da propriedade deveria se a função social faz parte do núcleo
traduzir-se, concretamente, no exercício essencial do direito de propriedade,
de um poder sobre as coisas, garantido para que esse direito seja respeitado, é
como legal e justo, somente sob a con- necessário que os requisitos da função
dição de não acarretar prejuízo para ou- social da propriedade sejam observa-
tras pessoas, para o povo em geral. Não dos e cumpridos.
é o que acontece, por exemplo, com
um proprietário de empresa ou de uma Note-se a diferença que existe aí
fração de terra que mantenha trabalho em relação aos direitos humanos. No
escravo, não pague o devido aos seus caso de um bem pertencente a alguém
empregados, desmate de forma indiscri- ser desapropriado, justamente porque
minada, polua o solo e o ar, e assoreie os ali se verificou uma utilização antisso-
rios, dando à propriedade, portanto, um cial, o seu proprietário é indenizado,
tipo de uso incompatível com a vida das mesmo que seja com títulos da dívida
outras pessoas e da natureza. pública (ver, a propósito, o artigo 184
da Constituição Federal). Comprova-
Quem compra e vende terra, um
se, então, a superioridade atribuída a tal
bem essencial à vida de toda a huma-
direito em relação aos direitos huma-
nidade, está muito mais preocupado
com o resultado econômico e político nos. Se uma atitude ilícita desse tipo,
(lucro, poder) do que com o possível capaz de causar dano a toda a socie-
dano alheio. E o Estado, sabidamente, dade, acaba tendo de ser paga por essa
se não tem tido, historicamente, poder mesma sociedade – a verdadeira vítima
para corrigir o mal daí decorrente, mui- desse mau uso –, é impossível deixar de
to menos tem para preveni-lo. Assim, concluir que o direito de propriedade,
não há exagero nenhum em afirmar mesmo aquele mal exercido, violando
que o exercício de um direito, como é o direitos humanos, é até remunerado
de propriedade, dependendo da forma pelo mal que provoca...
como é feito, é gerador de risco para Esse talvez seja o único caso em
outros direitos humanos, como os so- que se garante que alguém seja pago
ciais, os ambientais e os culturais. pela prática continuada de um ato ilí-

230
Diversidade

cito. Daí pode-se concluir que um dos lidade, até, do direito à resistência e à
principais encargos da administração
pública, do Poder Judiciário, do povo
desobediência civil.
O chamado “respeito à lei”, por-
D
e da própria vítima de violação dos di- tanto, tão lembrado em sentido opos-
reitos humanos é o de rebelar-se contra to ao exercício dos direitos humanos,
uma contradição de efeitos tão preju- especialmente os de gente pobre, tam-
diciais ao bem-estar social. Em casos bém tem o seu encargo: o de não ser
extremos, fica sempre aberta a possibi- invocado sem a “lei do respeito”.

Para saber mais


ALFONSIN, J. T. A terra como objeto de colisão entre o direito patrimonial e os
direitos humanos fundamentais. Estudo crítico de um acórdão paradigmático. In:
STROZAKE, J. (org.). A questão agrária e a justiça. São Paulo: RT, 2000. p. 202-222.
______. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à
moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
BICUDO, H. Direitos humanos e sua proteção. São Paulo: FTD, 1997.
CARVALHO, J. S. (org.). Educação, cidadania e direitos humanos. Petrópolis: Vozes, 2004.
HERKENHOFF, J. B. Gênese dos direitos humanos. São Paulo: Aparecida, 1994.

DIVERSIDADE
Miguel G. Arroyo

Por que dar atenção e centralidade e na pressão por políticas públicas, na


à diversidade na construção de um pro- proximidade dos cursos de Formação de
jeto de Educação do Campo? Porque Educadores, Pedagogia da Terra e For-
as lutas pela construção da Educação mação de Professores para o campo, in-
do Campo carregam as marcas históri- dígenas, quilombolas etc. A diversidade
cas da diversidade de sujeitos coletivos, está exposta e exige reconhecimento.
de movimentos sociais que se encon- Neste verbete, discute-se a construção
tram nas lutas por outra educação em da diversidade no próprio movimento de
outro projeto de campo e de sociedade. conformação da educação do campo.
Reconhecer essa diversidade enriquece
o projeto de Educação do Campo.
O reconhecimento da diversidade de A diversidade e os princípios
coletivos em lutas por terra, território, da Educação do Campo
trabalho, educação, escola está presente
na história da defesa de outra educação Podemos levantar a hipótese de que
do campo nas conferências, no fórum o reconhecimento da diversidade não

231
Dicionário da Educação do Campo

enfraquece, e sim fortalece, os princí- Diversos no padrão de trabalho


pios em que se assenta a construção teó-
rica da Educação do Campo, do pro- Por sua vez, o reconhecimento do
jeto de campo e de sociedade. Esses trabalho como princípio educativo exi-
conceitos, matrizes da concepção de ge o reconhecimento do caráter sexista
educação, são construções históricas e racista do padrão de trabalho, espe-
em tensa relação com a diversidade de cificamente em nossa formação social.
sujeitos e de coletivos sociais, étnicos, Esse caráter condiciona as formas de
raciais, de gênero. Pesquisar a fundo exploração para além do pressuposto
essa construção é uma exigência na da igualdade formal da exploração que
conformação da Educação do Campo. se dá por sua condição de trabalhado-
res. A identidade “trabalhadores” está
transpassada pela diversidade de con-
Diversos no fazer-se na história textos culturais e históricos de relações
Um dos princípios que orienta a de classe em que essa identidade se
Educação do Campo é que os seres hu- produz, porém isso não anula as dife-
manos se fazem, se formam e se huma- renças de gênero, raça, etnia... Elas são
nizam no fazer a história. Consequente- antes incorporadas e reforçadas nas re-
mente, a diversidade de formas de fazer lações de exploração do trabalho.
a história e o fato de os seres humanos O trabalho reduzido à mercadoria
serem reconhecidos como sujeitos tem preços diferentes, dependendo
de história ou serem segregados da nossa da diversidade dos sujeitos coletivos.
história imprime determinadas marcas Consequentemente, passa a ser uma
no fazer-se, no formar-se, no humani- exigência reconhecer e se aprofundar
zar-se que exigem reconhecimento na nas diversas formas de inserção no tra-
teoria e nos projetos de formação. balho, na produção dos meios de vida e
Um dos traços marcantes na nossa de conhecimento, na criação cultural e
história social, política e cultural tem identitária e na sociabilidade, e nos di-
sido a produção de coletivos diversos ferentes modos de segregação e explo-
em desiguais;; tem sido, ainda, a pro- ração do trabalho por uma diversidade
dução dos diferentes em gênero, em de coletivos.
raça, em etnia, e também dos traba- Reconhecer o trabalho como fon-
lhadores do campo como inexisten- te de toda a produtividade e expressão
tes, segregados e inferiorizados como da humanidade do ser humano, de sua
sujeitos de história. As tentativas de formação-humanização, exige dirigir o
mantê-los à margem da história hege- foco para os padrões de trabalho, tão
mônica e à margem da história social, marcados por segregações de gênero,
econômica, política e cultural têm sido orientação sexual, raça, etnia, campo...
uma constante. A formação da diversidade em desigual-
Levar em conta essa diversidade dades se expressa nas desigualdades no
de reconhecimentos na construção de trabalho. Uma história que os coletivos
nossa história enriquece e torna mais inferiorizados, porque diferentes, ex-
complexo o projeto de educação em põem em suas lutas e movimentos.
um de seus princípios básicos: o de que Esses coletivos resistem a que as
nos fazemos fazendo a história. formas de controle do trabalho, de sua

232
Diversidade

exploração, continuem associadas à di- Diversos no padrão de poder


versidade de sua condição. Resistem a
que o controle de hierarquias de traba- Outro ponto que as lutas dos co-
D
lho continue operando como controle, letivos diversos nos trazem é a con-
segregação e inferiorização de coleti- formação histórica do padrão racista
vos específicos. Os coletivos feitos tão e sexista de poder, com as relações
desiguais porque diversos explicitam de dominação-subordinação. Aníbal
as estreitas relações entre padrões de Quijano (2005) nos lembra que os
dominação, de poder e de trabalho. Ao padrões de poder, de controle do tra-
vivenciar e reagir a essas relações, mos- balho, de seus recursos e de seus pro-
tram a complexidade de vincular traba- dutos, da apropriação-expropriação
lho e formação humana. Enriquecem a da terra, de dominação-subordinação
concretude histórica do trabalho como estão marcados e legitimados na ideia
princípio educativo e como expressão de raça ou na suposta inferioridade dos
da humanização. povos indígenas e negros. Essa suposta
A teoria pedagógica é obrigada a inferioridade traspassa as relações so-
entender a diversidade das formas de ciais, políticas, econômicas e culturais
controle, de exploração do trabalho e em nossa formação histórica:
de apropriação dos produtos do traba-
lho e da terra, associadas à produção Na medida em que as relações
histórica dos diversos como desiguais. sociais que se estavam configu-
É obrigada a aprofundar questões his- rando eram relações de domi-
tóricas nucleares: como foi associada nação, tais identidades sociais
a exploração do trabalho à constru- foram associadas às hierarquias,
ção hierárquica dessas identidades em lugares e papéis sociais corres-
nossa história do trabalho? Como essa pondentes, como constitutivas
cosntrução persiste? Como continua delas e, consequentemente, ao
legitimando a alocação desses coleti- padrão de dominação que se
vos nas formas mais precarizadas de impunha. Em outras palavras,
trabalho, ou sua alocação na hierarqui- raça e identidade racial foram
zação racista e sexista do trabalho e estabelecidas como instrumen-
dos salários, e nas hierarquias de ges- tos de classificação social básica
tão, no interior do capitalismo colo- da população. (Quijano, 2005,
nial e moderno? p. 228-229)
Assumir o trabalho como prin-
cípio educativo exige aprofundar no Se essas inferiorizações raciais
papel deformador dessas hierarquias têm operado em nossa formação po-
e compreender qual o papel formador lítica como legitimadoras das estrutu-
das resistências a essas hierarquias por ras de poder, as reações políticas dos
parte dos coletivos segregados. Essas movimentos sociais indígenas, ne-
questões enriquecem as propostas gros e quilombolas têm sentido espe-
educativas que assumem o trabalho cial, por afirmarem identidades positivas
como princípio educativo e que pre- e desconstruírem hierarquias e lugares
tendem conformar a escola do traba- e papéis sociais inferiorizantes e se-
lho no campo. gregadores. Essas reações conferem

233
Dicionário da Educação do Campo

dimensões políticas específicas, en- na multiplicidade de hierarquias de base


riquecedoras das lutas contra os racial e étnica – uma realidade tão marcan-
padrões históricos de dominação- te na identidade dos povos do campo.
subordinação e de libertação. Que A consciência dessa diversidade, de
peso formador pode-se reconhecer condicionantes do direito à terra-terri-
nessa especificidade das resistências tório, confere uma rica complexidade às
vindas da diversidade em um projeto lutas do campo e, consequentemente, às
de educação libertadora? Como reco- lutas por outro projeto de educação do
nhecer a politização das diversidades campo num outro projeto de campo e
nas lutas coletivas no campo? Em que de sociedade. Essas identidades nas lu-
aspectos essa politização da diversi- tas por terra-território, pela agricultura
dade repolitiza as lutas por projetos camponesa, têm levado a identidades de
de campo e de educação do campo? lutas por projetos de campo, de educa-
ção, de formação de educadores...
Diversos nas inserções e
relações territoriais Diversos nas formas de
opressão-libertação
No verbete QUILOMBOS, Renato
Emerson dos Santos mostra como as No verbete PEDAGOGIA DO OPRIMI-
resistências à escravidão e as lutas pela DO, lembramos que Paulo Freire ressal-
liberdade apontam para um modelo ta a experiência da opressão-libertação
alternativo de sociedade e de inserção como matriz pedagógica. As lutas dos
territorial, de atividades produtivas, coletivos oprimidos pela libertação
de ocupação das terras. No presente, revelam que a diversidade das formas
travam-se lutas por direito ao territó- de opressão tem estreita relação histó-
rio, à vida, à memória e às identidades rica com os processos de transformar
coladas à terra-território, e elas são em desiguais os coletivos diversos em
processos que resultam na formação gênero, etnia, raça, classe, campo. Os
de sujeitos coletivos, identitários, de mecanismos de dominação-opressão
territorialidades e de patrimônio cul- têm produzido essa inferiorização his-
tural, e que expressam a persistente tórica que os seres humanos desses
relação histórica entre raça, etnia e ter- coletivos sofrem – incorporando-as
ra, territorialidades. São processos so- e reforçando-as. Contudo, ainda nos
ciais que engendram formas espaciais falta pesquisar mais a fundo a forma
e de produção em comunidades negras como as relações políticas de domina-
de produção camponesa;; que repro- ção-opressão são racistas e sexistas.
duzem hierarquias sociorraciais na Há padrões históricos específicos
inserção-segregação do trabalho livre, de opressão vinculados à produção das
no direito à terra-território, à cultura diversidades em desigualdades. Resulta
e à identidade e ao conhecimento, na ingênuo supor que há uma forma única
inserção inferiorizante de populações de opressão e um movimento político
negras, indígenas e quilombolas nos legítimo de libertação que secundarize
espaços urbanos e dos campos, proces- e dilua, ou deslegitime como políticas,
sos esses que persistem na segregação- a diversidade de lutas por libertação da
inferiorização na sociedade de classes, diversidade de experiências históricas

234
Diversidade

de opressão. Paulo Freire não se refere classificação dessas populações como


a uma opressão genérica, mas de cole-
tivos e de trabalhadores concretos, dos
diversas pelo padrão segregador do
conhecimento, que é estruturante em
D
campos e das periferias. nossa história política. A luta pelo co-
As reações específicas de cada cole- nhecimento pressupõe a luta contra o
tivo à segregação-opressão, a diversida- padrão segregador de conhecimento.
de de estratégias, de ações coletivas e de Boaventura de Sousa Santos (2010)
movimentos pela libertação, expõem esse nos lembra que o padrão de conheci-
dado histórico da diversidade de proces- mento opera dividindo os coletivos so-
sos de opressão ou as formas diferen- ciais em existentes e inexistentes para
ciadas, em intensidade e desumanidade, o conhecimento. Esse padrão conce-
de opressão dos diferentes, por serem di- de à ciência moderna o monopólio da
ferentes, pensados como inferiores. distinção entre o verdadeiro e o falso.
Por sua vez, as resistências à opres- A visibilidade da ciência, da raciona-
são e as lutas pela libertação são múlti- lidade e do conhecimento legítimos,
plas e se reforçam, porque há consciên- hegemônicos, verdadeiros, assenta-se
cia de que os processos históricos de na declaração de invisibilidade e inexis-
opressão são múltiplos e se reforçam. tência de outras formas alternativas de
Eles são inseparáveis dos processos conhecimento, de ciência e de raciona-
brutais de segregação dos diferentes lidade. Igualmente a invisibilidade das
tão persistente em nossa história. Igno- formas alternativas de conhecimento ou
rar essas especificidades reduz a força sua classificação como ilegítimas se as-
político-pedagógica da experiência da senta na segregação dos outros coletivos
opressão-libertação em todo projeto humanos como irracionais, incapazes de
de educação. produzir conhecimentos legítimos.
A segregação histórica mais radical
O padrão segregador de nesse campo é a declaração de incapa-
zes de produzir conhecimento reco-
conhecimento nhecível dirigida aos povos do campo,
Em nossa formação social e política, indígenas, negros, quilombolas e tra-
não apenas o padrão de poder, de traba- balhadores. Consequentemente, seus
lho, é racista e segregador dos coletivos conhecimentos não serão reconhecidos
diversos, mas também o padrão de co- como conhecimentos porque produ-
nhecimento e de racionalidade carrega zidos por coletivos segregados como
uma função segregadora e de produção incultos e primitivos, como irracionais
das diversidades como inferioridades. atolados no misticismo. Desse lado do
“falso pensar”, não há conhecimento
A defesa da Educação do Campo
aceitável, real, apenas existem crenças,
se justifica como uma ação afirmativa
opiniões, magia, idolatria, entendimen-
para correção da histórica desigualda-
tos intuitivos ou subjetivos (Santos,
de sofrida pelas populações do campo
2010, p. 33-34).
em relação ao seu acesso à educação
básica e superior. Porém essa desi- Essa suposta inexistência dos diversos
gualdade tem determinantes históricos para o conhecimento tem operado em
mais radicais e mais profundos: não é nossa história de maneira mais segregado-
apenas desigualdade de acesso, mas da ra dos trabalhadores e dos povos do campo

235
Dicionário da Educação do Campo

do que a desigualdade de acesso à esco- poder-saber. Assim, os trabalhadores, o


la. Essa desigualdade se legitima na sua movimento operário, têm estado nessa
suposta inexistência para o conhecimen- fronteira, lutando pelos saberes do tra-
to. Para que dar acesso ao conhecimento balho e pelo seu reconhecimento como
a coletivos pensados como irracionais e produtores de outros conhecimentos.
inexistentes para o conhecimento? Estão em disputa contra o conhecimen-
Aníbal Quijano (2005) introduz a to hegemônico e também por outro pa-
categoria poder-saber e mostra como drão de poder-saber.
os diversos povos constituintes de nos-
sa formação latino-americana tinham e Reconhecimento da
têm sua própria história, sua lingua-
gem, seus descobrimentos e produtos
diversidade no projeto de
culturais, sua memória e suas identida- Educação do Campo
des. O padrão de poder-saber racista os
O projeto de campo e de Educação
declara inexistentes. O resultado dessa
do Campo traz a marca histórica da
história de poder-saber racista teve
participação da diversidade de coleti-
duas implicações decisivas. A primeira
vos e de movimentos, diversidade que
é obvia: todos esses povos foram des-
o enriquece e lhe confere maior radica-
pojados de suas próprias e singulares
lidade político-pedagógica. Como ex-
identidades históricas... A segunda é,
plorar essa riqueza político-pedagógica
talvez, menos óbvia, mas não menos
decisiva: sua nova identidade racial, co- no projeto educativo do campo, nos
lonial e negativa, implicava o despojo currículos de formação e de educação
de seu lugar na história da produção básica, na pedagogia dos movimentos?
cultural da humanidade. Daí em diante Um dos caminhos é aprofundar a
não seriam nada mais do que raças in- contribuição dos coletivos diversos na
feriores, capazes somente de produzir conformação dos princípios-matrizes
culturas inferiores. formadores da Educação do Campo
O padrão de poder baseado na co- destacados nas análises. Esse pode ser
lonialidade implica também um padrão um campo de pesquisas, análises e in-
cognitivo (Quijano, 2005, p. 249), um terações entre os diversos movimentos,
padrão racista, segregador de poder- sobretudo nos cursos de Pedagogia da
saber que persiste e contra o qual resiste Terra e de Formação de Professores, as-
a diversidade de coletivos – que se afir- sim como nos projetos e encontros de
mam sujeitos na história da produção pesquisa sobre Educação do Campo.
intelectual e cultural da humanidade – Outro caminho será introduzir, nos
despojados de suas próprias identidades currículos de formação de educadores,
históricas porque vistos como inferiores. dirigentes e militantes, a história da
Nessa história, esses povos conferem às construção dos diferentes em desiguais
suas lutas pelo direito à escola, à uni- ou a história da construção racista ou
versidade e ao conhecimento uma den- sexista dos padrões de poder, de co-
sa radicalidade. É uma luta para serem nhecimento, de dominação e opres-
reconhecidos e para se afirmarem como são, de trabalho e de apropriação-ex-
sujeitos de conhecimentos, de formas propriação da terra e da produção tão
de pensar, de culturas e identidades;; determinantes e persistentes em nossa
uma luta contra o padrão segregador de história. A especificidade de nossa for-

236
Diversidade

mação social e política na história da o movimento negro conseguiram que


dominação e da opressão do trabalho e
da terra merece destaque nos currícu-
conste na Lei de Diretrizes e Bases
(LDB) e nos currículos de educação
D
los de formação e de educação básica. básica a garantia do direito a sua me-
Há que se pesquisar e teorizar tam- mória e cultura como configurante do
bém com maior profundidade sobre os direito à história e como mecanismo de
determinantes históricos da persistente reconstrução da história hegemônica.
precarização da escola do campo, so- Há, porém, uma história de emanci-
bretudo os determinantes históricos da pação. E é necessário garantir o conhe-
conformação dos outros como inexis- cimento a essa história de resistências
tentes na história intelectual e cultural. e de emancipação, dando centralidade
Se não analisarmos a fundo a história nos currículos de formação e de educa-
da produção dessas inexistências dos ção básica sobretudo à diversidade de
povos diversos do campo, será difícil resistências, de ações e movimentos da
entender a negação da escola do cam- diversidade de coletivos e de povos
po e a construção de outra escola. do campo;; reconhecendo os saberes
Uma das funções dos currículos de acumulados sobre esses processos
educação do campo será a de dar cen- de resistência e de libertação em sua
tralidade política e pedagógica ao direito rica diversidade como direito ao co-
da infância e da adolescência, dos jovens nhecimento;; e incorporando-os nas
e dos adultos do campo a se conhece- escolas e nos currículos de formação
rem nessa especificidade histórica e de (Arroyo, 2011).
garantir o seu direito a se reconhecerem Mereceria destaque especial no
nesses processos de segregação e infe-
projeto de Educação do Campo pes-
riorização. A histórica inferiorização dos
quisar e teorizar sobre a diversidade de
povos do campo se traduz nas represen-
processos de desumanização que têm
tações sociais, políticas e culturais, que
acompanhado os processos de produ-
carregam essas marcas inferiorizantes
zir os outros, os diferentes em desi-
dos coletivos diversos. Desconstruir es-
sas representações será uma função da guais, em oprimidos, e que persistem
escola do campo. neles. Com que perversas pedagogias
foram produzidos e tratados como
desiguais porque diferentes. Por exem-
O direito a saber-se plo, pesquisar mais sobre qual o preço
nessa história de desumanizante da expropriação do ter-
inferiorização-emancipação ritório, da terra e dos seus processos
de produção. Também pesquisar mais
Os processos de inferiorização sobre os processos de humanização
do trabalho no campo, da agricultura de que são sujeitos, ao produzirem-se
e da cultura camponesas têm sido re- como coletivos culturais, identitários,
forçados nos mesmos processos de humanos. Dar maior destaque nas teo-
inferiorização e segregação de outras rias pedagógicas e nos cursos de for-
diferenças. Que peso dar a essa história mação a pesquisar e teorizar com que
no direito a saber-se desde a infância “pedagogias” esses coletivos reagem,
na escola do campo, indígena, quilom- se afirmam, humanizam? Qual o peso
bola? Lembremos que esses coletivos e formador e humanizador específico

237
Dicionário da Educação do Campo

das diversas lutas por terra, território, empobrecimento do humano. Nas suas
vida, produção e trabalho? Como nessa lutas pelo reconhecimento da diversi-
diversidade de resistências se formam, dade eles enriquecem a compreensão
educam, humanizam-se, afirmam-se do humano, enriquecendo as teorias e
como sujeitos de história política, inte- os projetos de formação humana.
lectual, cultural e ética? A incorporação dessa comple-
Conhecer essa história de inferio- xidade de processos formadores na
rização-emancipação será uma contri- conformação histórica e política da
buição à história do pensamento peda- diversidade de coletivos e de povos
gógico. Segregar os coletivos diversos do campo confere uma radicalidade
porque diferentes como inferiores até política à conformação da Educação
em humanidade tem representado um do Campo.

Para saber mais


ARROYO, M. G. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011.
MANÇANO, B. et al. A terra e os desterrados: o negro em movimento. In: SANTOS,
R. E. (org.). Diversidade, espaço e relações étnico-raciais. Belo Horizonte: Autêntica,
2007. p. 137-164.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:
LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: etnocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-278.
______. O que é essa tal de raça. In: SANTOS, R. E. (org.). Diversidade, espaço e rela-
ções etnico-raciais. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 43-52.
SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecolo-
gia de saberes. In: ______; MENEZES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo:
Cortez, 2010. p. 31-83.

238
E
EDUCAÇÃO BÁSICA DO CAMPO E
Lia Maria Teixeira de Oliveira
Marília Campos

Para se compreender o cenário da cola, está consagrada na Constituição


educação básica do campo em meio à brasileira (art. 206), que indica a neces-
luta política pelos direitos humanos nas sidade de elaboração, financiamento,
áreas rurais do Brasil (sertões, interior, implementação e avaliação de políticas
campo, rincões), diante da diversidade mantidas pela União, estados e municí-
de projetos, há que se buscar elemen- pios. Tais práticas de natureza cultural,
tos, eventos, processos e movimentos educacional e científica devem primar
que contribuam para a constituição pela busca da universalidade na sua
dessa realidade. Xavier (2006) provoca implementação e pelo respeito às di-
a reflexão propondo algumas pergun- ferenças como princípio de combate à
tas essenciais para este tema: existem exclusão, principalmente quando se trata
especificidades na educação do cam- dos “povos do campo”. Cury (2008)
po? Qual a relação da educação do nos apresenta a importância do con-
campo com os movimentos sociais? ceito de “educação básica”, embrioná-
Quais os desafios a serem enfrentados rio na Constituição de 1988, nutrindo-
na implantação da educação do campo? se da legitimidade de vários movimen-
Qual a relação entre a educação do tos sociais, tais como os dos sindicatos
campo e a educação popular? As per- de docentes, os movimentos estudantis,
guntas que Xavier elabora, ao lado ambientalistas, enfim, diversos seg-
dos estudos de outros autores – como mentos que, organizados, lutaram pela
Arroyo e Molina (1999) e Arroyo et al. universalização da educação escolar.
(2004) –, compõem uma reflexão que Neste sentido, a década de 1990 foi im-
vem sendo produzida desde o final dos portante para consolidar outros movi-
anos 1990 sobre a práxis dos sujeitos e mentos pela universalização do direito
atores do campo. à educação básica e às diversas modali-
O contexto educacional recente dades de educação (educação de jovens
do mundo rural vem sendo transfor- e adultos – EJA, educação especial,
mado por movimentos instituintes educação do campo) que reconfigura-
que começaram a se articular no final ram os espaços públicos e privados no
dos anos 1980, quando a sociedade ci- quadro das lutas populares, ampliando
vil brasileira vivenciava o processo de o campo de conquista de direitos.
saída do regime militar, participando As elaborações referentes às mo-
da organização de espaços públicos e dalidades incluem uma atenção, sin-
de lutas democráticas em prol de vá- tonizada com as diretrizes de fóruns
rios direitos, dentre eles, a educação internacionais, a grupos sociais his-
do campo. A educação, como direito de toricamente excluídos e que represen-
todos ao acesso e à permanência na es- tam dívida social. Para Cury (2008), a

239
Dicionário da Educação do Campo

educação básica é um conceito avança- outros aspectos locais e regionais que


do e inovador para o Brasil, na medida compreendem as especificidades de um
em que se instituiu em meio à eferves- mundo rural (Kolling e Molina, 1999;;
cência de propostas reivindicadas pelos Caldart, 2000).
movimentos, ao mesmo tempo em que Ao contrário da Educação do Cam-
se tornava um bem público e ampliava po, a educação rural sempre foi insti-
o campo dos direitos. Compreendida tuída pelos organismos oficiais e teve
assim, a educação básica necessita de como propósito a escolarização como
políticas de universalização para se tor- instrumento de adaptação do homem
nar efetivamente um direito de todos, ao produtivismo e à idealização de um
inclusive dos povos do campo, para que mundo do trabalho urbano, tendo sido
os profissionais da educação e os usuá- um elemento que contribuiu ideolo-
rios das instituições escolares se for- gicamente para provocar a saída dos
mem assegurando suas territorialidades sujeitos do campo para se tornarem
e identidades sociais. O I Encontro de operários na cidade. A educação rural
Educadores e Educadoras da Reforma desempenhou o papel de inserir os su-
Agrária (Enera), realizado em 1997, jeitos do campo na cultura capitalista
foi um marco da luta política que de- urbana, tendo um caráter marcada-
monstrou a insatisfação do Movimen- mente “colonizador”, tal como critica
to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Freire (1982).
(MST), bem como de outros atores po- As conferências – assim como os
líticos e de instituições universitárias fóruns – por uma “Educação Básica
e científicas, com a educação básica e do Campo” se sucederam da década de
superior nacional, naquela época des- 1990 até a década atual, tornando-se es-
tinada às crianças, aos jovens e adultos paços de produção de conhecimento e
dos sertões/campo brasileiros (Kolling de articulação de saberes, cuja essencia-
e Molina, 1999;; Caldart, 2000). lidade denota a participação campesina
A rebeldia como sentimento/luta na construção de um ideário político-
pela emancipação é um traço pedagó- pedagógico e de diretrizes operacionais
gico de diversas populações campesi- que orientem as políticas públicas para
nas, indígenas, caiçaras, quilombolas, a educação do campo. Visando respon-
atingidas por barragens, de agricul- der às demandas dos movimentos so-
tores urbanos, que estão buscando a ciais do campo que, desde o final da
educação a partir de uma perspectiva década de 1990, se arrastavam no Con-
contra-hegemônica, conforme Gramsci selho Nacional de Educação (CNE),
nos ensina. Foi exatamente isso que surgem, no contexto educacional da dé-
produziu a diferenciação da Educação do cada seguinte, o parecer nº 36, de 2001,
Campo da histórica educação rural: o pro- e a resolução nº 1 (3 de abril de 2002 –
tagonismo dos movimentos sociais “Diretrizes operacionais da educação
do campo na negociação de políticas do campo”), bem como o Grupo Per-
educacionais, postulando nova con- manente de Trabalho de Educação do
cepção de educação que incluísse suas Campo (GPT) (2003). Diante da mo-
cosmologias, lutas, territorialidades, rosidade de implantação das diretrizes,
concepções de natureza e família, arte, o Governo Lula, por força da pressão
práticas de produção, bem como a or- dos movimentos sociais e instituições
ganização social, o trabalho, dentre diversas, criou, em 2004, a Secretaria

240
Educação Básica do Campo

de Educação Continuada, Alfabetiza- Diretrizes Curriculares Nacionais para


ção e Diversidade no âmbito do Minis- a Educação Básica, por meio da reso-
tério da Educação (MEC). Segundo o lução nº 4, de 13 de julho de 2010, da
MEC, a secretaria teria como meta pôr
em prática uma política que respeitasse
Câmara de Educação Básica, do Con-
selho Nacional de Educação, (CNE/ E
a diversidade cultural e as experiências CEB) (Brasil, 2010) e do decreto presi-
de educação e de desenvolvimento das dencial nº 7.326/2010, que institucio-
regiões, a fim de ampliar a oferta de nalizou o Pronera como ferramenta de
educação básica e de EJA nas escolas implantação de políticas de educação
rurais e assentamentos do Instituto do campo. Outro fato importante foi
Nacional de Colonização e Reforma a lei nº 11.947, de junho de 2009, que
Agrária (Incra). Para dar conta das po- determinou a compra, por parte dos
líticas reguladoras, do financiamento da poderes públicos, de no mínimo 30%
educação infantil, da educação básica, da merenda escolar diretamente dos
do ensino superior e das modalidades, agricultores familiares, fato que pode
assegurando as especificidades de sa- potencializar mudanças para esse setor
beres e territorialidades foi institucio- de produção.
nalizada, na secretaria, a Coordenação De acordo com o último censo
Geral da Educação do Campo. agropecuário, realizado em 2006 pelo
Dessa forma, as políticas públicas Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
da educação do campo se instalaram no tatística (IBGE), o Brasil tem 4.551.967
bojo de dois ministérios: do Ministério estabelecimentos em 106.761.753 hec-
do Desenvolvimento Agrário (MDA), tares ocupados pela agricultura fami-
por meio do Programa Nacional de Edu- liar. A efervescência de experiências
cação na Reforma Agrária (Pronera), e de exercício da cidadania que a edu-
e do MEC, por meio da Secretaria de cação do campo vem promovendo é
Educação Continuada, Alfabetização, responsável pela sua repercussão em
Diversidade e Inclusão (Secadi), fato todo o território nacional, na medida
que contribuiu, quando da implemen- em que se pode atestar a ampliação de
tação das ações para a convergência, cursos no Pronera, assegurando dig-
em alguns momentos e, em outros, nidade de trabalho e educação aos su-
para um choque. Ainda assim, há de jeitos do campo. Entretanto, sabemos
se ressaltar que, pela primeira vez no que não basta a aprovação dos textos
Brasil, se “reconhece a diversidade legais, se não for possível romper com
sociocultural e o direito à igualdade e a estrutura agrária e a superestrutura
à diferença” (Brasil, 2001) na educa- que alimentam a exclusão e a desigual-
ção básica do campo. Os movimentos dade social na relação campo–cidade.
sociais se configuram como sujeitos Os dados e os índices que constituem
produtores de direitos, contribuindo o cenário educacional das áreas rurais
para o estabelecimento de novas leis e e campesinas são preocupantes, mas é
políticas educacionais, bem como para essencial divulgá-los e analisá-los para
a abertura de políticas de trabalho e que se possa compreender o porquê da
renda para a agricultura familiar. Al- opção por uma pedagogia radical dos
guns fatos mais recentes ilustram estas movimentos em luta contra a pedago-
conquistas dos atores: um exemplo foi gia bancária (Freire, 1982), naturalizada
a inclusão da educação do campo nas no cotidiano escolar. A promoção e a

241
Dicionário da Educação do Campo

implementação de políticas públicas 4 a 17 anos denota a urgência da


vêm sendo a pauta dos movimentos so- promulgação e da implementação de
ciais do campo para reverter os sérios políticas pelos poderes municipais,
problemas de acesso e de permanência estaduais e federal para atender as áre-
dos sujeitos do campo na educação bá- as rurais. Embora com certa estabili-
sica e superior. dade de matrículas, encontramo-nos
Apesar de os dados da educação do longe da universalização do acesso à
campo serem reconfigurados em fun- educação básica.
ção das lutas, ainda permanecem defi- Segundo o Observatório da Equi-
ciências grandes, tais como a falta de dade, “embora as matrículas no campo
atendimento no âmbito da educação in- representem apenas 13% do total do
fantil, do segundo segmento do ensino país, esse percentual representa mais
fundamental, do ensino médio e do en- de 6,6 milhões de crianças e jovens
sino superior, além das modalidades de espalhados em 83 mil escolas rurais.
EJA e educação especial. Os dados do Esse contingente de alunos é maior
Censo de 2010 (IBGE) apontam que a do que toda a população do Paraguai”
população rural brasileira corresponde (Fernandes, 2010, p. 1). Di Pierro, no
a 15% da população total do país. Em que diz respeito à realidade das esco-
2000, a população rural correspondia las do campo, ressalta que a “extensa
a 19%;; já os dados do censo de 1980 demanda potencial não atendida e as
mostravam 32% da população vivendo oportunidades existentes são insufi-
em meio rural. Podemos constatar a cientes, marcadas pela precariedade das
triste realidade do êxodo rural tomando instalações físicas e do preparo de do-
a insuficiente política de educação centes para a etapa ou nível de ensino
do campo como exemplo do descaso em que atuam” (2006, p. 11). À oferta
com que, durante séculos, os povos insuficiente de atendimento, soma-se
do campo foram tratados pelo poder a inadequação dos currículos, da orga-
público, mesmo que nos últimos dez nização escolar e da prática pedagógi-
anos tenham se obtido conquistas. A ca, bem como a ausência de materiais
precariedade da infraestrutura das es- didáticos contextualizados. No campo
colas do campo e a longa permanência dos sistemas de ensino, falta ainda, em
de escolas unidocentes (multisseriadas) muitos deles, a constituição de coorde-
são a expressão mais imediata da situa- nações de Educação do Campo dentro
ção. Segundo dados da revista Educação das secretarias de Educação, para en-
(Fernandes, 2010), citando entrevista caminhamento das políticas e coorde-
com os pesquisadores do Observató- nação das escolas do campo, inclusive
rio da Equidade, vinculado ao Conse- atendendo à oferta de formação con-
lho de Desenvolvimento Econômico e tinuada (obrigação dos responsáveis
Social, ainda são muito acentuadas a pelos sistemas de ensino). Em vários
desigualdade social e a dificuldade de estados, por exemplo, existem fóruns
acesso aos direitos humanos, em es- compostos por movimentos sociais e
pecial a educação, por parte dos sujei- organizações da sociedade civil para
tos do campo. Os dados revelam que lutar pela implantação de políticas de
o cumprimento da obrigatoriedade da Educação do Campo, tornando-se for-
educação básica para a população de ças importantes na cobrança ao Esta-

242
Educação Básica do Campo

do. Há que se avançar ainda no âmbito bre as contradições por ele apontadas
da institucionalização das políticas e entre os discursos legais e a prática.
diretrizes para a educação do campo Logo em seguida, fazendo referên-
nos planos municipais e estaduais de
Educação, bem como na proposi-
cia aos dados de pesquisa e do Censo
Escolar de 2010, citados por Hage, as E
ção de concursos específicos para os autoras descortinam o palco da medio-
profissionais da Educação do Cam- cridade, quando ressaltam
po, garantindo o perfil necessário ao
trabalho escolar. [...] o fato de as escolas do cam-
A implementação da pedagogia da po somente serem de 1ª a 4ª
alternância é outro tema polêmico, es- séries, não só porque estão dis-
tando instituída e respaldada em alguns tante, não há dinheiro, porque os
planos estaduais de educação. Entre- políticos não têm vontade... Mas
tanto, de todos os aspectos caracterís- porque, na realidade, o único
ticos da educação do campo, o mais tempo mais ou menos reconhe-
contraditório é o do fechamento das es- cido como tempo de direitos é de
colas. Por parte dos sistemas estaduais 7 a 10 anos. A infância tem uma
e municipais de ensino, permanece a vida muito curta no campo, por
política de fechamento das escolas do isso, a educação da infância tem
campo, por meio da nucleação e da uma vida muito curta no campo.
oferta de transporte dos educandos A adolescência não é reconhe-
para escolas urbanas. Essa política já cida, porque se insere precoce-
foi reiteradamente criticada e condena- mente no trabalho, e a juventude
da pelo MEC, pelo Conselho Nacional se identifica com a vida adulta
dos Secretários de Educação (Consed), precocemente. O não reconheci-
pela União Nacional dos Dirigentes mento da adolescência e juven-
Municipais de Educação (Undime) e tude no/do campo é resultado
pelo CNE, visto que contribui para a de um processo histórico de não
evasão, a repetência e a distorção série– reconhecimento destes povos
idade, na medida em que as viagens re- como sujeitos de direitos. Nes-
alizadas pelos estudantes de casa até a te sentido, o deslocamento no
escola são cansativas, constituindo-se sentido campo-cidade pela nu-
em fator de desistência. O MST reali- cleação de escolas que apresen-
zou uma campanha nacional em 2011 ta como um de seus princípios
contra o fechamento das escolas do a “igualdade de oportunidades”
campo, denunciando que mais de 24 nega a estes jovens do campo
mil escolas foram fechadas no meio [...] o direito de pensar o mun-
rural desde 2002 (Albuquerque, 2011). do a partir de onde vivem e de
Vários estudiosos vêm denunciando a sua realidade, além de subtrair-
nucleação de escolas como responsável
lhes um tempo que poderia ser o
pela dificuldade de acesso, de inclusão
tempo de ser jovem. (Cavalcante
e de permanência dos jovens e crianças
e Silva, 2010, p. 3-4)
do campo nas escolas.
As autoras Cavalcante e Silva (2010) Outro tema que merece também
reforçam a análise de Hage (2010) so- ser tratado é o da formação inicial e

243
Dicionário da Educação do Campo

continuada de professores. Mesmo da Secadi, precisa-se investir recursos em


considerando os inúmeros cursos de escala crescente de modo a qualificar os
licenciatura e de educação continua- professores para que possam trabalhar
da que vêm sendo criados para am- com a complexa demanda de diversidade
pliar a formação e a profissionalização do campo brasileiro. Acrescente-se a este
de professores do campo, pelo Pronera tema o da formação dos gestores das esco-
ou mesmo pelo Programa de Apoio ao las do campo. Notadamente, as experiên-
Plano de Reestruturação e Expansão das cias em Educação do Campo têm se dado
Universidades Federais (Reuni), ainda as- pedagogicamente pela experiência da
sim, essa medida só resolverá o problema alternância entre escola/universidade e
da educação básica e profissionalizante a comunidades a que os estudantes perten-
longo prazo. No portal do MEC de 4 de cem. Os instrumentos formativos, quan-
outubro de 2010, matéria sobre o Pronera do aplicados aos processos provenientes
destacava haver então “31 instituições da relação entre academia e saberes po-
públicas de ensino superior oferecendo a pulares, crescem ao incorporar a pedago-
licenciatura em Educação no Campo. [...] gia da terra à vida dos sujeitos, transfor-
Segundo o Censo Escolar de 2009, traba- mando processos educativos submetidos
lham em escolas rurais 338 mil educado- à lógica do capital em práxis que incor-
res. Destes, 138 mil têm nível superior” pora as territorialidades e identidades so-
(“Decreto assinado por Lula aprimora ciais campesinas em emancipação.
educação do campo”, 2010). Hoje há um Agricultores familiares, quilombolas,
desafio a ser encarado pela União e pelos sem-terra, indígenas, mestiços, agriculto-
estados e municípios: o de habilitar, em res urbanos, juventude rural e outras for-
nível de graduação, 196 mil professores mas identitárias, sujeitos que buscam afir-
que já lecionam no campo a título pre- mar seus pertencimentos sociais como
cário (só possuindo nível médio). Além “povos do campo” encontram como
disso, o trabalho docente não atende à principais desafios para a consolidação
diversidade de realidades sociais encon- da educação básica do campo: a amplia-
tradas no campo;; tampouco existem ção da educação infantil, do segundo
materiais didáticos voltados para essas segmento do ensino fundamental e do
múltiplas realidades. ensino médio para os sujeitos do campo;;
Os estudos do Observatório da a luta contra o fechamento das escolas
Equidade demonstram ainda que, “em do campo;; o investimento na formação
2007, havia 311 mil professores no inicial e continuada de educadores do
ensino fundamental e médio regula- campo;; a construção de materiais didáti-
res no campo. Esse número representa cos contextualizados e a implementação
17% dos docentes em exercício no país. de metodologias ativas e participativas;;
Deles, 61% não têm formação superior, o investimento na formação dos ges-
o que significa um contingente de apro- tores das escolas do campo;; a imple-
ximadamente 178 mil professores. [...] mentação da pedagogia da alternância
Outra característica das escolas rurais nas escolas do campo, referenciando-a
é que mais de 70% são multisseriadas” em documentos oficiais (planos muni-
(Fernandes, 2010, p. 4). Ou seja, mesmo cipais e estaduais de educação);; a cons-
considerando os vultosos investimentos tituição de coordenações de Educação
do Governo Lula no Pronera e nas ações do Campo no âmbito das secretarias

244
Educação Básica do Campo

municipais e estaduais de Educação;; planos municipais e estaduais de Edu-


a institucionalização de diretrizes de cação;; e a abertura de concursos públi-
Educação do Campo no âmbito dos cos específicos.
E
Para saber mais
ALBUQUERQUE, L. F. “Fechamento de 24 mil escolas do campo é retrocesso”,
afirma dirigente do MST. In: MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
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245
Dicionário da Educação do Campo

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pdf. Acesso em: 31 ago. 2011.

246
Educação Corporativa

EDUCAÇÃO CORPORATIVA
Aparecida Tiradentes E
A educação corporativa é um mo- rativa por meio de programas dispersos,
delo de formação no qual a empresa mesmo sem ostentar uma universidade
ocupa o lugar da escola, desenvolven- corporativa ou um setor específico para
do programas de educação formal, in- este fim. Igualmente, uma universidade
formal e não formal de trabalhadores, corporativa pode desenvolver programas
de fornecedores e da comunidade, para em todos os níveis de ensino, não neces-
aumento de produtividade, valorização sariamente na educação superior, poden-
do capital de marca e como estratégia do, ainda, desenvolver cursos livres ou
hegemônica de difusão da concepção atividades formativas informais.
de mundo da classe dominante.
Quando atua no âmbito da educação
Ela surgiu na década de 1950, nos formal, a universidade corporativa, não
Estados Unidos, com o objetivo de tendo credenciamento para certificar e
treinar os trabalhadores de algumas in- emitir diplomas, institui parcerias com
dústrias, mas adquiriu maior expressão escolas e universidades acadêmicas.
no contexto neoliberal. Por um lado, a Nestes casos, a instituição credenciada
ideologia de desqualificação do Estado fornece sua chancela a um projeto que
social enseja que o capital se declare nasce exatamente da desqualificação da
“mais competente” para formar os tra- formação acadêmica oficial. Uma das
balhadores. Por outro lado, as mudan- demandas do movimento de educação
ças nas bases técnicas e de gestão do corporativa, representado pela Associa-
trabalho implicam a exigência de adesão ção Brasileira de Educação Corporativa
subjetiva do trabalhador aos valores da (Abec), é o poder de certificação pelo
empresa. A educação corporativa passa mercado. Até o momento, no Brasil,
a ter, então, a função de promover essa essa demanda não foi aceita. Caso seja
adesão. Sob a justificativa de oferecer a aprovada, constituirá um fator de agra-
formação intelectual e técnica suposta- vamento da subordinação do trabalho
mente exigida pelo mercado, de modo, ao capital, visto que, ao ser certificado,
segundo o capital, “mais eficiente do por exemplo, em um curso de gradua-
que o Estado”, a educação corporativa ção em Nutrição de determinada in-
avança sobre a dimensão ético-política, dústria de alimentos, esse trabalhador
impondo os modos de ser, pensar, agir tem sua capacidade de venda da força
e sentir convenientes ao capital. de trabalho limitada àquela empresa e
Denomina-se educação corporati- à sua tecnologia. Assim, caso a Uni-
va o projeto em seu sentido amplo, e versidade do Hambúrguer, como é
“universidade corporativa” ou “unidade denominada a universidade corporati-
de educação corporativa”, as instâncias va da rede McDonalds, obtivesse no
formais especialmente criadas pelas em- Brasil a autorização para certificar em
presas para este fim. Uma empresa pode seu próprio nome, isso implicaria o
desenvolver ações de educação corpo- cerceamento da liberdade formal de

247
Dicionário da Educação do Campo

venda da força de trabalho de seus universalidade. Agrava-se ao se de-


egressos às redes concorrentes. finir pelo alinhamento de estraté-
Seu público-alvo é “toda a cadeia gias, diretrizes e práticas de gestão
de valor”, incluindo, além dos trabalha- de pessoas às estratégias de negó-
dores, os fornecedores, a comunidade cio. A ação educativa consiste, por
e os consumidores reais e potenciais, este princípio, em criar o confor-
o que resulta numa ameaça ainda mais mismo ético-psíquico para a adesão
abrangente quanto aos danos políticos a um modelo de gestão pautado
de um projeto de formação diretamen- em competição e individualização
te controlado pelo mercado. Alegando das responsabilidades, fragmenta-
“responsabilidade social”, muitas vezes ção das redes de solidariedade de
com financiamento público direto ou classe e obstrução da construção
indireto (quando obtém isenção fiscal da consciência coletiva. Éboli reco-
como contrapartida), o capital estende menda, neste princípio, favorecer
suas ações “pedagógicas” e alcança um a implantação do modelo de ges-
triplo objetivo: controlar a formação tão por competências. Aconselha,
de trabalhadores, elevar seu capital de ainda, conceber programas edu-
marca (a valorização de sua imagem na cacionais a partir do mapeamento
sociedade majora o valor das ações no e alinhamento de competências –
mercado financeiro e constitui exigên- empresariais e humanas.
cia dos investidores para adquirir tais • Conectividade: é a integração entre
papéis) e obter vantagem na disputa de educação corporativa e gestão do co-
nhecimento. O sistema de gestão do
hegemonia, pela difusão de sua visão
conhecimento implica as atividades
de mundo para a empresa e além de
de pesquisa e difusão de competên-
seus muros.
cias e tecnologias adequadas à pro-
Segundo Éboli (2004), são sete os dução. Envolve a captura do conhe-
princípios da educação corporativa: cimento tácito e do conhecimento
competitividade, conectividade, parce- explícito do trabalhador e sua “en-
ria, perpetuidade, cidadania, sustenta- trega” à organização, o que, segundo
bilidade e disponibilidade. Não poden- Ricardo (2005), significa “agregar
do ter outra função, dada sua filiação valor”, quando o conceito de pesqui-
direta ao capital, são princípios con- sa refere-se à pesquisa informal nas
venientes ao capital e à reprodução de situações cotidianas de trabalho e à
seu modo de produção da existência. participação em círculos de qualida-
São, portanto, incongruentes com um de ou em projetos de “soluções para
modelo de educação que se coloque melhorias contínuas”, nos moldes
em perspectiva emancipatória. Os sen- toyotistas de participação intensifi-
tidos atribuídos a tais princípios pela cadora. Quando, no ciclo de gestão
literatura que fundamenta o modelo do conhecimento, o termo “pesqui-
denotam a perspectiva ideológica da sa” refere-se às atividades formais
classe dominante. de produção de conhecimento, este
• Competitividade : o princípio da princípio da educação corporativa
competitividade, a priori, já seria ina- representa o controle pelo mercado
dequado a um projeto de formação da produção e controle do conheci-
humana, por ser oposto à ideia de mento científico a seu favor.

248
Educação Corporativa

• Parceria: é o princípio segundo o • Disponibilidade : é a capacidade de


qual a empresa firma contratos de “aprender e ensinar em qualquer
colaboração com instituições edu- tempo e qualquer lugar” (Éboli,
cacionais formais para certificação.
Neste caso, a escola ou universida-
2004, p. 181). Representa o devassa-
mento do tempo livre do trabalhador E
de formata uma proposta curricular na busca de conhecimentos e com-
com base nas estratégias de negó- petências referentes à valorização do
cios da empresa. Este princípio diz capital. A literatura recomenda que
respeito ainda à cultura de colabora- as atividades de educação corpora-
ção interna, que pode ser lida cri- tiva sejam realizadas na modalidade
ticamente como uma estratégia de de ensino a distância (EAD).
hegemonia que consiste na produ-
ção de uma consciência pactualista Segundo Meister:
e desmobilizadora das lutas sociais.
• Perpetuidade: é a transmissão da heran-
ça cultural da empresa para além de A universidade corporativa (UC)
seus muros e do seu tempo, segundo é um guarda-chuva estratégico
Éboli (2004). Trata-se da perenização para desenvolver e educar fun-
de seus valores e sua extensão às ou- cionários, clientes, fornecedores
tras dimensões da vida social. e comunidade, a fim de cumprir
• Cidadania: aqui, afirma-se o con- as estratégias empresariais da
ceito de cidadania corporativa ou organização. O modelo de UC
cidadania empresarial. É a exten- é baseado em competências
são do ethos do capital para toda a e interliga aprendizagem às ne-
cadeia de valor e a sociedade, con- cessidades estratégicas de negó-
sagrando o mercado e seus valores cios. O conceito de educação
como os norteadores da vida social. corporativa surge diretamente
Envolve, além da assimilação stricto relacionado à estratégia de ne-
sensu da cultura da empresa, o com- gócios. (1999, p. 29)
prometimento do trabalhador com
ações de responsabilidade social E segundo Éboli:
da empresa, com vistas aos ganhos
de capital. Educação corporativa é um
• Sustentabilidade: este princípio as- sistema de formação de pes-
segura, na infindável criatividade soas pautado por uma gestão
acumuladora do capital, que, além de pessoas com base em com-
de representar os ganhos financei- petências, devendo instalar e
ros e ideológicos já mencionados, desenvolver nos colaboradores
o setor de educação corporativa (internos e externos) as com-
torne-se um dos ramos de negócios petências consideradas críticas
lucrativos ou “autossustentáveis” para a viabilização das estraté-
da empresa, pela capacidade de ge- gias de negócio, promovendo
rar receita direta, seja por meio de um processo de aprendizagem
cobrança de matrículas e mensali- ativo vinculado aos propósitos,
dades, seja pela obtenção de finan- valores, objetivos e metas em-
ciamentos e bolsas. presariais. (2004, p. 181)

249
Dicionário da Educação do Campo

Para melhor assegurar a sintonia lutas sociais são expressivas), diversas


entre a estratégia de negócios e a edu- ações de função hegemônica.
cação corporativa, incluindo os aspec- A consolidação da hegemonia re-
tos atitudinais desejados no “novo tra- quer a atenuação dos conflitos sociais
balhador”, a literatura recomenda que e a imposição de uma concepção de
os docentes não sejam “professores mundo que atenda aos interesses
profissionais”, mas homens de negó- do capital. As universidades corpora-
cios e funcionários bem-sucedidos da tivas desempenham este papel, como
própria empresa. já foi mencionado. No caso da Valer,
Particularmente na esfera do agro- podemos citar alguns exemplos de sua
negócio, observam-se muitos progra- ofensiva política, cultural e ideológica
mas fundamentados na concepção nas comunidades em que atua, tanto na
ambiental e de produção congruente cidade quanto no campo: Vale Ambien-
com os interesses do capital. Muitos te;; Vale Capacitação;; Vale Educação
são os conglomerados vinculados Inclusiva (em Itabira, Santa Maria de
à produção agropecuária e seus de- Itabira e São Gonçalo do Rio Abaixo,
rivados, em atividade no Brasil, que em Minas Gerais);; Vale Educação Pro-
desenvolvem atividades de educação fissional (no sul do Pará);; Escola que
corporativa. A descaracterização dos Vale;; Educação nos Trilhos;; Canal Fu-
movimentos sociais, a ideologia pac- tura (parceria com a Rede Globo de Te-
tualista que desqualifica a ação das levisão);; Voluntários Vale;; Olha o Trem,
lutas no campo e na cidade, são tra- Lá Vem o Trem;; Educação Ambiental;;
ços deste projeto que vem penetran- Tecendo o Saber;; Estação da Cidadania;;
do no território da formação huma- Programa de Educação Afetivo-Sexual
na, representando antagonismo à sua (Peas Vale);; Educação de Jovens e Adul-
perspectiva contra-hegemônica. tos (no Pará, em parceria com o Serviço
A lógica utilitarista e a função hege- Social da Indústria –Sesi).
mônica da educação corporativa, claras Pela Vale Ambiente, a empresa
em seus princípios e em toda a litera- atinge professores da rede pública em
tura que os sustenta, representam um regiões nas quais tem interesses por
modelo incompatível com a perspecti- meio de parcerias com prefeituras, es-
va emancipatória. pecialmente no interior da Bahia e de
A Vale – um dos grupos econô- Minas Gerais.
micos de maior expressão no Brasil e No vale do Itacaiúnas, no Pará
com significativa inserção no campo, (Paraupebas, Canaã, Carajás), a Valer
seja diretamente, por meio das ativi- forma técnicos em mineração, agrope-
dades de extração ou de transporte cuária, gestão empresarial e outras ativi-
ferroviário de carga e passageiros, seja dades referentes ao trabalho no campo.
indiretamente, por meio de empresas A Escola que Vale, com a função de
de diversos ramos sobre as quais tem capacitação de professores das redes pú-
influência e controle acionário, seja por blicas, atua no interior do Pará, Espírito
parcerias – desenvolve, por meio de Santo, Maranhão e Minas Gerais.
sua universidade corporativa (a Valer, O Vale Alfabetizar dirige-se aos tra-
que tem forte atuação no campo, espe- balhadores do interior dos estados cita-
cialmente no Pará, justamente onde as dos anteriormente, além de Sergipe.

250
Educação Corporativa

O projeto Educação nos Trilhos do grande público e vai sendo exposta


tem como objetivo declarado construir gradativamente. Sendo assim, a Vale é
ambientes promotores da cidadania nas a organização oficial por trás de marcas
comunidades no entorno das estradas
de ferro Vitória–Minas e Carajás. En-
como a FCA.
A Valer, apresentada aqui a título de
E
tre as ações deste programa, constam exemplo, cumpre, em termos de abran-
os Projetos Especiais de Mobilização gência, todo o escopo das universidades
Comunitária, voltados para as comuni- corporativas. Atua tanto na formação
dades afetadas pela ação da Vale. Desta de seus trabalhadores quanto em toda a
forma, a empresa busca o controle so- cadeia de valor: clientes, fornecedores,
bre as formas de mobilização. comunidade do entorno das regiões
O programa “Estação da Cidadania” afetadas e sociedade em geral. Atua
inclui uma sala de projeção em que são na educação tanto formal quanto não
veiculados filmes sobre mineração. formal e informal. Desenvolve ativida-
Olha o Trem, Lá Vem o Trem é um des presenciais e à distância. Envolve,
projeto que consiste em ações educati- como preconizam os mentores do mo-
vas voltadas à redução ou extinção de delo de educação corporativa, sua pró-
ações denominadas pela empresa como pria força de trabalho em muitos dos
“vandalismo” nas estações ferroviárias projetos e programas, transformando
e ao longo dos trilhos. Como se esten- os seus funcionários em “educadores
de à comunidade em geral e tem parce- da sociedade” e disseminadores de uma
rias com as secretarias de Educação, a “visão positiva” da empresa. Isto con-
Valer já prepara “corações e mentes” figura uma forma adicional de extração
para uma convivência pacífica e dócil de mais-valia, pois, na medida em que
com as ferrovias do Grupo Vale e com contribuem para gerar “capital de mar-
os danos sociais e ambientais provoca- ca”, os trabalhadores, que já geravam
dos pela ação da corporação. valor por meio de sua produção direta,
Registre-se que, com a privatiza- são coagidos a mais esta forma de ex-
ção da rede ferroviária federal, grande ploração. O “capital de marca” é uma
parte da malha ferroviária brasileira foi das dimensões do “capital intelectual”
adquirida pelo grupo Vale, sob nomes que influi diretamente no valor dos pa-
diferentes, como a Ferrovia Centro– péis no mercado financeiro: consiste
Atlântica (FCA). Como acontece no em reconhecimento público da mar-
processo capitalista de fusões, aquisi- ca como tendo valor positivo e tendo
ções e concentração do capital, inicial- também bom relacionamento com a
mente a marca controladora é omitida comunidade, sem conflitos sociais.

Para saber mais


ÉBOLI, M. Educação corporativa no Brasil: mitos e verdades. São Paulo: Gente, 2004.
MEISTER, J. Educação corporativa: a gestão do capital intelectual através das univer-
sidades corporativas. São Paulo: Pearson Makron Books, 1999.
RAMOS, G. S. Um novo espaço de conformação profissional: a Universidade Corporativa
da Vale do Rio Doce – Valer – e a legitimação da apropriação da subjetividade

251
Dicionário da Educação do Campo

do trabalhador. 2007. Dissertação (Mestrado em Ensino de Biociências e Saú-


de) – Programa de Pós-graduação em Ensino de Biociências e Saúde, Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2007.
______;; SANTOS, A. T. Valer (vá ler?): formação de trabalhadores sob a ideologia
do mercado na universidade corporativa da Vale. Revista Trabalho, Educação e Saúde,
v. 6, n. 2, p. 283-302, jul.-out. 2006.
RICARDO, E. Educação corporativa e educação a distância. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2005.
SANTOS, A. T. et al. Formação de trabalhadores no modelo de educação corporati-
va. In: PEREIRA, I. B.; RIBEIRO, C. (org.). Estudos de politecnia e saúde. Rio de Janeiro:
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2007. V. 2, p. 67-89.
______;; RIBEIRO, N. Formação de trabalhadores no modelo de educação corpo-
rativa: homens ou máquinas? Revista Educação Profissional: Ciência e Tecnologia, v. 3,
n. 1, p. 109-118, jul.-dez. 2008.
______;; ______. Educação corporativa. In: PEREIRA, I. B.; LIMA, J. C. F. (org.). Di-
cionário de educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, 2009. p. 151-155.

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA)


Maria Nalva Rodrigues de Araújo

A educação de jovens e adultos (Brasil, 1996). Conforme legislação em


(EJA) é uma modalidade1 específica vigor atualmente, a EJA compreende
da educação básica, destinada aos su- o processo de alfabetização, cursos ou
jeitos do campo e da cidade aos quais exames supletivos nas suas etapas fun-
foi negado ao longo de suas vidas o damental e média. A EJA constitui um
direito de acesso à e de permanência direito assegurado pela Constituição
na educação escolar, seja na infância, na em seu artigo 208, quando afirma que:
adolescência, ou na juventude. As ra- “O dever do Estado com a educação
zões para esta negação estão ligadas será efetivado mediante a garantia de:
a vários fatores, como condições so- I – ensino fundamental obrigatório e
cioeconômicas, falta de vagas, siste- gratuito, assegurada, inclusive sua oferta
ma de ensino inadequado e outros. A gratuita para todos os que a ele não tiverem
Lei de Diretrizes e Bases da Educação acesso na idade própria”. Os direitos ga-
Nacional (LDB), lei nº 9.393/1996, rantidos por lei no Brasil não são sufi-
em seu artigo 37, deixa claro que “A cientes para que os adultos brasileiros
educação de jovens e adultos será des- tenham de fato acesso à educação es-
tinada àqueles que não tiveram acesso colar, e os movimentos sociais do cam-
ou continuidade de estudos no ensino po e da cidade têm lutado ao longo da
fundamental e médio na idade própria” história para mudar essa situação.

252
Educação de Jovens e Adultos (EJA)

Este texto trata singularmente da mente desfavorável à população cam-


EJA na perspectiva da Educação ponesa. Dados do censo do ano de
do Campo, como fruto das lutas cam- 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia
ponesas para assegurar aos trabalhado-
res do campo o acesso à educação.
e Estatística, 2010) indicam que, no
meio rural brasileiro, de forma global, E
No campo brasileiro, caracteriza- a taxa de analfabetismo entre os adul-
se como educação de jovens e adultos tos é de 23,2 %, enquanto nas regiões
as práticas educativas escolares e não urbanas chega a 7,3%;; ou seja, no cam-
escolares desenvolvidas com e para os po, a taxa de analfabetismo é três vezes
trabalhadores jovens e adultos que ha- maior. A escolaridade média das pes-
bitam no campo brasileiro e que, nas soas com mais de 15 anos no meio ru-
suas trajetórias de vida, não tiveram a ral é de 4,5 anos;; no meio urbano, che-
oportunidade de entrar na escola, ou, ga aos 7,8 anos. As maiores taxas de
ainda, os que entraram e não puderam analfabetismo estão em municípios
nela permanecer na idade regular. A do Norte e do Nordeste brasileiros.
EJA é ainda uma resposta às demandas Tal situação demonstra que a ga-
por escolarização colocadas pelos su- rantia do ensino fundamental, obriga-
jeitos sociais do campo, demandas estas tório e gratuito, inclusive para os que
fruto de um longo período histórico de não tiveram acesso na idade própria –
exclusão dos trabalhadores do acesso à conforme fixado no inciso I, artigo 4º,
educação escolar. A EJA é mais do que da LDB –, não vem sendo cumprida
alfabetização apenas (embora esta seja no campo.
a condição fundamental). O alto índice de analfabetismo no
As práticas desenvolvidas pelos Brasil não é por acaso. Ele tem raízes
movimentos sociais camponeses apon- históricas nas contradições econômicas
tam uma perspectiva de EJA para além e sociais profundas que remontam ao
da escolarização, considerando os apren- período colonial, perpassam a Primeira
dizados que os trabalhadores vão adqui- República e continuam na atualidade.
rindo por meio de suas experiências de O Brasil vive uma situação social que
lutas e de trabalho, sem negar a impor- exclui 18 milhões de pessoas do direi-
tância fundamental da educação esco- to de conhecer as letras, de ter acesso
lar como espaço privilegiado de acesso ao conhecimento. Há uma vinculação
aos conhecimentos socialmente produ- direta da condição de pobreza, do la-
zidos pela humanidade. tifúndio e da desigualdade social com
A educação de jovens e adultos no a existência de pessoas que não sabem
contexto das lutas sociais do campo ler e nem escrever. Portanto, o anal-
surge como necessidade de prosse- fabetismo e o semianalfabetismo são
guimento das lutas sociais em várias expressão da pobreza que resulta de
dimensões desenvolvidas pelas organi- uma estrutura social altamente injusta.
zações e movimentos sociais do cam- Combatê-los sem entender suas causas
po. Observando a situação do acesso à seria um ato superficial, ingênuo.
educação de jovens e adultos no campo Pinto (1989) adverte que o adulto
e nas cidades do Brasil, constata-se um analfabeto ou precariamente escolari-
quadro de exclusão e marginalização, zado não é culpado pela sua ignorância,
evidenciando uma realidade marcada- não é voluntariamente analfabeto, mas

253
Dicionário da Educação do Campo

é feito analfabeto pela sociedade, nas a primeira Campanha Nacional de Al-


condições de sua existência, posto que o fabetização de Jovens e Adultos, que se
tipo de homem que cada sociedade de- deu a partir de 1947, por iniciativa do
seja formar é aquele que serve para Ministério da Educação e Saúde. Mar-
desenvolver ao máximo as potencia- cam também este período as experiên-
lidades econômicas e culturais de uma cias de Paulo Freire e a emergência da
dada forma social vigente. educação popular, as quais vinculavam
Numa breve retrospectiva sobre a alfabetização à conscientização e à
as políticas públicas de educação para as transformação das condições objetivas
pessoas adultas no Brasil, pode-se dos trabalhadores.
constatar que o período colonial, o O período que vai de 1964 a 1985 é
Império e a Primeira República (1500 marcado pelo regime autoritário fruto
a 1930) caracterizaram-se praticamente do Golpe Militar de 1964. Paulo Freire
pela inexistência de ações direciona- é cassado e exilado. Princípios como
das à educação de jovens e adultos. É conscientização, participação, transfor-
importante ressaltar que a população mação social, deixaram de fazer parte
brasileira, na sua grande maioria, era da educação de adultos. Os programas
analfabeta (cerca de 67%, em 1890, e, e grupos que teimavam em continuar
até 1920, cerca de 60%). Em um con- com a pedagogia de Freire passaram a
texto formado essencialmente por es- ser reprimidos, sendo permitida apenas
cravos que trabalhavam na extração de a realização de programas de alfabeti-
minérios, na monocultura canavieira e, zação de adultos com caráter assisten-
posteriormente, na cafeeira, e por uma cialista e conservador.
elite agrária, além dos quadros da admi- Em resposta à grave situação do
nistração pública, essas elites pouco se analfabetismo no Brasil, o governo
esforçavam em implantar uma educa- militar lança em 1967 o Movimento
ção para as populações trabalhadoras. Brasileiro de Alfabetização (Mobral).
A preocupação com o ensino de Esse programa pretendia também qua-
adultos aparece com a Constituição de lificar a mão de obra com um mínimo
1934 e, posteriormente, com o Plano de escolaridade para atender às deman-
Nacional de Educação (PNE). O fim das do novo ciclo de desenvolvimento
da Segunda Guerra Mundial em 1945 e que se iniciava no Brasil, no final dos
a pressão de organismos internacionais, anos 1960 e início dos anos 1970.
como a Organização das Nações Unidas O final da década de 1970 e o início
para a Educação, a Ciência e a Cultura da década de 1980 são marcados pela
(Unesco), desencadearam um processo emergência dos movimentos sociais e
de recomendações aos países com alto populares em todo o País, no campo e
índice de analfabetismo para que dessem na cidade. Esses movimentos traziam
respostas efetivas a esses indicadores por consigo novas demandas sociais e a
meio de campanhas de massa. luta contra a ditadura.
No Brasil esses fatores, somados Com a promulgação da nova LDB
ao processo de redemocratização do em 1996, a EJA passa a ser uma moda-
país, às necessidades de participação lidade da educação básica, porém, no
e integração das massas urbanas (in- que diz respeito ao seu financiamento,
cluindo os imigrantes), impulsionaram ele não é considerado. Assim, os recur-

254
Educação de Jovens e Adultos (EJA)

sos destinados à educação municipal Assim, as políticas que nortearam a


por meio do Fundo de Manutenção e educação de jovens e adultos no Brasil
Desenvolvimento do Ensino Funda- pouco se preocuparam com os homens
mental e de Valorização do Magistério
(Fundef) deixam de fora a EJA.
e as mulheres trabalhadores do campo.
Desse modo, não tivemos, até hoje, um E
No Governo Fernando Henrique sistema de ensino adequado às especifi-
Cardoso (1995-2002) surge, em 1995, o cidades no que diz respeito aos modos
programa Comunidade Solidária, com de vida dos adultos trabalhadores do
políticas sociais de combate à pobreza campo com a qualidade necessária para
que envolveram estados, municípios e que tenham possibilidades de acesso
atores da sociedade civil – como uni- aos conhecimentos mais avançados e
versidades, empresas e organizações plenos que a humanidade produziu. O
não governamentais (ONGs). Entre que tem ocorrido, na maioria das vezes,
essas políticas, está o combate ao anal- são campanhas, programas e projetos
fabetismo de jovens e adultos, median- descontínuos, não existindo uma polí-
te o programa Alfabetização Solidária tica de ações efetivas para a educação
(Alfasol). Esse programa caracterizou- de jovens e adultos.
se por uma perspectiva assistencialista, A ausência do Estado brasileiro na
sem continuidade e ineficiente, princi- implantação de políticas públicas para
palmente em razão dos poucos recur- a educação de jovens e adultos é res-
sos destinados pela União e por uma pondida pela sociedade civil organiza-
metodologia que exigia altos gastos da (a exemplo do Movimento de Edu-
na formação dos educadores do pro- cação de Base da Conferência Nacional
grama. Foi também no Governo FHC dos Bispos do Brasil – CNBB) ainda
que, sob pressão dos movimentos no início da década de 1960, com ações
sociais do campo, entre eles o Movi- de alfabetização e capacitação em as-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem sociativismo e cooperativismo para
Terra (MST), foi criado o Programa as comunidades rurais. Mais recente-
Nacional de Educação na Refor- mente, os movimentos sociais, ao seu
ma Agrária (Pronera), para atender modo, vêm buscando possibilidades de
à educação de adultos nas áreas de alfabetização e de escolarização para os
Reforma Agrária. trabalhadores do campo. Pode-se dizer
O Governo Lula (2003-2010) deu que, na atualidade, a EJA no meio rural
continuidade aos programas iniciados constitui resposta às demandas por es-
no Governo FHC e, no campo da al- colarização dos trabalhadores organi-
fabetização, trocou o Alfasol pelo pro- zados em seus movimentos e organiza-
grama Brasil Alfabetizado (BA). Tal ções sociais. Assim, a EJA, como parte
programa não difere em sua essência do movimento de lutas sociais, tem ori-
dos demais desenvolvidos em governos gem nas experiências isoladas de luta e
anteriores: propõe um processo de permanência na terra em várias partes
alfabetização em poucos meses sem do país. Primeiro, tratava-se apenas de
propósitos de continuidade dos es- iniciativas no campo da alfabetização,
tudos, com verbas restritas, falta de que foram inauguradas pelas forças
investimentos nos educadores e falta populares;; posteriormente, os pró-
de materiais. prios movimentos de lutas sociais se

255
Dicionário da Educação do Campo

organizaram e ampliaram o seu proces- As referências teórico-metodoló-


so de educação de adultos, numa pers- gicas buscaram de alguma forma
pectiva mais ampla, que envolve ou- apoiar-se na vertente pedagógica da
tros níveis de escolarização e que visa educação popular, mas é importan-
às necessidades que surgem da própria te enfatizar que em cada lugar, as
luta social. comunidades rurais e/ou o profes-
Desse modo, pode-se perceber que sor/alfabetizador, no processo de
a EJA no meio rural começa quando as organização das turmas, desenvol-
pessoas se conscientizam da necessida- veram experiências de alfabetiza-
de de educação. Relatos de experiências ção utilizando-se de diversos meios
dos movimentos sociais do campo mos- para propiciar aos jovens e adultos
tram que as experiências de EJA têm o acesso às primeiras letras. Assim,
início na própria comunidade que se desde o processo organizativo das
organiza, cobra dos poderes públicos e, turmas até a organização do traba-
ao cobrar, faz isso como forma de luta. lho pedagógico nas salas de aula ou
Assim, as comunidades organizam as círculos de cultura, constata-se que
turmas, escolhem os seus educadores, a alfabetização tem sido desenvolvi-
os educadores também se propõem a da nas casas dos próprios estudan-
participar e, nesta sintonia, em lugares tes, nos barracos de lona, com pou-
onde a educação não fazia parte do co- ca estrutura. Quando não possuem
giz, nem quadro-negro, improvisam
tidiano, começa-se a viver uma riqueza
escrevendo com carvão em tábuas
não outorgada, e sim, conquistada.
de madeira;; no lugar de cadernos,
Na atualidade, as experiências de usam canhotos recolhidos nos es-
EJA desenvolvidas pelos movimentos tabelecimentos bancários;; quando
de lutas sociais e sindicais envolvem não possuem carteiras e assentos,
desde os níveis da alfabetização até o usam cepos (toras de madeira cor-
nível médio. São inúmeras experiên- tadas em pedaços);; quando não há
cias desenvolvidas pelo Brasil afora, salário para o professor, trabalha-se
por meio de convênios e parcerias com voluntariamente. Esses gestos cons-
várias organizações populares (movi- tituem uma luta, ou seja, quando
mentos e sindicatos) e governamentais, cada comunidade leva as suas rei-
como prefeituras, secretarias estaduais vindicações aos poderes públicos, já
de Educação, ministérios e universida- mostram uma organização possível.
des. Algumas marcas destas experiên- Assim, percebe-se que, ao lado do
cias podem ser enumeradas: improviso, brota a criatividade na
difícil tarefa de organizar a EJA para
1) Utilização de várias alternativas os trabalhadores do campo.
metodológicas de alfabetização e 2) Formação por alternância sem a
organização das turmas: como en- precarização do conhecimento: a
fatizado anteriormente, no intuito formação por alternância no cam-
de superar o problema do analfa- po brasileiro foi inaugurada pela
betismo, os movimentos sociais do Escola Família Agrícola (EFA) para
campo têm desenvolvido uma mul- atender especialmente aos filhos
tiplicidade de experiências metodo- dos agricultores. Os movimentos
lógicas de alfabetização de adultos. sociais do campo, ao constatar as

256
Educação de Jovens e Adultos (EJA)

demandas dos jovens e adultos para técnico em Agroecologia, técnico


continuarem seus processos forma- em Administração Cooperativista,
tivos por meio da educação escolar, técnico em Enfermagem, técnico
buscam, nesta forma de organiza-
ção pedagógica, uma possibilidade
em Saúde Comunitária, Curso Nor-
mal Médio, foram desenvolvidos, E
de elevação da escolaridade dos jo- combinando-se formação geral e
vens e adultos do campo brasileiro, formação profissional.
especialmente com a conquista do
Pronera, em 1998. A partir des- Tais atividades educativas, embora
ta data, contabilizam-se inúmeros encharcadas de contradições, têm pro-
camponeses que puderam com- duzido algumas possibilidades no âm-
pletar sua trajetória na educação bito dos movimentos sociais do cam-
escolar por meio da EJA/Pronera. po: colocaram na agenda da política
Cabe salientar que muitos desses pública as demandas para a educação
jovens e adultos chegaram a con- dos jovens e adultos do meio rural;; in-
cluir a educação superior e encon- seriram nos currículos das temáticas
tram-se atualmente em programas pertinentes à vida e à luta social cam-
de pós-graduação. ponesa;; vincularam a EJA às demandas
3) Combinação entre a EJA e a for- da luta social e à profissionalização
mação profissional: no campo bra- dos trabalhadores do campo;; avança-
sileiro, a dimensão do trabalho pas- ram nos processos de alfabetização,
sa a fazer parte desde muito cedo chegando mesmo a reduzir significa-
da vida das pessoas. Com isso, os tivamente os índices de analfabetismo,
camponeses têm experiências no como indica a Pesquisa Nacional de
que diz respeito aos saberes da ex- Educação na Reforma Agrária (Pnera),
periência, porém esses saberes por realizada pelo Instituto Nacional de
si só são insuficientes para dar con- Estudos e Pesquisas Educacionais
ta, na atualidade, da complexidade
Anísio Teixeira (Inep) em 2004, acer-
a que estão submetidos nas rela-
ca da situação educacional nos assen-
ções socioeconômicas no campo.
tamentos e acampamentos. A pesquisa
Nesse contexto, percebe-se que os
revela que a taxa de analfabetismo no
mesmos trabalhadores que foram
campo de forma geral era de 28,7%
alijados do acesso à escola também
foram alijados de uma formação e, nos assentamentos, de 23% (Insti-
profissional consistente e coerente tuto Nacional de Estudos e Pesquisas
com as suas demandas. Assim, a Educacionais Anísio Teixeira, 2007).
EJA desenvolvida pelos movimen- Esses dados nos levam a considerar que
tos sociais do campo buscou com- o trabalho realizado pelos movimentos
binar formação geral com formação sociais mesmo sob condições adversas
profissional. Cabe salientar que os tem contribuído para a diminuição dos
cursos desenvolvidos nessa moda- índices de analfabetismo no campo.
lidade não tiveram relações com as A EJA, no campo brasileiro, tem
perspectivas impostas pelo merca- como desafio instrumentalizar/armar
do capitalista. Ao contrário, foram os trabalhadores para que eles pos-
demandados pelas necessidades das sam estabelecer ligações entre as várias
lutas sociais. Cursos como os de áreas do conhecimento e sua relação

257
Dicionário da Educação do Campo

com a luta de classes. No contexto a força de trabalho, os movimentos de


atual da questão agrária e dos emba- lutas sociais no campo demonstram que
tes com as transnacionais, a apropria- a emancipação não se dará apenas por
ção do conhecimento é imprescindível meio da conquista econômica, mas, ao
para compreender os nexos da luta de lado das conquistas econômicas, é ne-
classes no campo. cessário também haver elevação cultural
Ao ousar alfabetizar os adultos e ele- e qualificação de consciência, demons-
var a sua escolaridade tendo como ho- trando, assim, a função da educação e
rizonte não apenas a qualificação para da escola para o movimento.

Nota
1
O termo modalidade é diminutivo do latim modus (modo, maneira), e expressa uma medida
dentro de uma forma própria de ser. Ela é, assim, um perfil próprio, uma feição especial
diante de um processo considerado padrão. Essa feição especial se liga ao princípio da pro-
porcionalidade para que este modo seja respeitado (Brasil, 2000).

Para saber mais


ARAUJO, M. N. R. Apontamentos acerca da trajetória histórica da EJA no MST:
desafios e possibilidades. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E
ADULTOS, 6. Anais... Teixeira de Freitas, Bahia: MST/Universidade Federal de
Santa Catarina, novembro de 2008.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1996.
______. Conselho Nacional de Educação (CNE). Parecer nº 11/2000: Diretrizes
Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília: Câmara de Educação
Básica/Conselho Nacional de Educação, maio 2000.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo 2010. Rio de
Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/
populacao/censo2010. Acesso em: 14 set. 2011.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA
(INEP). Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pnera 2004). Sinopse
estatística. Brasília: Inep, 2007. Disponível em: http://www.publicacoes.inep.gov.br/
arquivos/%7BEA5C4F7B-87C7-4973-B3E9-CE224E2B2060%7D_MIOLO_
PNERA_2004.pdf. Acesso em: 1º set. 2011.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). Educação de Jovens
e Adultos: sempre é tempo de aprender. São Paulo: MST, 2004. (Caderno de
Educação, 11).
______. Campanha Nacional de Alfabetização no MST. São Paulo: MST, 2007.
(Mimeo.).

258
Educação do Campo

PINTO, A. V. Sete lições sobre educação de adultos. 6. ed. São Paulo: Cortez;; Campinas:
Autores Associados, 1989. (Educação Contemporânea).
STEDILE, J. P. A Reforma Agrária e a luta do MST. Petrópolis: Vozes, 1997.
VARGAS, M. C. Uma história em construção: EJA no campo. In: TV ESCOLA, E
SALTO PARA O FUTURO. Educação de Jovens e Adultos: continuar... e aprender por
toda a vida. Boletim, 20-29 set. 2004. Disponível em: http://www.cereja.org.br/
arquivos_upload/saltofuturo_eja_set2004_progr4.pdf. Acesso em: 23 ago. 2011.

EDUCAÇÃO DO CAMPO
Roseli Salete Caldart

A Educação do Campo nomeia um cretas e na forma de construir políticas


fenômeno da realidade brasileira atual, prota- de educação.
gonizado pelos trabalhadores do cam- Segundo Williams, “sempre é difí-
po e suas organizações, que visa incidir cil datar uma experiência datando um
sobre a política de educação desde os conceito, porém, quando aparece uma
interesses sociais das comunidades cam- palavra – seja uma nova ou um novo
ponesas. Objetivo e sujeitos a remetem sentido de uma palavra já existente –,
às questões do trabalho, da cultura, do alcança-se uma etapa específica, a mais
conhecimento e das lutas sociais dos próxima possível de uma consciência
camponeses e ao embate (de classe) en- de mudança” (2003, p. 80). Este texto
tre projetos de campo e entre lógicas de pretende tratar das principais caracte-
agricultura que têm implicações no pro-
rísticas da prática social que vem produ-
jeto de país e de sociedade e nas con-
zindo o conceito de Educação do Cam-
cepções de política pública, de educação
po, do tipo de “consciência de mudan-
e de formação humana.
ça” que ele materializa ou projeta, e de
Como conceito em construção, a que relações fundamentais constituem
Educação do Campo, sem se descolar seu breve percurso histórico.1
do movimento específico da realidade
O protagonismo dos movimentos
que a produziu, já pode configurar-se
como uma categoria de análise da situação sociais camponeses no batismo originá-
ou de práticas e políticas de educação rio da Educação do Campo nos ajuda
dos trabalhadores do campo, mesmo a puxar o fio de alguns nexos estrutu-
as que se desenvolvem em outros lu- rantes desta “experiência”, e, portanto,
gares e com outras denominações. E, nos ajuda na compreensão do que es-
como análise, é também compreensão sencialmente ela é e na “consciência de
da realidade por vir, a partir de possibili- mudança” que assinala e projeta para
dades ainda não desenvolvidas histori- além dela mesma.
camente, mas indicadas por seus sujei- O surgimento da expressão “Edu-
tos ou pelas transformações em curso cação do Campo” pode ser datado.
em algumas práticas educativas con- Nasceu primeiro como Educação Básica

259
Dicionário da Educação do Campo

do Campo no contexto de preparação da a sobrevivência desse trabalho.


I Conferência Nacional por uma Edu- Mas, quando se discutir a edu-
cação Básica do Campo, realizada em cação do campo, se estará tra-
Luziânia, Goiás, de 27 a 30 de julho tando da educação que se volta
1998. Passou a ser chamada Educação ao conjunto dos trabalhadores
do Campo a partir das discussões do Se- e das trabalhadoras do campo,
minário Nacional realizado em Brasília sejam os camponeses, incluindo
de 26 a 29 de novembro 2002, decisão os quilombolas, sejam as nações
posteriormente reafirmada nos debates indígenas, sejam os diversos tipos
da II Conferência Nacional, realizada de assalariados vinculados à vida
em julho de 2004. e ao trabalho no meio rural. Em-
As discussões de preparação da I bora com essa preocupação mais
Conferência iniciaram-se em agosto de ampla, há uma preocupação es-
1997, logo após o I Encontro Nacional pecial com o resgate do conceito
dos Educadores e Educadoras da Re- de camponês. Um conceito histó-
forma Agrária (Enera), realizado pelo rico e político... (Kolling, Nery e
Movimento dos Trabalhadores Rurais Molina, 1999, p. 26)
Sem Terra (MST) em julho daquele
ano, evento em que algumas entidades2 O argumento para mudar o termo
desafiaram o MST a levantar uma dis- Educação Básica do Campo para Edu-
cussão mais ampla sobre a educação no cação do Campo aparece nos debates
meio rural brasileiro. de 2002, realizados no contexto da
aprovação do parecer do Conselho Na-
No mesmo bojo de desafios, surgiu
cional de Educação (CNE) nº 36/2001,
o Programa Nacional de Educação na
relativo às Diretrizes Operacionais
Reforma Agrária (Pronera), instituído
para a Educação Básica nas Escolas do
pelo governo federal em 16 de abril de
Campo (Brasil, 2001) e com a marca de
1998 e que ainda hoje está em vigência,
ampliação dos movimentos campone-
mesmo que sob fortes tensões.3
ses e sindicais envolvidos nessa luta:
Nas discussões de preparação do
documento base da I Conferência,
Temos uma preocupação prio-
concluído em maio de 1998 e debati-
ritária com a escolarização da
do nos encontros estaduais que ante-
população do campo. Mas, para
cederam o evento nacional, estão os
nós, a educação compreende
argumentos do batismo do que repre-
todos os processos sociais de
sentaria um contraponto de forma e
formação das pessoas como
conteúdo ao que no Brasil se denomina
sujeitos de seu próprio destino.
EDUCAÇÃO RURAL:
Nesse sentido, educação tem
relação com cultura, com valo-
Utilizar-se-á a expressão campo, e res, com jeito de produzir, com
não a mais usual, meio rural, com o formação para o trabalho e para
objetivo de incluir no processo da a participação social. (Kolling,
conferência uma reflexão sobre o Cerioli e Caldart, 2002, p. 19)
sentido atual do trabalho camponês
e das lutas sociais e culturais dos E, no plano da luta por escolas,
grupos que hoje tentam garantir afirmou-se ali que o direito à educação

260
Educação do Campo

compreende da educação infantil à uni- constituir diferentes mecanismos para


versidade (ibid., p. 34). impedir a universalização da educação
O esforço feito no momento de escolar básica, mesmo pensada dentro
constituição da Educação do Campo, e
que se estende até hoje, foi de partir das
dos parâmetros das relações sociais ca-
pitalistas (Frigotto, 2010, p. 29)? E
lutas pela transformação da realidade O que no período inicial destes
educacional específica das áreas de Re- debates não estava tão evidente como
forma Agrária, protagonizadas naquele hoje é que o quadro em que esta nova/
período especialmente pelo MST, para velha luta se inseria era o de transição
lutas mais amplas pela educação do de modelos econômicos que implicava
conjunto dos trabalhadores do campo. um rearranjo do papel da agricultura
Para isso, era preciso articular experiên- na economia brasileira. Durante a I
cias históricas de luta e resistência, Conferência Nacional, houve um de-
como as das escolas família agrícola, bate acalorado pela reentrada do cam-
do Movimento de Educação de Base po na agenda nacional, o que acabou
(MEB), das organizações indígenas e acontecendo na década seguinte, mas
quilombolas, do Movimento dos Atin- não pelo polo do trabalho, e sim, pelo
gidos por Barragens (MAB), de organi- polo do capital, materializado no que
zações sindicais, de diferentes comuni- se passou a denominar AGRONEGÓCIO,
promovendo uma marginalização ainda
dades e escolas rurais, fortalecendo-se
maior da agricultura camponesa e da
a compreensão de que a questão da
Reforma Agrária, ou seja, das questões
educação não se resolve por si mesma
e dos sujeitos originários do movimen-
e nem apenas no âmbito local: não é
to por uma Educação do Campo.
por acaso que são os mesmos traba-
lhadores que estão lutando por terra, A II Conferência Nacional por uma
trabalho e território os que organizam Educação do Campo, realizada em julho
esta luta por educação. Também não é de 2004, com mais de mil participantes
por acaso que se entra no debate sobre representando diferentes organizações
política pública. sociais e também escolas de comunida-
des camponesas, demarcou a amplia-
A realidade que produz a Educação ção dos sujeitos dessa luta. Foram 39
do Campo não é nova, mas ela inau- entidades, incluindo representantes de
gura uma forma de fazer seu enfrenta- órgãos de governo, organizações não
mento. Ao afirmar a luta por políticas governamentais, organizações sindi-
públicas que garantam aos trabalha- cais de trabalhadores rurais e de pro-
dores do campo o direito à educação, fessores, além dos movimentos sociais
especialmente à escola, e a uma educa- camponeses, que assinaram a declara-
ção que seja no e do campo,4 os movi- ção final da conferência. Foi também
mentos sociais interrogam a sociedade nesse momento que aconteceu uma
brasileira: por que em nossa formação explicitação mais forte do contrapon-
social os camponeses não precisam ter to de projetos de campo, distinguindo
acesso à escola e a propalada univer- posições entre as entidades de apoio e
salização da educação básica não in- entre as próprias organizações de tra-
clui os trabalhadores do campo?5 Uma balhadores que passaram a integrar a
interrogação que remete à outra: por Articulação Nacional por uma Educa-
que em nosso país foi possível, afinal, ção do Campo.

261
Dicionário da Educação do Campo

O lema formulado na II Conferência no campo, assumindo o compromisso


Nacional, “Educação do Campo: direito coletivo de contraponto ao agronegó-
nosso, dever do Estado!”, expressou o cio e de combate à criminalização dos
entendimento comum possível naquele movimentos sociais (Fórum Nacional
momento: a luta pelo acesso dos traba- de Educação do Campo, 2010, p. 3).
lhadores do campo à educação é espe- Integra esse momento político a con-
cífica, necessária e justa, deve se dar no quista de um decreto da Presidência da
âmbito do espaço público, e o Estado República que dispôs sobre a política
deve ser pressionado para formular de educação do campo e o Programa
políticas que a garantam massivamen- Nacional de Educação na Reforma
te, levando à universalização real e não Agrária (Brasil, 2010), entendido pe-
apenas princípio abstrato. Em meio aos las organizações do fórum como mais
debates, às vezes acirrados, ficou rea- uma ferramenta na pressão para que a
firmada a posição originária de vínculo situação educacional dos trabalhadores
da Educação do Campo com o polo do do campo efetivamente se altere.
trabalho, o que significa assumir o con- As tensões sobre configurar a Edu-
fronto de projetos, e desde os interesses cação do Campo na agenda da ordem
da agricultura camponesa. ou da contraordem aumentam na pro-
De 2004 até hoje, as práticas de edu- porção em que as contradições sociais
cação do campo têm se movido pelas envolvidas na sua origem e no seu des-
contradições do quadro atual, às vezes tino se explicitam com maior força na
mais, às vezes menos conflituoso, das realidade brasileira. Lutar por políticas
relações imbricadas entre campo, edu- públicas parece ser agenda da “or-
cação e políticas públicas. Houve avan- dem”, mas, em uma sociedade de clas-
ços e recuos na disputa do espaço pú- ses como a nossa, quando são políticas
blico e da direção político-pedagógica pressionadas pelo polo do trabalho,
de práticas e programas, assim como na acabam confrontando a lógica de mer-
atuação das diferentes organizações de cado, que precisa ser hegemonizada
trabalhadores, conforme o cenário em todas as esferas da vida social para
das lutas mais amplas e da correlação garantir o livre desenvolvimento do ca-
de forças de cada momento. O enfren- pital. O Estado não pode negar o prin-
tamento das políticas neoliberais para a cípio (republicano) da universalização
educação e para a agricultura continua do direito à educação, mas, na prática,
como desafio de sobrevivência. não consegue operar a sua realização
Em 2010, foi criado o Fórum Na- sem que se disputem, por exemplo, os
cional de Educação do Campo (Fonec), fundos públicos canalizados para a re-
no esforço de retomar a atuação articu- produção do capital, o que, no caso do
lada de diferentes movimentos sociais, campo, significa, hoje especialmente,
organizações sindicais e outras insti- fundos para o avanço do agronegócio,
tuições, com destaque agora para uma inclusive em suas práticas de EDUCA-
participação mais ampliada de univer- ÇÃO CORPORATIVA.

sidades e institutos federais de educa- Pela lógica do modelo dominante, é


ção. Em seu documento de criação, o a educação rural e não a Educação do
Fonec toma posição contra o fechamen- Campo, que deve retornar à agenda
to e pela construção de novas escolas do Estado, reciclada pelas novas de-

262
Educação do Campo

mandas de preparação de mão de obra camponeses confrontam sua lógica fun-


para os processos de modernização e damental com a da exploração do traba-
expansão das relações capitalistas na lho pelo capital, resistindo em um modo
agricultura, demandas que não necessi-
tam de um sistema público de educação
distinto de produzir, de organizar a vida
social e de se relacionar com a natureza E
no campo. Porém, isso é confrontado (ver AGRICULTURA CAMPONESA).
pela pressão articulada que movimen- A Educação do Campo, como prá-
tos de trabalhadores camponeses conti- tica social ainda em processo de cons-
nuam a fazer a partir de outras deman- tituição histórica, tem algumas caracte-
das e na direção de outro projeto. rísticas que podem ser destacadas para
Entretanto, como defender a edu- identificar, em síntese, sua novidade ou
cação dos camponeses sem confrontar a “consciência de mudança” que seu
a lógica da agricultura capitalista que nome expressa:
prevê sua eliminação social e mesmo • Constitui-se como luta social pelo
física? Como pensar em políticas de acesso dos trabalhadores do campo
educação no campo ao mesmo tem- à educação (e não a qualquer edu-
po em que se projeta um campo com cação) feita por eles mesmos e não
cada vez menos gente? E ainda, como apenas em seu nome. A Educação
admitir como sujeitos propositores de do Campo não é para nem apenas
políticas públicas movimentos sociais com, mas sim, dos camponeses, ex-
criminalizados pelo mesmo Estado que pressão legítima de uma pedagogia
deve instituir essas políticas? do oprimido.
Ainda que a Educação do Campo se • Assume a dimensão de pressão co-
mantenha no estrito espaço da luta por letiva por políticas públicas mais
políticas públicas, suas relações consti- abrangentes ou mesmo de embate
tutivas a vinculam estruturalmente ao entre diferentes lógicas de formu-
movimento das contradições do âmbi- lação e de implementação da polí-
to da QUESTÃO AGRÁRIA, de projetos de tica educacional brasileira. Faz isso
agricultura ou de produção no campo, sem deixar de ser luta pelo acesso
de matriz tecnológica, de organização do à educação em cada local ou situ-
trabalho no campo e na cidade... E as ação particular dos grupos sociais
disputas se acirram ou se expõem ain- que a compõem, materialidade que
da mais quando se adentra o debate de permite a consciência coletiva do
conteúdo da política, chegando ao ter- direito e a compreensão das razões
reno dos objetivos e da concepção de sociais que o impedem.
educação, de campo, de sociedade, • Combina luta pela educação com
de humanidade. luta pela terra, pela Reforma Agrá-
A explicitação do confronto principal ria, pelo direito ao trabalho, à
em que se move a educação do campo cultura, à soberania alimentar, ao
fortalece aos poucos a compreensão de território. Por isso, sua relação de
que, embora sejam muitos e diversos os origem com os movimentos sociais
seus sujeitos, é o camponês o sujeito de trabalhadores. Na lógica de seus
coletivo que hoje identifica, na sua es- sujeitos e suas relações, uma política
pecificidade, o polo da contradição as- de Educação do Campo nunca será
sumida. Vivendo sob o capitalismo, os somente de educação em si mesma

263
Dicionário da Educação do Campo

e nem de educação escolar, embora reafirma e revigora uma concepção


se organize em torno dela. de educação de perspectiva emanci-
• Defende a especificidade dessa luta patória, vinculada a um projeto his-
e das práticas que ela gera, mas não tórico, às lutas e à construção so-
em caráter particularista, porque as cial e humana de longo prazo. Faz
questões que coloca à sociedade a isso ao se mover pelas necessidades
propósito das necessidades parti- formativas de uma classe portadora
culares de seus sujeitos não se re- de futuro.
solvem fora do terreno das contra- • Seus sujeitos têm exercitado o direi-
dições sociais mais amplas que as to de pensar a pedagogia desde a sua
produzem, contradições que, por realidade específica, mas não visan-
sua vez, a análise e a atuação especí- do somente a si mesmos: a totalidade
ficas ajudam a melhor compreender lhes importa, e é mais ampla do que
e enfrentar. E isso se refere tanto a pedagogia.
ao debate da educação quanto ao • A escola tem sido objeto central
contraponto de lógicas de produ- das lutas e reflexões pedagógicas
ção da vida, de modo de vida. da Educação do Campo pelo que
• Suas práticas reconhecem e bus- representa no desafio de formação
cam trabalhar com a riqueza social dos trabalhadores, como mediação
e humana da diversidade de seus fundamental, hoje, na apropriação
sujeitos: formas de trabalho, raí- e produção do conhecimento que
zes e produções culturais, formas lhes é necessário, mas também pe-
de luta, de resistência, de organi- las relações sociais perversas que
zação, de compreensão política, sua ausência no campo reflete e sua
de modo de vida. Mas seu percur- conquista confronta.
so assume a tensão de reafirmar, • A Educação do Campo, principal-
no diverso que é patrimônio da mente como prática dos movimen-
humanidade que se almeja a uni- tos sociais camponeses, busca con-
dade no confronto principal e na jugar a luta pelo acesso à educação
identidade de classe que objetiva pública com a luta contra a tutela
superar, no campo e na cidade, as política e pedagógica do Estado
relações sociais capitalistas. (reafirma em nosso tempo que não
• A Educação do Campo não nas- deve ser o Estado o educador do povo).
ceu como teoria educacional. Suas • Os educadores são considerados
primeiras questões foram práticas. sujeitos fundamentais da formu-
Seus desafios atuais continuam lação pedagógica e das transfor-
sendo práticos, não se resolven- mações da escola. Lutas e práticas
do no plano apenas da disputa teó- da Educação do Campo têm de-
rica. Contudo, exatamente porque fendido a valorização do seu tra-
trata de práticas e de lutas contra- balho e uma formação específica
hegemônicas, ela exige teoria, e exi- nessa perspectiva.
ge cada vez maior rigor de análise da
realidade concreta, perspectiva de Estas características definem o que
práxis. Nos combates que lhe têm é/pode ser a Educação do Campo, uma
constituído, a Educação do Campo prática social que não se compreende

264
Educação do Campo

em si mesma e nem apenas a partir das pecífica: a relação com a produção na


questões da educação, expondo e con- especificidade da agricultura campone-
frontando as contradições sociais que sa, da agroecologia;; o trabalho coleti-
a produzem. E são estas mesmas ca-
racterísticas que também podem con-
vo, na forma de cooperação agrícola,
em áreas de Reforma Agrária, na luta
E
figurá-la como categoria de análise das pela desconcentração das terras e con-
práticas por ela inspiradas ou de outras tra o valor absoluto da propriedade
práticas que não atendem por esse nome privada e a desigualdade social que lhe
nem dialogam com essa experiência corresponde. Vida humana misturada
concreta. A tríade campo–educação– com terra, com soberana produção
política pública pode orientar pergun- de alimentos saudáveis, com relações de
tas importantes sobre a realidade edu- respeito à natureza, de não exploração
cacional da população trabalhadora do entre gerações, entre homens e mulhe-
campo onde quer que ela esteja. res, entre etnias. Ciência, tecnologia,
Como referência de futuro à educa- cultura, arte potencializadas como fer-
ção dos trabalhadores, a Educação do ramentas de superação da alienação do
Campo recoloca desde sua luta especí- trabalho e na perspectiva de um desen-
fica a questão sempre adiada na histó- volvimento humano omnilateral. Algo
ria brasileira da efetiva universalização disso já vem sendo experimentado em
do direito à educação, tensionando na determinados espaços de resistência e
esfera da política formas e conteúdos relativa autonomia de movimentos so-
de ações do Estado nessa direção. E ciais ou de comunidades camponesas,
se buscar confrontar a lógica que im- mas talvez possa vir a ser “universaliza-
pede os trabalhadores de ter acesso do” em uma “república do trabalho”.
pleno à educação básica não é ainda E o modo de fazer a luta pela escola
a “revolução brasileira”, na prática, a tem desafiado os camponeses a ocupá-
superação do capitalismo não se reali- la também nessa perspectiva, como
zará sem passar por este confronto e sujeitos, humanos, sociais, coletivos,
sua solução. com a vida real e por inteiro, trazendo
No plano da práxis pedagógica, a as contradições sociais, as potencia-
Educação do Campo projeta futuro lidades e os conflitos humanos para
quando recupera o vínculo essencial dentro do processo pedagógico, re-
entre formação humana e produção querendo uma concepção de conheci-
material da existência, quando concebe mento e de estudo que trabalhe com
a intencionalidade educativa na direção essa vida concreta. Isso tem exigido
de novos padrões de relações sociais, e permitido transformações na forma
pelos vínculos com novas formas de da escola, cuja função social originária
produção, com o trabalho associado prevê apartar os educandos da vida,
livre, com outros valores e compro- muito mais do que fazer da vida seu
missos políticos, com lutas sociais que princípio educativo. Acontecem hoje
enfrentam as contradições envolvidas no âmbito da Educação do Campo ex-
nesses processos. perimentos pedagógicos importantes
E sua contribuição original pode na direção de uma escola mais próxi-
vir exatamente de ter de pensar estes ma dos desafios de construção da so-
vínculos a partir de uma realidade es- ciedade dos trabalhadores.

265
Dicionário da Educação do Campo

Notas
1
Note-se que este texto integra um dicionário que leva o mesmo nome, ou tem o mesmo
objeto deste verbete, e cuja forma de organização procura nos mostrar a quantidade e a
complexidade dos nexos que permitem compreender a Educação do Campo como um
fenômeno concreto (síntese de muitas determinações).
2
As entidades que apoiaram o I Enera foram também depois, junto com o MST, as pro-
motoras da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo: Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef),
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e Univer-
sidade de Brasília (UnB), por meio do Grupo de Trabalho em Apoio à Reforma Agrária.
3
O Pronera começou a ser gestado no I Enera, mediante o desafio colocado pelo MST
aos docentes de universidades públicas convidados ao encontro para pensar um desenho
de articulação nacional que pudesse ajudar a acelerar o acesso dos trabalhadores das áreas de
Reforma Agrária à educação escolar. A ideia foi levada pela Universidade de Brasília ao III
Fórum das Instituições de Ensino Superior em Apoio à Reforma Agrária, em novembro
de 1997, e o desenho do programa foi formatado entre janeiro e fevereiro de 1998 (ver
PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA).
4
No campo: “o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive” (Kolling, Cerioli
e Caldart, 2002, p. 26), e do campo: “o povo tem direito a uma educação pensada desde
o seu lugar e com sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e
sociais” (ibid.), assumida na perspectiva de continuação da “luta histórica pela constituição
da educação como um direito universal” (ibid.), que não deve ser tratada nem como serviço
nem como política compensatória e muito menos como mercadoria.
5
Segundo o censo agropecuário de 2006 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
2009), no Brasil, 30% dos trabalhadores rurais são analfabetos e 80% não chegaram a con-
cluir o ensino fundamental.

Para saber mais


ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. (org.). Por uma educação do campo.
4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010:
dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educa-
ção na Reforma Agrária – Pronera. Diário Oficial da União, Brasília, 5 nov. 2010.
______. Conselho Nacional de Educação (CNE). Câmara de Educação Básica
(CEB). Parecer CNB/CEB nº 36/2001: Diretrizes Operacionais para a Educação
Básica nas Escolas do Campo. Brasília: CNE, 4 de dezembro de 2001.
CALDART, R. S. Sobre educação do campo. In: SANTOS, C. A. (org.). Educação do cam-
po: campo – políticas públicas – educação. Brasília: Incra/MDA, 2008. p. 67-86.
______. Educação do campo: notas para uma análise de percurso. Trabalho,
Educação e Saúde, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, v. 7, n. 1,
p. 35-64, mar.-jun. 2009.
FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO DO CAMPO (Fonec). Carta de criação do Fórum
Nacional de Educação do Campo. Brasília: Fonec, agosto de 2010.

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Educação Omnilateral

FRIGOTTO, G. Projeto societário contra-hegemônico e educação do campo: desa-


fios de conteúdo, método e forma. In: MUNARIM, A. et al. (org.). Educação do campo:
reflexões e perspectivas. Florianópolis: Insular, 2010. p. 19-46.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.
E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo agropecuário
E
KOLLING, E. J.; NERY, I.; MOLINA, M. C. Por uma educação básica do campo (memória).
Brasília: Articulação Nacional por uma Educação do Campo, 1999.
______;; CERIOLI, P. R.; CALDART, R. S. (org.). Educação do campo: identidade e políti-
cas públicas. Brasília: Articulação Nacional por uma Educação do Campo, 2002.
MOLINA, M. C. (org.). Educação do campo e pesquisa: questões para reflexão. Brasília:
MDA, 2006.
MUNARIM, A. et al. (org.). Educação do campo: reflexões e perspectivas. Florianópolis:
Insular, 2010.
WILLIAMS, R. La larga revolución. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003.

EDUCAÇÃO OMNILATERAL
Gaudêncio Frigotto

Omnilateral é um termo que vem O desenvolvimento que se expres-


do latim e cuja tradução literal signi- sa em cada ser humano não advém de
fica “todos os lados ou dimensões”. uma essência humana abstrata, mas é
Educação omnilateral significa, assim, um processo no qual o ser se consti-
a concepção de educação ou de forma- tui socialmente, por meio do trabalho;;
ção humana que busca levar em conta é uma individualidade – e, consequen-
todas as dimensões que constituem a temente, uma subjetividade – que se
especificidade do ser humano e as con- constrói, portanto, dentro de determi-
dições objetivas e subjetivas reais para nadas condições histórico-sociais. Por
seu pleno desenvolvimento histórico. isso, Marx define a essência humana,
Essas dimensões envolvem sua vida na sexta tese sobre Feuerbach, como
corpórea material e seu desenvolvi- sendo o conjunto das relações sociais (Marx,
mento intelectual, cultural, educacio- 1988). E, com base nesta compreensão,
nal, psicossocial, afetivo, estético e lú- Gramsci (1978) sublinha que a humani-
dico. Em síntese, educação omnilateral dade que se reflete em cada individua-
abrange a educação e a emancipação lidade é expressão das múltiplas rela-
de todos os sentidos humanos, pois os ções do indivíduo com os outros seres
mesmos não são simplesmente dados pela humanos e com a natureza. Assim, a
natureza. O que é especificamente humano, língua que falamos, os valores, os sen-
neles, é a criação deles pelo próprio homem timentos, os hábitos, o gosto, a religião
(Mészáros, 1981, p. 181). ou as crenças e os conhecimentos que

267
Dicionário da Educação do Campo

incorporamos não são realidades natu- privada dos meios e instrumentos de


rais, mas uma produção histórica. São produção,2 na divisão social do traba-
os seres humanos em sociedade que lho, e nos processos de expropriação
produzem as condições que se expres- e alienação que tais relações impõem,
sam no seu modo de pensar, sentir e limitando o livre e solidário desenvol-
de ser. vimento humano.
Tal compreensão de ser humano é Por outra par te, essas análises
o oposto da concepção burguesa cen- apontam, ao mesmo tempo, para a ne-
trada numa suposta natureza humana cessidade de luta pela superação deste
sem história, individualista e competi- modo de produção e, no plano das suas
tiva, na qual cada um busca o máximo contradições, para que se vá construin-
interesse próprio. Pelo contrário, pres- do o caráter e a personalidade do ho-
supõe o desenvolvimento solidário das mem novo, mediante processos educa-
condições materiais e sociais e o cui- tivos que afirmem os valores de justiça,
dado coletivo na preservação das bases de solidariedade, de cooperação e de
da vida, ampliando o conhecimento, a igualdade efetiva, e o desenvolvimento
ciência e a tecnologia, não como for- de conhecimentos que concorram para
ças destrutivas e formas de dominação qualificar a vida de cada ser humano.
e expropriação, mas como patrimônio Um conhecimento que concorra para
de todos na dilatação dos sentidos e abreviar o tempo dedicado ao trabalho
membros humanos. como resposta ao reino imperativo das
Sendo o trabalho a atividade vital necessidades materiais e amplie o tem-
e criadora mediante a qual o ser hu- po livre, tempo de escolha, de possibili-
mano produz e reproduz a si mesmo, dade de criação e de humanização. Por
a educação omnilateral o tem como isso, uma das lutas centrais no interior
parte constituinte. Por isso, Marx, ao da sociedade capitalista é a da diminui-
se referir aos processos formativos na ção da jornada de trabalho.
perspectiva de superação da sociedade Os fundamentos filosóficos e his-
capitalista, enfatiza o trabalho, na sua tóricos do desenvolvimento omnilate-
dimensão de valor de uso, como princí- ral do ser humano e da educação ou da
pio educativo, e a importância da edu- formação humana que a ele se vincula,
cação politécnica ou tecnológica.1 na sua forma mais profunda e radical
Outro aspecto a sublinhar é que, (que vai à raiz), são encontrados nas
como evidenciam várias análises de análises de Marx, Engels e de outros
educadores marxistas, nem Marx e nem marxistas, especialmente Gramsci e
Engels se dedicaram especificamente a Lukács. Nestas análises, fica explícito
elaborar uma teoria da educação. Nem que até o presente momento os seres
mesmo Grasmci, cujas preocupações humanos viveram a sua pré-história
com a educação escolar são mais ex- porque o desenvolvimento dos sen-
plícitas e reiteradas, teve esse objetivo. tidos e das potencialidades humanas
A questão da educação aparece, por esteve obstruído pela cisão em classes
um lado, na crítica à sua perspectiva sociais antagônicas e pela exploração
unilateral e restrita vinculada ao plano de uma classe sobre as demais.
material objetivo nas relações sociais A sociedade capitalista, sob a qual
capitalistas fundadas na propriedade vivemos, constituiu-se mediante a su-

268
Educação Omnilateral

peração das formas explícitas de ex- A base objetiva da análise da evo-


ploração materializadas pela escravi- lução social e econômica e do homem
dão ou pelo servilismo das sociedades como um animal social que se cria e
precedentes, mas estatuiu uma forma
mais sutil de expropriação do trabalho
recria pelo trabalho a encontramos em
Marx, tanto em suas obras de juventude, E
alheio, mediante uma igualdade aparen- especialmente nos Manuscritos econômico-
te e formal, entre os donos do capital e filosóficos (2004),4 quanto nas de sua ma-
os trabalhadores que vendem sua força turidade intelectual, em O capital (2006)
de trabalho. Trata-se de uma sociedade e no Grundrisse (1986). Na análise da
que explora dentro de uma legalida- evolução histórica, que levou ao surgi-
de construída pela classe dominante e mento da propriedade privada e à su-
que se expressa no direito positivo por bordinação do trabalho ao capital, este
ela produzido. autor explicita-nos por que o desenvol-
O balanço de dois séculos de capi- vimento humano e a educação omni-
talismo mostra-nos toda a sua irracio- lalateral estão limitados, constrangidos
nalidade, com a apropriação privada do e mutilados.
avanço científico e tecnológico como Com efeito, mediante a proprieda-
forma de gerar mais capital. A terra e de privada dos meios e instrumentos de
o desenvolvimento do conhecimento, produção, estabelece-se o impedimen-
da ciência e da tecnologia, apropriados to da maioria dos seres humanos de
privadamente e colocados a serviço da produzir dignamente a sua existência
expansão do capital, voltam-se contra pelo seu trabalho em relação solidá-
a classe trabalhadora e seus filhos e se ria com os demais seres humanos. O
afirmam dentro de uma lógica destruti- contingente de milhares de famílias
va. Além disso, ocorre a aniquilação de dos trabalhadores sem-terra experi-
direitos e das bases da vida, mediante menta, há anos, este impedimento, e
a agressão ao meio ambiente.1 Disso sente em suas vidas os seus efeitos.
resulta uma contradição insanável que Da mesma forma, os demais trabalha-
se evidencia pelo aumento da miséria e dores do campo, que vivem da pou-
da fome, pela volta das epidemias, pela ca terra ou são arrendatários, e os da
indigência e pelo aumento da violência cidade, que vendem sua força de tra-
e do extermínio dos pobres. balho ou que estão desempregados ou
As possibilidades do desenvolvimento subempregados, produzem suas vidas
humano omnilateral e da educação omni- de forma precária porque parte de sua
lateral inscrevem-se, por isso, na disputa produção ou de seu tempo de trabalho
de um novo projeto societário – um pro- são expropriados.
jeto socialista – que liberte o trabalho, o A propriedade privada se constitui
conhecimento, a ciência, a tecnologia, a no fundamento de todas as formas de
cultura e as relações humanas em seu con- alienação. Separa e aliena o ser humano
junto dos grilhões da sociedade capitalista;; da natureza e do produto de seu traba-
um sistema que submete o conjunto das lho;; aliena-o de si mesmo, pois o que
relações de produção e relações sociais, produz não lhe pertence, mas pertence
educação, saúde, cultura, lazer, amor, afe- a quem comprou sua força e seu tempo
to e, até mesmo, grande parte das crenças de trabalho;; aliena-o como membro da
religiosas à lógica mercantil. humanidade ou lhe exclui da condição

269
Dicionário da Educação do Campo

humana e, finalmente, aliena-o em rela- bilitarem o pleno desenvolvimento


ção aos outros seres humanos.5 não só dos “cincos sentidos, mas
Ao separar, pela propriedade priva- também os assim chamados sen-
da, o trabalhador dos seus meios e ins- tidos espirituais, os sentidos prá-
trumentos para a produção de sua vida, ticos (vontade, amor etc.), numa
tornando-o uma mercadoria – força de palavra, o sentido humano, a hu-
trabalho –, o capital administrará essa manidade dos sentidos” (Marx,
força de acordo com os seus interes- 2004, p. 210)?
ses, destinando a cada trabalhador uma • Qual o papel e a função específicos,
parcela, de sorte que possa extrair de no plano contraditório do velho e
cada trabalhador o máximo de produ- do novo, da instituição escola nesta
tividade. O advento de novas tecnolo- travessia cujo objetivo não se reduz
gias, em vez de ser algo que beneficia à emancipação da religião e da po-
o trabalhador, volta-se contra ele por lítica dentro da ordem capitalista,
causa da intensificação do trabalho mas da emancipação humana, cuja
e da exploração, e pela ampliação do condição é a sua superação?6
exército de reserva de desempregados
e subempregados. Para a grande maio- Tanto no plano das práticas educa-
ria dos trabalhadores do campo, em tivas difusas que se efetivam em todos
vez de significarem novas possibilida- os espaços da vida em sociedade – no
des na melhoria da produção, as novas trabalho, no esporte, nas atividades
tecnologias resultam em sua expulsão culturais, no plano das relações fami-
para periferias urbanas e na amplia- liares e nas próprias relações afetivas –
ção do latifúndio. Por isso, torna-se, quanto na instituição escolar, a tarefa
para a classe trabalhadora, uma ques- daqueles que querem o reencontro dos
tão vital abolir a propriedade privada seres humanos com a sua humanidade
e “substituir o indivíduo parcial, mero cindida e perdida implica um comba-
fragmento humano que repete sempre te sem tréguas aos valores mercantis
uma operação parcial, pelo indivíduo da competição, do individualismo, do
integralmente desenvolvido” (Marx, consumismo, da violência e da explo-
2006, p. 552). ração sob todas as suas formas.
Neste contexto, as questões cen- Em contrapartida, cabe reforçar a
trais no campo educativo, seguindo ideia da propriedade social e coletiva
as contribuições de Marx, Engels, da terra e da ciência e tecnologia como
Gramsci e Lukács, e apropriando-as valores de uso na compreensão de que
para nossos dias, são: uma individualização rica somente se
efetivará quando cada ser humano te-
• Quais os elementos educativos a nha uma mesma base material objetiva
serem combatidos, e quais devem e subjetiva para o seu desenvolvimento.
ser reforçados e incorporados, no Disto decorre o sentido da solidarieda-
conjunto das práticas sociais e nas de e a cooperação em todas as esferas da
instituições, por corroborarem a produção da vida, assim como o senti-
construção da travessia para rela- do de justiça. Ele nos ensina que, por
ções sociais que permitam o reencon- sermos todos animais sociais que não
tro com a humanidade perdida sob as podem prescindir de produzir os meios
relações sociais capitalistas e possi- de vida pelo trabalho de cada um de

270
Educação Omnilateral

acordo com as suas possibilidades e res- como uma antipalavra, um fantasma


peitando as particularidades da infância, que vaga pela teoria econômica, foi es-
juventude, vida adulta e velhice, temos o colhida em 2004 com a seguinte justifi-
dever de colaborar nesta tarefa.
No âmbito da educação escolar,
cativa da comissão: “degrada pessoas a
grandezas de interesse meramente eco- E
cabe combater, inicialmente, a forma- nômico” (Altvater, 2010, p. 75).
ção tanto básica quanto profissional No bojo do ideário neoliberal, que
subordinados à fragmentação do pro- tira da referência a sociedade e os di-
cesso capitalista de produção ou à vi- reitos coletivos e universais e centra-se
são unidimensional das necessidades no superindividualismo, novas noções
do mercado. Ao longo do século XX, derivam de capital humano. As não pa-
assumem papel central os herdeiros lavras que degradam a dignidade huma-
dos economistas filantropos a que se refe- na e a reduzem à grandeza econômica,
re Marx, para os quais o significado da entre outras, são: sociedade do conhe-
educação é adaptar a formação dos tra- cimento, qualidade total, pedagogia das
balhadores às mudanças na divisão do competências, empregabilidade, em-
trabalho: uma formação fragmentada e preendedorismo e capital social.
plurifuncional ou polivalente, fundada Na educação e instrução do ser hu-
numa concepção de conhecimento que mano novo, cuja tarefa é a de elevar a
analisa a realidade humana de forma classe operária acima dos níveis de conheci-
atomizada e que a reduz ao aparente mento e dos valores da burguesia na constru-
mascarado como a mesma se produz. ção de novas relações sociais despidas
Os organismos internacionais, da violência de classe, as três dimen-
como o Banco Mundial, o Banco sões apontadas por Marx e Engels
Interamericano de Desenvolvimen- em 1868, enriquecidas historicamente
to (Bird), a Organização Mundial do pela produção de novos conhecimen-
Comércio (OMC), e a Organização tos, permanecem integralmente váli-
Internacional do Trabalho (OIT), das: educação intelectual, corporal e educa-
acolhem hoje os sucedâneos dos eco- ção tecnológica. Esta última, “recolhe os
nomistas filantropos, que ditam para princípios gerais de caráter científico
o mundo as reformas educacionais de todo o processo de produção e,
para formar trabalhadores funcionais ao mesmo tempo, inicia as crianças e
ao capital. os adolescentes no manejo de ferra-
Uma multiplicidade de noções mentas elementares dos diversos ramos
explicitam, a começar pela de capital de produção. À divisão das crianças
humano, a concepção unidimensional e adolescentes em três categorias, de
dominante de educação que, de direito 9 a 18 anos, deve corresponder um
social e subjetivo, passa cada vez mais a curso progressivo para a sua educa-
ser um serviço mercantil. Desde 1994, ção intelectual, corporal e politécnica”
uma comissão de professores da Uni- (Marx e Engels, 1983, p. 60). Nesta
versidade de Frankfurt elege, anual- concepção, estão dados os fundamen-
mente, uma Unwort (“não palavra”) tos do que deve ser a função e o direito
para designar termos que não expres- da educação básica universal, pública,
sam a realidade e degradam a dignidade laica, gratuita e unitária, e do trabalho
humana. “Capital humano”, definida como princípio educativo.

271
Dicionário da Educação do Campo

Um aspecto central para os movi- uma força material revolucionária. Dis-


mentos sociais e organizações dos tra- to decorre a crítica de Marx a todas as
balhadores do campo e da cidade é a formas de doutrinação e de reducio-
apreensão da especificidade da escola nismos na construção da cientificidade
no domínio dos fundamentos cientí- do conhecimento.
ficos que permitem compreender, ao A escola, assim, terá um papel revo-
mesmo tempo, na expressão sintética de lucionário na medida em que construa –
Gramsci, como funcionam a sociedade das por um método materialista histórico
coisas (ciências da natureza) e a sociedade dialético, partindo dos sujeitos concre-
dos homens (ciências sociais e humanas). tos, com sua cultura, saberes e senso
O caráter revolucionário da escola, comum, e dialogando criticamente
no ventre das atuais adversas e contra- com o patrimônio de conhecimentos
ditórias relações sociais, constitui-se existente – as bases científicas que
na medida pela qual o processo pe- permitem compreender como se pro-
dagógico, no conteúdo, no método e duzem os fenômenos da natureza e as
na forma, permite às crianças, jovens relações sociais.8 Estas serão bases para
e adultos irem se apropriando daquilo uma práxis revolucionária em todas as
que Marx entende por cientificidade do esferas da vida, no horizonte de abolir
saber.7 Trata-se do saber que implica para sempre a cisão da humanidade em
um método materialista histórico dia- classes sociais. É nesta práxis e na luta
lético que supere as formas fragmen- política concreta que se forjam a iden-
tárias, funcionalistas, pragmáticas e uti- tidade e consciência de classe.
litaristas da “ciência” burguesa, a qual Neste horizonte de compreensão do
separa os objetos de conhecimento das papel da instituição escola, cabe com-
mediações e conexões que os consti- bater, em seu interior, todas as formas
tuem, uma “ciência” que pode revelar de competição que estimulam o indivi-
as disfunções da realidade, mas não dualismo, ícone da educação burguesa.
consegue explicar o que as produz. Do mesmo modo, se pautados pelo
Torna-se, assim, um conhecimento rigor científico que nos mostra uma
que naturaliza, mascara e reproduz as realidade social e humana produzidas,
relações sociais de exploração e as exime em todas as esferas da vida, de forma
dos efeitos de sua violência, expressa na desigual, não faz sentido a ideologia
desigualdade social e em todas as ma- dos dons e nem estimular no processo
zelas humanas que daí advém. Exime- educativo as avaliações comparativas,
as, do mesmo modo, do caráter preda- ou “premiar os melhores” alunos ou
tório da natureza e da degradação do professores, um expediente cada vez
meio ambiente, e seus efeitos reais e mais utilizado pelo ideário neoliberal
crescentes, que ameaçam à vida do pla- em nossa realidade.
neta Terra. A tarefa do desenvolvimento
Quando se produzem conhecimen- humano omnilateral e dos processos
tos que apreendem a historicidade do educativos que a ele se articulam di-
real, vale dizer, como ele se produz reciona-se num sentido antagônico ao
em todas as dimensões do mundo hu- ideário neoliberal. O desafio é, pois, a
mano e da natureza, tal conhecimento partir das desigualdades que são dadas
ou teoria constitui, como indica Marx, pela realidade social, desenvolver pro-

272
Educação Omnilateral

cessos pedagógicos que garantam, ao outros movimentos sociais e organizações


final do processo educativo, o acesso dos trabalhadores do campo perceberam
efetivamente democrático ao conheci- que, sem luta, esta realidade não muda. E
mento na sua mais elevada universali-
dade. Não se trata de tarefa fácil e nem
é dentro de suas lutas que, de forma mais
explícita e não sem dificuldades, se cons- E
que se realize plenamente no interior troem os processos pedagógicos escolares
das relações sociais capitalistas. Esta, centrados no projeto da Educação do Cam-
todavia, é a tarefa para aqueles que po, projeto que se traduz na ação prática
buscam abolir estas relações sociais. da relação entre ciência, cultura e trabalho
Não por acaso, o Movimento dos como princípio educativo, dimensões bá-
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e sicas da educação omnilateral.

Notas
1
Com efeito, na literatura que analisa as concepções de educação e instrução na obra de
Marx e outros autores marxistas, de forma recorrente, especialmente o trabalho como prin-
cípio educativo e a educação politécnica ou tecnológica são tratados como dimensões da
educação omnilateral. Ver, a esse respeito, Frigotto, 1984 e Souza Júnior, 2010.
2
Cabe não confundir propriedade como valor de uso com a propriedade privada dos meios
e instrumentos de produção com o fim de gerar lucro e acumular capital mediante a explo-
ração do trabalho alheio. Como sublinha Marx, “originariamente propriedade significa nada
mais que a atitude do homem ao encarar suas condições naturais de produção como lhe
pertencendo, como pré-requisitos da sua própria existência” (1977, p. 85;; grifos do autor).
3
Ver, a esse respeito, Mészáros, 2002 e Altvater, 2010.
4
Uma análise profunda, a partir dos Manuscritos econômico-filosóficos, sobre o caráter fun-
dante do trabalho na constituição do homem como ser social é efetivada por Lukács,
2010.
5
Essa síntese de István Mészáros (1981, p. 16) é desenvolvida de forma detalhada e didá-
tica ao longo de toda essa obra, que trata da teoria da alienação em Marx, destacando seus
aspectos econômicos, políticos, ontológicos e morais e educacionais.
6
Sobre a necessidade de ir além da emancipação religiosa e política e buscar construir a
emancipação humana, ver Marx, 2007 e Marx e Engels, 2003.
7
Ver Barata-Moura, 1998, p. 69-145.
8
Para aprofundar esta questão, ver Saviani, 2008, p. 65-73.

Para saber mais


ALTVATER, E. O fim do capitalismo como o conhecemos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
BARATA-MOURA, J. Materialismo e subjetividade. Estudos em torno de Marx. Lisboa:
Avante, 1998.
FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva. São Paulo: Cortez, 1984.

273
Dicionário da Educação do Campo

G RAMSCI , A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1978.
LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Campinas: Boitempo, 2010.
MARX, K. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse)
1857-1858. 14. ed. México, D. F.: Siglo XXI, 1986.
______. O capital. 24. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
______. A questão judaica. 6. ed. São Paulo: Centauro, 2007.
______. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
______. Teses sobre Feuerbach. In: ______;; ENGELS, F. Obras escolhidas. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1988. V. 3, p. 208-210.
______;; ENGELS, F. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003.
______;; ______. Instruções aos delegados do Conselho Central Provisório, AIT,
1868. In: ______;; ______. Textos sobre educação e ensino. São Paulo: Morais, 1983.
MÉSZÁROS, I. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
______. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo:
Boitempo, 2002.
SAVIANI, D. Onze teses sobre educação e política. In: ______. Escola e democracia.
Campinas: Autores Associados, 2008. p. 81-91.
SOUZA JR., J. Marx e a crítica da educação. Aparecida: Ideias & Letras, 2010.

EDUCAÇÃO POLITÉCNICA
Gaudêncio Frigotto

A compreensão adequada do sen- burguesia nacional e internacional de-


tido de educação politécnica implica tentoras do capital, são incompatíveis
situá-la como resultado de um embate e antagônicos em relação aos interesses
dentro de um processo histórico que dos trabalhadores do campo e da cida-
padece, até o presente, da dominação de e relação aos processos produtivos
de uns seres humanos sobre os outros, que garantam a soberania alimentar
e, consequentemente, situá-la na cons- e, ao mesmo tempo, que não degradem e
tituição das sociedades de classes e de destruam o meio ambiente.
grupos sociais com interesses inconci- Em contrapartida, a agricultura
liáveis e antagônicos. camponesa de base agroecológica está
Os interesses do agronegócio, por vinculada à soberania alimentar dos po-
exemplo, representados por frações da vos e a processos educativos e de pro-

274
Educação Politécnica

dução de conhecimento e tecnologias ciedades, cada geração se preocupa em


que aumentem a produtividade e que repassar seus valores, conhecimentos
preservam a vida da natureza e do pla- e experiências às gerações seguintes,
neta, e a saúde coletiva. Por isso, neste
verbete, buscamos situar, inicialmente,
com o propósito de garantir a repro-
dução social. Isso se efetiva por pro- E
as bases histórico-materiais em que essa cessos educativos difusos em todas as
concepção de educação se constrói e, ações humanas ou por processos for-
em seguida, explicitar seu sentido e suas mais específicos, como é a escola tal
perspectivas na nossa realidade. qual a conhecemos hoje.
Um olhar atento sobre a histó- Tanto o trabalho quanto os proces-
ria desde o momento que o ser hu- sos educativos explicitam sua forma
mano se reconhece como tal, revela específica dentro dos diferentes mo-
que duas práticas sociais, ainda que dos de produção social da vida huma-
diversas, coexistem em todas as for- na. É neste particular que, uma vez
mas de sociedade: o trabalho e os pro- mais, Marx (1983b, p. 24) nos permite
cessos educativos. entender que, no processo de produ-
O ser humano, como um ser da ção da vida social, os seres humanos
natureza, para sobreviver necessita estabelecem determinadas relações de
apropriar-se desta mesma natureza ou produção que correspondem a deter-
produzir bens que satisfaçam suas ne- minado grau de desenvolvimento de
cessidades vitais. Desde os povos co- suas forças produtivas, essas constituí-
letores e caçadores até o presente, e das pelos meios de produção – terra,
enquanto o ser humano existir, o traba- ferramentas, tecnologias, instrumentos
lho constitui-se, assim, na atividade vital e instalações – e força de trabalho. O
imprescindível, pelo simples fato de que conjunto dessas relações sociais de
é por meio dele que o ser humano se produção forma a estrutura econômica
produz ou se recria permanentemente. da sociedade, a qual condiciona a for-
É com esta compreensão que Marx ma que assume a vida social, política
(1983a, p. 149) vai dizer que o traba- e intelectual.1
lho é um processo entre o homem e Atente-se, porém, como sublinha
a natureza no qual, por sua ação, os Karel Kosik, que o caráter básico e
seres humanos regulam e controlam o imprescindível da atividade econômica
seu metabolismo com a natureza. Para “não decorre de um superior grau de
isso, põem em movimento seus corpos, realidade de alguns produtos humanos,
braços, pernas, cabeças, mãos, para se mas do significado central da práxis e
apropriarem daquilo que necessitam do trabalho na criação da realidade hu-
para a própria vida. Pelo trabalho, en- mana” (1986, p. 109). Neste sentido, “a
tão, o ser humano modifica a natureza economia não é apenas a produção de
que lhe é externa e, ao mesmo tempo, bens materiais: é a totalidade do pro-
modifica a sua própria natureza. A his- cesso de produção e reprodução do ho-
tória humana, nesta perspectiva, é, para mem como ser humano-social. [...] É ao
Marx, a expressão da produção do ser mesmo tempo produção das relações
humano pelo trabalho. sociais dentro da qual esta produção se
Do mesmo modo, ainda que não realiza” (ibid., p. 173). Assim, na pro-
com o mesmo caráter, em todas as so- dução de si mesmos na sua reprodução

275
Dicionário da Educação do Campo

social, os seres humanos produzem, A burguesia, para afirmar seu pro-


ao mesmo tempo, “os bens materiais, jeto societário, teve de revolucionar e
o mundo materialmente sensível, cujo superar as formas precedentes de re-
fundamento é o trabalho;; as relações e lações sociais de produção e as ideias,
as instituições sociais, o complexo das valores e processos educativos que
condições sociais;; e, sobre a base disso, lhes eram inerentes. Todavia, como
as ideias, as concepções, as qualidades lembram Marx e Engels, a burguesia
humanas e os sentidos humanos cor- não aboliu as classes, “apenas estabele-
respondentes” (ibid. p. 113). ceu novas classes, novas condições de
É na apreensão da especificida- opressão, novas formas de luta em lu-
de das relações sociais do modo de gar das velhas” (Marx e Engels, 1982,
produção capitalista e de suas contradi- p. 94). A tarefa histórica que se impõe
ções insanáveis que Marx, ainda que de é, pois, abolir o conjunto das relações
forma breve no conjunto de sua obra, sociais burguesas, seus valores, sua cul-
trata de processos amplos de formação tura e seus processos formativos a fim
humana, da instrução escolar e da na- de liberar os seres humanos de todas as
tureza do conhecimento e da ciência, formas de opressão e exploração. Essa
que interessa serem desenvolvidos na superação não resulta de uma abstração,
perspectiva da superação do capita- mas da práxis humana (relação dialéti-
lismo e de todas as formas de cisão ca entre teoria e prática, pensamento e
em classes. ação) em todas as esferas da vida social.
A maneira pela qual Marx explicita Essa práxis revolucionária não se
o processo de produção da vida social efetiva no terreno ou no plano ideal,
nos permite compreender por que o mas no plano concreto da realidade
trabalho é uma atividade imperativa adversa das relações socais de expro-
e imprescindível, diretamente ligada à priação e de alienação, atualmente sob
produção e à reprodução da vida hu- o capitalismo. E é dentro destas rela-
mana e à educação, uma prática social ções sociais adversas e no plano de suas
mediadora, constituída e constituinte contradições insanáveis e cada vez mais
deste processo. profundas que se instaura o embate por
Do mesmo modo, permite enten- processos formativos que desenvolvam
der que a especificidade que assumem valores, conhecimentos, sentimentos e
o processo produtivo, o trabalho e os sentidos humanos que sedimentem
processos educativos depende da natu- a travessia para novas relações so-
reza do modo social de produção. Até o ciais libertas da dominação e violência
presente, a história humana, como alude de classe.
Marx, desenvolve-se sob a dominação Na perspectiva da superação das re-
de uma classe social sobre outras, cin- lações sociais capitalistas e no seio de
dindo o gênero humano e violentando suas contradições, Marx sinaliza três
a maioria dos seres humanos mediante conceitos relativos à formação que es-
diferentes formas de exploração e alie- tão intrinsecamente ligados, mas que,
nação – escravismo na Antiguidade, por suas particularidades, são trata-
escravismo e servilismo no modo de dos em verbetes específicos neste di-
produção feudal, e compra e venda cionário: o TRABALHO COMO PRINCÍPIO
da força de trabalho sob o capitalismo. EDUCATIVO, ligado ao processo de so-

276
Educação Politécnica

cialização e de construção do caráter dições adversas de sociedades cindidas


e da personalidade do homem novo, que em classes, o ser humano foi produzin-
internaliza, desde a infância, a sua con- do novos conhecimentos e capacidades
dição de ser da natureza e que, portan-
to, implica produzir, com os outros se-
para prover suas necessidades.
A educação politécnica resulta, as-
E
res humanos, seus meios de vida e não sim, no plano contraditório da neces-
viver da expropriação do trabalho de sidade do desenvolvimento das forças
seus semelhantes;; a formação humana om- produtivas das relações capitalistas de
nilateral (ver EDUCAÇÃO OMNILATERAL), produção e da luta consciente da ne-
ligada ao desenvolvimento de todas as cessidade de romper com os limites
dimensões e faculdades humanas, em intrínsecos e insanáveis destas mesmas
contraposição à visão unidimensional relações. Esta compreensão Marx já a
de educar e formar para os valores e desenvolve nos Manuscritos econômico-
conhecimentos úteis ao mercado capi- filosóficos (1989), quando salienta que
talista;; e, finalmente, o de EDUCAÇÃO o novo não brota do nada ou de
POLITÉCNICA ou tecnológica, ligada ao uma ideia, e nem sem atribulações,
desenvolvimento das bases de conhe- mas é arrancado do seio das velhas
cimentos que se vinculam ao proces- relações sociais.
so de produção e reprodução da vida O terreno próprio do desenvolvi-
humana pelo trabalho, na perspectiva mento humano omnilateral (em todas
de abreviar o tempo gasto para respon- as suas dimensões) do caráter radical-
der às necessidades (essas sempre his- mente educativo do trabalho, dos co-
tóricas) inerentes ao fato de o homem nhecimentos, da ciência e da tecnologia
fazer parte da natureza e de ampliar o somente terão a sua efetiva positividade
tempo livre (tempo de escolha, de frui- e a capacidade de dilatar as qualidades e
ção, de lúdico e de atividade humana potencialidades humanas quando as re-
criativa), no qual a omnilateralidade lações sociais classistas sob o capitalis-
pode efetivamente se desenvolver. mo forem superadas.
Porém, vale insistir, esses conceitos Esta compreensão de travessia na
em Marx não resultam de elucubra- contradição é claramente posta por
ções abstratas e ideais, mas da análise Marx na mensagem do Conselho Geral
rigorosa do processo histórico. É neste da Associação Internacional dos Tra-
sentido que ele percebe na revolução balhadores em 1871, no contexto dos
burguesa – a qual, para se constituir e acontecimentos da Comuna de Paris:
afirmar, necessitou abolir o trabalho “Só a classe operária pode converter a
escravo, combater o poder absolutista ciência de dominação numa força po-
e a concepção metafísica (não históri- pular [...]. A ciência só pode desempe-
ca) da realidade humana – elementos nhar o seu genuíno papel na república
civilizatórios. Por isso, também, não do trabalho” (Marx apud Barata-Moura
encontraremos na sua análise a defesa 1997, p. 71).
da volta à formação e à instrução hu- Ao longo de sua obra e de ou-
mana pela Bíblia, e nem a defesa do tros textos produzidos com Engels,
trabalho do homem da caverna ou a Marx utiliza diferentes termos para
formação artesanal, posto que, por sua caracterizar a concepção de educa-
capacidade de criar, mesmo sob con- ção ou instrução que interessa à

277
Dicionário da Educação do Campo

classe trabalhadora e que, ao mes- nia’ reflete a tradição cultural ante-


mo tempo, se opõe e transcende a rior a Marx, que o socialismo real de
forma fragmentária, unidimensional, Lenin impôs à terminologia pedagógica
adestradora de educação e instrução de sua política educacional” (Nosella,
burguesa, a qual procura eterni- 2007, p. 145).3
zar a divisão entre trabalho manual Por certo, o debate ajuda a qualificar
e intelectual ou entre a concepção e a as análises, mas, por diferentes razões,
execução do trabalho e, portanto, entendemos como Saviani que, indepen-
a cisão entre classes sociais. dentemente da questão terminológica,
Os termos de educação ou instru-
ção politécnica ou tecnológica são os [...] do ponto de vista concei-
dois mais abrangentes que Marx utili- tual, o que está em causa é um
zou buscando afirmar uma concepção mesmo conteúdo. Trata-se da
de educação que, no conteúdo, no mé- união entre formação intelec-
todo e na forma de organizar-se, inte- tual e trabalho produtivo que,
ressa à classe trabalhadora e não separa no texto do Manifesto, aparece
educação geral e específica e trabalho como “unificação da instrução
manual e intelectual. com a produção material”, nas
Embora o termo politécnica, na Instruções, como “instrução poli-
sua tradução literal, signifique muitas técnica que transmita os funda-
técnicas, não se pode depreender que mentos científicos gerais de to-
Marx, em algum momento ou em pas- dos os processos de produção”
sagem de sua obra, o tenha utilizado e, em O capital, enuncia-se como
no sentido de soma de técnicas frag- “instrução tecnológica, teórica e
mentadas ou de instrução pragmática e prática”. (Saviani, 2003, p. 145)
fragmentada. Ao contrário, “politecnia
diz respeito ao domínio dos fundamen- O que parece claro é que as diferen-
tos científicos2 das diferentes técnicas tes denominações dadas por Marx, para
que caracterizam o processo de traba- qualificar a educação ou instrução que
lho moderno” (Saviani, 2003, p. 140). interessa à classe trabalhadora e que se
contrapõe à educação burguesa, se for-
Expressa, assim, o mesmo sentido de
jam no plano histórico real e contradi-
tecnologia, termo também utilizado
tório das relações sociais capitalistas.
por Marx, e que literalmente significa a
Assim, o caráter mais ou menos verda-
ciência da técnica.
deiro ou o que anuncia o germe do novo se
Cabe registrar que, no campo edu- manifesta na expressão de educação po-
cacional crítico, há um debate sobre litécnica ou tecnológica. Por outra parte,
qual o termo que, do ponto de vista de como aprendemos com Marx (1988) na
Marx, seria mais adequado. Com base, crítica às teses de Feuerbach (especifica-
sobretudo, nas detalhadas análises fi- mente na tese dois), a questão do que é
lológicas de Mário Manacorda (1964 e certo ou verdadeiro em relação à reali-
1991), Paolo Nosella polemiza a abor- dade humana não é uma questão teórica
dagem de Dermeval Saviani e outros e menos ainda terminológica. Somente
educadores, sustentando que somente no terreno da práxis os fatos assumem
a “expressão ‘tecnologia’ evidencia o sentido histórico e não se reduzem a
germe do futuro, enquanto ‘politec- uma discussão escolástica.

278
Educação Politécnica

No Brasil, a introdução do conceito os processos educativos e de cons-


de educação politécnica se dá na déca- trução de conhecimentos articulados
da de 1980, com o desenvolvimento, ao trabalho produtivo, e que afirmam
em alguns cursos de pós-graduação,
dos estudos das obras de Marx,
os interesses dos movimentos sociais
dos trabalhadores do campo. Trata-se da E
Engels, Gramsci e Lenin, e constitui luta pela superação das perspectivas
claro contraponto às concepções de da educação centradas em modelos abs-
educação e de formação profissional tratos com conteúdos e métodos peda-
protagonizadas, ao longo da ditadura gógicos os quais ignoram que as crianças,
civil-militar das décadas de 1960 e 1970 os jovens e os adultos do campo são su-
e nos embates quando da elaboração jeitos de cultura, experiências e saberes.
da Lei de Diretrizes e Bases da Educa- Esses modelos postulam uma formação
ção Nacional (LDB) e do Plano Nacio- e educação escolar com conhecimentos
nal de Educação, nas décadas de 1980 elementares “para o campo” e/ou um
e 1990, pela noção ideológica econo- ensino restrito, localista e particularista de
micista de capital humano. Uma con- educação para “fixá-los no campo”.
traposição, pois, à visão adestradora e A denominação EDUCAÇÃO DO CAMPO,
fragmentária de educação e formação construída a partir do processo de
profissional sob a ótica da polivalência luta do Movimento dos Trabalhadores
e da multifuncionalidade do trabalha- Rurais Sem Terra (MST), engendra
dor, hoje reafirmada pela pedagogia um sentido que busca confrontar, há um
das competências. Nesta visão, a escola tempo, a perspectiva restrita, coloniza-
deve ensinar e educar de acordo com o dora, extensionista, localista e particu-
que serve ao mercado. larista de educação e as concepções e
Assim, como sublinha Saviani métodos pedagógicos de natureza
(2003), em nossa realidade histórica, fragmentária e positivista de conheci-
a educação politécnica traduz os inte- mento. Por centrar-se na leitura históri-
resses da classe trabalhadora na crítica ca e não linear da realidade, o processo
à fragmentação dos conhecimentos, à educativo escolar vincula-se à luta por
separação entre educação geral e espe- uma nova sociedade e, por isso, vincula-
cífica, entre técnica e política, e à divi- se também aos processos formativos
são entre trabalho manual e intelectual;; mais amplos que articulam ciência, cul-
além disso, afirma o domínio dos funda- tura, experiência e trabalho.
mentos científicos das diferentes técnicas que Essa relação, na perspectiva da edu-
caracterizam o processo de trabalho moderno cação que desenvolva o ser humano
na relação entre educação, instrução e omnilateral, nos limites possíveis den-
trabalho, da perspectiva desenvolvida tro das relações sociais capitalistas, im-
por Marx e Engels e apropriada pelas plica a educação intelectual, corpórea e
experiências socialistas, mormente pe- politécnica ou tecnológica, dimensões
los educadores russos dos primeiros destacadas por Marx em 1866, no I
anos da Revolução de 1917, entre as Congresso da Associação Internacio-
quais se destacam as abordagens de nal dos Trabalhadores (Marx, 1983c).
Pistrak (1981 e 2009). A formação politécnica ou tecnológi-
A concepção de educação politéc- ca demanda uma implacável crítica à
nica relaciona-se de forma direta com exploração do trabalho infantil pelo

279
Dicionário da Educação do Campo

capital, mas isto não elide a dimensão achem natural a exploração do traba-
fundamental do trabalho como princí- lho alheio. Na expressão de Antonio
pio educativo no processo de sociali- Gramsci, para não criar mamíferos de luxo.
zação e constituição da personalidade A Educação do Campo, nos acam-
da criança e do jovem. Por isso, per- pamentos, na escola itinerante, nas es-
manece válido e necessário ainda hoje colas dos assentamentos, ao desenvol-
que, no processo educativo, “se dê a ver a educação intelectual e corpórea e
conhecer os princípios gerais de todos os princípios gerais dos processos de
os processos de produção e se inicie, produção, e a organização de peque-
ao mesmo tempo, a criança e o jovem nos trabalhos com sentido educativo,
no manejo dos instrumentos elemen- explicitam, de forma concreta, a con-
tais de todas as indústrias” (Marx, cepção de educação politécnica. Do
1983c, p. 60). mesmo modo, partindo dos sujeitos do
Em termos práticos, isso significa campo – crianças, jovens e adultos –
que é crucial que toda a criança e jo- na sua singularidade e particularida-
vem dediquem, em seu processo for- de dadas pela realidade, o horizonte
mativo, algum tempo a qualquer forma é o do acesso ao conhecimento em
de trabalho social produtivo, na família sua universalidade histórica possível,
e na instituição escola. E isto nada tem é o da construção de processos edu-
a ver com exploração do trabalho in- cativos, de conhecimento e processos
fantil. Pelo contrário, trata-se de socia- produtivos que apontam para uma
lizar, desde a infância, o princípio de sociedade sem classes, fundamento
que a tarefa de prover a subsistência da superação da dominação e aliena-
é comum a todos os seres humanos. ção econômica, cultural, educacional,
Trata-se de não criar indivíduos que política e intelectual.

Notas
1
Uma leitura interessante e didática para aqueles que buscam entender, na perspectiva
de Marx, a especificidade das relações sociais de produção na sociedade capitalista, é o livro de
José Paulo Netto e Marcelo Braz, 2008.
2
Tal domínio não se refere simplesmente a apreender os fundamentos da ciência burguesa
marcada por seus limites de classe e dentro de uma concepção fragmentária, atomizada,
funcionalista e pragmática da realidade. Trata-se de se apropriar, pelo método materialista
histórico, das determinações e mediações que permitem compreender como se produz a
realidade em todos os seus domínios. Nos termos de Marx, como assinala Barata-Moura
(1997), trata-se da busca da cientificidade do saber.
3
Vários estudos, com diferentes recortes, foram desenvolvidos no Brasil sobre educação
politécnica. Destacamos, além das análises já referidas de Saviani e Nosella, três outros: o
de Lucília Regina Machado (1989), que aborda a concepção de politecnia dentro da herança
do marxismo e da experiência socialista;; o de José Rodrigues (1998), que contextualiza a
gênese e o panorama geral das diferentes ênfases na abordagem da educação politécnica no
Brasil;; e o de Justino de Souza Júnior (2010), que traz esse debate dentro de uma retomada
ampla da obra de Marx e da crítica da educação.

280
Educação Politécnica

Para saber mais


BARATA-MOURA, J. Materialismo e subjetividade: estudos em torno de Marx. Lisboa:
Avante, 1997.
KOSIK, K. Dialética do concreto. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
E
MACHADO, L. R. DE S. Politecnia, escola unitária e trabalho. São Paulo: Cortez, 1989.
MANACORDA, M. A. Il marxismo e l’educazione: Marx, Engels, Lenin. Roma:
Armando, 1964
______. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez, 1991.
MARX, K. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983a. V. 1.
______. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Lisboa: Edições 70, 1989.
______. Prefácio. In: ______. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo:
Martins Fontes, 1983b.
______. Teses sobre Feuerbach. In:______. ENGELS, F. Obras escolhidas. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1988. V. 3.
______. Instr uções aos delegados do Conselho Central Provisório, AIT,
1966. In: ______. E N GEL S , F. Textos sobre educação e ensino. São Paulo:
Moraes, 1983c.
______;; ______. O manifesto comunista. In: LASKI, H. J. O manifesto comunista de Marx
e Engels. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
NETTO, J. P; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. 4. ed. São Paulo:
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NOSELLA, P. Trabalho e perspectiva de formação dos trabalhadores: para além
da formação politécnica. Revista Brasileira de Educação, Campinas, v. 12, n. 34,
p. 137-151, jan.-abr. 2007.
PISTRAK, M. M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1981.
______ (org.). A escola-comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
RODRIGUES, J. A educação politécnica no Brasil. Rio de Janeiro: Eduff, 1998.
SAVIANI, D. O choque teórico da politecnia. Trabalho, Educação e Saúde, v. 1, n. 1,
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SOUZA JÚNIOR, J. Marx e a crítica da educação. Aparecida: Ideias & Letras, 2010.

281
Dicionário da Educação do Campo

EDUCAÇÃO POPULAR
Conceição Paludo

A concepção de educação popular educação crítica, desnaturalizadora da


tem uma gênese, uma trajetória e uma ordem social, que eduque homens e
atualidade. É nesse movimento de es- mulheres para que atuem na direção da
crita que procuramos apresentar a edu- construção de outro projeto para a so-
cação popular. ciedade (Freitas, 2003).
Na modernidade, o ser humano é No que diz respeito ao Brasil e à
considerado livre e igual;; antes, ele era América Latina, Capitalismo dependente
tido como escravo e, depois, servo, o e classes sociais na América Latina, obra
que era compreendido como sendo de Florestan Fernandes (2009), permite
natural. Essa liberdade e igualdade, en- compreender o bloqueamento histórico
tretanto, não se concretizaram. A bru- para um desenvolvimento autônomo
talização do trabalho pelo capital, no e autossustentado. Ao analisar o de-
processo de constituição do modo de senvolvimento dos países, Fernandes
produção capitalista, desde cedo foi o explicita como o desenvolvimento so-
que impulsionou as críticas radicais ao ciocultural, político e econômico foi
novo modo de produção, à visão social sendo feito de modo “dependente” e
de mundo e ao poder político que iam “subordinado”. De acordo com o au-
se firmando. Também desencadeou a tor, nossas sociedades passaram do
luta pelos direitos, por condições dig- colonialismo para o neocolonialismo
nas de vida, e pela possibilidade de e para o capitalismo dependente sem
afirmação das identidades, enfim, as que se alterassem as condições que as
lutas dos movimentos reivindicatórios, tornam dependentes.
de contestação e de busca pelo poder
político do século XX. Essa dependência e subordinação
decorrem da articulação, que ainda se
Nesse processo é que vão deli- mantém, dos agentes econômicos in-
neando-se concepções diferenciadas ternos e externos na superexploração
de educação. Embora de modo sim- e na superexpropriação das riquezas/
plificado, é possível dizer que, de um força de trabalho, condenando os tra-
lado, temos as teorias da educação, balhadores do campo e da cidade às
e suas diversas vertentes, nomeadas condições de dependência necessárias
de liberais, cujo centro é transmissão de à reprodução desses mesmos agentes
conhecimentos, atitudes, valores e econômicos e de seus vínculos de domi-
comportamentos para a socialização nação. É por isso que, para Fernandes
submissa, para o mercado de trabalho (1981), em nossas sociedades, há uma
e para a naturalização, a aceitação e a convivência orgânica entre o arcaico e
reprodução da sociedade dividida em o moderno, no interior do “desenvol-
classes. De outro lado, temos as teorias vimento desigual e combinado”.
socialistas (críticas), também em suas
diversas vertentes, que propõem uma Fernandes (1981), entretanto, ad-
verte que a questão da dominação deve

282
Educação Popular

ser pensada amplamente. Os níveis são, trabalhadores mais empobrecidos na


de acordo com o autor, o ideológico, defesa de seus direitos;; dependendo da
o societário e o político. Quer dizer, a organização na qual se congregam, os
produção e a reprodução da socieda-
de capitalista se dão na sociedade e em
trabalhadores chegam inclusive a de-
fender e a lutar pela construção de uma E
suas instituições como um todo. É na nova ordem social.
esteira dessa forma de entendimento As raízes da educação popular são
que deve ser analisada a importância as experiências históricas de enfrenta-
e o papel da educação. Na sociedade mento do capital pelos trabalhadores
capitalista, como já se disse, o seu pa- na Europa, as experiências socialistas
pel é a formação de uma visão social do Leste Europeu, o pensamento pe-
de mundo que aceite a ordem, natura- dagógico socialista, as lutas pela inde-
lizando o modo de vida produzido pela pendência na América Latina, a teoria
sociedade (Frigotto, 1995) de Paulo Freire, a teologia da libertação
Em conexão com o contexto mais e as elaborações do novo sindicalismo e
amplo, na América Latina, as classes dos Centros de Educação e Promoção
populares ou os trabalhadores empo- Popular. Enfim, são as múltiplas expe-
brecidos, sem condições de reproduzir riências concretas ocorridas no con-
dignamente a sua vida material e espi- tinente latino-americano e o avanço
ritual, também desenvolveram articu- obtido pelas ciências humanas e sociais
lações, movimentos e lutas em defesa na formulação teórica para o entendi-
dos seus direitos. Especialmente entre mento da sociedade latino-americana.
os anos 1960 e 1990 foi se gestando A educação popular vai se firmando
uma concepção diferenciada de edu- como teoria e prática educativas alter-
cação, a da educação popular, que nativas às pedagogias e às práticas tra-
se tornou mundialmente conhecida dicionais e liberais, que estavam a ser-
(Brandão, 1994). viço da manutenção das estruturas de
Assim, é importante diferenciar poder político, de exploração da força
a educação dos populares ou dos tra- de trabalho e de domínio cultural. Por
balhadores empobrecidos que se faz isso mesmo, nasce e constitui-se como
com base nas das concepções liberais “PEDAGOGIA DO OPRIMIDO”, vinculada
de educação, em qualquer uma de suas ao processo de organização e prota-
vertentes, e a educação desses sujeitos gonismo dos trabalhadores do campo
que se faz a partir da concepção de e da cidade, visando à transformação
educação popular, cujo direcionamen- social.
to central do processo educativo é o No Brasil, é possível identificar
de estar a serviço dos interesses e das três momentos fortes de constituição
necessidades das classes populares, dos da educação popular anteriores aos
trabalhadores (Paludo, 2001). anos 1990. Esses momentos acompa-
A origem da concepção de educa- nham o processo de desenvolvimen-
ção popular, dessa forma, decorre do to brasileiro.
modo de produção da vida em socieda- O primeiro pode ser identificado
de no capitalismo, na América Latina em meados da Proclamação da Repú-
e também no Brasil, e emerge a partir blica (1889), estendendo-se até 1930.
da luta das classes populares ou dos Ele acontece no bojo das disputas pelo

283
Dicionário da Educação do Campo

controle do direcionamento do desen- que se estende até meados de 1990, a


volvimento, e representa o processo de educação popular firma-se como uma
transição da passagem de um mode- das concepções de educação do povo e
lo agrário-exportador para um modelo avança na elaboração pedagógica e nas
urbano-industrial. Naquele tempo, as práticas educativas, principalmente nos
primeiras teorizações e práticas educa- espaços não formais (Singer e Brant,
tivas alternativas foram as dos socialis- 1981). Nesse processo, há o reconhe-
tas, anarquistas e comunistas,1 e reme- cimento de que a educação formal é
tiam a processos formais e não formais um direito, e a escola deixa de ser in-
de educação, a partir de uma concep- terpretada somente como reprodutora.
ção educativa que tinha elementos de Ela passa a ser considerada um espaço
diferenciação tanto da pedagogia tradi- importante de disputa de hegemonia
cional quanto da pedagogia da Escola e de resistência. Diversas concepções
Nova que ia emergindo. educativas estão presentes nas suas
Com a Revolução de 1930, o Brasil práticas: concepção de educação po-
passa pela ditadura do Estado Novo pular, teorias não diretivas, pedagogia
(1937-1945) e pelo chamado “breve pe- da Escola Nova, pedagogia tradicional,
ríodo democrático” (1945-1964). É nes- pedagogia tecnicista (Saviani, 2007).
se último período, no confronto entre A educação popular que se firma
projetos para o Brasil, que mais uma vez nesse período acumula praticamente e
emerge a concepção de educação popu- teoricamente uma concepção de edu-
lar, com a criação dos movimentos de cação. Esse projeto educativo é simbo-
educação popular.2 Três orientações pe- lizado pela educação dos e por meio
dagógicas, estreitamente ligadas às for- dos movimentos sociais populares. As
ças políticas e às disputas pela direção expressões “povo sujeito de sua histó-
do desenvolvimento, confrontavam-se: ria” (marco ontológico);; “conscientiza-
a pedagogia tradicional, a pedagogia da ção”,4 “organização”, “protagonismo
Escola Nova e a concepção de educação popular” e “transformação” (marco
popular, com forte influência da teoria político e da finalidade da educação);;
de Paulo Freire. Nesse momento do e os métodos prática-teoria-prática,
processo histórico brasileiro, a educação
ver-julgar-agir e ação-reflexão-ação
popular toma a forma do que ficou sen-
(marco epistemológico e pedagógico),
do conhecido como “a cultura popular
representam a orientação das práticas
dos anos 1960” (Fávero, 1983).
educativas desde a concepção de edu-
O Golpe de 1964 representa a op- cação popular. Estabelece-se, desse
ção por um projeto de desenvolvimento modo, o vínculo entre educação e polí-
cada vez mais associado e subordinado tica, educação e classe social, educação
ao capital internacional. No contexto e conhecimento, educação e cultura,
da ditadura, sob a influência das teo- educação e ética, e entre educação e
rias crítico-reprodutivistas e de deses- projeto de sociedade. A educação defi-
colarização, ampliam-se as análises do nitivamente deixa de ser prática neutra
Estado e da escola como aparelhos de e ganha o significado de ato político
reprodução da ordem do capital. (Freire, 1985), realizando a formação
A partir de 1978, há a (re)emergên- política e a conscientização para a ação
cia das lutas populares.3 Nesse período, e relacionando a formação com os

284
Educação Popular

processos de luta e de organização das dronização educacional que ocorre em


classes populares. nível mundial. Se a educação é funda-
Na atualidade, na América Latina mental para que uma sociedade perdu-
e também no Brasil, não há mais uma
identidade forte, de origem, na forma
re, é igualmente importante a reprodu-
ção de valores, de forma bem-sucedida, E
de compreender a educação popular em cada pessoa (Mészáros, 2002). Essa
(Holliday, 2005). A crise que se aba- colocação possibilita compreender as
teu sobre a esquerda mundial, dadas dificuldades de se instituir a concep-
as novas formas de hegemonia do ca- ção de educação popular na escola e
pitalismo no mundo, não possibilita, como política pública no Brasil e na
igualmente, que as respostas à hegemo- América Latina.
nia do capital sejam tratadas de forma Na atualidade brasileira, a Educa-
homogênea pelos diferentes países. ção do Campo pode ser identificada
As sim, as estratégias adotadas são di- como uma das propostas educativas
ferenciadas (Sader, 2009). que resgata elementos importantes da
No Brasil, entre muitos outros as- concepção de educação popular e, ao
pectos, é possível dizer que há uma mesmo tempo, os ressignifica, atuali-
fraca menção à classe social como ca- za e avança nas formulações e práticas
tegoria importante para a análise da direcionadas a um público específico.
realidade;; a inclusão social, como ho- Essa é uma importante experiência
rizonte utópico, toma o lugar do so- existente no Brasil, protagonizada pe-
cialismo, e muito pouco se discute um los próprios sujeitos populares, apesar
projeto civilizatório. Movimento social de alguns “transformismos”, realizados
passa a ser um grande “guarda-chuva”, pelo próprio Estado e por outras insti-
sob o qual se abrigam diferentes con- tuições. Seus impulsionadores são os
cepções cujas discussões não explicitam movimentos populares do campo. Me-
seus pressupostos;; deixa-se de realizar rece destaque o protagonismo do
a formação política: a importância da Movimento dos Trabalhadores Rurais
conscientização política é praticamen- Sem Terra (MST). No atual momento
te negada. A via eleitoral e o terceiro histórico brasileiro, é esse movimento,
setor são assumidos como estratégia: sem dúvida, o que mais tem contribuí-
espaço das lutas e da possibilidade de do na discussão e efetivação de expe-
inclusão social. Tudo se faz em nome riências de processos não formais, a
dos e para os pobres, que já não são chamada formação política, e de uma
sujeitos de seu processo de libertação. nova educação e uma nova escola,
O pensamento crítico parece ter cedi- que resgatam os lineamentos centrais
do lugar à naturalização de tudo o que da educação popular (Caldart, 2010;;
existe e acontece (Leher, 2007). Munarim et al., 2010).
No âmbito da educação, que não A educação popular na escola pú-
pode ser analisada de modo descolado blica continuará a ser um projeto em
do contexto mais amplo, há a retoma- construção. O que se pode e se deve
da da concepção de educação popular, fazer é retomar o seu sentido de ori-
na ideia de sua construção como polí- gem e construir projetos e propostas
tica pública, sem maiores discussões da de resistência, com esperança, mas sem
implicação disso – por exemplo, a pa- ilusões, porque, sob o capital, a esco-

285
Dicionário da Educação do Campo

la pública e popular sempre será algo repensar a nova sociedade, a nova edu-
pelo qual vale lutar, dada a importância cação e a nova escola.
da educação dos trabalhadores, e para A educação popular, em sua origem,
os processos transformadores (Vale, indica a necessidade de reconhecer o
2001). Como resistência e, portanto, movimento do povo em busca de direi-
como contra-hegemonia, ela demanda tos como formador, e também de voltar
que, além da atuação no interior das a reconhecer que a vivência organizativa
escolas, a inserção dos educadores seja e de luta é formadora. Para a educação
também ativa nas lutas dos trabalhado- popular, o trabalho educativo, tanto na
res, ou seja, há uma opção política de escola quanto nos espaços não formais,
“fazer com”. A resistência exige “um visa formar sujeitos que interfiram para
pé na escola e um pé na sociedade”, transformar a realidade. Ela se consti-
nos espaços de organização dos tra- tuiu, ao mesmo tempo, como uma ação
balhadores. É a resistência à lógica do cultural, um movimento de educação
capital que amplia as possibilidades de popular e uma teoria da educação.

Notas
1
Os libertários, no início do século XX, não lutavam pelo ensino público e gratuito. Inspira-
dos em Ferrer, desenvolveram a chamada educação racionalista e fundaram a Universidade
Popular e dezenas de escolas modernas, que eram autossustentadas (ver Ghiraldelli, 1987).
2
Por exemplo, o Movimento de Cultura Popular (MCP), criado em 1960, no Recife, por
Paulo Freire;; o Movimento de Educação de Base (MEB), criado em março de 1961 pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB);; o Centro de Popular de Cultura (CPC),
criado em 1961 pela União Nacional dos Estudantes (UNE);; e o Plano Nacional de Alfabe-
tização (PNA), criado em 1963 por Paulo Freire, no Governo João Goulart.
3
Nesse período, surgem ou ressurgem, entre outros, as comunidades eclesiais de base
(CEBs), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e
diversas outras pastorais populares e movimentos de bairros, além da Articulação dos Mo-
vimentos Populares ou Sindicais (Anampos). Houve também a rearticulação do movimento
sindical – Com a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da Central Geral dos
Trabalhadores (CGT) e da União Sindical Independente (USI);; a organização do Movi-
mento Negro Unificado (MNU), do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua
(MNMMR), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento
das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) – hoje Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC Brasil) –, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Movimento de
Luta pela Moradia (MLM) e do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).
4
Vale pontuar que a conscientização, hoje, não pode mais ser compreendida somente como
conscientização política, que se traduz na capacidade de leitura da estrutura e dinâmica da so-
ciedade capitalista, na tomada de posição e inserção efetiva nos processos de luta. É preciso que
se trabalhe (e se pratique), nos processos educativos e nos espaços organizativos, com a ideia de
formação de uma consciência ampliada e da formação omnilateral, formação humana.

Para saber mais


BRANDÃO, C. R. Os caminhos cruzados: formas de pensar e realizar a educação
na América Latina. In: GADOTTI, M.; TORRES, C. A. (org.). Educação popular: utopia
latino-americana. São Paulo: Cortez, 1994. p. 23-49.

286
Educação Popular

CALDART, R. (org.). Caminhos para a transformação da escola. São Paulo: Expressão


Popular, 2010.
FÁVERO, O. (org.). Cultura popular, educação popular, memória dos anos 60. Rio de
Janeiro: Graal, 1983. E
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
______. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 4. ed. São Paulo:
Global, 2009.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
FREITAS, L. C. de. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. 6. ed. São
Paulo: Papirus, 2003.
FRIGOTTO, G. Educação e crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1995.
GHIRALDELLI, P. Educação e movimento operário. São Paulo: Cortez, 1987.
HOLLIDAY, O. J. Ressignifiquemos as propostas e práticas de educação popular
perante os desafios históricos contemporâneos. In: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Educação popular na
América Latina: diálogos e perspectivas. Brasília: Unesco/MEC/CEAAL, 2005.
p. 233-239.
LEHER, R. Educação popular como estratégia política. In: JEZINE, E.; ALMEIDA,
M. L. P. de (org). Educação e movimentos sociais: novos olhares. São Paulo: Alínea,
2007. p. 20-32.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo;; Campinas: Editora da
Unicamp, 2002.
MUNARIM, A. et al. Educação do campo: reflexões e perspectivas. Florianópolis:
Insular, 2010.
PALUDO, C. Educação popular em busca de alternativas: uma leitura desde o campo
democrático e popular. Porto Alegre: Tomo, 2001.
SADER, E. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalha-
dores na Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
______. A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo:
Boitempo, 2009.
SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. São Paulo: Autores Associados, 2007.
SINGER, P.; BRANT, V. C. (org.). O povo em movimento. Rio de Janeiro: Vozes, 1981.
VALE, A. M. Educação popular na escola pública. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

287
Dicionário da Educação do Campo

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
Isabel Brasil Pereira

Comecemos pela compreensão da de representação orgânica da sociedade.


educação profissional como um campo Orientado pela dualidade pautada pelo
em disputa entre projetos hegemôni- lugar a ocupar no modo de produção
cos voltados ao capital e projetos ou- capitalista, o ensino secundário, com
tros de educação do trabalhador como formação humanística e científica (clás-
resistência (reação e criação) ao modo sico e científico), continua a preparar
de produção de vida existente. para a universidade e o ensino técnico-
Com olhar histórico, observemos profissionalizante está voltado para a
que, na gênese dos patronatos e dos formação para o trabalho. Define-se,
aprendizados que vigoraram até mea- com isso, uma hierarquia do acesso a
dos do século XX, está presente o oportunidades e postos de mando na
ideário dos órfãos e desvalidos a serem sociedade, com uma clivagem de classe
redimidos e salvos pelo saber trabalhar que não escapa à análise crítica, tendo
para o capital. Em 1909, são criadas es- ao fundo uma bem nítida divisão entre
colas de aprendizes artífices que seriam trabalho intelectual e trabalho manual.
mantidas pelo Ministério da Agricul- Como ajuda a entender Romanelli
tura, Indústria e Comércio. Nos anos (1989), a Reforma Capanema (como
1930, Fernando de Azevedo, expoente ficaram conhecidas as Leis Orgânicas
da Escola Nova no Brasil, dedica um do Ensino), referente ao ensino pro-
capítulo de Novos caminhos, novos fins fissionalizante, não vislumbra poder
(1931) à chamada “educação profissio- atender, de imediato, às demandas e
nal” (Pereira e Lima, 2009). ao modelo de trabalhador para o pro-
Na ditadura do Estado Novo, são cesso de industrialização. Este foi um
promulgadas leis orgânicas de ensino: dos motivos da criação do Serviço Na-
a Lei Orgânica do Ensino Secundário, cional da Indústria (Senai), em 1942,
ou decreto-lei no 4.244 (Brasil, 1942b);; e do Serviço Nacional do Comércio
o decreto-lei no 4.073 (Brasil, 1942a), (Senac), em 1946, em convênio com a
que organizava o ensino industrial;; e, Confederação Nacional de Indústrias
em dezembro de 1943, a Lei Orgâni- (CNI) e a Confederação Nacional do
ca do Ensino Comercial (Brasil, 1943). Comércio (CNC). A criação do Senai e
Essas leis passam a influir, a disciplinar do Senac pôs em evidência mudanças
e a definir pontos importantes no mun- e permanências da passagem da socie-
do do trabalho comercial e industrial, dade escravista para a republicana, da
mostrando a clara intenção de ocupar economia exportadora de matérias-
espaço político pela via pública e bu- primas para o processo de substituição
rocrática, diminuindo, assim, a influên- de importações, industrializando o país
cia dos opositores organizados na vida e buscando criar um mercado interno
civil da sociedade, não tutelados pelo brasileiro. Porém, para tanto, era ne-
Estado e não integrados a seu projeto cessária uma formação profissional

288
Educação Profissional

que a imensa maioria dos trabalhado- sequente alteração da estrutura social


res brasileiros não tinha;; tanto naquela brasileira, baseada tanto no aporte de
época quanto hoje em dia, a formação capital estrangeiro quanto nos subsídios
é importante para esta ou aquela eta-
pa de desenvolvimento do capitalismo.
e incentivos fiscais ao capital nacional.
Em 1971, é criada uma nova LDB,
E
Não é, portanto, uma necessidade hu- a de no 5.692 (Brasil, 1971). Agora, a
manista, mas uma necessidade prática universalização da profissionalização
para a acumulação privada da riqueza se pretende de modo compulsório no
social gerada pela modernização. ensino de segundo grau. No bojo do
Em 1946, após a queda do Esta- nacional-desenvolvimentismo, ganham
do Novo, foi promulgada uma nova protagonismo a tecnicização da edu-
Constituição no país. A Constituição cação e a adequação das gerações ao
de 1946 instituiu a obrigatoriedade da domínio da técnica e da tecnocracia na
aplicação de um percentual mínimo de organização e na produção das relações
recursos por parte da União e dos es- sociais. A década de 1970 é, para mui-
tados, e estabeleceu que a União deve tos, o período mais representativo de
legislar sobre as diretrizes e bases da uma modernização conservadora, pe-
educação nacional. Assim, foram cria- los altíssimos índices de crescimento
das as leis do ensino primário e o ensi- econômico convivendo com a enorme
no normal. O ensino primário apresen- taxa de concentração de renda e a ex-
tava duas modalidades: o fundamental, clusão de grande parte da população
em quatro anos, e o supletivo, em dois. da cobertura dos serviços públicos
Merece destaque o decreto-lei de 1946 básicos. Nesse contexto, a educação
para regular o ensino técnico agrícola, receberá incumbência de fator de
o ensino de iniciação agrícola, e os cur- produção, um capital essencial para a
sos pós-técnicos agrícolas. sociedade do conhecimento e da com-
petitividade tecnológica – a competiti-
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB)
vidade como atualização constante do
no 4.024, de 1961 (Brasil, 1961), con-
“recurso humano-produtivo”.
servou a estrutura da educação profis-
sional e os marcos da década de 1940 Por outro lado, projetos educacio-
relativos à reprodução da dualidade nais significativos construídos como
estrutural social por meio da dualida- resistência à ordem capitalista podem
de educacional. A educação “huma- ser exemplificados. Na década de
nística” se mutilava pela ausência da 1980, os movimentos sociais do cam-
materialidade de sentido e pelo vezo po, com destaque para o Movimento
acadêmico-generalista, com propostas dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
de forte perfil classista. Na ditadura (MST), reivindicam políticas públicas
civil-militar, posta a serviço do modelo para a educação do campo como par-
de desenvolvimento econômico-social te da sua luta pela Reforma Agrária e
do período, a LDB de 1961 favoreceu contra a desigualdade.
o sistema educacional dos setores em- Também na contracorrente, a no-
presariais, o Sistema S,1 composto por ção de politecnia ganha materialidade,
entidades dedicadas à educação profis- com a criação da Escola Politécnica
sional pautada pela intensificação da in- de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV),
dustrialização, da urbanização e da con- uma das precursoras do ensino técnico

289
Dicionário da Educação do Campo

integrado na educação profissional e educação profissional é organizada em


da iniciação científica no ensino médio três níveis: formação inicial e continua-
e na educação profissional. da ou qualificação profissional;; técni-
A década de 1990 foi a de imple- co de nível médio (forma integrada,
mentação de ajustes neoliberais no concomitante e subsequente);; e tec-
ordenamento jurídico, político e ins- nólogo (superior). Há que se registrar
titucional da educação nacional. A a política de integração da educação
sociedade do “conhecimento”, dese- profissional com a educação de jovens
nho edulcorante de nova organização e adultos materializada no Programa
valorativo-cultural para o novo modelo Nacional de Integração da Educação
de acumulação do capital, e o mode- Profissional com a Educação Básica na
lo flexível pós-fordista chegam com o Modalidade de Educação de Jovens e
Governo Fernando Henrique Cardoso Adultos (Proeja).
e sua agenda de reforma do Estado, ou No debate atual da educação profis-
seja, retração e cessão dos domínios sional, traduzido no Plano Nacional de
públicos para a iniciativa privada. Palco Educação (PNE) 2011-2020, notamos
de embates, a LDB no 9.394, de 1996 que é sob o mote da universalização do
(Brasil, 1996), eleva a educação profis- ensino médio que aparecem as primei-
sional à modalidade de ensino. O de- ras referências à educação profissional,
semprego estrutural pauta a formação tais como: fomentar a expansão das
do ensino médio para a empregabilida- matrículas do ensino médio integrado
de, ou seja, finaliza a mediação do tra- à educação profissional, observando-se
balhador instrumental e flexivelmente as peculiaridades das populações do
adaptado à nova proposta de sociabi- campo, dos povos indígenas e das co-
lidade capitalista. O trabalhador será munidades quilombolas;; fomentar a
um cidadão competente, preparado expansão da oferta de matrículas gra-
para a incerteza e o imprevisto da vida, tuitas de educação profissional técnica
capaz de resolver problemas no pos- de nível médio por parte das entidades
to de trabalho. “Competências”, eis o privadas de educação profissional vin-
nome que consagra a concepção peda- culadas ao sistema sindical, de forma
gógica que sustenta esse novo homem, concomitante ao ensino médio públi-
a nova sociedade do conhecimento. Tal co;; e fomentar programas de educação
reforma foi formalizada pelo decreto de jovens e adultos para a população
nº 2.208/1997 (Brasil, 1997) para a urbana e do campo na faixa de 15 a 17
educação profissional, regulamentan- anos, com qualificação social e profis-
do sua dissociação da educação básica sional para jovens que estejam fora da
e matriciando as diretrizes curriculares escola e com defasagem série-idade.
também pelas competências técnicas
Cabe ressaltar o Programa Na-
e genéricas.
cional de Acesso à Escola Técnica
Contudo, somente na década se- (Pronatec), implantado em 2011. Tra-
guinte, o decreto no 5.154/2004 (Brasil, ta-se de um conjunto de ações voltadas
2004) cria a base jurídica para a reali- para estudantes e trabalhadores. Para
zação de uma educação profissional tanto, o Fundo de Financiamento ao
integrada à educação básica, e não Estudante do Ensino Superior (Fies)
meramente justaposta. A modalidade passa a se incorporar ao Pronatec,

290
Educação Profissional

pois, agora, a direção do financiamen- ao nível superior. O problema, entre-


to se alarga para possíveis instituições tanto, não é, decerto, a certificação e
de educação profissional privada. Daí, a incorporação ao sistema educacional
duas linhas de ação se estruturam. A
primeira objetiva dar acesso aos cursos
de segmentos injustamente excluídos,
mas a melhor definição dos critérios E
subsequentes e concomitantes das insti- de uso desse expediente;; pois o que
tuições privadas por financiamento. Na ocorre é que, atingida a idade de 18
segunda, uma bolsa será concedida para anos, estudantes da educação básica
os beneficiários do seguro-desemprego. podem abandonar a trajetória con-
A Secretaria de Educação Profis- clusiva de suas escolas e ganhar apro-
sional e Tecnológica do Ministério da vação/certificação e acesso ao ensino
Educação (Setec/MEC), responsável superior, caso aprovados no Enem. A
pela gestão da educação profissional na educação profissional integrada, com
estrutura do MEC, está organizada de isso, pode ser interrompida, ficando
modo a tornar explícitas as suas ações seriamente ameaçada.
e prioridades. Ela se compõe de três di-
retorias: a primeira, de gestão e desen- Educação profissional para
volvimento da rede federal;; a segunda, o campo
dedicada ao fortalecimento da educa-
ção profissional no sistema estadual, No cenário atual, cabe ainda ressal-
por meio do Brasil Profissionalizado,2 tar experiências educativas na educação
ao controle e supervisão do acordo de profissional pautadas por outros ru-
gratuidade com o Sistema S, ao desen- mos e fins que não sejam os da repro-
volvimento dos projetos especiais na dução de desigualdades sociais. Como
rede federal (programas de extensão e exemplo, a educação profissional rei-
qualificação profissional), ao sistema vindicada pelos campesinos, que une
Escola Técnica Aberta do Brasil (e-Tec à tríade “campo, políticas públicas e
Brasil)3 (dentro do Brasil Profissionali- educação” princípios como: o trabalho
zado), e à gestão do Pronatec;; e a tercei- como princípio pedagógico – inspira-
ra, de políticas de articulação institucio- do em Makarenko e Pistrak;; o encontro
nal com a rede federal e de definição e com a educação politécnica;; a técnica
orientação curricular, formação docen- e a ciência como produtoras de tec-
te, gestão para a educação profissional, nologias sociais;; a cultura como prin-
pesquisa e inovação tecnológica etc. cípio pedagógico;; e a relação campo–
Uma questão que inflexiona o en- cidade de modo crítico, ao pensar
sino médio integrado à educação pro- a totalidade da formação da classe
fissional é a possibilidade de o Exame trabalhadora brasileira.
Nacional do Ensino Médio (Enem) Há que se ressaltar que a educação
certificar por meio das secretarias esta- profissional reivindicada pela educação
duais e institutos tecnológicos, e, por- do campo não é a mesma coisa que es-
tanto, há considerações que devem ser cola agrícola. Inclui a preparação para
feitas pois, com isso, é possível conferir diferentes profissões que são necessá-
mais agilmente certificado a quem está rias ao desenvolvimento do território
fora da escola, e estimular esses gru- camponês, cuja base de desenvolvimen-
pos a voltarem a estudar pelo acesso to está na agricultura – agroindústria,

291
Dicionário da Educação do Campo

gestão, educação, saúde, comunica- LUÇÃO VERDE ocorrida a partir da déca-


ção etc. – e se relaciona ao acesso dos da de 1950, limitava-se a repetir as fór-
camponeses à educação e particular- mulas tradicionais de dominação, e a
mente à educação escolar, incluída nela educação não fez resistência ao proces-
os cursos de educação profissional. so expropriador do homem do campo.
O censo agropecuário de 2006 traz o Como contraponto educativo e peda-
dado de que, em nosso país, 30% dos gógico à educação do capital, nas es-
trabalhadores rurais são analfabetos, e colas com participação do MST há ex-
80% não chegaram a concluir o ensino periências do ensino técnico integrado
fundamental. Ou seja, a moral é lím- ao ensino médio, articulado à luta pela
pida: o debate sério sobre a educação Reforma Agrária, em que orientações
profissional está atrelado à necessidade curriculares comuns merecem desta-
urgente de políticas de universalização que: a defesa da forma integrada para
da educação básica e de democrati- o ensino técnico de nível médio;; o tra-
zação do acesso à educação superior balho como princípio educativo;; o
(Caldart, 2010, p. 229-241). trabalho como princípio pedagógico,
O ensino agrícola é pautado, ao lon- produzindo o cuidado das pessoas e do
go da República, nos projetos governa- ambiente;; a iniciação científica no ensi-
mentais de educação rural, pela visão do no técnico;; a pedagogia da alternância
desenvolvimento a qualquer preço, por (tempo escola e tempo comunidade);;
promessas que o capitalismo não pode a leitura como ato ativo e produtivo;;
cumprir, apontando para uma pretensa o trabalho no campo como ato peda-
fixação dos trabalhadores no campo, gógico;; e a formação política e cultural
sem qualquer horizonte de mudança como contraponto à semicultura.
na posse e distribuição da terra, ou no Uma das inúmeras experiências que
modo de produção da existência. constituem o sentido do termo educa-
Ao se fazer um resumo da forma- ção profissional construído pelos mo-
ção histórica do Brasil, vale lembrar vimentos sociais do campo é a Escola
que o país se desenvolve, como colônia Agrícola 25 de Maio, e, mais especifi-
de Portugal, tendo como referência na camente, seu curso técnico de Agrope-
produção o latifúndio, a escravidão e cuária, com ênfase em Agroecologia.
a exportação de matérias-primas. Mes- Localizada em área de assentamento de
mo com a República, no final do século Reforma Agrária, na região meio-oeste
XIX, o sistema da grande propriedade de Santa Catarina, construída em 1988
rural continua dominante. Ao longo e fundada em 1989 no Assentamento
do século XX, a modernização con- Vitória da Conquista, no município
servadora do Brasil reproduz o atraso de Fraiburgo, foi criada em convênio
dos séculos coloniais, tentando sempre com o governo federal e a Secretaria
manter a estrutura do privilégio e da Estadual de Educação, em conjunto
dominação. Não é difícil perceber nas com a comunidade. Seu nome faz re-
políticas de formação dos trabalhado- ferência ao 25 de maio de 1985, dia em
res modos de regulação social que per- que ocorreu uma grande ocupação de
mitem manter vivo o latifúndio. terras no município de Abelardo Luz
A política de formação técnica (SC). O referido curso prioriza a cole-
agrícola, chamada a responder à REVO- tividade, a autonomia e a emancipação

292
Educação Profissional

camponesa diante do modelo agroin- experiências, ressaltamos, na educa-


dustrial instalado no campo brasilei- ção profissional, a realização do Curso
ro. E aponta, além da agroecologia, o de Especialização Técnica em Saúde
sistema de cooperativas de produção,
pois se constituem na forma adota-
Ambiental, parceria entre o MST e a
EPSJV/Fiocruz. Nesse curso, politecnia E
da pelo MST, como via de fortaleci- e educação do campo se combinam.
mento e coesão dos assentados, em ter- Por fim, a educação profissional,
mos produtivos, econômicos, sociais e como aquela reivindicada e construída
políticos, visando manter o sentido do como resistência – reação e criação –
trabalho coletivo e solidário na produ- pelos movimentos de trabalhadores
ção agrícola (Blanc, 2009, p. 109). campesinos no contexto das lutas pela
Outra experiência de educação Reforma Agrária, pela terra e pelos di-
profissional são os cursos desenvol- reitos sociais, políticos e culturais, nesta
vidos no Instituto de Educação Josué formação histórica chamada capitalis-
de Castro, localizado em Veranópolis mo, é criação coletiva e resposta crítica
(RS). Algumas linhas críticas de tra- às políticas governamentais hegemôni-
balho desenvolvidas, por exemplo, no cas destinadas à formação dos trabalha-
curso de Agente Comunitário de Saú- dores. Tem como norte uma educação
de são as seguintes: integração entre o profissional campesina crítica de um
ensino técnico e o médio, tendo como projeto de educação rural que vislumbra
meta enfrentar a fragmentação da for- a formação profissional dos trabalhado-
mação técnica agrícola;; estratégias res do campo em função da dinâmica
curriculares, como a integração entre do capital, que aparta a relação entre
conceitos, buscando o conhecimento campo e cidade, colocando em posição
interdisciplinar;; inserção de conteú- subalterna os valores éticos, políticos,
dos ausentes do currículo – por exem- culturais e econômicos do campo em
plo, a história das lutas em território relação aos valores e a produção de vida
campesino;; abordagem de conteú- na cidade. Por essa linha, equivocada, a
dos de ciência e tecnologia social, intenção é romper a relação que liga os
assim como de práticas de saúde afina- trabalhadores do campo e da cidade, em
das com as características do campo e seus contextos próprios e específicos,
da cultura campesina. no conjunto da produção e da reprodu-
Dentre as inúmeras parcerias en- ção do sistema capitalista, perdendo de
tre instituições públicas e movimentos vista, justamente, a dialética que relacio-
do campo, que se traduzem em ricas na o campo e a cidade.

Notas
1
O chamado Sistema S é composto pela seguintes entidades: Serviço Social da Indústria
(Sesi), Serviço Nacional da Indústria (Senai), Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço
Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural
(Senar), Serviço Social do Transporte (Sest), Serviço Nacional de Aprendizagem em Trans-
porte (Senat) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop).
2
Criado em 2007 e constituindo uma das metas do Plano de Desenvolvimento da Educação
(PDE), o programa Brasil Profissionalizado visa fortalecer as redes estaduais de educação

293
Dicionário da Educação do Campo

profissional e tecnológica mediante repasse de recursos do governo federal para os estados


investirem em suas redes de escolas técnicas.
3
Também lançado em 2007, o sistema Escola Técnica Aberta do Brasil (e-Tec Brasil) visa
à oferta de educação profissional e tecnológica a distância e tem o propósito de ampliar
e democratizar o acesso a cursos técnicos de nível médio, públicos e gratuitos, em regi-
me de colaboração entre União – com a assistência financeira –, estados, Distrito Federal
e municípios – com estrutura, equipamentos, recursos humanos, manutenção das atividades
e demais necessidades para os cursos, sempre ministrados por instituições públicas.

Para saber mais


AZEVEDO, F. Novos caminhos, novos fins. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1931.
BLANC, F. W. O espaço agrário, a educação do campo e a formação técnica em agroecologia
no MST. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação, Cultura e Comunicação em
Periferias Urbanas) – Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universi-
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______. Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004: regulamenta o § 2º do art. 36
e os arts. 39 a 41 da lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 26 jul. 2004.
______. Decreto-lei no 4.073, de 30 de janeiro de 1942: Lei Orgânica do Ensino
Industrial. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, p. 1.007, 9 fev. 1942a.
______. Decreto-lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942: Lei Orgânica do Ensino
Secundário. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, p. 5.798, 10 abr. 1942b.
______. Decreto-lei nº 6.141, de 28 de dezembro de 1943: Lei Orgânica do
Ensino Comercial. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, p. 19.217, 31 dez. 1943.
______. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961: fixa as Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, p. 11.429, 27 dez. 1961.
______. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971: fixa diretrizes e bases para o ensi-
no de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, seção
1, p. 6.377, 12 ago. 1971.
______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabelece as Diretrizes e Bases
da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, p. 27.833, 23 dez.
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Educação Rural

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ROMANELLI, O. História da educação no Brasil. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1989.

EDUCAÇÃO RURAL
Marlene Ribeiro

Para definir educação rural é preciso Destinada a oferecer conhecimen-


começar pela identificação do sujeito a tos elementares de leitura, escrita e
que ela se destina. De modo geral, “o operações matemáticas simples, mes-
destinatário da educação rural é a po- mo a escola rural multisseriada não tem
pulação agrícola constituída por todas cumprido esta função, o que explica as
aquelas pessoas para as quais a agri- altas taxas de analfabetismo e os baixos
cultura representa o principal meio de índices de escolarização nas áreas ru-
sustento” (Petty, Tombim e Vera, 1981, rais. “A escola procurou formar grupos
p. 33). Trata-se dos camponeses, ou sociais semelhantes aos que vivem nas
seja, daqueles que residem e trabalham cidades, distanciados de valores cultu-
nas zonas rurais e recebem os menores rais próprios” (Petty, Tombim e Vera,
rendimentos por seu trabalho. Para es- 1981, p. 38). Assim se explica a razão
tes sujeitos, quando existe uma escola pela qual, na América Latina, observa-
na área onde vivem, é oferecida uma se uma multiplicidade de culturas po-
educação na mesma modalidade da que pulares que poderiam ser consideradas
é oferecida às populações que residem e pela escola rural, mas não o são.
trabalham nas áreas urbanas, não haven- Os filhos dos camponeses expe-
do, de acordo com os autores, nenhuma rimentam uma necessidade maior de
tentativa de adequar a escola rural às aproximação entre o trabalho e o estu-
características dos camponeses ou dos do, visto que a maior parte deles ingres-
seus filhos, quando estes a frequentam. sa cedo nas lidas da roça para ajudar a

295
Dicionário da Educação do Campo

família, de onde se retira a expressão lhar nas áreas rurais. Ele registra que “os
agricultura familiar. Mas na escola ape- programas de alfabetização – as esporá-
nas se estuda, e este estudo nada tem dicas campanhas nacionais de que temos
a ver com o trabalho que o camponês conhecimento – pouca relação têm com
desenvolve com a terra. Assim, o tra- a escola rural” (ibid., p. 99). Outra carac-
balho produtivo articulado à unidade terística identificada na educação rural
familiar que se envolve com este traba- pelo mesmo autor é a sua desvinculação
lho assume papel essencial no proces- da comunidade dos trabalhadores rurais
so educativo de ingresso e participação que enviam seus filhos à escola.
ativa do camponês no corpo social. Compreendida no interior das rela-
Portanto, não é da escola a tarefa pri- ções sociais de produção capitalista, a
mordial de formar as crianças campo- escola, tanto urbana quanto rural, tem
nesas, tanto porque estas quase sempre suas finalidades, programas, conteúdos
ingressam mais tarde no processo de e métodos definidos pelo setor indus-
escolarização – e permanecem pouco trial, pelas demandas de formação para
tempo nele envolvidas – quanto pelas o trabalho neste setor, bem como pe-
deficiências peculiares à instituição las linguagens e costumes a ele ligados.
escolar. A permanência das crianças Sendo assim, a escola não incorpora
na escola depende do que esta pode questões relacionadas ao trabalho pro-
oferecer em relação às atividades práti- dutivo, seja porque, no caso, o trabalho
cas relativas ao trabalho material como agrícola é excluído de suas preocupa-
base da aprendizagem, ou seja, da pro- ções, seja porque sua natureza não é a
dução de conhecimentos. de formar para um trabalho concreto,
Todavia, um dos maiores proble- uma vez que a existência do desempre-
mas da modalidade de formação que go não garante este ou aquele trabalho
relaciona o estudo, feito na escola, ao para quem estuda. E, ainda, como a es-
trabalho produtivo, feito na terra, é o cola poderia valorizar a agricultura, tão
que Petty, Tombim e Vera (1981) iden- desvalorizada nas concepções que sus-
tificam como a capacitação dos docen- tentam ser o camponês um produtor
tes para que eles possam corresponder arcaico e um ignorante em relação aos
às necessidades da educação no meio conhecimentos básicos de matemática,
rural, em particular a que relaciona leitura e escrita?
trabalho e escola. Entre as alternativas Nos países latino-americanos, a edu-
para a formação de professores, en- cação rural voltada para o desenvolvi-
contradas na época em que esses au- mento econômico esteve, em determi-
tores escreveram seu artigo, estavam as nado período histórico (que se iniciou
escolas normais rurais. nos anos 1930, se intensificou nos
Chamando a atenção para esta pro- anos 1950-1960, e se estendeu até
blemática, João Bosco Pinto (1981) os anos 1970), associada à Reforma
refere-se aos professores justificando Agrária. Para o modo de produção ca-
que eles não recebem uma formação pitalista vigente nestes países, a exis-
adequada para lidar com a realidade do tência do latifúndio nem estimulava a
campesinato, por isso seu desinteresse penetração do capital no campo, sob
em estabelecer relações com as comu- forma de investimentos em maquina-
nidades, quando encaminhados a traba- rias e uso de tecnologias de produção,

296
Educação Rural

nem contribuía para a proletarização ção técnico-profissional em resposta


dos camponeses. Sobre isso, Ashby à demanda de uma força de trabalho
et al. (1981) chamam a atenção para a qualificada tanto na indústria quan-
barreira da estrutura de ocupação da
terra pelo latifúndio, que utiliza pe-
to na agricultura. Nesse contexto de
modernização associada ao desenvol- E
quena parcela de força de trabalho, e vimento do capitalismo no campo, se
pelos minifúndios, cuja produção se coloca a questão da Reforma Agrária,
baseia na força de trabalho familiar. até porque processos revolucionários
Assim, as propostas de aplicação de já a haviam promovido no México,
tecnologias visando dar maior produ- Bolívia e Cuba.
tividade à agricultura esbarram nesta Assim se compreende que o sistema
relação latifúndio–minifúndio, asso- capitalista tenha incorporado, desde os
ciada à estratégia das elites capitalistas anos 1960 até o início dos anos 1970, a
de controlar os problemas trabalhistas Reforma Agrária, porém, associada aos
pela formação de um exército de reser- interesses de classe, visando à moder-
va de trabalhadores subempregados nização do campo, pela introdução de
ou desempregados. máquinas, insumos agrícolas, métodos
Gajardo (1981) trata da educa- de administração rural etc.;; e isso re-
ção rural na ótica da educação popu- queria alguma forma de escolarização,
lar, passando a situá-la nas condições o que explica a relação entre a educa-
históricas em que ela se desenvolve ção rural, o desenvolvimento econômi-
nos países latino-americanos. Nestes co e a Reforma Agrária. “A Reforma
países, ocorrem mudanças significati- Agrária é então estimulada na Reunião
vas que evidenciam a necessidade da de Punta del Este como estratégia para
educação, em particular, da formação promover o desenvolvimento capitalis-
de profissionais qualificados para o ta e a modernização do campo” (Pinto,
modelo de desenvolvimento proposto 1981, p. 69), sob a pressão dos Estados
na época. Isso ocorre nos anos 1960, Unidos para conter possíveis guerri-
quando se intensificam os processos de lhas rurais.
industrialização, em alguns casos asso- As reformas agrárias que foram efe-
ciados a processos de Reforma Agrária tuadas depois da assinatura da Carta de
que incorporam amplos contingentes Punta del Este,1 no Uruguai, em 1961,
de trabalhadores à vida social e política não produziram mudanças drásticas
desses países, do que decorre a impor- no sistema capitalista vigente, e sim,
tância da educação rural. oportunizaram uma política de con-
A autora aponta a estrutura tra- trole das reformas necessárias à mo-
dicional agrária, baseada no binômio dernização do campo. Porém, mesmo
latifúndio–minifúndio, como fator de com suas limitações, nos países onde
atraso industrial que provoca os bai- foram efetuadas, produziu-se um nível
xos índices de escolarização que se irão maior de consciência dos camponeses
refletir nas dificuldades enfrentadas em relação à sua condição de explora-
para a aplicação de inovações tecnoló- dos, decorrendo daí um processo de
gicas. É o que mobiliza os Estados a organização e de luta pela terra. Como
formularem políticas de superação do afirma Freire, desde sua experiência em
analfabetismo e da carência de forma- Santiago do Chile, em 1968: “Tal é o

297
Dicionário da Educação do Campo

caso da Reforma Agrária. Transforma- sob a influência dos debates ocorridos


da a estrutura do latifúndio, de que re- nos anos 1930-1940, geradores do Ma-
sultou a do asentamiento, não seria pos- nifesto dos pioneiros da educação nova, de
sível deixar de esperar novas formas de 1932 (Calazans, 1993). O fracasso da
expressão e de pensamento-linguagem” educação rural era comprovado pela
(Freire, 1979, p. 24). existência de um grande contingente de
No Brasil, porém, a educação rural, analfabetos. Assim, o “ruralismo peda-
como mostra Silvana Gritti (2003), per- gógico” contrapunha-se à escola literá-
manece relacionada a uma concepção ria, de orientação urbana, que parecia
preconceituosa a respeito do campo- contribuir para o desenraizamento do
nês, porque não considera os saberes camponês. E, com isso, acompanhava
decorrentes do trabalho dos agriculto- as críticas do escolanovismo dirigidas à
res. Ensinar o manejo de instrumen- transmissão e à memorização de conhe-
tos, técnicas e insumos agrícolas era cimentos dissociados da realidade brasi-
o objetivo das escolas rurais de nível leira. Aqueles que propunham uma pe-
técnico, além do relacionamento com dagogia diferenciada para as populações
o mercado no qual o camponês teria de rurais, identificados com o “ruralismo
vender a sua produção para adquirir os pedagógico”, defendiam a existência de
“novos” produtos destinados a dina- uma escola que preparasse os filhos dos
mizá-la, conforme registra a história da agricultores para se manterem na terra e
educação rural. Desta forma, a perda que, por isso mesmo, estivesse associa-
da autonomia dos agricultores, associa- da ao trabalho agrícola e adaptada às de-
da à imposição de um conhecimento mandas das populações rurais. Porém,
estranho àquele que é “transmitido e essa concepção, como outras carregadas
aperfeiçoado de pai para filho, resul- de “boas intenções”, permaneceu ape-
tante da observação e da experimenta- nas no discurso.
ção cotidiana, foi facilitada pela escola Os escassos registros históricos
rural com a mediação da instituição existentes indicam que diferentes mo-
denominada ‘clube agrícola’” (Gritti, dalidades de educação rural, como cen-
2003, p. 121). Tendo em vista as cons- tros de treinamentos, cursos e semanas
tantes mudanças introduzidas nos pro- pedagógicas efetuadas até os anos de
cessos produtivos e acompanhando-as, 1970, estiveram sob influência norte-
alguns cursos, ou até mesmo toda a americana, por meio de agências de
escola rural, ficavam encarregados de fomento que contavam com o apoio
“capacitar” estudantes, tornando-os do Ministério de Educação (MEC)
mais produtivos para o trabalho que (Werthein e Bordenave, 1981). Partiam
iriam desempenhar;; assim, ficava a es- de uma visão externa à realidade bra-
cola responsável por treinar, em vez sileira, na suposição de que as popula-
de educar. Os programas de extensão ções rurais estariam sendo marginaliza-
rural e de capacitação para o trabalho das do desenvolvimento capitalista. A
se enquadram nesta proposta, embora política adotada para a educação rural
não valorizem o trabalho agrícola. justificava-se, então, como resposta à
No âmbito da educação rural, tam- necessidade de integrar aquelas popu-
bém vingou uma corrente de pensamen- lações ao progresso que poderia advir
to, o chamado “ruralismo pedagógico”, desse desenvolvimento.

298
Educação Rural

Entretanto, como objetos e não fomento norte-americanas, de um mo-


como sujeitos de tais políticas, as po- delo produtivo agrícola gerador da de-
pulações rurais não foram consulta- pendência científica e tecnológica dos
das acerca de suas demandas, nem
informadas sobre os programas a elas
trabalhadores do campo. Deste modo,
a educação rural funcionou como um E
destinados e, nem ao menos, sobre a instrumento formador tanto de uma
aplicação e avaliação destes programas. mão de obra disciplinada para o traba-
No discurso que justificava os progra- lho assalariado rural quanto de consu-
mas, definindo as mudanças previstas midores dos produtos agropecuários
na educação e na produção agrícolas, gerados pelo modelo agrícola impor-
estas viriam de fora, sob a orientação tado. Para isso, havia a necessidade
do país onde elas se encontravam em de anular os saberes acumulados pela
estado mais avançado, os Estados Uni- experiência sobre o trabalho com a
dos – e que, por isso mesmo, enviava terra, como o conhecimento dos so-
agências de fomento para orientar a los, das sementes, dos adubos orgâni-
aplicação daqueles programas. Todavia, cos e dos defensivos agrícolas.
como afirma Julieta Calazans, o “pres- Analisando-se a constituição da
suposto de um homem rural vazio cul- sociedade brasileira nos primeiros
turalmente esbarra, em cada momento quatro séculos, há necessidade de le-
específico, ante as provas tangíveis de var em consideração o processo de
uma resistência cultural a valores con- colonização e, relacionado a ele, o
siderados impertinentes pelas ‘popula- regime de escravidão, o latifúndio e
ções-alvo’” (1993, p. 28). a predominância da produção extrati-
Outras críticas efetuadas pela mes- vista e agrícola voltada para a expor-
ma autora ressaltam que as instituições tação. Esta formação social não exige
encarregadas de implantar aquelas po- a qualificação da força de trabalho,
líticas recebiam os “pacotes” fechados, ocasionando até certo desprezo, por
de modo a não interferirem nos obje- parte das elites, em relação ao apren-
tivos, metodologias e conteúdos conti- dizado escolar das camadas popula-
dos nos programas. Desta maneira, os res, principalmente dos camponeses.
mesmos eram repassados aos centros Por isso, mesmo encontrando-se re-
comunitários, escolas e sindicatos to- gistros de educação rural no século
mados como parceiros, sem que tives- XIX, é somente a partir da década de
sem participado da elaboração dos re- 1930 que começa a tomar forma um
feridos “pacotes” e sem ao menos ter modelo de educação rural associa-
conhecimento de suas origens. do a projetos de “modernização do
Deduz-se daí que a política educa- campo”, patrocinados por organis-
cional destinada às populações cam- mos de “cooperação” norte-ameri-
ponesas teve maior apoio e volume cana e disseminados pelo sistema de
de recursos quando contemplava inte- assistência técnica e extensão rural.
resses relacionados à expropriação da Políticas destinadas à “escolarização
terra e à consequente proletarização das populações rurais mostram seu
dos agricultores. Associado a esses fraco desempenho ou o desinteres-
interesses, identificava-se o projeto de se do Estado com respeito à educa-
implantação, por parte das agências de ção rural, quando nos referimos ao

299
Dicionário da Educação do Campo

analfabetismo no Brasil” (Ribeiro, por base a cooperação. A educação do


2010, p. 181). campo não admite a interferência de
A análise feita até aqui, e consi- modelos externos, e está inserida em
derando a riqueza do tema, permite um projeto popular de sociedade, ins-
uma definição, ainda que provisória, pirado e sustentado na solidariedade e
sobre a educação rural. Esta moda- na dignidade camponesas.
lidade de educação transcende a es- Isso explica a relação entre a edu-
cola destinada às populações que cação rural e a Reforma Agrária, bem
vivem em áreas rurais e garantem o como o temor que despertam as or-
seu sustento por meio do trabalho ganizações camponesas que lutam
com e da terra, e, por isso, está arti- pela terra de trabalho associada à
culada, de maneira indissociável, com Educação do Campo. Explica, ainda,
este trabalho. Mas o vínculo com a por que a caminhada pela Educação
terra, o meio de produção que não do Campo conquistada em 1998, e
resulta do trabalho e que é essencial à posta em prática desde a C IRANDA
produção de alimentos – e, portanto, I NFANTIL até a formação em nível de
essencial à vida –, coloca a educação pós-graduação, vem sendo ferozmen-
rural no cerne da luta de classes, mais te combatida. O movimento reacio-
precisamente, da formação do tra- nário se materializa com o bloqueio
balhador para o capital e deste traba- dos recursos do Programa Nacio-
lhador para si, na condição de classe nal de Educação na Reforma Agrá-
(Ribeiro, 1987). ria (Pronera) e com o desenterro do
Em confronto com a educação ru- “ruralismo pedagógico”, fora de sua
ral negada, a educação do campo cons- época, por meio do Programa Esco-
truída pelos movimentos populares de la Ativa, adotado como política pelo
luta pela terra organizados no movi- MEC. São questões que desafiam a
mento camponês articula o trabalho Educação do Campo, mas transcen-
produtivo à educação escolar tendo dem o conceito de educação rural.

Nota
1
A Carta de Punta del Este foi firmada na Conferência do Uruguai, realizada em 1961, de-
vido à pressão dos Estados Unidos, então sob a presidência de John F. Kennedy, para que
os governos dos países latino-americanos adotassem a estratégia de promover a Reforma
Agrária, a fim de estimular o desenvolvimento capitalista e a modernização do campo e,
ainda, como meio de frear as guerrilhas rurais;; procurando anular a potencialidade revo-
lucionária do camponês, essa estratégia orientava-o para uma posição conservadora (ver
Pinto, 1981).

Para saber mais


ASHBY, J. et al. Desenvolvimento agrícola e capital humano: o impacto da educa-
ção e da comunicação. In: WERTHEIN, J.; BORDENAVE, J. D. Educação rural no Terceiro
Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 127-159.

300
Educação Versus Cidadania

CALAZANS, M. J. Para compreender a educação do Estado no meio rural. Traços


de uma trajetória. In: THERRIEN, J.; DAMASCENO, M. N. (org.). Educação e escola no
campo. Campinas: Papirus, 1993. p. 15-42.
FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
E
GRITTI, S. Educação rural e capitalismo. Passo Fundo: UPF, 2003.
GAJARDO, M. Educação popular e conscientização no meio rural latino-america-
no. In: WERTHEIN, J.; BORDENAVE, J. D. (org.). Educação rural no Terceiro Mundo. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 103-126.
PETTY, M.; TOMBIM, A.; VERA, R. Uma alternativa de educação rural. In:
WERTHEIN, J.; BORDENAVE, J. D. (org.). Educação rural no Terceiro Mundo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 31-64.
PINTO, J. B. A educação de adultos e o desenvolvimento rural. In: WERTHEIN, J.;
BORDENAVE, J. D. (org.). Educação rural no Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1981. p. 65-102.
RIBEIRO, M. Movimento camponês, trabalho, educação. Liberdade, autonomia, emancipa-
ção: princípios/fins da formação humana. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
______. De seringueiro a agricultor-pescador a operário metalúrgico: um estudo sobre o
processo de expropriação/proletarização/organização dos trabalhadores amazo-
nenses. 1987. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1987.
WERTHEIN, J.; BORDENAVE, J. D. (org.). Educação rural no Terceiro Mundo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1981.

EMANCIPAÇÃO VERSUS CIDADANIA


Marlene Ribeiro

Partimos da realidade de uma cida- que ela expressa como fenômeno em-
dania abstrata, assentada na liberdade pírico. Num segundo momento, vamos
do indivíduo, na propriedade privada contrapor essa emancipação, tal como
e na competição, justificadoras das vem sendo esboçada, à concepção dos
desigualdades sociais, para projetar a movimentos sociais populares, entre
emancipação, como busca de uma hu- os quais destacamos os que lutam pela
manização que se assenta na solidarie- terra de trabalho, por uma vida digna e
dade, na justiça e na dignidade para to- pela educação do campo.
dos. Para isso, começamos por definir a Cidadania, colocada pelos gregos
cidadania tanto no seu conteúdo histó- que participam da política na pólis
rico quanto no que é possível captar do ateniense, pressupõe a liberdade de

301
Dicionário da Educação do Campo

decisão e a igualdade entre os pares. e na apropriação privada do fruto


Para isso, são os homens cultos e os do trabalho.
grandes proprietários que frequentam Inicialmente, os pensadores que
a Academia – livres, portanto do tra- refletiram sobre a cidadania vinculada
balho. Aquele que trabalha é excluído, ao Estado-nação, contrapondo-se aos
com a justificativa de que o trabalho é nobres e à Igreja feudal, defendiam a
cansativo e impede pensar, produzir propriedade privada como resultante
conhecimento e interferir na vida polí- do trabalho, no que também se dife-
tica da cidade. Assim, cidadão “é aque- renciam da cidadania grega. “O traba-
le que, por nascimento e fortuna, é um lho significa, portanto, a ruptura com
homem livre e tem o direito de parti- o estado de natureza e o fundamento
cipar das assembleias e dos debates na do princípio da propriedade, que dá ao
ágora” (Ribeiro, 2002, p. 117). homem burguês a justificativa moral
Seguindo com a história, na supera- e legal para preservá-la e defendê-la”
ção do sistema feudal, com a constitui- (Ribeiro, 2002, p. 118).
ção do Estado moderno, a burguesia, Além de explicar seu direito à pro-
na condição de classe em ascensão, rei- priedade perante a nobreza e o clero, o
vindica a cidadania como liberdade de trabalho, como uso da natureza para a
ação – inicialmente ligada ao comércio – produção de bens que corroboram as
combinando-a com a igualdade de di- ideias de progresso e civilização, tam-
reitos até então exclusivos da nobreza bém justifica a expropriação da terra, a
e do clero. Nesse caso, a concepção de exploração do camponês, a escravidão
cidadania se assemelha à da cidadania de africanos e o genocídio dos povos
grega: é considerado cidadão, ou pode indígenas no continente americano. Se
participar da vida pública e reivindicar o camponês, o negro e o índio são con-
direitos, o indivíduo masculino, bran- siderados incapazes de produzir com
co, escolarizado e proprietário de ter- “métodos racionais”, porque atrasados,
ras, de bens materiais e/ou culturais. é certo que trabalhem para os cidadãos
Todavia, diferentemente da cida- proprietários e que esses os explorem,
dania grega, cujo exercício da razão subordinem, escravizem ou até elimi-
está orientado pela filosofia, e mais nem como obstáculos à ocupação da
propriamente pela metafísica, a cida- terra em direção ao progresso. Assim,
dania moderna, associada ao comércio como pensar que índios, negros, agri-
e, mais tarde, à indústria e ao sistema cultores, analfabetos, trabalhadores or-
bancário, rompe com a metafísica e ganizados em movimentos sociais, ou
ampara-se nas ciências físico-naturais, seja, que os alijados da cidadania desde
das quais retira os argumentos para se a sua origem grega, se conformem ape-
definir como neutra em relação às de- nas com buscar alcançá-la?
sigualdades sociais. À propriedade pri- Imersa na compreensão do concei-
vada da terra acrescenta a do conjunto to e observada nas condições concretas
dos meios de produção e subsistência, nas quais engloba apenas determina-
reunindo, dessa forma, as condições dos sujeitos, a cidadania não resiste ao
materiais e ideológicas para a consti- questionamento que lhe é feito pelos
tuição do capital como relação social movimentos sociais populares, e em
alicerçada na expropriação da terra especial pelo movimento camponês –

302
Educação Versus Cidadania

unidade na diversidade de movimentos sociais populares e, entre eles, o movi-


que lutam por terra na qual possam mento camponês.
exercer seu trabalho e viver com digni- Sem negar a importância histórica da
dade (Ribeiro, 2010).
Tanto na sua compreensão histó-
conquista da liberdade que dá conteú-
do à cidadania, Marx e Engels (1984)
E
rico-filosófica, oriunda da Grécia e re- deslocam o foco de suas preocupações
formulada na Europa no processo de para o projeto político-coletivo que só
constituição do Estado moderno, quan- pode ser colocado em prática pela clas-
to na realidade da maioria das popula- se majoritária submetida ao regime de
ções nos diferentes países, a cidadania expropriação da terra e de apropriação
assume a forma de discurso da civiliza- do produto do trabalho. Nesse caso,
ção, da gramática, da língua, da escrita já não é suficiente a liberdade dos in-
e da cultura dominantes. Associada à divíduos a ser incorporada às novas
propriedade dos meios de produção e conquistas, mas a emancipação hu-
de subsistência, entre os quais a terra, mana buscada nas lutas históricas das
a cidadania identifica-se pela chamada classes populares. Outro autor alemão,
“raça” branca, de religião cristã, com Theodor W. Adorno (1995), embora
prioridade para o gênero masculino. pessimista em relação à possibilidade
Assim, os conteúdos que definem a de mudanças, por causa da força do
história e a materialidade da cidadania sistema, destaca também a emancipa-
são incompatíveis com a maioria da ção como pressuposto para se superar
população, em particular com os sujei- a ausência de liberdade que marca a so-
tos político-coletivos que constituem o ciedade capitalista.
movimento camponês. E isso porque a Em parte influenciados pela teo-
cidade é o núcleo econômico-político logia da libertação, associada às mu-
incrustado no processo de constituição danças ocorridas na Igreja Católica
da cidadania tanto grega quanto mo- nos anos 1960-1970, mas, sobretudo,
derna, definindo, por sua vez, a cultura amparados pelo acompanhamento da
que expressa a civilização e, sobretudo, trajetória dos movimentos sociais que
o perfil urbano da educação moderna têm indígenas, camponeses e trabalha-
sob controle do Estado. dores urbanos como sujeitos, alguns
Porém, se a cidadania não foi pesquisadores latino-americanos iden-
construída tendo por sujeitos aqueles tificam a emancipação como libertação.
e aquelas que vivem do/no trabalho e Enrique Dussel, pesquisador mexica-
se organizam em movimentos sociais no e autor da obra Ética da libertação
populares, o que se pode captar, então, (2002), afirma que o aumento no nú-
nas suas lutas pela terra, pelo trabalho, mero de vítimas do sistema capitalista
pela moradia, pela saúde, pela educa- revela a impossibilidade de o mesmo se
ção? Nesse segundo momento, e em manter eternamente, o princípio-liber-
confronto com a cidadania como in- tação colocando-se como dever ético
venção tanto dos proprietários gregos para que se promova a transforma-
quanto dos burgueses, pensamos que ção do sistema. O uruguaio José Luis
a emancipação projetada pelas classes Rebellato (2000) propõe uma ética da
subalternas pode indicar o horizonte autonomia e da libertação que passa
para o qual caminham os movimentos pela capacidade de acreditarmos em

303
Dicionário da Educação do Campo

nossas próprias forças para viver e para propriedade privada e à servidão, toma
lutar. Para esse autor, uma ética da dig- a forma política da emancipação dos
nidade está no centro da prática eman- trabalhadores” (Marx, 1993, p. 170).
cipatória consciente. Essa emancipação, porém, não atin-
Para o educador brasileiro Paulo ge apenas os trabalhadores: “inclui a
Freire (1978 e 2003), a libertação não emancipação da humanidade enquanto
se dá como uma tomada de consciên- totalidade, uma vez que toda a servidão
cia isolada da injustiça que marca as humana se encontra envolvida na rela-
relações sociais na sociedade capitalis- ção do trabalhador à produção e todos
ta, mas, essencialmente, numa práxis os tipos de servidão se manifestam
datada e situada, que tem por sujeitos como modificações ou consequências
os povos oprimidos. Dussel, Rebellato da sobredita relação” (ibid.).
e Freire pensam a emancipação como Da análise efetuada até aqui, emerge
projeto e ação coletivos das vítimas, a pergunta: como conquistar a emanci-
dos excluídos, dos desumanizados. Já pação das condições de exploração e
Marx e Engels têm a classe revolucio- opressão que atingem a maior parte da
nária como autora de tal projeto e ação: humanidade? Antes de mais nada, é for-
para além da liberdade e da autonomia çoso constatar que a existência de uma
individuais implícitas na cidadania, a classe oprimida só pode ser explicada
classe revolucionária, no seu processo por sua relação contraditória com outra
de construção, coloca como horizonte classe, a classe opressora, e, portanto,
a emancipação de toda a humanidade, numa sociedade alicerçada no antago-
uma emancipação social, portanto. nismo de classes. Nesse sentido, para
Em algumas obras, Marx e Engels que a libertação da classe oprimida –
também identificam a libertação à pressuposto da emancipação humana –
emancipação, não como um problema tenha lugar, é condição essencial que
que pode ser resolvido no plano da se constitua uma nova sociedade, mas
abstração, mas sim como uma necessi- isso exige que as forças produtivas e as
dade concreta e que, como tal, deve ser relações sociais de produção tenham
solucionada: “A ‘libertação’ é um ato chegado a tal nível de confronto que
histórico, não é um ato de pensamen- não possam continuar existindo da
to, e é efetuada por relações históricas, forma como se mantêm: “A condição
pelo nível da indústria, do comércio, de libertação da classe trabalhadora é a
da agricultura, do intercâmbio” (Marx abolição de toda a classe, assim como
e Engels, 1984, p. 25). a condição de libertação do ‘terceiro
A emancipação da sociedade de- estado’, da ordem burguesa, foi a abo-
duz-se da possibilidade de se romper lição de todos os ‘estados’ e de todas as
a relação contraditória entre o trabalho ordens” (Marx, 1989, p. 218).
alienado e a propriedade privada dos Compreendida como separação en-
meios de produção e de subsistência – tre o produtor e o produto do seu tra-
nos quais está incluída a terra, como balho, apropriado pelo capital, e como
bem não produzido pelo trabalho: “Da inversão desse processo na consciência
relação do trabalho alienado à pro- do trabalhador, a alienação humana
priedade privada deduz-se, ainda, que tem por base a propriedade privada dos
a emancipação da sociedade, quanto à meios de produção e subsistência. Para

304
Educação Versus Cidadania

o alcance da emancipação, portanto, é cipação da humanidade. No entanto,


imprescindível superar as condições para que a emancipação aconteça, os
objetivas e subjetivas que sustentam a povos oprimidos dependem uns dos
alienação, supondo-se, para isso, duas
premissas de caráter práxico. Em pri-
outros, ou seja, precisam construir
a intersolidariedade. E
meiro lugar, somente por meio de uma A libertação só pode ser conquis-
revolução homens e mulheres podem tada pelos proletários excluídos de to-
libertar-se da alienação do trabalho. das e quaisquer condições de liberdade
Antes disso, porém, é necessário que a e de autonomia para garantir uma so-
divisão do trabalho tenha gerado uma brevivência digna. E essa libertação –
enorme massa de humanidade comple- aqui tomada no sentido de emanci-
tamente destituída da propriedade, em pação – consiste na apropriação da
contradição com um reduzido número totalidade das forças produtivas, o
de proprietários com enorme reserva de que permitirá aos homens e mulheres
riqueza e cultura, resultante do elevado desenvolverem, também, a totalidade
desenvolvimento das forças produtivas. de suas capacidades de trabalho como
Em segundo lugar, a existência con- expressão e criação. Assim, essa con-
creta, em âmbito histórico-mundial, quista pressupõe a supressão de toda
de um imenso contingente de homens espécie de classe. Todavia, do mesmo
e mulheres vivendo na miséria, com modo que a classe revolucionária não
a generalização da penúria e da busca está pronta, mas em processo de se
do necessário para sobreviver, é con- fazer, a emancipação que abarca toda
dição indispensável para mobilizar a humanidade é apenas um projeto, o
uma revolução. Exemplos comprovam horizonte para o qual caminham os
que revoluções isoladas geograficamente movimentos sociais populares – entre
não conseguem resistir às pressões eles, o movimento camponês.
econômicas e políticas amparadas na
Marx e Engels trabalham com os
força convincente das armas em mãos
conceitos de libertação da classe traba-
dos proprietários do capital.
lhadora, de emancipação política e de
Assim, numa face da realidade, emancipação social como possibilidades
ocorre o desenvolvimento das forças de romper a relação que separa os traba-
produtivas em âmbito global, colocan- lhadores enquanto produtores dos pro-
do os seres humanos em contato uns dutos do seu trabalho e dos meios de
com os outros. Na outra, o intercâm- produção e subsistência. Esses autores
bio entre populações pobres e domi- refletem sobre questões do seu tempo, o
nadas desvela a existência de enorme século XIX, algumas das quais persistem
massa de seres humanos destituída da até hoje, como as condições materiais e
propriedade, deixando claras as origens humanas de vida e as relações sociais
das desigualdades sociais, da miséria sobre as quais se assenta a exploração,
e da pobreza. E esses homens e mulheres a dominação e a alienação da imensa
despossuídos, ao serem colocados em maioria da população mundial. Ambos
contato uns com os outros, começam afirmam a revolução dessas condições
a desenhar, embora nem sempre com e relações sociais como necessidade im-
caracteres nítidos, um projeto de revo- periosa e como possibilidade real para a
lução como alternativa para a eman- emancipação humana.

305
Dicionário da Educação do Campo

Nos autores consultados, bem tes, os bens, os conhecimentos, as artes


como nas práticas dos movimentos so- e os serviços dos quais todos e todas
ciais populares, dos quais destacamos necessitamos para uma vida digna. O
aqueles que lutam com terra para rea- esgotamento dos recursos naturais,
lizar o seu trabalho e viver com dig- devorados pela ambição insaciável ca-
nidade, a emancipação de todos os racterística dos processos relacionados
trabalhadores e trabalhadoras inclui a ao movimento do capital na busca cega
emancipação da totalidade da humani- de lucro, colocam hoje a emancipação
dade. Essa emancipação consiste em como imprescindível, não somente
romper com a alienação do trabalho e para se superar a desumanização que
devolver a autoria do mundo e da pro- daí decorre, mas também para garantir
dução para aqueles que efetivamente as condições essenciais à manutenção
produzem, com suas mãos e suas men- da vida no planeta.

Para saber mais


ADORNO, T. W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
DUSSEL, H. Ética da libertação. Petrópolis: Vozes, 2000.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
______. Política e educação. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
MARX, K. O trabalho alienado. In: ______. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa:
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______. A libertação da classe oprimida. In: FERNANDES, F. (org.). Marx, Engels:
história. 3. ed. São Paulo. Ática, 1989. p. 215-219.
M ARX , K.;; E NGELS , F. A ideologia alemã e Teses sobre Feuerbach. São Paulo:
Moraes, 1984.
REBELLATO, J. L. Ética de la liberación. Montevidéu: Nordan, 2000.
RIBEIRO, Marlene. Educação para a cidadania: questão colocada pelos movimen-
tos sociais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 113-128, jul.-dez. 2002.
______. Movimento camponês, trabalho, educação: liberdade, autonomia, emancipação
como princípios/fins da formação humana. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

306
Ensino Médio Integrado

ENSINO MÉDIO INTEGRADO


Maria Ciavatta E
Marise Ramos

O ensino médio integrado carrega, ou tecnológica, e uma origem recente,


nas expressões correlatas ensino médio na segunda metade dos anos 1980, nas
integrado à educação profissional e educa- lutas do Fórum Nacional em Defesa
ção profissional integrada ao ensino médio, da Educação Pública, na Constituição
a ideia de uma educação que esteja e na nova Lei de Diretrizes e Bases da
além do simples objetivo propedêu- Educação Nacional (LDB).
tico de preparar para o ensino supe- Na concepção anterior ao decreto
rior, ou apenas preparar para cumprir nº 2.208/1997, como ensino médio
exigências funcionais ao mercado de integrado à educação profissional,
trabalho. A ideia básica subjacente à significava a possibilidade de a for-
expressão tem o sentido de inteiro, de mação básica e a profissional acon-
completude, de compreensão das par- tecerem numa mesma instituição de
tes no seu todo ou da unidade no di- ensino, num mesmo curso, com cur-
verso, de tratar a educação como uma rículo e matrículas únicas, o que havia
totalidade social, isto é, nas múltiplas sido impedido pelo referido decreto
mediações históricas que concretizam (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005).
os processos educativos. 1 Com esse sentido, o termo integrado foi
A expressão começou a ser utiliza- incorporado à legislação – primeira-
da por educadores que se posicionaram mente, no decreto nº 5.154/2004 (que
como contrários à reforma do ensino revogou o decreto nº 2.208/1997)
médio e da educação profissional rea- (Brasil, 2004), e, posteriormente, na
lizada no Brasil, a partir do decreto lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e
nº 2.208/1997 (Brasill, 1997), no Go- Bases da Educação Nacional) (Brasil,
verno Fernando Henrique Cardoso. 1996), alterada pela lei nº 11.741/2008
Deriva do termo formação integrada, que (Brasil, 2008) – como uma das formas
tem uma elaboração recente na história pela qual o ensino médio e a educação
da educação no Brasil, pois remonta profissional podem se articular.
ao início do Governo Lula, em 2003. Essa possibilidade, por sua vez,
A crise política deflagrada na esquerda baseia-se no enunciado do parágrafo 2o
brasileira pelas orientações econômi- do artigo 36 da LDB, ratificado pela lei
cas do Governo Lula atingiu também a que a alterou: “O ensino médio, aten-
compreensão do conceito, acrescida de dida a formação geral do educando,
sua implementação ambígua nas políti- poderá prepará-lo para o exercício de
cas do Ministério da Educação (MEC) profissões técnicas”. Este enunciado
durante os dois Governos Lula (2003 a apresenta, simultaneamente, uma con-
2010). Não obstante, o termo tem uma dição: uma formação geral que não
origem remota na educação socialista, na pode ser substituída nem minimizada
concepção de EDUCAÇÃO POLITÉCNICA pela formação profissional;; e, também,

307
Dicionário da Educação do Campo

uma possibilidade: a da formação cação profissional. Esta, entretanto, na


profissional. Condição e possibilidade, realidade brasileira, apresenta-se como
nesse caso, convergem para a garantia uma necessidade para a classe trabalha-
do direito a dois tipos de formação – dora e como uma mediação para que o
básica e profissional – no ensino mé- trabalho se incorpore à educação bá-
dio, o que assegura, por isso, a legali- sica como princípio educativo e como
dade e a legitimidade do ensino médio contexto econômico, formando uma
integrado à educação profissional. unidade com a ciência e a cultura. As-
Conceitualmente, porém, a ex- sim concebido, diferentemente do que
pressão significa muito mais do que alegam seus críticos, o ensino médio
uma forma de articulação entre en- integrado difere das determinações da
sino médio e educação profissional. lei nº 5.692/1971 (Brasil, 1971), já re-
Ela busca recuperar, no atual contexto vogada, que instituiu a profissionaliza-
histórico e sob uma específica correla- ção compulsória no ensino de segundo
ção de forças entre as classes, as con- grau – atual ensino médio.
cepções de EDUCAÇÃO POLITÉCNICA, Portanto, o termo integrado remete,
EDUCAÇÃO OMNILATERAL e ESCOLA UNI- por um lado, à forma de oferta do en-
TÁRIA, que estiveram na disputa por sino médio articulado com a educação
uma nova LDB na década de 1980 e profissional;; mas, por outro, remete a
que foram perdidas na aprovação da lei um tipo de formação que seja integrada,
nº 9.394/1996. Assim, essa expressão plena, vindo a possibilitar ao educando
também se relaciona com a luta pela a compreensão das partes no seu todo
superação do dualismo estrutural da ou da unidade no diverso. Tratando-se
sociedade e da educação brasileiras, a educação como uma totalidade social,
da divisão de classes sociais, da divisão são as múltiplas mediações históricas
entre formação para o trabalho manual que concretizam os processos educati-
ou para o trabalho intelectual, e em de- vos. No caso da formação integrada, a
fesa da democracia e da escola pública. educação geral se torna parte insepará-
Da sua forma transitiva – integrar vel da educação profissional em todos
algo a outra coisa, neste caso, o ensino os campos em que se dá a preparação
médio à educação profissional –, essa para o trabalho: seja nos processos
ampliação conceitual levou à utilização produtivos, seja nos processos educati-
do verbo na forma intransitiva. Ou seja, vos, como a formação inicial, o ensino
não se trata somente de integrar um a técnico, tecnológico ou superior. Signi-
outro na forma, mas sim, de se consti- fica que buscamos enfocar o trabalho
tuir o ensino médio como um proces- como princípio educativo, no sentido
so formativo que integre as dimensões de superar a dicotomia trabalho ma-
estruturantes da vida, trabalho, ciência nual/trabalho intelectual, incorporar a
e cultura, abra novas perspectivas de dimensão intelectual ao trabalho pro-
vida para os jovens e concorra para a dutivo, e formar trabalhadores capazes
superação das desigualdades entre as de atuar como dirigentes e cidadãos
classes sociais. (Gramsci, 1981, p. 144 e seg.).
Esse tipo de integração não exige, Se a formação profissional no ensi-
necessariamente, que o ensino médio no médio é uma imposição da realida-
seja oferecido na forma integrada à edu- de da população trabalhadora, admitir

308
Ensino Médio Integrado

legalmente essa necessidade é um pro- rículo, ou seja, um currículo integrado. O


blema ético-político. Não obstante, se conceito de currículo integrado cons-
o que se persegue não é somente aten- ta da obra de Bernstein (1996) e de
der a essa necessidade, mas mudar as
condições em que ela se constitui, é
Santomé (1998), dentre outros. Ainda
que se incorporem alguns elementos de E
também uma obrigação ética e políti- suas formulações, também o currículo
ca garantir que o ensino médio se de- deve ser pensado como uma relação en-
senvolva sobre uma base unitária, para tre partes e totalidade na produção do
todos. Portanto, o sentido de formação conhecimento em todas as disciplinas
integrada ou o ensino médio integrado e atividades escolares, o que significa a
à educação profissional, sob uma base compreensão do CONHECIMENTO como
unitária de formação geral, é uma con- apropriação intelectual de determina-
dição necessária para se fazer a travessia do campo empírico, teórico ou simbó-
para a educação politécnica e omnilate- lico, pelo qual se apreendem e se re-
ral realizada pela escola unitária, não se presentam as relações que constituem
confundindo totalmente com ela por- e estruturam a realidade objetiva.
que a realidade assim não o permite. Se o processo de construção do
Ele é um ensino possível e neces- conhecimento exige que sejam dados
sário aos filhos dos trabalhadores que a conhecer os conceitos já elaborados
precisam obter uma profissão ainda du- ou em elaboração sobre a realidade, a
rante a educação básica. Porém, tendo escola cumpre a função de socializá-
como fundamento a integração entre los e difundi-los, tanto em benefício da
trabalho, ciência e cultura, esse tipo de própria ciência quanto pelo direito
ensino acirra contradições e potenciali- de todos os cidadãos terem acesso aos
za mudanças. À semelhança dos países conhecimentos produzidos. O currícu-
que universalizaram a educação básica lo escolar, formalmente, faz a seleção
até o ensino médio, para toda a popu- desses conhecimentos, visando a sua
lação, urge superar essa conjuntura da apreensão, em sua especificidade con-
sociedade brasileira, de grande pobre- ceitual, pelos educandos.
za e carência de investimentos subs- Assim, o currículo integrado – ou o
tantivos nas políticas sociais. Há que currículo do ensino médio integrado –
se constituir uma educação que conte- destaca a organização do conheci-
nha elementos de uma sociedade justa mento como um sistema de relações
e que, assim, não exija dos jovens a de uma totalidade histórica e dialéti-
profissionalização precoce nesse mo- ca. Ao integrar, por um lado, trabalho,
mento educacional, mas possa remetê- ciência e cultura, tem-se a compreen-
la, nos termos de Gramsci (1991), a são do trabalho como mediação pri-
uma etapa posterior em que a maturi- meira da produção da existência social
dade intelectual lhes permita fazer es- dos homens, processo esse que coin-
colhas profissionais. cide com a própria formação humana,
Para que esses objetivos político- na qual conhecimento e cultura são
pedagógicos se concretizem nos pro- produzidos. O currículo integrado
cessos educativos, o ensino médio elaborado sobre essas bases não hie-
precisa de uma elaboração relativa à rarquiza os conhecimentos nem os
integração de conhecimentos no cur- respectivos campos das ciências, mas

309
Dicionário da Educação do Campo

os problematiza em suas historicida- te daquela não integrada à educação profis-


de, relações e contradições. sional, que seria, então, exclusivamente
Por outro lado, ao integrar for- propedêutica. A política de educação
mação geral, profissional, técnica e profissional, portanto, não poderia fi-
política, a distinção entre conhe- car alheia a essas possibilidades, uma
cimentos considerados gerais ou es- vez que é parte constituinte da unidade.
pecíficos não é determinada a priori Mesmo que haja uma dimensão especí-
nem de forma absoluta. Ao contrário, fica dessa política relativa aos variados
ela é contingencialmente determinada processos de qualificação da força de
pelos objetos concretos que motivam trabalho, as instâncias políticas e admi-
a elaboração do currículo. No currículo nistrativas da educação profissional no
integrado, nenhum conhecimento é só país colocaram-se o problema da inte-
geral, posto que estrutura objetivos de gração com o ensino médio.
produção;; nem somente é só específi- Quando formulada a partir de tais
co, pois nenhum conceito apropriado instâncias, tende-se a uma inversão da
produtivamente pode ser formulado expressão nos termos da educação pro-
ou compreendido desarticuladamente fissional integrada ao ensino médio. Portan-
da ciência básica que o sustenta. to, somente quando colocada a partir
Embora não se confundam, fre- de uma dessas referências – da polí-
quentemente a ideia de formação inte- tica de ensino médio ou de educação
grada é entendida como interdisciplina- profissional –, a ordem de formulação
ridade que se pretende alcançar apenas dessas expressões pode se inverter,
pela justaposição de várias disciplinas e é somente essa informação que tal
que se cruzam ou que se somam. A ordem nos fornece, posto que, sob os
interdisciplinaridade é um problema princípios que aqui discutimos, ensino
e uma necessidade (Frigotto, 1993). É médio e educação profissional integra-
um problema porque os fenômenos dos formam uma unidade na qual não
sociais são complexos, multirrelacio- há precedência de um sobre o outro.
nados, e nossa primeira visão alcança O preceito inviolável de qualquer uma
apenas alguns de seus aspectos, os apa- dessas formulações é assegurar a for-
rentes. É ainda um problema porque mação básica do educando e a indis-
todo conhecimento é permeado pelos sociabilidade conceitual da formação
interesses de classe e de grupos, pelas profissional dessa mesma formação.
ideologias construídas para a legitima- O uso intercambiável das expres-
ção desses interesses. Exatamente por sões em torno do ensino médio integra-
isso, é uma necessidade inerente aos do é uma manifestação da existência de
fenômenos sociais a compreensão de distintas instâncias governamentais que
sua íntima articulação, da totalidade têm a integração entre ensino médio e
social que lhes dá forma e significado educação profissional como questão a
(Ciavatta, 2010). partir de seus respectivos objetos. De
A expressão ensino médio integrado fato, em 2004, as políticas ministeriais
à educação profissional caracteriza uma de ensino médio e educação profissio-
forma como o ensino médio pode ser nal foram destinadas a distintas secre-
ofertado, vindo a cumprir uma finali- tarias. O ensino médio ficou com a Se-
dade profissionalizante, diferentemen- cretaria de Educação Básica (SEB), e a

310
Ensino Médio Integrado

educação profissional, com a Secretaria estaduais de ensino, a negociação polí-


de Educação Profissional e Tecnológi- tica levou ao financiamento também de
ca (Setec). outras formas de articulação nos ter-
Dentro deste quadro, vimos o de-
senvolvimento de duas políticas de en-
mos da lei (subsequente e concomitan-
te, este último na mesma ou em outra E
sino médio em âmbito nacional, a sa- instituição).
ber: Brasil Profissionalizado (decreto No que se refere à rede federal,
nº 6.302/2007) (Brasil, 2007), da Setec, destacamos que a condição de oferta
e a política do Ensino Médio Inovador, de 50% de suas vagas para o ensino
da SEB (Brasil, 2009), ambas anuncian- médio integrado não deve se tornar
do o incentivo à implantação do ensino apenas uma formalidade advinda da
médio integrado, seja no sentido formal, negociação para a sua transformação
seja no sentido conceitual. No primeiro em instituições de ensino superior – de
caso, predominou uma versão de ensino Centros Federais de Educação Tecno-
médio profissionalizante e, no segundo, lógica (Cefets) para Institutos Federais
ao contrário, para o ensino não profis- de Educação Tecnológica (Ifets) –, mas
sionalizante, mas com a defesa da inte- tem por base a finalidade de um efetivo
gração entre trabalho, ciência e cultura. comprometimento com a formação in-
Algumas características dessas polí- tegrada de trabalhadores.
ticas são: a) implicam, respectivamen- O programa Ensino Médio Ino-
te, as redes estaduais e a federal, atin- vador pretende incidir sobre o ensino
gindo, então, a totalidade do sistema médio não profissionalizante, visando
público que atua na educação profis- instaurar outros modos de organização
sional;; b) apresentam metas físicas e e delimitação dos conhecimentos. As
financeiras claras;; c) particularmente, disciplinas deveriam se articular com
o Programa Brasil Profissionalizado atividades integradoras mediante re-
vem acompanhado de um documento lações entre os eixos constituintes do
básico que dispõe sobre princípios e ensino médio, quais sejam, trabalho,
diretrizes fundamentais para as ações ciência, tecnologia e cultura. O currí-
políticas e pedagógicas realizadas sob a culo teria o trabalho como princípio
sua égide;; d) o Ensino Médio Inovador educativo nas dimensões ontológica e
é um programa orientador para os pla- histórica, às quais estariam relaciona-
nos de ações pedagógicas dos sistemas das as concepções de ciência e cultura.
de ensino. Nessas proposições, vê-se a influên-
O programa Brasil Profissionaliza- cia da concepção de ensino médio in-
do pode representar um avanço para tegrado. A consolidação de uma base
os estados, ainda que as condições unitária deste ensino é uma das ênfases
objetivas (instalações, mecanismos de do documento, que destaca, também,
transporte, alimentação etc.) de seus que esta base deve integrar trabalho,
sistemas de ensino possam apresentar ciência e cultura. A partir dessa base, se
limites estruturais à efetivação do ensi- desdobrariam possibilidades formativas
no médio integrado. Ademais, mesmo diversas, segundo cada um dos eixos
tendo sido formulado visando à im- de integração, concebendo-os também
plantação do ensino médio integrado como contextos de formação espe-
à educação profissional nos sistemas cífica: no trabalho, como formação

311
Dicionário da Educação do Campo

profissional;; na ciência, como iniciação ma, apresentando-se como uma nova


científica;; na cultura, como ampliação proposta educacional.
da formação cultural. A formação para Além do ensino médio integrado
a compreensão e a atuação no mundo para alunos na idade prevista (14 a 17
do trabalho – sendo profissionalizante anos), o governo instituiu o Progra-
ou não –, a formação científica e, ainda, ma Nacional de Integração da Edu-
para o trabalho científico, assim como cação Profissional com a Educação
a formação cultural deveriam compor a Básica na Modalidade de Educação
base unitária do ensino médio, poden- de Jovens e Adultos (Proeja), 2 cujos
do também ser convertidas em contex- cursos e programas “deverão consi-
tos da formação diversificada. derar as características de jovens e
Quando vamos ao documento do adultos atendidos, e poderão ser arti-
programa Ensino Médio Inovador culados [...] ao ensino médio, de for-
(Brasil, 2009), entretanto, não encon- ma integrada ou concomitante” (arti-
tramos orientações mais claras nesse go 1º, parágrafo 2º, inciso II) (Brasil,
sentido, ainda que se aponte para que 2006). Esta determinação aplica-se a
o projeto político-pedagógico, dentre todas as instituições públicas, o que
outros aspectos, articule teoria e prá- significa um avanço na política de
tica, vinculando o trabalho intelectual atendimento a jovens e adultos fora
a atividades práticas experimentais;; da idade prevista, que buscam com-
promova a integração com o mun- pletar sua escolaridade.
do do trabalho por meio de estágios
direcionados para os estudantes do No entanto, tem havido obstáculos
ensino médio;; e organize os tempos à implantação da formação integrada
e os espaços com ações efetivas de in- entre jovens e adultos, em razão de defi-
terdisciplinaridade e contextualização ciências estruturais das escolas (instala-
dos conhecimentos. ções, laboratórios, apoio aos alunos em
transporte, alimentação etc.);; pelo es-
Em termos operacionais, o que
gotamento físico dos trabalhadores na
se pode encontrar de diferencial nes-
jornada noturna;; e pelo despreparo dos
te programa em relação ao que as di-
professores para lidar com esses alunos
retrizes curriculares do ensino médio
que, em geral, trazem lacunas nos con-
vigentes apregoam são a elevação da
teúdos relativos ao ensino fundamen-
carga horária mínima para três mil ho-
tal, mas são portadores de experiên-
ras;; a dedicação exclusiva do docente
à escola;; e o estabelecimento de que cias de vida e maturidade importantes
o mínimo de 20% da carga horária para a aprendizagem, embora não re-
total do curso seja destinado a ativi- conhecidas pelos métodos e programas
dades optativas e disciplinas eletivas, tradicionais da escola.
a serem escolhidas pelos estudantes. Um número crescente de estudos,
Embora indique que a “escola não se pesquisas, dissertações e teses sobre o
limite ao interesse imediato, pragmá- ensino médio integrado tem sido reali-
tico e utilitário” (Brasil, 2009, p. 4) e zado,3 mas ainda não existe suficiente
tenha princípios convergentes com a acúmulo de conhecimentos sobre os
concepção do ensino médio integrado, entraves conceituais e políticos à sua
não a explicita como base do progra- compreensão e implementação.

312
Ensino Médio Integrado

Notas
1
O termo educação integral compartilha da ideia de uma educação mais completa, mas a reduz
à duração ampliada da jornada escolar e ao sentido de ensino com outros recursos pedagó-
gicos, além dos tradicionais, em implantação, até agora, no ensino fundamental, pré-escolar
e creches. “O Programa Mais Educação, criado pela portaria interministerial nº 17/2007,
E
aumenta a oferta educativa nas escolas públicas por meio de atividades optativas que foram
agrupadas em macrocampos como acompanhamento pedagógico, meio ambiente, esporte
e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, prevenção e promoção da saúde,
educomunicação, educação científica e educação econômica” (Brasil, s.d.).
2
Instituído pelo decreto no 5.840, de 13 de julho de 2006.
3
Ver, por exemplo, os trabalhos reunidos em Frigotto, Ciavatta e Ramos, no prelo.

Para saber mais


BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico – classe, código e controle.
Petrópolis: Vozes, 1996.
BRASIL. Decreto nº 2.208, de 17 de abril de 1997: regulamenta o § 2º do art. 36
e os arts. 39 a 42 da lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, seção
1, p. 7.760, 18 abr. 1997.
______. Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004: regulamenta o § 2º do art. 36
e os arts. 39 a 41 da lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 26 jul. 2004.
______. Decreto nº 5.840, de 13 de julho de 2006: institui, no âmbito federal,
o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação
Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – Proeja, e dá ou-
tras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 14 jul. 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/Decreto/D5840.htm.
Acesso em: 14 set. 2011.
______. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a política
de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(Pronera). Diário Oficial da União, Brasília, 5 nov. 2010.
______. Lei nº 11.741, de 16 de julho de 2008: altera dispositivos da lei nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação na-
cional, para redimensionar, institucionalizar e integrar as ações da educação pro-
fissional técnica de nível médio, da educação de jovens e adultos e da educação
profissional e tecnológica. Diário Oficial da União, Brasília, 17 jul. 2008.
______. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971: fixa diretrizes e bases para o ensi-
no de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, seção
1, p. 6.377, 12 ago. 1971.

313
Dicionário da Educação do Campo

______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabelece as Diretrizes e Bases da


Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, p. 27.833, 23 dez. 1996.
______. C ONSELHO N ACIONAL DE E DUCAÇÃO (CNE); C ÂMARA DE E DUCAÇÃO
B ÁSICA (CEB). Resolução CNE/CEB, nº 1, de 3 de abril de 2002: Institui
diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. Brasília:
Secad, 2002.
______. ______;; ______. Resolução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008: Di-
retrizes complementares para a educação básica nas escolas do campo. Diário
Oficial, Brasília, seção 1, p. 81, 29 abr. 2008. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.
gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/educacao/educacao-rural/
resolucao_MEC_2.08. Acesso em: 4 nov. 2011.
______. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC) Diretrizes para implantação e implementação
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p o r t a l . m e c. g ov. b r / i n d e x . p h p ? I t e m i d = 8 6 & i d = 1 2 3 7 2 & o p t i o n = c o m _
content&view=article. Acesso em: 19 jun. 2011.
______. ______. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA (SEB). Programa Ensino Mé-
dio Inovador: documento orientador. Brasília: MEC, 2009. Disponível em: http://
portal.mec.gov.br/dmdocuments/documento_orientador.pdf. Acesso em:
18 jun. 2011.
______. ______. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DI-
VERSIDADE E INCLUSÃO(SECADI). Escola ativa: projeto base. Brasília: MEC/Secadi,
2008a.
______. ______. ______. Projeto base do Programa Escola Ativa. Brasília: MEC/
Secadi, 2008b.
______. ______. ______. Programa Escola Ativa: orientações pedagógicas para for-
mação de educadoras e educadores. Brasília: MEC/Secadi, 2009b.
______. ______; INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS
ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pnera).
Brasília: MEC/Inep, 2005.
______. ______; ______. Censo escolar. Brasília: MEC/Inep, 2009a.
CIAVATTA, M. A formação integrada e a questão da interdisciplinaridade: exercí-
cio teórico ou realidade possível? In: ENCONTRO DE PROFESSORES DO INSTITUTO
FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE, 1. Anais... Natal, 2010. (Mimeo.).
F RIGOTTO , G. A interdisciplinaridade como problema e como necessidade
nas ciências sociais. Educação e realidade, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 63-72,
jul.-dez. 1993.

314
Escola Ativa

______;; CIAVATTA, M.; RAMOS, M. Ensino médio integrado: concepção e contradições.


São Paulo: Cortez, 2005.
______;; ______;; ______ (org.). Produção de conhecimentos sobre o ensino médio integrado:
dimensões epistemológicas e político-pedagógicas. Rio de Janeiro: Escola Politéc-
E
nica de Saúde Joaquim Venâncio. (No prelo).
GRAMSCI, A. La alternativa pedagógica. Barcelona: Fontamara, 1981.
______. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991.
SANTOMÉ, J. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1998.

ESCOLA ATIVA
Adriana D’Agostini
Celi Zulke Taffarel
Claudio de Lira Santos Júnior

A escola ativa é uma estratégia volvimento da Educação (PDE), em


metodológica implantada inicialmen- 2008. As regiões que mais têm classes
te pelo Governo Fernando Henrique multisseriadas são Norte, Nordeste e
Cardoso, que continuou no Governo Centro-Oeste. A escola multisseriada
Luiz Inácio Lula da Silva e no Gover- é uma realidade na educação no e do
no Dilma Rousseff, e que se destina às campo que não pode ser ignorada. As
salas multisseriadas, ou escolas peque- posições sobre a multisseriação são po-
nas, em locais de difícil acesso e con- lêmicas e de crítica, por terem a seria-
ta com baixa densidade populacional;; ção como referência de lógica escolar
com apenas um professor, todas as sé- mais adequada à aprendizagem. Assim,
ries estudam juntas numa mesma sala há muito preconceito e desqualificação
de aula. Elas representaram em 2011 das escolas multisseriadas, porém elas
mais de 50% das escolas do campo. são uma forma possível e necessária de
Somam no Brasil 51 mil escolas com organização escolar no campo e podem
classes multisseriadas, localizadas prin- ser referência de qualidade de ensino
cipalmente no campo. Foram, ao todo, se organizadas por ciclos e por prin-
3.106, dos 5.565 municípios brasilei- cípios multidisciplinares. Isso porque
ros, a aderirem ao Programa Escola toda criança tem direito a estudar pró-
Ativa, por meio do Plano de Desen- ximo à sua casa e aos seus familiares;; o

315
Dicionário da Educação do Campo

transporte escolar é demasiado perigo- e promoveu ações na América Latina


so para crianças pequenas, e o cansaço para desenvolver e melhorar a qualida-
causado pelo mesmo é um agravante de das escolas multisseriadas que se es-
para a aprendizagem. Essas escolas pelharam na experiência desenvolvida
podem/devem se organizar de forma a na Colômbia.
superar a seriação e a fragmentação do Assim, a Colômbia foi a experiên-
conhecimento, favorecendo um traba- cia parâmetro para essa construção no
lho por ciclos de aprendizagem;; essas Brasil, em 1996, nos estados do Nordeste,
escolas constroem e mantêm uma re- por meio do Fundo de Fortalecimento
lação de reciprocidade, de coletivida- da Escola (Fundescola). No Governo
de, de referência cultural e de organi- Fernando Henrique Cardoso, com fi-
zação social nas comunidades em que nanciamento do Banco Mundial, o pro-
estão inseridas. grama se denominou Programa Escola
Ativa. Consolidado, portanto, em 12 paí-
Surgimento da Escola ses, o programa entrou no Brasil pela
Ativa na América Latina via da capacitação de professores.
Na década de 1970, o escolanovis-
mo (Pugina, 2009) orientou a proposta,
A Escola Ativa no Brasil
formulada na Colômbia, do Programa Segundo o documento Diretrizes para
Escuela Nueva, criado para atender as implantação e implementação da estratégia
classes multisseriadas. metodológica escola ativa (Brasil, 1996),
O ideário da Escola Nova tem suas um grupo de técnicos da direção ge-
raízes no liberalismo, e representou ral do Projeto Educação Básica para o
uma reação à escola tradicional. Muitas Nordeste (Projeto Nordeste), do Mi-
dessas ideias pedagógicas já eram co- nistério da Educação, e técnicos dos
locadas em prática no final do século estados de Minas Gerais e Maranhão
XIX, em plena ascensão do capitalis- foram convidados pelo Banco Mundial
mo. As ideias básicas são: a centralida- a participar, na Colômbia, de um cur-
de da criança nas relações de aprendi- so sobre a estratégia “Escola Nova –
zagem;; o respeito às normas higiênicas;; Escola Ativa”, desenhada por um gru-
a disciplinarização do corpo e dos ges- po de educadores colombianos que,
tos;; a cientificidade da escolarização de havia mais de 20 anos, atuava com clas-
saberes e fazeres sociais;; e a exaltação ses multisseriadas daquele país (Brasil,
do ato de observar, de intuir, na cons- 2009b, p. 12-14).
trução do conhecimento. Tal ideário De 1996 até 2004, ou seja, dez anos
encontra ressonância no Manifesto dos após a sua implantação, o programa
Pioneiros, de 1932.1 foi avaliado e sofreu severas críticas,
O programa Escola Ativa estava principalmente em decorrência de suas
dirigido ao atendimento das regiões referências econômicas de base neoli-
com baixa densidade populacional e beral, das referências teóricas constru-
que apresentavam problemas de bai- tivistas e de sua ineficiência para alterar
xa qualidade educacional. Durante a os índices de qualidade da educação
década de 1970, a Oficina Regional básica no campo.
para a Educação na América Latina e De agosto de 2004 até setembro
no Caribe (Orealc) (2000) apresentou de 2006, o programa Escola Ativa,

316
Escola Ativa

mesmo com a criação da Secretaria de uma ação prioritária para a educação bá-
Educação Continuada, Alfabetização, sica no campo, e as universidades fede-
Diversidade e Inclusão (Secadi), per- rais foram alçadas a participar das inicia-
maneceu na estrutura do Fundo Nacio- tivas nos estados brasileiros, juntamente
nal de Desenvolvimento da Educação com as secretarias de Educação, o que E
(FNDE) – agência que faz a gestão dos possibilitou um aprofundamento das crí-
recursos do Ministério da Educação ticas à proposição teórico-metodológica
(MEC) advindos do Banco Mundial. O do programa.3
programa somente passou para a Secadi Em 2009, a expansão do programa
no decorrer de 2007. Foram encerradas assume dimensão nacional, abrangen-
as transações com o Banco Mundial, e do aproximadamente 3.100 municípios,
o MEC assumiu o programa com re- com financiamento que toma a maior
cursos próprios, expandindo-o a todas parte do orçamento da Secadi. Porém,
as regiões do país e transferindo, então, ao analisar a dimensão do programa em
sua gestão à estrutura da Secadi. Para relação aos números reais das escolas
tanto, chegou a solicitar uma avaliação do campo, ainda é pouco abrangente,
com vistas a redirecionamentos, mas pois no universo da realidade da educa-
esta avaliação, feita pela Universidade ção do campo no Brasil o número total
Federal do Pará (UFPA), nunca chegou de escolas multisseriadas é de aproxi-
a ser considerada. madamente 51 mil, a maioria delas no
O processo de reformulação do Nordeste (Brasil, 2009a).
programa se dá em confronto e con-
flito com as concepções apresentadas Problema da implementação
nas “Diretrizes operacionais para a do programa Escola Ativa
educação básica nas escolas do cam-
po” (resolução CNE/CEB nº 1, de 3 “Melhorar a qualidade do desempe-
de abril de 2002) (Brasil, 2002) e nas nho escolar em classes multisseriadas
“Diretrizes complementares, normas das escolas do campo” (Brasil, 2008,
e princípios para o desenvolvimento p. 33) é o objetivo do programa Esco-
de políticas públicas de atendimento la Ativa. No entanto, este objetivo não
à educação básica do campo” (reso- vem sendo alcançado. Nas avaliações da
lução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril própria Secadi, os problemas advêm
de 2008) (Brasil, 2008). Nas reformu- da base das escolas multisseriadas, que
lações propostas para o programa, são possuem estruturas precárias e profes-
levadas em consideração formulações sores leigos, sem formação continuada,
de alguns autores a respeito de dire- desestimulados e resistentes ao novo.
trizes para a Educação do Campo.2 O Além disso, a Secadi alega que as secre-
programa avança em suas formulações, tarias estaduais e municipais são muito
mas não assume o referencial teórico e limitadas frente às necessidades dessas
metodológico da Educação do Campo. escolas e de implementação do progra-
Desde 2008, o programa expandiu-se ma. Em relação à sua própria atuação,
para todo o Brasil, recebeu financiamento a Secadi assume a responsabilidade
direto do MEC e deixou de estar atrelado quanto ao atraso do material didático e
ao Banco Mundial. Além disso, os livros kits pedagógicos para que a metodolo-
foram revisados, mudados e reeditados. O gia do programa possa ser efetivada de
programa foi assumido pela Secadi como acordo com o seu planejamento.

317
Dicionário da Educação do Campo

Diante dos indicadores de pesqui- contingente de professores, entre ou-


sas publicadas4 sobre as experiências tros. Estes problemas foram expressos
realizadas e das experiências desen- pelos participantes dos processos de
volvidas em algumas instituições de capacitação, em documentos divulga-
ensino superior (IES), apontam-se dos que permitem localizar as reivin-
como problemas e dificuldades:5 desin- dicações dos professores do campo no
formação sobre o programa, atraso na que diz respeito às responsabilidades
aprovação, liberação e repasse de re- dos governos federal, estadual e muni-
cursos;; falta de condições necessárias cipal e das universidades para garantir
nas IES e na Coordenação Estadual efetivamente a implementação de dire-
da Educação do Campo para execução trizes da educação do campo nas esco-
do programa – difícil acesso à comuni- las multisseriadas.
cação com os municípios por falta de Diante do exposto, questiona-se
recursos como linha telefônica, servi- como um programa voltado apenas
ço de correio, fax e computadores;; em às escolas multisseriadas, que é um
algumas IES, a falta de pessoal técni- tipo de escola do campo, é assumido
co administrativo e de professores- pela Secadi como ação prioritária para
pesquisadores do quadro efetivo que a educação básica no campo com o
aceitem assumir a formação são um propósito de melhorar a qualidade do
agravante para a realização do progra- desempenho escolar? Diante do mon-
ma;; burocratização do programa;; falta tante de financiamento (trata-se do
de condições dos municípios, estados programa com a maior verba dentro da
e universidades para implementarem Secadi), da abrangência do programa e
de fato políticas educacionais de qua- da real demanda da educação do cam-
lidade;; alta rotatividade dos professo- po, o programa vem sendo questiona-
res e contratos temporários;; atraso no do também como ação prioritária para
pagamento dos bolsistas;; quantidade concretizar as diretrizes operacionais
insuficiente de material para as escolas da educação do campo no que diz res-
que aderiram ao programa;; defasagem peito a sua capacidade de “melhorar a
dos dados pelo atraso de anos na libe- qualidade do desempenho escolar em
ração de materiais e recursos;; material classes multisseriadas das escolas do
de orientação pedagógica defasado, de campo” (Brasil, 2008b).
base neoliberal e escolanovista, o que
fragiliza a formação e a alfabetização
dos educandos – os livros são fechados O programa: aspectos
e não permitem autonomia no plane- teórico-metodológicos
jamento do professor;; erros concei-
tuais e com pouco conteúdo esco-
lar nos livros didáticos do programa;; Fundamentação teórica
defeitos e erros de fabricação nos kits
pedagógicos entregues às escolas mu- O programa está fundamentado
nicipais;; falta de logística nas secreta- no liberalismo, na Escola Nova (John
rias estaduais de Educação – faltam Dewey), no construtivismo e no neo-
técnicos especializados, logística de construtivismo (Piaget) expressos
distribuição de material, espaços pú- nas formulações da Organização das
blicos para capacitação de um grande Nações Unidas para a Educação, a

318
Escola Ativa

Ciência e a Cultura (Unesco) com as te- e supervisão de todo o processo. Isso


ses pós-modernas dos sete saberes, en- se dá a partir de seis módulos de for-
tre os quais o “aprender a aprender”.6 mação dos professores da IES capacita-
Essas teses vêm influenciando a educa-
ção no Brasil desde a década de 1920
dos pela equipe da Secadi. As consequ-
ências são a reprodução de conteúdos E
e têm recebido severas críticas, entre desconexos da realidade do campo e,
elas a formulada por Newton Duarte muitas vezes, a dificuldade para repli-
(2004). O programa fundamenta-se na car na escola do campo os conteúdos
metodologia em si e no ambiente pe- tratados com os formadores dos for-
dagógico favorável à aprendizagem, madores. A proposição das IES foi a
centrado no aluno e na não diretivida- alteração dos conteúdos do processo
de pedagógica. O professor é um faci- de formação, com ênfase na forma-
litador da aprendizagem. O conteúdo ção de professores para trabalhar
é flexível e deve ser priorizado o estu- coletivamente e construir o projeto
do da realidade em que os alunos es- político-pedagógico, os currículos e
tão inseridos. Uma das consequências os programas escolares de forma au-
de tal metodologia é o esvaziamento do tônoma, adequada a cada realidade;;
conteúdo clássico da escola e a não essas medidas foram implantadas nos
elevação do pensamento científico dos estados da Bahia, de Santa Catarina
alunos. Tanto a Secadi quanto muitas e de Minas Gerais. O programa dis-
universidades participantes, cientes põe de financiamento para kits esco-
dessas consequências, propuseram re- la, livros didáticos, formação, bolsas
formulações e reconceptualizações na e supervisão.
base teórico-metodológica do progra-
ma, buscando a fundamentação nas
teorias críticas da educação. Portanto,
Recursos humanos
o programa apresenta em sua formula- Os recursos humanos compreen-
ção elementos teóricos não críticos. dem professores-pesquisadores e
formadores, das IES, que são respon-
Operacionalidade sáveis pela elaboração do conteúdo
e pela organização dos módulos de
O programa consiste em formação, formação;; técnicos supervisores, das
multiplicação e monitoramento, via- secretarias de Educação do estado,
bilizados da seguinte forma: a Secadi responsáveis por acompanhar e mo-
oferece formação e orientação para os nitorar todo o processo;; professores
professores-pesquisadores e os for- multiplicadores, técnicos das secre-
madores das IES e para os técnicos tarias de Educação dos municípios,
responsáveis pelo monitoramento das responsáveis por replicar/multiplicar
secretarias de Educação dos estados;; as a capacitação para os professores que
IES oferecem formação e orientação realmente atuam nas classes multis-
para os multiplicadores (técnicos das seriadas. Essas ações acontecem em
secretarias municipais de Educação). centros de formação, denominados
Esses, por sua vez, multiplicam a for- macrocentros (regional) e microcen-
mação para os professores de escolas tros (em cada município), por meio
multisseriadas. Os técnicos das secreta- de grupos de estudos, oficinas, pales-
rias estaduais realizam monitoramento tras, mesas-redondas etc.

319
Dicionário da Educação do Campo

Críticas acumuladas na política do programa é alienadora,


uma vez que o programa é ape-
implantação do programa
nas uma estratégia metodológica,
Entre as críticas acumuladas nos centrada na neutralidade da técnica
debates decorrentes de estudos ante- de ensino.
riores em IES e da implementação do • O financiamento: tal como sua orienta-
programa Escola Ativa por parte de ção teórica, tem origem na Unesco,
coordenadores, professores formado- mas encontra-se em situação ins-
res, supervisores e professores multi- tável na atualidade, no Governo
plicadores, destacamos: Dilma Rousseff, perante os cortes
no orçamento executados no iní-
cio do ano de 2011 no montante
• A origem do programa: com financia- de 50 bilhões de reais. O progra-
mento do Banco Mundial como ma não está assegurado em face da
política compensatória, via orga- fragilidade das políticas públicas
nismos multilaterais, além de via- educacionais do governo e diante
bilizado pelo Governo Fernando dos problemas por que passam os
Henrique Cardoso, com seu perfil estados em decorrência da crise do
de política focal e assistencialista, o capitalismo. A regulamentação via
programa nasce para atender esco- decreto da educação do campo não
las do Norte, Nordeste e Centro- assegura os programas como políti-
Oeste, e agora se destina a todas as ca pública permanente.
classes multisseriadas do campo. • A relação entre governo federal, uni-
• Qualidade do ensino e aprendizagem do versidades e secretarias de Educação de
programa: estudos iniciados duran- municípios e estados: é complicada
te o Governo Fernando Henrique e burocratizada, além de inter-
Cardoso e consolidados no Gover- ferir na autonomia da escola e dos
no Luiz Inácio Lula da Silva con- professores.
cluíram que, durante os quinze anos • A preparação e a formação dos educadores:
de implantação do programa Esco- estão voltadas somente para a téc-
la Ativa, não houve avanços signi- nica de ensino, para a gestão res-
ficativos na situação das escolas e trita e para a dimensão pedagógica
na aprendizagem dos estudantes e técnica, secundarizando as de-
do campo. Portanto, a estrutura, a mais dimensões do ato de ensinar
fundamentação teórica e a metodo- e aprender, como o são as dimen-
logia do programa não garantiram sões do pensamento e das atitu-
até o momento qualidade de ensino des científica, política, ética, moral
e efetivação da aprendizagem. e estética.
• A base teórica do programa: tem suas • A falta de autocrítica: de 1998 a 2004
raízes no pragmatismo e nas con- não foram realizados balanços ou
cepções escolanovistas e neocons- autocríticas do programa;; de 2004
trutivistas, não atende às necessida- a 2008 foram realizadas pequenas
des de uma consistente base teórica alterações, mas que não resultaram
sobre Educação do Campo para em mudanças significativas. Já em
sustentar o trabalho pedagógico setembro de 2011 foram realiza-
nas escolas do campo. A orientação das reuniões com todos os setores

320
Escola Ativa

envolvidos para avaliação e rees- está sendo proposta somente do


truturação do programa, que fará ponto de vista técnico-pedagógico,
parte do novo pacote, chamado faltando uma dimensão científica
Programa Nacional de Educação
do Campo (Pronacampo), em fase
consistente e a dimensão política,
bem como a explicitação dos dados E
de implantação. concretos do balanço realizado nos
• A não reconceitualização do programa quinze anos do programa.
em sua nova versão: a nova versão do • Falta de continuidade: o programa não
programa, com reformulações ela- atingiu o ponto de irreversibilida-
boradas em 2008, rebaixa novamen- de que garanta a sua continuidade
te a teoria e incorpora de maneira em outro patamar qualitativo.
aligeirada noções da Educação do
Campo. O programa não atingiu
um grau de reformulação nacional
Proposta para uma educação
capaz de identificá-lo com os fun- de qualidade no campo
damentos da Educação do Campo,
Para universalizar a educação básica
que têm sua identidade relacionada
no campo e melhorar a qualidade do
às lutas sociais pela Reforma Agrá-
desempenho escolar em classes multis-
ria e por outro modelo de desenvol-
seriadas das escolas do campo, faz-se
vimento econômico no campo.
• A não presença dos movimentos de luta necessária uma política global, articu-
social no campo: os movimentos so- lada, permanente, com financiamento
ciais não funcionam como articu- adequado e uma gestão pública, trans-
ladores dos povos do campo ao parente, simplificada e com controle
programa e tecem críticas severas a social e, fundamentalmente, com a par-
ele, principalmente porque a imple- ticipação dos povos do campo, com os
mentação do programa, da forma movimentos que articulam suas lutas.
como vem se dando, compromete As formações inicial e continuada
a formação humana nas escolas do devem ser enfatizadas, priorizadas e
campo em áreas de Reforma Agrá- elaboradas de forma consistente pelas
ria e não leva em consideração as IES. Elas não devem ser uma mera for-
experiências acumuladas pelos mo- mação técnica, e têm de estar sintoni-
vimentos sociais. zadas com as propostas mais avançadas
• A burocracia e os critérios na aplicação dos para a formação de professores desen-
recursos, que desconsideram a realidade do volvida no país, como a proposta da
campo: não são permitidos a compra Associação Nacional de Formação de
de materiais permanentes – equipa- Profissionais da Educação (Anfope),7
mentos didáticos – e o pagamento e as propostas em desenvolvimento
de professores para as capacitações nos cursos de formação de professores
no interior dos estados, principal- implementados pelas IES e articulados
mente de professores sem experiên- pelo Programa Nacional de Educação
cia no magistério superior, exigência em Áreas de Reforma Agrária (Pronera),
para o recebimento de bolsa. como os cursos de Pedagogia da Ter-
• Hierarquização do programa e agressão ra, bem como os cursos de licenciatura
à autonomia universitária: constata-se em Educação do Campo, desenvolvidos
que a preparação dos formadores pela própria Secadi.

321
Dicionário da Educação do Campo

Faz-se necessária outra fundamen- res assalariados rurais, os pescadores


tação teórica do programa, baseada na artesanais, os agricultores familiares,
tendência crítica da educação, para al- os povos das florestas, os caboclos e
terações na prática pedagógica e para outros que produzem as suas condi-
elevação do padrão cultural de profes- ções materiais de existência mediante
sores e estudantes no Brasil. o trabalho no meio rural, para que se
Os materiais didáticos elaborados substitua o programa por uma política
para uso nacional não devem conter de educação básica do campo.
erros e precisam ser utilizados de ma- Diante disto, vem sendo proposto
neira a favorecer o planejamento do que a Secadi realize encontro de avalia-
professor e auxiliar o desenvolvimento ção e redimensionamento do progra-
das funções psíquicas superiores das ma com os responsáveis implicados no
crianças do campo. Este material deve mesmo, ampliando a base do diálogo
chegar rapidamente às escolas e não fi- com aqueles que realmente represen-
car dependente de uma logística nos es- tam as populações do campo e os mo-
tados em que o programa não funciona. vimentos de luta social no campo.
O aporte financeiro deve ser ade- O redimensionamento e a recon-
quado para garantir condições concre- ceitualização do programa vêm se
tas de trabalho, de produção de ciência dando, como se comprova pela apro-
e tecnologia, e de implementação e ma- vação do decreto nº 7.352, de 4 de
nutenção desta tecnologia no campo, novembro de 2010, que dispõe sobre
a fim de assegurar a permanência do a política de educação do campo e o
estudante no campo. Isto nos faz reco- Pronera, com a finalidade de avançar
nhecer a relevância da defesa dos 10% para uma política pública efetiva e
do produto interno bruto (PIB) para a ampliada, de formação inicial e conti-
educação brasileira, item a ser incluí- nuada de professores do campo para a
do e aprovado no Plano Nacional de educação básica que abranja todos os
Educação (PNE) 2011-2020. tipos de escolas do campo em sua real
O Escola Ativa deve superar o es- demanda no Brasil.
tágio de mero programa desarticulado Os rumos da Educação do Campo
para incluir o Sistema Nacional Inte- dependem fundamentalmente da luta
grado de Educação, pela qual cabe aos diuturna travada entre sujeitos que se
entes federados assumirem de fato as identificam e se inserem em projetos
responsabilidades na implementação e de sociedade e de educação antagô-
consolidação de uma política que ga- nicos. A posição dos movimentos de
ranta a todos uma educação pública, luta social do campo, articulando os
gratuita e de qualidade no campo, com povos do campo, a posição de fóruns
um padrão qualitativo elevado. nacionais e estaduais, como o Fórum
É imprescindível que haja uma de Educação do Campo (Fonec), lan-
forte relação com os movimentos de çado em 17 de agosto de 2010, e a po-
lutas sociais do campo (sem-terras, sição dos demais organismos de luta
ribeirinhos, quilombolas, indígenas, da classe trabalhadora, como partidos
caiçaras, atingidos por barragem, fun- políticos e centrais sindicais, influen-
do de pasto, extrativistas) e demais ciarão decididamente os rumos da
povos do campo, como os trabalhado- educação pública.

322
Escola Ativa

Notas
1
Segundo Menezes e Santos, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova é “um docu-
mento escrito por 26 educadores, em 1932, com o título A reconstrução educacional no Brasil:
ao povo e ao governo. Circulou em âmbito nacional com a finalidade de oferecer diretrizes para
uma política de educação” (2002). Ver também http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/
E
dicionario.asp?id=279.
2
Entre elas, os trabalhos de Kolling, Cerioli e Caldart, 2002;; Kolling, Nery e Molina, 1999a;;
e Molina e Jesus, 2004.
3
O trabalho de Marsiglia e Martins (2010) traz uma análise do teor dessas críticas.
4 Entre esses estudos, destaca-se o do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação do Cam-
po da Amazônia (Geperuaz). Ver mais em Hage, 2009.
5
A solicitação de audiências às autoridades, pelos coordenadores do programa na Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA), deixa evidente os problemas e as dificuldades para imple-
mentação do programa (Taffarel e Santos Junior, 2010).
6
O neo-escolanovismo é atualmente difundido a partir do lema “aprender a aprender”,
que, para Saviani, desloca o “processo educativo do aspecto lógico para o psicológico;; dos
conteúdos para os métodos;; do professor para o aluno;; do esforço para o interesse;; da
disciplina para a espontaneidade, configurando uma teoria pedagógica em que o mais im-
portante não é ensinar e nem aprender algo, isto é, assimilar determinados conhecimentos.
O importante é aprender a aprender, isto é, aprender a estudar, a buscar conhecimentos, a
lidar com situações novas. E o papel do professor deixa de ser o daquele que ensina para ser
o de auxiliar o aluno em seu processo de aprendizagem” (2007, p. 429).
7
Ver http://anfope.spaceblog.com.br/.

Para saber mais


BRASIL. Decreto nº 2.208, de 17 de abril de 1997: regulamenta o § 2º do art. 36
e os arts. 39 a 42 da lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1,
p. 7.760, 18 abr. 1997.
______. Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004: regulamenta o § 2º do art. 36
e os arts. 39 a 41 da lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 26 jul. 2004.
______. Decreto nº 5.840, de 13 de julho de 2006: institui, no âmbito federal,
o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação
Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – Proeja, e dá ou-
tras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 14 jul. 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/Decreto/D5840.htm.
Acesso em: 14 set. 2011.
______. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a política
de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(Pronera). Diário Oficial da União, Brasília, 5 nov. 2010.

323
Dicionário da Educação do Campo

______. Lei nº 11.741, de 16 de julho de 2008: altera dispositivos da lei nº 9.394,


de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para redimensionar, institucionalizar e integrar as ações da edu-
cação profissional técnica de nível médio, da educação de jovens e adultos
e da educação profissional e tecnológica. Diário Oficial da União, Brasília,
17 jul. 2008.
______. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971: fixa diretrizes e bases para o ensino
de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1,
p. 6.377, 12 ago. 1971.
______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabelece as Diretrizes e Bases
da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, p. 27.833, 23 dez.
1996.
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2002.
______. ______;; ______. Resolução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008: diretri-
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ESCOLA DO CAMPO
Mônica Castagna Molina
Lais Mourão Sá

A concepção de escola do cam- e das práticas de educação dos traba-


po nasce e se desenvolve no bojo do lhadores do e no campo.
movimento da E DUCAÇÃO DO C AMPO, Sendo assim, ela se coloca numa re-
a partir das experiências de formação lação de antagonismo às concepções
humana desenvolvidas no contexto de escola hegemônicas e ao projeto de
de luta dos movimentos sociais cam- educação proposto para a classe traba-
poneses por terra e educação. Trata- lhadora pelo sistema do capital. O
se, portanto, de uma concepção que movimento histórico de construção
emerge das contradições da luta social da concepção de escola do campo faz

326
Escola do Campo

parte do mesmo movimento de cons- a formação integral dos trabalhadores


trução de um projeto de campo e de do campo, para promover simultanea-
sociedade pelas forças sociais da classe mente a transformação do mundo e a
trabalhadora, mobilizadas no momento
atual na disputa contra-hegemônica.
autotransformação humana.
Questão central para a materiali-
E
Assim, a concepção de escola do zação desta condição é a formação da
campo a ser tratada aqui se enraíza no capacidade dirigente da classe trabalha-
processo histórico da luta da classe tra- dora, para que venha a exercer o con-
balhadora pela superação do sistema do trole do processo de reprodução social
capital. O acesso ao conhecimento e a no interesse das necessidades sociais
garantia do direito à escolarização para básicas. Nos termos de Gramsci, esse
os sujeitos do campo fazem parte desta processo formativo está intrinseca-
luta. A especificidade desta inserção se mente vinculado à atividade crítica e
manifesta nas condições concretas em organizativa dos intelectuais orgânicos
que ocorre a luta de classes no campo no conjunto de atividades culturais e
brasileiro, tendo em vista o modo de ideológicas da luta de classes, na dispu-
expansão do AGRONEGÓCIO e suas de- ta entre os projetos de sociedade. Para
terminações sobre a luta pela terra e a Gramsci (1991), a capacidade intelec-
identidade de classe dos sujeitos coleti- tual não é monopólio de alguns, mas
vos do campo. pertence a toda a coletividade, tanto no
A concepção de escola do campo se sentido do acúmulo de conhecimento
insere também na perspectiva grams- ao longo da história da humanidade
ciana da ESCOLA UNITÁRIA, no sentido quanto no sentido da elaboração de
de desenvolver estratégias epistemoló- novos conhecimentos que permitam
gicas e pedagógicas que materializem o compreender e superar as contradições
projeto marxiano da formação huma- do momento presente. O exercício da
nista omnilateral, com sua base unitá- intelectualidade, portanto, é função
ria integradora entre trabalho, ciência e de um “intelectual coletivo”, e, embora
cultura, tendo em vista a formação dos alguns indivíduos desempenhem fun-
intelectuais da classe trabalhadora. ções mais estritamente intelectuais na so-
A intencionalidade de um projeto ciedade, o grau dessa atividade entre seus
de formação de sujeitos que percebam componentes é apenas quantitativo.
criticamente as escolhas e premissas A possibilidade do exercício deste
socialmente aceitas, e que sejam ca- papel fundamental da escola do campo,
pazes de formular alternativas de um contribuindo para a formação desse in-
projeto político, atribui à escola do telectual coletivo, dependerá da forma
campo uma importante contribuição pela qual esta escola estiver conectada
no processo mais amplo de transfor- ao mundo do trabalho e às organiza-
mação social. Ela se coloca o desafio ções políticas e culturais dos trabalha-
de conceber e desenvolver uma for- dores do campo. Isto significa que a
mação contra-hegemônica, ou seja, escolarização em todos os níveis deve
de formular e executar um projeto de promover o conhecimento sobre o
educação integrado a um projeto po- funcionamento da sociedade, sobre
lítico de transformação social liderado os mecanismos de dominação e subor-
pela classe trabalhadora, o que exige dinação que a caracterizam, e sobre o

327
Dicionário da Educação do Campo

modo de integração da produção agrí- culação às questões inerentes à


cola neste projeto de sociedade, a par- sua realidade, ancorando-se na
tir do complexo sistema de relações e temporalidade e saberes pró-
de mediações que constitui o processo prios dos estudantes, na memó-
de desenvolvimento rural. ria coletiva que sinaliza futuros,
Por isso, a escola do campo, pen- na rede de ciência e tecnologia
sada como parte de um projeto maior disponível na sociedade e nos
de educação da classe trabalhadora, se movimentos sociais em defesa
propõe a construir uma prática edu- de projetos que associem as so-
cativa que efetivamente fortaleça os luções exigidas por essas ques-
camponeses para as lutas principais, tões à qualidade social da vida
no bojo da constituição histórica dos coletiva no País. (Brasil, 2002)
movimentos de resistência à expansão
Articulada às possibilidades aber-
capitalista em seus territórios.
tas por esta definição, há ainda outro
Uma das importantes vitórias con- dispositivo legal de grande importância
quistadas na luta dos movimentos so- na perspectiva de remover impedimen-
ciais pela construção desta concepção tos para a construção de projetos dos
de escola do campo foi o seu reconhe- movimentos com as escolas e comuni-
cimento em marcos legais, o que se deu dades, em busca de seu desenvolvimento
somente após muitos anos de experiên- a partir das concepções educativas do
cias e práticas concretas de Educação campesinato, organizada em torno dos
do Campo. O primeiro destes marcos a princípios da Educação do Campo. O
reconhecer e utilizar a expressão escola artigo 4º das “Diretrizes operacionais”
do campo, como figura jurídica legal- estabelece que: “a construção dos pro-
mente reconhecida, portanto demar- jetos político-pedagógicos das escolas
cando uma diferenciação em relação à do campo se constituirá num espaço
expressão escola rural, foram as “Dire- público de investigação e articulação
trizes operacionais para educação básica de experiências e estudos direcio-
das escolas do campo”, de abril de 2002 nados para o mundo do trabalho”
(Brasil, 2002), expedidas pelo Conselho (Brasil, 2002). Este dispositivo legitima
Nacional de Educação (CNE). O fato as experiências em curso, e abre espaço
de esta denominação ser incorporada na para projetos a serem propostos pelos
agenda político-jurídica configura avan- movimentos sociais para “ocupar” as
ço e vitória dos que reafirmam a impres- escolas rurais, visando a sua transfor-
cindibilidade do campo na construção de mação em escolas do campo.
um modelo novo de desenvolvimento.
No âmbito das vitórias nos marcos
Consoante com esta interpretação, legais, conquistadas a partir da luta dos
consideramos relevante destacar a de- movimentos sociais, merece registro
finição conquistada naquelas diretrizes também a definição consagrada no de-
sobre a identidade das escolas do cam- creto no 7.352/2010, que institui a Po-
po, como acontece no parágrafo único lítica Nacional de Educação do Cam-
do artigo 2º: po, sobre o que são escolas do campo.
Em seu artigo primeiro, este decreto
[...] a identidade das escolas do estabelece que se compreende por:
campo é definida pela sua vin- “Escola do campo: aquela situada em

328
Escola do Campo

área rural, conforme definida pela Fun- A partir destas ideias, faz sentido
dação Instituto Brasileiro de Geografia afirmar que a escola do campo pode
e Estatística – IBGE, ou aquela situa- contribuir para a formação de novas
da em área urbana, desde que atenda
predominantemente a populações do
gerações de intelectuais orgânicos ca-
pazes de conduzir o protagonismo dos E
campo” (Brasil, 2010). trabalhadores do campo em direção à
Mantém-se, neste instrumento legal consolidação de um processo social
que eleva a Educação do Campo à po- contra-hegemônico. Mas esta afirmação
lítica de Estado, não só a demarcação se faz a partir do reconhecimento dos
das escolas do campo neste território, limites que a escola, ainda que trans-
mas também a importante definição de formada em seus aspectos principais,
que sua identidade não se dá somente pode vir a ter nos processos maiores
por sua localização geográfica, se dá de transformação social.
também pela identidade dos espaços Partindo dessa materialidade, a
de reprodução social, portanto, de vida Educação do Campo, nos processos
e trabalho, dos sujeitos que acolhe em educativos escolares, busca cultivar
seus processos educativos, nos diferen- um conjunto de princípios que devem
tes níveis de escolarização ofertados. orientar as práticas educativas que
Nesta tarefa coloca-se também promovem – com a perspectiva de
uma disputa epistemológica por fun- oportunizar a ligação da formação es-
damentos ético-políticos e concei- colar à formação para uma postura na
tuais que garantam a legitimidade da vida, na comunidade – o desenvolvi-
construção do projeto. Como toda a mento do território rural, compreen-
riqueza no sistema do capital, o co- dido este como espaço de vida dos
nhecimento científico também está sujeitos camponeses.
desigualmente distribuído, e a disputa A partir das concepções sobre as
entre projetos de sociedade coloca em possibilidades de atuação das institui-
pauta a necessidade de desconstrução ções educativas na perspectiva contra-
destes privilégios epistemológicos. A hegemônica, além das funções tradi-
escola do campo deve fazer o enfren- cionalmente reservadas à escola, como
tamento da hegemonia epistemológica a socialização das novas gerações e a
do conhecimento inoculado pela ciên- transmissão de conhecimentos, a esco-
cia capitalista. la do campo, que forja esta identida-
O conhecimento científico acumu- de, pode ser uma das protagonistas na
lado pela humanidade não pode ser criação de condições que contribuam
usado com neutralidade;; ele deve dialo- para a promoção do desenvolvimento
gar com as contradições vividas na rea- das comunidades camponesas, desde
lidade destes sujeitos, o que envolve a que se promova no seu interior im-
busca de alternativas para as condições portantes transformações, tal como já
materiais e ideológicas do trabalho vem ocorrendo em muitas escolas no
alienado e para as dificuldades de re- território rural brasileiro, que contam
produção social da classe trabalhadora com o protagonismo dos movimentos
do campo, todas elas condições ineren- sociais na elaboração de seus projetos
tes ao antagonismo intrínseco à lógica educativos e na sua forma de organizar
do capital. o trabalho pedagógico.

329
Dicionário da Educação do Campo

Podemos destacar, então, quais são construção de um projeto histórico de


as principais questões que devem ser classe. Portanto, é importante distin-
alteradas na escola do campo, para que guir objetivos formativos de objetivos
possa atuar de acordo com os princí- da educação escolar, para que estes úl-
pios da Educação do Campo. Antes de timos se vinculem à resposta político-
mais nada, é preciso compreender que filosófica que se quer dar à pergunta
não se pode pensar em transformação sobre a construção de um novo projeto
da escola sem pensar na questão da de sociedade e sobre a formação das
transformação das finalidades educati- novas gerações dentro deste projeto.
vas e na revisão do projeto de forma- A partir do projeto formativo rede-
ção do ser humano que fundamenta senhado, outras dimensões importantes
estas finalidades. Qualquer prática edu- e que precisam ser alteradas, para garantir
cativa se fundamenta numa concepção que as escolas tradicionais do meio rural
de ser humano, numa visão de mundo possam vir a se transformar em escolas
e num modo de pensar os processos de do campo, referem-se às relações sociais
humanização e formação do ser huma- vividas na escola, cujas mudanças devem
no (Caldart, 2010). ser dirigidas a: 1) cultivar formas e estra-
No entanto, a colocação político- tégias de trabalho que sejam capazes de
filosófica destas questões tende a emer- reunir a comunidade em torno da escola
gir apenas nos momentos em que a so- para seu interior, enxergando nela uma
ciedade está se colocando o desafio de aliada para enfrentar seus problemas e
vincular a educação à fundação de um construir soluções;; 2) promover a supe-
novo projeto histórico. No momento ração da prioridade dada aos indivíduos
atual, em que as contradições do modo isoladamente, tanto no próprio percur-
de produção e da sociabilidade capita- so formativo relacionado à construção
listas enfrentam uma crise estrutural, de conhecimentos quanto nos valores
a questão da formação das novas ge- e estratégias de trabalho, cultivando, no
rações é crucial. E, no caso da Edu- lugar do individualismo, a experiência
cação do Campo, a entrada dos filhos e a vivência da realização de práticas e
da classe trabalhadora do campo na estudos coletivos, bem como instituin-
escola, os mais desiguais entre os de- do a experiência da gestão coletiva da
siguais, representa a explicitação inegá- escola;; 3) superar a separação entre tra-
vel da incompetência da ordem educa- balho intelectual e manual, entre teoria
cional vigente para enfrentar o desafio e prática, buscando construir estratégias
de corrigir consequências das desigual- de inserir o trabalho concretamente nos
dades estruturais do próprio avanço do processos formativos vivenciados na es-
sistema do capital no campo. cola (Caldart, 2010).
Assim, torna-se mais necessário do Para que a escola do campo con-
que nunca indagar, a respeito do proje- tribua no fortalecimento das lutas de
to educativo da escola, sobre a especi- resistência dos camponeses, é impres-
ficidade concreta desses sujeitos cam- cindível garantir a articulação político-
poneses e suas necessidades formativas pedagógica entre a escola e a comuni-
específicas;; e, consequentemente, su- dade por meio da democratização do
bordinar a discussão sobre a escola em acesso ao conhecimento científico. As
si mesma às necessidades coletivas de estratégias adequadas ao cultivo desta

330
Escola do Campo

participação devem promover a cons- ao capital, ou seja: ter o trabalho como


trução de espaços coletivos de decisão um valor central – tanto no sentido on-
sobre os trabalhos a serem executa- tológico quanto no sentido produtivo,
dos e sobre as prioridades da comu-
nidade nas quais a escola pode vir a
como atividade pela qual o ser humano
cria, dá sentido e sustenta a vida;; en- E
ter contribuições. sinar a crianças e jovens o sentido de
Outra dimensão significativa nas transformar a natureza para satisfazer
escolas do campo é a lógica do traba- as necessidades humanas, compreen-
lho e da organização coletiva. Ensinar dendo que nos produzimos a partir
os alunos e a própria organização es- do próprio trabalho, e, principalmente,
colar a trabalhar a partir de coletivos ensinando a viver do próprio trabalho
é um relevante mecanismo de forma- e não a viver do trabalho alheio.
ção e aproximação das funções que a Outro aspecto central a ser trans-
escola pode vir a ter nos processos de formado na escola do campo é o fato
transformação social. Esta dimensão de seus processos de ensino e apren-
envolve também as vivências e expe- dizagem não se desenvolverem apar-
riências de resolução e administração tados da realidade de seus educandos.
de conflitos e de diferenças decor- O principal fundamento do trabalho
rentes das práticas coletivas, gerando pedagógico deve ser a materialidade da
aprendizados para posturas e relações vida real dos educandos, a partir da qual
fora da escola. A participação e gestão se abre a possibilidade de ressignificar
por meio de coletivos é mecanismo o conhecimento científico, que já é,
importante na criação de espaços que em si mesmo, produto de um trabalho
cultivem a auto-organização dos edu- coletivo, realizado por centenas de ho-
candos para o aprendizado do conví- mens e mulheres ao longo dos séculos.
vio, da análise, da tomada de decisões Este é um dos maiores desafios e,
e do encaminhamento de deliberações ao mesmo tempo, uma das maiores
coletivas. Com base nessas experiên- possibilidades da escola do campo:
cias, torna-se possível acumular apren- articular os conhecimentos que os
dizados e valores para a construção de educandos têm o direito de acessar,
novas relações sociais fora da escola, a partir do trabalho com a realidade,
com maior protagonismo e autonomia da religação entre educação, cultura e
destes sujeitos. os conhecimentos científicos a serem
No que se refere à pedagogia do apreendidos em cada ciclo da vida e de
trabalho, colocam-se à escola do cam- diferentes áreas do conhecimento. Sur-
po imensos desafios no sentido de ge daí uma grande potencialidade de
contribuir para a transformação das re- dimensões formativas que foram sepa-
lações e ideologias que fundamentam radas pela cultura fragmentada e indi-
as relações sociais na lógica do capi- vidualista do capital, embora, na vida
tal (ver ESCOLA ÚNICA DO TRABALHO e real, estejam articuladas e imbricadas.
TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO). Além de contribuir com a construção
Para uma escola que adote o ponto de da autonomia dos educandos, essas ar-
vista político da emancipação da classe ticulações propiciam a internalização
trabalhadora, trata-se de ressignificar da criticidade necessária à compreen-
os valores da subordinação do trabalho são da inexistência da neutralidade

331
Dicionário da Educação do Campo

científica, com a localização da histo- confrontar e derrotar a escola capita-


ricidade dos diferentes conteúdos e lista, não se deixa enredar pelos muros
dos contextos sócio-históricos nos da escola e, muito menos, pelas quatro
quais foram produzidos. paredes da sala de aula.
Experiências ricas neste sentido Esta possibilidade de conduzir tra-
têm sido desenvolvidas em algumas balhos pedagógicos que superem a sala
escolas vinculadas ao Movimento de aula como espaço central de apren-
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra dizagem traz também outro potencial,
(MST), especialmente nas chamadas que é a construção de estratégias que
escolas itinerantes (ver ESCOLA ITINERAN- visem superar a fragmentação do co-
TE), nas quais tem sido possível ado- nhecimento vigente na grande maioria
tar metodologias que historicamente dos processos de ensino-aprendizagem,
foram capazes de trazer contribuições neste caso, sem ser “privilégio” das es-
neste sentido, como, por exemplo, a colas do campo.
experiência desenvolvida a partir do Retomando as colocações iniciais
sistema de complexos, de Pistrak. sobre as potencialidades de construção
Uma das principais características desta escola do campo, em que se afir-
exitosas desta estratégia de vinculação mou que uma das suas possibilidades é
dos processos de ensino-aprendizagem contribuir para a formação de intelec-
com a realidade social, e com as con- tuais orgânicos do campo, explicita-se a
dições de reprodução material dos importância da mudança deste padrão
educandos que frequentam a escola do de relacionamento das escolas do cam-
campo, refere-se à construção de estra- po com a produção do conhecimento,
tégias pedagógicas que sejam capazes e as contribuições que daí podem advir,
de superar os limites da sala de aula, para melhorar as possibilidades de resis-
construindo espaços de aprendizagem tência dos sujeitos do campo aos pro-
que extrapolem este limite, e que per- cessos de desterritorialização que lhes
mitam a apreensão das contradições do têm sido impostos pelo voraz aumento
lado de fora da sala. A escola do cam- das estratégias de acumulação de capital
po, exatamente por querer enfrentar, desenvolvidas pelo agronegócio.

Para saber mais


BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
(CNE). Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002: institui diretrizes ope-
racionais para a educação básica nas escolas do campo. Diário Oficial da União,
9 abr. 2002.
______. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto no 7.352, de 4 de novembro de 2010:
dispõe sobre a Política Nacional de Educação do Campo e sobre o Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária. Diário Oficial da União, 5 nov. 2010.
BUTTIGIEG, J. A. Educação e hegemonia. In: COUTINHO, C. N.; TEIXEIRA, A. P.
(org.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

332
Escola Itinerante

CALDART, R. S. A educação do campo e a perspectiva de transformação da forma


escolar. In: MUNARIM, A. et al. (org.). Educação do campo: reflexões e perspectivas.
Florianópolis: Insular, 2010.
FREITAS, L. C. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. Campinas:
Papirus, 2003.
E
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991.

ESCOLA ITINERANTE *
Caroline Bahniuk
Isabela Camini

Escola itinerante é a denominação vivem em acampamentos, inicialmente


dada às escolas localizadas em acampa- as crianças. Era comum que elas per-
mentos do Movimento dos Trabalha- dessem o ano letivo devido às mudan-
dores Rurais Sem Terra (MST), movi- ças constantes, à falta de vagas nas
mento social que parte da reivindicação escolas próximas dos acampamentos,
pelo acesso à terra, articulando-a ao e à discriminação sofrida pelo fato de
projeto de transformação social. De- serem sem-terra.
nominam-se itinerantes porque acom- O reconhecimento legal da escola
panham a luta pela Reforma Agrária, itinerante ocorreu pela primeira vez
assegurando a escolarização dos tra- no estado do Rio Grande do Sul, fruto
balhadores do campo. Desta forma, de pressões e reivindicações do MST.
a escola itinerante, em seus objetivos Tal proposta foi debatida e elaborada
gerais, não se diferencia das demais es- pelo Setor de Educação do MST e pela
colas do MST;; o que se altera são as Secretaria da Educação do estado. Em
circunstâncias em que ela está inserida: seguida, foi aprovada pelo Conselho
em um acampamento, que, em geral, Estadual de Educação, sob o parecer
tende a ser um espaço no qual a luta de n° 1.313, no ano de 1996. Porém, esta
classes é mais evidente. proposta vinha sendo construída desde
As escolas itinerantes vêm respon- as primeiras ocupações do MST na dé-
der à necessidade concreta de asse- cada de 1980, nos acampamentos da
gurar a escolarização das pessoas que Encruzilhada Natalino e da Fazenda

*
Este verbete reflete sobre a forma escolar itinerante e suas contribuições para a escola e a edu-
cação do campo, na perspectiva da classe trabalhadora. No entanto, temos clareza de não termos
abarcado todos os aspectos e aprendizados que constituíram essa escola no decorrer dos quinze
anos de sua existência. Por isso, nas referências deste verbete, listamos as principais publicações
sobre a escola itinerante dos acampamentos do MST, assim como outras obras que questionam o
projeto hegemônico de escola. Também indicamos a consulta das pesquisas sobre a temática.

333
Dicionário da Educação do Campo

Annoni, nos quais aconteceram as pri- No primeiro semestre de 2011, o


meiras experiências escolares no MST. referido termo estava sendo questiona-
Neste período, eram denominadas de do e considerado sem valor legal pelo
“escolas de acampamento”, e nelas já governo do estado do Rio Grande do
se colocava a necessidade de construir Sul. Ao mesmo tempo, algumas me-
uma escola que contribuísse para a luta didas foram tomadas pelo MST, pela
da classe trabalhadora. Secretaria da Educação e pelo governo
As escolas itinerantes são escolas pú- do estado para a retomada dessas esco-
blicas que compõem a rede estadual de las nos acampamentos.
ensino e são aprovadas pelos conselhos Convém registrar que a forma esco-
estaduais de Educação. Por se movimen- lar itinerante está organizada de acor-
tarem com a luta, têm de estar vinculadas do com a organicidade do Movimento
legalmente a uma escola base que é a res- e do seu Setor de Educação em cada
ponsável por sua vida funcional: matrícu- estado, e se apresenta com diferenças e
las, certificação, verbas, acompanhamen- singularidades. Todavia, no limite deste
to pedagógico etc. Geralmente, a escola texto, reportamo-nos especialmente às
base localiza-se em um assentamento do experiências do Rio Grande do Sul e do
MST, referenciando-se no projeto educa- Paraná (devido ao seu maior tempo de
tivo do Movimento. existência), às pesquisas e ao processo
Nas itinerantes, de forma geral, os de sistematização realizado, à forma-
educadores responsáveis pela educação ção de educadores, e à nossa vinculação
infantil e pelos anos iniciais do ensino mais direta com as itinerantes localiza-
fundamental são acampados do MST. das nestes estados. Outra questão a des-
E os educadores dos anos finais do tacar é que, nas itinerantes no Paraná,
ensino fundamental e do ensino médio está em curso uma experimentação pe-
são professores da rede estadual de en- dagógica que retoma o diálogo com a
sino, selecionados a partir das exigên- experiência da escola soviética, mais
cias estabelecidas pela Secretaria Es- especificamente no período de 1917-
tadual de Educação. Em alguns casos 1929, a partir das formulações dos pio-
e momentos, assumiram esta modali- neiros da educação: Pistrak, Krupskaya,
dade de ensino estudantes voluntários Shulgin e outros. A pedagogia socialista
das universidades. é um dos pilares da Pedagogia do Mo-
A escola itinerante foi aprovada vimento e, desde o início da formulação
em seis estados: Rio Grande do Sul de propostas para as escolas do MST,
(1996), Paraná (2003), Santa Catarina essa referência é estudada.
(2004), Goiás (2005), Alagoas (2005) Evidenciamos que a escola itine-
e Piauí (2008). Porém, em Goiás, a rante tem apresentando maiores possi-
experiência foi desenvolvida por dois bilidades de contrariar o projeto hege-
anos, e, no Rio Grande do Sul, suas mônico de escola funcional ao capital,
atividades foram interrompidas pelo buscando promover a formação huma-
termo de ajustamento de conduta na das pessoas nela envolvidas. Isso se
(TAC) firmado entre a Secretaria de deve ao fato de estarem localizadas em
Estado da Educação e o Ministério espaços de luta, em que as contradições
Público do Rio Grande do Sul, no se tornam mais evidentes e, queiramos
ano de 2008. ou não, adentram a escola.

334
Escola Itinerante

Todavia, ressaltamos que a escola na educação, e na constituição da esco-


itinerante, ao mesmo tempo que apre- la itinerante.
senta possibilidades, por estar mais dis- De forma distinta, a escola capita-
tante do controle do sistema, também
o compõe e o reproduz, não perdendo
lista, ideologicamente, coloca-se afas-
tada da realidade e das contradições da
E
o peso da instituição escolar e das re- vida. Por isso, pensar numa escola que
lações sociais capitalistas. Sendo assim, subverta a lógica dominante pressupõe
essa escola não se emancipa, em sua to- incorporá-la à vida, permitir que nela
talidade, sem a superação deste modo adentrem os problemas, as dúvidas e
de produção. preocupações a ela ligadas. O desafio
Convém também apontar que as da classe trabalhadora é conseguir re-
itinerantes, por se encontrarem no lacionar essas questões mais imediatas
acampamento e conviverem com a pro- com a totalidade das relações sociais,
visoriedade, enfrentam dificuldades de cindidas por interesses distintos de
estrutura física e pedagógica em maio- classes, o que pressupõe ultrapassar a
res proporções. Se esta situação estimu- compreensão de vida numa dimensão
la a criação de outros espaços escolares imediata e utilitária.
e práticas pedagógicas, também limita o
Sendo assim, consideramos a con-
trabalho pedagógico.
dição da escola itinerante em luta pri-
A seguir, destacaremos alguns as- vilegiada para articular escola e vida.
pectos da organização do trabalho pe- Porém, isso não significa dizer que
dagógico das escolas itinerantes, den- naturalmente ela faça essa relação,
tre eles a relação entre escola e vida, pois requer condições concretas para
a organicidade da escola, os ciclos de tal, dentre as quais a de que os sujei-
formação e avaliação, e a formação tos envolvidos tenham clareza política
de educadores. acerca do projeto histórico em que o
Movimento se referencia e da contri-
Escola itinerante: relação buição da educação e da escola para
entre escola e vida este projeto.
Consideramos que a apropriação
Para iniciar a compreensão da rela- do conceito de atualidade é importan-
ção entre escola e vida, faz-se necessá- te para compreender como a realidade
rio refletir sobre o espaço em que elas pode ser apreendida pela escola. Porém,
se entrecruzam: o acampamento. Essa formar para a atualidade não significa
forma de luta e de pressão pela Refor- negligenciar conteúdos clássicos e his-
ma Agrária constitui-se a partir de tóricos, uma vez que eles compõem o
uma ocupação, e é uma marca caracte- processo da realidade atual.
rística do MST. Então, o que significa formar para a
O acampamento, pelas próprias atualidade? Freitas (2003) afirma que a
necessidades organizativas que ema- formação para a atualidade diz respei-
na, tem sido um lugar potencial para a to a tudo o que em nossa sociedade é
construção de relações mais coletivas e capaz de crescer e se desenvolver;; em
solidárias, bem como de novas relações nosso caso, tem a ver com o capitalis-
e experiências no trabalho, na política, mo e as suas contradições.

335
Dicionário da Educação do Campo

Porém, a formação para a atuali- várias formas de organização viven-


dade não é um processo simples;; nas ciadas pelos educadores e educandos,
escolas itinerantes, pressupõe dominar bem como à relação da escola com a
as relações naturais e sociais do acam- comunidade acampada e as instâncias
pamento e para além dele, com vistas a do Movimento.
apreender a realidade e as suas contra- Nas escolas itinerantes, exercita-se
dições. Para tal, é necessário dominar a organização e aprende-se a desenvol-
os conhecimentos científicos construí- ver a coletividade, sendo que os dife-
dos ao longo da história. rentes sujeitos envolvidos participam
Evidenciamos, por vezes, nas es- de sua gestão, desde suas especifici-
colas itinerantes, uma polarização: ou dades, estabelecendo relações menos
se prioriza trabalhar com temas da verticalizadas no interior da escola.
realidade imediata – secundarizando Os educadores constituem-se em
o papel do conhecimento científico e coletivos para planejar, estudar e pen-
permanecendo no senso comum –, ou sar estrategicamente a escola. Os
se prioriza o conteúdo de forma des- educandos são estimulados a partici-
contextualizada e fragmentada, sem par, nas aulas – eles têm espaço para
estabelecer relações com a realidade. colocar suas opiniões, problematizar;;
No entanto, há também exemplos sig- além disso, organizam-se em grupos
nificativos que superam esta polariza- de trabalho, de estudo, muitas vezes
ção, no que se refere ao trabalho com denominados núcleos de base (NBs),
a atualidade. Alguns estão descritos em com referência à estrutura organizati-
Camini (2009). va presente no acampamento. Também
A condição de itinerância da escola participam dos processos de avaliação
também é atualidade, pois significa tan- do conjunto da escola, do seu próprio
to acompanhar o itinerário do acam- desempenho e dos educadores.
pamento, na direção da garantia de a Os tempos educativos, como tem-
escola caminhar junto com a luta, “de po aula, tempo formatura, tempo auto-
ir aonde o povo está”, quanto realizar organização, tempo trabalho, entre
o ensino para além da sala de aula. Ou outros, desafiam a escola a mover-se,
seja, pode-se aprender em uma marcha, estimulando formas mais participativas
numa ocupação de pedágio ou prédio de gestão. Estes tempos são uma tenta-
público, numa pesquisa no acampa- tiva de buscar desenvolver a formação
mento, na visita a um local do entorno, humana em todas as suas dimensões:
se forem ações planejadas intencio- cognitiva, política, estética, afetiva etc.
nalmente. A itinerância potencializa e
força a escola itinerante a trabalhar
Ciclos de formação
com a atualidade.
humana e avaliação
Organicidade da escola Atualmente, as escolas itineran-
tes no Paraná se organizam por meio
Organicidade é um termo presente dos ciclos de formação humana, numa
no MST e significa o movimento or- tentativa de romper com a lógica da
gânico presente em suas estruturas seriação e, consequentemente, de tem-
organizativas e as relações entre elas. pos homogêneos de desenvolvimento
Na escola, a organicidade refere-se às e aprendizagem. Reconhecer essa he-

336
Escola Itinerante

terogeneidade é importante, pois ques- deles se tornam educadores por causa


tiona um dos fundamentos da escola desta escola. Essa nova forma escolar
capitalista: de que ela ensina tudo a to- também pressupõe um processo contí-
dos e ao mesmo tempo. nuo de formação para que se realize.
Os ciclos se propõem a criar es-
tratégias para que todos aprendam
Salientamos que, desde o início
desta escola, o MST entendeu que ela
E
e se desenvolvam. Nos agrupamentos de só se sustentaria mediante o acompa-
referência, os educandos são reunidos nhamento permanente e direto de suas
considerando sua temporalidade (idade, atividades, por meio do registro, refle-
prioritariamente) e, também, sua apren- xão e sistematização desta experiência
dizagem. A educação básica se constitui escolar, assim como só se sustentaria
de 5 ciclos: educação infantil (2 anos);; assegurando a formação contínua de
3 ciclos no ensino fundamental (3 anos seus educadores.
cada);; e ensino médio (3 anos). A vivência organizativa do acampa-
Pretende-se, dessa maneira, movi- mento é um espaço formativo ímpar;;
mentar a escola, avançando da forma além disso, a escola organiza perma-
estática – seriação –, e criando outras nentemente estudos e planejamentos
a partir das necessidades e potencia- coletivos entre os educadores. Eles são
lidades dos educandos, por exemplo, realizados com apoio pedagógico do
os reagrupamentos, nos quais, a partir Setor de Educação do MST, de edu-
de uma necessidade específica, os edu- cadores/assessores amigos do Movi-
candos são reunidos para além de seu mento. Nessa direção, realizam-se en-
agrupamento de referência. contros e seminários em que se reúnem
Desta forma, a escola não respon- o conjunto de educadores e educandos e
sabiliza individualmente o educando a comunidade escolar, especialmente
por não aprender, mas compromete-se, em âmbito estadual e local.
criando estratégias diversas para supe- Além disso, os educadores itine-
rar tais necessidades. Nesse contexto, a rantes realizam cursos formais, tais
avaliação escolar não pode ser punitiva como: Magistério, Pedagogia da Terra,
e classificatória. Na escola itinerante, Licenciatura em Educação do Campo,
busca-se superar as notas, e o registro Geografia, entre outros, em especial os
da aprendizagem dos alunos é reali- que ocorrem em parceria entre o MST
zado por meio de pareceres descritivos e as universidades públicas brasileiras.
semestrais, que são a síntese da avalia- Outra iniciativa importante do Setor
ção diagnóstica e processual efetivada de Educação do MST foi a realização
ao longo do período. Os instrumentos de três seminários nacionais em 2005,
avaliativos utilizados são diversos: ca- 2006 e 2008, envolvendo educadores
derno de avaliação do educando, pasta de todos os estados onde o MST tem
de acompanhamento, conselho de clas- o projeto de escola itinerante aprovado.
se participativo, entre outros. Esses seminários foram importantes
oportunidades para os educadores se
Formação de educadores encontrarem, dialogarem sobre suas ex-
periências pedagógicas realizadas na iti-
A formação de educadores sempre nerância, nas diferentes regiões do país,
se fez presente com bastante força nas assim como para se alimentarem da
escolas itinerantes, uma vez que muitos mística e da militância coletivamente.

337
Dicionário da Educação do Campo

Enfim, a formação dos educadores Os desafios colocados para esta ex-


itinerantes é um processo intenso, que periência são muitos. Um deles é ampliar
envolve diferentes sujeitos em diferen- e assegurar o projeto de escola itineran-
tes espaços e engloba a formação local te, na perspectiva da classe trabalhadora,
e permanente, a formação em licencia- até que se resolva a questão da Reforma
turas nas universidades, além dos espa- Agrária no país. Outro desafio diz res-
ços formativos próprios da luta. peito ao momento em que esta escola
Em síntese, podemos constatar que se torna escola de assentamento, pois,
a escola itinerante – escola pública, como tal, ela deverá ser capaz de carre-
estadual – vem rompendo, embora de gar consigo as positividades do fazer-se
maneira lenta e às vezes descontínua, na itinerância, buscando romper com
com a forma escolar capitalista. To- as limitações impostas pela itinerância,
davia, não sem tensões, contradições especialmente no que tange à estrutura
e limitações. física e pedagógica destas escolas.

Para saber mais


BAHNIUK, C. Educação, trabalho e emancipação humana: um estudo sobre as escolas
itinerantes nos acampamentos do MST. 2008. Dissertação (Mestrado em Educa-
ção) – Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis. 2008.
CAMINI, I. Escola itinerante: na fronteira de uma nova escola. São Paulo: Expressão
Popular, 2009.
ENGUITA, M. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1989.
F REITAS , L. C. Ciclos, seriação e avaliação: confronto de lógicas. São Paulo:
Moderna, 2003.
______. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. 7. ed. Campinas:
Papirus, 2005.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). Escola itinerante em
acampamentos do MST. São Paulo: Setor de Educação do MST, 1998. (Fazendo
Escola, 1.)
______. Escola itinerante, uma prática pedagógica em acampamentos. São Paulo: Setor de
Educação do MST, 2001. (Fazendo Escola, 4.)
______. Escola itinerante do MST: história, projeto e experiências. Cadernos da
Escola Itinerante – MST, v. 8, n. 1, abr. 2008a.
______. Itinerante: a escola dos Sem Terra – trajetórias e significados. Cadernos da
Escola Itinerante – MST, v. 1, n. 2, out. 2008b.
______. Pesquisas sobre a escola itinerante: refletindo o movimento da escola.
Cadernos da Escola Itinerante – MST, v. 2, n. 3, abr. 2009b.

338
Escola Única do Trabalho

______. Pedagogia que se constrói na itinerância: orientações aos educadores.


Cadernos da Escola Itinerante – MST, v. 2, n. 4, 2009a.
______. A escola da luta pela terra: a escola itinerante do Rio Grande do Sul,
Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí. Cadernos da Escola Itinerante – MST, v. 3,
n. 5, 2010.
E
PISTRAK, M. M. (org.). A escola-comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

ESCOLA ÚNICA DO TRABALHO


Luiz Carlos de Freitas

O termo “Escola Única do Trabalho” dos. Isso não é pouco, pois, na socieda-
tem sua formulação mais acabada logo nos de capitalista, a escola tem caráter dual,
primeiros momentos da Revolução Russa ou seja, dependendo da origem social
de outubro de 1917. Seu entendimento do estudante, ela provê um caminho
exige que esclareçamos alguns conceitos ascendente para os patamares mais ele-
que estão embutidos na expressão. vados de instrução ou provê o caminho
Em primeiro lugar, a formulação da terminalidade, sendo o estudante
reconhece a escola como local de for- excluído em algum ponto do sistema
mação da juventude, ainda que não escolar sem possibilidade de acessar
isolada de outras agências formativas níveis mais elevados de formação.
existentes na sociedade, em especial as O termo “único” quer fortalecer a
que tratam da organização política da ideia de que não existem duas escolas ou
juventude. Reconhece a importância uma escola com dois caminhos dentro
da escola como um instrumento de luta dela, mas todos transitam por ela segun-
na construção de uma nova socieda- do suas necessidades e possibilidades e
de, na perspectiva de que esta atenda não segundo quanto dinheiro carregam
aos interesses da classe trabalhadora – no bolso. É importante assinalar que o
vale dizer, como instrumento de termo único, aqui, não tem nada a ver
sua conscientização e emancipação. com uma escola de pensamento único
Neste entendimento, a apropriação ou de metodológica única.
do conhecimento científico não ocupa Em terceiro lugar, fixa que tal esco-
lugar menor. la é voltada para o trabalho. Aqui, cabem
Em segundo lugar, define a escola dois sentidos – um, no entendimento
como sendo única, ou seja, há um úni- ontológico do termo trabalho como
co caminho para todos os jovens, para atividade criativa dos seres humanos
todos os trabalhadores. Tal afirmação (portanto significando uma relação da
parte da concepção de que a sociedade escola com a vida), e outro como tra-
que almejamos é uma sociedade de tra- balho produtivo, ligado diretamente à
balhadores iguais, e não dividida entre subsistência, no qual emerge o sentido
exploradores e trabalhadores explora- da politecnia.

339
Dicionário da Educação do Campo

Em 30 de setembro de 1918, o Co- pedagogos soviéticos onde ela


mitê Central do Partido Comunista da siga a linha da luta pela democra-
Rússia publica a “Deliberação sobre a tização da escola. (Narkompros,
Escola Única do Trabalho”, a qual dá 1974b, p. 138;; grifado no original;;
base para a elaboração de um texto pro- nossa tradução)
duzido em 16 de outubro de 1918 pelo
Comissariado Nacional de Educação, O texto ainda discute em que mo-
no início da Revolução Russa de 1917, mento é possível estabelecer caminhos
portanto, chamado “Princípios básicos diferenciados para a juventude na es-
da Escola Única do Trabalho”. Esse cola, após os 15 anos de idade, mas
texto orientaria todo o esforço educa- sempre segundo seu talento, interesses
cional nos anos que se seguiriam. Nele e possibilidades, e nunca como uma
pode-se ler: destinação de classe.
Sobre a proximidade da escola com
A nova escola deve ser não so- o trabalho, o documento diz:
mente gratuita em todos os ní-
veis, não somente acessível, mas, A exigência da introdução do
o mais rápido possível, obrigató- trabalho como fundamento do
ria, e, para fortalecer-se solida- ensino baseia-se em dois fun-
mente, ela deve ser, ainda, única damentos complementarmente
e de trabalho. O que significa que diferentes, cujos resultados,
a escola deve ser única?1 Isto entretanto, facilmente entre-
significa que todo o sistema das laçam-se. A psicologia cons-
escolas regulares, do jardim da titui o primeiro fundamento,
infância até a universidade, apre- ensinando-nos que o que ver-
senta-se como uma escola, como dadeiramente compreendemos
uma escala contínua. Isto signifi- somente é compreensível ativa-
ca que todas as crianças devem mente. A criança almeja ativida-
entrar em uma mesma escola e de, permanece forçada em es-
começar sua educação igualmen- tado de imobilidade. Assimila
te, que todas têm o direito de com muitíssima facilidade os
caminhar nesta escala até os ní- conhecimentos quando eles lhe
veis superiores. [...] Entretanto, a são transmitidos em forma de
ideia de escola única não pressu- jogo ou trabalho alegre e ativo,
põe, necessariamente, que seja de os quais, com organização com-
um único tipo.2 O Comissariado petente, unem-se, mas aprendeu
Central, fixando algumas condi- de ouvido e no livro. A criança
ções, cuja execução considera-se orgulha-se com a aquisição de
absolutamente obrigatória, deixa, qualquer habilidade prática, mas
ao mesmo tempo, grande ampli- a ela não é dada nenhuma. [...]
tude de iniciativa para a Seção de Outra origem da tendência da
Educação Pública dos Deputa- escola para o trabalho moder-
dos Soviéticos, os quais, por sua na avançada é o desejo natural
vez, certamente não vão limitar de os alunos inteirarem-se da-
a criatividade educacional dos quilo que mais será necessário

340
Escola Única do Trabalho

na vida, daquilo que joga papel todas as disciplinas, passeando,


dominante nela no presente colecionando, desenhando, fo-
momento, com o trabalho no tografando, modelando, fazen-
campo e na indústria em todas
as suas variedades. É preciso to-
do colagens, observando plantas
e animais, criando e cuidando E
mar cuidado, entretanto, pois se deles. Língua, matemática, his-
não somos de modo algum con- tória, geografia, física e química,
trários ao ensino especial técni- botânica e zoologia – todas as
co para idades mais avançadas, matérias de ensino não somen-
protestamos energicamente con- te admitem métodos de ensino
tra qualquer estreitamento es- criativo e ativo, mas exigem-nos.
pecífico da esfera da educação Por outro lado, aproximando-se
para o trabalho nos níveis mais do ideal, a escola deve ensinar
elementares da escola úni- para o aluno as principais téc-
ca, isto é, pelo menos até os nicas de trabalho nos seguintes
14 anos. (Narkompros, 1974b, campos: tarefas de marcenaria
p. 138;; nossa tradução) e carpintaria, torneamento, en-
talhes de madeira, moldagem,
Isto significa que, até os 14 anos,
forjamento, fundição, acaba-
outras formas de trabalho devem estar
mento de metais, soldagem
sendo utilizadas no processo educati-
e liga de materiais, trabalhos
vo, como aponta o texto:
de perfuração, trabalhos com
couro, editoração e outros. No
No primeiro nível, o ensino campo, sem dúvida, a base ao
baseia-se em processos mais redor da qual se agrupa o ensi-
ou menos de caráter artesanal, no são os variados trabalhos do
em consonância com as frágeis campo. (Narkompros, 1974b,
forças das crianças e suas natu-
p. 139;; nossa tradução)
rais inclinações nesta idade. No
segundo nível, encontra-se, em O mesmo texto tenta antecipar uma
primeiro plano, o trabalho no visão preliminar do que deveríamos
campo e na indústria em suas entender por uma escola na qual o tra-
formas mecânicas modernas. balho tivesse adquirido centralidade:
Porém, o objetivo geral da es-
cola de trabalho não é, de modo
algum, o adestramento para este Lancemos um olhar sobre como
ou aquele ofício, mas o ensino na escola onde o trabalho tenha
politécnico, dando às crianças, ocupado papel predominante,
na prática, conhecimento dos será encaminhado o ensino no
métodos de todas as mais im- tocante à assimilação do co-
portantes formas de trabalho, nhecimento. Os limites entre as
em parte nas oficinas escolares matérias específicas de ensino
ou nas fazendas escolares, em desaparecem, naturalmente, por
parte nas fábricas, empresas e completo na escola elementar,
semelhantes. Dessa forma, por que constitui os últimos anos
um lado, a criança deve estudar do jardim da infância. Nela,

341
Dicionário da Educação do Campo

quase todos os estudos redu- Não é raro que se tente apropriar des-
zem-se a uma única grande dis- tas ideias segundo a lógica de nossas
ciplina, ainda não diferenciada: relações sociais atuais. Por outra parte,
o conhecimento, pelo trabalho, não é possível uma transferência direta
do meio ambiente natural e so- deste conceito de Escola Única do Tra-
cial que cerca a criança. Jogos, balho para a realidade das nossas esco-
excursões, palestras fornecem las regulares. Sua construção se dará na
material para o pensamento co- prática do magistério, em espaços em
letivo e individual na atividade que a criatividade possa ser exercitada,
da criança. Começando com guiada por um projeto social alterna-
a criança mesma e seu meio tivo. Entretanto, os avanços da peda-
ambiente, tudo serve de obje- gogia russa nesta área são um legado
to para perguntas e respostas, fundamental para que possamos cami-
contos, composições, desenhos, nhar mais rapidamente em direção a
imitações. O professor sistema- uma pedagogia socialista, a qual é um
tiza, sem dificuldade, a curiosi- esforço coletivo da classe trabalhado-
dade da criança e seu desejo de ra mundial.
movimento e direciona-os de Esta escola está sendo gestada
modo a obter resultados mais no interior dos movimentos sociais,
valiosos. Tudo isso também é em especial no Movimento dos Tra-
matéria básica de ensino, como balhadores Rurais Sem Terra (MST).
uma enciclopédia infantil. Os Seja nas escolas itinerantes, seja nas
níveis mais altos de ensino, escolas dos assentamentos mais orga-
evidentemente, não se limitam nizados, os germens da nova escola
a isso. O trabalho sistemático estão plantados. Uma intensa expe-
para a assimilação de uma série rimentação não dogmática está em
de conhecimentos determina- curso na prática dos educadores do
dos ocupa lugar principal. Con- campo, baseada na necessidade de li-
tudo, este ensino de disciplinas gar a escola com o trabalho, ou seja,
isoladas não pode jamais subs- com a vida e com o trabalho produti-
tituir esta enciclopédia, conti- vo;; na necessidade de garantir o aces-
nuando aqui também a jogar um so ao conhecimento historicamente
grande papel, mas adquirindo acumulado pela humanidade e farta-
um caráter um pouco diferente. mente negado à classe trabalhadora
A saber, adquire agora caráter ao longo do desenvolvimento do ca-
de pesquisa da cultura huma- pitalismo;; na necessidade de que
na em ligação com a natureza. a classe trabalhadora se constitua
(Narkompros, 1974b, p. 139;; como classe organizada e com ca-
nossa tradução) pacidade para se auto-organizar e
cumprir suas tarefas históricas;; e na
Uma escola com estas característi- necessidade de um grande domínio
cas ainda precisa ser construída e, em de seu tempo atual, suas culturas, suas
nosso tempo, marcado por relações so- histórias e das contradições sociais nas
ciais capitalistas, a dificuldade é maior. quais se vê inevitavelmente envolvida.

342
Escola Unitária

Notas
1
Em russo, “edinoy”.
2
Em russo, “odnotipnost”.
E
Para saber mais
CAMINI, I. Escola itinerante: na fronteira de uma nova escola. São Paulo: Expressão
Popular, 2009.
FREITAS, L. C. A Escola Única do Trabalho: explorando caminhos de sua cons-
trução. In: CALDART, R. S. (org.). Caminhos para transformação da escola. São Paulo:
Expressão Popular, 2010.
NARKOMPROS [Comissariado Nacional de Educação]. Deliberação da Escola
Única do Trabalho. In: ABAKUMOV, A. A. et al. (org.). Instrução pública na URSS:
educação geral. Documentos: 1917-1973. Moscou: Pedagogika, 1974a. (Original
em russo.)
______. Princípios básicos da escola única do trabalho. In: ABAKUMOV, A. A.
et al. (org.). Instrução pública na URSS: educação geral. Documentos: 1917-1973.
Moscou: Pedagogika, 1974b. (Original em russo.)
P ISTRAK , M. M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão
Popular, 2000.
______. Escola comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

ESCOLA UNITÁRIA
Marise Ramos

A proposta da escola unitária ela- ideias sobre o papel da escola, que,


borada por Antonio Gramsci na Itália historicamente, foi tensionada, de um
dos anos de 1930, ao se opor à reforma lado, pela concepção humanista, de
da educação realizada por Gentile,1tem clara inspiração iluminista, e, de outro,
como fundamento a superação da divi- pela economicista. No primeiro polo
são entre trabalho manual e intelectual está a própria gênese da pedagogia
estabelecida pela divisão da sociedade moderna, com Comenius, Rosseau e
em classes. A separação entre conhe- Pestalozzi;; no segundo, o pensamen-
cimentos de cultura geral e de cultura to dos economistas clássicos e dos
técnica também seria eliminada na es- socialistas utópicos.
cola unitária. A gênese dessa formula- Os humanistas enfatizavam a orga-
ção, porém, está no confronto entre nização do espaço escolar e os métodos

343
Dicionário da Educação do Campo

que proporcionam o desenvolvimento Portanto, a instr ução técnico-


livre e espontâneo da criança. A infân- profissional promovida pelas indús-
cia era entendida na sua especificidade, trias ou pelo Estado e a educação ativa
enquanto o trabalho, o jogo e a ativida- das escolas novas, de um lado, dão-se
de em geral constituíam-se como ele- as costas;; mas, do outro lado, ambas
mentos didáticos, lúdicos e formativos se baseiam num mesmo elemento for-
que convergiriam para o desenvolvi- mativo, o trabalho, e visam ao mesmo
mento livre e harmonioso da criança. objetivo, qual seja, o homem capaz
Os economistas clássicos, por sua de produzir ativamente (Manacorda,
vez, consideravam que a fragmentação 2006, p. 305).
e a simplificação dos procedimentos de Desse modo, podemos afirmar
trabalho levariam a tal embrutecimento que é a partir da Revolução Industrial
do trabalhador que este deveria ser do- que a educação torna mais explícitos
cilizado e disciplinado desde a infância. os seus vínculos com a produção da
Esse preceito levou Adam Smith, ainda vida material, e quando passa a encarar
no século XVIII, a recomendar o en- o trabalho ou a formação para a vida
sino popular pelo Estado, embora em produtiva como elemento indissociável
doses prudentemente homeopáticas e princípio que ordena o sistema de en-
(Marx, 1988). sino, o currículo e as práticas pedagó-
Já os socialistas utópicos, como gicas, reproduzindo as relações sociais
Saint-Simon, Fourier e Owen, busca- de produção e conformando os sujei-
ram no trabalho industrial e na combi- tos à ordem da sociedade capitalista. A
nação com a instrução as bases para a escola, que antes educava para o fruir e
construção de suas pedagogias. se centrava num saber desinteressado,
Vemos, então, que o trabalho entra passa a educar para o produzir, assim
na educação por dois caminhos, que como a ciência, antes centrada na busca
ora se ignoram, ora se entrelaçam, ora desinteressada da verdade, assume-se
se chocam: o primeiro é a moderna cada vez mais como ciência aplicada e
“descoberta da criança”;; o segundo, a serviço do capital.
o desenvolvimento objetivo das capa- Estreitam-se, assim, os laços que
cidades produtivas sociais, provocado unem a escola à fabrica, dos quais a ciên-
pela Revolução Industrial. O primeiro cia participa como elemento integrador,
caminho exalta o tema da espontanei- ainda que subordinada e comprometida
dade da criança, da necessidade de ade- com a ordem capitalista. Aprofunda-
rir à evolução de sua psique, solicitando se, em contrapartida, outra separação,
a educação sensório-motora e intelec- aquela entre o campo e a cidade, posto
tual por meio das formas adequadas, que o modelo de produção hegemônico
do jogo, da livre atividade, do desen- passa a ser o urbano-industrial. No texto
volvimento afetivo, da socialização. O “Americanismo e fordismo”, Gramsci
segundo, por sua vez, é muito duro e (1991a) reconhecerá o “industrialismo”
exigente: precisa de homens capazes como uma nova cultura e reconhecerá
de produzir “de acordo com as máqui- o ensino técnico-profissional como um
nas”, precisa colocar algo de novo no meio de promover a adaptação psicofísica
velho aprendizado artesanal, precisa de do trabalhador à nova estrutura social de-
especializações modernas. terminada pela racionalização industrial.

344
Escola Unitária

Num sentido distinto tanto dos dessas propostas tem como motivação a
iluministas quanto dos economistas adoção de medidas pós-revolucionárias
clássicos e dos utópicos, ainda que que confluam para a passagem a uma
sob alguma influência destes últimos,
desenvolve-se o pensamento pedagó-
sociedade sem classes, na qual todos
trabalhem e o desenvolvimento omni- E
gico de Marx e de Engels, postulando lateral (ver EDUCAÇÃO OMNILATERAL)
o trabalho como elemento formativo das capacidades seja premissa e resultado
na perspectiva do desenvolvimento in- do fim da divisão do trabalho fundada
tegral do indivíduo. No entanto, ape- na propriedade privada.
nas propor a associação entre ensino Sabia-se que a viabilidade de um de-
e trabalho como estratégia educativa senvolvimento omnilateral posta pela
não seria suficiente para compreender indústria só seria plenamente realizável
o real sentido que tem, para Marx, o numa sociedade livre da propriedade
trabalho como princípio educativo. privada. Desse modo, o princípio da
A pedagogia do trabalho foi desen- união entre ensino e trabalho estava
volvida por Marx de modo original, colocado como parte de um progra-
a partir de uma análise das condições ma político de transição de uma so-
históricas concretas, e apreende o mo- ciedade capitalista para uma sociedade
vimento dialético que caracteriza a pro- pós-capitalista.
dução capitalista. Conforme nos indica No século XX, particularmente
mais uma vez Manacorda (2006), nos nos anos 1930, Antonio Gramsci atua-
vários representantes das pedagogias lizou o programa marxiano de educa-
modernas não marxistas, a Revolução ção, especialmente ao se contrapor à
Industrial pode ser objeto de lamenta- Reforma Gentile, realizada na Itália
ção, aceitação a-histórica, ou contrapo- fascista, e a qualquer separação no in-
sição utópica;; porém, em Marx, ela é terior do sistema educativo, seja entre
expressão consciente da historicidade as escolas elementar, média e superior,
das relações sociais. seja entre elas e a escola profissional.
Marx criticou o ensino industrial Tais críticas são a fonte de sua pro-
defendido pelos burgueses, destina- posta de escola unitária, que Gramsci
do ao treinamento dos operários. No (1991b) assim definia: escola única ini-
Manifesto do Partido Comunista (Marx, cial de cultura geral, humanista, for-
1996), figura, como programa da revo- mativa, que equilibre equanimemente
lução, o ensino público e gratuito a to- o desenvolvimento da capacidade de
das as crianças, a abolição do trabalho trabalhar manualmente (tecnicamente,
das crianças nas fábricas em sua forma industrialmente) e o desenvolvimento
atual, e a unificação do ensino com a das capacidades de trabalho intelectual.
produção material. Segundo ele, deste tipo de escola úni-
Mais tarde, os termos educação poli- ca, por meio de repetidas experiências
técnica e educação tecnológica2 serão utiliza- de orientação profissional, passar-se-ia
dos por ele, explicitando sua defesa por a uma das escolas especializadas ou ao
um ensino que não seja apenas poliva- trabalho produtivo.
lente, mas que permita a compreensão A escola unitária tem um princí-
dos fundamentos técnico-científicos dos pio que a organizaria, o trabalho, pos-
processos de produção. A formulação to que a ordem social e estatal (direitos

345
Dicionário da Educação do Campo

e deveres) é introduzida e identificada que esta proporcionaria aos estudantes


na ordem natural pelo trabalho. Para experiências de orientação profissio-
Gramsci, o conceito de equilíbrio en- nal, possibilitando-lhes a passagem às
tre ordem social e ordem natural sobre escolas especializadas ou ao trabalho
o fundamento do trabalho – por ele de- produtivo. Porém, também essas esco-
finido como a atividade teórico-prática las modificariam seus propósitos em
do homem – cria os primeiros elemen- contraposição à hegemonia capitalis-
tos de uma intuição do mundo liberta ta, à medida que visassem à formação
de toda magia ou bruxaria. Por isso, o não somente de operários qualificados,
trabalho fornece o ponto de partida mas destes próprios como dirigentes
para o posterior desenvolvimento de da classe trabalhadora. Diz ele: “a ten-
uma concepção histórico-dialética do dência democrática, intrinsecamente,
mundo, para a compreensão do movi- não pode consistir apenas em que o
mento e do devenir, “para a valorização operário manual se torne qualificado,
da soma de esforços e de sacrifícios mas em que cada ‘cidadão’ possa se
que o presente custou ao passado e que tornar ‘governante’ e que a sociedade
o futuro custa ao presente, para a con- o coloque, ainda que ‘abstratamente’,
cepção da atualidade como síntese do nas condições gerais de poder fazê-lo”
passado, de todas as gerações passadas, (Gramsci, 1991b, p. 137).
que se projeta no futuro” (Gramsci, Vemos, então, que, em Gramsci, o
1991b, p. 130). trabalho como princípio educativo não
Na singularidade das palavras de impõe à escola a finalidade profissio-
Gramsci, encontramos o significado nalizante. Muito pelo contrário, o pen-
do trabalho como princípio educativo: sador italiano propõe uma coerência
o trabalho como uma categoria que, também unitária no percurso escolar. É
por ser ontológica, nos permite com- o que vemos quando ele afirma que a
preender a produção material, científi- carreira escolar é um ponto importante
ca e cultural do homem como resposta no estudo da organização prática da es-
às suas necessidades, num processo his- cola unitária, considerando seus vários
tórico-social contraditório. Esse pro- níveis, de acordo com a idade, com o
cesso elide qualquer determinação desenvolvimento intelectual-moral dos
sobre-humana dos fatos, mas coloca alunos, e com os fins que a escola pre-
no real as razões, o sentido e a dire- tende alcançar.
ção da história feita pelos próprios ho- Para ele, a escola unitária, ou de for-
mens. Esta é uma aprendizagem que mação humanista (entendido o termo
se quer desde a infância, de modo que “humanismo” em sentido amplo, e não
as contradições das relações sociais apenas em sentido tradicional3), ou de
sejam captadas a ponto de não se po- cultura geral, deveria propor-se a tare-
der considerar natural que uns traba- fa de inserir os jovens na atividade so-
lhem e outros vivam da exploração do cial, depois de tê-los levado a certo grau
trabalho alheio. de maturidade e capacidade, à criação
Ao mesmo tempo, o reconheci- intelectual e prática e a uma certa au-
mento da necessária formação para o tonomia na orientação e na iniciativa.
exercício da vida produtiva se agrega Por isso, na escola unitária, a última
ao preceito da escola unitária, posto fase deveria ser concebida e organizada

346
Escola Unitária

como a fase decisiva, na qual se tende- ciedade, preceitos ideológicos não são
ria a criar os valores fundamentais do suficientes para promover o ingresso
“humanismo”, a autodisciplina intelec- da cultura do trabalho nas escolas, nem
tual e a autonomia moral necessárias a
uma posterior especialização, “seja ela
como contexto pedagógico – aprender
no e pelo trabalho – e, menos ainda, E
de caráter científico (estudos univer- como princípio educativo. Assim, uma
sitários), seja de caráter imediatamen- política consistente de profissionaliza-
te prático-produtivo (indústria, buro- ção, dadas as outras razões e condicio-
cracia, organização das trocas etc.)” nada à concepção de integração entre
(Gramsci, 1991b, p. 124). trabalho, ciência e cultura, pode ser a
A escola unitária em Gramsci, por- travessia para a organização da educa-
tanto, não é profissionalizante. Esta ção brasileira com base no projeto de
finalidade conferida à educação básica escola unitária, tendo o trabalho como
na educação brasileira, especialmente princípio educativo.
ao ensino médio, tem razões sócio- Compreendendo a escola unitária
históricas específicas que precisam como uma utopia ainda a ser construí-
ser compreendidas. da, enquanto a finalidade profissionali-
A primeira dessas razões é de caráter zante na educação básica seja uma ne-
econômico. A sociedade brasileira não cessidade, deve-se assegurar uma base
construiu condições para que jovens e unitária para a formação num projeto
adultos da classe trabalhadora possam educativo que, conquanto reconheça e
traçar uma carreira escolar em que a valorize o diverso, supere a dualidade
profissionalização – de nível médio ou histórica entre formação para o traba-
superior – seja um projeto posterior lho intelectual e para o trabalho manual.
à educação básica. O reconhecimento Trabalho, ciência e cultura integram a
social e a autonomia possibilitada pela base unitária desse projeto e orientam
apreensão de fundamentos científico- a seleção e a organização dos conteú-
tecnológicos, sócio-históricos e cultu- dos de ensino, a fim de proporcionar
rais de atividades produtivas tornam- aos educandos a compreensão do pro-
se importantes instrumentos na luta cesso histórico de produção da ciência
contra-hegemônica, especialmente se o e da tecnologia como conhecimentos
projeto educativo tiver como finalida- desenvolvidos e apropriados social-
de a formação de trabalhadores como mente para a transformação das condi-
dirigentes. E esta possibilidade vem a ções naturais da vida e para a ampliação
ser a segunda razão a tornar pertinente das capacidades, das potencialidades e
a possibilidade de profissionalização na dos sentidos humanos.
educação básica. A compreensão da cultura como as
A terceira razão refere-se ao caráter diferentes formas de (re)criação da so-
dual da educação brasileira e à corres- ciedade possibilita ver o conhecimen-
pondente desvalorização da cultura do to marcado pelas necessidades e pelas
trabalho pelas elites e pelos segmen- disputas sociais de um tempo histórico.
tos médios da sociedade, tornando a Esse é o sentido que Gramsci confe-
escola refratária a essa cultura e suas re ao historicismo como método que
práticas. Assim, a não ser por uma efe- ajuda a superar o enciclopedismo –
tiva reforma moral e intelectual da so- quando conceitos históricos são trans-

347
Dicionário da Educação do Campo

formados em dogmas – e o esponta- conhecimento. A perspectiva unitária


neísmo – forma acrítica de apropriação da educação coincide, então, com uma
dos fenômenos que não ultrapassa o escola ativa e criadora, organicamente
senso comum. identificada com o dinamismo social
Na organização da educação bási- da classe trabalhadora.
ca na perspectiva da escola unitária, os Esta escola não elide as singularida-
objetivos e os métodos de formação des dos grupos sociais, mas se consti-
geral e de formação técnica integram- tui como um espaço/tempo síntese do
se em um projeto unitário. Neste, ao diverso, ao unificá-las no processo e na
mesmo tempo em que o trabalho se experiência de constituição da classe
configura como princípio educativo – for- trabalhadora. A unitariedade entendida
mando, com a ciência e a cultura, uma como síntese do diverso também impe-
unidade, que permite compreender de que as especificidades das culturas
a historicidade do CONHECIMENTO –, urbano-industrial e campesina sejam re-
também se constitui como contex- conhecidas por oposição entre elas, ou
to que justifica a formação específica mesmo por negação de uma delas. Ao
para atividades socialmente produtivas. contrário, o que as torna particulari-
Nesse projeto, a formação profissional dades de uma totalidade é a dinâmica
é um meio pelo qual o conhecimento histórica que as produziu e as transfor-
científico adquire, para o trabalhador, o mou. A historicidade não permite sub-
sentido de força produtiva, traduzindo- meter culturas próprias a um modelo
se em técnicas e procedimentos. A educativo único, mas também não ad-
compreensão científico-tecnológica da mite que o reconhecimento da diversi-
produção adquire, ainda, densidade so- dade redunde na fragmentação.
cial, histórica e cultural, à medida que Como nos diz Gramsci, essa iden-
não elide as contradições das relações tidade orgânica é construída a partir de
sociais de produção. um princípio educativo que unifique, na
Do ponto de vista organizacional, pedagogia, éthos, logos e técnos, tanto no
esse projeto integra em um mesmo cur- plano metodológico quanto no episte-
rículo a formação plena do educando – mológico. O projeto da escola unitária
possibilitando construções intelectuais se materializa, portanto, no processo de
elevadas –, a apropriação de conceitos formação humana, no entrelaçamento
necessários para a intervenção cons- entre trabalho, ciência e cultura, reve-
ciente na realidade e a compreensão do lando um movimento permanente de
processo histórico de construção do inovação do mundo material e social.

Notas
1
Entendemos que a ressalva feita por Gramsci em relação a um “humanismo no sentido
amplo” e não apenas em “sentido tradicional” implica compreender o humanismo não na
perspectiva essencialista – que levaria a uma pedagogia escolástica (lembremos que o ter-
mo tradicional em pedagogia está vinculado ao pensamento de Herbart, para quem a escola
cumpria a função da transmissão de valores e de formação moral dos estudantes) –, mas na
perspectiva histórico-dialética, no sentido de que a produção da existência humana é uma
obra do próprio ser humano em condições objetivas enfrentadas e transformadas por ele
próprio. Esse universo “humano” é o universo do trabalho, da ciência e da cultura.

348
Estado

2
Saviani (2007) recupera os estudos de Manacorda sobre o uso, por Marx, dos termos
“educação tecnológica” e “politecnia” ou “educação politécnica”. Segundo ele, para além
da questão terminológica, é importante observar que, do ponto de vista conceitual, o que
está em causa é um mesmo conteúdo, isto é, a união entre formação intelectual e trabalho
produtivo. Um debate sobre o uso desses termos na obra de Marx e na atualidade pode ser
encontrado em Saviani (2007) e Nosella (2007). A leitura do verbete EDUCAÇÃO POLITÉCNICA
E
neste dicionário também pode ser elucidativa.
3
Entendemos que a ressalva feita por Gramsci em relação a um “humanismo no sentido
amplo” e não apenas em “sentido tradicional” implica compreender o humanismo não na
perspectiva essencialista – que levaria a uma pedagogia escolástica (lembremos que o termo
tradicional em pedagogia está vinculado ao pensamento de Herbart, para o qual a escola
cumpria a função da transmissão de valores e de formação moral dos estudantes) –, mas na
perspectiva histórico-dialética, no sentido de que a produção da existência humana é uma
obra do próprio ser humano em condições objetivas enfrentadas e transformadas por ele
próprio. Esse universo “humano” é o universo do trabalho, da ciência e da cultura.

Para saber mais


GRAMSCI, A. Americanismo e fordismo. In: ______. Maquiavel, a política e o Estado
moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991a. p. 375-413.
______. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991b.
MANACORDA, M. A história da educação: da Antiguidade aos nossos dias. São Paulo:
Cortez, 2006.
MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Livro 1, v. 1.
______. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1996.
NOSELLA, P. Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores: para além
da formação politécnica. Revista Brasileira de Educação, v. 12 n. 34, p. 137-151,
jan./abr. 2007.
SAVIANI, D. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista
Brasileira de Educação, v. 12, n. 34, p 152-165, jan.-abr. 2007.

ESTADO
Sonia Regina de Mendonça

A matriz liberal rocrática, ora a uma figura notória liga-


da à administração pública. Tais identi-
Inúmeras são as formas de definir ficações respondem pela “coisificação”
o Estado, embora no senso comum ele do conceito de Estado, fruto de ope-
seja identificado ora a uma agência bu- rações teóricas implícitas que não per-

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Dicionário da Educação do Campo

mitem compreender, de fato, no que forma, estavam fadados ao extermínio,


ele consiste em sua dinâmica mais pro- uma vez que as lutas frequentes entre
funda. O pensamento político e social individualidades múltiplas e dotadas de
contemporâneo é caudatário desse tipo distintos desejos e interesses condu-
de simplificação, mesmo que suas raí- ziriam ao fim da espécie. Para conter
zes estejam fincadas nos séculos XVII essa tendência, somente um pacto ou
e XVIII, quando da elaboração de sua contrato social – fundador do próprio
matriz mais tradicional e difundida: a Estado – poderia garantir, mediante a
liberal (originada de Hobbes, Locke e sua externalidade, os direitos naturais
Rousseau). Ela é também denominada, tidos como fundamentais: a vida e a
por alguns especialistas, de matriz jus- propriedade. Em teoria, os homens
naturalista. abririam mão de sua liberdade e suas
O conceito de Estado na matriz li- prerrogativas individuais em nome de
beral parte de dois princípios-chave. O um governante – exterior e acima de-
primeiro, que seu estudo deve decorrer les – que refrearia as consequências
do direito e o segundo, que esse direito, funestas do “estado natural”. Essa era
fundamento do próprio Estado, per- a explicação para o surgimento do cha-
tence ao domínio da natureza, assim mado “estado (ou sociedade) civil”, o
como os demais fenômenos sociais. verdadeiro Estado político, dentro do
Contrapondo-se à noção de direito di- qual os indivíduos seriam tanto “civili-
vino, em voga quando de suas formu- zados” quanto cidadãos, sob o império
lações iniciais, os pensadores da matriz do Estado e da lei.
liberal contrapunham à transcendência O Estado assumia, assim, um as-
de Deus a centralidade do homem no pecto ambivalente. Por um lado, ele
universo, tornando-o responsável por regulava a todos da mesma forma, de
suas ações e modos de vida. Além do modo “neutro” e acima dos interesses
embate com a Igreja Católica, os teó- particulares que haviam prevalecido até
ricos liberais buscavam transformar as então. Dessa forma, tornava-se uma
ciências humanas em algo tão rigoroso espécie de “Sujeito”, pairando acima e
e passível de comprovação quanto as fora da sociedade como um todo. Por
ciências ditas exatas, tomando a mate- outro, o Estado incorporava um aspec-
mática como seu paradigma. Para tanto, to temível – o monopólio da violência
era preciso estabelecer leis universais física, necessário para conter possí-
que, tal como na química ou na biolo- veis manifestações que ameaçassem o
gia, garantissem a repetição comprova- contrato firmado entre o governante e
da dos comportamentos humanos, em cada um de seus governados. Logo, na
qualquer tempo e espaço. matriz liberal, está implícita a identifi-
Para a matriz liberal, a sociedade era cação entre governante e Estado, base
percebida como um “somatório” de in- da simplificação acima mencionada.
divíduos cuja natureza se pautava por Entretanto, percebem-se, de ime-
condutas egoístas e agressivas, geran- diato, alguns problemas nessa matriz
do a noção de “estado (modo de estar) de concepção da origem e do papel
de natureza”, no qual os homens vive- do Estado. Em primeiro lugar, vê-se
riam em constante barbárie e guerra, que a noção de “sociedade (ou esta-
obedecendo apenas a seus instintos e do) civil” por ela veiculada subentende
apetites individuais indomáveis. Dessa a ideia de que a sociabilidade humana

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Estado

somente ocorre no âmbito do político, adversários discordavam de seu caráter


tornando-se Estado e governo “na- a-histórico, bem como da ideia de um
turalmente” sinônimos. Em segundo “contrato social” que transferia ao go-
lugar, observa-se a cristalização de um vernante todos os poderes sobre a so-
conceito de Estado como sujeito, uma
entidade ativa que, dotada de iniciativa
ciedade. A matriz marxista foi a grande
responsável pela ruptura com a visão li-
E
própria, “paira” sobre os indivíduos e a beral. A obra de Marx e Engels situa-se
sociedade, sem vínculos com os distin- abertamente na polêmica com o libera-
tos grupos sociais que a integram. Daí lismo, desde seus fundamentos econô-
as afirmativas ainda presentes em nos- micos até suas derivações históricas e
so dia a dia, tais como “o Estado fez” políticas. Nessa nova matriz teórica,
ou “o Estado decidiu” etc. a sociedade não pode ser tomada co-
Da matriz liberal derivaram várias mo mero somatório de indivíduos,
tendências, resultantes, inclusive, das sig- como o supunham os pensadores li-
nificativas modificações políticas rela- berais, fosse para o momento deno-
cionadas à proliferação das lutas popu- minado de “estado de natureza”, fosse
lares. O pensamento liberal ramificou- para o do “estado [ou sociedade] civil”,
se em uma ampla árvore genealógica de derivado do contrato social.
finais do século XIX até os nossos dias, Para a matriz marxista, se há uma
diante da emergência da sociedade de natureza humana biológica, ela é dupli-
massas, que conduziu a remodelações cada por uma forma especificamente
da matriz original. A renovação apre- sócio-histórica de existência que inte-
sentada pela teoria das elites é um desses gra as transformações produzidas pelos
exemplos. Inaugurada pelos italianos próprios seres sociais sobre a natureza
Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto entre e o conjunto das relações nas quais es-
fins do século XIX e inícios do XX, a tão inseridos. A isso podemos chamar,
teoria das elites oscilava entre defender de fato, historicidade. Em outras pa-
o caráter aristocrático dos governos e lavras: para a nova matriz, os homens
manter um perfil aristocrático mesmo contam com uma sociabilidade própria
naqueles ditos democráticos. Ambos que lhes é dada, em cada contexto his-
os pensadores partem da premissa de tórico, pelo lugar por eles ocupado no
que em toda sociedade existe, inexo- processo de produção e de trabalho.
ravelmente, uma minoria que, por ser Alguns, nesse caso, são proprietários
portadora de atributos “especiais”, tais dos meios de produzir e de fazer tra-
como dons, competências ou recursos, balhar, e outros não. Os não proprie-
detém o poder, dirigindo “naturalmen- tários, por sua vez, exercem distintas
te” a maioria. A teoria das elites respal- funções no processo produtivo.
dou um conjunto de teses antidemo- Assim, a origem do Estado reside
cráticas e anti-igualitárias, ainda hoje na emergência da propriedade privada,
em voga. quando um dado grupo social apro-
priou-se daquilo que a todos pertencia,
A matriz marxista subordinando os demais e transfor-
mando-os em força de trabalho. O Es-
No começo do século XIX surgi- tado, nessa perspectiva, deriva da ne-
riam as primeiras críticas contunden- cessidade dos grupos de proprietários
tes a essa concepção do Estado. Seus privados de assegurar e ocultar – por

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Dicionário da Educação do Campo

meio de leis e demais medidas coerci- Outras linhagens marxistas, toda-


tivas capazes de manter os despossuí- via, mantiveram-se ligadas às suas bases
dos nessa condição, sem se rebelarem originais e avançaram na construção
contra ela – tal apropriação. Logo, o teórica do Estado sob o capitalismo.
que a matriz marxista apresenta é uma Dentre elas, destacou-se a contribui-
visão histórica e classista da sociedade ção do pensador e militante italiano
e dos homens (que sempre pertencem Antonio Gramsci.
a uma classe social), negando ter exis-
tido, em qualquer época histórica, in-
dividualidades soberanas em “estado
Gramsci e o Estado
de natureza” ou mesmo algum pacto As grandes transformações socio-
ou acordo que tenha originado o Es- políticas ocorridas nas três primeiras
tado. Esse emergiu do conjunto das décadas do século XX permitiram
relações sociais para garantir a conti- que, nos domínios do próprio marxis-
nuidade da produção e reprodução de mo, surgissem outras vertentes sobre
sua existência. o Estado, notadamente aquela elabo-
Ao mesmo tempo, fica claro que rada pelo filósofo Antonio Gramsci.
a sociabilidade humana deixa de se li- A grande questão norteadora de suas
mitar ao âmbito do político, conforme reflexões residiu, justamente, na defi-
os teóricos liberais, como se o políti- nição do caráter do Estado ocidental
co fosse o espaço privilegiado para o capitalista contemporâneo, e da com-
exercício da vontade coletiva conscien- plexidade de suas determinações, e no
te. Na nova matriz teórica, o poder do combate às abordagens “economicis-
Estado não se explica nele mesmo, dei- tas” sobre o tema. Nesse sentido, a re-
tando raízes nas formas de dominação flexão gramsciana integra e ultrapassa
existentes na vida social (econômicas, as dicotomias entre vontade versus im-
sociais, culturais, políticas etc.), dado posição, sujeito versus sociedade, base
que o Estado nada tem de “natural” ou versus superestrutura, por meio de uma
de “externo” à sociedade. análise cuja ênfase é histórica, no sen-
A concepção do Estado como re- tido tanto da construção das formas
presentante de classes dominantes su- de intervenção social das classes e suas
postamente homogêneas desdobrou-se frações quanto no de sempre remeter
em várias correntes no interior do mar- ao processo de expansão do capitalis-
xismo, muitas delas considerando-o de mo, em sua relação com a política.
forma mecanicista, baseadas na defesa O Estado em Gramsci não é sujeito
ortodoxa do determinismo econômico nem objeto, mas sim uma relação so-
sobre o político, o social e o cultural. cial, ou melhor, a condensação das re-
Gestou-se, assim, a denominada “vul- lações presentes numa dada sociedade.
gata” marxista, que respaldou uma vi- Sob tal ótica, ele recupera definições
são do Estado como “Objeto” de uma marxistas clássicas, porém as redefine,
classe, legitimado quer pela violência, recriando um conceito de Estado que
quer pelo “engodo” ideológico. Trata- denomina de Estado ampliado – isso
se de uma vertente pouco histórica e porque estão incorporadas nele tanto a
dialética, apesar de amplamente difun- sociedade civil quanto a sociedade po-
dida no meio universitário. lítica, em permanente inter-relação. A

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Estado

sociedade civil compreende o conjunto dição dos sábios, integra a ampliação


dos agentes sociais, associados nos cha- do Estado.
mados aparelhos privados de hegemo- E cultura, para Gramsci, compõe-
nia, cernes da ação política consciente,
e organizados pelos intelectuais orgâ-
se dos projetos e visões de mundo, em
permanente disputa, desenvolvidos por
E
nicos de uma classe ou fração, visando cada classe ou fração, e pautados
obter determinados objetivos. Em con- por valores, crenças e autopercepções
trapartida, a sociedade política engloba de indivíduos e grupos sobre seu lugar
o conjunto de aparelhos e agências social. Nesse sentido, o Estado amplia-
do poder público propriamente dito. do guarda também uma dimensão de
Qualquer alteração na correlação de consenso, obtido não apenas da ação
forças vigente em uma dessas esferas das vontades coletivas organizadas nos
repercute, forçosamente, na outra. aparelhos de hegemonia da sociedade
Logo, o conceito de Estado amplia- civil, mas também pela atuação do Es-
do transborda os limites institucionais tado restrito, que tende a generalizar
do Estado tal como entendido pelo o projeto da fração de classe hege-
senso comum (instituições públicas), mônica num dado bloco histórico.
identificando as formas pelas quais Assim, é a disputa pela afirmação da
ele integra a vida cotidiana em seus hegemonia de uma fração de classe –
múltiplos aspectos. Dialeticamente, o organizada em seus aparelhos de he-
Estado ampliado resulta das múltiplas gemonia – que institui a política e o
formas de organização e conflito ine- Estado ampliado, ambos indissociá-
rentes à vida social. veis da cultura. Para Gramsci, cultura
O pensador italiano chegou a essa e política são inseparáveis.
reconceituação de modo também pe- Entretanto, no mundo capitalista
culiar. No âmbito do marxismo, o ca- contemporâneo, nem sempre todos
minho clássico apontava para a ideo- os grupos conseguem organizar-se em
logia como veículo de transmutação aparelhos de hegemonia para elaborar
e ocultamento da dominação, transfi- sua própria visão de mundo no âmbito
gurando o interesse particular de uma da sociedade civil. Nesses casos, ado-
classe ou fração em interesse “geral”. tam como seus os projetos e valores
Para Gramsci, o poder estatal, embora elaborados por outras frações de clas-
expressasse uma dominação de classe, se, quase sempre as dominantes. Esse é
não poderia realizar-se somente com o princípio de funcionamento da hege-
base na coerção. Daí ser a própria monia: a visão de mundo (cultura) de
organização das vontades coletivas um grupo se impõe sobre a dos demais
na sociedade civil o objeto central de grupos, sendo por eles partilhada.
sua análise. É o conceito de aparelhos Tornando o conceito de cultura,
de hegemonia, forma preponderante na pois, plenamente histórico – ou seja,
sociedade civil, que permite coligar o repousando-o no solo concreto das
processo mediante o qual se elaboram relações sociais –, Gramsci elabora
as consciências, atingindo a organiza- extensa reflexão sobre o papel dos
ção do poder do Estado (sociedade intelectuais. Ele aprofunda as premis-
política). Como se observa, emerge um sas marxistas e constrói um conceito
conceito de cultura que, longe da eru- de intelectual que, sem apagar a função

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Dicionário da Educação do Campo

“cerebral” ou erudita, é redefinido a e da hegemonia das classes dominantes e


partir da constatação de que todos os suas frações.
homens são intelectuais, pois mesmo Entretanto, sempre atento às con-
os trabalhos físicos mais mecânicos tradições que a realidade do proces-
exigem um mínimo de atividade inte- so produtivo capitalista intensifica,
lectual criadora. Gramsci sinaliza a existência de inte-
Na sociedade capitalista “ocidental” lectuais também ligados às classes su-
(onde a sociedade civil mais se comple- balternas, os organizadores das lutas
xificou, em virtude, inclusive, das lu- contra-hegemônicas. O intelectual, se-
tas populares), o intelectual responde gundo Gramsci um persuasor perma-
a uma função social. Não por acaso, nente, favorece a construção da vonta-
o pensador italiano toma os próprios de coletiva de um grupo, atuando num
organizadores do processo produ- aparelho de hegemonia, por ele também
tivo (burguês) como primeiro exem- entendido como “partido”. Por tal razão,
plo de difusores de certa concepção de em sua militância política, Gramsci exor-
natureza, de mundo, de vida social e, ta os setores subalternos (o conjunto das
sobretudo, de disciplina e obediência. classes dominadas) a multiplicarem seus
Eles cumprem, pois, a função social próprios aparelhos de hegemonia de
de intelectuais orgânicos, que os liga modo a se defenderem e contraporem-
ao processo de produção da existência se à crescente dominação de classes que,
(no sentido mais imediato da produ- alimentada dentro e fora do Estado res-
ção econômica), mas também à repro- trito, tende a se impor como “natureza
dução do conjunto das formas de ser da cultura”. Como se observa, a própria
adequadas a essa produção. Trata-se de concepção de política se encontra, aqui,
intelectuais organizadores da cultura igualmente ampliada.

Para saber mais


BOBBIO, N.; BOVERO, M. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
______;; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. Brasília: Editora UnB,
1992. V. 2.
FONTANA, J. Historia: análisis del pasado y proyecto social. Barcelona: Crítica, 1982.
FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ–Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2010.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. V. 1.
______. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. V. 2.
______. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. V. 3.
______. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. V. 5.
GRYNSZPAN, M. Ciência política e trajetórias sociais: uma sociologia histórica da teoria
das elites. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.

354
Estrutura Fundiária

MACPHERSON, C. B. A democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.


MENDONÇA, S. R. O ruralismo brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1997.
______. Estado e sociedade. In: MATTOS, M. B .(org.). História: pensar & fazer.
Rio de Janeiro: Laboratório Dimensões da História, 1998. p. 13-32. E
T HOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da
Unicamp, 2001.

ESTRUTURA FUNDIÁRIA
Paulo Alentejano

Em texto datado do final do sécu- No Brasil, apesar das inúmeras lu-


lo XIX, Elisée Reclus sustentava que a tas e revoltas camponesas, da resistên-
estrutura fundiária de um país é o re- cia indígena e quilombola, o latifúndio
sultado das lutas entre latifundiários e prevaleceu e impôs ao país a condição
camponeses pela posse das terras. As- de um dos recordistas mundiais em
sim, onde as lutas camponesas foram monopolização da terra. Iniciada com
capazes de se impor aos anseios mono- o instrumento colonial das sesmarias –
polistas do latifúndio, a estrutura fun- que dava aos senhores de terras o direi-
diária é mais democrática;; mas onde o to de exploração econômica das mes-
poder do latifúndio prevaleceu sobre mas e poder político de controle sobre
as lutas camponesas, a concentração o território – e intensificada pela Lei
fundiária é intensa. Em síntese, o con- de Terras de 1850 – que transformou
ceito de estrutura fundiária refere-se ao a terra em mercadoria e assegurou a
perfil de distribuição das terras numa continuidade do monopólio privado,
dada sociedade. Assim, quanto mais ainda que sob outras bases jurídicas –,
desigual a distribuição das terras, mais a concentração fundiária segue sendo
concentrada será a estrutura fundiária, uma marca do campo brasileiro.
ao passo que quanto mais igualitária for O último Censo Agropecuário
a distribuição, mais desconcentrada ela (Instituto Brasileiro de Geografia e
será. Em geral, utiliza-se como base de Estatística, 2006) comprovou que o ín-
comparação para medir a concentração dice de Gini permaneceu praticamente
fundiária o índice de Gini,1 mas é pre- estagnado nas últimas duas décadas,
ciso considerar também a distribuição saindo de 0,857 em 1985, para 0,856
por estratos de área, pois, como o ín- em 1995/1996, e para 0,854 em 2006.
dice de Gini mede desigualdade, pode- Em alguns estados da federação, en-
mos ter situações em que há pouca de- tretanto, verificaram-se significativos
sigualdade, mas grande concentração aumentos, como em Tocantins (9,1%),
de terras, em função da eliminação das Mato Grosso do Sul (4,1%) e São
pequenas propriedades pelas grandes. Paulo (6,1%). O movimento de

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Dicionário da Educação do Campo

concentração foi puxado pelas gran- do total, ocupando uma área de cerca
des culturas de exportação, pela ex- de 20%, ao passo que os com mais de
pansão do agronegócio e pelo avanço 100 hectares são menos de 10% do to-
da fronteira agropecuária, em direção tal e ocupam cerca de 80% da área. E
à Amazônia, impulsionada pela cria- este quadro permaneceu praticamente
ção de bovinos e pela soja. No caso de inalterado nos últimos 50 anos.
São Paulo, o crescimento deveu-se à Se considerarmos os dados do Incra
cultura de cana-de-açúcar (estimulada (2003)2 em vez dos dados do IBGE
pelo maior uso de álcool com os carros (2006), ou seja, se considerarmos os
bicombustíveis e pelos bons preços imóveis rurais em vez dos estabeleci-
do açúcar). mentos agropecuários, verificamos que
Os dados do Censo Agropecuário o panorama não é muito diferente. Os
de 2006 (Instituto Brasileiro de Geo- imóveis com menos de 10 hectares são
grafia e Estatística, 2006) apontam a 31,6% do total, mas ocupam apenas
existência de 5.175.489 estabelecimen- 1,8% da área, e os com mais de 5 mil
tos agropecuários no Brasil ocupando hectares representam apenas 0,2% do
uma área total de 329.941.393 hectares, total de imóveis, mas controlam 13,4%
correspondente a 38,7% do território da área. Somados os imóveis com me-
nacional. Apontam ainda a existência nos de 100 hectares, eles correspon-
de 125.545.870 hectares de terras indí- dem a 85,2% do total e possuem me-
genas, 72.099.864 hectares de unidades nos de 20% da área, ao passo que os
de conservação e 30 milhões de hecta- que possuem mais de 100 hectares re-
res de águas internas, rodovias e áreas presentam menos de 15% dos imóveis
urbanas. Sobram, assim, praticamente e concentram mais de 80% da área.
300 milhões de hectares de terras de- Dos 4,375 milhões de imóveis, apenas
volutas que têm sido sistematicamente 70 mil (1,6% do total) totalizam 183
objeto de grilagem, isto é, da apropria- milhões de hectares.
ção ilegal de terras públicas por parte Assim, seja qual for a base estatís-
de especuladores. Segundo Delgado tica, a concentração fundiária aparece
(2010), são cerca de 170 milhões de como uma marca inegável da estru-
hectares grilados. tura fundiária brasileira e geradora de
Os dados do censo demonstram profundas desigualdades. Porém, o pro-
ainda que os pequenos estabelecimen- blema é ainda mais grave, pois as ca-
tos – com menos de 10 hectares – con- tegorias utilizadas pelo IBGE (esta-
tabilizam 2.477.071 (47,9% do total), belecimentos agropecuários) e pelo
mas a área ocupada pelos mesmos é de Incra (imóveis rurais) não dão conta da
apenas 7.798.607 (2,4 % do total), ao complexidade das formas de acesso à
passo que, no polo oposto, os estabe- terra existentes no Brasil. Ao se centra-
lecimentos com mais de 1.000 hectares rem nas dimensões econômica (IBGE)
são apenas 46.911 (0,9% do total), mas e jurídica (Incra), essas categorizações
ocupam 146.553.218 hectares (44,4% tornam invisíveis várias modalidades
da área total). O contraste se torna de acesso à terra que têm profundo
ainda mais nítido quando observa- enraizamento na cultura camponesa,
mos que os estabelecimentos com me- mas que não são evidenciadas pelas
nos de 100 hectares são cerca de 90% estatísticas de tais órgãos. Por isso, as

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Estrutura Fundiária

formas de apropriação da terra típi- do último censo demonstram que os


cas dos faxinais, dos geraizeiros, dos pequenos estabelecimentos (menos
fundos de pasto, das quebradeiras de de 100 hectares) responderam por
coco, dos seringueiros, dos ribeirinhos,
dos vazanteiros, e de tantas outras co-
84,36% das pessoas ocupadas em es-
tabelecimentos agropecuários, embora E
munidades tradicionais não são capta- a soma de suas áreas represente apenas
das na sua complexidade, nem respei- 30,31% do total. Em média, os peque-
tadas na sua diversidade. nos estabelecimentos utilizam 12,6 ve-
Assim, podemos afirmar que as zes mais trabalhadores por hectare do
estatísticas revelam apenas parte das que os médios (100 a 1.000 hectares),
desigualdades existentes no Brasil e 45,6 vezes mais do que os grandes
quando se trata do acesso à terra e suas estabelecimentos (com mais de 1.000
consequências, o que as torna ainda hectares). O resultado da manutenção
mais aterradoras. do monopólio da terra no Brasil é a
Um dos resultados desta profunda precariedade da vida nas favelas e pe-
iniquidade na distribuição de terras no riferias das metrópoles e mesmo das
Brasil é, segundo Carter (2010), a dis- médias cidades brasileiras, para onde
crepância da representação política en- foram empurrados os mais de 50 mi-
tre camponeses e/ou agricultores fami- lhões de brasileiros expulsos do campo
liares (1 deputado para 612 mil famílias nas últimas décadas.
entre 1995 e 2006) e grandes proprie- A concentração fundiária tem im-
tários (1 deputado para 236 famílias), pactos ainda sobre a dimensão produ-
uma diferença de 2.587 vezes. Como tiva, seja porque boa parte das grandes
consequência direta dessa desigualda- propriedades pouco ou quase nada pro-
de, os grandes proprietários consegui- duz (são 120 milhões de hectares que
ram obter 1.587 vezes mais recursos os próprios proprietários declaram
públicos do que os camponeses e agri- ao Incra serem improdutivos dentro
cultores familiares para o financiamen- dos latifúndios), seja porque, quando
to da produção agropecuária. Segundo produzem, concentram-se na produ-
o IBGE, em 2006, os estabelecimentos ção de poucos produtos, destinados à
com 1.000 ou mais hectares (0,9% do exportação ou a fins industriais. Com
total) captaram 43,6% dos recursos, e isso, nas duas últimas décadas, a área
os com até 100 hectares (88,5% dos plantada com gêneros alimentares bá-
que obtiveram financiamento) capta- sicos, como arroz, feijão e mandioca,
ram 30,42% dos recursos. reduziu-se em mais de 2,5 milhões de
Outro efeito da persistência desta hectares, ao passo que a área plantada
concentração fundiária é a expulsão com soja, milho e cana-de-açúcar au-
de trabalhadores do campo. A impos- mentou 16 milhões de hectares. Além
sibilidade de reprodução ampliada das destas lavouras, as grandes proprieda-
famílias camponesas, resultante da des destinam a maior parte de suas ter-
concentração fundiária, produz a ex- ras à pecuária extensiva e à plantação
pulsão dos trabalhadores do campo, o industrial de árvores, sobretudo o eu-
que é acentuado pela modernização da calipto. Desta forma, a estrutura fun-
agricultura, que reduz a necessidade diária concentrada se converte também
de mão de obra no campo. Os dados num fator de insegurança alimentar.

357
Dicionário da Educação do Campo

Outro efeito da concentração fundi- à propriedade da terra no Brasil. De


ária é facilitar a transferência do patri- todo modo, há indicações desta cres-
mônio natural brasileiro para o controle cente aquisição de terras, pois o apor-
estrangeiro, afinal, quando se trata o te de recursos estrangeiros destinado
agro como mero negócio (agronegócio), à compra de terras, que era da ordem
a terra é de fato apenas uma mercadoria de 104 milhões dólares em 2002, subiu
que pode ser transacionada sem maiores para 548 milhões de dólares em 2008,
preocupações, diferentemente de quan- um aumento de 427% em seis anos. O
do o agro é lugar de vida (agricultura) e Incra estima em 4,5 milhões de hecta-
a terra, portanto, não é mera mercado- res a área sob controle de estrangeiros,
ria, mas condição para a existência. mas não sabe a que se destinam, pro-
Diante disso, verifica-se hoje no dução ou especulação.
Brasil uma intensa transferência de ter- A concentração fundiária explica
ras para as mãos de fazendeiros, fundos também duas outras mazelas funda-
de investimentos e empresas estrangei- mentais do campo brasileiro: a violên-
ras. Este não é um fenômeno que está cia e a devastação ambiental. Como
acontecendo única e exclusivamente atestam os dados publicados anual-
no Brasil;; pelo contrário, faz parte de mente pela Comissão Pastoral da Terra
um movimento de escala global capita- (CPT), a violência segue sendo parte do
neado por corporações agroindustriais cotidiano do campo brasileiro, onde,
interessadas em ampliar seus negócios, nos últimos 25 anos, houve uma mé-
por especuladores e fundos de investi- dia anual de: 63 pessoas assassinadas;;
mento interessados na valorização das 2.709 famílias expulsas de suas terras;;
terras como ativos financeiros, e mes- 13.815 famílias despejadas por meio de
mo por governos de países com limita- ações exaradas pelo Poder Judiciário de
ções naturais para o desenvolvimento alguma unidade da federação e cumpri-
da agricultura, que têm procurado ad- das pelo Poder Executivo por meio de
quirir terras no exterior para assegurar suas polícias;; 422 pessoas presas por
o fortalecimento seguro de alimentos. lutar pela terra;; 765 conflitos direta-
Segundo dados do Banco Mundial cita- mente relacionados à luta pela terra;; e
dos por Sauer e Leite (2010), entre ou- 92.290 famílias envolvidas diretamente
tubro de 2008 e agosto de 2009 foram em conflitos por terra (Porto-Gonçal-
comercializados 45 milhões de hecta- ves e Alentejano, 2010).
res no mundo, sendo 33,75 milhões na No que se refere à devastação am-
África (75% do total) e 3,6 milhões no biental, é notório que as grandes mono-
Brasil e na Argentina (8% do total). O culturas e a criação extensiva de gado,
problema torna-se maior quando verifi- atividades tradicionais do latifúndio,
camos a fragilidade dos mecanismos de foram as atividades que historicamente
controle do Estado sobre o território provocaram a destruição das florestas
brasileiro, pois o próprio Incra, órgão e demais formações vegetais brasilei-
responsável pela administração fundiá- ras, como relata Warren Dean (1998).
ria no Brasil, admite que o governo não Hoje, além de continuar a produzir a
tem dados precisos sobre investidores devastação ambiental, os grandes lati-
e pessoas físicas que já detêm terras no fúndios monocultores são também os
país e que há inúmeras brechas legais principais responsáveis pela transfor-
que facilitam o acesso de estrangeiros mação do Brasil no maior consumidor

358
Estrutura Fundiária

mundial de agrotóxicos, pois são as amplamente às necessidades de terra


culturas da soja, da cana-de-açúcar, do dos 4 milhões de sem-terra espalhados
milho e do algodão as que mais utili- por este país afora. Isto possibilitaria
zam agroquímicos e, com isto, contri- resolver não só a situação das milha-
buem para a contaminação do ar, das res de famílias que permanecem acam- E
águas, do solo, dos alimentos e dos tra- padas em beiras de estrada ou dentro
balhadores rurais brasileiros. de latifúndios ocupados reivindicando
Por tudo isso, os movimentos so- um pedaço de terra, mas também dos
ciais que lutam pela Reforma Agrária milhares que, embora não estejam dire-
no Brasil têm defendido o estabele- tamente mobilizados na luta, continu-
cimento de um limite de 35 módulos am almejando uma terra para garantir
fiscais3 para as propriedades fundiárias seu sustento.
no Brasil. Caso este limite venha a ser Por tudo isso, a Reforma Agrá-
estabelecido, apenas 50.118 imóveis ria continua sendo uma luta funda-
(2% do total), que somam 203.643.369 mental por uma sociedade mais justa
hectares, seriam atingidos, atendendo e democrática.

Notas
1
O índice de Gini serve para medir desigualdades (de terra, de renda, de riqueza, de acesso
a bens etc.) e varia de 0 a 1, sendo que, quanto mais igualitária a distribuição, mais próximo
de 0 fica o índice, e quanto maior a desigualdade, mais próximo de 1 ele fica.
2
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza a categoria “estabeleci-
mentos agropecuários”, que considera a unidade produtiva, enquanto o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra) utiliza a categoria “imóvel rural”, que tem como
base a propriedade da terra. Assim, por exemplo, se uma fazenda é arrendada para quatro
diferentes agricultores, o Incra contabiliza um imóvel rural, e o IBGE, quatro estabeleci-
mentos agropecuários. Por outro lado, se três diferentes fazendas são administradas como
uma unidade produtiva contínua, o Incra contabiliza três imóveis rurais, e o IBGE, apenas
um estabelecimento agropecuário. Assim, os dados do IBGE e do Incra devem ser consi-
derados como complementares para a análise da concentração fundiária.
3
Segundo a legislação brasileira, as pequenas propriedades são as que têm até 4 módulos
fiscais, as médias são as que têm entre 4 e 15 módulos, e as grandes, as que têm mais de 15
módulos. O tamanho dos módulos varia de acordo com a localização e as condições natu-
rais, e vai de 5 a 110 hectares.

Para saber mais


CARTER, M. (org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no
Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2010.
DEAN, W. A ferro e fogo – a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
DELGADO, G. C. A questão agrária e o agronegócio no Brasil. In: CARTER, M.
(org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São
Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 81-102.

359
Dicionário da Educação do Campo

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo agropecuário


2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/
home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/brasil_2006/Brasil_
censoagro2006.pdf. Acesso em: 12 set. 2011.
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA). Estatísticas
cadastrais. Brasília: Incra, 2003
MEDEIROS, L. S. de. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta pela terra.
São Paulo: Perseu Abramo, 2003.
PORTO-GONÇALVES, C. W.; ALENTEJANO, P. R. R. A violência do latifúndio
moderno-colonial e do agronegócio nos últimos 25 anos. In: COMISSÃO PASTORAL
DA TERRA (CPT). Conflitos no Campo Brasil 2009. Goiânia: CPT, 2010. p. 109-117.

RECLUS, E. A propriedade e a exploração da terra. In: ANDRADE, M. C. DE (org.).


Élisée Reclus: grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1985. p. 75-98.
SAUER, S.; LEITE, S. P. A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil.
Artigos Mensais Oppa, n. 36, p. 1-4, ago. 2010.

360
F
FORMAÇÃO DE EDUCADORES DO CAMPO
Miguel G. Arroyo
F
A concepção e a política de forma- Se a condição docente é pensada
ção de professores do campo vão se como única e as diretrizes que regu-
construindo na conformação da edu- lam sua formação também são únicas,
cação do campo. só resta aplicá-las com as “permitidas”
Os movimentos sociais inauguram adaptações em tempos, cargas horá-
e afirmam um capítulo na história da rias, nos tipos presencial ou em alter-
formação pedagógica e docente. Na nância, em comunidade etc. (Arroyo,
diversidade de suas lutas por uma edu- 2008). Nessa lógica, os cursos espe-
cação do/no campo, que fazem parte cíficos de formação de professores
de um outro projeto de campo, prio- do campo e de professores indíge-
rizam programas, projetos e cursos nas e quilombolas não passariam de
específicos de Pedagogia da Terra, de cursos comuns, genéricos, com as
formação de professores do campo, devidas e permitidas adaptações, mais
de professores indígenas e quilombo- ou menos elásticas. Ao serem incorpo-
las. Como está sendo construída essa rados como cursos das universidades,
concepção de formação? Quem são os poderão ser pressionados a perder seu
sujeitos dessa política? Como ela con- caráter específico, sendo reduzidos a
tribui na consolidação da educação do secundárias adaptações.
campo? Que contribuições traz para as Sem a superação desse protótipo úni-
políticas e os currículos da formação co, genérico de docente, as consequên-
docente e pedagógica? cias persistem: a formação privilegia a
visão urbana, vê os povos-escolas do
Superar um protótipo campo como uma espécie em extinção,
e privilegia transportar para as escolas
único de docente-educador do campo professores da cidade sem
O primeiro significado a extrair dessa vínculos com a cultura e os saberes
história é a superação da formação de um dos povos do campo. As consequên-
protótipo único, genérico de docente- cias mais graves são a instabilidade
educador para a educação básica. Na desse corpo de professores urbanos
história do ruralismo pedagógico dos que vão às escolas do campo, e a não
anos 1940, houve tentativas de formar conformação de um corpo de profis-
professores para a especificidade das es- sionais identificados e formados para
colas rurais;; porém, venceu a proposta a garantia do direito à educação básica
generalista de que todo professor deve- dos povos do campo. Assim, um siste-
rá estar capacitado para desenvolver os ma específico de escolas do campo não
mesmos saberes e competências do en- se consolida.
sino fundamental, independentemente Entretanto, os movimentos, ao de-
da diversidade de coletivos humanos. fenderem a especificidade da forma-

361
Dicionário da Educação do Campo

ção, não defendem uma função gené- formação, trazem suas marcas políti-
rica nem um currículo único com as cas à formação docente e ao perfil de
devidas adaptações. E nem retornam docente-educador não apenas do cam-
à proposta do ruralismo pedagógico, po, mas de toda a educação básica. Além
mas superam a visão da escola rural disso, invertem os processos tradicio-
e do professor rural ao politizarem a nais de formulação de políticas vindas
educação do campo em um outro pro- de cima para os setores populares vistos
jeto de campo. apenas como destinatários de políticas e
não como autores-sujeitos políticos
de políticas. Essa inversão tem trazido
Os movimentos do campo tensões não apenas nas concepções
como sujeitos de políticas de formação, mas tensões políticas de
de formação reconhecimento dos movimentos so-
ciais como autores nas universidades,
Os movimentos do campo e o no MEC e nos órgãos de formulação e
Programa Nacional de Educação na análise de políticas do Estado.
Reforma Agrária (Pronera) tentam
A política de formação de profes-
quebrar essa visão genérica de docente- sores do campo de que os movimen-
educador e, dessa maneira, superar as tos sociais são autores está sendo um
desastrosas consequências para a afir- processo que obriga a repensar e rede-
mação da educação do campo. Esses finir a relação entre o Estado, as suas
movimentos se afirmam não como instituições e os movimentos sociais.
reivindicadores de mais escolas e de Esse processo tem um significado de
mais profissionais, mas como sujeitos grande relevância política. Consequen-
coletivos de políticas de formação de temente, os currículos de formação
docentes-educadores. Deles e de suas têm como um dos seus objetivos for-
lutas por terra, território, agricultura mar profissionais do campo capazes de
camponesa e Reforma Agrária parte a influir nas definições e na implantação
defesa de cursos de Pedagogia da Terra de políticas educacionais, ou seja, os
e de formação de professores do campo. currículos objetivam afirmar esses pro-
Os cursos de Pedagogia da Terra re- fissionais como sujeitos de políticas.
presentam um programa específico das
lutas dos movimentos sociais pela Re-
forma Agrária. Os cursos de formação
Incorporar nos cursos a
de professores partem das demandas formação acumulada
dos movimentos do campo reunidos
O fato de os movimentos sociais
na Conferência Nacional realizada em
serem atores centrais nos cursos de
2004, que deu origem, na Secretaria de
formação traz consequências para as
Educação Continuada, Alfabetização,
políticas e para os currículos de forma-
Diversidade e Inclusão do Ministério
ção. Seu ponto de partida é a radicali-
da Educação (Secadi/MEC), ao Pro-
dade política, cultural e educativa, que
grama de Apoio às Licenciaturas em
vem dos próprios movimentos sociais e
Educação do Campo (Procampo).
dos seus processos de formação como
Os movimentos sociais, ao se afir- militantes-educadores. Levam para os
marem como sujeitos de políticas de cursos formais a riqueza de práticas, de

362
Formação de Educadores do Campo

concepções de formação aprendidas fessores indígenas e quilombolas exige


na tensa e pedagógica dinâmica política mudar as identidades dos cursos de for-
do campo de que são sujeitos centrais. mação como meros capacitadores para
A lógica dominante até nos cursos o exercício do magistério e reconhecê-
de formação de professores críticos, los como o lugar aberto aos saberes,
reflexivos e transformadores tem sido valores e práticas educativas que se dão
em que currículos formar professores
com essa capacidade crítica, reflexiva
na dinâmica social, política e cultu-
ral, nos movimentos sociais que che-
F
para transformar a realidade. Essa tem gam aos cursos às universidades. A
sido a lógica legitimante de tantas pro- trajetória de conformação da política
postas críticas de formação docente. de formação de professores do campo
Na medida em que os(as) militantes- mostra não ser nada fácil fazer essas mu-
educadores(as) dos movimentos que danças. Os cursos e seus educandos são
chegam a esses cursos carregam radica- mantidos à margem do funcionamento
lidades políticas, culturais e educativas, das faculdades e universidades, repro-
acumuladas nas lutas dos movimen- duzindo o trato histórico marginalizado
tos, eles passam a exigir dos cursos de desses coletivos.
formação o reconhecimento desses sa- Há resistências em reconhecer os
beres, valores, concepções de mundo, coletivos sociais, étnicos e raciais do
de educação, como ponto de partida de campo que chegam a esses cursos
sua formação. como sujeitos de conhecimentos, de
Demanda-se dos currículos que in- linguagens, de história intelectual e cul-
corporem, sistematizem e aprofundem tural, de trajetórias políticas de forma-
esses saberes e essa formação acumu- ção. Pouco se tem avançado em seu re-
lada, e que os ponham em diálogo com conhecimento positivo e na abertura a
seu direito aos saberes e concepções diálogos. Consequentemente, pouco se
das teorias pedagógicas e didáticas, tem avançado no questionamento das
de organização escolar, de ensino- lógicas que inspiram os cursos oficiais
aprendizagem para a garantia do direi- de formação docente. Como avançar
to à educação dos povos do campo. para superar a condição desses cursos,
Nessas tensões, vai se conformando a que estão à margem da dinâmica dos
concepção de formação de professores cursos oficiais? E, sobretudo, como su-
e professoras do campo. perar sua caracterização como conces-
Essa é uma das contribuições da sões benévolas para as “minorias à mar-
concepção de formação dos profissio- gem” do conhecimento, da ciência, da
nais do campo para a formação de todo cultura, da civilização e da educação?
profissional de educação básica: reco- Trata-se de questões tensas que pro-
nhecer os saberes do trabalho, da terra, vocam a conformação da concepção
das experiências e das ações coletivas de formação de professores do campo,
sociais e legitimar esses saberes como indígenas e quilombolas. Esses cursos
componentes teóricos dos currículos. significam reverter as visões e os tra-
Reconhecer e incorporar essa ri- tos, os processos históricos brutais de
queza de aprendizados que entram nos produção desses coletivos como infe-
cursos de Pedagogia da Terra, de forma- riores, à margem da história intelectual,
ção de professores do campo e de pro- cultural, social e pedagógica.

363
Dicionário da Educação do Campo

Política afirmativa de mínios de competências generalistas


de ensino-aprendizagem. Os cursos de
formação
Pedagogia da Terra, de Formação
A estratégia dos movimentos so- de Professores do Campo, Indígenas,
ciais do campo avança defendendo e Quilombolas politizam essas políti-
esses cursos como política afirmativa. cas ao vinculá-las a lutas políticas afir-
Na Proposta do Plano Nacional de Forma- mativas desses povos e outro projeto
ção de Profissionais da Educação do Campo de campo.
(Grupo Permanente de Trabalho de Por sua vez, a presença de militan-
Educação do Campo, 2005), o plano é tes-estudantes do campo, indígenas, e
justificado como ação afirmativa para quilombolas nesses centros de forma-
correção da histórica desigualdade so- ção tem instigado a repolitização do
frida pelas populações do campo em perfil, das pesquisas e dos currículos de
relação ao seu acesso à educação básica formação do docente-educador da edu-
e à situação das escolas do campo e de cação básica e superior, e dos próprios
seus profissionais. centros de pedagogia e de licenciatura
e de seus currículos, suas pesquisas e
Podemos reconhecer na defesa da
sua produção teórico-didática.
formação específica de professores
uma política afirmativa de formação Uma forma de repolitizar os cur-
ou uma das frentes de formação polí- rículos de formação tem sido incor-
tica e identitária de um outro projeto porar o conhecimento dessa histó-
de campo. Primeiro, porque vai além de ria de produção das desigualdades e
uma ação corretiva de históricas desi- da história das relações políticas de
gualdades e passa a ser defendida como dominação-subordinação da agricul-
proposta dos povos do campo em pro- tura, dos povos do campo e de seus
trabalhadores à lógica do capital. Os
cessos de afirmação social, política, cul-
currículos de formação têm incor-
tural e pedagógica. Esses povos atuam
porado o direito ao conhecimento
como sujeitos políticos de presenças-
da história de resistências e de ações
reconhecimentos afirmativos (da agri-
coletivas de movimentos sociais pela
cultura camponesa, do trabalho, de um
sua afirmação.
projeto de campo, da cultura e valores
aprendidos nesse trabalho, na produção Se os profissionais docentes-educa-
camponesa) contra o histórico oculta- dores entenderem essa tensa história,
mento e a segregação nos processos de estarão capacitados a trabalhar esse
dominação-subordinação. entendimento com as crianças e ado-
lescentes, com os jovens e adultos que
Esse caráter afirmativo dá dimen- trabalham nos campos, nas comunida-
sões políticas novas às lutas no campo des indígenas, negras e quilombolas,
e às políticas de formação de docentes- e até nas escolas públicas populares
educadores. Essas políticas afirmati- em que chegam os diferentes, feitos e
vas acabam gerando um processo de tratados em nossa história como desi-
repolitização das políticas e dos pró- guais. A incorporação dessa riqueza de
prios cursos de formação docente – conhecimentos ocultados trará maior
que, tradicionalmente, são equacio- densidade e radicalidade teórica aos
nados com base em currículos de do- currículos de formação.

364
Formação de Educadores do Campo

Uma formação plural para A ênfase nesses vínculos entre educa-


dores e dirigentes “interventores” na
funções plurais
realidade do campo, formuladores e
Essa riqueza de conhecimentos implementadores de políticas mais
incorporados nos currículos de for- amplas com finalidades gerenciais edu-
mação dos profissionais do campo vai cativas e políticas, traz consequências
construindo uma concepção plural
de formação. Ter os movimentos so-
para o perfil de educador das escolas
e para a sua formação (Arroyo, 2005).
F
ciais como sujeitos políticos da cons- Essa defesa de uma formação mais
trução dessa concepção de formação, plural encontra justificativa na função
ter militantes-educadores como estu- política esperada da escola do campo.
dantes, traz uma concepção ampliada Ela deve ser espaço em que sejam in-
de formação. corporados os saberes da terra, do tra-
As políticas, assim como as diretri- balho e da agricultura camponesa;; em
zes curriculares dos cursos oficiais de que as especificidades de ser-viver a
formação, limitam-se a formar pro- infância-adolescência, a juventude e
fessores para o ensino fundamental e a vida adulta no campo sejam incorpo-
médio ou para a educação escolar da radas nos currículos e propostas edu-
infância e de jovens e adultos. Essa cativas;; em que os saberes, concepções
concepção se limita aos processos es- de história, de sociedade, de libertação
colares e com ênfase no ensino-apren- aprendidos nos movimentos sociais fa-
dizagem, secundarizando os processos çam parte do conhecimento escolar...
educativos, de desenvolvimento ple- Que escola, que currículo e que forma-
no, social, intelectual, cultural, ético, ção dos seus professores darão conta
identitário dos educandos. Sobretudo, dessa escola articulada aos processos
ignoram os processos de formação que produtivos, de trabalho, de lutas do
acontecem no trabalho, na sobrevivên- campo? Afirmando essa escola, esses
cia, nas resistências à opressão, na di- currículos e esse perfil de professores
versidade de lutas, ações e movimentos do campo, os movimentos sociais es-
de libertação. Que profissionais formar tão conformando outra concepção de
para acompanhar esses processos for- formação para todos os profissionais
madores escolares e extraescolares da educação básica e para todos os cur-
mais plurais? sos de Pedagogia e de Licenciatura.
Os movimentos sociais contribuem
para a conformação de uma concepção Uma concepção totalizante
de educação que incorpore essa plura- de formação
lidade de dimensões e funções forma-
doras. Defendem uma relação estreita A Proposta do Plano Nacional de Forma-
entre a função educativa, diretiva e or- ção dos Profissionais da Educação do Campo
ganizativa no perfil de educador;; dão defende romper com a qualificação
ênfase às didáticas não apenas escola- instrumental e afirmar uma formação
res, de ensino, mas às estratégias e di- na qual a raiz de tudo é o ser huma-
dáticas para a direção e consolidação no, seu processo de humanização, de
da Reforma Agrária e dos movimentos. emancipação humana.

365
Dicionário da Educação do Campo

Sendo coerente com relação a essa campo profissional é capacitado para


linha, a concepção de formação de dar conta de um recorte do social. No
professores do campo, indígenas e qui- campo, nas formas produtivas em que
lombolas se propõe a superar a frag- os diversos povos se organizam, tudo
mentação do conhecimento. A forma- é extremamente articulado. Os movi-
ção por áreas, e não por disciplinas, é mentos sociais agem e se estruturam
uma estratégia para essa superação. nessa dinâmica produtiva, social, cul-
Os movimentos sociais constroem tural. As intervenções e lutas desses
leituras de mundo, de sociedade, de movimentos são totais, e conformam
ser humano, de campo, de direitos e seus integ rantes como militantes-
de formação mais totalizantes, menos educadores totais que propõem cur-
segmentadas por recortes. As matrizes rículos que incorporem essa forma-
em que eles se formam carregam es- ção totalizante nos cursos de formação
ses processos totalizantes: o trabalho, (Arroyo, 2005).
a terra, a cultura, as experiências de Poderíamos acrescentar que, na agri-
opressão-libertação (ver P EDAGOGIA cultura camponesa, familiar e nas co-
DO OPRIMIDO). munidades agrícolas, desde a infância-
A concepção de educação-formação adolescência-juventude, vai se dando
que os movimentos sociais vão cons- a inserção total nos processos produ-
truindo ao fundamentar-se nesses tivos e de trabalho, sociais, culturais,
princípios-matrizes priorizam o direito de valores e de identidades – é, portan-
à formação plena humana, politécnica, to, uma formação total. Como formar
do trabalhador (ver TEMPOS HUMANOS DE seus professores para entenderem e
FORMAÇÃO). Neste contexto, encontra acompanharem esses processos totais
seu sentido mais radical na defesa de de socialização, de aprendizagem, de
formação já não segmentada por áre- formação tão específicos das vivências
as e articulando tempos presenciais e da infância, da adolescência e da juven-
tempo de comunidade ou de inserção tude do campo, indígena, quilombola
nos processos formativos do trabalho, que se educa nas escolas?
da produção camponesa, da agricultura
familiar (escolas família-pedagogia da Diversidade de modos
alternância), da inserção nas lutas dos
movimentos pela terra, pelos territó-
de pensar
rios, pela libertação. Incorporar essa A construção da concepção de
história como objeto de conhecimento formação de professores do campo é
e de pesquisa dá outra densidade teóri- acompanhada por uma produção con-
ca aos currículos de formação. sistente de pesquisas, projetos, análises
Há ainda uma motivação para resis- e avaliações, a ponto de termos um
tir à fragmentação em que se estrutu- acúmulo teórico produzido pelos co-
ram os currículos de educação básica letivos docentes desses cursos e pelos
e de formação, quando pensamos a militantes em formação. Uma carac-
educação do campo e a formação de terística desses cursos é constituírem
seus profissionais: o campo não se de- coletivos de produtores-pesquisadores
senvolve na lógica fragmentada com de conhecimentos sobre a própria prá-
que a racionalidade técnica recorta tica de formação tanto nos cursos, nas
as cidades, na qual cada instituição e pesquisas, no tempo comunidade e na

366
Formação de Educadores do Campo

dinâmica social, política, cultural e pe- no trabalho, na produção camponesa,


dagógica do campo, de seus povos e nos movimentos sociais que os mili-
dos seus movimentos. tantes em formação levam aos cursos
É significativa a socialização dessa nem sempre encontram reconhecimen-
produção sobre a concepção de for- to. Nem suas leituras de mundo, suas
mação dos professores do campo. Um linguagens, suas culturas e seus modos
espaço foi aberto nos grupos de tra- de pensar e de pensar-se são reconheci-
balho da Associação Nacional de Pós- dos. Ao entrar na academia, na pesqui- F
graduação e Pesquisa em Educação sa, na lógica da produção científica, nas
(Anped) e na programação do XV En- avaliações, se defrontam com racionali-
contro Nacional de Didática e Prática dades, valores, linguagens, concepções
de Ensino (Endipe), em 2010, cujo tema fechadas em si mesmas, que inferiori-
foi “Convergências e tensões no campo zam suas culturas, racionalidades, mo-
da formação e do trabalho docente”. A dos de pensar e de pensar-se.
formação de professores do campo es- Como equacionar e superar visões
teve presente, com oito trabalhos apre- inferiorizantes de outras formas de
sentados no encontro. Ainda merecem pensar, de outras culturas e de seus
destaque as duas edições do Encontro coletivos quando chegam à academia
de Pesquisa em Educação do Campo. vítimas de representações raciais histó-
Entretanto, essa densa produção ricas inferiorizantes? A concepção de
nem sempre é reconhecida e incor- formação que está em construção ten-
porada como produção teórica sobre ta superar essas visões e avançar para
formação e trabalho docente. Até os posturas de reconhecimento e de diá-
processos de formação que acontecem logo entre modos de pensar.

Para saber mais


ANTUNES-ROCHA, M. I. (org.). Educação do campo: convergências e tensões no
campo da formação e do trabalho docente. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA
E PRÁTICA DE ENSINO (ENDIPE), 15. Anais... Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

ARROYO, M. G. Formação de educadores e educadoras do campo. Brasília, 2005. (Mimeo.).


______. Os coletivos diversos repolitizam a formação. In: DINIZ-PEREIRA, J. E.;
LEÃO, G. (org.). Quando a diversidade interroga a formação docente. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008. p. 11-36.
GRUPO PERMANENTE DE TRABALHO DE EDUCAÇÃO DO CAMPO (GPT). Proposta do
Plano Nacional de Formação dos Profissionais da Educação do Campo. Brasília: Secadi/
MEC, 2006.
MOLINA, M. C.; SÁ, L. M. Desafios e perspectivas na formação de educadores:
reflexões a partir da Licenciatura em Educação do Campo na UnB. In: ENCONTRO
NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO (ENDIPE), 15. Anais... Belo Horizon-
te: Autêntica, 2010.
______;; ______ (org.). Licenciaturas em Educação do Campo: registros e reflexões
a partir das experiências piloto (UFMG;; UnB;; UFBA e UFS). Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.

367
Dicionário da Educação do Campo

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE


Juvelino Strozake

O conceito de função social da pro- Porém, não é esse o espírito da Cons-


priedade está descrito no artigo 186 da tituição Federal. A nossa Carta Magna
Constituição Federal. Este artigo é bas- precisa ser lida e interpretada no seu
tante claro sobre o que significa cum- conjunto, e não em linhas, destacando
prir a função social: apenas o que interessa aos ruralistas.
[...] a função social é cumpri- Portanto, as terras que podem ser de-
da quando a propriedade rural sapropriadas e destinadas ao Plano Na-
atende, simultaneamente, os se- cional de Reforma Agrária (PNRA) são
guintes requisitos: I – aproveita- todas aquelas que não cumprem a fun-
mento racional e adequado;; uti- ção social. Essas também são as terras
lização adequada dos recursos que podem ser ocupadas para fins de
naturais disponíveis e preser- pressão pela agilização das desapro-
vação do meio ambiente;; ob- priações. As terras produtivas, desde que
servância das disposições que não cumpram com a função social, po-
regulam as relações de trabalho;; dem e devem ser ocupadas pelos movi-
exploração que favoreça o bem- mentos sociais.
estar dos proprietários e dos A função social da propriedade é
trabalhadores. um tema apaixonante e crucial para o
nosso futuro. Vejamos, agora, um pou-
Para registrar esse conceito na Cons- co de sua história.
tituição Federal, foi necessário travar
uma briga com a bancada do Centrão1 O espaço territorial é finito, limita-
durante os trabalhos da Constituinte, en- do, e a terra como meio de produção
tre 1987 e 1988. Além do artigo 186 e de alimentos, bens para o consumo,
de seus quatro incisos, é necessário ver o produtos, ou reserva de mercado, mo-
artigo 184 para se chegar à conclusão de radia, sempre foi fonte de controvérsia
que a União poderá desapropriar as ter- e guerras.
ras que não cumprem a função social. A cultura popular dedicou grandes
Os ruralistas insistem em argumen- momentos e festejos à mãe Terra. Al-
tar que as terras produtivas não podem guns povos comemoram o momento
ser desapropriadas, porque o artigo 185 do plantio, outros organizam festas na
da Constituição Federal diz que “são colheita. Todos os povos, desde a tra-
insuscetíveis de desapropriação as ter- dição indígena, passando pelas tribos
ras produtivas”. Ocorre que, para fazer na África, sociedades europeias, ame-
uma terra produzir, o proprietário po- ricanas e asiáticas, organizaram-se na
derá desmatar e poluir o meio ambien- medida e nas possibilidades da produ-
te, reduzir o trabalhador à condição ção de alimentos retirados do solo e da
de escravo e, assim, alcançar os índices de exploração de recursos naturais para a
produtividade e lucro. produção social da vida.

368
Função Social da Propriedade

O aumento populacional, a concen- monarquia. Fábio Konder Comparato


tração de pessoas em pequenos es- (2000) afirma que o Código Napoleô-
paços, a ganância de grandes grupos nico gerou o conceito de propriedade
empresariais foi gerando permanente como “poder absoluto e exclusivo so-
debate sobre a necessidade de se esta- bre coisa determinada” (ibid., p. 133),
belecerem regras para o uso e a ocupa- objetivando apenas a satisfação das
ção das terras agricultáveis.
O debate sobre a responsabilidade
necessidades “do seu titular”, necessi-
dades individuais, sem nunca levar em
F
social dos proprietários de terras, den- consideração a situação coletiva.
tro da Igreja e da teologia, nasceu com Orlando Gomes, professor catedrá-
a constatação de que a terra foi dada tico da Faculdade de Direito da Uni-
em comum a todos os homens, e, por- versidade da Bahia, considera Leon
tanto, ninguém poderia assenhorar-se Duguit “o pai da ideia de que os direi-
dos bens coletivos. tos só se justificam pela missão social
No final do século VI, a proprie- para a qual devem contribuir” (Gomes,
dade privada já tinha conquistado seu 2000, p. 108), pois pensa o proprietário
lugar na mente e nos corações dos ho- como um “funcionário” a serviço dos
mens. A Igreja, embora não defendesse interesses sociais.
a divisão geral dos meios de produção, A doutrina desenvolvida por Duguit
insistia na tese da função social da pro- bateu forte na teoria individualista.
priedade. O papa Gregório Magno afir- Contrariando as teses burguesas de que
mava que “a terra é comum a todos” o homem nasce só, isolado, indepen-
e condenava aqueles que acumulavam, dente dos outros, e que sua liberdade e
chegando a dizer que a concentração sua propriedade são direitos subjetivos
da propriedade é causa da morte pela e inalienáveis, afirmou que os homens
fome e da pobreza generalizada (ver nascem em sociedade, dela dependem
Alves, 1995, p. 161-162). para a sua sobrevivência e estão adstri-
A corrente jurídico-filosófica tem seu tos às decisões da coletividade.
início com a Revolução Francesa, e dela Abaixo transcrevemos texto de
recebe sua principal influência: a exalta- Duguit, verdadeiro clássico para a com-
ção do indivíduo e de sua liberdade. preensão da extensão do pensamento
Segundo os pensadores desse perío- do jurista “pai” do conceito moderno
do, entre eles John Locke, o indivíduo de função social:
progride pelo trabalho, e a propriedade
é uma continuação da liberdade hu- A propriedade deixou de ser o
mana;; portanto, sem propriedade não direito subjetivo do indivíduo e
existe liberdade. tende a se tornar a função social
O Código Civil elaborado pela do detentor da riqueza mobiliá-
burguesia após a Revolução Francesa, ria;; a propriedade implica para
também conhecido como Código Na- todo detentor de uma riqueza
poleônico, permitia ao proprietário o a obrigação de empregá-la para o
direito de dispor das coisas da maneira crescimento da riqueza social e
mais absoluta possível, evidenciando para a interdependência social.
a liberdade defendida pelos burgue- Só o proprietário pode executar
ses logo após saírem da opressão da uma certa tarefa social. Só ele

369
Dicionário da Educação do Campo

pode aumentar a riqueza geral que diz respeito às propriedade rurais:


utilizando a sua própria;; a pro- “O possuidor da terra está obrigado,
priedade não é, de modo algum, frente à comunidade, a trabalhar a terra
um direito intangível e sagrado, e a explorar o solo”.
mas um direito em contínua A Declaração Universal dos Direi-
mudança que se deve modelar tos Humanos, publicada logo após os
sobre as necessidades sociais às horrores da Segunda Guerra Mundial,
quais deve responder. (Duguit reforçou para o mundo ocidental a
apud Gomes, 2000, p. 109) ideia dos direitos humanos, expressan-
do o direito à paz, à justiça e ao desen-
A concepção burguesa individua- volvimento econômico e social.
lista da propriedade, entendida como
Nas palavras de Flávia Piovesan,
direito absoluto e exclusivo de seu
a “Declaração consolida a afirmação
proprietário, não resistiu às transfor-
de uma ética universal” (1997, p. 155) e
mações ocorridas na sociedade a partir
planta as bases para a compreensão
de 1900, especialmente após as duas
dos direitos econômicos, sociais e cul-
guerras mundiais.
turais2 como direitos universais que de-
Para socorrer o homem empobre- vem ser assegurados a todos para “que
cido e minorar o sofrimento imposto a pessoa não seja compelida, como úl-
pelo crescimento desordenado do capi- timo recurso, à rebelião contra a tirania
talismo, o Estado liberal foi substituí- e a opressão”.3
do pelo Estado providência ou Estado
No caso brasileiro, em que pese à
social, que promove transformações
maciça presença de latifundiários na
necessárias para realizar justiça social,
Constituinte de 1932, foi na Constitui-
propiciando maior distribuição da ri-
ção de 1934 que, pela primeira vez, a
queza produzida.
propriedade no Brasil ficou condicio-
A primeira Constituição escrita a nada ao interesse social e coletivo (ver
considerar a função social da proprie- art. 113, inciso 17). Os termos de seu
dade foi a do México, elaborada em acolhimento foram ampliados e rede-
1917, após a revolução comandada por finidos na Constituição de 1946, que
Emiliano Zapata;; a Constituição mexi- instituiu a possibilidade de “justa dis-
cana atende aos interesses do campe- tribuição da propriedade, com igual
sinato e consagra o caráter coletivo da oportunidade para todos” (art. 147). Já
propriedade da terra. o princípio da função social da proprie-
A Constituição da Alemanha, conhe- dade foi originalmente incorporado à
cida como Carta Política de Weimar, legislação brasileira na Constituição de
publicada em 1919, recebeu forte influên- 1967, inspirado no Estatuto da Terra
cia da teoria de Duguit, constituindo (de 1964). Mas foi somente na Cons-
verdadeiro ponto inicial na consagra- tituição Cidadã de 1988 que a função
ção da propriedade como função so- social da propriedade alcançou os con-
cial, quer dizer, propriedade como bem tornos distintos que tem hoje.
que deve estar a serviço da coletivida- Antes da Constituição Federal de
de. É o que se infere do artigo 153 do 1988, o Estatuto da Terra, lei ordiná-
Código Civil Alemão, que diz “A pro- ria promulgada logo após o golpe mi-
priedade obriga”, e do artigo 155, no litar de abril de 1964, em resposta às

370
Função Social da Propriedade

reivindicações esposadas pelos lavra- cumpra sua função social, porque esta
dores sem-terra organizados nas Ligas foi elevada à categoria de direito fun-
Camponesas, teve o mérito de esmiu- damental. Complementando o regime
çar e estabelecer os requisitos e pres- jurídico da propriedade, a Constituição
supostos do conceito da função social Federal atribuiu um “conteúdo posi-
da propriedade. tivo à função social” (Tepedino, 2000,
Analisando a recente história da fun-
ção social da propriedade nas nossas
p. 125), no artigo 186 e incisos, dizen-
do que atender a função social significa,
F
cartas magnas, verificamos uma cres- simultaneamente, fazer um “aprovei-
cente evolução no conceito. Nunca, tamento racional e adequado”, utilizar
porém, como agora, a questão assumiu adequadamente os recursos naturais
tamanha relevância jurídica, posto que disponíveis e preservar o meio ambien-
o artigo 5º da Constituição Federal, nos te, observar “as disposições que regulam
incisos XXII e XXIII, estabelece, em as relações de trabalho” e exercer uma
passos sucessivos, a garantia do direito “exploração que favoreça o bem-estar
de propriedade e a indispensabilidade de dos proprietários e dos trabalhadores”.
que ela atenda a sua função social. Além A função social da propriedade,
disso, a Constituição de 1988, sobretudo que fique claro desde logo, conforme
no artigo 186 e seus incisos, estabeleceu lição de José Afonso da Silva, “não se
o conteúdo de função social. confunde com os sistemas de limitação
A propriedade privada dos meios da propriedade” (Silva, 1996, p. 273).
de produção, no nosso caso, a terra, As limitações dizem respeito ao exer-
é para o Estado um direito individual cício do direito;; por sua vez, a função
oponível a toda a coletividade, e o social diz respeito “à estrutura do di-
cumprimento da sua função social é, reito mesmo, à propriedade” (ibid.).
ao mesmo tempo, uma obrigação para Isso quer dizer que a função social é
o proprietário4 (por isso foi contem- uma obrigação intrínseca ao direito de
plada na ordem econômica), um direi- propriedade, e não mera barreira ao
to difuso da sociedade – porque a co- exercício do direito de propriedade.
letividade necessita de alimentos, que Outro ponto fundamental deste
seja preservado o meio ambiente e tema é em que medida e como deve
que sejam respeitadas as leis traba- ser interpretada a posse da terra. Está
lhistas –, e um direito coletivo dos mais do que evidente que todo uso da
trabalhadores rurais sem-terra (por- propriedade deve estar de acordo com
que possuem direito ao e interes- o conceito de função estabelecido no
se no assentamento em projetos de artigo 186 e incisos da Constituição
Reforma Agrária). Federal;; portanto, à propriedade ru-
O artigo 5º, inciso XII da Consti- ral que não cumpra os requisitos da
tuição de 1988 assegurou a proprieda- função social da propriedade não está
de, bem como o direito à vida, à liber- assegurada a proteção possessória pre-
dade, como direito fundamental do ser vista na legislação infraconstitucional,
humano. O inciso XIII do mesmo arti- principalmente aquela proteção previs-
go estabeleceu que a propriedade aten- ta no Código Civil.
derá a sua função social e, portanto, a A única garantia legal reservada
propriedade está assegurada desde que à propriedade rural que não cumpre

371
Dicionário da Educação do Campo

sua função social é a indenização em caso Agrária, o discurso jurídico e político


de desapropriação, ou seja, não pode o disseminado pelos meios de comunica-
Poder Judiciário prestar tutela jurisdi- ção de massa, incorporado por grande
cional de defesa da posse em relação parte dos funcionários públicos, sejam
a imóvel rural que não cumpre sua membros do Poder Judiciário ou do
função social, sob pena de estender a Executivo, é marcado pela ideologia
esse tipo de propriedade garantias di- da interpretação individualista da lei,
versas daquela única prevista na Cons- na qual uma vírgula, um advérbio, ou
tituição Federal: indenização em caso mesmo uma linha destoante entre um
de desapropriação. parágrafo e um inciso permite ao intér-
Diante do texto constitucional e prete manter o flagelo e a miserabili-
dos superiores interesses difusos da dade de grande parte da população em
coletividade e dos interesses coletivos benefício de meia dúzia de proprietá-
dos trabalhadores rurais sem-terra, é rios que utilizam as terras apenas para a
possível afirmar que a posse juridica- produção de grãos, açúcar e álcool para
mente protegida é aquela que cumpre a exportação.
com a função social. Cabe aos movimentos sociais a
Portanto, quando estamos diante de tarefa de forçar uma interpretação da
uma ocupação de terra promovida pelos Constituição Federal de acordo com os
movimentos sociais que buscam pres- interesses coletivos e gerais da socie-
sionar o Poder Público, tensionando dade, obrigando o Estado a planejar e
pela agilidade da Reforma Agrária, na a executar uma política agrícola capaz
ação de reintegração de posse, para de promover a produção de alimentos
que se consiga uma liminar, deve ser limpos de venenos, saudáveis e ecolo-
demonstrado e provado que aquela gicamente sustentáveis, usando o tra-
área de terra cumpre com a função so- balho humano de acordo com as regras
cial, ou seja, que produz de acordo com da Consolidação das Leis Trabalhistas
os índices estabelecidos pelo Instituto (CLT), dando à propriedade da terra
Nacional de Colonização e Reforma uma função maior, abandonando a no-
Agrária (Incra), que respeita a legisla- ção individualista, e, assim, auxiliar na
ção ambiental e as leis trabalhistas, e erradicação das desigualdades sociais, da
que está sendo utilizada para beneficiar pobreza, promovendo a solidariedade
os trabalhadores e todos os que vivem e construindo uma verdadeira socieda-
naquela região. de justa, na qual não haja tanta terra
Em que pese à clareza da Cons- abandonada e tantos homens e mulhe-
tituição Federal e da Lei de Reforma res sem terra.

Notas
1
O Centrão foi uma aglutinação de deputados constituintes que pretendiam não se identifi-
car com a esquerda nem com a direita. Na verdade, representava os interesses dos grandes
grupos econômicos e empresariais, de latifundiários e da grande mídia, e que, reunindo a
maioria dos deputados constituintes, conseguiu aprovar e incluir na Constituição Federal
muitos artigos contrários aos interesses dos trabalhadores.
2
Artigo XXV – 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a
sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos

372
Função Social da Propriedade

e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego, doença,


invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circuns-
tâncias fora de seu controle.
3
Ver o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
4
Conforme a redação do artigo 170 da Constituição Federal, a “ordem econômica, fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos exis-
tência digna, conforme os ditames da justiça social”. F
Para saber mais
ALVES, F. Direito agrário – política fundiária no Brasil. Belo Horizonte: Del
Rey, 1995.
BERCOVICI, G. Constituição econômica e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005.
COMPARATO, F. K. Direitos e deveres em matéria de propriedade. In: STROZAKE,
J. (org.). A questão agrária e a justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
p. 130-147.
ESCRIVÃO FILHO, A. S. Uma hermenêutica para o programa constitucional do trabalho
rural. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
GOMES, O. Direitos reais. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
GRAU, E. R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2005.
LARANJEIRA, R. Propedêutica do direito agrário. São Paulo: Edições LTr, 1975.
LYRA FILHO, R. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, [s.d.]. (Coleção Primeiros
Passos, 16).
MARÉS, C. F. A função social da terra. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2003.
PINTO JÚNIOR, J. M.; FARIAS, V. A. Função social da propriedade: dimensões ambiental
e trabalhista. Brasília: Nead, 2005.
PIOVESAN, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 2. ed. São Paulo:
Max Limonad, 1997.
SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
SODERO, F. P. Direito agrário e reforma agrária. São Paulo: Livraria Legislação Brasi-
leira, 1968.
STROZAKE, J. A questão agrária e a justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
_______ (org.). Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo:
Método, 2002.
TEPEDINO, G. O papel do Poder Judiciário na efetivação da função social da pro-
priedade. In: STROZAKE, J. (org.). Questões agrárias: julgados comentados e parece-
res. São Paulo: Método, 2002. p. 91-132.

373
Dicionário da Educação do Campo

FUNDOS PÚBLICOS
José Marcelino de Rezende Pinto

Este verbete apresenta os princi- trole social (Monlevade, 2007). Não


pais temas do financiamento da edu- obstante os avanços ocorridos nos
cação no Brasil, no contexto da políti- últimos anos, em especial a partir da
ca de fundos e seu impacto para uma Constituição de 1988, o sistema de fi-
educação do campo de qualidade. No nanciamento da educação ainda apre-
Brasil, desde a Constituição Federal senta alguns problemas estruturais.
de 1934, o financiamento da educação Em primeiro lugar, muito embora
baseia-se na destinação de um percen- as disparidades nos recursos disponí-
tual mínimo da receita de impostos veis por aluno entre os diferentes esta-
(vinculação) para a manutenção e de- dos tenham minorado com o Fundeb,
senvolvimento do ensino (Melchior, as diferenças ainda são grandes. Tendo
1987). Em sua forma atual, este prin-
por base os dados estimados para 2011,
cípio encontra-se prescrito no artigo
a razão entre o maior e o menor valor
212 da Constituição de 1988. A partir
por aluno do Fundeb (anos iniciais do
de então, foram introduzidos meca-
ensino fundamental urbano) é de quase
nismos de subvinculação por meio de
duas vezes. Isso significa que um aluno
fundos (inicialmente, o Fundo de Ma-
do Maranhão recebe, do Fundeb, qua-
nutenção de Desenvolvimento do En-
se a metade do que o fundo disponi-
sino Fundamental e de Valorização do
Magistério – Fundef, o qual foi subs- biliza para um estudante de Roraima,
tituído, a partir de 2007, pelo Fundo por exemplo.
de Manutenção e Desenvolvimento da Em segundo lugar, o menor valor a
Educação Básica e de Valorização ser disponibilizado por aluno nos anos
dos Profissionais da Educação – iniciais do ensino fundamental urbano
Fundeb). Em cada estado e no Distrito será de cerca de R$ 144,00/mês (2011)
Federal, parte dos recursos já vincula- e de R$ 166,00/mês nas escolas rurais,
dos ao ensino dos estados e municí- quantia claramente insuficiente para
pios é carreada ao Fundeb e automa- garantir um padrão mínimo de qualida-
ticamente redistribuída na proporção de de ensino. Basta dizer que a mensa-
das matrículas das respectivas redes. lidade de uma escola privada frequen-
A União, a partir de 2010, contribui tada por crianças da classe média é de,
com um complemento corresponden- no mínimo, três vezes esse valor. Esse é
te a 10% dos recursos dos estados e o valor/aluno estimado para os estados
municípios ao Fundeb. Essa comple- de Alagoas, Amazônia, Bahia, Ceará,
mentação é destinada aos estados com Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco,
menores recursos disponíveis por alu- Piauí e Rio Grande do Norte. O princi-
no. Com o Fundeb, houve também pal efeito do subfinanciamento são os
um aperfeiçoamento dos mecanismos baixos salários dos professores. Estu-
de controle social dos recursos via do feito por Alves e Pinto (2011), com
conselhos de acompanhamento e con- base nos dados da Pesquisa Nacional

374
Fundos Públicos

por Amostra de Domicílio do Instituto de expansão da carga fiscal, ocorreu


Brasileiro de Geografia e Estatística principalmente porque a expansão
(Pnad/IBGE) (Instituto Brasileiro de da receita tributária se deu por meio da
Geografia e Estatística, 2009), mostra criação e majoração das contribuições
que os professores com formação de sociais e econômicas, sobre as quais,
nível superior e que atuam no ensino ao contrário dos impostos, não inci-
médio recebem uma remuneração que
é próxima daquela obtida pelos cabos e
de a vinculação para o ensino (Pinto,
2000). Além disso, houve o efeito da
F
soldados da polícia militar, caixas de desvinculação das receitas da União
banco e técnicos em contabilidade, (DRU), que reduzia a base da recei-
cerca de 40% menos do que rece- ta em relação a qual se afere o cum-
bem engenheiros, advogados e eco- primento da vinculação, por parte do
nomistas, o que reduz a atratividade governo federal. Felizmente, com a
da carreira. aprovação da emenda constitucional
Neste sentido, o país ainda está n o 59/2009, a partir de 2011, a DRU
longe de ver cumprido o estatuído na deixa de produzir efeito no que se re-
Constituição (ver o parágrafo 1º do ar- fere aos recursos para a educação.
tigo 211), que estabelece como papel Essa mesma emenda ampliou a es-
da União garantir equalização de opor- colaridade obrigatória para a faixa de 4
tunidades educacionais e padrão míni- a 17 anos, a partir de 2016. Esse fato,
mo de qualidade de ensino mediante embora positivo, ressalta, mais uma
assistência técnica e financeira.1 Outra vez, o desequilíbrio do pacto federa-
questão na qual ainda há muito no que tivo na oferta educacional no país,
se avançar refere-se à fiscalização dos uma vez que o fim da DRU deverá
gastos com educação pelos Tribunais ampliar os recursos educacionais do
de Contas. Como apontam os estudos governo federal, enquanto a respon-
minuciosos feitos por Davies (2000), sabilidade imediata de atendimento na
ainda são inúmeros os mecanismos de faixa de 4 a 17 anos cabe aos estados
burla à vinculação feitos pelos entes e municípios. Hoje, embora o gover-
federados.2 Mesmo considerando-se no federal fique com cerca de 60% da
as mudanças ocorridas na legislação carga tributária líquida (já consideran-
referente ao financiamento e a grande do as transferências constitucionais),
expansão da receita tributária em re- sua participação nos gastos públicos
lação ao produto interno bruto (PIB) com educação (em todos os níveis) é
ocorrida nos últimos anos, análise fei- inferior a 20%. Nesse sentido, a gran-
ta por Castro (2007) para o período de expectativa para os próximos anos
1995-2005 indica que os gastos com é a ampliação dos gastos públicos
educação no período, embora tenham com educação. A I Conferência Na-
crescido em valores reais, mantiveram cional de Educação (Conae), realizada
sua participação em relação ao PIB es- no início de 2010, em seu documento
tabilizada no patamar de 4%. final, fixou como diretriz para o novo
Deste total, a educação superior Plano Nacional de Educação (PNE)
fica com cerca de 25%, e a educação uma expansão de forma a atingir 7%
básica, com 75%. Essa relativa esta- do PIB em 2011 e 10% do PIB em
bilidade nos gastos, em um contexto 2014, cabendo à União a maior contri-

375
Dicionário da Educação do Campo

buição neste crescimento. Contudo, o Não houve a preocupação em se


projeto de lei nº 8.035/2010, do Plano verificar se os valores assim disponibi-
Nacional de Educação 2011-2020, en- lizados garantiam um padrão mínimo
viado pelo Executivo ao Congresso, de qualidade para o ensino oferecido.
em desrespeito a essa diretriz, men- Neste sentido, produziu-se um rico de-
ciona apenas a meta de 7% do PIB a bate sobre a relação entre o padrão de
ser atingida somente em 2020. Além financiamento e a qualidade do ensino
disso, e contrariamente às decisões da que perdura até hoje.3 Um passo im-
Conae, o projeto do Executivo amplia portante ocorreu com a alteração dada
os mecanismos de transferências de ao parágrafo 1o do artigo 211 da Cons-
recursos públicos para as instituições tituição pela emenda constitucional
privadas de ensino. no 14/96, a mesma que criou o Fundef.
Segundo a nova redação, cabe à União,
em matéria educacional, exercer “fun-
Custo aluno–qualidade ção redistributiva e supletiva, de forma
Outro conceito fundamental para a a garantir equalização de oportunidades
garantia do financiamento de uma edu- educacionais e padrão mínimo de qualidade
cação de qualidade aprovado pela de ensino mediante assistência técnica e
Conae foi o do custo aluno–qualidade financeira aos Estados, ao Distrito Fede-
(CAQ). A falta de qualidade é um ral e aos Municípios” (grifos nossos).
problema que atinge a escola brasilei- Define-se, assim, o princípio do custo
aluno-qualidade e a quem cabe garanti-
ra desde as suas origens. Em trabalho
lo: à União, em colaboração com os
pioneiro feito originalmente em 1889,
estados e municípios. Porém, como
Almeida (1989) já relatava as mazelas
chegar ao valor do CAQ? A Lei de Di-
da educação pública brasileira, atri-
retrizes e Bases (LDB), em seu artigo
buindo-as ao subfinanciamento e aos
4º, inciso IX, oferece um caminho ao
baixos salários dos professores. Du-
definir “padrões mínimos de qualidade
rante o século XX, o país apresentou
de ensino” como “a variedade e quan-
um impressionante crescimento do
tidade mínimas, por aluno, de insumos
atendimento escolar nas diferentes fai- indispensáveis ao desenvolvimento
xas etárias. Contudo, essa expansão foi do processo de ensino-aprendizagem”.
feita sem qualquer preocupação com a Portanto, o caminho apontado pela le-
garantia da qualidade. É nesse contexto gislação é o de que a qualidade de ensi-
que surge a demanda pelo direito a uma no está associada aos insumos.
escola pública de qualidade para todos.
Desde 1988, a Constituição Federal já Embora essa correlação entre insu-
estabelece, em seu artigo 206, como mos e qualidade pareça natural, há um
principio, a “garantia de padrão de grupo de pesquisadores, em especial
qualidade”. A Constituição, contudo, nos Estados Unidos, que a contesta.4
avançou pouco na forma de viabilizar Um segundo passo importante para
esta norma, uma vez que o princípio se atingir o CAQ foi dado com a apro-
que regula o financiamento da educa- vação do Plano Nacional de Educação
ção é o dos recursos disponíveis por 2001-2010, em 2001 (lei nº 10.172). Essa
aluno, tendo por base os percentuais lei, que fixou diretrizes e metas para a
mínimos vinculados. educação nacional na primeira década

376
Fundos Públicos

deste século, arrolou um conjunto ex- lidade social. Não se visa a uma escola
tremamente detalhado de insumos e de de qualidade para uma pequena elite de
condições de funcionamento que deve- crianças e jovens, mas para o conjunto
riam ser assegurados em todas as esco- da população brasileira. Parte-se tam-
las do país em suas diferentes etapas e bém do pressuposto de que a qualidade
modalidades. Mais do que isso, o plano é um conceito em disputa, e que o pró-
fixou também os meios para se atingir
essas metas, ao determinar a ampliação
prio processo de debatê-la já é um de
seus componentes. Buscou-se, então,
F
dos gastos públicos com educação de a construção de escolas típicas (cre-
forma a atingir 7% do PIB. Contudo, che, pré-escola, anos iniciais do ensi-
essa determinação, fundamental para no fundamental, anos finais do ensino
viabilizar o PNE, foi vetada pelo então fundamental, ensino médio, anos ini-
presidente Fernando Henrique Cardoso. ciais e finais do ensino fundamental na
Foi nesse contexto que a Campanha educação do campo), estabelecendo-se
Nacional pelo Direito à Educação, em padrões de construção, equipamen-
2002, iniciou um movimento de mobili- tos, número de profissionais, padrões
zação social para a construção do CAQ. de remuneração, e número de alunos
A ideia central norteadora do processo por turma. Todos esses insumos foram
foi: qual deve ser o recurso gasto por precificados em valores de 2005, e as
aluno para se ter um ensino de qualida- tabelas podem ser obtidas no sítio da
de? Já a metodologia para a construção entidade.5 Na proposta foram ainda
do CAQ envolveu ampla participação. previstos recursos para que as escolas
Nesse sentido, foram organizadas ofi- possam desenvolver projetos especiais,
cinas de trabalho que contaram com a assim como recursos para a formação
presença de profissionais da educação, profissional (de toda a equipe) e para
de especialistas, de pais e alunos e de a administração central dos sistemas
gestores educacionais. de ensino. A proposta da Campanha
Nacional pelo Direito à Educação en-
Nessas oficinas, em coerência com
tende ainda que, no que se refere a mo-
a legislação, buscava-se definir os insu-
dalidades específicas, como educação
mos que deveriam compor uma esco-
de jovens e adultos, educação especial,
la com padrões básicos de qualidade.
educação indígena, educação quilom-
Neste sentido, firmou-se o consenso
bola, educação profissional e mesmo
de que o que se discutiria seria um pon-
educação do campo (para a qual foi fei-
to de partida, um padrão mínimo de ta uma proposta de CAQi), seriam ne-
qualidade que deveria ser assegurado cessários estudos específicos para uma
a todas as escolas do país, até por- melhor definição do respectivo CAQi.
que os critérios de qualidade evoluem A proposta sugere ainda a criação
com o tempo. Daí surgiu o conceito de adicionais do CAQi como forma de
de custo aluno-qualidade inicial (CAQi), destinar mais recursos para as escolas
entendido como um primeiro passo que atendam crianças em condições
rumo à educação pública de qualida- de maior vulnerabilidade social. Final-
de no Brasil (Carreira e Pinto, 2007). mente, em 5 de maio de 2010, a Câ-
Portanto, o conceito de qualidade que mara de Educação Básica do Conselho
norteou a proposta referenciou-se em Nacional de Educação aprovou a reso-
uma perspectiva democrática e de qua- lução nº 8/2010, que definiu o CAQi

377
Dicionário da Educação do Campo

como referência para a construção da escolas pequenas dão “prejuízo”, pois


matriz de padrões mínimos de qualida- não possuem uma escala mínima de
de para a educação básica pública no custos. Assim, a título de exemplo,
Brasil. Os valores fixados, tendo por uma escola dos anos iniciais do ensino
base os percentuais do PIB per capita, fundamental do campo que tivesse 50
são os seguintes: 39% para as creches, alunos teria, em média, 10 alunos por
15,1% para as pré-escolas, 14,4% para turma;; considerando o valor-aluno mí-
o ensino fundamental urbano de 1ª a nimo do Fundeb (2011) que é recebido
4ª séries (23,8% para o campo), 14,1% por quase todos os estados e muni-
para o ensino fundamental urbano de cípios da região Nordeste, o recurso dis-
5ª a 9ª séries (18,2% para o campo), ponível por turma seria insuficiente até
e 14,5% para o ensino médio. A pro- mesmo para garantir o piso nacional
posta de deliberação associada a esta salarial para o docente. Já em qualquer
resolução, contudo, ainda não foi ho- escola urbana, a razão alunos/turma
mologada pelo ministro da Educação, seria, no mínimo, o dobro deste valor.
um ano após a sua aprovação. A saída para reduzir custos adota-
da pelas administrações são as turmas
Educação do campo multisseriadas. Além disso, há um forte
e seu financiamento estímulo para o fechamento de escolas
rurais. De 1977 a 2009, foram fecha-
Se, como apontado anteriormente, das 65 mil escolas rurais somente no
as escolas públicas urbanas, de uma ensino fundamental, uma redução de
maneira geral, não recebem recursos 46%. Em seu lugar, incrementa-se o
que assegurem um padrão mínimo de transporte escolar para levar os estu-
qualidade de ensino, no campo, a si- dantes do campo para escolas urbanas
tuação é dramática. Isso ocorre por (2/3 dos alunos que moram na zona
uma conjunção negativa de fatores. rural são transportados para escolas
Em primeiro lugar, porque a maioria urbanas), nas quais vivenciam forte
dessas escolas encontra-se nas regiões preconceito e se intensifica o fracasso
mais pobres do país (58% no Nordeste escolar (Brancaleoni, 2002). O trans-
e 18% na região Norte, em 2009, nas porte escolar, por sua vez, é financia-
quais os valores por aluno propiciados do pelo Programa Nacional de Apoio
pelo Fundeb são menores). Em segun- ao Transporte do Escolar (Pnate), mas
do lugar, porque elas se encontram seus recursos são claramente insufi-
majoritariamente (85% em 2009) sob cientes. Levantamento feito pelo Ins-
administração municipal, nível de go- tituto Nacional de Estudos e Pesqui-
verno que fica com a menor parte dos sas Educacionais (Inep) nos municí-
recursos tributários, como já observa- pios (considerando nove meses) indi-
do. E, finalmente, porque as escolas do cou um custo médio real de R$ 642,00/
campo, em sua quase totalidade, pos- ano por aluno, em 2004, enquanto o
suem poucos alunos – em 2006, 43% valor anual previsto no Pnate por alu-
das escolas rurais de ensino fundamen- no para 2011 varia entre R$ 121,00 e
tal tinham apenas uma sala de aula, se- R$ 172,00. Além disso, como, em geral,
gundo o censo do MEC (Brasil, 2006) – o transporte é terceirizado (67% do to-
e, pela lógica da política de fundos, tal, segundo o mesmo estudo do Inep)

378
Fundos Públicos

e os contratos envolvem valores signi- lidade passa por achar o equilíbrio en-
ficativos (são milhares de quilômetros tre um número de alunos mínimo que
por dia no conjunto das linhas), abre- garanta uma escala de funcionamento
se também um campo propício para a adequada e que, ao mesmo tempo, não
corrupção com fins eleitorais. implique, para os alunos, longas jorna-
Com o objetivo de reverter esse das para chegar até a escola. No caso
processo de fechamento das escolas da
zona rural, boa parte delas, na verda-
dos assentamentos de Reforma Agrá-
ria, a situação é de mais fácil solução,
F
de, sem condições mínimas de funcio- pois há um contingente relativamente
namento (Pereira, 2007), e compensar concentrado de famílias. A questão se
o seu maior custo, existe um diferen- torna bem mais complexa para as re-
cial no valor contabilizado por aluno giões tomadas pelo latifúndio (e que
no Fundeb. Hoje, esse adicional é de são majoritárias), pois, nesses casos,
20%, um avanço em relação aos 2% do o número de famílias é muito peque-
Fundef, mas muito aquém ainda da di- no para uma grande extensão de área.
ferença real de custos. Estimativas fei- Assim, a luta por uma educação do
tas para a realização do CAQi apontam campo de qualidade passa necessaria-
para um adicional de, no mínimo, 65% mente pela luta por Reforma Agrária
nos recursos para as escolas do cam- e se dá concomitantemente a esta. De
po. Recentemente, graças em especial qualquer forma, nas regiões nas quais
à ação dos movimentos sociais de luta a densidade populacional é baixa, é
pela reforma agrária, observam-se al- fundamental o desenvolvimento de
gumas experiências de escolas do cam- projetos pedagógicos de escolas de
po que conseguem oferecer condições qualidade, que, necessariamente, terão
para um ensino de qualidade. de ter poucos alunos.
A rede federal de ensino de escolas Considera do a obrigatoriedade cons-
técnicas e profissionais também oferece titucional do ensino dos 4 aos 7 anos,
um padrão de excelência para a área, com pode-se pensar em projetos de escola
gastos por aluno cerca de quatro vezes do campo que englobem da pré-escola
superiores ao valor mínimo do Fundeb. ao ensino médio, com uso criativo do
Tendo por base as estimativas do CAQi, espaço e do corpo docente e funcio-
o valor para garantir um padrão inicial de nal, e que assegurem qualidade e um
qualidade seria de R$ 4.500,00 por alu- custo-aluno compatível com as metas
no/ano (escola projetada de 70 alunos) de gasto em relação ao PIB, fixadas ini-
para os anos iniciais do ensino funda- cialmente pela Conferência Nacional
mental, e de R$ 3.500,00 por aluno/ano de Educação, e readequadas por um
(escola projetada de 100 alunos) para os conjunto amplo de entidades da socie-
anos finais, em valores de 2010. dade civil para o novo Plano Nacional
O grande desafio para o financia- de Educação, em 7% do PIB até 2015,
mento de uma escola do campo de qua- e em 10% até 2020.6

Notas
1
Sobre a timidez das políticas equalizadoras da União, recomendam-se os estudos de Araújo,
2007;; Cruz, 2009;; e Martins, 2009.

379
Dicionário da Educação do Campo

2
No caso da União, recomenda-se o trabalho de Ximenes, 2009.
3
Ver, entre outros, Pinto, 1991;; Mello, 1991;; Mello e Costa, 1993;; Monlevade, 1997;;
Farenzena, 2005;; Verhine e Magalhães, 2006;; e Gouveia et al., 2006.
4
Sobre a discussão insumos versus qualidade, recomenda-se a leitura de Brooke e Soares,
2008.
5
Ver http://www.campanhaeducacao.org.br.
6
Ver http://www.campanha.org.br, http://www.cedes.org.br e http://www.anped.org.br.

Para saber mais


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381
G
GESTÃO EDUCACIONAL
Lisete R. G. Arelaro

A expressão “gestão educacional” ticamente aplicáveis à administração/


começou a ser utilizada na educação gestão de qualquer instituição, inde- G
por volta dos anos 1980, em substitui- pendentemente de sua natureza, seus
ção à expressão “administração edu- objetivos e de sua constituição social,
cacional”, tradicionalmente utilizada cultural ou educacional.
desde os anos 1930. Neste texto, uti- Em 1961, quando da realização do
lizaremos como sinônimas as duas ex- I Simpósio Brasileiro de Administra-
pressões. Elas englobam tanto a com- ção Escolar, na Universidade de São
plexidade da gestão de uma unidade Paulo (USP), ocasião em que foi criada
escolar quanto o conjunto das políticas a Associação Nacional de Professores
(públicas ou privadas) em educação, ou de Administração Escolar (Anpae),
seja, discutem a concepção de gestão foi aprovado – com voto contrário de
educacional do ponto de vista histó- Anísio Teixeira – um documento em
rico, as responsabilidades das esferas que se afirmava:
públicas com relação ao direito social
à educação no Brasil, o regime de co- A administração escolar supõe
laboração que deve predominar entre uma filosofia e uma política di-
municípios, estados e governo federal, retoras preestabelecidas;; con-
e o processo de descentralização para a siste no complexo de processos
sua efetivação. criadores de condições adequa-
A palavra gestão significa o ato ou das às atividades dos grupos que
efeito de gerir, de administrar, de di- operam na escola em divisão de
rigir. Ela foi introduzida com esse trabalho;; visa à unidade e eco-
sentido na área educacional a partir nomia de ação, bem como ao
da teoria geral de administração, que progresso do empreendimento.
tinha na organização empresarial a sua O complexo de processos en-
referência e, em Frederick W. Taylor globa atividades específicas –
(com sua obra Princípios de administra- planejamento, organização, as-
ção científica) e Henri Fayol (com a obra sistência à execução (gerência),
Administração industrial e geral ), seus avaliação de resultados (medi-
autores principais. das), prestação de contas (rela-
Historicamente, a adoção generali- tório) – e se aplica a todos os
zada de princípios da organização em- setores da empresa – pessoal,
presarial nos estudos e nas práticas de material, serviços e financia-
administração dos sistemas educacio- mento. (Associação Nacional de
nais e das escolas partiu do pressupos- Professores de Administração
to de que tais princípios eram automa- Escolar, 1962, p. 5)

383
Dicionário da Educação do Campo

Querino Ribeiro, um dos pioneiros entrada de dados: o que eu quero atingir;;


desses estudos no Brasil, considerava qual meu objetivo), dependeria exclusi-
que a administração escolar – e educa- vamente da boa escolha dos “métodos,
cional –, embora apresentasse alguns processos ou conteúdos” a obtenção do
detalhes específicos, correspondia a output desejado, ou seja, do produto es-
uma das aplicações da administração perado. Essa abordagem sistêmica exigia
geral, pois seus aspectos, meios, tipos, que cada professor traduzisse seus obje-
processos e objetivos eram semelhan- tivos educacionais em “metas”, as quais
tes. Para o autor, a administração es- seriam atingidas com boas “estratégias”
colar deveria atender, primeiramente, a de ensino, que pressupunham conteú-
uma filosofia e a uma política de educa- dos previamente definidos e testados
ção. No entanto, a gestão educacional com relação à sua eficiência. Caso hou-
envolveria um complexo de processos vesse recusa ou resistência por parte de
cientificamente determinados que se professores, “táticas” de aprendizagem
desenvolveria antes, durante e depois motivacional deveriam ser empregadas,
das atividades escolares, visando ga- assumindo o diretor/dirigente papel
rantir-lhes unidade e economia. Estes de liderança do processo para garantir
processos seriam: 1) planejamento das a eficácia do processo educacional. Só
ações: a partir do exame cuidadoso da assim, a educação conseguiria realizar
realidade social, para determinar as ne- seus objetivos.
cessidades e possibilidades do proces-
so de escolarização;; 2) organização das No entanto, alguns trabalhos teóri-
ações: análise prévia das atividades que a cos produzidos já no final da década de
escola pode e deve realizar visando 1970 e nos anos 1980 foram marcados
atingir seus objetivos;; 3) acompanha- pela crítica à utilização da empresa capi-
mento das ações: baseado num sistema talista como fundamento da prática ad-
de relações humanas que favoreça a ministrativa escolar e educacional. Essas
responsabilidade e a colaboração, a fim críticas atingiam não somente as produ-
de manter a unidade indispensável ao ções de Taylor e Fayol, mas também a
processo de escolarização e a economia teoria do capital humano, de Theodore
de rendimento;; e 4) controle dos resul- Schultz, que considerava a educação um
tados: com o objetivo de identificar e investimento que gerava maior produ-
possibilitar a correção das deficiências tividade e, em consequência, melhores
na execução das ações. condições de vida para os trabalhado-
res e para a sociedade em geral. Para
Logo após essa introdução na área
educacional, uma nova teoria, a teo- este autor, os conhecimentos obtidos
ria de sistemas, elaborada por Ludwig no processo de escolarização formal
von Bertalanffy, divulgada e implantada representariam o “capital humano” de
durante a ditadura militar (1964-1985), que cada trabalhador, de forma diferen-
propunha como critério de eficiência ciada, se apropriaria. Era desta maneira,
da gestão educacional a elaboração de ou seja, investindo neste “capital”, que
planejamentos escolares com objetivos o desenvolvimento pessoal se dava ele
claros, que pudessem ser traduzidos em explicaria uma espécie de “distinção” de
metas quantificáveis e ter seus resultados produtividade de cada trabalhador.
avaliados por meio de medidas educa- Saviani (2008) justifica ser esta a ra-
cionais. Assim, dado um input (insumo/ zão pela qual o período ficou conheci-

384
Gestão Educacional

do como “tecnicista”, pois, baseado na incompatíveis com seu equacio-


neutralidade e inspirado nos princípios namento e solução, e outras ra-
de racionalidade, eficiência e produtivi- zões que podem facilmente ser
dade, reordenava o processo educativo superadas a partir de uma ação
e a gestão educacional, de modo a tor- administrativa mais apropriada.
ná-los objetivos e operacionais, porque (Paro, 2006, p. 125)
mensuráveis. Uma das consequências
previsíveis era a tentativa de padroni- Ou seja, ao se aceitar a ordem ca-
zação da ação educativa, com base em pitalista como o tipo mais avançado de
modelos de planejamento previamente sociedade, as diferenças econômicas, G
formulados por órgãos centrais exte- políticas e sociais aí existentes são vis-
riores às instituições escolares e educa- tas não como consequência necessária
cionais. Segundo Saviani: da própria maneira injusta e desigual
pela qual essa sociedade é organizada,
[...] na pedagogia tecnicista, o mas como meras “disfunções” que,
elemento principal passa a ser a como tais, podem ser adequadamente
organização racional dos meios, resolvidas e superadas a partir da apli-
ocupando o professor e o aluno cação das regras jurídico-legais a tal or-
posição secundária, relegados ganização social.
que são à condição de execu-
A gestão educacional, no Brasil,
tores de um processo cuja con-
com a promulgação da Constituição
cepção, planejamento, coorde-
Federal de 1988 e da emenda constitu-
nação e controle ficam a cargo
cional nº 59/2009, visando garantir o
de especialistas supostamente
direito social à educação, ficou distri-
habilitados, neutros, objetivos
buída, como responsabilidade das esfe-
e imparciais. (Saviani, 2008,
ras públicas, da seguinte forma:
p. 382)

Para Vitor Paro, um dos autores Art. 211. A União, os estados,


críticos da concepção de gestão em- o Distrito Federal e os muni-
presarial na escola, é importante con- cípios organizarão em regime
siderar que: de colaboração seus sistemas
de ensino.
No contexto dessa concepção § 1º A União organizará o
dominante, é comum atribuir- sistema federal de ensino e
se a todo e qualquer problema o dos territórios, financia-
uma dimensão estritamente ad- rá as instituições de ensino
ministrativa, desvinculando-o públicas federais e exerce-
do todo social no qual têm lugar rá, em matéria educacional,
suas causas profundas, e enxer- função redistributiva e su-
gando-o apenas como resultan- pletiva, de forma a garantir
te de fatores como a inadequada equalização de oportunida-
utilização dos recursos dispo- des educacionais e padrão
níveis, a incompetência das pes- mínimo de qualidade do
soas e grupos diretamente en- ensino mediante assistên-
volvidos, a tomada de decisões cia técnica e financeira aos

385
Dicionário da Educação do Campo

estados, ao Distrito Federal grande desproporção de população e


e aos municípios. de área geográfica, sendo que cerca de
§ 2º Os municípios atuarão 70% deles têm até 20 mil habitantes e,
prioritariamente no ensino em 250 deles, vive cerca de 75% da po-
fundamental e na educação pulação brasileira (Instituto Brasileiro
infantil. de Geografia e Estatística, 2010).
§ 3º Os estados e o Distrito Além disso, os recursos disponí-
Federal atuarão prioritaria- veis em cada uma das esferas públicas
mente no ensino fundamen- também é condição para a efetivação
tal e médio. do direito à educação, pois um indica-
§ 4º Na organização de seus dor da autonomia financeira municipal
sistemas de ensino, a União, ou estadual é o percentual de recursos
os estados, o Distrito Fede- próprios recolhidos por estas esferas
ral e os municípios definirão públicas. Se elas dependem dos recur-
formas de colaboração, de modo sos oriundos do Fundo de Participação
a assegurar a universaliza- dos Municípios (FPM) ou dos Fundos
ção do ensino obrigatório. de Participação dos Estados (FPEs),
(Brasil, 2006, grifos nossos) tem-se a indicação de que se trata de um
município ou estado pobre. Estima-se
O pressuposto, portanto, é que haja que, em 2010, cerca de 75% dos mu-
colaboração entre as esferas públicas, nicípios dependiam do FPM, ou seja,
com a distribuição de responsabilida- a maioria dos municípios do Brasil e,
des compatíveis com as condições fi- em particular, os dos estados da região
nanceiras e populacionais de cada uma Nordeste, são pobres, necessitando de
das esferas públicas. A Lei de Diretri- aportes financeiros do governo federal,
zes e Bases da Educação Nacional (lei uma vez que seus estados também são
federal nº 9.394/1996) estabelece que: considerados pobres em relação aos
estados das regiões Sul e Sudeste.
Art. 10. Os estados incumbir- Estas condições objetivas da so-
se-ão de: ciedade brasileira exigem que se ar-
[...] ticule a gestão educacional visando
II - definir, com os municípios, à construção de um sistema nacional de
formas de colaboração na oferta educação, reivindicado desde o processo
do ensino fundamental, as quais constituinte, que viabilizaria uma ação
devem assegurar a distribuição cooperada entre as esferas públicas,
proporcional das responsabili- “tendo em vista o equilíbrio do desen-
dades, de acordo com a população a volvimento e do bem-estar em âmbito
ser atendida e os recursos financeiros nacional” (Brasil, 2006). O sistema na-
disponíveis em cada uma dessas esfe- cional de educação garantiria diretrizes
ras do Poder Público. (Brasil, 2006, educacionais comuns, estabelecidas a
grifos nossos) partir de um Plano Nacional de Educa-
ção (PNE), pactuadas entre as esferas
Essa exigência se faz necessária, públicas e a sociedade civil, à luz dos
pois a maioria dos municípios bra- princípios da Constituição Federal de
sileiros – de um total de 5.565 – tem 1988, no seu artigo 206.

386
Gestão Educacional

No Brasil, pelo fato de as esferas 62,05% estavam sob responsabilidade


públicas terem responsabilidades co- dos municípios, mesmo sendo estes o
muns na área educacional, bem como ente público com menores recursos
autonomia política, administrativa e financeiros (Brasil, 1996b, 2000, 2007
financeira, as divergências político- e 2009). É importante observar, tam-
partidárias e a inexistência de um pro- bém, outro fenômeno da gestão edu-
jeto nacional pactuado de nação e de cacional no Brasil, que é o da excessiva
desenvolvimento leva a que os entes urbanização das escolas e do ensino.
públicos ajam de forma desarticulada, Dos mais de 30 milhões de alunos do
fragmentada e com submissão às po- ensino fundamental, somente cerca de G
líticas federais, sempre que isto sig- 8% são alunos de escolas que não estão
nificar a obtenção de mais recursos localizadas em áreas urbanas, ou seja,
financeiros para o âmbito municipal são alunos que moram no campo. Os
e/ou estadual. dados (Brasil, 2009) também mostram
A Constituição propôs uma signi- que esta é uma política social que vem
ficativa descentralização das políticas sendo atendida pelo Estado brasileiro
básicas e, dentre elas, a da gestão edu- com relativo sucesso, pois, na educação
cacional para os municípios, não con- básica (educação infantil + ensino fun-
siderando, necessariamente, as condi- damental + ensino médio), nas respec-
ções objetivas – materiais, financeiras, tivas modalidades (educação de jovens
de pessoal – dessa descentralização, e adultos, educação especial, educação
gerando consequências na qualidade do campo, educação dos quilombolas
de ensino, com a deterioração das con- etc.), dos mais de 50 milhões de alunos
dições materiais das escolas, do ensino matriculados, 87% frequentam alguma
e do trabalho dos professores. A cria- escola pública estatal.
ção do Fundo de Manutenção e Desen- No entanto, uma das questões mais
volvimento do Ensino Fundamental e polêmicas da gestão educacional diz
Valorização do Magistério (Fundef), em respeito à exigência constitucional de
1996, introduzindo a política de fundos ela ser democrática e, portanto, de en-
no financiamento da educação, foi um volver, como condição do exercício da
grande estímulo para esta descentrali- democracia, a participação das comu-
zação de responsabilidades em relação nidades escolar e local, e da sociedade
à oferta do ensino fundamental dos civil organizada, nas decisões relativas
estados para os municípios. Os municí- às políticas e projetos educacionais,
pios tinham a ilusão de que, assumindo num regime de corresponsabilidade.
mais responsabilidades, contariam com Ela prevê, também, a participação dos
maior percentual de recursos financei- profissionais da educação nos projetos
ros. Não foi isso o que ocorreu, e as político-pedagógicos das instituições
regiões mais pobres do país acabaram de ensino.
assumindo mais responsabilidades nes- Para o professor Paulo Freire,
ta etapa obrigatória de ensino. adepto da democracia participativa, “a
Assim, em 2009, do total de organização democrática necessita ser
27.927.139 alunos matriculados no falada, vivida e afirmada na ação, tal
ensino fundamental, nas redes públi- como a democracia em geral” (1996,
cas (federal, estadual ou municipal), p. 102). Diz ele:

387
Dicionário da Educação do Campo

A educação para e pela cidada- educação da cidadania e para


nia democrática não é algo que ela. (1997, p. 119)
possa ser restringido à escola e
aos atores escolares. [...] Trata-se É preciso admitir que não pode
de uma invenção social que exi- haver gestão educacional democrática
ge um saber político, gestando- se não se enfrentar a necessidade de
se na prática de por ela lutar, a mudanças imediatas no aparelho polí-
que se junta a prática de sobre tico administrativo-burocrático, trans-
ela refletir. (1996, p. 146) formando-o por meio de estruturas
[...] é uma construção que, ja- mais democráticas e participativas que
mais terminada, demanda briga permitam ações e decisões mais autô-
por ela. Demanda engajamen- nomas por parte das comunidades.
to, clareza política, coerência, Mais uma vez, é Paulo Freire quem
decisão. Por isso mesmo é que nos ensina que “Ninguém é autônomo
uma educação democrática não primeiro, para depois decidir. É decidindo
se pode realizar à parte de uma que se aprende a decidir” (1996, p. 64).

Para saber mais


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388
Gestão Educacional

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


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TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica. 7. ed. São Paulo: Atlas, 1981.

389
H
HEGEMONIA
Marcela Pronko
Virgínia Fontes

Originalmente uma categoria de O termo se converterá em concei-


uso militar, o conceito de hegemonia to, com teor mais político do que mi-
integra a tradição marxista e foi sis-
tematizado por Antonio Gramsci em
litar, no interior da tradição marxista.
Embora empregado com sentidos algo H
duas direções simultâneas: para expli- distintos, constituiu uma herança co-
car as formas específicas da produção mum aos revolucionários russos, refe-
e organização do convencimento em rindo-se explicitamente ao papel hege-
sociedades capitalistas e para pensar as mônico do proletariado na necessária
condições das lutas das classes subal- aliança de classes com o campesinato.
ternas. O conceito apreende a dinâmi- Lenin consolidou o conceito incorpo-
ca das lutas de classes sob a dominação rando a ela uma dupla dimensão: a im-
burguesa, explicando a produção da portância da consciência proletária de
conformidade social por meio da or- que a hegemonia envolve a direção da
ganização e atuação da sociedade civil, luta revolucionária e a exigência de in-
voltada para o convencimento, ao lado tegrar a luta de todos os trabalhadores
da persistência das formas coerciti- e do povo explorado. Já então denun-
vas do Estado burguês. Apresentare- ciava a limitação dos corporativismos
mos um brevíssimo histórico dos usos (expressando apenas interesses imedia-
da categoria hegemonia, a fim de nos tos), atribuindo à hegemonia a direção
dedicarmos à cuidadosa formulação política capaz de integrar o conjunto
conceitual de Gramsci. Para tanto, é dos explorados (Anderson, 1986, p. 18;;
indispensável o conceito gramsciano Buci-Glucksmann, 1999, p. 532-538).
de Estado ampliado (sociedade civil + Antonio Gramsci (1891-1937), jor-
sociedade política) de maneira a dar con- nalista e pensador marxista italiano,
ta dos permanentes conflitos que envol- aprofundou e reformulou o conceito
vem a hegemonia, do seu alcance na to- de hegemonia. Inicialmente, utilizou-o
talidade da vida social e de suas formas no sentido acima, referindo-se ao sis-
de produção. tema de alianças que a classe operária
O termo hegemonia, em sua ori- deveria criar para derrubar o Estado
gem grega, remetia a uma autoridade burguês (Bottomore, 2001, p. 177). A
militar exercendo a supremacia de uma contribuição fundamental de Gramsci,
cidade-Estado no interior de uma con- sem abandonar o sentido acima, deri-
federação. Preservou, no sentido cor- va do transbordamento de suas refle-
riqueiro, essa característica de predo- xões para as formas específicas como,
mínio militar e autoridade de um país nas sociedades capitalistas modernas,
sobre outro. a burguesia produz e reproduz sua

391
Dicionário da Educação do Campo

dominação em processos de luta social. te, à função de “hegemonia” que


Tomando como ponto de partida prin- o grupo dominante exerce em
cipalmente a história e a realidade da toda a sociedade e àquela de “do-
Itália do seu tempo, Gramsci observa mínio direto” ou de comando,
que “uma classe mantém seu domínio que se expressa no Estado e no
não simplesmente através de uma or- governo “jurídico”. (Gramsci,
ganização específica da força, mas por 2001, v. 2, p. 20-21)
ser capaz de ir além de seus interesses
corporativos estreitos, exercendo uma Nesse sentido, na obra gramsciana,
liderança moral e intelectual” (ibid.) não é possível separar o conceito de
capaz de conformar o conjunto da so- hegemonia de uma concepção “amplia-
ciedade às formas de pensar, sentir e da” do Estado. Essa concepção supera,
agir da classe dominante. O conceito ao mesmo tempo, tanto a compreen-
de hegemonia adensava-se, alcançando são do Estado como simples conjunto
novo estatuto teórico. de instrumentos de coerção – ou seja,
A contribuição gramsciana permi- interpretando-o também como sistema
te compreender, ao mesmo tempo, as de instrumentos que produzem lide-
tensões internas da classe dominante, rança intelectual e consenso – quan-
acirradas pelo aumento da concorrên- to a concepção da revolução como
cia no capitalismo imperialista, e as no- assalto ao aparelho de poder político-
vas condições colocadas para a luta de coercitivo – ou seja, pressupõe a neces-
classes, decorrentes do crescente pro- sidade de construção de uma contra-
cesso de socialização da política (con- hegemonia (Acanda, 2006).
quista do sufrágio universal, organiza- Nessa concepção ampliada do Esta-
ção de partidos populares de massas do, sociedade civil é o espaço principal
etc.), o que produz uma mudança qua- para o exercício da função hegemônica
litativa na estruturação e na dinâmica e a arena privilegiada da luta de classes
das relações de poder. Gramsci amplia (intra e entre as classes), pela atuação
a concepção de Estado, estendendo-o dos chamados “aparelhos privados de
para além da aparelhagem estatal (so- hegemonia”: organizações nas quais se
ciedade política) e incorporando a ele – elaboram e moldam as vontades e com
no que diz respeito à sua função de base nas quais as formas de dominação
dominação e de direção do conjunto se difundem, generalizando modalida-
da sociedade –, o papel decisivo das des de convencimento adequadas ao
organizações que atuam na sociedade grupo ou fração dominante – conven-
civil. Assim, segundo Gramsci: cimento que passa a ser, a partir de en-
tão, tarefa permanente e fundamental
Por enquanto, podem-se fixar da burguesia para fortalecer a sua ca-
dois grandes “planos” superes- pacidade de organizar o consentimento
truturais: o que pode ser cha- dos dominados, interiorizando as rela-
mado de “sociedade civil” (isto ções e práticas sociais vigentes como
é, o conjunto de organismos necessárias e legítimas. O vínculo or-
designados vulgarmente como gânico entre sociedade civil e Estado
“privados”) e o da “sociedade explica o caráter molecular dessa domi-
política ou Estado”, planos que nação que atravessa todos os espaços
correspondem, respectivamen- sociais, “educando o consenso, forjan-

392
Hegemonia

do um ser social adequado aos interes- Mas quais são as formas específi-
ses (e valores) hegemônicos” (Fontes, cas de produção social da hegemonia
2006, p. 212). e da contra-hegemonia? Em primeiro
Assim, o terreno da sociedade ci- lugar, deve-se afirmar que essas for-
vil aparece como local de formulação mas se definem no processo de luta
e consolidação dos projetos sociais e que, pela própria complexificação das
de constituição das vontades coleti- sociedades capitalistas contemporâne-
vas, por se configurar como momen- as, assume cada vez menos a forma de
to organizativo e espaço de mediação um assalto frontal e direto a uma forta-
entre o âmbito da dominação direta (a leza central da classe dominante, repre-
produção), mediante a organização e o sentada pelo Estado (como na figura
convencimento, e o terreno da direção
geral e do comando sobre o conjunto
da “guerra de movimento”, da metá-
fora militar empregada por Gramsci),
H
da vida social, por meio do Estado em transformando-se fundamentalmente
sentido estrito (sociedade política). numa “guerra de posição”, com o esta-
belecimento de inúmeras trincheiras, o
Dessa forma, a hegemonia, criada e
que envolve uma extensa organização
recriada numa teia de instituições, rela-
industrial, técnica, de abastecimento e
ções sociais e ideias, é, necessariamen-
de unificação de massas humanas dis-
te, como afirma Gramsci, “uma relação
persas (Gramsci, 2001, v. 3, p. 72), de
pedagógica, que se verifica não apenas
forma a que essas trincheiras atuem
no interior de uma nação, entre as di-
como espaços que combinam defesa e
versas forças que a compõem, mas em
ataque. Para fazer frente a tal tipo de
todo o campo internacional e mundial,
entre conjuntos de civilizações nacio- dominação, Gramsci destaca a necessi-
nais e continentais.” (Gramsci, 2001, dade do avanço progressivo das forças
v. 1, p. 399). No âmbito nacional, essa em luta, num processo de consolidação
relação pedagógica se desenvolve no da direção intelectual e moral do con-
seio do Estado, que assume o papel junto da sociedade.
de Estado educador, capaz de adaptar A hegemonia nada tem de estática
o conjunto da sociedade a uma forma ou de mecânica. O crescimento inces-
particular de “estar no mundo”. Segun- sante de novas contradições na socie-
do Neves: dade capitalista, tanto no interior das
frações dominantes quanto entre as
O Estado educador, como ele- classes sociais, resulta em equilíbrios
mento de cultura ativa, deve sempre provisórios. Permanentes dispu-
servir para determinar a vontade tas hegemônicas alteram e recompõem
de construir, no invólucro da so- as formas de dominação burguesa. A
ciedade política, uma complexa solução de tensões internas entre fra-
e bem articulada sociedade civil, ções de classe pode ocorrer pela cap-
em que o indivíduo particular se tura para o interior da visão de mundo
governe por si sem que, por isso, dominante de segmentos expressivos
esse autogoverno entre em con- dos grupos subalternos (transformis-
flito com a sociedade política, mo). Daí a extrema importância, para
tornando-se, ao contrário, sua Gramsci, de que os trabalhadores cons-
normal continuação, seu com- truam organizações de modo a garantir
plemento orgânico. (2005, p. 26) uma prática coerente, uma formulação

393
Dicionário da Educação do Campo

intelectual que supere a fragmentação porque remete à experiência vivida dos


do senso comum e, ao mesmo tempo, sujeitos, evidenciando seu caráter mo-
integre a alta cultura, elevando-a e lecular, introduzindo-se capilarmente
disseminando-a para toda a humanida- no dia a dia das relações sociais. É por
de, o que corresponde a uma direção isso que Williams destaca que
intelectual e moral dos trabalhadores
que os torne aptos a superar a divisão [...] uma hegemonia vivida é
em classes sociais, integrando todas as sempre um processo. Não é, ex-
classes subalternas. ceto analiticamente, um sistema
Em segundo lugar, a hegemonia su- ou uma estrutura. É um com-
põe, mas não se limita a, uma produção plexo realizado de experiências,
discursiva, pois envolve o conjunto da relações e atividades, com pres-
vida social em suas diferentes práticas. sões e limites específicos e mu-
Como aponta Williams, o conceito de táveis. [...] [portanto] não existe
hegemonia vê apenas passivamente como for-
ma de dominação. Tem de ser
[...] as relações de domínio e renovada continuamente, re-
subordinação, em suas formas criada, defendida e modificada.
como consciência prática, como (1979, p. 115)
efeito de saturação de todo o
processo de vida – não só de Porém isso não significa que ela
atividade política e econômica, possa ser considerada absoluta. Se a
não só de atividade social mani- hegemonia é uma relação, ela “também
festa, mas de toda a substância sofre uma resistência continuada, limi-
de identidade e relações vividas, tada, alterada, desafiada por pressões
a uma tal profundidade que as que não são as suas próprias pressões”
pressões e limites do que se pode (Williams, 1979, p. 115). Toda relação de
ver, em última análise, como sis- hegemonia pressupõe, como possibili-
tema econômico, político e cul- dade, a existência de experiências, rela-
tural, nos parecem pressões e li- ções e atividades contra-hegemônicas.
mites de simples experiência e Isso porque “a realidade de qualquer
bom senso. (1979, p. 113 ) hegemonia, no sentido político e cultu-
ral ampliado, é de que, embora por de-
Assim, a hegemonia não é redutível finição seja sempre dominante, jamais
à ideologia, nem pode ser compreendida será total e exclusiva” (ibid., p. 116).
como simples manipulação ou doutri- Em terceiro lugar, é importante des-
nação. Constitui “todo um conjunto de tacar que, se o substrato fundamental
práticas e expectativas sobre a totalidade da hegemonia burguesa repousa sobre
da vida”, “um sistema vivido de signifi- o convencimento ou a adesão das gran-
cados e valores – constitutivo e consti- des massas, ela não dispensa o exercí-
tuidor – que, ao serem experimentados cio da coerção. Marx e Engels (2007),
como práticas, parecem confirmar-se contrapondo-se aos argumentos libe-
reciprocamente” (1979, p. 113). rais, mostraram que o poder do Estado
O conceito de hegemonia recupera, não repousa apenas em seu visível apa-
assim, o sentido de totalidade concreta, rato coercitivo, mas encontra suas raízes

394
Hegemonia

fundamentais no processo de domina- sem que a força suplante em


ção de classes. Dessa forma, violências muito o consenso, mas, ao con-
sociais constitutivas da existência social trário, tentando fazer com que
sob o capitalismo – como o permanen- a força pareça apoiada no con-
te processo de expropriações, o despo- senso da maioria, expresso pe-
tismo da propriedade ou a naturaliza- los chamados órgãos da opinião
ção de relações históricas – são veladas pública – jornais e associações –,
pela aparente neutralidade e distan- os quais, por isso, em certas
ciamento do Estado, que derivam do situações, são artificialmente
fato de que multiplicados. (Gramsci, 2001,
v. 2, p. 95)
[...] toda nova classe social que
toma o lugar de outra que do- Chegamos assim ao quarto ponto
H
minava anteriormente é obri- relativo aos processos de construção
gada, para atingir seus fins, a da hegemonia. Como vimos acima, ela
apresentar seu interesse como se enraíza nos processos de luta, sis-
o interesse comum de todos os tematizada em aparelhos privados de
membros da sociedade, quer hegemonia na sociedade civil;; abran-
dizer, expresso de forma ideal: ge a totalidade concreta das formas de
é obrigada a dar às suas ideias ser social, atravessando as diferentes
a forma da universalidade, a práticas e envolvendo a própria socia-
apresentá-las como as únicas ra- bilidade;; e promove um consenso que
cionais, universalmente válidas. procura escamotear a violência sobre
(Marx e Engels, 2007, p. 48) a qual se instaura. Para além desses
elementos, Gramsci fez outra enorme
Por essa razão, Gramsci aborda contribuição, ao aprofundar o conceito
a hegemonia no terreno das relações de intelectual. Nos processos de conven-
de força, o que inclui também as re- cimento e de luta hegemônica, cabe pa-
lações militares, em sentido estrito ou pel fundamental aos intelectuais, consi-
no sentido político-militar (Gramsci, derados não apenas como pensadores
2001, v. 3, p. 40-44), e, embora desta- ou escritores, mas como organizado-
cando o sentido fundamental do con- res sociais e persuasores permanentes.
vencimento, jamais esquece o papel É conhecida a crítica de Gramsci aos
subjacente da coerção na construção que, compreendendo a divisão social
da hegemonia burguesa. Em famosa do trabalho, que opõe o trabalho inte-
expressão, afirma que “Estado = so- lectual (tarefas de elaboração) ao tra-
ciedade política + sociedade civil, isto balho manual (tarefas de execução),
é, hegemonia couraçada de coerção” simplesmente desconsideram o fato
(ibid. p. 244). Para ele: de que todos os homens são intelec-
tuais. Gramsci procura apreender, nas
O exercício “normal” da he- condições concretas do capitalismo do
gemonia, no terreno tornado século XX, a forma precisa pela qual
clássico do regime parlamentar, “as ideias da classe dominante são, em
caracteriza-se pela combinação cada época, as ideias dominantes, isto
da força e do consenso, que se é, a classe que é a força material domi-
equilibram de modo variado, nante da sociedade é, ao mesmo tempo,

395
Dicionário da Educação do Campo

sua força espiritual dominante” (Marx e do consenso extensível a toda a socie-


Engels, 2007, p. 47). Nesse sentido, na dade. Vejamos como o próprio Gramsci
reflexão gramsciana, os intelectuais não apresenta o papel dos intelectuais, na
são apenas elaboradores de ideias, mas articulação entre a hegemonia e o do-
integram as forças sociais concretas em mínio direto: “Estas funções [hegemo-
luta, articulando-as às suas condições nia e domínio estatal] são precisamente
materiais de existência: organizativas e conectivas. Os intelec-
tuais são os ‘prepostos’ do grupo do-
Todo grupo social, nascendo no minante para o exercício das funções
terreno originário de uma função subalternas da hegemonia social e do
essencial no mundo da produção governo político” (Gramsci, 2001, v. 2,
econômica, cria para si, ao mes- p. 20-21).
mo tempo, organicamente, uma Em Gramsci, o conceito de hege-
ou mais camadas de intelectuais monia assume dupla conotação. Na
que lhe dão homogeneidade e primeira, indica a maneira pela qual os
consciência da própria função, trabalhadores precisam elaborar orga-
não apenas no campo econômi- nizações capazes de superar as limi-
co, mas também no social e polí- tações corporativas ou limitadamente
tico: o empresário capitalista cria jurídicas para assumirem as tarefas de
consigo o técnico da indústria, libertação da exploração e das diversas
o cientista da economia políti- formas de opressão social. Precisam,
ca, o organizador de uma nova pois, alçar-se a um grau superior, inte-
cultura, de um novo direito etc. lectual e moral, a partir do qual suas
(Gramsci, 2001, v. 2, p. 15-16) práticas e suas formulações orgânicas
permitam a plena socialização da exis-
A hegemonia liga os diferentes mo- tência. A segunda conotação envolve a
mentos da vida social, unificando-os primeira: não se trata apenas da expres-
sob a direção de determinada fração da são de uma vontade dos trabalhadores,
classe dominante, uma vez que, sendo mas do enfrentamento das condições
permanentemente produzida na socie- efetivas, materiais e culturais, desenvol-
dade civil, ela se consolida na socieda- vidas pela própria dominação de classes
de política, no domínio direto expresso sob o capitalismo, nas quais os proces-
no Estado. A função social preponde- sos de lutas conduziram a uma modifi-
rante dos intelectuais é exatamente a da cação – ampliação – do Estado, resul-
organização e da conexão, ao favorecer tando em condições de luta complexas,
a conversão das forças hegemônicas na uma vez que transbordam o Estado em
sociedade civil em formas de domínio sentido estrito e abrangem as mais va-
estatal e, assim, exercer uma pedagogia riadas manifestações da vida social.

Para saber mais


ACANDA, J. L. Sociedade civil e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
ANDERSON, P. As antinomias de Gramsci. São Paulo: Joruês, 1986.
B OTTOMORE , T. (org.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.

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Hidronegócio

BUCI-GLUCKSMANN, C. Hégémonie. In: BENSUSSAN, G.;; LABICA, G. Dictionnaire cri-


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ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro:
Vitória, [s.d.].
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na década de 1980. In: LIMA, J. C. F.;; NEVES, L. M. W. Fundamentos da educação es-
colar do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio/Fiocruz, 2006.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. V. 1:
Introdução ao estudo da filosofia;; V. 2: Os intelectuais e o princípio educativo;; V.
3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. H
MARX, K.;; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
NEVES, L. M. W. (org.). A nova pedagogia da hegemonia. Estratégias do capital para
educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.
WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

HIDRONEGÓCIO
Roberto Malvezzi

Hidronegócio é, literalmente, o todo o planeta. Ela se subdivide em


negócio da água, e tem óbvia inspira- vários ramos, conforme o múltiplo
ção na expressão agronegócio. O ter- uso das águas. Esse fenômeno au-
mo surgiu da necessidade de se criar mentou muito nos últimos anos. Essa
uma expressão que abrigasse sob a oligarquia produz conhecimento, dá
sua sombra todos os tipos de negócios a direção do discurso, tem o poder
que hoje surgem a partir da água. da narrativa, influencia a mídia e de-
O negócio da água é múltiplo, as- termina a agenda mundial da água.
sim como os seus usos e valores. Hoje, Porém, tem enfrentado percalços que
é negócio quando engarrafada, no ser- não estavam em suas projeções. Um
viço de saneamento ambiental, no seu dos principais obstáculos é a resistên-
intenso uso na irrigação, na pecuária, cia popular em várias partes do mun-
na indústria, e assim por diante. O ne- do a qualquer princípio de mercantili-
gócio da água, até pouco tempo atrás, zação e privatização da água.
era estimado como o mais promissor
deste início de milênio. O Brasil e o hidronegócio
Existe uma oligarquia internacio-
nal da água. Essa oligarquia está priva- O Brasil possui, segundo dados
tizando e mercantilizando a água em mais recentes, 13,8% da água doce dos

397
Dicionário da Educação do Campo

rios do planeta (Brasil, 2003, p. 29). A forma como se ocupam os solos e


Tem ainda grande abundância de águas como se devasta a vegetação repercute
subterrâneas e é o único país de dimen- diretamente no assoreamento dos rios
sões continentais em que chove sobre e na contaminação dos corpos d’água.
todo o território nacional. Por todos
esses dados, é considerado como a
maior potência mundial em volume de
As múltiplas faces do
água doce do planeta. Por razões ób- hidronegócio
vias, as águas brasileiras são objeto de
As possibilidades de transformar
cobiça nacional e internacional.
a água em negócio são tão variáveis
A nova política mundial da água quanto seus múltiplos usos. Por isso, o
chegou ao Brasil na década de 1990 pe- novo discurso da água traz expressões
las mãos do Banco Mundial. Uma série como valor econômico da água, escas-
de estudos sobre as águas brasileiras sez, privatização, mercantilização e ou-
foi desenvolvida para diagnosticar a si- tras adjetivações que visam qualificá-la
tuação de nossas águas, resultando em como um produto entre outros.
vários volumes. Em 1997, foi promul-
gada a Lei Nacional de Recursos Hí- Vejamos algumas das formas como
dricos no 9.433, que instituiu o Sistema se materializa o hidronegócio.
Nacional de Recursos Hídricos e a Po-
lítica Nacional de Recursos Hídricos, Energia hídrica
agora em franca implementação.
Porém, a lei, que tem sua ideologia A quase totalidade da energia elétri-
baseada no valor econômico da água, ca brasileira é de origem hídrica. As cen-
além de outras contradições, tem o mé- tenas de barragens espalhadas pelo ter-
rito de tentar disciplinar o uso de nos- ritório brasileiro são responsáveis por
sas águas de forma racional, a partir aproximadamente 90% da energia elé-
das bacias hidrográficas. Na sua con- trica consumida no Brasil. O processo
tradição interna, propõe a gestão de- de construção dessas barragens impacta
mocrática das águas, com participação violentamente o meio ambiente e as po-
de toda sociedade. No Brasil, a mer- pulações atingidas. Agora, com a escas-
cantilização e privatização da água se sez de energia, a construção de barra-
dá pelo uso, mediante a outorga, posto gens tornou-se ainda mais polêmica.
que constitucionalmente a água é um O primeiro grande exemplo do que
bem público. não deve ser feito foi a barragem de
O Brasil tem a maior rede de bacias Sobradinho, no rio São Francisco, relo-
hidrográficas do planeta, agrupadas em cando 72 mil pessoas e inundando qua-
12 regiões hidrográficas por proximidade tro cidades. Contudo, o mesmo modelo
geográfica, semelhanças ambientais, so- adotado durante a ditadura civil-militar
ciais e econômicas (Brasil, 2003, p. 29). prossegue em Jirau, Belo Monte e demais
Essa questão é essencial, porque a água projetos de hidrelétricas em andamento.
é um dos caminhos por onde entra o ca- A partir da experiência de Sobradinho,
pital no campo, interferindo, ocupando e os atingidos por barragens de outras
remodelando o espaço que antes era das regiões puderam organizar-se melhor
comunidades indígenas e tradicionais. para defender seus interesses, inclusi-

398
Hidronegócio

ve, inviabilizando a construção de al- milhões são irrigados. Portanto, o pro-


gumas delas, principalmente na bacia cesso de irrigação produz um contras-
do rio Uruguai. É dessa luta que sur- senso, isto é, produz mais em menos
ge o MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR terra, porém, consome mais de 70% da
BARRAGENS (MAB), que ainda hoje en- água doce utilizada, competindo e con-
frenta a construção de barragens por flitando com outros usos. Esse método
todo Brasil. O governo brasileiro não de produção, portanto, tem necessaria-
investia em fontes alternativas de ener- mente um limite. Além do mais, a Or-
gia e sobrecarregava os rios brasileiros ganização das Nações Unidas (ONU)
com a construção das barragens;; po- afirma que cerca de 80 milhões de hec-
rém, agora, investe em matrizes ainda tares – de um total de 260 milhões – de
mais complexas, sobretudo nucleares e
termoelétricas. A energia eólica, embo-
hectares das áreas irrigadas, sobretudo
nas regiões áridas e semiáridas, estão sa-
H
ra limpa do ponto de vista de emissão linizados (United Nations, 2002, p. 7).
de CO2, tem no mesmo modelo priva- Hoje, da água doce utilizada no
tizado, agredindo as comunidades tra- Brasil, 69% se destinam a irrigação
dicionais que estão nos espaços mais (Malvezzi e Revers, s.d.). Porém, o uso
adequados para a exploração dessa é crescente e compete diretamente com
matriz energética. os demais usos, principalmente o con-
A energia de origem hídrica que sumo humano e a dessedentação dos
move nosso país é um megarramo do animais. No Brasil a irrigação está vol-
hidronegócio para empreiteiras, corpo- tada para a produção de grãos e de fru-
rações técnicas, indústria de turbinas, tas para exportação, mas também de
geradoras e distribuidoras de energia. cana irrigada para a produção de álcool
Por consequência, existe enorme difi- e açúcar. E soma-se à irrigação a carci-
culdade de implantar uma mistura de nicultura, ou seja, a criação de camarão
outras fontes de energia, mais sustentá- em cativeiro.
veis, mais limpas, como a solar, a eólica A soja tomou conta dos cerrados,
e a de biomassa, dentro de um novo sobretudo no Oeste baiano. Ago-
modelo de produção e distribuição da ra migra para o Norte, na direção do
energia gerada. Araguaia e do Tocantins, e também
de Mato Grosso para Rondônia, sem-
Irrigação pre em busca de água. Hoje, o enten-
dimento é que exportar grãos, assim
A produção mundial de alimentos, como exportar carne, significa, em úl-
sobretudo de grãos, não está alicerçada tima instância, exportar água. Criou-se
apenas na chamada REVOLUÇÃO VERDE a expressão “água virtual” para tradu-
– agora, na biotecnologia;; está alicerça- zir essa água incorporada ao processo
da também na irrigação. Os dados mais produtivo, porém sem visibilidade real
recentes informam que a irrigação res- ou sem peso no custo do produto.
ponde por 70% da água doce consu- Mas a expressão não traduz a realida-
mida no mundo (Instituto Brasileiro de, visto que seu uso é efetivo. Seria
de Defesa do Consumidor, s.d.). Hoje, melhor conceituá-la como “água invi-
no planeta, há 1,5 bilhão de hectares sível”. Agora, com a implantação da
ocupados com agricultura. Desses, 260 nova política, começa a cobrança pelo

399
Dicionário da Educação do Campo

uso da água, uma prática ainda mais de- que falta a chuva para complementar
safiadora e cheia de contradições. Por o período de germinação das plantas.
exemplo, as águas da transposição do Dessa forma, poupa-se água de chuva e
São Francisco criarão o maior mercado produzem-se alimentos sem investir nos
de águas do Brasil, quiçá do mundo. aquíferos subterrâneos ou nos rios. Essa
Produzir grãos em território alheio irrigação, aliada à agricultura orgânica, é
é poupar água no próprio território. ecologicamente sustentável e pode abrir
Técnicas pesadas, como pivôs centrais um novo horizonte na produção dos as-
e irrigação por sulco, consomem ain- sentamentos e da pequena agricultura.
da mais água do que a microaspersão. Ainda mais: se a captação de água
Essa é a verdadeira disputa pela água de chuva para a pequena irrigação é viá-
que se materializa na transposição do vel no semiárido, pode ser muito mais
rio São Francisco. A humanidade terá em outras regiões com maior índice de
de rever seu consumo de água para precipitação. Não há motivos para que
irrigação. Não existe água para que os assentamentos fiquem aguardando
esse modelo de produção continue apenas as chuvas, sem cooperar com
ad infinitum. a natureza, sem armazenar essa água
A quantidade de água para produzir para os períodos de estiagem. O mo-
alguns alimentos escapa da imaginação vimento social começa a dar os primei-
(Brasil, 2003, p. 10). Por exemplo, 1 ros passos para assimilar o binômio
quilo de arroz demanda 4.500 litros de terra–água como meio de produção
água;; um quilo de carne de gado de- indissociável e indispensável. Nos dias
manda 20 mil litros de água;; um quilo atuais, é preciso fazer sempre a ressal-
de trigo demanda 1.500 litros. Não é va da mudança climática e dos cenários
por acaso que a agricultura demanda funestos que se desenham para a agri-
em média 70% da água doce utilizada cultura e para o próprio abastecimento
em todo o globo terrestre. de água potável.
Enquanto isso, os pequenos agri-
cultores, principalmente dentro dos Carcinicultura
assentamentos, às vezes não possuem
sequer água de qualidade para beber. Outro ramo do hidronegócio, muito
Compreender que a água, além de um mais específico, é a criação de ca-marão
direito humano fundamental para uso em cativeiro. Segundo dados da Orga-
doméstico, é um meio de produção tão nização das Nações Unidas para Agri-
indispensável quanto a terra ainda é cultura e Alimentação (FAO), a criação
um salto de qualidade que o movimen- de 1 quilo de camarão em cativeiro
to social apenas começa dar. Luta-se consome de 50 a 60 mil litros de água,
pela terra, ainda não se luta pela água ou seja, aproximadamente 50 a 60 to-
como meio de produção. neladas. Some-se à criação de camarão
Existem iniciativas ainda incipientes também a de peixes em cativeiro, assim
nessa direção, sobretudo no semiárido, como a de ostras e de outros frutos do
com a captação de água de chuva para mar. É a chamada “Revolução Azul”, a
a chamada irrigação de salvação. Capta- aquicultura, quando se supunha que a
se a água de chuva em reservatórios produção de alimentos iria se transferir
pequenos, e é usada nos momentos em da terra para a água.

400
Hidronegócio

Nessa perspectiva, o governo, pela Esse fenômeno seria impossível


primeira vez na história do Brasil, pri- sem a convergência das autoridades
vatizou os espelhos d’água, através do públicas com o setor privado. O Ban-
decreto nº 2.869, de 9 de dezembro de co Mundial, a Organização Mundial do
1998, que regulamenta a cessão de águas Comércio (OMC) e o Fundo Monetário
públicas para exploração da aquicultura Internacional (FMI) são os principais
(Brasil, 1998). São áreas que, antes aces- organismos a serviço dessa oligarquia
síveis a todos os pescadores, agora estão internacional da água (Petrella, 2002).
restritas ao uso das empresas. Portanto, Por meio da chamada “condicionalida-
trata-se de outra forma de privatizar o de cruzada”, essa oligarquia impõe a
uso da água, não só como elemento a privatização e mercantilização da água
ser utilizado, mas como espaço agora
apropriado por particulares.
em troca de empréstimos. É uma cor-
da posta no pescoço dos países pobres
H
O nível de degradação ambiental ge- ou subordinados.
rado por esse ramo do hidronegócio já A política mundial que transfere os
mostra seu impacto no plano mundial. serviços de saneamento para o setor
Além de expulsar os pescadores tradi- privado dá-se hoje principalmente pe-
cionais dos mangues e provocar danos las parcerias público-privadas (PPPs),
ambientais à fauna local, é uma ativi- agora também lei no Brasil. É mais um
dade que consome mais água doce do serviço público que passa a ser gerido
que a própria irrigação. Essa atividade pelo setor privado e que se torna um
econômica tem tomado conta de todo dos mais cobiçados e lucrativos ramos
o litoral nordestino, incrementado a ex- do hidronegócio.
portação e gerado uma elite empresarial
que se beneficia dela em detrimento das
comunidades tradicionais e do meio
Água engarrafada
ambiente em geral. Outro ramo fantástico do hidrone-
gócio é a água engarrafada. Hoje, em
Saneamento ambiental média, a água comprada em copo nos
bares sai por dois reais o litro, isto é,
As empresas francesas Vivendi e praticamente o preço de um litro de
Suez fazem parte dessa lista. Aboca- gasolina. As empresas que mais tra-
nham cerca de 40% do mercado de balham o ramo da água engarrafada –
água existente, fornecendo serviços de mineral ou não – são a Coca-Cola, a
recursos hídricos para mais de 110 mi- Nestlé e outras que vão se apoderando
lhões de pessoas. Existe ainda a RWE desse ramo do hidronegócio.
alemã, que acabou comprando a bri- Um dos exemplos da luta pela água
tânica Thames Water e a American engarrafada, mineral ou não, é o que a
Water Works, a maior empresa privada Nestlé tem feito com os mananciais da
de serviços de recursos hídricos dos região hidromineral de São Lourenço,
Estados Unidos. Normalmente essas Minas Gerais. Ao adquirir o direito de
empresas se associam a, ou com- lavra dessas águas, pressionou de tal
pram empresas locais, adotando um forma certos mananciais que acabou
novo nome de fantasia (Associação por eliminá-los. A partir daí, a Nestlé
Água Pública, 2011). adotou uma série de procedimentos de

401
Dicionário da Educação do Campo

desmineralização de um tipo de água, Evo Morales ao poder. Podem ser cita-


inclusive de forma ilegal. O que se das também as resistências de Tucumán
revela mais a fundo nessa atitude é (Argentina), Vancouver (Canadá), África,
a relação puramente mercantil com a Índia e Brasil.
água. O hidronegócio, como qualquer Nesse contexto, é possível lembrar
negócio, visa exclusivamente ao lucro. a reação da população à privatização da
Empresa Baiana de Água e Saneamen-
A resistência to S.A. (Embasa), na Bahia, que contou
com forte participação da Igreja, obri-
Embora repita aqui uma reflexão gando o governo estadual a recuar de
já feita antes, é importante ressaltar a sua decisão de privatizar os serviços
resistência à privatização da água que de água do estado. No Brasil, ainda,
existe em todo o planeta. Essa resis- vale recordar a reação ao projeto de lei
tência tem dificultado a estratégia das no 4.147 do governo federal, que pre-
empresas, da OMC, do FMI e do Ban- tendia abrir caminhos para a privatiza-
co Mundial. Um dos exemplos é a re- ção dos serviços básicos de abasteci-
sistência boliviana no ano 2000. A Lei mento e saneamento.
de Águas, privatizando o serviço em
Cochabamba, já estava aprovada. A Mais do que uma época de mudan-
população cercou a cidade e ela ficou ças, estamos atravessando uma mudança
em estado de guerra. Uma pessoa foi de época. Nessa transição conflitiva,
morta e várias ficaram feridas. A bata- a disputa pela água tornou-se um ele-
lha urbana durou sete dias, mas a lei mento crucial. A defesa da água como
de privatização foi revogada. O bloco bem comum tem forte apelo popular,
social que se articulou em defesa da posto que é um elemento vital e im-
água foi fundamental para o acesso de prescindível que está em disputa.

Para saber mais


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info/agua/programa_conjunto_psd_ps_cds.html. Acesso em 28 set. 2011.
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br/ccivil_03/decreto/D2869.htm. Acesso em: 21 out. 2011.
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Diário Oficial da União, Brasília, 11 jul. 1934. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/d24643.htm. Acesso em: 7 maio 2011.
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Florestal. Diário Oficial da União, Brasília, 16 set. 1965. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4771.htm. Acesso em: 7 maio 2011.

402
Hidronegócio

______. Lei no 9.433, de 8 de janeiro de 1997: institui a Política Nacional de


Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o
art. 1º da lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a lei nº 7.990, de 28
de dezembro de 1989. Diário Oficial da União, Brasília, 9 jan. 1997. Disponível em:
http://www.aneel.gov.br/cedoc/blei19979433.pdf. Acesso em: 7 maio 2011.
______. Lei no 9.984, 17 de julho de 2000: dispõe sobre a criação da Agência
Nacional de Águas – ANA, entidade federal de implementação da Política Nacional
de Recursos Hídricos e de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento
de Recursos Hídricos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
18 jul. 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9984.
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documents/summit_docs/wehab_papers/wehab_agriculture.pdf. Acesso em: 7
maio 2011.

404
I
IDOSOS DO CAMPO
Johannes Doll

O que significa ser idoso do campo? nela aparecem manchas. Os cabelos se


Envelhecer em uma estrutura familiar tornam mais finos, ficam grisalhos pela
ainda existente, acolhido pelas gera- falta de pigmentação, ou simplesmen-
ções mais novas e respeitado na comu- te caem. Observa-se uma diminuição
nidade? Ou abandonado tanto pela so- da massa muscular e um aumento da
ciedade quanto pela família, na solidão, gordura. Os diferentes órgãos, como
na pobreza, em condições precárias de o coração, o intestino, o pulmão etc., I
acesso ao sistema de saúde, ao sistema diminuem sua capacidade de funciona-
de transporte, a alguma forma de lazer? mento. Envelhecer não é uma doença,
Na verdade, existem diferentes formas mas as modificações físicas levam o
de envelhecer no campo, e, por isso, há corpo a ter menos reservas e maiores
muitas velhices do campo. Durante os dificuldades para se adaptar a novas
últimos cem anos, a sociedade brasilei- situações ou a desafios especialmente
ra se modificou profundamente, e estas grandes. Por isso, o risco de contrair
mudanças tiveram um forte impacto uma doença aumenta. O processo de
também no contexto rural. As pessoas envelhecimento depende, em parte,
idosas de hoje vivenciaram essas mo- da estrutura genética, mas os aspectos
dificações e suas consequências nas ambientais, como alimentação, esti-
próprias vidas. Esse desenvolvimento lo de vida, tipo de trabalho, condições
histórico constituiu determinadas con- de prevenção da saúde etc., também
dições de vida no campo sob as quais influenciam de forma significativa o
os idosos se encontram hoje. Essas envelhecimento. É importante cons-
mudanças referem-se não somente às tatar que estas mudanças podem ser
condições econômicas ou às condições influenciadas, até certo ponto, pelas
de vida também tiveram impacto nas condições em que as pessoas vivem e
estruturas familiares e no papel que os por seu estilo de vida, e que nem to-
idosos exercem hoje nos seus contex- das são irreversíveis, o que chama-
tos familiar e comunitário. mos de plasticidade no processo de
envelhecimento. Especialmente a mus-
culatura, mas também a capacidade
Quem é idoso? dos órgãos podem ser influenciadas,
O processo de envelhecimento afe- por exemplo, por atividades físicas
ta as pessoas em todas as suas esferas: adequadas. Assim, existem idosos em
biológica, psicológica, social e espi- condições de saúde melhor do que
ritual. Na parte biológica,1 existe um pessoas jovens.
processo de envelhecimento celular O envelhecimento psicológico se
que leva a uma série de modificações refere principalmente às capacidades
físicas. A pele perde a sua elasticidade e cognitivas, como memória, inteligência

405
Dicionário da Educação do Campo

e formas de resolução de problemas. locaram o início da velhice, na média,


Durante muito tempo, acreditava-se aos 66 anos e 3 meses, enquanto a ve-
em um declínio natural e irreversível lhice, para as pessoas com mais de 60
destas capacidades durante o proces- anos, começava somente com 70 anos
so de envelhecimento. Pesquisas lon- e 7 meses (Neri, 2007). De fato, a idade
gitudinais que acompanharam grupos a partir da qual alguém é considerado
de pessoas durante seu processo de idoso é uma convenção social. Nos paí-
envelhecimento, às vezes por déca- ses industrializados, é usada geralmente
das, demonstraram que a manutenção a idade de 65 anos, que se estabeleceu
ou a perda das capacidades cogniti- com base nas regras de aposentadoria.
vas dependem muito mais de fatores Como o processo de envelhecimento
como escolaridade, profissão e saúde em países em desenvolvimento é mais
do que da idade calendária. Durante o acelerado pelas condições precárias em
processo de envelhecimento, a maioria que grande parte da população vive,
destas capacidades tende a se manter a II Assembleia Mundial de Envelhe-
relativamente estável, e certo declínio cimento, em Madri, em 2001, estabe-
se observa somente em idades bastan- leceu o limite de 60 anos para chamar
te avançadas, ou em caso de doenças. alguém de idoso. No Brasil, o Estatuto
Além das capacidades cognitivas, as do Idoso de 2003 acolheu a proposta
emoções, convicções, atitudes e estra- de 60 anos. Como se pode perceber,
tégias de enfrentamento também fa- a definição legal do limite da velhice
zem parte dos aspectos psicológicos. é somente uma convenção, e não cor-
Estes dependem principalmente da responde necessariamente à percepção
personalidade, de processos de apren- dos próprios idosos.
dizagem durante a infância e durante a A velhice, tanto na delimitação etá-
vida, mas também de aspectos culturais ria quanto em relação ao significado
presentes na comunidade e na socieda- desta faixa etária, é uma construção
de. Em relação à velhice, estes aspectos social que se baseia na ideia de uma
também tendem a se manter estáveis idade produtiva e uma idade pós-pro-
durante o processo de envelhecimento, dutiva. Por isso, existe uma série de
podendo acentuar-se certas caracterís- eventos sociais que têm relações com
ticas já existentes anteriormente. De o imaginário da velhice. Além da apo-
fato, a imagem da velhice e as atitudes sentadoria, já mencionada, e que afeta
em relação aos idosos em certo con- principalmente os homens, há, para as
texto social têm forte influência sobre mulheres, a menopausa e o fato de se
a (auto)percepção e sobre o comporta- tornarem avós.
mento de pessoas idosas. Em relação ao significado atribuído
As imagens da velhice remetem aos à velhice, observa-se uma mudança sig-
aspectos sociológicos do envelheci- nificativa durante os últimos cinquenta
mento. A definição de quem pode ser anos, o que Debert (1999) chama de
considerado idoso depende principal- reinvenção da velhice. De fato, durante
mente de regras sociais;; inclusive, ob- muito tempo, existiam poucas pessoas
serva-se uma diferença interessante en- idosas, e a representação da velhi-
tre chamar outra pessoa de idosa e uma ce era vinculada a uma fase não mais
pessoa se declarar idosa. Na pesquisa produtiva, ao desgaste, ao declínio que
“Idosos no Brasil”,2 os mais jovens co- apela principalmente à caridade para

406
Idosos do Campo

assegurar as condições mínimas de aspectos biológicos, psicológicos e


sobrevivência. Nesta perspectiva, as sociais interagem de forma complexa
famílias eram chamadas a acolherem e diferenciada.
seus velhos, que se retiravam aos seus
“aposentos”, enquanto os velhos de-
samparados eram acolhidos nos asilos.
Marcas na história dos
Com o aumento da expectativa de vida idosos do campo de hoje
e do número de pessoas idosas, esta re-
Durante os últimos cem anos, o
presentação demonstrou não ser mais
meio rural sofreu mudanças profundas,
suficiente, e começou a luta para uma
e as pessoas idosas do campo de hoje
nova imagem da velhice. Reflexos disso
são observados nas pesquisas geronto- vivenciaram estas mudanças na própria
lógicas que questionam a imagem da pele, obviamente em formas e graus
diferentes, dependendo das situações
velhice como época de declínio e apre-
sentam dados que indicam a possibi- particulares. De fato, a origem de uma I
lidade de uma velhice ativa, produtiva série de problemas em relação ao cam-
e autodeterminada. No trabalho com po vem da própria história do Brasil,
pessoas idosas, surgem propostas edu- como aponta Delgado:
cacionais, como as universidades para a
terceira idade, e, em consonância com A sociedade que se forja no
estas mudanças, evita-se chamar os ve- Brasil depois da Abolição car-
lhos de velhos, procurando-se outras rega no seu âmago duas ques-
determinações, como “terceira idade”, tões mal resolvidas do século
“idoso” ou até eufemismos como “me- anterior: as relações agrárias
lhor idade” ou “idade de ouro”. arbitradas pelo patriciado rural,
Percebe-se também a necessidade mediante Lei de Terras (1850),
de diferenciar este suposto grupo de profundamente restritiva ao
idosos, que abrange desde pessoas com desenvolvimento da chamada
60 anos até pessoas com mais de 100 “agricultura familiar”;; e uma lei
anos. Entre as classificações, encontra- de libertação dos escravos que
se a diferenciação entre idosos jovens nada regula sobre as condições
(terceira idade) e idosos idosos (quarta de inserção dos ex-escravos na
idade), que se vincula à idade calendária economia e na sociedade pós-
(jovens: 60-75 anos;; velhos: 75 anos e Abolição. (2004, p. 16)
mais), mas que também serve para des-
crever, por um lado, a imagem positiva Esta herança histórica, junto com
da velhice – pessoas sem maiores pro- um processo rápido de industrializa-
blemas de saúde, curtindo a liberdade ção e uma abertura ao mercado in-
tardia, desfrutando as possibilidades ternacional, modificou a sociedade
desta fase – , e, por outro, a imagem ne- brasileira durante o século XX – e, de
gativa – perda das capacidades físicas e forma especial, o meio rural. Entre
cognitivas, fragilidade, dependência. os acontecimentos de profundo im-
Resumindo, as pessoas idosas pacto para as pessoas idosas de hoje,
constituem um grupo altamente he- gostaríamos de destacar dois aspectos:
terogêneo, marcado por processos di- o êxodo rural e a introdução de uma
ferentes de envelhecimento, nos quais aposentadoria rural.

407
Dicionário da Educação do Campo

Enquanto, no Brasil, na metade 2009). Tendo em vista que são princi-


do século XX, a maioria da população palmente as mulheres que cuidam dos
ainda vivia no campo – 63,8%, em membros mais velhos da família, esse
1950, segundo dados do Instituto deslocamento pode criar problemas:
Brasileiro de Geografia e Estatística quem cuidará dos homens idosos no
(IBGE) (2003) –, no início do século futuro, quando precisarão de ajuda? Re-
XXI, somente uma pequena parcela sumindo, pode-se dizer que:
ainda reside no meio rural – 15,64%,
em 2010, também segundo dados do [...] com a modernização no
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia campo houve um agravamen-
e Estatística, 2010). to das condições de vida dos
Esta transformação aconteceu por agricultores familiares, ou seja,
causa de um processo migratório de o empobrecimento e o endivi-
dimensões gigantescas que levou, so- damento de grande parte dos
mente entre os anos 1960 e 1980, 27 agricultores e, também, o des-
milhões de pessoas a abandonarem locamento significativo da po-
seus lugares no campo. Este processo, pulação rural para os centros
conhecido como êxodo rural, é com- urbanos. Os agricultores que
plexo, e nele podem observar-se ra- permaneceram no campo lu-
zões, destinos, fases e populações mi- tam para conseguir produzir e
gratórias diferentes. Entre as principais manter a qualidade de vida da
razões que expulsaram a população sua família e o seu bem-estar.
rural do seu espaço estão mudanças na (Godoy et al., 2010, p. 2)
produção agrícola, como mecanização
e forte uso de insumos, e a consequente O êxodo rural teve um impacto
perda de espaço, de competitividade e especialmente problemático para a
de emprego de uma grande parte da população idosa: muitos daqueles que
população rural, especialmente dos ficaram no campo não só perderam
produtores familiares e de subsistência seu trabalho e sua forma de existên-
(Delgado, 2004). cia, mas também perderam amigos e
Um segundo fator foi o processo de familiares que mudaram para a cidade,
industrialização, que atraiu boa parte principalmente as gerações mais novas
da população rural para as cidades na e as mulheres (Camarano e Abramovay,
busca de supostas melhores condições 1999). Por outro lado, surgiu, a partir
de vida. Além destes dois fatores prin- da Constituição de 1988, um novo ele-
cipais, há desastres climáticos, difíceis mento que agora favoreceu os idosos,
condições de vida no campo (saúde, com impactos interessantes e não espe-
educação, lazer), mas, também, a falta rados: a aposentadoria rural.
de perspectivas ou espaços. Já existia, desde 1972, o Programa
Em relação aos grupos populacio- de Assistência ao Trabalhador Rural/
nais, observa-se hoje a saída princi- Fundo de Assistência e Previdência do
palmente dos jovens e das mulheres, Trabalhador Rural (Prorural/Funrural),
deixando no campo uma população com benefícios precários e limitados.
masculina e envelhecida (Camarano e A partir da Constituição de 1988, com
Abramovay, 1999;; Froehlich e Rauber, sua previsão de universalização do

408
Idosos do Campo

atendimento aos idosos, foi implanta- renda dos idosos. Estão afetan-
do um sistema de aposentadoria rural, do a composição dos arranjos
incluindo trabalhadores formais e in- familiares, a estrutura produtiva
formais, com efetiva aplicação a par- e a economia familiar rural. Fa-
tir de 1992, com as seguintes normas mílias com três ou mais gerações
(Delgado, 2004): têm crescido no meio rural bra-
sileiro. Uma outra consequência
a) equiparação de condições de é o maior empoderamento do
acesso para homens e mulheres;; idoso dentro da sua família, em
b) redução do limite de idade particular das mulheres. O pa-
para aposentadoria por idade pel tradicional do idoso mudou
(60 anos para homens e 55 anos de dependente para provedor.
para mulheres);; As mulheres foram as maio-
c) introdução de um piso de apo-
sentadoria e pensões em um sa-
res beneficiárias dos avanços
na seguridade social. (Beltrão, I
lário mínimo. Camarano e Mello, 2004, p. 1)

Este novo sistema teve profundo


impacto na situação econômica dos A vida do idoso do
idosos rurais e de suas famílias. A in- campo de hoje
clusão dos trabalhadores informais
ampliou rapidamente a abrangência do Cabe, de novo, destacar as diferen-
benefício no meio rural, levando algu- ças que existem dentro desta popula-
ma forma de benefício a mais de 80% ção. Uma destas múltiplas facetas é o
da população idosa rural (Delgado, fato de que cada vez mais vivem no
2004). Além da diminuição da pobreza campo idosos que não estão envolvi-
e da pobreza extrema entre os idosos e dos com a agricultura, seguindo uma
de uma maior igualdade entre homens tendência que pode ser observada tam-
e mulheres, por meio das aposentado- bém em outros países (Delgado, 2004;;
rias, pensões e benefícios, chegaram às Anjos e Caldas, 2005).
mãos dos idosos recursos financeiros Outro aspecto importante é que o
que revitalizaram a agricultura fami- processo do envelhecimento popula-
liar. Em mais de 40% das proprieda- cional também está presente no cam-
des rurais combinaram-se a figura do po. Mesmo que, no campo, a queda da
aposentado com a do responsável pelo taxa de natalidade tenha acontecido
estabelecimento rural. Desta forma, o mais tarde e de modo menos intenso
seguro previdenciário se tornou o prin- do que no contexto urbano, e mesmo
cipal instrumento de suporte da polí- com condições de vida em geral mais
tica agrária para apoiar a agricultura precárias, o número de pessoas idosas
familiar (ibid.) e muito idosas está aumentando rapi-
damente também no meio rural. Es-
[...] os benefícios rurais estão tudos sobre a situação de saúde dos
desempenhando um papel im- muito idosos do campo revelam que o
portante na redução da pobreza perfil das doenças remete às condições
e na melhoria da distribuição de de vida e de trabalho do campo, sendo

409
Dicionário da Educação do Campo

o reumatismo um dos mais mencio- balho pode assumir diferentes signifi-


nados (Morais, Rodrigues e Gerhardt, cados, especialmente para as mulheres
2008). Um dos desafios em relação a idosas: sofrimento, orgulho, submis-
este grupo são os cuidados geralmente são, participação social, aprendizagem.
necessários na idade avançada. Como Representa, porém, principalmente, a
são normalmente as mulheres que resistência à velhice e às imagens nega-
cuidam dos idosos, isso complica a tivas da mesma. Trabalhando, a pessoa
situação onde o êxodo rural deixou uma idosa confirma ainda sua presença nes-
população masculinizada e envelhecida, te mundo;; porém, nem sempre existe
sobrecarregando as remanescentes. espaço para seus conhecimentos, sua
Apesar de muitas mudanças nas úl- experiência e sua vontade de autorrea-
timas décadas e considerando as dife- lização (Machado et al., 2006).
renças existentes entre elas, podemos A religiosidade faz parte do coti-
confirmar ainda alguns aspectos impor-
diano de grande parte dos idosos do
tantes da vida dos idosos do campo. O
campo, que mantêm suas crenças, seus
primeiro é a relação do idoso do campo
valores pessoais, sua espiritualidade,
com o trabalho. De fato, o trabalho é
um fator importante de identificação sua cultura. Esta manutenção da reli-
e constituição da pessoa, envolvendo giosidade pode ser interpretada como
relações com a sociedade, relações com resposta à incapacidade de lidar com
o ambiente e relações consigo mesmo. questões penosas, como sofrimento,
Em estudos qualitativos sobre a iden- fracasso, dor e morte. Pode, também,
tificação do idoso do campo com seu ser vista como a disposição para o mis-
trabalho, estas relações ficam evidentes terioso, o sobrenatural, a fé na vida
(Machado et al., 2006), e são confirma- humana (Sommerhalder e Goldstein,
das por dados estatísticos que demons- 2006). Assim, os idosos podem tornar
tram que a grande maioria dos idosos -se testemunhas de um tipo de vida
do campo, mesmo aposentados, con- movido por uma certa espiritualidade,
tinua trabalhando (Beltrão, Camarano ligada à sua cultura, ao seu trabalho, à
e Mello, 2004). Neste contexto, o tra- sua vida.

Notas
1
Para maiores detalhes sobre o envelhecimento biológico, ver, por exemplo, Hayflick, 1997
e Jeckel-Neto, 2006.
2
Para esta pesquisa, foram entrevistadas 1.608 pessoas entre 16 e 59 anos, e 2.136 pessoas
com 60 anos e mais, escolhidas por amostra probabilística em 204 municípios de todas as
regiões do Brasil. Desta forma, trata-se de uma das poucas grandes pesquisas representati-
vas sobre os idosos no Brasil. Ela foi realizada pela Fundação Perseu Abramo, em parceria
com o Serviço Social do Comércio (Sesc) de São Paulo, e os seus resultados foram publica-
dos e analisados por especialistas em Neri, 2007.

Para saber mais


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INDÚSTRIA CULTURAL E EDUCAÇÃO


Manoel Dourado Bastos
Miguel Enrique Stedile
Rafael Litvin Villas Bôas
De acordo com Theodor Adorno, Estados Unidos, por conta da ascensão
em ensaio de 1967, a expressão “indús- de Hitler ao poder em 1933. Confron-
tria cultural” (IC) foi utilizada pela pri- tados com a vitória da revolução na
meira vez na obra Dialética do esclareci- Rússia, com as derrotas das revoluções
mento, escrita por ele e Max Horkheimer na Alemanha e na Hungria, e com a as-
e publicada em 1947. Naquele ensaio, censão do fascismo e do nazismo ao
intitulado “Résumé sobre indústria cul- poder na Itália e na Alemanha, os auto-
tural”, ele comenta que, nos rascunhos res se perguntaram: por que, tendo as
do livro, o termo por eles utilizado era condições técnicas para a emancipação,
“cultura de massas”, mas eles optaram o indivíduo não o faz?
por substituí-lo por “indústria cultu- No livro, o capítulo “A indústria cul-
ral”, para desligá-lo “desde o início do tural: o esclarecimento como mistifica-
sentido cômodo dado por seus defen- ção das massas” busca uma resposta para
sores: o de que se trata de algo como essa questão, a partir de uma ampla argu-
uma cultura que brota espontaneamen- mentação sobre a forma de operação e as
te das próprias massas, da forma que consequências da indústria cultural. Com
assumiria, atualmente, a arte popular” base no argumento dos autores, podemos
(Adorno, 2001, p. 21). reconhecer que a IC é uma dinâmica ca-
Professores atuantes na Univer- racterística do novo momento histórico
sidade de Frankfurt, na Alemanha, gerado pelo declínio da hegemonia ingle-
Adorno e Horkheimer concluíram o sa, pelo aparecimento da grande empresa
livro quando estavam exilados nos capitalista, pelo início da fase imperialista

412
Indústria Cultural e Educação

do capitalismo e por uma nova organiza- a IC como um aparelho que dissemina


ção do capital financeiro. e consolida a pedagogia do consumo (o ca-
Ou seja, tratava-se do processo de ráter publicitário da cultura).
concentração e centralização de capital A submissão absoluta de arte, cul-
chamado por diferentes correntes mar- tura e diversão aos parâmetros da dinâ-
xistas de “capitalismo monopolista”. mica da troca capitalista de mercado-
Portanto, a IC se consolidou historica- rias depende de uma compreensão de
mente entre o final do século XIX e o que a determinação da superestrutura
início do século XX, com o desenvolvi- ideológica pela base econômica define-
mento do modelo fordista de produção se pelas contradições entre forças pro-
e os novos termos de extração de mais- dutivas e relações de produção, confor-
valia e acumulação de capital. me as afirmações de Karl Marx (2003)
O principal aspecto da IC está na no “Prefácio de 1859” à Contribuição à
articulação mercadológica entre cultu- crítica da economia política. Seguindo os
argumentos de Adorno e Horkheimer,
I
ra, arte e divertimento tendo em vista a
perpetuação da dominação do sistema podemos afirmar que a IC é uma re-
produtivo sobre o trabalhador também dução imediata e absoluta da superes-
em seu tempo livre. “A diversão é o trutura ideológica aos fundamentos
prolongamento do trabalho sob o capi- da base econômica pelos termos do
talismo tardio” (Adorno, 2001, p. 33). valor de troca. Tendo isso em vista, a
Em outros termos, trata-se do feti- compreensão atual do conceito de in-
chismo da mercadoria encobrindo os dústria cultural exige necessariamen-
fundamentos da extração de mais-valia te sua articulação com o conceito de
no capitalismo monopolista. Ao con- HEGEMONIA. São conceitos que se articu-
solidar a diversão como mercadoria, a lam e que se sustentam um ao outro, de
IC assenta os termos da dominação forma complementar.
social do capitalismo no século XX. A utilização política da categoria
É preciso levar em conta o caráter “hegemonia” remonta a uma apropria-
histórico do estilo algo incisivo e fata- ção do termo militar pela Revolução
lista de Adorno, obviamente justificável Russa, reelaborado conceitualmente por
pelo período de perspectiva totalitária Antonio Gramsci. Da mesma forma
tão evidente para ele: a vitória dos alia- que Adorno, a motivação de Gramsci
dos contra o Eixo na Segunda Guerra era entender o fracasso das revoluções
Mundial, longe de anunciar a liberdade, na Alemanha e na Itália, e a ascensão
expunha a nova configuração da domi- do nazifascismo como movimento po-
nação: a da mercantilização da vida, dos lítico com adesão das massas operárias
sentidos e sentimentos, sob a fachada e camponesas. Assim como os intelec-
da democracia liberal. Observando aí tuais alemães, Antonio Gramsci de-
um contexto de dominação totalitária, senvolveu seu conceito de hegemonia
Adorno não reconhece nenhuma bre- com base nos mesmos pressupostos de
cha na diversão. De qualquer modo, Marx a respeito da determinação da su-
reconhecendo que a diversão não é um perestrutura pela base.
espaço fechado em favor do capital, Assim, hegemonia é, para Gramsci,
devemos considerar tais argumentos a capacidade de direção de uma classe
como fundamentais para compreender sobre as demais, por meio da coerção

413
Dicionário da Educação do Campo

(força) e do consentimento (ideias). E passivos, fabricando e estimulando um


é na esfera da sociedade civil que se en- desejo pelo consumo aparentemente de-
contram os aparelhos privados de he- mocrático, como se estivesse acessível a
gemonia, responsáveis por construírem todas as classes, quando, na verdade, é
consensos e naturalizarem as relações inacessível para a maior parte da popu-
de dominação de uma classe sobre as lação. Os produtos da IC são carrega-
demais. É neste campo que atuam tanto dos de valores e mensagens que reafir-
a educação quanto a indústria cultural. mam a necessidade e o funcionamento
Partindo disto, Raymond Williams do sistema capitalista, ao mesmo tempo
(1979) observa que o conceito de he- que estimulam permanentemente a sa-
gemonia inclui e ultrapassa o conceito tisfação pelo consumo de mercadorias
de “cultura”. Isso porque compreende que não correspondem à satisfação das
que na cultura devem ser reconhecidas necessidades básicas de sobrevivência
as formas de domínio e subordinação (casa, comida, escola etc.). É uma es-
presentes numa sociedade dividida em tratégia engenhosa de articulação entre
classes. Assim, hegemonia é compreen- coerção e consentimento, na medida
dida como todo um conjunto de práti- em que o indivíduo (ou mesmo classes
cas e expectativas sobre a totalidade da inteiras) se reconhece naquilo que, na
vida, um sistema vivido de significados verdade, lhe limita a autonomia.
e valores – constitutivo e constituidor. Segundo Iná Camargo Costa (2006,
Conforma, assim, um senso da realida- p. 4-7), os valores básicos que per-
de para a maioria das pessoas na socie- meiam essas representações hegemôni-
dade, um senso de realidade absoluta cas são a livre iniciativa (à que chamam
(ibid., p. 113). liberdade), a concorrência (de todos
A construção desta “realidade ab- contra todos), e a ação individual (cada
soluta” ocorre por meio da ação de um por si) na busca desenfreada de suces-
aparelhos de hegemonia, como os meios de so e celebridade. O sucesso se traduz na
comunicação e as escolas, que padro- capacidade de consumo, igualmente
nizam o sentido e o papel de sujeitos desenfreado, e se confirma pela osten-
e grupos sociais na vida e na história. tação dos bens consumidos. Porém,
Esses aparelhos conferem coerência ao segundo Costa, a propriedade privada
pensamento e aos valores da classe do- dos meios de produção e a exploração
minante, pautados nos interesses dela e do trabalho alheio nunca aparecem
no estímulo ao consumo e ao mercado como o fundamento do espetáculo. Na
capitalista, com o objetivo de torná-los falta desta informação básica, a grande
os pensamentos e valores (a cultura) de massa dos consumidores da informa-
toda a sociedade. A concentração dos ção produzida pela indústria cultural
meios de comunicação de massa, que compra a mentira de que bastam a au-
permite a construção do caráter alie- toconfiança, o esforço individual e os
nador e opressivo da indústria cultural, próprios méritos para se qualificar à
criou um processo popular pelo seu al- corrida pelo sucesso (ibid.).
cance e um processo antipopular pelos Para isso, o conteúdo da produ-
interesses a que presta conta. ção cultural, mesmo quando apresenta
A ação da IC procura converter aspectos particulares da organização
toda a população em consumidores social capitalista, torna impossível, nos

414
Indústria Cultural e Educação

seus próprios termos, qualquer hipóte- importações;; no outro, davam-se dis-


se de argumentação crítica ao capitalis- putas e alianças na luta pela formação
mo como formação social. de uma classe trabalhadora organizada
No Brasil, a IC se desenvolveu e com força política.
como aparelho de hegemonia na dé- A partir do Golpe Militar de 1964,
cada de 1930. É a partir dessa década a IC como aparelho hegemônico ganha
que o sistema de radiodifusão ganha uma nova inflexão. O golpe é a resolu-
importância, com a compreensão de ção pela força do impasse estabelecido,
seu alto poder de propaganda pelo na sociedade do período, entre um pro-
governo Getúlio Vargas, que enalte- jeto nacional-desenvolvimentista com
cia suas ações, a partir de 1935, por brechas para o avanço de conquistas
meio da transmissão do Programa sociais e a manutenção da subordinação
Nacional (posterior mente, Hora do do país aos interesses do capital interna-
Brasil). Simultaneamente, o sistema de
radiodifusão foi ganhando corpo com
cional no contexto da Guerra Fria. I
A resolução pela força implicava
a instalação da Rádio Nacional, no
o sufocamento e a extinção imediata
Rio de Janeiro, em 1936, e da Rádio
dos movimentos sociais – em especial
Tupi, em São Paulo, no ano seguinte.
as Ligas Camponesas, alvo de primei-
Assim, programas musicais e de varie-
ra hora – e das experiências contra-
dades cumpriam papel semelhante ao
hegemônicas de educação popular em
da “propaganda política”, fossem seus
perspectiva emancipatória, que tra-
conteúdos pautados pela exaltação na-
balhavam de forma coesa e produti-
cional ou não.
va as esferas da cultura, da educação,
A organização desse aparato ra- da economia e da política, como, por
diofônico, atrelada aos diversos meios exemplo, a proposta da PEDAGOGIA
de diversão já difundidos nas décadas DO OPRIMIDO, eixo principal do Movi-
anteriores, estava diretamente relacio- mento de Cultura Popular de Pernam-
nada com os desdobramentos políticos buco (MCP), coordenado por Paulo
da época. A disputa hegemônica em Freire durante o governo estadual de
jogo na Revolução de 1930 e no golpe Miguel Arraes, e os Centros Populares
que instituiu o Estado Novo em 1937 de Cultura (CPCs), que se espalharam
estava pautada no pacto agroindustrial, por mais de doze capitais do país me-
ou seja, por um rearranjo pela manu- diante a parceria entre a União Nacio-
tenção do Brasil como país agroexpor- nal dos Estudantes (UNE) e artistas e
tador sem, contudo, que se colocassem movimentos sindicais e camponeses.
entraves à atividade industrial. Além disso, essa resolução exigia ainda
A contrapartida na luta de classes a subordinação e a aceitação de uma
se deu com a construção dos sindicatos nova etapa do ciclo de modernização
e a definição da Consolidação das Leis conservadora. Principalmente no cam-
do Trabalho (CLT). Assim, de um lado po, com o estímulo ao êxodo rural, o
estava a classe dominante, revigorada financiamento estatal à rápida mecani-
por um pacto político-econômico de zação das grandes propriedades, o uso
amplo alcance, aproveitando as crises intensivo de agrotóxicos (a REVOLUÇÃO
econômicas internacionais favoráveis VERDE), o pacto da classe dominante
ao mercado interno e à substituição de estabelecido na década de 1930 ganhou

415
Dicionário da Educação do Campo

novos contornos. Não à toa este pro- Nesse contexto, incluem-se ainda
cesso coincide com o fortalecimento a reforma universitária, a criação das
do mercado publicitário brasileiro, por disciplinas de Educação Moral e Cívi-
meio de altos investimentos na conso- ca e Estudos dos Problemas Brasilei-
lidação de um sistema de televisão de ros, e de programas como o Projeto
abrangência nacional. Todos estavam a Rondon – criado num seminário cha-
serviço da construção da identidade de mado “Educação e Segurança Nacio-
um país sem contradições, harmônico, nal” (!) – e o Movimento Brasileiro de
cordial, uma “potência em crescimen- Alfabetização (Mobral), que buscava
to”, à revelia do país real. contrapor-se à experiência de educa-
A presença da TV nos lares de ção popular e alfabetização do método
grande parte dos brasileiros, por todo Paulo Freire.
o território, estimulada a partir da dé- Assim, educação, comunicação e
cada de 1970 e alcançando seu ápice cultura estavam a serviço de um pro-
nas décadas seguintes, forjou uma jeto de destruição ou cooptação dos
imagem de país útil para o regime mi- projetos contra-hegemônicos anteriores
litar e eficiente para o cumprimento de ao golpe, mas estava a serviço, princi-
mais um ciclo de modernização con- palmente, da construção do ideário de
servadora. A promessa do país gran- um país-potência no qual a democracia
de, inserido no concerto das nações, seria garantida pelo acesso ao consumo,
não era sustentável diante do acirra- e não aos direitos.
mento da segregação sociorracial, e a Daí se explica a adesão acrítica da
contradição não tardou a se manifes- escola brasileira aos padrões hegemô-
tar por ocasião da crise do petróleo de nicos da indústria cultural. Após a var-
1973, que abalou as bases econômicas redura que a ditadura brasileira operou
do “milagre brasileiro”. sobre as propostas de educação po-
Movimento idêntico ocorreu na edu- pular que se pautavam pela formação
cação, especialmente por meio dos con- no sentido emancipatório, subjetivo,
vênios entre o Ministério da Educação coletivo e estrutural, o ímpeto mercan-
brasileiro e a Agência dos Estados Unidos til se fez presente no universo escolar,
para o Desenvolvimento Internacional mediante a enxurrada de metodologias
(Usaid, do inglês United States Agency for modernizantes, que tomavam por si-
International Development), os chamados nônimo “educação” e “capacitação
acordos MEC–Usaid. Estes tinham por técnica para o mercado de trabalho”.
objetivo implantar o modelo escolar norte- Gruschka ressalta que a chave de aná-
americano, desde o ensino primário ao lise dos vínculos entre a IC e a escola
universitário, da formação dos profes- não está primeiramente na questão do
sores ao material didático, com vista à ensino e da aprendizagem, mas na “sis-
educação tecnicista e às demandas do temática subsunção da educação à eco-
mercado. Destaque-se, desses convênios, nomia” (2008, p. 174). Segundo Pucci,
o acordo de 1966 entre a Usaid, o Minis-
tério da Agricultura brasileiro e o Con- [...] se analisada do ponto de
selho de Cooperação Técnica da Aliança vista do sistema, a indústria cul-
para o Progresso (Contap) para treina- tural é plenamente educativa, se
mento de técnicos rurais. preocupa com o enforme inte-

416
Indústria Cultural e Educação

gral da concepção de vida e do tra sensibilidades para o universo do


comportamento moral dos ho- consumo de imagens e mercadorias.
mens no mundo de hoje;; se vis- Sem formação que lhes permita a crí-
ta a partir dos pressupostos da tica aos padrões estéticos hegemôni-
teoria crítica, a indústria cultural cos, estudantes e professores ficam
é marcadamente deformativa. suscetíveis a toda ordem de impulsos
(2003, p. 17). e manobras de legitimação da ordem
da classe dominante.
A relação alienada com os meios Tal como em outras linguagens – a
de comunicação hegemônicos é con- literatura, por exemplo –, somos educa-
sequência do processo de inserção dos para ver o conteúdo de uma obra,
na modernidade pela via exclusiva e não a forma como este conteúdo é
do consumo, mediante o desconhe- construído e representado. É na forma,
cimento generalizado dos modos de
produção, das técnicas e das intenções
na maneira como o conteúdo da obra
de arte é organizado, que se manifesta o
I
políticas dos meios de comunicação conteúdo social em que ela foi gerada.
de massa. Portanto, a análise da obra de arte pres-
A presença mais visível da IC em supõe necessariamente desmontá-la de
sala de aula pode ser aferida pelo uso sua aparência, compreendendo as im-
do audiovisual como material pedagó- plicações sociais e históricas que deter-
gico. Ferramenta essencial de políticas minam sua forma, pressupõe analisá-la
“modernizantes”, como a educação à não pelo período histórico a que ela se
distância, ou simplesmente um verda- refere, mas pelo período histórico em
deiro “alívio” para ocupar o planeja- que ela foi produzida.
mento de aulas do educador submetido Para além do audiovisual, a IC se
a cargas horárias excessivas, o uso do faz presente na escola por outros meios,
audiovisual tem sido estimulado per- por exemplo, o negócio dos materiais
manentemente por meio de canais de pedagógico-didáticos, sujeito a forte
televisão públicos ou privados voltados lobby das editoras empenhadas na ven-
para a educação, ou, ainda, por variadas da de seus produtos, cuja consequên-
distribuições de kits, de origem tam- cia, para os estudantes, é, segundo
bém pública ou privada. Medrani e Valentim, “o reforçamento
A escola brasileira não considera positivo para o consumismo desenfrea-
a linguagem audiovisual como uma do de mercadorias capazes de promo-
dimensão necessária de letramento, ver a identificação e adequação sociais”
que carece de aprendizado dos códi- (2002, p. 79), em detrimento da análi-
gos, dos procedimentos técnicos de se crítica da função do material didá-
edição, dos planos. O status do audio- tico em si.
visual na escola é de suporte parale- Pelo viés da Educação do Campo, a
lo ao ofício de professor, que pode contestação do modo de produção do
substituir aulas vagas, complementar agronegócio, como forma de combate
explicações e suprir a demanda por à matriz hegemônica da produção de
entretenimento (Pranke, 2011). A IC é alimentos e do uso da terra como mer-
legitimada por supostamente cum- cadoria, encontra na esfera da cultura
prir papel formativo, enquanto ades- seu correspondente na demanda pelo

417
Dicionário da Educação do Campo

combate às formas da indústria cultu- processo cumulativo gera novos parâ-


ral, conforme sinaliza Damasceno: metros de fruição e de consciência dos
dilemas da experiência brasileira, peri-
O agronegócio está para a agri- férica, colonizada, contraditória. A edu-
cultura camponesa assim como a cação para percepção das estruturais
indústria cultural está para a cul- formais pode se contrapor à influên-
tura popular. Tanto agronegócio cia inconsciente da ideologia.
quanto indústria cultural desen- A educação brasileira deve, por-
volvem-se a partir da exploração tanto, proporcionar meios críticos de
e empobrecimento dos valores percepção da mediação que a indústria
culturais e dos bens naturais, e, cultural estabelece entre indivíduo e
assim, vão eliminando todas as mundo, entre vida e realidade. A rei-
formas de sociabilidades possi- ficação da experiência social e a mer-
bilitadoras de uma convivência cantilização da vida encontram na IC
harmoniosa e justa entre seres um dos pressupostos do modo de pro-
humanos e natureza. (S.d., p. 6) dução hegemônico. A formação, nor-
teada pela chave emancipatória, deve
Agronegócio e IC são, portanto, não apenas reconhecer o problema,
partes indissociáveis do modo de pro- mas encontrar os termos contraditórios
dução hegemônico. da questão que permitam sua superação.
No campo das providências, o pri- Nesse aspecto, os aparelhos de educação
meiro passo é reconhecer a IC e suas devem ir além da condição de oferta de
formas como um problema a ser pen- acesso aos bens culturais, posição que
sado e combatido. A formação em sen- gira em falso sobre o eixo da ideologia, e
tido emancipatório pressupõe um pro- transformar esses aparelhos em espaços
cesso de acumulação estética, a partir de produção cultural, de socialização
do legado artístico que formalizou as dos meios de produção, e de compreen-
contradições do processo social. Esse são crítica de nossos dilemas.

Para saber mais


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I
WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

INFÂNCIA DO CAMPO
Ana Paula Soares da Silva
Eliana da Silva Felipe
Márcia Mara Ramos

Na última década, a infância dei- de categorias generalizantes (crianças


xou de ser tratada como um conceito pobres e ricas, africanas e europeias,
singular. Decorre daí a exigência de brancas e negras, do campo e da ci-
falar de infâncias e não da infância, dade, entre outras), embora limitante,
reconhecendo-se a pluralidade de prá- serve para demarcar a existência de
ticas culturais e de modos de vida que condições materiais e simbólicas que
configuram a vida das crianças em dife- diferenciam as crianças segundo a clas-
rentes contextos sociais, geográficos e se social, a etnia, a raça e o gênero a
políticos. Essa forma de compreensão que pertencem e a região do mundo
da infância aponta para a impossibili- onde vivem. Portanto, as diferenças
dade de estabelecermos uma trajetória estruturais incidem diretamente na di-
“ideal-típica” capaz de englobar todas ferença cultural das crianças.
as infâncias, de dissolvê-las em enqua- Feitos estes reparos, pode-se afir-
dramentos conceituais à margem dos mar que as crianças do campo inscre-
contextos sociais e culturais em que se vem-se, como todas as crianças, em
encontram e das transações/relações relações sociais complexas, na medida
que realizam. Como parte do mesmo em que participam da simultaneidade
movimento, reconhece-se que o uso de tempos sociais que constitui o

419
Dicionário da Educação do Campo

mundo global. Elas são sujeitos que Adolescente, são marcos para a inser-
atuam no mundo e são afetados por ção das crianças brasileiras no mundo
ele. Assim, falar de infância do campo, dos direitos humanos, num movimen-
das crianças concretas que o habitam, to de reconhecimento daquilo que as
é inexoravelmente falar de sujeitos do iguala em suas condições gerais. Ao
mundo, integrados a lugares, e sujeitos mesmo tempo, legislações específicas,
que a globalização uniu, partilhando materializadas em leis, decretos e reso-
de seus dramas e tragédias, realidades luções voltados a grupos particulares,
e fantasias. na maioria das vezes resultado da luta
Contraditoriamente, elas estão incluí- organizada desses mesmos grupos,
das e excluídas, uma vez que são parte de compõem esse sistema de proteção com
grupos socioculturais submetidos a vistas ao combate às desigualdades que
processos distintos de acesso a bens caracterizam a realidade das crianças.
materiais e imateriais, e implicados em Esse sistema orienta-se pelo princípio
lógicas de diferenciação atravessadas da equidade e da justiça social, e pre-
por relações de poder e dominação. tende promover a visibilidade dos gru-
pos de crianças que se diferenciam por
suas filiações e identidades territoriais,
Os direitos da criança étnico-raciais, religiosas, linguísticas e
de gênero.
A distribuição desigual da riqueza
material e simbólica produz um quadro Assim, o processo de construção
de resultados sociais e educacionais ex- da cidadania das crianças do campo é
tremamente desfavorável para as crian- construído no embate entre a realidade
ças do campo. plural, geralmente desigual, e os instru-
A violação de direitos sociais põe mentos legais conquistados e disponí-
em questão uma legislação avançada, veis para as crianças filhas de agriculto-
mas ainda de baixa efetividade. Essa le- res familiares, extrativistas, pescadores
gislação, contudo, serve de instrumen- artesanais, ribeirinhos, assentados
to de luta em favor das crianças como e acampados da Reforma Agrária,
sujeitos de direito, e tem se materializa- trabalhadores sem-terra, quilombolas
do no campo sob várias perspectivas. e caiçaras.
Como todas as crianças, os meninos A desigualdade no que se refere à
e meninas do campo são juridicamente efetivação de direitos é um grande obs-
constituídos como sujeitos de direitos, táculo ao processo de democratização
o que equivale a dizer que possuem to- do país. Para a maioria das crianças
dos os direitos humanos, fundamentais que habitam o campo, faltam alguns
para qualquer pessoa, que devem ser elementos básicos, porém essenciais,
reconhecidos e efetivados pela socie- ao projeto moderno. A educação, por
dade e pelo Estado. Direito à vida, ao exemplo, é dessas ausências mais pro-
lazer, à educação, à saúde, à integridade fundas. A escola “rural”, quando exis-
física e moral, à convivência familiar e te, acontece com uma infraestrutura
comunitária, por exemplo, compõem precária e uma visível desqualifica-
o rol dos chamados direitos de proteção ção profissional, derivada claramente
à infância. Garantidos na Constituição do abandono do Estado, com pouco
Federal e no Estatuto da Criança e do ou nenhum investimento e definição

420
Infância do Campo

de políticas públicas. Esses processos fantil no cotidiano e nos processos de


recriam as imagens hegemônicas de decisão sobre suas vidas.
“campo e sua ruralidade” como lugar No caso das crianças do campo, se
de atraso e de invisibilidade dos su- as violações de grande parte dos direi-
jeitos, e fortalece a ideia de desenvol- tos de proteção são gritantes, o mes-
vimento vinculada à cidade. Quando mo não pode ser dito, a priori, sobre
referido ao campo, o desenvolvimento os direitos de participação, dado que os
aparece atrelado ao agronegócio, con- processos de socialização das crianças
trapondo-se às possibilidades da agri- são heterogêneos. As crianças do cam-
cultura familiar e camponesa. po se integram às práticas familiares e
Se os direitos sociais são diaria- cotidianas de modos diferenciados. A
mente violados nas mais diversas áreas, incursão nas brincadeiras das crian-
fato verificado pelas estatísticas ofi- ças do campo demonstra como essas
ciais, mais difícil ainda de concretizar
são os chamados direitos de participação.
práticas perpassam suas formulações
de mundo, as quais revelam que a re-
I
Esses direitos, que aparecem nas legis- lação com a terra, o rio, a produção de
lações de modo menos enfático do que alimentos e a criação de animais, por
os direitos de proteção, inscrevem-se exemplo, são vivenciadas pelas crianças
no processo histórico de socialização na condição de partícipes de processos
do poder nas sociedades ocidentais, de produção e manutenção da vida
e compõem um dos últimos direitos e da comunidade.
conquistados pelas crianças. Este fato Essa participação social e cotidia-
expressa um componente pouco visi- na se dá de modo diferenciado para as
bilizado nas discussões das desigual- crianças do campo;; no caso daquelas
dades e dos processos de dominação moradoras nos territórios rurais em
que fundam a sociedade ocidental: a que há organização coletiva, por exem-
dominação etária ou geracional. So- plo, em torno dos movimentos sociais,
mada às dominações de classe, de gêne- verificam-se práticas que efetivamente
ro, étnico-raciais, linguística e religio- promovem formas e criam situações,
sa, a dominação etária é caracterizada atividades e instrumentos para que a
por uma tradição que: valoriza e se or- criança exerça sua participação política
ganiza em torno daquele que produz na sua comunidade. A possibilidade ou
economicamente;; educa e disciplina não do exercício dos direitos de parti-
por meio de práticas punitivas;; estabe- cipação evidencia o lugar e os papéis
lece a autoridade pelo uso da força fí- que são destinados e ocupados pelas
sica;; e destina à criança o lugar do su- crianças do campo. Avançar as legisla-
balterno, reduzindo-a a objeto da ação ções é processo importante, mas mais
dos adultos. importante ainda é construir relações
Os direitos de participação efeti- cotidianas com as crianças que não as
vam-se nas práticas diárias quando as excluam da construção social como su-
infâncias são ouvidas sobre seus de- jeitos históricos e de direitos.
sejos, suas opiniões e seus cotidianos. Um exemplo são as crianças Sem
Existem hoje vários programas volta- Terrinha do Movimento dos Tra-
dos às crianças que intencionalmente balhadores Rurais Sem Terra (MST),
buscam promover a participação in- cuja identidade vai sendo forjada e

421
Dicionário da Educação do Campo

construída na luta da sua própria orga- de de parcelas significativas de crianças


nização: a luta pelo direito de ter escola do campo.
no acampamento ou assentamento, de Além do direito de participação po-
participar dos encontros e dos núcleos lítica e cultural, o direito à brincadei-
infantis;; pensados para as próprias ra é visto como aquele que permite e
crianças, como também a sua auto- garante à criança o tempo da infância.
organização a partir da coletividade. Os É importante compreender como esse
encontros estaduais de Sem Terrinha tempo da infância vem sendo vivido
até 1996 levavam o nome de Congresso pelas crianças e como se efetiva em
Infanto-Juvenil, mas foi no primeiro suas práticas o direito de brincar.
Congresso Infantil Estadual de São O direito de brincar é um direito
Paulo, com o lema “Reforma Agrária, universal. Entretanto, há formas dis-
uma luta de todos e dos Sem Terrinha tintas de exercê-lo, de efetivá-lo, para o
também”, e depois do “Manifesto dos que concorre a materialidade do lugar
Sem Terrinha ao povo brasileiro”, que e, por sua vez, os significados e valo-
as crianças passaram a assumir o nome res que ele assume. Nas suas formas de
de Sem Terrinha. A partir do ano de brincar, a historicidade das crianças se
1997, em todo o Brasil, os encontros re- faz constitutiva desse fazer.
gionais e estaduais passaram a se chamar No campo, o brincar articula tem-
Encontro e Jornada dos Sem Terrinha. pos distintos, formas de vida que com-
O espaço de coletividade das crian- binam a novidade e a tradição. Nos
ças do campo se constitui na partici- lugares em que a espacialidade dissol-
pação no trabalho, nas atividades po- veu, pelos equipamentos disponíveis
líticas, culturais e religiosas, na criação (rádio, DVD, televisão, entre outros),
de espaços lúdicos, na luta pelos direi- as fronteiras campo–cidade, formas de
tos que têm significação para a comu- sociabilidade midiática são apropria-
nidade e para as crianças, intervindo das. Contudo, elas não substituem as
do jeito delas e com suas presenças nas formas de sociabilidade que requerem
atividades que compartilham com os a presença e o encontro com o outro
adultos. Do coletivo em que as crian- nos quintais, nos espaços de produção
ças estão inseridas e das relações que da vida em comum.
esse coletivo estabelece socialmente, Nas muitas variações de brinca-
resultam aprendizagens que fortalecem deiras tradicionais, como pique (pique
a consciência do direito à vida, ao tra- alto, cola, esconde, lata), amarelinha,
balho, à escola, à participação política e bandeirinha, queimada, bola de gude,
do direito de viver plena e dignamente bola de meia, passa anel, cai no poço,
o tempo da infância. cabo de guerra, entre outras, atualizam-
Certamente, tal experiência é muito se formas tradicionais de brincar, vin-
mais densa e profunda quando as crian- culando a criança com o seu grupo, sua
ças estão integradas a movimentos so- comunidade e humanidade, ao mesmo
ciais, especialmente aqueles que reco- tempo que produzem novos significa-
nhecem a importância da sua inserção dos, compartilhados pelas crianças su-
política, lúdica e cultural. A participação jeitos de brincadeiras e de história.
na vida pública e a sua inserção na es- Da mesma forma, modos contem-
fera política são marcas de singularida- porâneos de entretenimento dos quais

422
Infância do Campo

as crianças participam, como os que Considerando o estágio de desen-


incluem desenhos animados, seriados, volvimento econômico e social da
telenovelas, musicais, entre outros, não maioria da população que vive no
anulam formas da tradição, passadas campo, uma dimensão que adquire o
de geração a geração, especialmente no brincar é o seu vínculo com a terra e
campo, como a contação de histórias. com a água. Os recursos naturais são
Adultos contam histórias fantásticas investidos na prática de brincar porque
para crianças, crianças contam para integram a paisagem material do cam-
seus grupos etários e, nesta experiên- po e são sua feição predominante, da
cia, partilham significados da cultura qual os sujeitos se apropriam, material
local. O conceito de campo integrado a e simbolicamente, na medida em que
práticas e símbolos do mundo global significam, de modo particular, a sua
é importante para retirá-lo da esfera relação com ela. Nessa configuração, a
do exótico, supostamente protegido
por uma unidade cultural articulada
cachoeira, o riacho, a mina d’água pos-
sibilitam a criação de espaços lúdicos
I
pela força da tradição. Contudo, se que podem ser experimentados de di-
não há isolamento, não há, igualmen- ferentes formas por crianças e adultos.
te, formas de vida indiferenciadas, dis- O barro permite criar/representar per-
solvidas na grande “aldeia global”. Na sonagens, brinquedos, alimentos, ani-
relação mundo–lugar, global–especí- mais;; o milharal permite que as famílias
fico, há uma dialética de constituição camponesas se reúnam na experiência
do pensar, do fazer e do brincar, que do trabalho coletivo e que as crianças
fazem de todas as realidades, realida- realizem atividades simbólicas e ma-
des complexas. teriais com o produto da terra, trans-
formando o imaginário em invenção (o
A relação com o brincar é um ele-
brinquedo) e a invenção em imaginação,
mento que permite estabelecer distin-
pela experiência do brincar. Elos que a
ções, situar os sujeitos no mundo, e
modernidade dissolveu, como o vínculo
por isso pode-se dizer que, em relação
entre trabalho e ludicidade, ludicidade
às crianças do campo, a brincadeira se
e criação/experimentação, mantêm-se
realiza, também, com o que elas produ-
atados nos lugares em que o projeto ci-
zem com os recursos disponíveis, pro-
vilizatório por ela idealizado se realizou
cesso que liga a brincadeira à criação.
apenas parcialmente.
Isso se dá no interior de uma materiali-
dade social e cultural que não pode ser
secundarizada. É fato que a crescente A construção da identidade
industrialização do brinquedo e o con- e da diferença
sumo de brinquedos que dispensam a
atividade artesanal reduzem a possibili- No campo, a criança ocupa espaços
dade da experiência da invenção. É fato partilhados e constrói sua referência
ainda que, quanto maior o poder de e identidade na relação com as ativi-
consumo, indissociável do aumento dades de seu grupo social. As formas
da renda, maior é a procura pelo brin- de sociabilidade resultam dos modos de
quedo pronto, que adquire valor de produção dessa relação, que, pela con-
superioridade sobre aquilo que se faz vivência densa, não implicam a sepa-
com as próprias mãos. ração entre adultos e crianças. Se não

423
Dicionário da Educação do Campo

é possível reparti-las e reuni-las em tórico-cultural. Essa produção é inse-


espaços específicos, isoladas do mun- parável do mundo material e cultural,
do adulto, por sua vez não estão in- das relações sociais, das formas de
terditados a elas os espaços que lhes sociabilidade predominantes, enfim,
permitem praticar a sua alteridade do estágio de desenvolvimento social,
com o seu grupo geracional. Esses econômico e tecnológico da sociedade
espaços não são dados, são produ- em que vivem.
zidos pelas crianças, nas demar- Considerando-se as formas estru-
cações do território que elas próprias turais de formação do campo brasilei-
estabelecem e conquistam. As crian- ro, pode-se falar de infância do campo
ças podem ser atuantes na elaboração para configurar uma identidade que é
de práticas, regras e conhecimen- comum a todas as crianças, sejam elas
tos de que se apropriam em diferen- de assentamento, Sem Terrinha, ribei-
tes contextos sociais, de forma que rinhas, quilombolas, extrativistas, entre
a participação comunitária e a par- outras. A desigualdade é uma faceta
ticipação nos grupos de idade não deste comum que partilham;; a igual-
se opõem: complementam-se. Em dade de direitos é o horizonte ético-
quaisquer das possibilidades, é neces- social de transformação.
sário garantir às crianças o direito de Sob a agenda da diferença cultural
elaborar e expressar a sua experiência que mobiliza o Ocidente, a desigual-
no mundo. A autonomia para organi- dade perde a centralidade como con-
zar processos e gerir conflitos é im- dição humana que precisa ser superada
portante, especialmente na atividade quando a diferença se assenta na se-
de brincar. paração entre o material (a economia)
Esse horizonte deve ser consi- e o simbólico (a cultura). Assim sen-
derado como campo de lutas con- do, a política da diferença produz um
correntes. A brincadeira, as relações discurso despolitizador quando deixa
afetivo-familiares e a educação foram de reconhecer que as desigualdades
pautadas como direitos secundários materiais criam diferenças, da mesma
no processo histórico de formação forma que as diferenças culturais le-
da infância em geral, e da infância do gitimam as desigualdades e ocultam
campo em particular. Para as crianças o seu processo de produção. A ideia
pobres, ao longo da formação da so- essencializada da diferença, que retira
ciedade brasileira, a responsabilidade de sua problemática a sua dimensão
de contribuir no trabalho para a ga- histórica e social, é um obstáculo à
rantia da sobrevivência familiar foi transformação das condições assimé-
incorporada desde a mais tenra idade. tricas e hierárquicas em que vivem
Não há como dissociar a história da os diferentes.
infância do silêncio e da repressão, No horizonte de um projeto his-
da violência e do trabalho produtivo tórico emancipatório, a ideia de in-
precoce, da interdição do direito de fâncias do campo, em vez de infância
brincar, criar e conhecer. do campo, pode alargar o horizonte
Em tempos de menor ou maior ético-político pelo qual as identifica-
afirmação de direitos, as crianças en- ções sociais são apreendidas. Articu-
contraram margens de produção his- lando num mesmo conjunto a materia-

424
Infância do Campo

lidade da vida, a cultura e a identidade, sa a alargar o sentido da experiência


a diversidade deixa de ser a força que humana no mundo, da qual as crianças
atua para legitimar a exclusão;; ela pas- do campo são parte.

Para saber mais


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Dicionário da Educação do Campo

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INTELECTUAIS COLETIVOS DE CLASSE


Roberto Leher
Vania Cardoso da Motta

A expressão “intelectuais coletivos expansão da própria classe” (ibid., p. 15);;


de classe” não foi desenvolvida como 3) a abordagem gramsciana do intelec-
conceito, nem pretendemos fazê-lo no tual não é subjetiva, mas sim, coletiva:
âmbito deste verbete. No entanto, enten- são os intelectuais como massa – e não
demos que é possível buscar elementos como indivíduos – cuja função é produ-
para discutirmos essa noção conside- zir e difundir ideologias que o interes-
rando os seguintes aspectos contidos no sam;; 4) o intelectual supõe a função de
conceito de intelectual de Gramsci: 1) o hegemonia, tendo em vista o caráter
intelectual na sociedade moderna, bur- de classe e a perspectiva de organizar e
guesa, difere daquele tradicionalmente dirigir uma “vontade social coletiva”.
reconhecido como pessoa dotada de um Indagando se “os intelectuais são
nível cultural elevado, do “tipo tradicio- um grupo autônomo e independente,
nal e vulgarizado do intelectual [...] dado ou cada grupo social tem uma sua pró-
pelo literato, pelo filósofo, pelo artista”, pria categoria especializada de intelec-
que se veem como os “‘verdadeiros’ in- tuais” (Gramsci, 2002a, p. 15), Gramsci
telectuais” (Gramsci, 2000a, p. 53);; 2) o amplia o conceito de intelectual de-
intelectual moderno está relacionado à monstrando sua função político-social,
capacidade de organizar e dirigir “a so- conservadora ou transformadora, num
ciedade em geral, em todo o seu comple- determinado bloco histórico (organi-
xo organismo de serviços, até o organis- cidade entre a estrutura e a superes-
mo estatal, tendo em vista a necessidade trutura de determinada formação
de criar as condições mais favoráveis à histórico-social.).

426
Intelectuais Coletivos de Classe

Gramsci compreende que qualquer artista, um homem de gosto, participa


grupo social que nasce de uma função de uma concepção do mundo, possui
essencial no âmbito da produção econô- uma linha consciente de conduta mo-
mica forma seu grupo orgânico e “cria ral” (ibid.). Nessa perspectiva, continua
para si [...] uma ou mais camadas de in- Gramsci, este homem “contribui assim
telectuais que lhe dão homogeneidade e para manter ou para modificar uma con-
consciência da própria função, não ape- cepção do mundo, isto é, para suscitar
nas no campo econômico, mas também novas maneiras de pensar” (ibid.).
no social e político” (2000a., p. 15). Outro erro metodológico pleno de
Ao recusar a identificação do inte- significado político é a dissociação das
lectual na sociedade burguesa com os atividades intelectuais do conjunto geral
intelectuais tradicionais, Gramsci criti- das relações sociais. Observa Gramsci
ca a concepção de intelectual como su- que, no mundo moderno, tendo em vis-
jeito altamente escolarizado. Por isso, o
erro metodológico de distinguir as ati-
ta o “sistema democrático-burocrático”
criado, foram elaboradas “imponentes
I
vidades intelectuais das atividades ma- massas”, mas “nem todas justificadas
nuais – “em qualquer trabalho físico, pelas necessidades sociais da produ-
mesmo no mais mecânico e degrada- ção”, e sim “pelas necessidades políti-
do, existe um mínimo de qualificação cas do grupo fundamental dominante”
técnica, isto é, um mínimo de atividade (Gramsci, 2000a, p. 22). Isto é, nem to-
intelectual criadora” (Gramsci, 2000a, dos estariam diretamente relacionados
p. 18) – tem enormes consequências às necessidades imediatas da dinâmica
políticas, pois, ao contrário da crença produtiva, mas comporiam outros se-
difundida pelos setores dominantes, tores relativos à reprodução social. Tal
os trabalhadores, individual e coletiva- colocação nos remete à afirmação ante-
mente, podem ser organizadores, diri- rior: “todos os homens são intelectuais”,
gentes e protagonistas da hegemonia seguida da frase: “mas nem todos os
dos subalternos: “Todos os homens homens têm na sociedade a função de
são intelectuais” (ibid.). Caso contrá- intelectuais” (ibid., p. 18).
rio, não poderia haver luta de classes Nesse sentido, “a relação dos inte-
protagonizada de modo autônomo lectuais com o mundo da produção não
pela classe trabalhadora. é imediata, mas ‘mediatizada’, em di-
Quando Gramsci afirma que não versos graus, por todo o tecido social,
existe o “gorila amestrado” de Taylor pelo conjunto das superestruturas, do
e que toda atividade manual possui in- qual os intelectuais são precisamente os
trinsecamente uma atividade intelectual ‘funcionários’” (Gramsci, 2000a, p. 20)
criadora ou que “não se pode separar ou os “‘prepostos’ do grupo dominante
o homo faber do homo sapiens” (Gramsci, para o exercício das funções subalternas
2000a, p. 53), ele não está se referindo da hegemonia social e do governo polí-
ao âmbito restrito da capacidade inte- tico” (ibid.). Isto é, os intelectuais têm
lectual que uma determinada atividade a “função organizativa da hegemonia
produtiva exige. Para o pensador sardo: social” (sociedade civil) e do “domínio
“Todo homem, fora de sua profissão, estatal” (sociedade política).
desenvolve uma atividade intelectual A burguesia nascente formou seus
qualquer, ou seja, é um ‘filósofo’, um grupos sociais fundamentais na produ-

427
Dicionário da Educação do Campo

ção, como também formou seus qua- fora, transformadora das relações ex-
dros de intelectuais “orgânicos” para ternas, desde aquela com a natureza e
operarem na sociedade política e na com os outros homens em vários ní-
sociedade civil, configurando o que se- veis, nos diversos círculos em que vive,
ria o bloco histórico burguês (unidade até a relação máxima, que abarca todo
entre o estrutural e o superestrutural o gênero humano” (ibid.).
ou ético-político: direção intelectual Parafraseando Gramsci, manter ou
e moral mais controle do aparato do modificar uma concepção do mundo,
Estado), além de desencadear mecanis- suscitar novas maneiras de pensar, trans-
mos voltados para cooptar os intelec- formar o mundo exterior e as relações
tuais tradicionais, isto é, aqueles per- gerais significa fortalecer e desenvolver
tencentes à velha sociedade. Discorre a si mesmo, mas também consolidar
Gramsci: “Uma das características mais uma vontade coletiva nacional-popular.
marcantes de todo grupo que se desen-
O conceito de “vontade coletiva
volve no sentido do domínio é sua luta
nacional-popular” ou “vontade social
pela assimilação e pela conquista ‘ide-
coletiva” de Gramsci está estreitamente
ológica’ dos intelectuais tradicionais”
ligado ao de “reforma intelectual e mo-
(Gramsci, 2000a, p. 17). Daí a tese de
ral”, ou seja, à questão da hegemonia,
que os intelectuais não são um grupo
da atividade prática, política, correspon-
social autônomo, pois, com graus dis-
dendo às necessidades objetivas históri-
tintos de autonomia, possuem a função
cas. Para Gramsci, “é preciso também
de produzir maior homogeneidade e
definir a vontade coletiva e a vontade
organicidade na classe a que se encon-
política em geral no sentido moderno,
tram vinculados por meio de sua pró-
‘a vontade como consciência operosa
pria hegemonia político-cultural.
da necessidade histórica’, como pro-
Ao introduzir seus estudos sobre a tagonista de um drama histórico real e
filosofia da práxis, Gramsci, no cader- efetivo” (Gramsci, 2000a, p. 18).
no 10 dos Cadernos do Cárcere, indagan-
Para ele, os fatos econômicos em
do sobre o que é o homem, discorre
si não são o “máximo fator da histó-
que o homem deve ser compreendido
ria”, e sim o homem. Mas os homens
“como um bloco histórico de elemen-
tos puramente subjetivos e individuais em relação entre si, a “sociedade dos
e de elementos de massa e objetivos ou homens”, desenvolvendo nessa relação
materiais” (Gramsci, 1999, p. 406) re- que se estabelece nos contatos e dos
lacionados, ativamente, entre si. Nessa entendimentos entre si uma “vontade
perspectiva, afirma que a transforma- social coletiva” fundada na compreen-
ção do mundo exterior, isto é, das rela- são crítica e na adequação dos fatos
ções sociais, passa pelo fortalecimento econômicos à sua vontade, num movi-
e pelo desenvolvimento de si mesmo. mento tal que “essa vontade se torne
Entretanto, considera “uma ilusão e o motor da economia, a plasmadora
um erro supor que o ‘melhoramento’ da realidade objetiva, a qual vive, e se
ético seja puramente individual” (ibid.), move, e adquire o caráter de matéria
pois a síntese desses elementos que telúrica em ebulição, que pode ser di-
constitui a individualidade é individual, rigida para onde a vontade quiser, do
porém essa síntese não se realiza e nem modo como a vontade quiser” (Gramsci
se desenvolve “sem uma atividade para apud Coutinho, 2009, p. 33).

428
Intelectuais Coletivos de Classe

Coutinho (2009) chama atenção Outro importante destaque feito por


para o fato de que, desde a sua juven- Coutinho (2009), ao desenvolver so-
tude, Gramsci ressaltava o papel central bre “O conceito de vontade coletiva
da vontade na construção de uma nova em Gramsci”, refere-se ao papel do
ordem social e política. E identifica “príncipe moderno” na construção da
na sua formulação de “vontade social “vontade coletiva nacional-popular”.
coletiva” a influência do neoidealismo A concepção de intelectual em
de Croce e de Gentile, principalmente, Gramsci é congruente com a catego-
do subjetivismo de Rousseau e do ob- ria “intelectuais coletivos de classe”,
jetivismo de Hegel, mas destaca que pois a função do intelectual não está
Gramsci os superou dialeticamente – encarnada em um indivíduo, mas
“no sentido de conservar, mas também numa coletividade organizada e dirigente.
de levar a um patamar superior – a São os intelectuais como massa e não
concepção de vontade geral ou uni-
versal tanto de Rousseau quanto de
como indivíduos que o interessavam.
Sua formulação de que a função dos
I
Hegel” (ibid., p. 34). Coutinho destaca intelectuais de produzir e difundir
na formulação de Gramsci sobre vontade ideologias se realizaria pela via do
a identificação com a práxis política, Estado (Estado burguês educador)
nos aspectos “concretos” e “racionais”, ou do partido político revolucionário,
marcada por uma dupla determinação, o “moderno príncipe”, responsável
a “articulação dialética entre teleologia pela formação de uma vontade coletiva
e causalidade” e “entre os momentos nacional-popular, nos impõe um desafio.
subjetivos e objetivos da práxis hu- Seria, hoje, o partido político “revo-
mana”, na qual a vontade coletiva é lucionário” o responsável pela forma-
“protagonista de um real e efetivo dra- ção de novos quadros de intelectuais
ma histórico”, “momento ontologica- e da vontade nacional-popular que
mente constitutivo da realidade social” encaminhe um processo de superação
(ibid., p. 36). A vontade social coletiva deve da ordem burguesa e formação de um
“ser teleologicamente planejada a par- novo bloco histórico? Qual o sentido
tir de, e tendo em conta, as condições de “partido” para Gramsci?
causais postas objetivamente pela reali- Ao trazer a figura do príncipe mo-
dade histórica” (ibid., p. 35). Somente derno para a sua época, baseando-se
em alguns aspectos a vontade coletiva em Maquiavel, Gramsci afirma que o
é “criação ex-novo”, uma vez que é tam- ator político, o “líder carismático”, não
bém “consciência operosa da ‘necessi- é mais o indivíduo, mas o partido polí-
dade’ histórica” (ibid.). tico. Para o autor dos Cadernos, a tarefa
Para Coutinho: “A vontade cole- do “moderno príncipe” seria anunciar e
tiva continua tendo um papel impor- organizar a “reforma intelectual e mo-
tante na construção da ordem social, ral”, a “vontade social coletiva”, pro-
não mais como ‘plasmadora’ da rea- cessos estreitamente articulados com
lidade, mas sim, como um momento sua concepção de hegemonia. Nesse
decisivo que se articula com as de- sentido, o “partido”1 seria, ao mesmo
terminações que provêm da realidade tempo, o organizador e a “expressão
objetiva, particularmente das relações ativa e atuante” de uma nova vonta-
sociais de produção” (2009, p. 34). de nacional-popular “superior e total de

429
Dicionário da Educação do Campo

civilização moderna”. E que esses dois ções, desde que não comprometam a
pontos fundamentais – vontade social agenda político-estratégica fundamen-
coletiva e reforma intelectual e moral – tal. No caso italiano, sustenta Gramsci:
deve fazer parte da constituição da “Qualquer formação de uma vontade
estrutura do trabalho do partido. coletiva nacional-popular é impossível
(Gramsci, 2000b, p. 18). se as grandes massas dos camponeses
O “partido” não é mero organismo cultivadores não irrompem simultanea-
corporativo, mas um organismo político, mente na vida política” (ibid., p. 19).
“catártico” e universalizante que supe- Para Gramsci, a “reforma intelec-
ra os interesses “egoístico-passionais” tual e moral” encontra seu ponto mais
ou “econômico-corporativos” em di- alto na “filosofia da práxis”, a ativi-
reção à consolidação do momento dade teórico-prática que proporciona
ético-político da consciência política a todos a possibilidade de compreen-
coletiva, que se constitui na unidade der e decidir a respeito do mundo em
entre fins econômicos e políticos e inte- que se vive. E essa nova inteligibilida-
lectual e moral posta no plano univer- de consiste na formação e na difusão de
sal. O momento ético-político para uma nova “racionalidade”, de um “es-
Gramsci (2000b) é a fase que assinala pírito crítico” e de uma sensibilidade
a passagem das correlações de força que critica qualquer explicação mítica
do âmbito corporativo para o univer- do mundo e recusa todo princípio de
sal, da esfera da estrutura para a das autoridade absoluto e pré-constituído
superestruturas complexas, inserindo- (Semeraro, 2001).
se numa luta frontal contra as ideolo- Trabalhando de modo criativo
gias anteriormente predominantes e na as teorias de Marx, Gramsci pôde se
irradiação da nova cultura em todo o apropriar do materialismo histórico
tecido social. Isto é, num confronto para tornar pensável um período histó-
pela hegemonia de um grupo social rico cuja sociedade civil era mais com-
fundamental sobre uma série de grupos plexa. Em sua época, as forças sociais
subordinados (Gramsci, 2000b, p. 18). que se apontavam como revolucioná-
O “partido” deve operar e dirigir a rias estavam organizadas em sindicatos
“grande política”, que “compreende as e em partidos políticos, possuíam “apa-
questões ligadas à fundação de novos relhos privados de hegemonia”, tais
Estados, à luta pela destruição, pela como jornais e revistas, com a função
defesa, pela conservação de determi- de difundir uma nova racionalidade, e
nadas estruturas orgânicas econômico- já tinham conquistado o sufrágio uni-
sociais” (Gramsci, 2000b, p. 21). Cabe versal. Foram as condições postas ob-
ao “partido” elaborar de modo homo- jetivamente pela realidade histórica que
gêneo e sistemático uma vontade co- o permitiram superar dialeticamente as
letiva nacional-popular, em mediação concepções de Estado, de sociedade
com os vários organismos particulares civil e de hegemonia, e ampliar a visão
das classes subalternas. Nesse sentido, de intelectual.
para Gramsci (2000b), o partido enga- Nesse sentido, a tarefa de buscar
jado na edificação da hegemonia dos elementos para definir a função polí-
subalternos tem de buscar a incorpo- tica e social dos intelectuais coletivos de
ração ativa das demandas de outras fra- classe numa perspectiva revolucionária,

430
Intelectuais Coletivos de Classe

implica identificar as forças políticas tura para a esfera das superes-


postas objetivamente na atual realidade. truturas complexas. (Gramsci,
Para Gramsci, as forças políticas re- 2000b, p. 40-41)
ferem-se ao “grau de homogeneidade,
de autoconsciência e de organização Com Gramsci, identificamos a con-
alcançado pelos vários grupos sociais” dição da consciência de classe neces-
(Gramsci, 2000b, p. 40) e correspon- sária como aquela capaz de operar a
dem aos momentos da consciência superação do momento econômico
política coletiva. Nesses momentos de corporativo pelo ético-político (pas-
consciência política coletiva, Gramsci sagem da consciência ingênua para a
identifica três estágios: consciência crítica) pela mediação
do momento catártico. A consciência de
O primeiro mais elementar é classe inaugura a possibilidade de vi-
o econômico-corporativo;; [...]
sente-se a unidade homogênea
venciar e constituir novas formas
de ser (ainda que as relações sociais de I
do grupo profissional e o dever produção capitalistas não tenham
de organizá-la, mas não ainda a sido superadas). Nessa perspectiva, é
unidade do grupo social mais preciso operar um duplo movimento
amplo. Um segundo momen- de análise: “o grau de homogeneidade, de
to é aquele em que se atinge a autoconsciência e de organização al-
cançado pelos vários grupos sociais”
consciência da solidariedade de
em determinada conjuntura, e como
interesses entre todos os mem-
essas forças políticas estão se colocan-
bros do grupo social, mas ainda
do objetivamente nessa realidade no
no campo meramente econômi-
plano da estratégia política.
co. Já se põe neste momento a
questão do Estado, mas apenas Tomando essas reflexões, podemos
na obtenção de uma igualdade sinalizar que o sentido de intelectuais
político-jurídica com os grupos coletivos de classe, numa perspectiva de
dominantes, já que se reivindica superação da ordem, insere a função
o direito de participar da legisla- organizadora e dirigente de uma nova
ção e da administração e mesmo cultura que se realizaria coletivamen-
de modificá-las, de reformá-las, te, tendo em vista uma consciência de
mas nos quadros fundamentais classe para si.
existentes. Um terceiro momen- Isso requer processos de autofor-
to é aquele em que se adquire a mação da classe. O “partido” tem de
consciência de que os próprios ser, ele mesmo, um espaço educativo
interesses corporativos, em seu capaz de garantir a formação teórico-
desenvolvimento atual e futuro, prática sobretudo do marxismo;; con-
superam o círculo corporativo, tudo, como Gramsci alertou sobre as
de grupo meramente econômi- universidades populares italianas do fi-
co, e podem e devem tornar-se nal dos anos 1920, a formação socialista
os interesses de outros grupos não pode ser baseada em uma pedago-
subordinados. Esta é a fase mais gia jesuítica, plena de assimetrias entre
estritamente política, que assi- os que ensinam e os que aprendem
nala a passagem nítida da estru- e, tampouco, difundir dogmas como se

431
Dicionário da Educação do Campo

fossem conhecimentos críticos capazes Equador e o Movimento dos Trabalha-


de elevar a experiência da luta econômico- dores Rurais Sem Terra no Brasil, que
corporativa para a perspectiva universal vêm constituindo espaços formativos
da classe para si. As experiências dos próprios, capazes de assegurar formação
movimentos sociais latino-americanos, de seus próprios intelectuais, indicam
como os zapatistas, a Coordenação que a formação dos intelectuais coletivos
Nacional dos Povos Indígenas do dos trabalhadores está em movimento.

Nota
1
As aspas na palavra partido têm a intenção de destacar as aspas que o próprio Gramsci
utiliza nos trechos em que discute o tema.

Para saber mais


COUTINHO, C. N. O conceito de vontade coletiva em Gramsci. Katál, Florianópolis,
v. 12, n. 1, p. 32-40, jan.-jun. 2009.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. V. 1:
Introdução ao estudo da filosofia, a filosofia de Benedetto Croce.
______. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000a. V. 2:
Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo.
______. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000b. V. 3:
Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política.
SEMERARO, G. Anotações para uma teoria do conhecimento em Gramsci. Revista
Brasileira de Educação, n. 16, p. 95-104, jan.-abr. 2001.

432
J
JUDICIALIZAÇÃO
Jadir Anunciação de Brito

O termo judicialização refere- sociais e políticos, em temas cuja re-


se à ampliação das interferências do percussão social demandaria decisões
Poder Judiciário nos assuntos e deci- exercidas por mecanismos da demo-
sões sobre quais valores ético-morais, cracia direta ou representativa.
interesses sociais, políticos e econômi- O papel ativo e hegemônico do
cos são interpretados e admitidos como Poder Judiciário pode ser identificado,
direitos pela Constituição. A judicia-
por exemplo, no julgamento do STF
lização é caracterizada por processos
que declarou a inconstitucionalidade
institucionais (processos, conciliações
e mediações judiciais) e não institucio-
nais (manifestações discursivas na mí-
da vigência da “Lei da Ficha Limpa”
para as eleições de 2010. É importan- J
te lembrar que essa lei decorreu de um
dia do Judiciário). Nesses processos, o
projeto de lei de iniciativa popular para
Poder Judiciário – especialmente o Su-
premo Tribunal Federal (STF) – subs- o qual foram coletadas mais de 1,3 mi-
tituiu, por um lado, a sociedade civil lhões de assinaturas a seu favor, o que
organizada e os seus mecanismos de correspondeu a 1% dos eleitores bra-
democracia direta (plebiscito, referen- sileiros. Esse projeto foi entregue ao
do e deliberações da iniciativa popu- Congresso Nacional em 2009 e aprova-
lar de leis) e, por outro, as instituições do, tratando-se de uma lei de natureza
políticas da democracia representativa política. O STF foi acionado e decidiu
(Poder Legislativo ou Poder Judiciário) quais eram os direitos políticos válidos
nos debates e decisões sobre os valores para as eleições de 2010, mesmo em
ético-morais, direitos e políticas públi- detrimento da natureza de reforma po-
cas que são compatíveis com a Consti- lítica – de alçada tipicamente legislativa
tuição Federal do Brasil. e/ou dos mecanismos da democracia
direta – que a temática da “Lei da Ficha
A judicialização também é uma re-
Limpa” envolvia. Os outros exemplos
presentação social que naturaliza no
imaginário das relações sociais e polí- do papel ativo e hegemônico foram a
ticas um papel ativo e hegemônico do demarcação da reserva indígena Raposa
Poder Judiciário, como um superpoder Serra do Sol;; a questão sobre a quem
que tudo resolve, em detrimento da au- pertence a suplência parlamentar, se
tonomia da sociedade civil e das suas aos partidos ou às coligações;; a Lei da
organizações sociais. Esta representa- Biossegurança, que permite a pesqui-
ção social constrói uma ideologia que sa em células-tronco embrionárias, cujo
naturaliza uma hegemonia do Poder mérito envolve um debate ético-moral
Judiciário – particularmente do STF – sobre o início da vida;; e o direito de
por meio de um papel ativo, interventi- greve dos servidores públicos.
vo, como única ou última arena decisó- A hegemonia e o papel ativo do Po-
ria e legítima na resolução de conflitos der Judiciário de decidir sobre temas

433
Dicionário da Educação do Campo

de grande interesse político e social, casos de garantia das políticas públicas.


afastando o Poder Legislativo, o Poder O ativismo, nesse contexto, seria uma
Executivo ou a sociedade civil por meio experiência positiva, como foi o caso
dos mecanismos da democracia direta, da Suprema Corte concretizou direitos
pode ser chamado de judicialização da civis nos Estados Unidos, que concre-
política ou ativismo judicial. tizou, nos anos 1960, direitos civis dos
O ativismo judicial ou a judiciali- afro-americanos para o acesso à escola
zação da política representa riscos ao e aos empregos público e privado. Esse
funcionamento da democracia brasilei- ativismo judicial americano é conside-
ra, seja pela transferência de poderes rado um paradigma na argumentação
decisórios da sociedade civil e de ou- de defesa do papel ativo do Judiciá-
tros poderes para o Judiciário, seja pela rio nas relações sociais e nas decisões
ampliação da intervenção e da hegemo- políticas brasileiras.
nia judicial nas relações sociais. O risco Uma das causas da judicialização
democrático é identificado pelo cercea- da política pode ser identificada no
mento das liberdades de pensamento e efeito adverso da ampliação do catálo-
de manifestação política da sociedade go de direitos individuais e sociais nas
civil organizada – instituições sociais, constituições, e no acesso à justiça para
movimentos sociais, organizações do a sua concretização, por meio da am-
terceiro setor, partidos políticos e ou- pliação das jurisdições individuais, co-
tros poderes –, pela ascensão do Judi- letivas e constitucionais, para a defesa
ciário sobre os poderes Legislativo e de direitos fundamentais individuais e
Executivo, e pelas limitações ao exercí- sociais no âmbito do Poder Judiciário.
cio decisório da soberania popular. O processo de ampliação do acesso à
justiça foi estabelecido nas constitui-
Contextos de surgimento ções europeias posteriores à Segunda
Guerra Mundial quando da constru-
da judicialização da política
ção formal do modelo do “Estado
e do ativismo judicial de bem-estar social” ou do “Estado de
O ativismo judicial ou judicialização direito democrático”, no qual o direito
da política é também caracterizado passa a ter um papel central nas rela-
como modo de concretização de direi- ções sociais e políticas, e o Poder Ju-
tos, pela expansão das suas atribuições diciário é institucionalizado como seu
em decorrência das omissões do Poder principal garantidor.
Legislativo na regulamentação da Cons- O Estado de bem-estar social do
tituição ou da administração pública pós-guerra é caracterizado pela cons-
em assegurar a implementação de direi- titucionalização das demandas sociais
tos e a execução de políticas públicas. e por um modelo de Constituição diri-
Assim, nesta ótica, o aumento da atua- gente que, dentre outras características,
ção do Poder Judiciário seria a forma contém um projeto político de trans-
de sanar a omissão estatal em dar efe- formação social associado à ampliação
tividade à Constituição. Segundo esse dos mecanismos de acesso à justiça. Ao
conceito, o Judiciário atuaria, quando longo dos anos, as crises econômicas e
provocado, nos casos de falta de regu- políticas do capitalismo, o modelo do
lamentação da Constituição e/ou nos Estado de direito democrático, na sua

434
Judicialização

vertente jurídica do “Estado social”, elaboração e execução de políticas pú-


entra em crise, sobretudo pela inefi- blicas – estabeleceu garantias proces-
cácia dos seus direitos sociais e pelo suais e políticas para que a sociedade
aumento das desigualdades sociais. O civil tivesse um maior acesso à justiça,
modelo do Estado de direito democrá- com o fim de assegurar a concretização
tico que formalmente assegura a par- de direitos. Embora o perfil de Consti-
ticipação da sociedade civil e de suas tuição dirigente no Brasil venha se mo-
instituições democráticas representa- dificando por emendas constitucionais
tivas em decisões políticas fundamen- de viés neoliberal, e o acesso à justiça
tais, por meio do acesso à justiça ou não alcance a maioria da população ex-
dos mecanismos da democracia direta plorada e marginalizada do Brasil, os
e representativa, é reduzido e substi- processos da judicialização das relações
tuído pelo denominado “Estado juiz” sociais e da política são crescentes. As
(de origem alemã), no qual cada vez garantias processuais constitucionais
mais o Poder Judiciário se sobrepõe ocasionaram, como resultado adverso
aos outros poderes, especialmente o aos seus fins, a ampliação de uma cres-
Legislativo, e à soberania popular nas
decisões sociais e políticas. A judicia-
cente convocação do Poder Judiciário,
em diversas instâncias, para decidir
J
lização da política emerge do “Estado quais reivindicações têm fundamen-
juiz”, transcorrendo pela transferência tos constitucionais. No contexto do
de atribuições do Executivo, do Legis- constitucionalismo brasileiro, a judicia-
lativo e da soberania popular para os lização pode ser identificada, por um
magistrados e tribunais, para que esses lado, como a ampliação das demandas
efetivem, revisem e concretizem direi- judiciais, por meio do crescimento do
tos e políticas públicas constitucionais. acesso à justiça, para que o Judiciário
No Brasil, a exemplo dos Estados garanta a aplicação de direitos previs-
europeus, os processos de judicializa- tos na Constituição que, em face das
ção podem ser considerados uma con- omissões estatais do Executivo e do
sequência adversa tanto das conquistas Judiciário, não produzem eficácia nas
de direitos constitucionais pela socie- relações sociais ou no funcionamento
dade civil organizada quanto do papel de das instituições políticas.
guardião principal desses direitos atri- A judicialização da política e da vida
buído ao Poder Judiciário. Outra cau- social não se reduz ao grande volume
sa é o perfil de Constituição dirigente de processos judiciais que, nos últimos
adotado pelo Brasil 1988, que continha vinte anos, chegaram ao Poder Judiciá-
um projeto de transformação da socie- rio com os mais variados temas das re-
dade por meio de um conjunto de re- lações sociais. A judicialização é fun-
formas – econômica, política, urbana, damentalmente um problema político,
agrária, educacional, dentre outras – por se tratar do hiperdimensionamento
inseridas nas normas constitucionais. das atribuições do Poder Judiciário,
A própria Constituição, ante a possi- que, diante das demandas judiciais da
bilidade da ineficácia das suas normas própria sociedade, cada vez mais deci-
constitucionais – por omissões do de sobre temas que envolvem valores
Poder Legislativo ou do Poder Executivo éticos, morais, culturais, sociais, eco-
na regulamentação de direitos, ou na nômicos, políticos e jurídicos, mesmo

435
Dicionário da Educação do Campo

sem legitimação democrática outorga- influência discursiva desse poder sobre


da pela soberania popular. A defesa de a opinião pública, repercutindo espe-
um papel ativo do Judiciário diante das cialmente na atuação da sociedade ci-
omissões legislativas e administrati- vil organizada em movimentos sociais,
vas relativas à efetividade de direitos é partidos políticos e nas instituições so-
sustentada por ministros do STF, sen- ciais formadoras da opinião pública. A
do fundada no denominado “princí- “politização do Poder Judiciário” se dá
pio contramajoritário”. Para eles, esse formalmente fora dos processos judi-
princípio asseguraria direitos consti- ciais, no seio da sociedade, por meio do
tucionais expressos em valores ético- uso da mídia, para que os magistrados
morais, visões de vida cultural e inte- e chefes de tribunais façam discursos e
resses sociais e econômicos, mediante expressem opiniões acerca de temas
o reconhecimento de reivindicações que estão em processo de discussão na
de grupos vulneráveis, integrados por sociedade ou em processos judiciais.
minorias étnicas, sexuais e culturais. É Porém, na verdade, essa “politização”
importante destacar que a defesa de também envolve os processos judiciais,
direitos para minorias não pode justi- sobretudo aqueles cujos conflitos en-
ficar a transferência do poder decisório volvem litígios econômicos e sociais
da democracia direta ou representativa entre o capital e o trabalho, ou disputas
para o Poder Judiciário, sob pena de por reconhecimento de direitos socio-
sérios riscos à democracia – criação culturais entre grupos vulneráveis e as
de um superpoder institucional hege- elites conservadoras.
mônico sobre os demais poderes – e à
soberania popular. Movimentos sociais e
O estudo da judicialização da po- judicialização da política
lítica também deve considerar o papel
ativo do Poder Executivo na criação de O estudo do papel dos movimentos
normas por meio do regime das me- sociais na Assembleia Constituinte e nas
didas provisórias, cujo uso crescente lutas pela concretização da Constituição
retira do Poder Legislativo e da ini- de 1988 é relevante para a compreensão da
ciativa popular da lei o poder político judicialização política e das relações so-
decisório sobre a criação de direitos, ciais no Brasil. Os movimentos sociais
aumentando a convocação do Poder foram protagonistas da construção de
Judiciário para controlar a constitucio- uma agenda de reformas políticas, so-
nalidade dessas normas criadas pelo ciais e econômicas, inserida no texto
Poder Executivo. constitucional de 1988 como um proje-
O Poder Judiciário intervém de to de transformação social.
forma hegemônica nas relações da vida Ao longo dos 23 anos de vigência
social e da política por meio da “judicia- da Constituição de 1988, a hegemonia
lização da política”. Porém, além desta da globalização econômica do neolibe-
realidade, verifica-se outra, denominada ralismo, por meio de organismos finan-
“politização do Poder Judiciário”, uma ceiros internacionais como o Fundo
hegemonia discursiva, que teoricamen- Monetário Internacional (FMI), o Ban-
te estaria além dos processos judiciais. co Mundial e o Banco Internacional
A “politização do Poder Judiciário” é a para Reconstrução e Desenvolvimento

436
Judicialização

(Bird), dirigiu as reformas neoliberais ca produziu um efeito adverso aos seus


nas constituições de países latino- fins, tendo contribuído para acentuar
americanos. As reformas constitucio- a judicialização política e das relações
nais neoliberais favoreceram a reprodu- sociais. Como exemplo, podemos ci-
ção e a ampliação do capital no Brasil, tar as lutas contra as privatizações e as
com a redução das reformas sociais e reformas da previdência ocorridas nos
econômicas ao combate à desigualdade últimos governos federais, nas quais os
e às discriminações. movimentos sociais e sindicatos foram
A agenda das reformas constitucio- protagonistas da chamada “guerra de
nais neoliberais foi enfrentada pelos liminares”. Nesses e em outros casos,
movimentos sociais de formas distin- as lutas por reformas sociais saem do
tas. De um lado, houve a opção pela campo da política e cada vez mais são
resistência e a insurgência direta, na transferidas para o direito, ou seja,
cidade e no campo, para a garantia das para o Judiciário. Por sua vez, as ins-
reformas sociais. Por outro, deu-se a or- tituições representantes do capital no
ganização de movimentos sociais pelos Brasil, cada vez mais, também optam
eixos de luta: transformação da explo- pela transferência da resolução dos J
ração de classes e das discriminações seus interesses da arena política para a
pelo direito;; construção de uma cultura jurisdicional, face da notória “politiza-
de direitos;; e reconhecimento de direi- ção do Judiciário” dirigida para a cons-
tos e de sua efetividade judicial para a titucionalização da reforma neoliberal
transformação social. Nesses eixos de da Constituição.
atuação, a luta de transformação social A superação do modelo do “Estado
deixou cada vez mais a arena política e juiz” como único e último meio de re-
foi dirigida para o palco institucional solução dos conflitos sociais e políticos
do Poder Judiciário. Assim, o direito – em torno da interpretação e da aplica-
fundamentalmente seus mecanismos ção da Constituição demanda da socie-
processuais – passa a ter, para esses dade civil organizada, especialmente
segmentos dos movimentos sociais, um dos setores populares, a capacidade
papel central nas resoluções de confli- política de reapropriar dos mecanis-
tos com as elites do capital. A opção mos do exercício da soberania popular
pelo direito como meio de transfor- da democracia direta e representativa.
mação, em muitos casos, ocorreu em O foco desse processo é a utilização
detrimento da diminuição do papel da de meios normativos já estabelecidos,
política – das mobilizações e organiza- para que a “última palavra” decisó-
ções sociais populares, das lutas de re- ria nas discussões constitucionais de
sistência e da insurgência direta – para grande repercussão ético-moral, políti-
a defesa da agenda das reformas sociais ca, econômica e social, e nas disputas
e econômicas. Esses eixos de atuação por reformas e garantias de direitos
produziram agendas com maiores de- no Brasil não seja exclusivamente do
mandas de ações judiciais individuais, Poder Judiciário, mas sim das institui-
ações judiciais coletivas e ações de con- ções representativas da soberania po-
trole de constitucionalidade no STF. pular. Outro caminho para a supera-
A opção de alguns movimentos so- ção da judicialização da política passa
ciais de privilegiarem o direito à políti- pela reafirmação social dos limites das

437
Dicionário da Educação do Campo

atribuições entre os poderes Executivo, dos outros poderes e da soberania po-


Legislativo e Judiciário, e no arranjo da pular. Finalmente, a superação da judi-
democracia constitucional, para que cialização da política, das omissões dos
não se dê a hegemonia de um poder poderes Legislativo e Executivo, e do
institucional sobre o outro. avanço das reformas constitucionais
O enfrentamento da superação des- neoliberais demanda a reafirmação da
se processo não ocorre exclusivamente soberania popular nas lutas populares
no plano procedimental ou objetivo – emancipatórias em defesa da concreti-
com novas técnicas processuais –, uma zação das reformas socioeconômicas,
vez que a judicialização é também da efetividade dos direitos e das polí-
uma representação social, na forma ticas públicas redistributivas e de reco-
de uma ideologia, que cria um imagi- nhecimento, ainda presentes na Cons-
nário social da hegemonia do Poder tituição, asseguradoras de justiça social
Judiciário como único e último garan- e de dignidade humana para os grupos
tidor da Constituição em detrimento marginalizados no Brasil.

Para saber mais


ARANTES, R. B. Judiciário e política no Brasil. São Paulo: Idesp, 1997.
BARROSO, L. R. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista
Atualidades Juridicas, Revista Eletrônica da Ordem dos Advogados do Brasil, n. 4,
p. 1-29, jan.-fev. 2009. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/
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JUVENTUDE DO CAMPO
Elisa Guaraná de Castro

Jovem é um termo usado pelo sen- a agentes privilegiados de transforma- J


so comum, pelo campo acadêmico e ção social.
mesmo em espaços políticos desde o Um primeiro caminho para a análi-
século XIX, inicialmente em uma con- se desse debate é resgatar algumas das
cepção geracional que opunha jovens definições mais recorrentes e a própria
e velhos, ou jovens e adultos. No final crítica a essas concepções, como ve-
do século XX e neste início do século remos a seguir. Flitner (1967) observa
XXI, vem ocorrendo um grande im- que, já em estudos do século XIX, a
pulso no debate sobre a juventude. En- idade aparece como uma forma de iden-
tretanto, muitos trabalhos tratam a ju- tificação privilegiada. Idade juvenil sur-
ventude como categoria autoevidente giu como uma definição recorrente que
ou autoexplicativa, como se a concep- se referia a um período pós-puberdade,
ção de juventude fosse consensual, entre 15 e 17 anos, e a um limite que
utilizando idade e/ou comportamento terminava com a entrada no que seria
como definições metodológicas. Essa definido como mundo adulto. A identi-
concepção de juventude é retomada, ficação de uma população como jovem
nos anos 1990, tanto pelo campo aca- por meio de um corte etário aparece
dêmico quanto pelas políticas sociais. de forma mais clara em pesquisas da
Muitas dessas construções carregam década de 1960. O corte etário de 15 a
um olhar em que a juventude é passí- 24 anos, adotado por organismos inter-
vel de uma definição universalizante, nacionais como a Organização Mun-
tais como definições da categoria com dial da Saúde (OMS) e a Organização
base em elementos físicos/psicoló- das Nações Unidas para a Educação, a
gicos, como faixa etária, mudan- Ciência e a Cultura (Unesco), procura
ças físico-biológicas e/ou comporta- homogeneizar o conceito de juventude
mentais;; definições substancializadas/ com base nos limites mínimos de en-
adjetivadas da categoria;; e definições trada no mundo do trabalho, reconhe-
que associam juventude e jovem a deter- cidos internacionalmente, e nos limites
minados problemas sociológicos e/ou máximos de término da escolarização

439
Dicionário da Educação do Campo

formal básica (ensino básico e médio). te por não estarem inseridos no mer-
O recorte de juventude com base em cado de trabalho. Com isto, se exclui
uma faixa etária específica é pautado o jovem das classes trabalhadoras da
pela definição de juventude como pe- concepção de juventude. Esta é uma
ríodo de transição entre a adolescência contribuição importante para perce-
e o mundo adulto. Essa concepção se bermos juventude como construção
estabelece como a mais recorrente a social (Castro, E. G., 2009).
partir da Conferência Internacional so- Uma construção recorrente é a que
bre Juventude, realizada em Grenoble, associa juventude a uma concepção ine-
em 1964 (ver Weisheimer, 2004). rentemente transformadora (Margulis,
A classificação que define jovem 1996), ou associada a um problema so-
mediante limites mínimos e máximos cial, como os textos que utilizam ter-
de idade é amplamente discutida. Para mos como delinquência juvenil para
Levi e Schmitt (1996), em História da retratar determinados indivíduos que
juventude, a idade como classificadora teriam em comum a idade e uma forma
é transitória e só pode ser analisada de se comportar. E diversos estudos
em uma perspectiva histórica de lon- tratam juventude a partir do problema
ga duração. O recorte etário permite do aumento da violência.1 Nestas duas
pesquisas quantitativas em larga escala perspectivas, jovem carrega caracterís-
e a definição de públicos-alvo de po- ticas que definem determinados indiví-
líticas públicas. Atualmente, o recorte duos a priori.
utilizado pelo poder público e por or- Contudo, outra leitura comum
ganismos internacionais é o de 15 a 29 atravessa o debate sobre juventude:
anos. No entanto, devem-se observar juventude como um período da vida,
os limites destas definições e questio- uma transição para a vida adulta. Ju-
nar a naturalização da associação entre ventude é uma categoria transitória e,
juventude e uma faixa etária específica como experiência individual, como
(Castro, E. G., 2010). identidade social ou, ainda, identidade
O debate sobre juventude, princi- política ela pode assumir contornos
palmente a partir das décadas de 1980 mais perenes. O peso da transitorie-
e 1990, trouxe o olhar da diversidade. dade aparece como uma “marca” re-
Para além dos cortes etários, ou apesar corrente nas definições e percepções
deles, não se fala mais em juventude, sobre juventude nos mais diferentes
mas em juventudes (Novaes, 1998). Sem cenários e contextos.
dúvida, é um caminho que contribuiu Podemos afirmar que juventude
para fugirmos de um olhar homogenei- é uma categoria social que posicio-
zante. Helena Abramo (2007) nos traz, na aqueles assim identificados em um
por exemplo, a importante reflexão so- espaço de subordinação nas relações
bre a associação entre juventude, edu- sociais. Paradoxalmente, jovem é asso-
cação e lazer, como uma construção ciado a futuro e a transformação social.
socialmente informada. Para a autora, Pode-se afirmar que o olhar para de-
essa seria uma concepção que trata a terminados indivíduos, informado pela
juventude como aqueles que estão em ideia de que estão numa fase de transi-
processo de formação e que ainda não ção do ciclo de vida, ou mesmo bioló-
têm responsabilidades, principalmen- gico, transfere, para aqueles que assim

440
Juventude do Campo

são identificados, a imagem de pes- rato ou a primogenitude (o filho mais


soas em formação, incompletas, sem novo ou o mais velho é o herdeiro pre-
vivência, sem experiência, indivíduos ferencial), dentre outras formas, como
ou grupo de indivíduos que precisam estratégias para manter a pequena pro-
ser regulados, encaminhados. Isso tem priedade familiar indivisível e evitar
implicações não apenas na dificuldade que se pulverize. Nesse processo, seria
de se conseguir o primeiro emprego comum que “jovens” filhos de campo-
mas também na deslegitimação da sua neses migrassem para a cidade, con-
participação em espaços de decisão tando, em alguns casos, com pequenas
(Castro, E. G., 2010). compensações (bens ou capital) por
Juventude é, sem dúvida, mais do abdicarem da parte da propriedade que
que uma palavra. Ao acionar juventude lhes caberia como herança. No entan-
como forma de definir uma população, to, essa “saída do campo” poderia estar
um movimento social ou cultural, ao associada à não aceitação do controle
usar a palavra jovem para definir al- paterno (Castro, E. G., 2009).
guém ou para se autodefinir, estamos, Os jovens estão indo embora! Essa
também, acionando formas de clas-
sificação que implicam relações entre
expressão sintetiza uma imagem do jo- J
vem do campo no Brasil. A juventude
pessoas e entre classes sociais, relações do campo é constantemente associada
familiares e relações de poder. ao problema da “migração do campo
O termo “juventude rural” – e o uso para a cidade”. Contudo, “ficar” ou
de correlatos como “jovem rural”, “jo- “sair” do meio rural envolve múltiplas
vem camponês”, “jovem do campo” – questões em que a categoria jovem é
já era utilizado, como apontou Flitner construída e seus significados, disputa-
(1968), no século XVIII, como em um dos. A própria imagem de um jovem
estudo de Pestalozzi sobre populações desinteressado pelo campo contribui
camponesas. Desde o século XX, em para a invisibilidade da categoria como
trabalhos sobre a “família campone- formadora de identidades sociais e,
sa”, o termo individualizado “jovem portanto, de demandas sociais.
camponês”, ou simplesmente “jovem”, Mais recentemente, no final da dé-
vem sendo acionado com frequência cada de 1990 e início do século XXI, a
para designar filhos de camponeses “juventude rural”, os “jovens campo-
que ainda não se emanciparam da au- neses”, os “jovens agricultores fami-
toridade paterna – geralmente solteiros liares” ganharam impulso como temas
que vivem com os pais. privilegiados em diversas pesquisas. Os
Um tema associado à “juventude jovens são fortemente associados à “mi-
rural” é a “migração” – no sentido do gração”, mas, nesse caso, menos como
fluxo de populações para centros ur- estratégia familiar, e mais como um
banos –, seja como estratégia familiar “problema” de desinteresse pela “vida
de reprodução e manutenção da pro- rural”, gerando uma descontinuidade
priedade familiar, seja como forma de da “vida no campo” e da produção fa-
ruptura com a autoridade paterna. A miliar. Se essas pesquisas confirmam o
sucessão e a transferência da proprie- deslocamento dos jovens, outros fatores
dade da terra, herança patrimonial da complexificam a compreensão desse fe-
família, segue padrões como o mino- nômeno, como veremos a seguir.

441
Dicionário da Educação do Campo

Caracterização da juventude tude rural, cada vez mais presentes


no cenário nacional. Juventude é hoje
do campo
uma categoria acionada para organizar
No Brasil, segundo os dados do aqueles que assim se identificam nos
Censo 2010 (Instituto Brasileiro de movimentos sociais do campo. Nos
Geografia e Estatística, 2010), temos anos 2000, observamos um intenso
cerca de 8 milhões de jovens morando processo organizativo dos jovens tan-
em regiões rurais. Diversos estudos, no to nos movimentos sindicais – como a
Brasil e em outros países, apontam para Confederação Nacional dos Trabalha-
a tendência da saída, nos dias atuais, dores na Agricultura (Contag) e a Fe-
de jovens do campo rumo às cidades.2 deração Nacional dos Trabalhadores e
O que torna a questão foco do de- Trabalhadoras na Agricultura Familiar
bate atual é o contexto da política (Fetraf) – quanto nos movimentos que
de Reforma Agrária3 que vem sendo fazem parte da Via Campesina Brasil –
implementada no Brasil desde 1985. como o Movimento dos Trabalhadores
Nesse caso, autores como Abramovay Rurais Sem Terra (MST), o Movimento
et al. (1998) apontam para a reversão dos Pequenos Agricultores (MPA), o
no quadro de migração do campo para Movimento de Mulheres Camponesas
a cidade provocada pelo assentamento (MMC) e o Movimento dos Atingidos
em massa de famílias no meio rural. por Barragens (MAB). Organizações já
Porém, segundo o autor, essa reversão consolidadas também ganharam visibi-
estaria comprometida pelo êxodo dos lidade, como a Pastoral da Juventude
jovens. Essa situação seria agravada Rural. A maioria dos movimentos so-
pela tendência de migração maior en- ciais formalizou, por volta do ano 2000,
tre as jovens, provocando o que ele de- alguma instância organizativa. Portan-
nominou masculinização dos campos to, a presença cada vez mais massiva de
(Castro, E. G., 2008). organizações de juventude aponta para
De fato, segundo os dados do Insti- um fenômeno em movimento.
tuto Brasileiro de Geografia e Estatística Embora esse tipo de articulação
(IBGE), no Brasil, se existe certo equi- não seja uma novidade – juventude
líbrio entre a população jovem mascu- rural, juventude camponesa, ao longo
lina e feminina na faixa etária de 15 a da história e em muitos países, foram
29 anos (49,1% e 50,9%, respectiva- categorias ordenadoras de organiza-
mente), o mesmo não se observa com a ções de representação social –, hoje
população jovem do campo (53,2% de testemunhamos uma reordenação des-
homens para 46,8% de mulheres nes- sas categorias. Em comum, trata-se de
sa faixa etária);; o desequilíbrio é ainda uma juventude que ainda se confronta
maior na faixa etária de 15 a 17 anos com preconceitos das imagens “urba-
(55 % e 45%, respectivamente) (Insti- nas” sobre o campo. Esses jovens se
tuto Brasileiro de Geografia e Estatís- apresentam longe do isolamento, dia-
tica, 2010). logam com o mundo globalizado e rea-
No entanto, a percepção, quase trá- firmam sua identidade como trabalha-
gica, do total desinteresse dos jovens dores, pequenos produtores familiares
pelo campo é confrontada por mani- lutando por terra e por seus direitos
festações de organizações de juven- como trabalhadores e cidadãos. Assim,

442
Juventude do Campo

jovem da roça, juventude campone- Pesquisas ajudam a compreender


sa, jovem agricultor familiar são cate- o porquê dessa demanda. Em estudo
gorias aglutinadoras de atuação políti- sobre a educação em assentamentos
ca. Essa reordenação da categoria vai (Brasil, 2005), essas dificuldades se
de encontro à imagem de desinteresse confirmam como nacionais. De 2,5
dos jovens pelo meio rural. Apesar des- milhões de entrevistados, 26% têm
sa “movimentação”, esse “novo ator” é entre 16 e 30 anos;; se somarmos este
pouco conhecido e ainda muito negli- número à população com menos de
genciado pelas pesquisas sobre o tema 15 anos, ampliamos o percentual para
juventude (Castro, E. G., 2008). um universo de 64%. Desses, 38,8%
Mas qual a importância de aprofun- frequentam escolas (987.890), sendo:
darmos a compreensão sobre a juven- 48,4% estudantes do primeiro segmen-
tude do campo? E em que medida isso to do ensino fundamental (represen-
contribui para aprofundarmos o deba- tando 95,7% da população com idade
para estar matriculada nestas séries);;
te sobre educação do campo?
28,5% do segundo segmento do ensi-
É evidente que os problemas enfren-
tados pelos jovens são antes de tudo
no fundamental;; e apenas 8% do en-
sino médio e profissionalizante. Dos
J
problemas enfrentados pela pequena que têm até 18 anos e estão fora da es-
produção familiar, como as difíceis cola, 45% estudaram até o 5º ano do
condições de vida e de produção. Nesse ensino fundamental e 14% não estuda-
contexto, algumas dificuldades atingem ram. O 6º ano do ensino fundamental
de forma mais direta os jovens do campo é marcado por uma evasão significa-
(Castro, E. G., 2005): há consenso tiva. Segundo o Ministério da Educa-
nas pesquisas quanto às dificuldades ção (Brasil, 2005), uma das principais
enfrentadas pelos jovens no campo, razões para o abandono da escolariza-
principalmente de acesso à escola e ao ção é a dificuldade de acesso às esco-
trabalho (Instituto Cidadania, 2004;; las a partir desse ano e, em especial,
Carneiro, 2005;; Brasil, 2005;; Castro, do ensino médio. De fato, a maioria dos
E. G., 2005). As demandas apresenta- assentamentos tem escolas de 2º ao
das por essa juventude organizada nos 5º ano do ensino fundamental, enquan-
movimentos sociais do campo revelam to os demais anos terão de ser cursados
muito sobre como esses jovens se per- em áreas urbanas. Dos que estudam na
cebem. Se, por um lado, reforçam ques- cidade, 40% frequentam escolas loca-
tões consideradas específicas, como o lizadas a 15 km de sua residência. Se
difícil acesso à terra para os/as jovens ampliarmos para aqueles que estudam
do campo, por outro, constroem essas a 6 km ou mais, temos 77% dos es-
demandas no contexto de transforma- tudantes. Dentre os principais moti-
ção social da própria realidade do cam- vos para crianças e adolescentes (7 a
po. Mas a demanda recorrente em pau- 14 anos) abandonarem a escola, 31%
tas protocoladas no governo federal e responderam que a escola é muito lon-
em eventos organizados pela juventude ge. Esse dado não seria problemático
rural (ver Castro, E. G., et al., 2009) é o não fossem as condições de acesso aos
acesso permanente à educação pública estabelecimentos de ensino. A Pesqui-
com um conteúdo teórico-pedagógico sa Nacional da Educação na Reforma
que dialogue com a realidade do campo. Agrária (Pnera) (Brasil, 2005) mos-

443
Dicionário da Educação do Campo

trou que, de um total de mais de 5.500 roça não precisam de estudos” (ibid.,
assentamentos pesquisados em todo o p. 126), e 70% “esperam que a maioria
país, em 87,8% deles o acesso é feito por dos jovens do assentamento entre na
estradas de terra. O principal meio de universidade” (ibid., p. 124).
transporte utilizado para ir à escola Assim, “ficar ou sair” do campo é
é percorrer o trajeto a pé para 57%, mais complexo do que a leitura da atra-
seguido de apenas 27% com acesso a ção pela cidade e nos remete à análi-
transporte escolar. Apesar desse qua- se de juventude como uma categoria
dro lastimável, a escolarização apare- social-chave pressionada pelas mudan-
ceu como muito valorizada.4 Entre os ças e crises da realidade no campo, e
entrevistados pela Pnera, 97% discor- para a qual a educação do campo tor-
dam que “os filhos que trabalham na nou-se uma questão estratégica.

Notas
1
A associação entre “jovem” e delinquência foi muito recorrente em pesquisas nas áreas
de psicologia e sociologia realizadas na Alemanha (ver Flitner, 1968). Nos Estados Unidos,
a Escola de Chicago privilegiava temas como delinquência e criminalidade, nos quais o
jovem aparece como um personagem em destaque ( ver Coulon, 1995). No Brasil, a Unesco
vem financiando, desde a década de 1990, pesquisas que analisam a juventude a partir de
enfoques que privilegiam questões como violência, cidadania e educação. Fazem parte desse
esforço trabalhos como o de Castro, M. G. et al., 2001.
2
Ver Deser, 1999;; Abramovay et al., 1998;; Carneiro, 1998;; Majerová, 2000;; e Jentsch e
Burnett, 2000.
3
A principal expressão dessa política de reforma agrária é o Plano Nacional de Reforma
Agrária, centrado em uma política de assentamentos rurais e regularização fundiária em
áreas de conflitos. Ver o portal do Ministério do Desenvolvimento Agrário: http://www.
mda.gov.br/portal/.
4
Essa também foi a impressão colhida na pesquisa Perfil da Juventude Brasileira (Abramo
e Branco, 2005). Os dados sobre juventude rural (669 entrevistados, representando 19% da
amostra total) foram analisados por Maria José Carneiro (2005), que revela semelhanças entre
o perfil de jovens rurais e urbanos nas quais o acesso à escolarização apareceu em destaque.

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446
L
LATIFÚNDIO
Leonilde Servolo de Medeiros

O termo latifúndio, de origem la- torização real, de porções de terras e


tina, era usado na Roma Antiga para acabava se miscigenando à população
referir-se às extensões de terra contro- indígena, passando a constituir um
ladas pela aristocracia, e passou a ser vasto contingente de mestiços ou ca-
utilizado para designar grandes pro- boclos. Esses posseiros, muitas vezes,
priedades de terra em geral. eram expropriados pelas grandes uni-
dades produtivas, em busca de terras
A origem do latifúndio para sua expansão. A população mais
pobre podia também obter autorização
no Brasil para viver dentro das grandes unidades
No Brasil, a origem dos latifúndios produtivas, como agregados ou mora-
dores de favor.
encontra-se no sistema de colonização.
Interessada em que sua colônia se vol- Com a independência do Brasil, L
tasse para a produção de bens para o foi extinto o regime de sesmarias, e
comércio exterior, a Coroa Portuguesa durante alguns anos o país ficou sem
recorreu à concessão de sesmarias, sis- lei que regulasse as concessões de
tema já utilizado em Portugal e regu- terras. Com a aprovação da Lei de Ter-
lamentado desde o século XIV. Quem ras (lei nº 601, de 18 de setembro de
as recebia, supostamente pessoas com 1850), esse quadro se modificou. Por
recursos financeiros, tinha o compro- meio dela, foram legitimadas as áreas
misso de cultivá-las, sob pena de perda anteriormente concedidas sob a forma
da concessão. Na história brasileira, a de sesmarias, bem como as posses. No
doação de sesmarias e a implantação de caso da posse, a regularização dependia
grandes unidades voltadas para a pro- da comprovação de uso com atividades
dução e a exportação (principalmente agrícolas e de existência de moradia ha-
de cana-de-açúcar) foram acompanha- bitual. Ficou ainda estabelecido que as
das pela tentativa de escravizar a popu- demais terras, transformadas em terras
lação indígena. Como essas iniciativas devolutas do Estado, só poderiam ser
se frustraram, buscou-se solucionar o obtidas por compra.
problema da mão de obra com a vin- Essa legislação consagrou o regime
da de escravos africanos. Assim, ficou de uso de terra que vinha da colônia:
como uma de suas marcas o trabalho predomínio de grandes unidades, com
forçado para o dono da terra. uso abundante de mão de obra (escrava
Contudo, também vinha para o num primeiro momento, livre no final
Brasil, em busca de melhora de suas do século XIX), voltadas para cultivos
condições, uma população mais pobre, destinados ao mercado externo – café,
principalmente masculina, que chegan- então principal produto da pauta de
do aqui se apossava, sem qualquer au- exportações e carro-chefe da econo-

447
Dicionário da Educação do Campo

mia nacional, cana-de-açúcar, algodão nização do Brasil após a Abolição da


e outros –, ou para a pecuária exten- Escravatura) em torno da necessidade
siva, no caso de terras não utilizadas de uma Reforma Agrária, política desti-
pela agricultura de exportação e mais nada a fazer desaparecer o latifúndio por
distantes dos portos. Essas proprie- meio de uma ampla distribuição de terras.
dades eram marcadas também pelo po- A proposta do segmento dos tenentes que
der dos grandes proprietários, poder fazia uma crítica radical ao latifúndio, no
que se estendia aos que habitavam seus entanto, não vingou.
arredores e aos municípios, por meio Nos anos 1950, o tema voltou a
do controle das Câmaras. ganhar fôlego no bojo de intensas dis-
cussões sobre a necessidade de desen-
Os debates em torno do volvimento e industrialização. Nesse
latifúndio momento, o termo latifúndio conso-
lidou o sentido que ganhara anterior-
Essas grandes propriedades passa- mente como sinônimo de monopólio da
ram a ser denominadas latifúndios, em terra, atraso tecnológico e relações
especial por seus críticos, e o termo as- de trabalho marcadas pela dependência
sumiu ao longo do tempo um caráter pessoal e pela exploração. Tornou-se o
eminentemente político. símbolo de um atraso que deveria ser
Nos anos 1920, no bojo dos deba- superado, quer fosse lido como expres-
tes sobre a constituição da identidade são do capitalismo (Caio Prado Jr.) ou
nacional, a importância da industriali- da presença de restos feudais (Alberto
zação etc., o tenentismo, movimento Passos Guimarães), como mostra
liderado por jovens oficiais do Exérci- Moacir Palmeira (1984).
to engajados no debate sobre os des- Com efeito, para além dos enfren-
tinos da nação, chamava atenção para tamentos teóricos sobre o significado
a relação existente entre o sistema la- do latifúndio como forma de caracte-
tifundiário, o coronelismo e o controle rizar o momento vivido pela formação
político dos eleitores e do voto pelos gran- social brasileira, o que marcou o perío-
des proprietários (Santa Rosa, 1963). Para do foi a construção social da figura do
pelo menos uma parcela dos tenentes, latifúndio como “emblema mítico” que
o latifúndio era tido como a principal “sintetizava um conjunto de normas,
razão do “atraso político” do Brasil e sua atitudes e comportamentos atualizados
extinção era importante para a democra- pelo conjunto dos proprietários rurais,
tização dos processos eleitorais. No respaldados pelo poder local” (Novaes,
entanto, os integrantes do movimento 1997, p. 51). É contra essa figura que se
divergiam quanto às medidas para eli- voltaram as organizações que falavam
miná-lo, como mostra a polêmica entre em nome dos trabalhadores do cam-
Juarez Távora e Luís Carlos Prestes no po (associações de lavradores, Ligas
início dos anos 1930, por ocasião da Camponesas e, já no início dos anos
ruptura desse último com o tenentis- 1960, sindicatos), propondo a Reforma
mo (Carone, 1973, p. 346-365). A par- Agrária, uma legislação trabalhista e a
tir daí, intensificou-se um debate (que regulamentação das formas de acesso
já havia ganhado espaço público por temporário às terras, como é o caso da
ocasião das discussões sobre a reorga- parceira e do arrendamento.

448
Latifúndio

A definição legal de latifúndio dores que nela labutavam, assim como


de suas famílias;; b) mantinha níveis sa-
Após o golpe militar de 1964, o ter- tisfatórios de produtividade;; c) assegu-
mo latifúndio, no entanto, ganhou uma rava a conservação dos recursos natu-
definição legal, por força do Estatuto rais;; d) observava as disposições legais
da Terra (lei nº 4.504, de 30 de novem- que regulam as justas relações de tra-
bro de 1964), lei que, pela primeira vez, balho entre os que a possuem e aqueles
estabeleceu os parâmetros da Reforma que a cultivam. Além disso, regulamen-
Agrária no Brasil. tou os contratos de arrendamento e parce-
O Estatuto da Terra classificou os ria, relações que sempre foram conflitivas
imóveis rurais em quatro categorias, de no meio rural e que foram constitutivas da
acordo com o seu tamanho em termos definição socialmente vigente de latifún-
de módulos rurais (unidade de medida, dio (Medeiros, 2002).
em hectares, que buscava exprimir a O objetivo da Reforma Agrária era,
interdependência entre a dimensão, a segundo essa lei, a gradual extinção de
situação geográfica dos imóveis rurais minifúndios e latifúndios, considera-
e a forma e as condições do seu apro- dos fontes de tensão social no campo.
veitamento econômico): Já a empresa, que poderia inclusive ser
• minifúndios: propriedades com área uma propriedade de caráter familiar,
inferior a um módulo rural e, portan- tornava-se o modelo ideal de imóvel e L
to, incapazes, por definição, de pro- de uso da terra. O caminho para que
ver a subsistência do produtor e de o latifúndio se convertesse em empre-
sua família;; sa seria a desapropriação (prevista so-
• latifúndios por exploração: imóveis mente em casos de existência de ten-
com área de 1 a 600 módulos, manti- são social), a tributação progressiva e
dos inexplorados em relação às possi- medidas de apoio técnico e econômico
bilidades físicas, econômicas e sociais à produção.
do meio em que se encontravam, com
Com isso, alguns dos termos que ha-
fins especulativos, ou que fossem ina-
viam se politizado no debate do início dos
dequadamente explorados;;
anos 1960 ganharam o status de categorias
• latifúndios por extensão: aqueles
com área superior a 600 módulos, legais, com critérios relativamente preci-
independentemente do tipo e carac- sos de definição. Essa categorização cris-
terísticas da produção nela desen- talizou o estigma que pesava tanto sobre
volvida;; o latifúndio quanto sobre o minifúndio
• empresas: imóveis com área de 1 a e estabeleceu como meta sua progressi-
600 módulos, caracterizados por ní- va extinção, em nome de um padrão de
veis de aproveitamento do solo e por racionalidade da exploração agrícola con-
uma racionalidade na exploração com- siderada como o ideal a ser atingido (a em-
patíveis com os padrões regionais. presa rural).
O documento ainda definia que a pro- O Estatuto da Terra previu as condi-
priedade da terra desempenhava inte- ções institucionais que possibilitavam a de-
gralmente a sua função social quando, sapropriação por interesse social e a trans-
simultaneamente: a) favorecia o bem- formação do latifúndio em empresa. No
estar dos proprietários e dos trabalha- rearranjo de forças políticas que se seguiu

449
Dicionário da Educação do Campo

ao Golpe de 1964 e com o peso que, nessa nificativa dos trabalhadores que viviam
articulação política, tiveram os interesses no interior das fazendas (como colonos,
ligados aos grandes proprietários de terra, moradores, parceiros e arrendatários). As
a opção dos governos militares foi pelo grandes empresas que compraram ou ob-
incentivo à modernização tecnológica das tiveram concessões de terras nas áreas de
grandes propriedades, com incentivos fis- fronteira buscavam expulsar os posseiros
cais e crédito farto e barato. As limitações que lá viviam e restringir as dimensões
no tamanho de terras (até 3.000 hectares) dos territórios ocupados por grupos indí-
a serem concedidas sem autorização do genas, ampliando o campo de conflito. A
Senado Federal viraram letra morta. A ca- isso se somava outra dimensão: o avan-
tegoria latifúndio por extensão foi esque- ço sobre novas áreas e a reocupação
cida e foram dados incentivos não só à sua das antigas com tecnologias de ponta
transformação tecnológica, como também para a produção de exportação, com
se criaram condições favoráveis para que a concomitante devastação da vegeta-
essa forma de propriedade se viabilizasse ção nativa, seja da Mata Atlântica, do
nas regiões de fronteira agrícola, por meio Cerrado ou da Floresta Amazônica.
de concessões de terras públicas e demais Em resultado, os conflitos por terra e
políticas de incentivo à produção. por direitos se ampliaram, permanecendo
Esses estímulos atraíram também o latifúndio como símbolo de relações de
grandes empresas do setor industrial e exploração e opressão. No que se refere
financeiro para o meio rural, interessadas às pequenas propriedades, em especial no
na especulação com a terra. Com esse tipo sul do país, o endividamento causado pelo
de política, a ideia de criação de uma clas- esforço de acompanhar a modernização
se média rural deixou de ser relevante. Da levou muitos pequenos proprietários a
mesma forma, perdeu-se de vista que a vender suas terras, facilitando ainda mais
definição de empresa não poderia ser feita a concentração fundiária.
apenas pelas suas características produti- Com suas organizações fortemente
vas, mas também pelo respeito à legislação reprimidas, a própria luta dos camponeses
trabalhista e pela preservação ambiental, por direitos ficava extremamente limitada.
condição para que o imóvel cumprisse No início dos anos 1980, o latifúndio ain-
a sua função social, segundo o Estatuto da se mantinha como um “emblema míti-
da Terra. co” (Novaes, 1997), mas já correspondia
Ao longo das transformações que im- a um novo modelo de produção. Contra
plicaram a modernização tecnológica das ele se voltavam todas as organizações que
atividades agropecuárias – mecanização representavam os trabalhadores rurais – o
em larga escala, introdução de insumos MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS
químicos, aumento de produtividade, SEM TERRA (MST), a Confederação dos
agroindustrialização, redução drástica da Trabalhadores na Agricultura (Contag),
população rural em relação à urbana e o Conselho Nacional dos Seringueiros
expansão da fronteira agrícola –, as con- (CNS) etc. – e as entidades que lhes da-
dições de trabalho no meio rural se de- vam apoio, com destaque para a COMISSÃO
terioraram, bem como as condições de PASTORAL DA TERRA (CPT) (ver SINDICA-
reprodução da propriedade familiar. O LISMO RURAL).

rápido processo de modernização trouxe A proposta de um Plano Nacional de


consigo a expropriação de parcela sig- Reforma Agrária (PNRA), apresentada

450
Latifúndio

logo no início da Nova República, voltava- datários ou parceiros. Nesse caso, des-
se fundamentalmente contra o latifúndio de que os proprietários cumprissem os
e, com base numa leitura desapropria- princípios legais reguladores dos con-
cionista do Estatuto da Terra, procurava tratos, não se fariam desapropriações.
extirpá-lo. A apresentação da proposta Criavam-se, assim, condições para a
de plano resultou em forte reação dos revalorização dessas formas de explo-
proprietários de terra, e não daqueles ração da terra que se mostravam, de
dos rincões mais distantes, onde su- há muito, geradoras de conflito e que
postamente estaria o latifúndio, mas sempre tiveram a marca da precária uti-
dos setores mais modernizados, que lização e do absenteísmo patronal, tra-
tinham uma face de empresa (a mo- ço característico do que se considerava
dernidade tecnológica) e outra face do até então como latifúndio.
latifúndio tradicional (desrespeito aos
direitos dos trabalhadores e à preser- A Constituição de 1988
vação ambiental).
e seus resultados
Ao longo dos debates em torno
do PNRA, ganhou fôlego a ênfase na Os pontos centrais dos debates
negociação com os proprietários, em em torno do PNRA mantiveram-se na
lugar da desapropriação, eliminando- pauta da Assembleia Nacional Cons-
se a conotação punitiva que as desa- tituinte de 1988. O produto final im- L
propriações tinham no plano. Parale- plicou uma tensão entre as ideias de
lamente, desenvolveu-se a crítica aos produtividade e de função social. A
imóveis mantidos com fins meramente Constituição de 1988 afirma que a
especulativos e também uma polêmi- propriedade deve atender à sua fun-
ca a respeito da definição do que era ção social (art. 5º, XXIII), com uma
imóvel “produtivo” (portanto, não definição explícita do que se entende
passível de desapropriação). Na reda- por tal, inspirada no Estatuto da Ter-
ção final do PNRA (e nos documentos ra: aproveitamento racional, utilização
subsequentes), ficou preservado todo adequada dos recursos naturais dis-
imóvel rural que estivesse “em produ- poníveis e preservação do meio am-
ção”, entendendo-se por produção até biente, observância das disposições
mesmo a existência de um projeto de que regulam as relações de trabalho
aproveitamento ou, ainda, a exploração e exploração que favoreça o bem-
de parte do imóvel. Com isso, firmou- estar dos proprietários e trabalhado-
se uma tendência a reduzir a função res. Também tornou insuscetível de
social da propriedade a índices de pro- desapropriação para fins de Reforma
dutividade, deixando em segundo pla- Agrária a pequena e a média proprie-
no os demais elementos que, segundo dades rurais. O mais significativo, no
o Estatuto da Terra, compunham a sua entanto, foi a inserção de um artigo
definição. Enquanto categoria legal, determinando que a propriedade pro-
o latifúndio foi sendo ressignificado. dutiva não poderia ser desapropriada.
Também se inverteu a leitura contida A Constituição foi regulamentada
no Estatuto da Terra, que dava prio- pela Lei Agrária, como é conhecida a
ridade na desapropriação aos imóveis lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993.
que tivessem alta incidência de arren- Essa lei definiu que a propriedade que

451
Dicionário da Educação do Campo

não cumprisse a sua função social era mudanças importantes. O processo


passível de desapropriação;; manteve produtivo se modernizou (deslocando
os critérios constitucionais para defi- o atraso tecnológico que estava na raiz
nição da função social;; estabeleceu que de muitos debates em torno da pro-
as terras rurais públicas (de domínio priedade da terra nas décadas de 1950
da União, dos estados ou dos municí- e 1960), mas não foram modernizadas as
pios) passariam a ser destinadas prefe- relações de produção – pelo contrário,
rencialmente à execução da Reforma multiplicam-se as denúncias sobre
Agrária;; confirmou o banimento dos formas de trabalho degradantes – e
termos da lei da categoria latifúndio, muito menos desapareceu a violência,
substituída por um critério menos po- outra característica da definição de la-
litizado, o do tamanho, calculado em tifúndio cunhada nos anos 1950-1960.
módulos fiscais, unidade expressa em No que se refere à dimensão ambien-
hectares e fixada para cada município, tal, presente na definição de empresa
considerando o tipo de exploração constante do Estatuto da Terra, o es-
predominante, e a renda obtida com tímulo à produção e à ocupação de
ela, e outras explorações existentes novas áreas resultou numa profunda
no município que, embora não pre- degradação dos solos e da vegetação
dominantes, fossem significativas em nativa, colocando inclusive em ameaça
função da renda ou da área utilizada. as nascentes.
Segundo essa definição, as proprie- A agricultura se articulou aos com-
dades com até 4 módulos fiscais eram plexos agroindustriais (CAIs) e tor-
consideradas pequenas, aquelas com nou-se parte de um complexo sistema
4 a 15, médias e as com área acima hoje denominado de agronegócio, o
de 15 hectares, grandes propriedades. qual, para se reproduzir, necessita de
E somente a grande propriedade seria grande disponibilidade de terras, quer
passível de desapropriação, desde que, pela exigência de escala produtiva
seguindo os preceitos constitucionais, imposta pelo patamar tecnológico,
não fosse produtiva. Com isso, a pos- quer para que sirvam de estoque, às
sibilidade de desapropriação de terras vezes por longos períodos, à espera
passava a ficar na dependência de in- do momento propício para serem co-
termináveis processos administrativos locadas em produção.
e judiciais. Caindo em desuso por causa da
perda progressiva de sua força políti-
O latifúndio hoje ca, o termo latifúndio tem sido cada
vez mais substituído nos embates po-
A progressiva modernização da líticos por agronegócio, palavra mais
agricultura brasileira conferiu novo sig- abrangente, que remete à proprieda-
nificado ao termo latifúndio. Se ele re- de da terra, mas principalmente às
mete ainda ao significado original, complexas articulações agropecuária/
relacionado ao tamanho do imóvel, o indústria que determinam hoje, inclu-
fato é que as características da proprie- sive, os parâmetros do funcionamento
dade da terra no Brasil passaram por do mercado fundiário.

452
Legislação Educacional do Campo

Para saber mais


CARONE, E. O tenentismo. São Paulo: Difel, 1973.
MEDEIROS, L. S. de. Movimentos sociais, disputas políticas e Reforma Agrária de mercado
no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRRJ, 2002.
NOVAES, R. R. De corpo e alma: catolicismo, classes sociais e conflitos no campo.
Rio de Janeiro: Graphia, 1997.
PALMEIRA, M. Os anos 60: revisão crítica de um debate. In: ANAIS DO SEMINÁRIO
REVISÃO CRÍTICA DA PRODUÇÃO SOCIOLÓGICA VOLTADA PARA A AGRICULTURA. São
Paulo: Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, 1984.
SANTA ROSA, V. Que foi o tenentismo? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
(Segunda edição do livro O sentido do tenentismo.)
SILVA, L. O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora
da Unicamp, 1996.

L
L
LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DO CAMPO
Mônica Castagna Molina

No decorrer da construção das tora enfatiza que a prática de declarar


práticas e do ideário da Educação do direitos os inscreve nos âmbitos social
Campo, esse movimento conquista im- e político, e requer o reconhecimento
portantes marcos legais que contribuem de todos sobre estes, exigindo, por-
para o fortalecimento das lutas pela de- tanto, consentimento social e político
mocratização do direito à educação dos para sua efetivação. Conquistar este
sujeitos camponeses. Este verbete trata consentimento representa simultanea-
do conteúdo que se logrou inserir nas mente avanço e desafio para a manu-
legislações específicas à execução da tenção destes direitos, entendendo-os,
Educação do Campo, bem como obje- também, em permanente processo de
tiva contribuir para a reflexão sobre seu instituição e destituição, relacionado
significado e seu processo de constru- às forças presentes nas relações sociais
ção como elementos integrantes da tría- em dado período histórico.
de campo–política pública–educação. Conforme debate apresentado no
Marilena Chauí (1989, p. 20) des- verbete P OLÍTICAS P ÚBLICAS , a ação
taca que a positivação de um direito do Estado para garantir direitos so-
refere-se à necessidade profunda de se ciais requer estratégias de intervenção
estabelecer ou reafirmar a compreen- na sociedade, por meio de programas
são coletiva de determinados valores que deem materialidade a estes direi-
para o conjunto da sociedade. A au- tos. Sua reafirmação nos marcos legais

453
Dicionário da Educação do Campo

supraconstitucionais legitima e expli- Campo (Doebec nº 1 e nº 2, de 2002 e


cita a organização das ações a serem 2008 respectivamente), expedidas pela
executadas pelo Estado. Câmara de Educação Básica (CEB),
O conteúdo dessas legislações, do Conselho Nacional de Educação
conquistadas mediante o protagonismo (CNE);; o parecer nº 1, de 2006, tam-
dos movimentos sociais camponeses, bém expedido pela CEB, que reconhe-
tem dispositivos úteis às necessárias ce os dias letivos da alternância;; e, mais
disputas a serem feitas nos diferentes recentemente, o decreto nº 7.352, de
níveis de governo, seja no federal, seja 2010, que dispõe sobre a Política Na-
nas instâncias estaduais e municipais, cional de Educação do Campo e sobre
muito vezes mais refratárias à garantia o PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO
dos direitos, em razão da maior apro- NA REFORMA AGRÁRIA (PRONERA).

priação destes espaços de poder pelas Além destas normatizações especí-


oligarquias locais. ficas, são também instrumentos legais
Ao mesmo tempo que se conquis- imprescindíveis à execução da garantia
tam avanços que garantem legitimida- do direito à educação escolar dos po-
de para as experiências inovadoras em vos do campo os marcos legais defini-
curso, fecham-se escolas no meio rural dos na Constituição Federal de 1988.
cada vez com mais frequência no país, Nela, a educação integra o rol dos di-
fato decorrente do confronto de proje- reitos sociais fundamentais, e o deta-
tos e finalidades de uso do campo. O lhamento das obrigações do Estado na
estabelecimento das disposições legais é sua oferta encontra-se nos artigos 205
passo importante na exigência do direi- e seguintes, que tratam das condições e
to à educação dos povos do campo, mas garantias do DIREITO À EDUCAÇÃO nos
insuficiente para a sua garantia. Somente diferentes níveis e modalidades.
a luta coletiva do campesinato e de seus Aliado aos dispositivos da Consti-
aliados tem condições de fazer valer os tuição Federal, está também definida
direitos positivados. É necessário forte na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), lei
trabalho da sociedade civil organizada, no 9.394/1996, nos seus artigos 23, 26
e do próprio Ministério Público, para e 28, a especificidade do campo no que
pressionar os responsáveis do Poder diz respeito ao social, cultural, político
Executivo, nas diferentes instâncias de e econômico. No caput do artigo 28 da
governo, a garantir a oferta da educação LDB, encontra-se a garantia do direito
escolar a fim de materializar este direito dos sujeitos do campo à construção de
para os camponeses. A existência dos um sistema de ensino adequado à sua
marcos legais conquistados é ferramen- diversidade sociocultural, requerendo
ta importante nessa luta. das redes as necessárias adaptações de
Merecem destaque neste verbete organização e metodologias, e currícu-
alguns dispositivos legais conquis- los que contemplem suas especificida-
tados que reconhecem as condições des. Tal caput dispõe que: “Na oferta da
necessárias para que a universalidade educação básica para a população ru-
do direito à educação se exerça respei- ral, os sistemas de ensino promoverão
tando as especificidades dos sujeitos as adaptações necessárias à sua adequa-
do campo: as Diretrizes Operacionais ção às peculiaridades da vida rural e de
para a Educação Básica nas Escolas do cada região” (Brasil, 1996).

454
Legislação Educacional do Campo

Além desta determinação geral con- dos movimentos sociais nas audiências
tida no artigo 28, há também o detalha- públicas que antecederam a elaboração
mento de como podem ser respeitadas das diretrizes, em seus artigos 5º, 7º,
estas especificidades para garantia do 8º e 9º, legitimam-se possibilidades de
direito à educação, explicitadas nos in- alterações na organização do trabalho
cisos de I a III deste artigo, e que dis- pedagógico, na organização curricu-
põem respectivamente sobre a garantia lar, e nos tempos educativos a serem
de: “conteúdos curriculares e metodo- vivenciados na construção da ESCOLA
logias apropriadas às reais necessidades DO CAMPO.
e interesses dos alunos da zona rural;; As determinações constantes nas
organização escolar própria, incluindo diretrizes que estabelecem as obriga-
a adequação do calendário escolar às ções do poder público são ferramentas
fases do ciclo agrícola e às condições importantes na luta política para a sua
climáticas;; adequação à natureza do materialização, além dos dispositivos
trabalho na zona rural”. que determinam a obrigatoriedade do
De acordo com o parecer que oferecimento da educação infantil e
acompanha as Diretrizes Operacionais das séries iniciais nas próprias comu-
para a Educação Básica nas Escolas do nidades rurais, o que tem sido flagran-
Campo, a Educação do Campo “tem temente descumprido pelos sistemas
um significado que incorpora os espa-
ços da floresta, da pecuária, das minas
municipais de ensino. O artigo 6º da
Doebec de 2002 dispõe que “o Poder
L
e da agricultura, mas os ultrapassa ao Público, no cumprimento das suas
acolher em si os espaços pesqueiros, responsabilidades com o atendimento
caiçaras, ribeirinhos e extrativistas” escolar e à luz da diretriz legal do re-
(Brasil, 2001). A intencionalidade da gime de colaboração entre a União, os
definição apresentada é que a garantia estados, o Distrito Federal e os muni-
do direito à educação que propugna cípios, proporcionará educação infantil
considere a incorporação dos diferen- e ensino fundamental nas comunidades
tes sujeitos que garantem suas condi- rurais” (Brasil, 2002).
ções de reprodução social a partir do Outro aspecto a se destacar das
trabalho ligado diretamente à natureza, diretrizes refere-se à incorporação em
assim como definem as diretrizes, ao suas determinações de princípios fun-
afirmar que, “nesse sentido, mais do dantes da Educação do Campo no que
que um perímetro não urbano, é um se refere às práticas de gestão da es-
campo de possibilidades que dinami- cola, que devem ser compartilhadas,
zam a ligação dos seres humanos com tal como disposto no artigo 10o, que
a própria produção das condições da estabelece que a gestão deverá cons-
existência social e com as realizações da tituir “mecanismos que possibilitem
sociedade humana” (ibid). estabelecer relações entre a escola, a
No artigo 3º das Doebec (Brasil, comunidade local, os movimentos so-
2002 e 2008), reafirma-se a obrigato- ciais, os órgãos normativos do sistema
riedade de o poder público garantir de ensino e os demais setores da so-
a universalização do acesso da popu- ciedade” (Brasil, 2002). A relação da
lação do campo à educação básica. escola do campo com a comunidade
Também como resultante da presença é ponto nevrálgico de sua estruturação

455
Dicionário da Educação do Campo

e da garantia de sua identidade como continuidade. Além da importância de


tal. A inserção desta prescrição nos enfatizar a Educação do Campo como
marcos legais, com a explicitação nas política de Estado, é relevante destacar,
diretrizes da presença dos movimentos do conjunto dos artigos que compõem
sociais no seu interior, é de vital im- o decreto no 7.352/2010, o que se con-
portância para a materialização desta venciona chamar de “espírito da lei”,
identidade, e está mais esclarecida no ou seja, o que constitui o pilar estrutu-
verbete ESCOLA DO CAMPO. rante, os objetivos principais de deter-
A construção desta proposta de minado diploma legal.
escola do campo, com suas especifici- No caso do referido decreto, en-
dades no que diz respeito à relação de contra-se, como sua função principal, a
produção de conhecimento e de ino- obrigatoriedade de o Estado brasileiro
vações na organização do trabalho pe- instituir formas de ampliar e qualificar
dagógico, se faz acompanhar nas dire- a oferta da educação básica e superior
trizes pelas exigências de formação de aos sujeitos do campo. Tais determi-
educadores próprios para o exercício nações estão presentes em diferentes
da função docente no campo, tal como artigos e incisos deste diploma legal.
exigem os movimentos sociais. No ar- Assim, pode-se afirmar que o objetivo
tigo 12 das Doebec de 2002, determi- principal do decreto no 7.352/2010 é a
na-se que a formação dos educadores instituição de ações do Estado brasilei-
para a Educação do Campo se faça de ro que visem promover concretamente
acordo com o disposto nos artigos 12, a materialização do direito à educa-
13, 61 e 62 da LDB, exigindo-se ainda ção escolar para os camponeses. Cabe
a incorporação, nestes processos for- ressaltar que o próprio artigo 1o, que
mativos, do estudo sobre a diversidade estabelece os fins da política nacional,
cultural e os processos de transforma- institui que esta “destina-se à amplia-
ção existentes no campo brasileiro, e ção e qualificação da oferta da Edu-
o respeito ao “efetivo protagonismo cação Básica e Superior às populações
das crianças, dos jovens e dos adultos do campo” (Brasil, 2010).
do campo na construção da qualidade Aspecto relevante deste decreto
social de vida individual e coletiva” que institui a Política Nacional de Edu-
(Brasil, 2002). cação do Campo está contido no reco-
Este protagonismo não só tem ga- nhecimento jurídico, materializado por
rantido a inovação nas práticas peda- este diploma legal, tanto da universa-
gógicas em curso, como também tem lidade do direito à educação quanto da
feito avançar o reconhecimento le- obrigatoriedade do Estado de promover
gal destas inovações, tanto assim que intervenções que atentem para as espe-
se destaca, como aspecto central do cificidades necessárias ao cumprimento
decreto no 7.352, de 2010, o fato de e garantia desta universalidade.
este ter alçado a Educação do Campo à Há que se destacar, nesse diplo-
política de Estado, superando os li- ma legal, a incorporação do reconhe-
mites existentes decorrentes do fato cimento das especificidades sociais,
de sua execução dar-se apenas por culturais, ambientais, políticas e eco-
meio de programas de governo, sem nômicas do modo de produzir a vida
nenhuma garantia de permanência e no campo. O inciso I do parágrafo 1o

456
Legislação Educacional do Campo

do referido decreto traz não só extensa não lograram ainda ações proporcio-
lista de tipificação das populações do cam- nais à magnitude do problema). Dentre
po (agricultores familiares, extrativis- elas, destacam-se a taxa de analfabetis-
tas, pescadores artesanais, ribeirinhos, mo da população de 15 anos ou mais,
assentados e acampados da Reforma que apresenta um patamar de 23,3% na
Agrária, quilombolas, caiçaras, povos área rural, três vezes superior àquele da
da floresta e caboclos), como reco- zona urbana, que se encontra em 7,6%;;
nhece, contidas nesta categoria, outras a escolaridade média da população de
populações não explicitadas no corpo 15 anos ou mais que vive na zona rural,
da lei, que “produzam suas condições que é de 4,5 anos, enquanto, no meio
materiais a partir do trabalho no meio urbano, na mesma faixa etária, é de 7,8
rural” (Brasil, 2010). anos;; as condições de funcionamento
Também se destaca a importância das escolas de ensino fundamental, que
do acolhimento, no referido decre- são extremamente precárias, pois 75%
to, da concepção de escola de campo, dos alunos são atendidos em escolas
definindo como suas características que não dispõem de biblioteca;; 98%,
identificadoras não só a localização em em escolas que não possuem laborató-
território rural, mas também reconhe- rio de ciências;; e 92%, em escolas que
cendo como tais as escolas que não se não possuem acesso à internet (Molina,
situam neste espaço, mas que atendem
predominantemente populações do campo,
Oliveira e Montenegro, 2009, p. 4). L
Estes indicadores expõem a urgen-
conforme explicitação desta categoria te necessidade da adoção de políticas
feita no inciso I do parágrafo 1o, ante- afirmativas para o enfrentamento des-
riormente comentado. tas privações, em função das variadas
O decreto no 7.352, no caput do arti- consequências que geram ao negar o
go 3o, reconhecendo esta especificida- desenvolvimento amplo e integral não
de, determina que caberá à União criar só desses indivíduos, mas também das
e implementar mecanismos “com o ob- comunidades rurais às quais perten-
jetivo de superar as defasagens históri- cem. O fato de este decreto determinar
cas de acesso à educação escolar pelas que o Estado conceba, e execute, polí-
populações do campo” (Brasil, 2010), ticas específicas para acelerar a supres-
desenvolvendo políticas específicas são das históricas defasagens no direito
para enfrentar os problemas mais gra- à educação dos povos do campo fun-
ves e persistentes, entre eles: reduzir os damenta-se na compreensão sustenta-
indicadores de analfabetismo;; fomen- da por estudiosos das políticas públicas
tar políticas de educação de jovens e (por exemplo, Kerstenetzky) que defen-
adultos;; garantir condições de infraes- dem que, para restituir a grupos sociais
trutura básica para as escolas (energia o acesso efetivo a direitos universais
elétrica, água potável e saneamento);; e formalmente iguais, que, por diversos
promover nelas a inclusão digital . fatores históricos, não foram garanti-
A exigência de políticas afirmati- dos na prática, faz-se necessária uma
vas para essas situações dá-se funda- intervenção do Estado com progra-
mentada em estatísticas que expõem a mas afirmativos específicos para enfren-
absurda privação do direito à educação tar estas desigualdades. Pois, conforme
escolar no campo (políticas estas que Kerstenetzky, “sem ação – política – e

457
Dicionário da Educação do Campo

programa direcionados especificamen- mação de professores para a Educação


te aos grupos sociais que foram histo- do Campo observará os princípios e
ricamente excluídos do acesso aos di- objetivos da Política Nacional de For-
reitos” (2005, p. 8), estes direitos não mação de Profissionais do Magistério
se materializarão de fato. É preciso, da Educação Básica” (Brasil, 2010),
portanto, que o Estado promova ações reconhecendo, no parágrafo único
que supram as defasagens históricas do mesmo artigo, que a formação de
acumuladas na fruição dos mesmos. professores do campo poderá ser feita
Kerstenetzky enfatiza que esses pro- concomitantemente à atuação profis-
gramas e ações afirmativas “comple- sional, “de acordo com metodologias
mentariam políticas públicas universais, adequadas, inclusive a pedagogia da al-
afeiçoando-se à sua lógica, na medida ternância, e sem prejuízo de outras que
em que diminuiriam as distâncias que atendam às especificidades da Educação
normalmente tornam irrealizável a no- do Campo, e por meio de atividades de
ção de igualdades de oportunidades ensino, pesquisa e extensão” (ibid). O
embutidas nesses direitos” (ibid., p. 8). estabelecimento deste dispositivo con-
sagra também importante vitória do
No artigo 4o do referido decreto,
movimento da Educação do Campo,
e em seus nove incisos, que tratam da
pois torna perene a obrigação do Esta-
educação infantil à educação superior,
do de garantir a oferta de políticas espe-
reafirma-se que, para garantir “a am-
cíficas de formação de educadores nas
pliação e a qualificação da oferta da edu- instituições públicas de ensino supe-
cação básica e superior aos povos do rior, consolidando, porém, estratégia de
campo” (Brasil, 2010), a União apoiará oferta diferenciada que não inviabilize a
técnica e financeiramente os estados continuidade destes sujeitos no campo.
e municípios, em seus respectivos siste-
mas para a implantação de programas Considera-se como uma concreta
específicos que objetivem maximizar a possibilidade de expansão da educação
oferta dos diferentes níveis de ensino superior aos sujeitos do campo a conso-
aos povos do campo. Encontra-se, ain- lidação de sua oferta com base na alter-
da, no inciso IX, parágrafo 1o, do arti- nância. Embora a alternância fosse co-
mum na oferta da educação básica, em
go 4o, dispositivo que determina que a
função da antiga experiência das escolas
União aloque recursos específicos para
famílias agrícolas (EFAs) no Brasil, não
ações nas áreas de Reforma Agrária. O
havia acúmulo anterior relevante desta
decreto também dispõe, em seu artigo
modalidade de oferta na educação su-
4o, inciso V, o apoio da União à cons-
perior. Este acúmulo conquistou-se a
trução, à reforma, à adequação e à am-
partir dos cursos do Pronera, que, ao
pliação das escolas do campo.
garantir o acesso à educação superior
Além disso, o decreto determina o para os sujeitos do campo em diferen-
apoio da União aos sistemas de ensino tes áreas do conhecimento – com seus
para a formação específica de educado- cursos de Pedagogia da Terra, História,
res do campo, no inciso VI do artigo Ciências Agrárias, Geografia, Artes,
4o. Ele também explicita, no artigo 5o, a Direito, Agronomia, Comunicação, En-
legitimidade e a necessidade dessas po- fermagem, entre outros – foi consoli-
líticas específicas de formação, ao dis- dando a possibilidade e exequibilidade
por, no caput deste artigo, que a “for- dessa modalidade de oferta.

458
Legislação Educacional do Campo

É pela importância histórica, e manecer, por seguidos períodos, nos


pelos acúmulos produzidos na últi- processos tradicionais de educação, o
ma década, que o decreto que institui que necessariamente os impediria de
a Política Nacional de Educação do conciliar o trabalho e a escolarização
Campo reconhece e legitima o Progra- formal. O Pronera tem se tornado,
ma Nacional de Educação na Reforma efetivamente, uma estratégia de de-
Agrária como elemento integrante des- mocratização do acesso à escolariza-
ta política de Estado. O Pronera tem ção para os trabalhadores das áreas
viabilizado o acesso à educação formal de Reforma Agrária no país, em dife-
a centenas de jovens e adultos das áre- rentes níveis de ensino e áreas do
as de Reforma Agrária. Não fossem as conhecimento. O decreto, portanto,
estratégias de oferta de escolarização ao instituir o Pronera como política
adotadas pelo programa, pautadas nas de Estado, faz este reconhecimento
práticas já acumuladas pelos movimen- e, dispõe, do 11 o ao 17 o artigos sobre
tos, entre as quais se destaca a alternân- mecanismos para a sua consolidação,
cia, com a garantia de diferentes tem- reafirmando seus objetivos, benefici-
pos e espaços educativos, estes jovens ários, estratégias de funcionamento e
e adultos não teriam se escolarizado condições de oferta, financiamento
por causa da impossibilidade de per- e gestão.

Para saber mais


L
B RASIL . M INISTÉRIO DA E DUCAÇÃO (MEC). Parecer CEB/CNE nº 3/2008.
Brasília: MEC, 2008. Disponível em: portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2008/
pceb003_08.pdf. Acesso em: 4 jan. 2012.
______. ______. Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002: institui Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília: MEC/
CNE/CEB, 2002.
______. ______. Parecer CEB/CNE nº 36/2001. Brasília: MEC, 2001. Disponível
em: portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/EducCampo01.pdf. Acesso em: 4 jan.
2012.
______. ______. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabelece as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.
______. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto no 7.352, de 4 de novembro de 2010:
dispõe sobre a Política Nacional de Educação do Campo e sobre o Programa Nacio-
nal de Educação na Reforma Agrária. Diário Oficial da União, Brasília, 4 nov. 2010.
CHAUÍ, M. Direitos humanos e medo. In: FESTER, A. C. R. (org.). Direitos humanos
e... São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 15-35.
KERSTENETZKY, C. L. Políticas sociais: focalização ou universalização. Niterói:
Universidade Federal Fluminense, out. 2005. (Texto para discussão, n. 180).
MOLINA, M. C.;; OLIVEIRA, L. L. N. A.; MONTENEGRO, J. L. Das desigualdades aos direi-
tos: a exigência de políticas afirmativas para a promoção da equidade educacional
no campo. Brasília: CDES/Sedes, 2009.

459
Dicionário da Educação do Campo

LEGITIMIDADE DA LUTA PELA TERRA


José Carlos Garcia

O Brasil sempre se caracterizou Fundamentalmente, podemos concei-


pela grande concentração de riqueza. tuar Estado democrático de direito
E, historicamente, boa parte desta ri- como o Estado nacional dotado de uma
queza esteve representada pela terra. Constituição que organiza e limita o
Desde a formação do Brasil colonial, poder e o seu exercício, e que submete
com as capitanias hereditárias e a pos- formalmente este exercício à observân-
terior doação de sesmarias pela Coroa, cia de regras jurídicas socialmente esta-
a propriedade da terra sempre foi muito belecidas por meio de procedimentos
concentrada no Brasil (ver ESTRUTURA democráticos que traduzam a sobera-
F UNDIÁRIA , L ATIFÚNDIO e Q UESTÃO nia popular. Os juristas portugueses
AGRÁRIA). Diz-se que foi brasileiro um Gomes Canotilho e Vital Moreira (1991,
dos maiores latifúndios jamais forma- p. 82) sustentam que três elementos ca-
dos em todo o mundo, o pertencente racterizam esse Estado: juridicidade, no
à família Garcia D’Ávila, com cerca de sentido de submissão do poder político
300 mil km2 de extensão, área três ve- ao sistema legal como forma de evitar
zes maior do que Portugal. Por isso, a o arbítrio;; constitucionalidade, no sen-
questão agrária desde muito cedo este- tido de que o Estado deve ser dotado
ve no centro das lutas de emancipação de uma Constituição com pretensão de
no Brasil, fossem elas abolicionistas, supremacia sobre o restante do sistema
republicanas ou separatistas, e atraves- legal (elemento que precisaria ser rela-
sou os séculos até os dias atuais – como tivizado para abranger a Inglaterra, por
é o caso de movimentos tão díspares exemplo);; e direitos e liberdades fundamen-
e importantes quanto a Revolução tais, previstos e assegurados pela Cons-
Farroupilha, a Sabinada, a Balaiada, a tituição e pelo sistema legal, de modo
Cabanagem ou a Revolta de Canudos, a preservar a autonomia dos cidadãos
e que redundaram em organizações perante os poderes públicos. Trata-se
como as Ligas Camponesas, as Uniões de um conceito (e de uma formação so-
de Lavradores e Trabalhadores Agríco- cial concreta, que por aproximação lhe
las do Brasil (Ultabs) ou o antigo Mo- corresponde) historicamente construí-
vimento dos Agricultores Sem Terra do a partir dos movimentos revolucio-
(Master), já no século XX, interrompi- nários burgueses dos séculos XVIII e
das pelo Golpe de 1964. XIX e que foi desenvolvendo-se nos
Pode-se falar em legitimidade da intensos conflitos sociais, ideológicos e
luta pela terra sob várias formas. Aqui bélicos do século XX.
falaremos rapidamente sobre algumas No Brasil, faz-se constantemente
delas e sua articulação com o Estado um questionamento sobre as formas
democrático de direito. Pressupõe-se, radicais de luta pela terra, em especial
portanto, uma definição mínima do que sobre as ocupações de terras improdu-
queremos dizer com esta expressão. tivas ou de prédios públicos pertencen-

460
Legitimidade da Luta pela Terra

tes a órgãos direta ou indiretamente pados por movimentos em defesa da


ligados à política de Reforma Agrária, Reforma Agrária. O fundamento dessa
bem como aos acampamentos em beira norma, além da evidente finalidade de
de estrada, em áreas próximas àquelas inibir as ocupações, é que elas impe-
cuja desapropriação se pretende. dem a manutenção da produtividade da
Os acampamentos já eram utiliza- área ao não permitir que os seus pro-
dos como forma de pressão pela Re- prietários a explorem adequadamente.
forma Agrária mesmo antes do Gol- Na verdade, pode-se dizer que o
pe de 1964, e a sua recuperação se fez simples fato de serem adotadas ocupa-
desde a retomada das mobilizações no ções de prédios públicos ou de terras
campo, no início da fase terminal da di- improdutivas como forma de pressio-
tadura militar. Veja-se o exemplo histó- nar pela Reforma Agrária não neces-
rico de Nonoai, nos anos 1978 e 1979, sariamente implica a prática de crime
e o acampamento de Encruzilhada de esbulho. Este tipo penal exige,
Natalino, por volta de 1981, ambos no para sua configuração, que a terra seja
Rio Grande do Sul. ocupada por pessoas que pretendem,
Mais complexa é a situação de outros por meio dessa ocupação, tê-la para
modos de luta pela terra que envolvem si como se fosse sua (como diz a lei,
ocupação de terras e/ou prédios pú- “para apropriar-se”). No entanto, no
blicos, comumente apresentados pela caso de ocupações de terra para Refor-
ma Agrária, o que se pretende é que o
L
mídia como exemplos do radicalismo
e do caráter antidemocrático dos mi- presidente emita um decreto desapro-
litantes pela Reforma Agrária. Nesses priatório e que se inicie um processo
casos, há, evidentemente, uma tensão de desapropriação para fins de Refor-
entre a prática dos ocupantes e a forma ma Agrária, o que por si só pressupõe
como o sistema jurídico tende a anali- um ato do governo e um processo
sar estas mesmas práticas. Aqui, as ten- judicial. Não há interesse em ficar na
dências conservadoras de interpretação terra ocupada senão com a obtenção
do sistema jurídico se expressam desde da desapropriação e o posterior as-
a tentativa de imputação dos militantes sentamento – a ocupação é apenas um
envolvidos na prática de crimes como meio de pressão (ainda mais se o que
esbulho possessório (Código Penal, se ocupar não for diretamente a terra,
art. 161, parágrafo 1º, inciso II), dano mas um prédio do Incra, por exemplo).
(Código Penal, art. 163), furto (Código O mesmo se diga de furto e roubo,
Penal, art. 155), roubo (Código Penal, crimes que pressupõem que a pessoa
art. 157) e formação de quadrilha ou que os pratica deseje ficar com a coisa
bando (Código Penal, art. 288), até para si, ou a subtraia para outra pessoa.
efeitos mais brandos, mas igualmente E bando e quadrilha só são possíveis
relevantes, como o previsto pela lei quando a reunião de pessoas se faz
nº 8.629/1993, artigo 2º, parágrafo 6º, com a finalidade de praticar crimes, e
com a redação da medida provisória não com a intenção de pressionar pela
no 2.183-56/2001: proibição e realiza- Reforma Agrária.
ção de vistorias pelo Instituto Nacio- Isto não quer dizer que, durante
nal de Colonização e Reforma Agrária uma ocupação, crimes não possam ser
(Incra) por dois anos nos locais ocu- cometidos por algum ou alguns dos

461
Dicionário da Educação do Campo

indivíduos envolvidos: é possível que quadro geral de impunidade, como é


alguns pratiquem dano, ou que agridam o caso de iniciativa do Conselho Na-
fisicamente alguém na área ocupada, cional de Justiça, em julho de 2011, de
ou até mesmo que alguém, contra- organizar mutirão para julgar ações pe-
riando as orientações do movimento, nais correlatas a estas matérias.2
aproveite-se da ocupação para furtar Em termos mais gerais, desvincu-
algo para si. Em qualquer destes casos, lados da uma abordagem apenas jurí-
todavia, deve ser feita apuração de res- dica, pode-se avaliar a legitimidade de
ponsabilidade individual, observando- qualquer movimento social e das estra-
se o devido processo legal, visto que tégias e táticas por ele adotadas a partir
organizar um grupo para uma manifes- de vários critérios. A seguir, faremos
tação pela Reforma Agrária não pode referência a três.
jamais ser comparado a organizar um
arrastão numa grande cidade. Legitimidade vinculada a um projeto
concreto e alternativo de sociedade (Marx):
A reação geral do Estado brasilei- muitas vezes, a questão da luta pela
ro às ocupações de áreas pretendidas terra é apresentada de forma vincula-
para Reforma Agrária ou de prédios da à luta pela construção de uma outra
públicos, por outro lado, não deve ser sociedade, alternativa à sociedade ca-
compreendida como algo monolítico, pitalista. Com possíveis contradições
fechado, uniforme. Ainda que a his- e limitações, estes projetos costumam
tória do Estado brasileiro seja efeti- ser globalmente chamados de socialismo.
vamente uma história de exclusão, de O uso dessa expressão ao longo do
manutenção de privilégios das elites e tempo, entretanto, torna-a bastante
de preservação das condições dadas de abrangente: no começo do século XX,
poder (como, aliás, é da natureza de to- socialismo, socialdemocracia e comu-
dos os Estados), há igualmente tensões nismo eram basicamente expressões
internas, contradições, modificações sinônimas, e, sob estas denominações,
de entendimento que oscilam ora no vários partidos operários foram cons-
sentido de ampliar a repressão, ora no de truídos, especialmente na Europa (in-
contemplar a legitimidade dos movi- clusive, por exemplo, o que viria a ser
mentos. Em qualquer caso, evidente- posteriormente o Partido Bolchevique,
mente, não se deve esperar tolerância ou Partido Comunista Russo, origi-
com atos de violência contra a pessoa, nalmente chamado Partido Operário
ainda que a história demonstre que a Socialdemocrata Russo). Desde a vo-
maior parte das vítimas da violência no tação dos créditos de guerra pelo Par-
campo, especialmente as fatais, são os lamento Alemão (Reichstag) em 1914,
camponeses e militantes da Reforma e da posterior cisão internacional do
Agrária, como evidenciam as estatís- movimento operário, socialismo passou
ticas da COMISSÃO PASTORAL DA TERRA genérica e tendencialmente a designar
(CPT).1 Mesmo neste caso, entretan- os setores socialdemocratas, que não
to, parece que a tradicional leniência defendiam uma ruptura com a socie-
do Estado com os crimes praticados dade capitalista, e sim avanços pontuais
contra pequenos agricultores pobres nas condições de vida dos trabalha-
começa a ser substituída por iniciativas dores (inclusive no campo), enquanto
que pretendem pelo menos minorar o comunistas passaram a ser designadas

462
Legitimidade da Luta pela Terra

as organizações que haviam rompido tado democrático de direito, envolven-


com a socialdemocracia e defendiam do processos mais graduais de acesso à
estratégias de ruptura com o capita- terra, de forma mais restrita à legalidade
lismo, em geral por via revolucionária, vigente. Entretanto, esta afirmação é,
e muito comumente referenciadas na sem dúvida, passível de crítica, pois
Revolução Russa de 1917, dirigida por o próprio desenvolvimento do conceito
Lenin e Trotski. de Estado democrático de direito pas-
A literatura socialista/comunista sou, para algumas correntes teóricas e
do início do século XX, principalmen- grupos políticos, a permitir mesmo
te de orientação marxista, considerava a discussão sobre os limites de uma so-
em geral que a classe portadora de uma ciedade baseada no mercado – portanto, a
alternativa global ao capitalismo era o ideia de um conceito de propriedade ru-
proletariado, especialmente o operaria- ral compatível com esta transformação
do fabril urbano, mas que a luta pelo social não poderia ser a princípio barra-
poder dos trabalhadores envolveria da em uma sociedade democrática.
uma aliança estratégica com o campesi- De qualquer modo, a concepção de
nato – daí a centralidade das bandeiras luta pela terra que se vincula a um proje-
relativas à Reforma Agrária e à distri- to concreto de sociedade, com conteú-
buição de terra para os partidos e orga- do previamente definido e globalmen-
nizações com esta orientação (o lema
dos revolucionários russos de 1917 era
te alternativo ao capitalismo, mantém
evidentes tensões com o conceito de
L
“Pão, paz e terra”). No entanto, a ideia Estado democrático de direito na me-
de uma dispersão do acesso à proprie- dida em que não descarta, em algumas
dade da terra de forma individual para de suas variantes, o uso de meios não
milhões de camponeses expressava uma legais, eventualmente violentos, para a
contradição, ainda que considerada ne- consecução de seus objetivos. A reivin-
cessária, com as bandeiras comunistas, dicação de sua legitimidade, portanto,
pois implicava a multiplicação da for- será sempre potencialmente bipartida:
ma burguesa de propriedade individual ela será legítima do ponto de vista dos
sobre a terra. Para a socialdemocracia, militantes que a apoiam e que defendem
a luta pela terra não se conformava outra forma de organização social, mas
como um aspecto de uma aliança es- poderá ou não ser reconhecida como
tratégica do proletariado urbano com legítima por uma ordem social base-
o campesinato – posto que não havia ada em uma legalidade cujas estruturas
revolução a construir – e sim como a são pensadas para viabilizar e reproduzir
generalização de formas mais avança- o mercado e as relações sociais de tipo
das de vida por parte dos trabalhadores mercantil. A reivindicação de legitimi-
em geral, nas cidades e no campo. dade, de qualquer maneira, não terá um
Nesse sentido, pode-se dizer ge- apelo universal, no sentido de que seja
nericamente que a compreensão mais coerente com o desenvolvimento de vá-
limitada da luta pela terra na concep- rias concepções sociais possíveis, mas
ção socialdemocrata, na medida em dependerá da posição concreta de cada
que não envolvia uma ruptura revolu- um em relação às forças sociais em luta.
cionária com a ordem estabelecida, se- Legitimidade vinculada à legalidade
ria, em tese, mais compatível com o Es- (Weber): o que se disse anteriormente

463
Dicionário da Educação do Campo

já evidencia o caráter central que a le- quadro normativo. Ainda que esta li-
galidade apresenta para o conceito de nha da análise possa parecer em certa
legitimidade nas sociedades modernas. medida conservadora, por aproximar
O sociólogo alemão Max Weber foi legitimação de legalidade, note-se que
um dos primeiros pensadores a evi- não foi outra a estratégia principal
denciar de forma expressa e minuciosa adotada pelos movimentos sociais no
os mecanismos pelos quais as socie- Brasil no processo de democratiza-
dades contemporâneas buscam legiti- ção, e, principalmente, de elaboração
mar o poder e sua distribuição social da Constituição de 1988. Diga-se de
por meio da legalidade – ou, dito de passagem, com razoável sucesso, tanto
outra forma, a reconhecer e pensar o que esta ocupação permanente de es-
papel central que o direito desempenha paços na Constituinte forçou a reestru-
na legitimação das ordens sociais mo- turação dos setores conservadores no
dernas. Para ele, as sociedades pré- chamado “Centrão”. Apesar de vários
modernas baseavam suas estruturas de recuos determinados pela atuação dos
legitimação em elementos mágicos ou setores conservadores, esta estratégia
sobre-humanos (como a origem divina de legitimação constitucional das lutas
do poder), conclusão que obtém estu- sociais fixou em termos bastante am-
dando várias sociedades, e não apenas plos e razoáveis na Constituição Fede-
as europeias. Segundo Weber, a tran- ral o dever do Estado de implantar um
sição para a modernidade implica um programa nacional de Reforma Agrária
desencantamento do mundo, um processo de (art. 184 a 191 da Constituição), e mui-
racionalização em que o homem e a ra- tas das reivindicações dos movimentos
zão humana passam a figurar no centro sociais de sem-terras no país são arti-
da legitimação do poder. Com o poder culadas não como meras pretensões de
desvinculado de sua origem mágica ou fato, mas como exercícios de direito –
religiosa, torna-se necessário encon- no que, inclusive, estão certas.
trar um fundamento racional para ele, Essa perspectiva nos abre, portan-
e este elemento de racionalidade se ex- to, outra forma de olhar para as pre-
pressa por meio de mecanismos jurídi- tensões de luta pela terra pelos mo-
cos que abrangem boa parte da vida em vimentos populares em geral, na qual
sociedade: eleições, direitos subjetivos, a legitimação da luta em si está dada
como os de livre manifestação, de li- pelo próprio texto constitucional. Tan-
berdade religiosa, de greve, etc. to é assim que os setores mais conser-
Neste contexto, as sociedades mo- vadores, há poucos anos, tendiam a
dernas tendem a equiparar (ou, pelo criticar mais os métodos de luta pela
menos, a aproximar em grande medida) terra do que a reivindicação do direito
os conceitos de legitimidade e de lega- em si. Esta realidade mudou no último
lidade – reivindicações populares são período, com o desenvolvimento do
legítimas quando canalizadas mediante agronegócio e a consequente disputa
mecanismos institucionais e ampliam por áreas de plantio e por apoio eco-
sua legitimidade quando acolhidas por nômico e político do governo, quando
normas jurídicas e medidas administra- se passou a articular publicamente um
tivas, ou, pelo menos, quando se mos- discurso que questiona a legitimidade
tram em geral compatíveis com este da luta pela Reforma Agrária em si

464
Legitimidade da Luta pela Terra

como algo anacrônico, velho, superado Habermas constrói sua teoria de


pela história. sociedade baseado em vários outros
Além disso, como nesta perspec- autores fundamentais do pensamen-
tiva há um vínculo entre legitimidade to ocidental (inclusive Marx e Weber,
e legalidade no qual a primeira é de- citados neste verbete rapidamente, mas
corrente da segunda, a justiça tende a também Kant e Wittgenstein, dentre
ser encarada como mera aplicação da outros). Para ele, as sociedades con-
legalidade. Esta conclusão é potencial- temporâneas tornaram-se extrema-
mente problemática, pois a resposta ju- mente complexas e já não podem ser
rídica que se expressa como legalidade, limitadas à noção de Estados-nação
em nome da celeridade processual e da homogêneos, com povos com mesma
origem étnica e identidades culturais
satisfação da opinião pública, corre o
e tradições comuns. A pluralidade de
risco de pretender que qualquer deci-
etnias, religiões e referenciais ético-
são legal seja aceita como legítima. O
morais daí derivados, além da gene-
Poder Judiciário, nessa perspectiva,
ralização das formas democráticas de
como portador da decisão legal, encon-
sociedade, fazem que os processos
tra legitimidade na sua funcionalidade,
de composição das diferenças e ten-
ou seja, no fato de dar respostas legais,
sões sociais inevitáveis nestes cenários
liquidando, extinguindo ou resolvendo
legalmente os processos, não impor-
ocorram por meio de procedimentos
democráticos de discussão e apresen-
L
tando a qualidade desta decisão ou se tação dos melhores argumentos na es-
ela gera justiça social. fera pública. Todos aqueles que serão
Legitimidade vinculada a um projeto potencialmente atingidos pelas normas
processual de democracia (Habermas): outra jurídicas têm o direito de participar ati-
forma possível de visualizar o tema da vamente de seu debate e de sua apro-
legitimidade da luta pela terra no Es- vação, seja diretamente (em processos
tado democrático de direito pode ser eleitorais, referendos, plebiscitos), seja
encontrada em concepções procedi- indiretamente, por meio de manifesta-
mentais de democracia, que entendem ções públicas e debates que formam
não consistir ela um projeto com um a opinião pública. E em muitos casos
conteúdo prévio definido e com fins e nos quais certos grupos de pessoas po-
objetivos predeterminados, mas sim, dem não obter a atenção da mídia ou
um projeto aberto de inclusão e par- espaço na opinião pública, Habermas
ticipação sociais em que o conjunto de entende ser perfeitamente possível
homens e mulheres, participando ativa- que estes grupos pratiquem atos de
mente das definições das normas que protesto de grande envergadura, inclu-
orientam o funcionamento da socieda- sive atos de desobediência civil e de
de, estabelecem autonomamente estes contestação aberta às ideias da maioria,
fins, objetivos e conteúdos. Vários au- desde que o façam por meios não vio-
tores defendem versões diferentes des- lentos e como um apelo à rediscussão
tes modelos, como poderíamos impro- do tema e a novas deliberações.
priamente chamá-los, mas um dos mais Ainda que neste enfoque a questão
influentes é, sem dúvida, o pensador da legitimidade das ações dos movi-
alemão Jürgen Habermas. mentos sociais em geral (e, portanto,

465
Dicionário da Educação do Campo

também da luta pela terra) igualmente to à coerência destes argumentos com


se refira, em boa medida, ao tema da a realidade, ou mesmo quanto às suas
legalidade (“herdado” de Weber), aqui, próprias ações, e eventualmente ser
as condições de legitimidade da pró- responsabilizado por isso;; e, por outra
pria legalidade são colocadas em xeque, parte, os outros participantes na deli-
porque apenas normas jurídicas que te- beração podem não ser convencidos
nham sido aprovadas em procedimen- pelas razões apresentadas pelo partici-
tos dos quais os interessados possam pante que tenta dissimular suas razões.
ter tido efetivamente oportunidade de Não é muito difícil verificar que, em
participação (ainda que, obviamente, qualquer destas concepções, é possível uma
seus interesses e reivindicações não te- chave conservadora ou progressista de
nham sido necessariamente atendidos) leitura sobre as questões de legitimi-
terão plena legitimidade. Por outra par- dade da luta pela terra. O que fica eviden-
te, a possibilidade de questionar uma te, entretanto, é que mesmo concepções
norma jurídica, ou uma política de go- mais liberais sobre a sociedade, basea-
verno, é, por definição, permanente, das na propriedade privada dos meios
porque inerente ao Estado democrático de produção e na divisão da sociedade
de direito, o que significa que o conteú- em classes sociais, não podem, em tese,
do destas normas ou destas políticas conviver com níveis exageradamente
pode ser constantemente objeto de crí- concentrados de propriedade e poder –
tica de grupos, movimentos sociais ou sua autocompreensão teórica, ou seja, a
indivíduos e, a qualquer momento, ser forma como esses projetos de mundo
objeto de rediscussão na sociedade – se veem, e tentam justificar-se democra-
sempre por meios não violentos, ticamente, exige a ampliação do acesso
baseados nos melhores argumentos e à propriedade e a dispersão dos meios
no convencimento recíproco de todos. de poder político e social, sob pena de
Muitas vezes, estas posições são ficar inteiramente comprometida a ideia
criticadas como irrealistas ou exagera- de democracia. Mesmo sob o capitalis-
damente otimistas, porque nem sempre mo, conceitos mínimos de democracia
as pessoas em geral, e os políticos pro- somente podem existir quando o aces-
fissionais em particular, são sinceras no so à terra, ao emprego e a níveis de sa-
uso público de seus argumentos: muitas lário e de consumo dentro dos padrões
vezes alguém tem um interesse que não de dignidade humana estejam presentes.
deseja que os outros conheçam e de- Entretanto, como o capitalismo só é eco-
fende uma determinada proposta que o nomicamente possível com a constante
beneficia com base em outros argumen- expansão do mercado e da concentração
tos, de modo a convencer a maioria. de capital, gera-se uma contradição es-
Habermas não desconsidera esse fato, sencial entre democracia e capitalismo,
nem pressupõe que a deliberação conte minando as bases da liberdade humana –
apenas com pessoas de elevado caráter uma tensão que acompanha as próprias
ético e que sejam sempre inteiramente origens do liberalismo em suas vertentes
sinceras em seus argumentos;; o que ele econômica e política.
sustenta é que, ao argumentar em pú- Por sua vez, sociedades autodenomi-
blico, aquele que defende uma proposta nadas socialistas, baseadas na proprie-
se vincula aos seus argumentos, e pode dade estatal dos meios de produção,
ser cobrado por todos os demais quan- dentre os quais a terra, e em mecanis-

466
Legitimidade da Luta pela Terra

mos ultracentralizados e burocratizados A equação entre propriedade, li-


de planejamento e gestão social, não ge- berdade, democracia e legitimidade
raram melhores frutos, historicamente sempre se mostrou, portanto, extre-
tendendo a formas policiais de Estado, mamente complexa, e não encontrou,
à supressão de liberdades de manifesta- até o presente momento, uma solu-
ção e de organização e ao enfraqueci- ção histórica satisfatória. Somente
mento de formas autônomas de mobili- a manutenção da luta e da auto-
zação: comumente, as forças populares organização popular e a ampliação per-
foram substituídas por burocracias en- manente dos espaços democráticos e
casteladas no Estado e na direção de de inclusão social poderão ser capazes
um partido único que se confundia com de encontrar soluções provisórias,
este Estado, dominando inteiramente sempre imperfeitas e precárias, para
a produção e a distribuição dos bens este dilema – o que aumenta a res-
essenciais e, com isto, beneficiando a ponsabilidade dos militantes por um
si mesmas em detrimento da maioria outro mundo, livre de toda forma de
da população. opressão, exploração e exclusão.

Notas
1

2
Ver http://www.cptnacional.org.br.
Ver http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/15203-justica-faz-mutirao-para-julgar-crimes-no-para.
L

Para saber mais


BOTTOMORE, T. (org.). Dicionário do pensamento marxista. 2. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1988.
CANOTILHO, J. J. G.; MOREIRA, V. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra
Editora, 1991.
GARCIA, J. C. De sem-rosto a cidadão: a luta pelo reconhecimento dos sem-terra como
sujeitos no ambiente constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
______. O MST entre desobediência e democracia In: STROZAKE, J. J. (org.).
A questão agrária e a justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 148-173.
HABERMAS, J. Direito e democracia entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. 2 v.
HANSEN, G. L. Modernidade, utopia e trabalho. Londrina: Cefil, 1999.
LENIN, V. I. O Estado e a revolução. 3. ed. Lisboa: Avante, 1983.
______. Teses de abril. São Paulo: Acadêmica, 1987.
MARX, K. Crítica del Programa de Gotha. Moscou: Progresso, 1979.
______; ENGELS, F. Manifesto comunista. 16. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
WEBER, M. Economía y sociedad. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1996.

467
Dicionário da Educação do Campo

LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO


Mônica Castagna Molina
Lais Mourão Sá
A licenciatura em Educação do A luta pela garantia do direito à
Campo é uma nova modalidade de educação escolar para os campone-
graduação nas universidades públi- ses passa pela criação de escolas no
cas brasileiras. Esta licenciatura tem campo;; pelo não fechamento das exis-
como objetivo formar e habilitar tentes;; pela ampliação da oferta dos
profissionais para atuação nos anos níveis de escolarização nas escolas
finais do ensino fundamental e mé- que estão em funcionamento;; e, prin-
dio, tendo como objeto de estudo e cipalmente, pela implantação de uma
de práticas as escolas de educação bá- política pública de formação de educa-
sica do campo. dores do campo. Durante esta última
A organização curricular desta gra- década, nos encontros locais, regionais
duação prevê etapas presenciais (equi- e nacionais de Educação do Campo,
valentes a semestres de cursos regula- sempre constou como prioridade dos
res) ofertadas em regime de alternância movimentos sociais a criação de uma
entre tempo escola e tempo comuni- política pública de apoio à formação de
dade, tendo em vista a articulação in- educadores do próprio campo.
trínseca entre educação e a realidade
Como consequência das demandas
específica das populações do campo.
apresentadas pelos movimentos so-
Esta metodologia de oferta intenciona
ciais e sindicais, no documento final da
também evitar que o ingresso de jo-
II Conferência Nacional de Educa-
vens e adultos na educação superior re-
force a alternativa de deixar de viver no ção do Campo, realizada em 2004, o
campo, bem como objetiva facilitar Ministério da Educação (MEC), por
o acesso e a permanência no curso dos meio da Secretaria de Educação Con-
professores em exercício. tinuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (Secadi), instituiu, em 2005,
Apesar de a compreensão de edu- um grupo de trabalho para elaborar
cação contida nas práticas e na ela- subsídios a uma política de formação
boração teórica que tem estruturado
de educadores do campo. Os resulta-
o conceito de Educação do Cam-
dos produzidos neste grupo de traba-
po estender-se para além da dimen-
lho transformaram-se no Programa de
são escolar, reconhecendo e valorizan-
Apoio às Licenciaturas em Educação
do as diferentes dimensões formativas
do Campo (Procampo).
presentes nos processos de reprodu-
ção social nos quais estão envolvidos O projeto político-pedagógico que
os sujeitos do campo, parte relevante deu início à implantação desta nova
deste movimento tem se dado em tor- modalidade de graduação nas univer-
no da luta pela redução das desigual- sidades públicas brasileiras teve sua
dades no direito à educação escolar no organização efetiva em 2007, a partir
território rural. das orientações contidas no docu-

468
Licenciatura em Educação do Campo

mento aprovado por aquele grupo de Antes de instituir-se oficialmente, o


trabalho no âmbito da Secadi (Brasil, Procampo teve sua proposta formativa
2011), composto por representantes executada com base em experiências pi-
dos movimentos sociais e sindicais, loto desenvolvidas por quatro institui-
representantes das universidades e téc- ções públicas de ensino superior: Uni-
nicos do Ministério da Educação, no versidade Federal de Minas Gerais
qual foram explicitados os motivos que (UFMG), Universidade de Brasília
deram causa à sua criação (Molina e Sá, (UnB) – na primeira turma, em parceria
2011). Entre os principais elementos com o Instituto Terra (Iterra) –, Univer-
para o estabelecimento desta política, sidade Federal da Bahia (Ufba) e Uni-
apresentamos, resumidamente, aqueles versidade Federal de Sergipe (UFS).
que fundamentam a necessidade de o A partir destas experiências, a
Estado estabelecer: Secadi ampliou a possibilidade de
1) ações afirmativas que possam aju- execução dessa graduação, lançando
dar a reverter a situação educacional editais públicos, nos anos de 2008 e
hoje existente no campo, especial- 2009, para todas as instituições que
mente no que se refere à precária e desejassem concorrer à sua oferta.
insuficiente oferta da educação nos Como decorrência deste processo,
anos finais do ensino fundamental em 2011, 30 instituições universitá-
e do ensino médio;; rias ofertam a Licenciatura em Edu- L
2) políticas de expansão da rede de cação do Campo, abrangendo todas
escolas públicas que ofertem edu- as regiões do país.
cação básica no e do campo, com Apesar da diversidade de projetos
a correspondente criação de alter- pedagógicos atualmente em curso nes-
nativas de organização curricular e tas instituições, alguns pontos básicos
do trabalho docente que viabilizem podem ser destacados, tendo em vista
uma alteração significativa do qua- os princípios definidos em sua materia-
dro atual, de modo a garantir a im- lidade de origem.
plementação das Diretrizes Opera- Na execução desta licenciatura, de-
cionais para a Educação Básica nas ve-se partir da compreensão da neces-
Escolas do Campo;; sária vinculação da Educação do Cam-
3) formação consistente do educador po com o mundo da vida dos sujeitos
do campo como sujeito capaz de envolvidos nos processos formativos. O
propor e implementar as transforma- processo de reprodução social destes
ções político-pedagógicas neces- sujeitos e de suas famílias – ou seja, suas
sárias à rede de escolas que hoje condições de vida, trabalho e cultura não
atendem à população que trabalha podem ser subsumidos numa visão de
e vive no e do campo. educação que se reduza à escolarização.
4) organização do trabalho pedagógi- A Educação do Campo compreende
co, especialmente para as escolas de os processos culturais, as estratégias de
educação fundamental e média do socialização e as relações de trabalho vi-
campo, destacando-se como aspec- vidas pelos sujeitos do campo, em suas
tos importantes atuação educativa lutas cotidianas para manterem esta
em equipe e a docência multidisci- identidade, como elementos essenciais
plinar por áreas do conhecimento. de seu processo formativo.

469
Dicionário da Educação do Campo

Ao organizar metodologicamente o dores capazes de promover profunda


currículo por alternância entre tempo articulação entre escola e comunidade.
escola e tempo comunidade, a propos- Esta compreensão articula as três
ta curricular do curso objetiva integrar dimensões do perfil de formação que
a atuação dos sujeitos educandos na se quer garantir na licenciatura em
construção do conhecimento necessá- Educação do Campo: preparar para a
rio à sua formação de educadores, não habilitação da docência por área de co-
apenas nos espaços formativos escola- nhecimento, para a gestão de processos
res, mas também nos tempos de pro- educativos escolares e para a gestão de
dução da vida nas comunidades onde processos educativos comunitários.
se encontram as ESCOLAS DO CAMPO. Estas três formações estão inter-
Com baese neste contexto, os prin- relacionadas e decorrem da própria
cípios que regem as práticas formativas concepção de Educação do Campo
propostas pela Licenciatura em Educa- que conduz esta graduação. Entre os
ção do Campo têm como fundamento desafios postos à execução desta li-
as especificidades do perfil de educador cenciatura, encontra-se o de promover
que se intenciona formar em conjunto processos, metodologias e posturas
com os movimentos sociais e sindicais docentes que permitam a necessária
participantes deste processo histórico, dialética entre educação e experiência,
que têm caminhado no sentido de uma garantindo um equilíbrio entre rigor
formação de educadores que estejam intelectual e valorização dos conheci-
aptos a atuar para muito além da edu- mentos já produzidos pelos educandos
cação escolar. em suas práticas educativas e em suas
Pela própria compreensão acumu- vivências socioculturais.
lada na Educação do Campo da centra- Desta maneira, busca-se desenca-
lidade dos diferentes tempos e espaços dear processos formativos que oportu-
formativos existentes na vida do cam- nizem aos estudantes desta licenciatura
po, nas lutas dos sujeitos que aí vivem a apropriação dos métodos e estraté-
e que se organizam para continuar ga- gias de trabalho da produção científica,
rantindo sua reprodução social neste com o rigor que lhe é característico,
território, a ação formativa desenvolvi- sem, contudo, reforçar nestes futuros
da por estes educadores deve ser capaz educadores o preconceito, a recusa e a
de compreender e agir em diferentes desvalorização de outras formas de pro-
espaços, tempos e situações. dução de conhecimento e de saberes.
Este perfil de educador do campo Uma de suas principais característi-
que os movimentos demandam exi- cas, como política de formação de edu-
ge uma compreensão ampliada de seu cadores do campo, centra-se na estraté-
papel, uma compreensão da educa- gia da habilitação de docentes por área
ção como prática social, da necessária de conhecimento para atuação na educa-
inter-relação do conhecimento, da es- ção básica, articulando a esta formação
colarização, do desenvolvimento, da a preparação para gestão dos processos
construção de novas possibilidades educativos escolares e para gestão dos
devida e permanência nesses territó- processos educativos comunitários.
rios pelas lutas coletivas dos sujeitos A habilitação de docentes por área
do campo;; pretende-se formar educa- de conhecimento tem como um dos

470
Licenciatura em Educação do Campo

seus objetivos ampliar as possibilidades No debate sobre a formação por


de oferta da educação básica no campo áreas de conhecimento, deve-se com-
especialmente no que diz respeito ao preender a noção de disciplina como
ensino médio, pensando em estratégias referida a um campo de trabalho que se
que maximizem a possibilidade de as delimita com base em um objeto de
crianças e os jovens do campo estuda- estudo. Deve-se também considerar que
rem em suas localidades de origem. suas fronteiras são relativamente móveis,
Além do objetivo de ampliar as em função de transformações históricas
possibilidades de oferta da educação nos paradigmas científicos, e em fun-
básica, há que se destacar a intencio- ção dos processos de fusão ou interação
nalidade maior da formação por área entre campos disciplinares diferentes.
de conhecimento de contribuir com a O futuro docente precisa ter garan-
construção de processos capazes de tido em sua formação o domínio das
desencadear mudanças na lógica de uti- bases das ciências a que correspon-
lização e de produção de conhecimen- dem às disciplinas que compõem a sua
to no campo. A ruptura com as tradi- área de habilitação. Mas sua formação
cionais visões fragmentadas do proces- não pode ficar restrita às disciplinas
so de produção de conhecimento, com convencionais da lógica segmenta-
a disciplinarização da complexa reali- da predominante nos currículos tanto da
dade socioeconômica do meio rural na
atualidade, é um dos desafios postos à
educação básica quanto da educação
superior. Ela deve incluir a apropria-
L
Educação do Campo. ção de conhecimentos que já são fruto
Por isso, uma das inovações da de esforços interdisciplinares de cria-
matriz curricular é a organização dos ção de novas disciplinas, para que es-
componentes curriculares em quatro ses sujeitos possam se apropriar de
áreas do conhecimento: Linguagens processos de transformação da produ-
(expressão oral e escrita em Língua ção do conhecimento historicamente
Portuguesa, Artes, Literatura);; Ciências já conquistados.
Humanas e Sociais;; Ciências da Natu- Porém, no caso da proposta de
reza e Matemática;; e Ciências Agrárias. formação por áreas, não são as disci-
Trata-se da organização de novos espa- plinas o objetivo central do trabalho
ços curriculares que articulam compo- pedagógico com o conhecimento. Este
nentes tradicionalmente disciplinares trabalho se dirige a questões da realida-
por meio de uma abordagem amplia- de como objeto de estudo, tendo como
da de conhecimentos científicos que base a apropriação do conhecimento
dialogam entre si a partir de recortes científico já acumulado.
complementares da realidade. Busca- Colocam-se, então, indagações epis-
se, desse modo, superar a fragmenta- temológicas sobre a própria concepção
ção tradicional que dá centralidade à de conhecimento, de ciência e de pes-
forma disciplinar e mudar o modo de quisa. Indaga-se de que forma o traba-
produção do conhecimento na univer- lho pedagógico pode garantir o movi-
sidade e na escola do campo, tendo em mento entre apropriação e produção do
vista a compreensão da totalidade e da conhecimento e a articulação entre co-
complexidade dos processos encontra- nhecimento e processo formativo
dos na realidade. como um todo. Busca-se um vínculo

471
Dicionário da Educação do Campo

permanente entre o conhecimento que prescindir do estudo das disciplinas


a ciência ajuda a produzir e as ques- tais como elas aparecem nos currículos
tões atuais da vida. Os fenômenos da escolares. Isto se deve à necessidade
realidade atual precisam ser estudados de que os educadores compreendam a
em toda a sua complexidade, tal como mediação necessária com a organiza-
existem na realidade, por meio de uma ção curricular que vão encontrar nas
abordagem que dê conta de compreen- escolas concretas, tenham ferramentas
der totalidades nas suas contradições, conceituais para participar de novos
no seu movimento histórico. desenhos curriculares e se assumam
Para um debate mais aprofundado como construtores das alternativas
sobre a especificidade da questão das de desfragmentação.
áreas em relação ao currículo, convém Nesse processo, é fundamental um
considerar duas possibilidades não ex- trabalho articulado dos professores das
cludentes. As áreas podem ser pensadas disciplinas com as novas possibilidades
como forma de organização curricular pedagógico-didáticas que essa forma
e como método de trabalho pedagó- de trabalho docente gera. À medida
gico. Organizar o currículo por áreas que se avance na formação de educa-
(em vez de por disciplinas) não implica dores nesta perspectiva, será possível
necessariamente negar o trabalho pe- superar a necessidade de ter na esco-
dagógico disciplinar. Por outra parte, la um docente para cada disciplina, o
podemos ter um currículo organiza- que muitas vezes tem inviabilizado a
do por meio de disciplinas e realizar expansão do ensino médio e, também,
um trabalho pedagógico desde as áreas dos anos finais do ensino fundamental
do conhecimento e a partir de práticas no campo.
interdisciplinares. A formação desses docentes deve
Nesta dupla entrada, as áreas po- incluir principalmente o estudo das
dem ser tratadas como uma forma de próprias questões da atualidade, em
organização curricular que se refere particular as questões fundamentais
especialmente à organização do traba- da realidade do campo brasileiro hoje,
lho docente, relacionada a um modo a fim de que possam ter referência de
de agrupar os conteúdos de ensino;; conteúdo e de método para pensar
ou as áreas podem ser tratadas como em uma escola que integre o traba-
uma lógica de organização do estu- lho com o conhecimento aos aspec-
do, uma forma de trabalho pedagógico tos mais significativos da vida real de
(didática) que, embora possa continuar seus sujeitos.1
considerando os chamados saberes dis- Trata-se, portanto de uma mudan-
ciplinares, não centra o trabalho peda- ça radical na organização do traba-
gógico nas disciplinas. lho docente tanto no nível superior
A discussão específica da formação quanto na educação básica, o que dá
por área se coloca tanto em relação à sentido à proposta da Licenciatura em
educação básica (nas escolas do campo) Educação do Campo, na perspectiva
quanto no que diz respeito aos proces- de comprometer-se com mudanças
sos de formação dos educadores. No tanto no processo formativo dos edu-
momento atual, a formação dos do- cadores quanto na gestão das institui-
centes para atuação por área não pode ções educadoras.

472
Licenciatura em Educação do Campo

Desde o início do movimento da Considerando, assim, o fato de que


Educação do Campo, expressa-se a a Licenciatura em Educação do Campo
necessidade de forjar um perfil de nasce da participação direta dos mo-
educador que seja capaz não apenas vimentos sociais na sua concepção,
de compreender as contradições so- pode-se afirmar que ela se enquadra
ciais e econômicas enfrentadas pelos no movimento contra-hegemônico de
sujeitos que vivem no território rural, transformação das políticas públicas
mas também de construir com eles prá- de educação no Brasil. Assim como o
ticas educativas que os instrumentali- Estado, a universidade é também um
zem no enfrentamento e na superação espaço em disputa. Disputam-se o co-
dessas contradições. nhecimento, a pesquisa e as ideologias.
Deve-se ainda considerar o papel A educação superior é um locus privile-
positivo que as políticas afirmativas giado deste embate teórico e prático.
de direitos desempenham no interior da O embate entre um projeto nacio-
universidade pública, ao trazerem a nal próprio e um projeto dependente e
presença da diversidade e da singulari- subordinado teve reflexos na universi-
dade da juventude rural, por meio dos dade pública brasileira, que perdeu sua
cursos de formação de educadores do hegemonia e autonomia. A universi-
campo. Além do impacto causado na re- dade pública se apresenta como espa-
lação com estudantes de outras origens
sociais e na reorganização do sistema
ço contraditório, em que se constro- L
em ideologias e hegemonias e, como
docente e acadêmico da universidade, tal, pode ser estimulada a funcionar
os estudantes de origem rural carregam como interventora ou construtora de
o desafio que a eles é colocado pelos uma nova realidade social. Para tanto,
seus movimentos sociais e comuni- ela precisa romper com as limitações
dades de origem, no sentido de respon- impostas pela formação profissional
der ao esforço coletivo que os trouxe
para o mercado de trabalho, priorizar
até a universidade como protagonistas
a formação humana e se colocar como
de uma luta histórica por direitos.
agente participativo na construção de
Outros desafios que se colocam à um novo projeto.
realização do curso são:
Uma das intencionalidades marcan-
1) relação não hierárquica e transdisci- tes da mobilização e entrada dos mo-
plinar entre diferentes tipos e mo- vimentos dos camponeses na luta pelo
dos de produção de conhecimento;; direito à educação é disputar o espaço
2) ênfase na pesquisa, como processo acadêmico de produção do saber, afir-
desenvolvido ao longo do curso e mando seu papel contra-hegemônico
integrador de outros componentes no debate sobre o desenvolvimento
curriculares;; do país e o lugar do campo nesse
3) humanização da docência, superan- novo projeto.
do a dicotomia entre formação do
educador e formação do docente;; Trata-se de um movimento que
4) visão de totalidade da educação básica;; se propõe a superação das tendências
5) abordagem da escola nas suas re- dominantes nas políticas de educação
lações internas e com o contexto para o meio rural no Brasil. As políticas
onde ela se insere. públicas de educação sempre se pauta-

473
Dicionário da Educação do Campo

ram na dicotomia entre o campo e a ci- esta situação começou a mudar, resul-
dade, e nunca atenderam às necessidades tante do protagonismo dos movimentos
e especificidades dos povos do campo, sociais na disputa pela concepção de um
especialmente no tocante à forma- projeto de educação e de campo que se
ção de professores. Somente com o avan- afinem com um projeto de desenvolvi-
ço das lutas dos trabalhadores do campo, mento emancipatório para o país.

Nota
1
Para uma discussão sobre a questão da formação por áreas de conhecimento, ver Caldart,
2010, p. 127-154.

Para saber mais


ANTUNES-ROCHA, M. I.; MARTINS, A. A. (org.). Educação do Campo – desafios para a
formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Minuta do Projeto da Licenciatura Ple-
na em Educação do Campo. In: MOLINA, M. C.; SÁ, L. M. (org.). Licenciaturas
em Educação do Campo: registros e reflexões a partir das experiências piloto. Belo
Horizonte: Autêntica, 2011.
CALDART, R. S. Licenciatura em Educação do Campo e projeto formativo: qual
o lugar da docência por área? In: ______ et al. (org.). Caminhos para transformação
da escola: reflexões desde práticas da Licenciatura em Educação do Campo. São
Paulo: Expressão Popular, 2010. p. 127-154.
MOLINA, M. C.; SÁ, L. M. A licenciatura em Educação do Campo da Universidade
de Brasília: estratégias político-pedagógicas na formação de educadores do cam-
po. In: ______; ______ (org.). Licenciaturas em Educação do Campo: registros e refle-
xões a partir das experiências piloto. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 35-61.

474
M
MÍSTICA
Ademar Bogo

Mística é termo compreendido no A linguagem, para este tipo de


estudo das religiões como adjetivo de experiência simbólica, se “encarna”
mistério, assimilado por meio da expe- por meio do etos. “Este etos recobre
riência da própria vivência espiritual. não só a dimensão verbal, mas tam-
Contudo, nos estudos das ciências da bém o conjunto de determinações
religião e na filosofia da linguagem, po- físicas e psíquicas” (Maingueneau,
de-se compreender que a mística, em 2008, p. 17), e serve como instru-
suas manifestações subjetivas, ultrapas- mento para interligar o perto e o
sa o espectro do sagrado e introduz-se longe, o físico e o temporal.
na vida social e na luta política, numa A mística, neste entendimento,
clara aproximação da consciência do é a espiritualidade que acolhe e se
fazer presente com a utopia do futuro. expressa por meio da experiência
Na atualidade, há pelo menos três pos- do mistério vivido concretamente.
sibilidades de explicações das manifes- Ela dá sentido à continuidade do
tações das experiências místicas: existir como mediação para a realiza-
a) Pelas religiões – as experiências ção do projeto real e metafísico. Por
esta razão, o contemplativo torna-se
M
religiosas, desde a Antiguidade,
tratam a mística como “espiritua- reflexivo da prática insurgente.
lidade”. Nessas experiências, ela b) Pelas ciências políticas – as revela-
aparece como atitudes pelas quais ções subjetivas no entendimento das
o ser social se sente parte, ligado e ciências políticas são compreendi-
re-ligado ao todo que é o cosmos das como expressões do “carisma”
(Boff, 2000). que há em cada ser social. As quali-
A persistência na reprodução dades particulares ou habilidades
das mesmas atitudes éticas, du- próprias de cada indivíduo são co-
rante a toda vida na prática social locadas a serviço da coletividade e
de seres individuais ou de sujeitos tornam-se contribuições identifica-
coletivos, conforma a experiência do das com cada tipo de sujeito.
fazer como parte do movimento da As qualidades particulares, que
continuidade da vida e da história. diferenciam um indivíduo de outro
É em nome da continuidade que no fazer concreto, revelam que, na
o sujeito social crente se propõe a subjetividade, é impossível desven-
fazer enormes e dolorosos sacrifí- dar os “mistérios” das habilidades
cios, sempre consciente de que a sua carismáticas que fazem os indivíduos
contribuição para o projeto utópico assumirem funções de liderança,
deve ser dada de forma tão intensa ocuparem o seu tempo com questões
que ultrapasse os comportamentos superiores aos interesses comuns da
dos seres sociais em geral. coletividade, correrem riscos por

475
Dicionário da Educação do Campo

insistirem em destacar-se e colocar- das mudanças sociais não se realiza


se à frente dos processos de mu- apenas pela força e pela inteligên-
danças, quando milhares de sujeitos cia os sentimentos e a afetividade
como ele não o fazem. também fazem parte do projeto
A dedicação e o empenho em e não podem ser ignorados. A sub-
desencadear processos que ofere- jetividade de cada um torna-se
cem melhorias à vida social, bem objetividade no processo que efeti-
como a busca por descobertas, se- va a antecipação da utopia.
jam elas empíricas, literárias, filosó- É pela compreensão de que a
ficas ou científicas, elevam as possi- cultura é tudo aquilo que a coleti-
bilidades de se alcançar a dignidade vidade pensa, faz, sente e imagina
e a emancipação humanas. repetidamente que os movimentos
As qualidades individuais dife- populares tornam concreto o abstra-
renciadas, em nosso tempo, cons- to, por meio da objetivação da prévia
tituem o potencial da dinâmica das ideação, quando uma das alternativas
relações sociais que se combinam e imaginadas é assumida e realizada. O
articulam para a realização de obje- abstrato é um pensamento transfor-
tivos comuns. “A modernidade diz mado em desejo de vê-lo realizado
respeito à emergência do indivíduo, no concreto pelo esforço militante.
com singularidade, discernimento, “Antecipa aquilo que deverá vir a ser
afirmação, atividade, autocons- ao mesmo tempo que está sendo”
ciência, luta, ambição, derrota ou (Bogo, 2010, p. 219).
ilusão” (Ianni, 2000, p. 194);; mas O sujeito político integrado a
esse indivíduo nada pode ser se um projeto de mudanças sociais é o
não interligar a sua independência à mesmo sujeito social. Estes sujeitos
obrigatoriedade da convivência so- não se dissociam pelo simples fato
cial, colocando à disposição as suas de que ninguém se desfaz daquilo
habilidades particulares. que é, e nem pode deixar em casa,
c) Pelos movimentos populares – pela enquanto sai para a luta, caracterís-
fundamentação filosófica, os movi- ticas e valores culturais que são pró-
mentos populares compreendem a prios da produção social que proje-
mística como expressões da cultu- tou tal sujeito. A mística está no
ra, da arte e dos valores como parte sujeito como o calor está no corpo
constitutiva da experiência edifi- que o mantém quente o suficien-
cada na luta pela transformação da te, proporcionando-lhe vitalidade
realidade social, indo em direção ao e satisfação.
topos, a parte realizável da utopia.
A linguagem das atitudes verbais A diversidade de relações sociais, po-
e não verbais dos movimentos popu- líticas, éticas e culturais se sustenta sobre
lares expressa o que são e o que a base do pertencimento a coletividades
querem estes sujeitos das mudan- que expressam, desde o aparecimento
ças sociais. Fundamentalmente, os da sociedade de classes, a memória das
movimentos camponeses, a partir tradições insurgidas, interrompidas pela
do final do século XX, compreen- violência do poder dominante, contra a
deram que a totalidade do projeto continuidade da dominação. Uma a uma

476
Mística

essas tradições retornam pelo registro da ameaça também instiga o seu contrá-
memória militante, que não esquece nem rio: a reação para o crescimento.
abandona as gerações que lutaram no pas- A areia, que com a ajuda da água
sado, mesmo não as tendo conhecido. mistura e dissolve o cimento, torna-se,
Compreende-se que é nas formas com o calor do sol, parte da velha rea-
de consciência (histórica, política, re- lidade e base do novo concreto que
ligiosa, ecológica etc.) que se revela a sustenta belas construções com as
qualidade da existência dos grupos formas e os contornos desejados pelo
e das classes sociais que fizeram os projeto arquitetônico.
movimentos populares acreditarem A violência que intimida é também
que um ser que trabalha, convive, a escola para a resistência. O carisma
luta e transforma tem de considerar da militância se manifesta na diversi-
como parte deste compartilhar, a tá- dade do empenho de cada sujeito para
tica, a força, o sacrifício a dor, etc. e, fazer o belo.
ao mesmo tempo combinar o ânimo,
a vontade, a disposição, a alegria e o A criatividade que surpreende o ini-
prazer de fazer o belo e o melhor para migo surge das práticas mais simples,
a humanidade. originadas na inspiração de produzir o
novo. Assim, as lutas, que formam os fa-
tos lembrados pelas datas, e descritos,
A mística na militância associados aos lugares, como cenários
Se qualquer ser humano é melhor artísticos articulados, também produ-
zem os sujeitos individuais e coletivos.
do que a melhor abelha, porque conse-
gue antecipar em sua mente aquilo que A fonte que sacia a sede é também
M
vai fazer depois (Marx, 1996), por o espelho que reflete a imagem, como
que nem todos os seres humanos ex- ocorreu com Orígenes, revelando a
pressam tais capacidades e muitos omi- beleza de cada militante, que arranca,
tem-nas, mesmo sabendo que as têm? com o esforço coletivo, a própria au-
A mística na militância é como a toestima. Nomes e apelidos tornam-se
força de germinação que existe dentro conhecidos e representam mais do que
das sementes. Assim como saem da identidades, irrompem como sinôni-
dormência as gêmulas das sementes, mo de segurança, confiança e lealdade,
despertam os militantes para a histó- como exemplo de conduta e de ânimo.
ria como sujeitos conscientes de suas No fazer coletivo, destacam-se lideran-
funções sociais. Descobrem as poten- ças, projetam-se cantadores, poetas e
cialidades das mudanças adormecidas animadores, como se fossem variedades
nos contextos sociopolíticos e des- novas de sementes em germinação que
vendam, na penumbra dos processos, desconheciam o potencial que traziam
possibilidades de agregar elementos em si mesmas. Dessa forma, a polí-
diferenciadores que impulsionam as tica vira arte e a arte ganha função
mudanças sociais. política nas ações e eventos.
Os riscos e perigos empunhados É na luta transformadora feita com
pelas forças contrárias são obstáculos arte que o ser social se reinventa e se
constantes a serem enfrentados e ultra- exterioriza, expondo-se de outra ma-
passados. Porém, a força que oprime e neira que ainda não era aparentemente

477
Dicionário da Educação do Campo

conhecida, para fazer surgir a nova e rem, ganham a massa que lhes dá vo-
bela sociedade na qual viverá. É por lume e, ao mesmo tempo, por dentro,
meio da arte que o indivíduo se auto- abrigam a formação das sementes.
produz: “se o homem só pode se rea- Sem a mística, não haveria histó-
lizar saindo de si mesmo projetando- ria militante. As massas perderiam a
se fora, isto é, objetivando-se, a arte esperança logo no início e deixariam
cumpre com este papel de humani- escapar a energia do combate, da re-
zação do próprio homem” (Sánchez sistência e da persistência. As lideran-
Vázquez, 1968, p. 57). Gostar e lutar ças se corromperiam e se aliariam aos
pelo belo é um princípio que se tor- criminosos assim que vislumbrassem
na um dever. Acima de tudo, fazer o alguns privilégios.
belo transformador torna-se hábito
com o mais puro sentir e com o mais Na mística militante, a organização
profundo querer. é um instrumento indispensável. Os
tempos passados ensinam que, desor-
Com a mística, os tempos das lutas
ganizados e dispersos, os povos não
ganham outras dimensões. Se o tempo
têm força, ânimo ou condições de en-
produtivo mede-se pela produtividade
frentar os criadores da violência. Ao
material, o tempo da luta se mede pela
contrário, quando se adota uma postu-
espera e pela preparação das vitórias.
ra ativa no mundo, a vida consciente
A espera militante nunca é “tempo per-
dido”: é preparação. A futura mãe que é sempre ação: “atuo mediante o ato,
cuida da gestação não perde nem ganha a palavra, o pensamento, o sentimen-
tempo, apenas prepara o nascimento. to;; vivo, venho a ser através do ato”
Sabe que não pode ter pressa, nem (Bakhtin, 2000, p. 154).
abandonar o processo em andamen- A organização se eleva em vista da
to. Sendo assim, quando chega “a sua causa que ganha forma no projeto, tal
hora”, é um momento novo pelo qual qual um edifício: antes da construção,
viveu. É a prévia-ideação objetivada na somente os engenheiros e os arquite-
prática (Lessa, 2007, p. 38). tos sabem como será. A planta dese-
Sendo assim, os longos anos de nhada é de difícil leitura e, por isso,
espera pela terra, acampados sob todos sabem que, pelo esforço huma-
barracas de lona, nunca significaram no, crescerá no local um edifício;; mas
perda, mas ganho, em formação, em a força para que ele aconteça está com
consciência e organização popular. os construtores, que desejam ver a
Perde tempo quem abandona a luta;; obra pronta e se empenham para rea-
ganha, quem persiste no lugar em que lizar tal acontecimento. A mística não
se faz sujeito. está no projeto, mas nos sujeitos que
A mística é o ânimo para enfrentar o constroem.
as dificuldades e sustentar a solidarie- A mística necessita de perspectivas;;
dade entre aqueles que lutam. A místi- precisa do olhar no horizonte, no lu-
ca não somente ajuda a transformar os gar em que fica a utopia que instiga a
ambientes e cenários sociais;; acima de aproximação dos passos das cansativas
tudo, impulsiona e provoca mudanças marchas, para se afastar tanto quanto
por fora e por dentro dos sujeitos, tal avançara. O projeto é o condutor da
qual o fazem as frutas, que, ao cresce- marcha que liga a distância histórica

478
Modernização da Agricultura

do passado à perspectiva do futuro do conteúdo próprio. Por organizarem-


apaixonado fazer presente. se sem manuais, nasceu com eles uma
A consciência do dever militante é nova consciência e um novo jeito de
a sabedoria que afasta a ignorância e a ser sujeitos sensíveis na história com
ingenuidade das relações socais e po- uma mística que impede que sejam des-
truídos facilmente.
líticas. As relações humanas entre ho-
mens e mulheres são apreendidas na A mística neste caminhar é mais do
pertença cotidiana à organização e no que o alimento do caminhante;; é também
fazer do próprio destino. a fome que não deixa parar nem dormir
enquanto não se chega ao lugar desejado.
Os movimentos populares tiveram, O sujeito da história já não vive mais para
desde o final do século XX, a ousadia si, mas para a sua coletividade presente e
de assumir a mística, dando a ela um para aquela que ainda irá nascer.

Para saber mais


BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BOFF, L. Etos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasília:
Letraviva, 2000.
BOGO, A. Identidade e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
IANNI, O. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000. M
LESSA, S. Para compreender a ontologia de Lukács. 3. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2007.
MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. Ethos
discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. p. 11-29.
MARX, K. O capital. 15. ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 1996. V. 1.
SÁNCHEZ VÁZQUEZ, A. As ideias estéticas de Marx. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1968.

MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA
Paulo Alentejano

Nas últimas décadas, a agricultura da produção, relações intersetoriais –


brasileira sofreu profundas transforma- com a formação do complexo agroin-
ções envolvendo os mais diversos as- dustrial ou dos complexos agroindus-
pectos, como relações de trabalho, pa- triais –, inserção internacional e padrão
drão tecnológico, distribuição espacial de intervenção estatal.

479
Dicionário da Educação do Campo

Este processo de modernização são da REVOLUÇÃO VERDE pelo mundo,


da agricultura brasileira foi concebido seja na acepção ideológica que contra-
e planejado como contraponto às põe a modernização à Reforma Agrá-
propostas de Reforma Agrária gesta- ria, seja na acepção prática da utilização
das no âmbito da esquerda brasilei- crescente de máquinas, insumos quími-
ra ao longo dos anos 1950-1960. De cos e sementes melhoradas, que faz do
acordo com os defensores da moder- Brasil, nos dias de hoje, o maior con-
nização, seria possível desenvolver sumidor mundial de agrotóxicos. Este
plenamente a capacidade produtiva modelo agrícola produz uma radical in-
da agricultura brasileira sem distribui- versão do princípio tradicional que re-
ção da terra, contrariamente ao que gia a agricultura, isto é, sua adaptação à
defendiam os partidários da Reforma diversidade ambiental e sua vinculação
Agrária, para quem a democratização a regimes alimentares diversificados.
da terra era condição indispensável Ao contrário, o que se tem agora é uma
para o próprio desenvolvimento da agricultura padronizada que se impõe à
agropecuária brasileira. 1 diversidade ambiental, artificializando
os ambientes e adequando-os ao pa-
Embora ações modernizantes iso- drão mecânico-químico da agricultura
ladas já se evidenciassem desde os anos moderna, ao mesmo tempo em que
1950 na agricultura brasileira, só é pos- impõe a todos os povos um padrão ali-
sível falar de um processo de moderni- mentar que atende aos interesses das
zação após o Golpe de 1964 e a instau- grandes corporações agroindustriais.
ração da ditadura, pois foi a partir daí
O processo de modernização da
que uma série de ações coordenadas
agricultura só foi possível com a im-
foram empreendidas para impulsionar
plantação de um sistema de pesquisa,
tal processo. Assim, a modernização
assistência técnica e extensão rural que
da agricultura brasileira não pode ser
forneceu as bases para a difusão do
compreendida sem a indução do Esta-
novo padrão produtivo. De um lado, a
do, pois ele criou as condições para a
Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-
internalização da produção de máqui-
pecuária (Embrapa), fundada em 1972,
nas e insumos para a agricultura, um
desenvolveu uma série de pesquisas
sistema de pesquisa e extensão voltado
voltadas para a adaptação de varieda-
para impulsionar o processo de moder-
des às condições climáticas e pedoló-
nização e as condições financeiras para
gicas brasileiras, das quais o principal
viabilizar este processo.
exemplo foi a adaptação da soja ao
A essência dessa modernização técnica cerrado. De outro, técnicos agrícolas,
da agricultura brasileira que nega a neces- agrônomos, veterinários e extensionis-
sidade da Reforma Agrária é uma aliança tas rurais, formados segundo os câno-
do grande capital agroindustrial com a nes da Revolução Verde, difundiram as
grande propriedade fundiária, sob o gene- modernas técnicas entre os agriculto-
roso patrocínio fiscal, financeiro e patri- res. Em 1974, o governo federal criou a
monial do Estado (Associação Brasileira Empresa Brasileira de Assistência Téc-
de Reforma Agrária, 2007, p. 3-4). nica e Extensão Rural (Embrater) para
A modernização da agricultura bra- uniformizar tais práticas de assistência
sileira acompanha o movimento de difu- técnica e extensão rural.

480
Modernização da Agricultura

Para a difusão deste moderno pa- Transformadas em ativo financeiro


drão produtivo, foi de importância com a vinculação do crédito subsidia-
central a criação do Sistema Nacional do à propriedade da terra, dando ori-
de Crédito Rural (SNCR) em 1965 – gem ao processo de territorialização do
pois ele viabilizou a compra de má- grande capital, as terras valorizaram-se
quinas e insumos pelos agricultores –, significativamente, tornando-se em ob-
além da criação, entre 1955 e 1959, jeto de especulação. Com isso, não ape-
de uma série de fundos para estimu- nas houve expressiva expulsão de mo-
lar a indústria de fertilizantes, adu- radores, parceiros e posseiros, como
bos e outros insumos químicos para se verificou uma crescente dificuldade
a agricultura. para que os pequenos agricultores ad-
Os efeitos e a amplitude da moder- quirissem terras. Isto, além de dificul-
nização são alvo de profundas discór- tar a reprodução ampliada da família
dias. Para alguns autores, ela é genera- camponesa, contribuiu para acentuar o
lizada, enquanto, para outros, é restrita movimento migratório do campesinato
e limitada. Alguns consideram que os rumo à fronteira, além de forçar parce-
produtores modernizados – indepen- las expressivas das famílias de agriculto-
dentemente do fato de serem peque- res a apelar para o assalariamento tem-
nos, médios ou grandes proprietários – porário como forma de complementar
serão beneficiados quando compara- renda, dada inclusive a impossibilidade
dos aos não modernizados. Outros re- de ampliar as terras sob seu controle.
lativizam tal afirmação, afirmando que Neste sentido, cabe destacar que uma
alguns pequenos produtores pioraram das características mais marcantes dos
de condição ao se modernizar, e que, trabalhadores rurais brasileiros moder- M
acima de tudo, tal constatação descon- nos, sejam eles proprietários ou não, é
sidera os inúmeros produtores que não a profunda mobilidade espacial. Esta
conseguiram acompanhar o processo se verifica não apenas pela migração de
de modernização. Ressalte-se que a camponeses em busca de terras livres
modernização também se concentrou ou baratas nas regiões menos ocupa-
basicamente em alguns produtos volta- das e desenvolvidas, mas também pe-
dos para o mercado externo ou para a la migração temporária realizada por
transformação agroindustrial, e atingiu proletários e semiproletários rurais em
principalmente certas regiões (Sudeste, busca de trabalho, dado que a crescen-
Sul e Centro-Oeste). te especialização regional da produção
dificulta a obtenção de trabalho numa
O que é inegável é que a moderni-
mesma região durante mais do que os
zação produziu a ampliação da concen-
parcos meses de colheita.
tração da propriedade, da exploração
da terra e da distribuição regressiva da A modernização gerou ainda pro-
renda, ou seja, ampliou a desigualdade fundas transformações nas relações
no campo brasileiro, ao permitir que os de trabalho, com o avanço das relações de
grandes proprietários se apropriassem assalariamento, principalmente o tem-
de mais terras e de mais riqueza em de- porário, em detrimento das formas de
trimento dos trabalhadores rurais, den- trabalho familiar subordinadas direta-
tre os quais avançou a proletarização e mente à grande propriedade (colonato,
a pauperização. parceria e formas congêneres).

481
Dicionário da Educação do Campo

Todo esse processo de moderniza- Um aspecto que não pode ser ne-
ção implicou ainda o crescente contro- gligenciado ao se analisar o impacto
le das transnacionais do agronegócio da modernização é o ideológico. A
sobre a agricultura brasileira – seja pela modernização não é imposta apenas
determinação do padrão tecnológico pelo mercado, mas também pelos
(sementes, máquinas e agroquímicos), meios de comunicação, pela ação do
seja pela compra/transformação da extensionismo rural, da propaganda
produção agropecuária (grandes tra- etc. Esta imposição ideológica da mo-
ders, agroindústrias). Do ponto de vista dernização passa pelo convencimen-
do padrão tecnológico, os processos to do agricultor no que diz respeito
mais notórios atualmente dizem res- à superioridade das formas modernas
peito à difusão das sementes transgê- de produzir em relação às tradicio-
nicas pelas grandes empresas do setor nais, e seu impacto é expressivo, por-
(como Monsanto, Bayer, Syngenta, que que, além de reforçar a expropriação
também são as grandes produtoras de econômica, representa uma forma de
agroquímicos), mas também são dig- expropriação do saber, pois torna os
nos de nota a ampliação da presença camponeses dependentes, uma vez
das transnacionais na comercialização que não mais dominam as técnicas e
e o processamento industrial da produ- os processos produtivos.
ção agropecuária, sobretudo pelas em- O caráter socialmente excludente
presas ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, destas transformações que moderniza-
que, inicialmente, concentravam sua ram significativamente o setor levou à de-
atuação no ramo de cereais, mas têm se nominação deste processo como moder-
expandido para outros ramos, sobretu- nização dolorosa (Silva, 1982), mo-
do o sucroalcooleiro. dernização desigual (Gonçalves Neto,
Pesquisas recentes (Paulin, 2011) 1997), ou, mais generalizadamente,
indicam que a participação do capital “modernização conservadora”.
externo no agronegócio aumentou de Assim, o que resulta do processo
31%, em 1990, para 44%, em 2010. de modernização é uma agricultura
As grandes corporações estrangei- subordinada às grandes corporações
ras já controlam 51% dos embarques agroindustriais e ao capital financei-
de soja e 37% dos de carne suína, e, ro e que beneficia cada vez menos os
agora, voltam-se para o açúcar e o camponeses e trabalhadores do cam-
álcool. Estas corporações concentraram po em geral e que tampouco contri-
sua atuação, num primeiro momento, bui para a soberania alimentar. Ao
na comercialização;; posteriormente, contrário, como nos lembra Delgado
avançaram sobre o processamento agro- (2010), a modernização conservadora
industrial e, só mais recentemente, da agricultura brasileira foi construída
vêm atuando diretamente na produção à base de devastação e violência, sob
agropecuária, tanto que o percentual “pata de boi, esteira de trator e rifle de
de recursos externos neste segmento jagunço” (ibid., p. 1). E isso revela a
é de apenas 4%. face colonial dessa modernização.

Nota
1
Para um maior detalhamento dessa polêmica, ver, entre outros, Gonçalves Neto, 1997 e
Palmeira e Leite, 1998.

482
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil)

Para saber mais


ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE REFORMA AGRÁRIA (ABRA). Qual é a questão agrária
atual? Reforma Agrária, v. 34, n. 2, jul.-dez. 2007.
DELGADO, G. C. A questão agrária e o agronegócio no Brasil. In: CARTER, M.
(org.). Combatendo a desigualdade social : o MST e a reforma agrária no Brasil. São
Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 81-112.
GONÇALVES NETO, W. Estado e agricultura no Brasil: política agrícola e modernização
econômica brasileira – 1960-1980. São Paulo: Hucitec, 1997.
SILVA, J. G. da. Modernização dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
PALMEIRA, M.; LEITE, S. Debates econômicos, processos sociais e lutas políticas.
In: COSTA, L. F. C. C.; SANTOS, R. (org.). Política e reforma agrária. Rio de Janeiro:
Mauad, 1998. p. 92-165.
PAULIN, I. Terra estrangeira. Revista Veja, São Paulo, p. 139, 18 maio 2011.

MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS


(MMC BRASIL)
Conceição Paludo M
Vanderleia Laodete Pulga Daron

A luta das mulheres vem de longe Aqui, vamos tratar especificamente do


e, na atualidade, é possível dizer que Movimento de Mulheres Camponesas
está presente na maioria esmagadora (MMC Brasil).
dos países. No Brasil não é diferente:
em todos os períodos da nossa histó-
ria é possível verificar a presença das Um movimento de
mulheres na luta pelos direitos da ci- mulheres autônomo
dadania, pelo reconhecimento do e no
Foi nos anos 1980 que ressurgi-
trabalho, pela igualdade de tratamen-
ram, no Brasil, as lutas populares e a
to, enfim, na luta contra a exploração,
constituição dos chamados movimen-
a opressão, a discriminação e a violên-
tos sociais populares. Tiveram papel
cia, com iniciativas que envolveram
importante nesse processo a Teologia
e envolvem tanto o espaço público
da Libertação, os Centros de Educação
quanto o privado (Teles, 1993). Foi a
Popular, a teoria de base socialista e os
partir dessas lutas – que viabilizaram
inúmeros ativistas e militantes sociais
a teorização sobre as relações sociais
(Sader, 1986).
de gênero e sobre o feminismo – que
foram se constituindo movimentos e No bojo desse movimento, em dife-
entidades ou instituições feministas. rentes estados da Federação, principal-

483
Dicionário da Educação do Campo

mente com a contribuição da COMISSÃO de pública, por um novo projeto de


PASTORAL DA TERRA (CPT), do sindica- agricultura, pela Reforma Agrária, pela
lismo rural combativo e da Pastoral da campanha de documentação e pela for-
Juventude, foram se constituindo dife- mação política (Movimento de Mulheres
rentes movimentos de mulheres traba- Camponesas, 2004).
lhadoras rurais, assim como os demais O passo seguinte foi a fundação
movimentos do campo. do movimento nacional, em 2003,
As lutas centrais do que hoje conhece- no I Congresso, que aconteceu “de-
mos como movimento das mulheres cam- pois de várias atividades nos grupos
ponesas, nesse início de processo, diziam de base, municípios e estados, e com a
respeito ao reconhecimento e valorização realização do curso nacional (de 21 a
das trabalhadoras rurais: reconhecimen- 24 de setembro de 2003), que contou
to da profissão, aposentadoria, salário- com a presença de 50 mulheres, vin-
maternidade, sindicalização e participa- das de 14 estados, representando os
ção política (Movimento de Mulheres movimentos autônomos” (Movimen-
Camponesas, 2004). to de Mulheres Camponesas, 2004,
Em 1995, como consequência do p. 2). Nesse encontro foi decidido que
fortalecimento dos movimentos de mu- o nome do movimento seria Movi-
lheres autônomos nos estados, da insti- mento de Mulheres Camponesas.
tuição de comissões de mulheres na or- O congresso, que teve como mar-
ganicidade dos movimentos do campo (e co “Fortalecer a luta, em defesa da
da cidade) e da necessidade de ampliação vida, todos os dias”, contou com a
e unificação das lutas, foi criada a Articu- participação de mais de 1.200 mulhe-
lação Nacional de Mulheres Trabalhado- res, representando os movimentos au-
ras Rurais (ANMTR), que reunia as mu- tônomos de 16 estados do Brasil. A
lheres dos movimentos autônomos, da missão do MMC Brasil foi definida
CPT, do Movimento dos Trabalhadores nos seguintes termos:
Rurais Sem Terra (MST), da Pastoral da
Juventude Rural (PJR), do MOVIMENTO [...] a libertação das mulheres tra-
DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS (MAB), balhadoras de qualquer tipo de
de alguns sindicatos de trabalhadores ru- opressão e discriminação. Isso
rais e, no último período, do MOVIMENTO se concretiza na organização, na
DOS PEQUENOS AGRICULTORES (MPA). formação e na implementação
Esse processo de articulação dos de experiências de resistência
movimentos de mulheres e das mulhe- popular, onde as mulheres sejam
res de movimentos mistos foi marcado protagonistas de sua história.
por acampamentos estaduais e nacio- Nossa luta é pela construção de
nais e por mobilizações. A continuida- uma sociedade baseada em no-
de da luta encaminhou para a demarca- vas relações sociais entre os se-
ção de datas históricas e importantes, res humanos e destes com a na-
como o 8 de março, Dia Internacional tureza. (Movimento de Mulheres
da Mulher, e o 12 de agosto, morte de Camponesas, 2004, p. 5)
Margarida Alves, dia de luta contra a
violência no campo, pela ampliação Quanto aos princípios, foi defi-
dos direitos previdenciários, pela saú- nido que o MMC é um movimento

484
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil)

autônomo, democrático e popular, ção e da luta” (Movimento de Mulheres


classista, construtor de novas relações Camponesas, 2004, p. 3).
de igualdade;; um movimento de luta e
socialista, para o qual os seres huma- Eixos de resistência, de
nos têm o direito de viver com digni-
dade e igualdade. luta e autodefinições
A luta central do MMC é contra o Há muita diversidade entre os mo-
modelo neoliberal e machista e pela vimentos autônomos que constituem
construção do socialismo. Com base o MMC. Mesmo assim foi possível, no
nesses princípios, são definidas as se- congresso de fundação, a reafirmação
guintes bandeiras: projeto popular de da luta do movimento em dois grandes
agricultura, ampliação dos direitos so- eixos: o de gênero (feminista) e o de
ciais, participação política da mulher classe (popular). “Somos mulheres que
na sociedade e projeto popular para lutamos pela igualdade nas relações e
o Brasil. pertencemos à classe das trabalhadoras
Na organicidade definida, há um pa- e trabalhadores” (Movimento de Mu-
pel importante das direções e coordena- lheres Camponesas, 2004, p. 2).
ções nacional e estaduais e, também, dos Nesse mesmo momento histórico
grupos de base, porque é nos grupos e da constituição do MMC Brasil, mais
com os grupos que o movimento se um elemento importante da identidade
mantém forte e se renova: “É o espaço é explicitado. O movimento faz a dis-
de formação, organização e preparação cussão da categoria de camponês – que
para as lutas que garantirá os direitos compreende a unidade produtiva cam- M
das mulheres, possibilitando o exercício ponesa centrada no núcleo familiar –,
da libertação” (Movimento de Mulheres a qual, por um lado, se dedica à produ-
Camponesas, 2004, p. 10). ção agrícola e artesanal autônoma, com
Nesse processo, também houve a o objetivo de satisfazer as necessidades
unificação dos símbolos (bandeira, cha- familiares de autossustento, e, por
péu de palha, lenço e a cor lilás), e foi outro, comercializa parte de sua pro-
definida a organicidade do movimento. dução para garantir recursos necessá-
rios à compra de produtos e serviços
Na perspectiva do fortalecimento que não produz. “Neste sentido, mu-
e massificação da luta, o MMC Brasil lher camponesa é aquela que, de uma
integra a VIA CAMPESINA e se articula ou de outra maneira, produz o alimen-
com as Mulheres da Via Campesina. to e garante a subsistência da família”
Também se articula com movimentos (Movimento de Mulheres Camponesas,
internacionais, como a Coordenação 2004, p. 3). São as pequenas agricul-
Latino-Americana das Organizações toras, pescadoras artesanais, quebra-
do Campo (Cloc). deiras de coco, extrativistas, arrenda-
Para o MMC, constituir um movi- tárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras,
mento nacional e autônomo, de mu- boias-frias, diaristas, parceiras, sem-
lheres camponesas se justifica, entre terras, acampadas e assentadas, assala-
outros elementos, pela convicção de riadas rurais e indígenas. A soma e a uni-
que “a libertação da mulher é obra ficação destas experiências camponesas,
da própria mulher, fruto da organiza- e a participação política da mulher,

485
Dicionário da Educação do Campo

legitimam e confirmam, no Brasil, Para o MMC Brasil, na atualida-


o nome de Movimento de Mulhe- de brasileira, o projeto de agricultura
res Camponesas. camponesa ou um novo projeto de
A autodefinição caminha na dire- desenvolvimento do campo, assim
ção do fato de que elas são mulheres como a continuidade da luta pela Re-
camponesas que lutam pela igualdade forma Agrária, possibilitam congregar
de gênero e de classe. Nas Deliberações esforços na direção da resistência. Isso
do MMC Brasil (Movimento de Mulhe- envolve a luta de gênero articulada com
res Camponesas, 2004), isso fica mais a de classe e a defesa da vida, em to-
do que evidente. das as suas dimensões (Movimento de
Mulheres Camponesas, 2007).
Outro elemento pode ser destacado
como opção do movimento no atual De acordo com o movimento, a
momento histórico brasileiro: a luta sua luta central é contra o modelo
por um projeto de agricultura campo- capitalista e patriarcal, e pela cons-
nesa, preservando a ótica feminista, trução de uma nova sociedade com
em contraposição ao agronegócio. As igualdade de direitos. Nesse sentido,
campanhas das sementes crioulas, dos o MMC assume como principal ban-
alimentos saudáveis, as experiências de deira de luta o Projeto de Agricultura
produção agroecológica e as inúmeras Camponesa Ecológico, com uma prá-
lutas contra os agrotóxicos e o “deserto tica feminista, fundamentado na de-
verde” explicitam esse direcionamento fesa da vida, na mudança das relações
do MMC (Movimento de Mulheres humanas e sociais e na conquista
Camponesas, 2007). de direitos. 1
A argumentação segue as análises Além desse direcionamento, o MMC
de que as desigualdades de gênero, luta pela ampliação dos direitos sociais
assim como o desenvolvimento e o e dos espaços de participação das mu-
subdesenvolvimento, o arcaico e o mo- lheres na sociedade. O conjunto dessas
derno, a concentração de capitais e a lutas de resistência tem como horizon-
exploração/expropriação do trabalho te a construção de um projeto popular
são elementos constitutivos da lógica para o Brasil.
do capitalismo, e que é preciso travar a
luta nos dois planos (Mészáros, 2002). A formação
Uma das contribuições importan-
tes que o MMC traz é a necessidade de O Movimento de Mulheres Cam-
romper com as formas de naturalização ponesas realiza a formação política de
das desigualdades, pois o núcleo ideo- seus quadros e tem participado com
lógico que naturaliza as desigualdades educandas em cursos formais promo-
sociais, econômicas, culturais, políticas, vidos por organizações da Via Cam-
de classe e das relações sociais de gêne- pesina. Também participa em cursos
ro e de raça/etnia é o mesmo que na- não formais promovidos por diversos
turaliza a lógica perversa de destruição movimentos do campo e outras orga-
da natureza. Nesta concepção, tanto a nizações com as quais se identifica. Há
natureza quanto os seres humanos são também a consciência de que a educa-
apenas meio e instrumento a serviço ção é um direito e da sua importância
dos interesses do capital. para os trabalhadores.

486
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil)

Em conversas informais realizadas • a educação popular é um processo


com dirigentes do movimento, perce- coletivo e permanente de socializa-
be-se que a identificação entre forma- ção, reconstrução e produção de
ção política no MMC e Educação do conhecimentos que capacita os(as)
Campo assume as propostas de Paulo participantes a perceberem critica-
Freire e da educação popular, e da edu- mente a realidade socioeconômica,
cação dirigida a um público específi- política e cultural com a intenção
co: camponeses e camponesas. Igual- de transformá-la;;
mente, a formação política no MMC • esse processo permite a apropriação
se identifica com a crítica do papel crítica dos fenômenos socioculturais
da educação na sociedade capitalista. e a compreensão de suas raízes e
Para o movimento, não há uma for- contradições, o que ajuda no enten-
ma única ou modo único de educação. dimento dos momentos e de todo o
A escola não é o único lugar em que processo da luta de classes;;
ela acontece. O ensino escolar não é a • isso acontece porque a educação
única prática educativa, e o professor popular viabiliza a consciência críti-
profissional não é o seu único prati- ca, que contribui para a superação
cante. A educação existe de forma di- de diferentes formas de alienação,
ferente em diversos países. Ela existe permitindo a análise/descoberta do
em cada povo, até entre povos que se real, assim como as possibilidades
submetem a outros povos que usam de criação de estratégias de inter-
a educação como um recurso a mais venção;; e
para a dominação. • possibilita a qualificação das mulhe-
res para que se tornem sujeitos pro- M
Através de trocas sem fim, a tagonistas do seu próprio processo
educação ajuda a explicar e, às de construção humana e de outro
vezes, a ocultar e inculcar a ne- projeto de sociedade (Movimento
cessidade da existência de uma de Mulheres Camponesas do Rio
ordem. Pensando que age[m] Grande do Sul, s.d.).
por si próprio[s], de modo livre
e em nome de todos, os educa- Para o MMC, a concepção de edu-
dores imaginam que servem ao cação popular concebe a educação/
saber e a quem ensinam, mas formação como processo dialético de
podem estar servindo a quem socialização, reconstrução e criação
o constituiu professor, a fim de do conhecimento em uma socieda-
usá-lo para manter a ordem so- de de classes. O processo educativo/
cial. (Movimento de Mulheres formativo, nessa concepção, deve arti-
Camponesas do Rio Grande do cular a formação com a organização e
Sul, s.d., p. 2) a luta dos trabalhadores(as).
A formação que o próprio movi-
Para o MMC, a “luta na sociedade mento desenvolve é um dos instru-
sempre foi em torno de deter poder mentos valiosos, quando usada com
e saber, a diferença é a serviço de intencionalidade e sistematicidade,
quem e de qual projeto estão o saber na luta contra a alienação que serve
e o poder” (ibid., p. 2). Assim, para para desmontar o sistema de domi-
o movimento: nação e conscientizar as pessoas para

487
Dicionário da Educação do Campo

construírem uma alternativa popular. dinâmica educativa e de uma mística


O MMC considera que o processo for- libertadora/emancipatória, ambas im-
mativo deve estar articulado com a luta bricadas no eixo gênero, classe, proje-
concreta e com a organização dos gru- to de agricultura camponesa e pro-
pos na base. A formação, como a educa- jeto popular, que se constitui na
ção formal, não é um processo neutro, própria identidade do MMC. Assim,
serve a uma causa determinada e deve com base assentada em princípios e
contribuir para que os grupos tenham valores comprometidos com a mística
claras as suas convicções, a sua missão e do projeto popular, libertador e eman-
o seu plano concreto de atuação. cipatório das mulheres e das classes
Por meio da articulação com a Via populares, elas buscam enfrentar a
Campesina, o MMC Brasil participa, com realidade de forma organizada para
estudantes, de alguns cursos conveniados transformá-la. As mulheres campone-
com universidades. Nesse sentido, assu- sas do MMC desenvolvem processos
me a perspectiva da educação do campo educativos de cuidado com as várias
e a compreende como identificada à con- formas de vida, centrados no acolhi-
cepção da educação popular. mento, na constituição de vínculos
A práxis do Movimento de Mulhe- também afetivos, na escuta e no res-
res Camponesas, embora sujeita às con- peito, no diálogo e na conscientização,
tradições, revela-se portadora de uma como base das novas relações.

Nota
1
Ver http://www.mmcbrasil.com.br.

Para saber mais


FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 37. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS (MMC BRASIL). Deliberações do MMC Brasil.
Brasília: MMC Brasil, 2004.
______. Documento político da campanha de produção de alimentos saudáveis. Brasília:
MMC Brasil, 2007.
MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO RIO GRANDE DO SUL (MMC/RS).
Documento da Escola da Mulher. [s.l]: MMC/RS, [s.d.].
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo/Editora Unicamp, 2002.
SADER, E. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalha-
dores na Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
TELES, M. A. de A. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993.

488
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS (MAB)


Eduardo Luiz Zen
Ana Rita de Lima Ferreira
O Movimento dos Atingidos por atual do setor energético brasileiro. É,
Barragens (MAB) é um movimento so- por excelência, um movimento am-
cial brasileiro que reúne populações tra- biental, em defesa dos rios, da vida e
dicionais, como ribeirinhos, pescadores, da natureza, e cultural, na resistência de
indígenas, quilombolas, trabalhado- populações tradicionais e do modo
res rurais, camponeses proprietários de vida dos ribeirinhos brasileiros.
de terras ou não, e populações urbanas Trata-se de um movimento de luta
afetadas de alguma forma pela constru- por direitos básicos que evoluiu para
ção de barragens. Nasce como reação o questionamento ao sistema político e
ao tratamento dado aos atingidos por econômico como um todo, objetivando
barragens pelas empresas construtoras, transformações profundas, capazes
governos e proprietários desses empreen- de garantir condições dignas de vida a
dimentos, mas representa também uma seus integrantes.
força de transformação social, pois sua A construção de barragens traz con-
ação por um novo modelo energético, sequências negativas para as regiões
dentro de um projeto popular para o em que são construídas, tanto pelo
Brasil, ultrapassa os territórios em que
se constroem as barragens. Constitui-se
alagamento de grandes áreas quanto M
pelos desvios de rios e barramentos,
como um movimento autônomo, de que diminuem a vazão em alguns tre-
massa, com forte característica po- chos. O paredão que transforma rios
pular, além de manter uma organiza- em lagos retém sedimentos e nutrien-
ção horizontal e dinâmica, com pouca tes, impede a migração e reprodução
estruturação burocrática. de espécies de peixes, modifica a fauna
Não se trata de uma organização aquática e inviabiliza a atividade pes-
associativa. O reconhecimento e a le- queira por longos anos. Há destrui-
gitimidade do MAB perante a socie- ção de florestas e terras agricultáveis,
dade e o Estado se estabelecem de e milhares de pessoas são expulsas
acordo com a quantidade de pessoas de seus territórios e perdem a fonte de
que mobiliza em suas ações, por sua sustento ligada ao rio e às áreas alaga-
capacidade de constituir alianças com das. Ao mesmo tempo, contingentes de
outras organizações e pela clareza das migrantes atraídos pela construção da
propostas que defende. Estes aspectos, obra alteram repentinamente o perfil
que determinam seu peso político, re- demográfico das regiões atingidas, so-
fletem-se numa cultura organizacional brecarregando os serviços públicos e
que valoriza as lutas concretas locais e a infraestrutura local.
nacionais, em detrimento da manuten- Apesar de todos os impactos nega-
ção de estruturas institucionais. tivos, poucas ações de mitigação são
O MAB possui uma visão extre- efetivadas. As mais comuns são re-
mamente crítica em relação ao modelo parações em dinheiro apenas aos

489
Dicionário da Educação do Campo

proprietários legalmente reconhecidos ao construtor, que é visto pelo poder


de terras e benfeitorias que serão ala- público como o detentor de direitos.
gadas. Mesmo nesses casos, o valor As barrancas dos rios brasileiros têm,
das indenizações, calculado pelos seto- historicamente, servido de refúgio para
res de patrimônio da própria empresa diversas populações tradicionais, pois,
construtora, segue a lógica do menor pelo seu terreno acidentado, geralmente
custo possível, na qual se aplica inclu- é lá que o latifúndio avança menos e é lá
sive a depreciação dos materiais das que se concentra uma grande quantidade
construções, ou seja, dificilmente com de camponeses, trabalhadores sem-terra,
o dinheiro recebido alguém consegue posseiros, arrendatários, meeiros, comu-
reconstruir sua vida em outro lugar nidades indígenas e quilombolas, justa-
com condições similares. mente as populações mais vulneráveis à
Esta realidade advém de uma vi- ação das empresas.
são da tecnocracia e do Judiciário, na Esta situação dos atingidos por
qual as reparações de impactos sociais barragens só poderia resultar em re-
de hidrelétricas são sinônimas de ava- sistência, manifestando-se, seja em
liação patrimonial e imobiliária indi- caráter individual, diante da eminente
vidual por proprietário, e somente da expropriação, seja coletivamente, na
área alagada. Lá não existem famílias, forma de conflito social. Estabelece-
não existem comunidades, não existem se uma correlação de forças entre os
relações econômicas, sociais, culturais;; atingidos e as empresas construtoras
existem, tão somente, benfeitorias e de barragens. Quanto maior a resis-
propriedades. Esta realidade, presente tência, quanto maior a organização,
nas empresas do setor elétrico, Vainer menores são as chances de as empresas
(2003) designa de estratégia territorial pa- ignorarem os atingidos, e melhores são
trimonialista. Estratégia territorial por- as condições para reparações e garan-
que seu objetivo nuclear é a “limpeza tia de direitos. A cada conquista dos
do território”, uma perspectiva de for- atingidos, como o direito a reassenta-
ça de ocupação;; e estratégia patrimo- mento e indenizações justas, abrem-se
nialista porque apenas reconhece, nes- precedentes para que outros atingidos
te território, propriedades. tenham as mesmas garantias.
Quando o governo concede auto-
rização para a construção de uma bar- História
ragem num determinado local, decreta
como de utilidade pública a área que Nos anos 1970, se intensificou no
será alagada. A partir daí, o governo se Brasil a construção de barragens. O
retira e a empresa construtora fica com contexto do “milagre econômico” da
o caminho livre para atuar e definir ditadura militar aumentou a demanda
quem são os atingidos por barragens, por energia, e a crise do petróleo verifi-
quais são os seus direitos, e qual o ta- cada a partir de 1973 incentivou a busca
manho das reparações que serão distri- por fontes energéticas mais baratas. O
buídas. O ônus da prova num processo Brasil optou por aproveitar seu enorme
de desapropriação por interesse social potencial hídrico, resultado da existên-
cabe ao desapropriado, que precisa pro- cia de muitos rios extensos e caudalosos.
var seu direito por vias judiciais, e não Essa conjuntura acelerada de constru-

490
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

ção de barragens, somada ao contexto como um espaço nacional de articu-


da abertura política, fez florescer orga- lação das lutas regionais e de troca
nizações locais de atingidos por barra- de experiências. Cada grupo local ou
gens, como organizações autônomas regional manteve sua autonomia polí-
ou integradas a sindicatos de trabalha- tica, organizacional e financeira, além
dores rurais, pastorais sociais e orga- de identidade própria e estratégias de
nizações não governamentais (ONGs). ação independentes da organização
As organizações de atingidos nas bar- nacional, ora na forma de movimentos
ragens de Sobradinho e Itaparica, no de massa, ora na forma de comissões,
rio São Francisco, de Tucuruí, no rio grupos ou assessorias jurídicas, ora de
Tocantins, de Itaipu, no rio Paraná, e maneira autônoma, ora dependentes
de Itá e de Machadinho, na bacia do rio de movimentos sindicais, pastorais ou
Uruguai, foram as de maior destaque ONGs locais.
nesse período. O século XXI abriu uma nova etapa
A dificuldade de obter conquistas na história do MAB. A construção de
em lutas isoladas fez que se intensi- jornadas nacionais de mobilização, com
ficassem os contatos entre as diversas estratégias de ação e pautas comuns,
organizações pelo país. A evidência fortaleceu progressivamente o espaço
das contradições em que estão envol- nacional. A prioridade dada às manifes-
vidos e a dificuldade de obter qual- tações populares, marchas e ocupações
quer conquista mediante a luta isolada como forma de luta levou a um predo-
levou os atingidos a perceber que, além mínio das organizações de massa nas re-
da resistência no seu rio, deveriam se
confrontar com o modelo energético
giões e à configuração de um movimento
popular de massas. Assim, a chegada do
M
como um todo. O reconhecimento mú- novo século também trouxe a configu-
tuo dos atingidos como partícipes de ração do MAB como um movimento
uma luta comum, o contato com o mo- popular nacional efetivo.
vimento sindical em efervescência em
todo o país na década de 1980 e a ação
Setor elétrico e meio
organizadora dos setores progressistas
da Igreja Católica são todos elementos ambiente
que passam a fomentar o sentimento
O MAB é um dos responsáveis por
por uma maior organização dos atingi-
colocar em evidência um conjunto de
dos por barragens no Brasil.
contradições que passavam despercebi-
Em março de 1991, com a reali- das pela maior parte da esquerda e dos
zação do I Congresso Nacional dos movimentos populares. Trata-se das
Trabalhadores Atingidos por Barra- contradições existentes entre o homem
gens, é fundado o Movimento dos e a natureza. Assim, a novidade presen-
Atingidos por Barragens. Para marcar te no MAB diz respeito à vinculação
este acontecimento, o dia da plenária direta entre a sua luta e a questão am-
final do I Congresso, 14 de março, foi biental, posto que a problemática com
estabelecido como Dia Nacional de que se depara o coloca em contradição
Luta contra as Barragens, celebrado, direta com o capital em todos os seus
desde então, em todo o país. Durante aspectos, principalmente no que diz
os anos 1990, o MAB se desenvolveu respeito à destruição do meio ambiente,

491
Dicionário da Educação do Campo

fundamento de seu avanço. A história tas mais amplas, como a mobilização


da luta e organização dos atingidos por de comunidades urbanas por tarifas
barragens no Brasil é marcada pela dis- mais baixas de energia elétrica, ganham
cussão da questão energética, ora de for- cada vez maior relevância na estratégia
ma fragmentada, ora numa visão de do movimento.
totalidade. Na segunda opção, engloba No novo modelo energético pro-
as relações da energia com as questões posto pelo MAB, junto com a defesa
econômicas, sociais, culturais, ambien- da propriedade pública sobre a ener-
tais. Logo, a emergência do MAB se gia e a garantia de direitos aos afeta-
dá numa situação objetiva em que um dos pelos empreendimentos, são pon-
grupo de pessoas é colocado diante da tos importantes: o desenvolvimento
possibilidade iminente de destruição e uso de múltiplas fontes de geração
de seu ambiente. Por isso, de forma de energia, a opção preferencial pe-
concreta, e não por adesão voluntária las que geram menos impacto social
à causa, a luta dos atingidos não se dis- e ambiental, a descentralização dos
socia da luta ambiental. empreendimentos no território nacio-
Estas características levaram o MAB nal e o controle social e popular sobre
a propor a construção de um novo mo- as fontes geradoras. A efetivação des-
delo energético, nos marcos de um pro- tas propostas, por sua vez, demanda
jeto popular para o Brasil. O problema a superação do modelo econômico
central na produção de energia elétrica primário exportador brasileiro, espe-
para o movimento não é tecnológico, cialmente de produtos intensivos em
mas de modelo. O atual modelo ener- energia elétrica (aço, ferroligas, alu-
gético é questionado, primordialmente, mínio, papel, celulose), e a alteração
sobre o controle privado das fontes e do atual padrão de consumo, marcado
dos meios de produção de eletricidade. pelo consumismo e desperdício.
Assim, o “não às barragens”, bandei-
ra mais forte da resistência dos atingi-
dos, passa a ser fundamentalmente um
O MAB e a educação
“não” à propriedade privada sobre elas, Tendo presente o paradigma da
sobre a energia, sobre a água dos rios Educação do Campo, cuja gênese está
e sobre os recursos naturais. O MAB na luta pelo reconhecimento do cam-
sabe, porém, que sua força para im- po como espaço de vida e na defesa de
primir mudanças no setor energético é um projeto de desenvolvimento que
limitada. Por isso, o movimento busca se contrapõe ao projeto de desenvol-
o envolvimento de outros setores da vimento hegemônico, o MAB criou
sociedade potencialmente interessados espaços de educação próprios e consti-
em transformar o atual modelo ener- tuiu o Coletivo Nacional de Educação,
gético, como os trabalhadores urba- agregando forças ao movimento nacio-
nos, que são também consumidores nal da Educação do Campo na defesa
residenciais e sofrem com os aumentos do “direito que uma população tem de
constantes nas tarifas de energia elé- pensar o mundo a partir do lugar onde
trica, ocorridos principalmente após vive, ou seja, da terra em que pisa,
a privatização de parte significativa do melhor ainda: desde a sua realidade”
setor nos anos 1990. Dessa forma, lu- (Fernandes, 2009, p. 141).

492
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

O MAB busca assumir a educação ameaçadas de desestruturação provoca-


como um processo permanente, contí- da pela construção de hidrelétricas.
nuo e sistemático capaz de proporcionar Por fim, em consonância com
aos povos atingidos o direito à infor- Caldart (2009), que considera a educa-
mação, à aprendizagem, à cultura uni- ção para além de um espaço formal e
versal, à problematização da realidade e institucionalizado, é possível afirmar
à organização. Iniciativas de formação que há um princípio educativo na pró-
política, projetos de alfabetização de jo- pria luta social desenvolvida pelo MAB,
vens e adultos atingidos por barragens, pois, segundo a autora, o processo de
fortalecimento das escolas das regiões ri- educação se dá também nos diferen-
beirinhas e de áreas de reassentamentos, tes espaços de atuação dos sujeitos:
além da luta pela inclusão dos atingidos na militância, nos cursos de formação,
por barragens em cursos de educação nos grupos de base, nas reuniões, nas
superior que respeitem a diversidade das mobilizações, nas marchas;; ou seja, uma
populações do campo são atividades de- educação que é gerada no próprio movi-
senvolvidas pelo movimento. Um dos mento da sociedade, na família, na igreja,
objetivos dessas ações é o fortalecimento na comunidade, no trabalho, nos grupos
dos laços sociais e culturais entre as co- sociais e, sobretudo, na organização e na
munidades ribeirinhas, constantemente luta dos movimentos populares.

Para saber mais


CALDART, R. S. A escola do campo em movimento. In: ARROYO, M. G.; CALDART, M
R. S.; MOLINA, M. C. (org.). Por uma Educação do Campo. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
2009. p. 87-133.
FERNANDES, B. M. Diretrizes de uma caminhada. In: ARROYO, M. G.; CALDART,
R. S.; MOLINA, M. C. (org.). Por uma Educação do Campo. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
2009. p. 133-146.
MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS (MAB). A organização do Movimen-
to dos Atingidos por Barragens. Caderno de Formação, MDA Comunicação, n. 5,
p. 20, ago. 2004.
______. As características do atual modelo energético. Caderno de Textos – Escola
Nacional de Formação Política do MAB, São Paulo, p. 1-56, mar. 2009.
______. Um pouco da nossa história. In: ______. MAB: uma história de lutas,
desafios e conquistas. São Paulo: MAB, 2002. p. 14.
VAINER, C. B. (org.). O conceito de atingido: uma revisão do debate e diretrizes. Rio
de Janeiro: Ippur/UFRJ, 2003.
ZEN, E. L. Movimentos sociais e a questão de classe: um olhar sobre o Movimento dos
Atingidos por Barragens. 2007. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto
de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

493
Dicionário da Educação do Campo

MOVIMENTO DOS PEQUENOS AGRICULTORES


(MPA)
Frei Sergio Antonio Görgen

O Movimento dos Pequenos ca e pelas mesmas razões, construí-


Agricultores (MPA) é um “movi- do pela força da luta, pela pressão
mento camponês, de caráter nacio- da base, pela vontade da militância
nal e popular, de massas, autônomo, e para mudar a situação vivida pela
de luta permanente, cuja base social classe camponesa.
é organizada em grupos de famí- O fato que deflagrou este entendi-
lias nas comunidades camponesas” mento para os pequenos agricultores
(Movimento dos Pequenos Agricul- foi a seca que castigou as plantações
tores, 2005). O MPA busca resgatar
no final de 1995 e início de 1996 no
a identidade e a cultura camponesas
Rio Grande do Sul. Enquanto os agri-
na sua diversidade, e se coloca ao lado
cultores angustiavam-se com a perda
de outros movimentos quando propõe
total das plantações, dirigentes de sin-
“a conquista do poder e a constru-
dicatos e da Federação dos Trabalha-
ção de uma nação soberana, animada
dores na Agricultura do Rio Grande
pelo horizonte e pelos valores da socie-
do Sul (Fetag-RS) faziam acordos en-
dade socialista” (ibid.).
tre si e conchavos políticos com os
O movimento está organizado em governantes da época para negociar
dezessete estados brasileiros1 e tem soluções que nunca chegavam até a
um histórico de luta e organização do roça dos agricultores.
campesinato nacional. Tem como men-
Houve um momento em que a
sagem política a produção de alimentos
indignação dos agricultores atingi-
saudáveis, com respeito à natureza, para ali-
dos pela seca conseguiu sensibilizar
mentar o povo brasileiro, e vem construin-
alguns sindicalistas. Estes dirigentes
do uma proposta, a partir do campo, tiveram a sensatez de ouvir o clamor
para a sociedade como um todo, a qual da base, e articulou-se uma mobiliza-
chama de Plano Camponês. O MPA ção histórica pela agricultura campo-
considera que o campesinato tem três nesa naquele estado.
missões fundamentais: produzir ali-
A articulação da mobilização dos
mentos saudáveis e diversificados para
atingidos pela seca levou de roldão
atender às necessidades de sua família
muitos dirigentes sindicais que esta-
e da comunidade;; respeitar a natureza,
vam “em cima do muro”. Houve uma
preservando a biodiversidade e buscan-
ruptura política entre os que optaram
do o equilíbrio ambiental;; e produzir
pela via do acordo, sem pressão, e os
alimentos para o povo trabalhador. que foram acampar às margens das ro-
O MPA, que, assim como um rio, dovias. Aquilo foi um divisor de águas.
tem muitas nascentes, surgiu em vá- Na verdade, a mobilização da seca pro-
rios lugares do país, na mesma épo- vocou uma avaliação profunda sobre

494
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)

o modo da atual organização sindical municípios dos diversos estados;; e


e sobre o método de organização das 6) desenvolvimento da agroecologia,
lutas políticas. aumentando o número de famílias que
Cinco foram os acampamentos estão em processo de transição e con-
da seca que se organizaram nos meses de solidação dessas técnicas de produção.
janeiro e de fevereiro de 1996 no Rio
Grande do Sul, reunindo mais de 25 Por que um movimento dos
mil pequenos agricultores. Ali germi-
nou a semente do MPA, que nasceu da
pequenos agricultores?
pressão da base organizada e da luta A organização do Movimento dos
dos agricultores para resistir na roça;; Pequenos Agricultores sinaliza a neces-
nasceu também para lutar pela mu- sidade da mudança, de organização e de
dança da política agrícola, por crédito mobilização da classe camponesa. Isto
subsidiado e seguro agrícola, e para significa que é preciso se mexer, se or-
construir um novo modelo para a agri- ganizar de um modo diferente e lutar em
cultura brasileira. conjunto, combinando pressão política,
O seu nascimento está diretamente mobilizações de massa prolongadas e
relacionado com a luta contra a atual negociações para garantir conquistas.
situação de empobrecimento econômi- A organização do MPA significa que
co e marginalização política dos peque- os camponeses têm necessidades co-
nos agricultores e às políticas agrícolas muns que são maiores do que os limites
dos sucessivos governos federais, que territoriais do município. Se a estrutu-
vêm favorecendo as grandes empresas
que controlam as terras, a produção e
ra sindical tem seus limites porque está M
cabresteada pelo governo, é necessário
o comércio dos produtos para a expor-
construir uma nova forma de organi-
tação. São estas empresas que ganham
zação política. Isto implica atravessar o
incentivos fiscais e têm acesso aos
território de abrangência do município.
créditos que, por direito, deveriam ser
destinados aos camponeses.
Entre as principais ações desenvol-
Presença do MPA no Brasil
vidas pelo MPA estão: 1) a formação A notícia da organização de um novo
de militantes e de famílias campone- movimento popular ligado à agricultu-
sas em temas como história do cam- ra camponesa logo se espalhou pelo
pesinato, conjuntura agrícola e agrária, Brasil. Os pontos iniciais da pauta –
cultura, relações de gênero, poder e seguro agrícola, crédito subsidiado, fim
classe, desafios da agricultura campo-
das importações, crédito moradia – des-
nesa, metodologia do trabalho de base,
pertaram interesse e curiosidade em
agroecologia, reflorestamento, questão
organizações de trabalhadores rurais
ambiental, entre outros;; 2) seminários
de outros estados.
sobre educação camponesa em diver-
sos estados, e em parceria com outras As necessidades econômicas e polí-
organizações do campo;; 3) combate à ticas pelas quais os agricultores gaúchos
expansão de todo tipo de monoculti- se juntaram para lutar eram as mesmas
vo;; 4) combate ao uso de agrotóxicos;; dos agricultores de Santa Catarina,
5) ampliação do MPA para outros Paraná, Rondônia, Espírito Santo,

495
Dicionário da Educação do Campo

Mato Grosso etc. Na verdade, o mode- pando de um grupo de base, estarão


lo agrícola que massacra e exclui os informadas de tudo o que acontece
camponeses é o mesmo em todo o nas lutas, ajudarão a dar os rumos,
Brasil. O que muda são os donos das construirão um novo jeito de decidir
empresas agroexportadoras. o que diz respeito ao presente e ao fu-
Nestes diversos estados, tanto os turo da agricultura camponesa.
agricultores quanto os dirigentes sin- Coordenação Municipal – em cada
dicais sentiam os limites das organiza- município onde o MPA se organiza,
ções a que pertenciam. Era necessário os coordenadores de grupos de base
dar um passo à frente na organização se reunirão e escolherão uma coorde-
política dos agricultores. Isto significa nação municipal que se encarregará de
mudar o jeito de se organizar e o jei- coordenar as atividades no município,
to de se mobilizar. O MPA se espraiou tanto nas lutas quanto nas atividades
pelo Brasil tomando conhecimento so- de organização, formação, informação,
bre a pauta de luta, o jeito de lutar e autossustento etc.
o modo de se organizar. Em maio de Coordenação Regional – é constituída
2000, em Ronda Alta (RS), realizou- pelos representantes dos municípios
se o I Encontro Nacional do MPA;; que integram a regional. Na prática,
em fevereiro de 2003, foi realizado cada município – coordenação munici-
o II Encontro Nacional, em Ouro pal – escolhe uma equipe executiva para
Preto do Oeste (RO);; em abril de 2010, agilizar as diversas atividades. A partir
aconteceu o III Encontro Nacional, dessas equipes executivas é que se cons-
em Vitória da Conquista (BA), com a titui a coordenação regional. Regionali-
presença de mais de mil camponeses e zar a organização tem por meta facilitar
camponesas de todo o Brasil. a participação, reduzir os gastos e acele-
rar a circulação das informações.
Organização do MPA Coordenação Estadual – em nível
estadual, a coordenação das lutas, a
A prática da luta, desde seu início, organização política, a formação das
colocou, para o MPA, a necessidade lideranças é efetivada pela coordena-
de um novo jeito de organização dos ção estadual. A constituição desta ins-
camponeses. Este novo jeito significa o tância se dá a partir das coordenações
envolvimento de todos os camponeses regionais. Desta forma, é possível im-
que fazem parte do MPA nas decisões plementar no estado a circulação das
que dão rumo político ao movimento. discussões, informações e negociações
Para que este envolvimento coletivo que envolvem o MPA.
aconteça na tomada das decisões, e
Direção Estadual – é eleita nos en-
as conquistas cheguem até a roça do
contros estaduais do MPA. A sua tarefa
agricultor, o MPA se organiza da se- é dar a direção política ao movimento
guinte forma: no estado, articulando-se em nível na-
Grupos de base – para fazer parte do cional. Ela representa politicamente o
MPA, as famílias dos pequenos agri- MPA nas diversas situações que a con-
cultores precisam estar agrupadas, juntura exija (negociações, trato com
organizadas em grupos de base. Partici- imprensa etc.)

496
Direção Nacional – cada estado em (crédito, assistência técnica, mecani-
que o MPA está organizado indicará, zação camponesa, sementes crioulas,
no encontro nacional, o número de comercialização, seguro agrícola, apoio
seus representantes para compor a di- para agroindústrias etc.).
reção nacional. A tarefa desta instância Este projeto só se viabilizará com
é garantir a organicidade política, a ar- a relação direta entre campo e cidade,
ticulação das lutas e as negociações em e a aliança entre a classe camponesa e a
nível nacional do MPA. classe operária. Esta relação se cons-
truirá nas lutas de massa, na organiza-
Plano Camponês ção e na industrialização da produção,
na comercialização direta, na relação
A principal formulação estratégica entre iguais. O plano camponês se
do MPA é o Plano Camponês, resultado contrapõe ao projeto do agronegócio,
de suas lutas e de sua história. Ele está hoje predominante no campo, sendo
sendo construído para atender as ne- as seguintes as principais oposições
cessidades da classe camponesa e para entre ambos: produção diversifica-
responder aos desafios de toda a so- da versus monocultivos;; mercado interno
ciedade, que precisa comer alimento versus exportação;; trabalho versus desem-
saudável, beber água limpa, respirar ar prego;; trabalho familiar versus explo-
puro, enfim, viver bem. É, portanto, a ração do trabalho alheio;; terra distri-
contribuição da classe camponesa para buída versus latifúndio;; comunidades
um projeto popular para o Brasil. versus isolamento e vazio populacio-
O Plano Camponês tem dois pilares nal;; sementes próprias versus sementes
fundamentais: 1) condições para viver patenteadas/transgênicas;; preservação M
bem no campo (educação camponesa, da biodiversidade versus destruição
moradia digna, espaços de esporte, la- ambiental;; alimentos saudáveis versus
zer e cultura, saúde, vida em comuni- contaminação alimentar/venenos;; so-
dade etc.);; 2) condições para produzir berania alimentar versus monopólio dos
comida saudável, respeitando a nature- alimentos;; e povo brasileiro versus mul-
za, e para alimentar o povo trabalhador tinacionais/imperialismo.

Nota
1
São eles: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rondônia, Pará, Mato Grosso, Goiás,
Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande
do Norte, Ceará e Piauí.

Para saber mais


GÖRGEN, |FREI| S. A. A resistência dos pequenos gigantes: a luta e a organização dos
pequenos agricultores. Petrópolis: Vozes, 1998.
______. Os novos desafios da agricultura camponesa. Petrópolis: Vozes, 2004.
ISRAEL DA SILVA, V. Caminhos da afirmação camponesa. Laranjeiras do Sul: [Autor], 2009.
MOVIMENTO DOS PEQUENOS AGRICULTORES (MPA). O MPA e a resistência camponesa : his-
tória, propostas, princípios e organização. [s.l.]: MPA, 2005. (Documento interno).

497
Dicionário da Educação do Campo

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS


SEM TERRA (MST)
Bernardo Mançano Fernandes

O Movimento dos Trabalhadores Esse é um importante processo de


Rurais Sem Terra (MST) é um movi- ressocialização que tem contribuído
mento socioterritorial que reúne em para o desenvolvimento territorial do
sua base diferentes categorias de cam- Brasil (Fernandes, 2000;; Morissawa,
poneses pobres – como parceiros, 2001;; Carter, 2009).
meeiros, posseiros, minifundiários e O MST está organizado em 24 das
trabalhadores assalariados chamados de 27 unidades federativas.1 Seu processo
sem-terra – e também diversos lutado- de formação começou por meio de di-
res sociais para desenvolver as lutas ferentes formas de luta pela terra, rea-
pela terra, pela Reforma Agrária e por lizadas por grupos de camponeses em
mudanças na agricultura brasileira. todo o país, com o apoio da COMISSÃO
O MST tem sido muito atuan- PASTORAL DA TERRA (CPT), no período
te na busca de seus objetivos de luta de 1978 a 1983. Das lideranças que sur-
pela terra. Sua história está associada giram nesse processo, constituiu-se, en-
à luta pela Reforma Agrária e ao de- tão, um movimento nacional. Na região
senvolvimento do Brasil. Nasceu da Centro-Sul do Brasil, a CPT apoiou as
ocupação da terra e se reproduz por famílias camponesas que realizavam as
meio da espacialização e da territoriali- ocupações de terras que deram origem
zação da luta pela terra. As conquistas ao MST. O I Encontro Nacional do Mo-
de frações do território do latifúndio vimento dos Trabalhadores Rurais Sem
e a sua transformação em assentamen- Terra aconteceu entre os dias 20 e 22
to acontecem pela multiplicação de de janeiro de 1984, em Cascavel (PR), e
espaços de resistências e de territórios considera-se o dia 21 de janeiro como
camponeses. Em cada estado onde iniciou a data oficial de fundação do MST.
a sua organização, o fato que registrou Todavia, sua gênese teve um perío-
o seu princípio foi a ocupação. Essa do de gestação que começou nos últimos
ação e sua reprodução materializam a anos da década de 1970, com lutas por
existência do MST, iniciando a cons- terra nos estados do Rio Grande do Sul,
trução de sua forma de organização, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso
dimensionando-a. A luta é dimensiona- do Sul. Nas décadas de 1980 e 1990,
da em vários setores de atuação do mo- o MST se territorializou por todas as
vimento, como a produção, a educação, regiões brasileiras, conquistando mi-
a cultura, a saúde, as políticas agrícolas lhares de assentamentos rurais. Esse
e a infraestrutura social. Por meio des- processo representou o renascimen-
se processo de territorialização, o MST to dos movimentos camponeses no
contribuiu para a formação de milhares Brasil, posto que, no período entre
de assentamentos e centenas de coope- 1964 e 1985, a ditadura militar ha-
rativas e de associações agropecuárias. via reprimido e aniquilado quase to-

498
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

dos (Fernandes, 1996;; Fernandes e 1994, que realizou ampla política de as-
Stedile, 1999). sentamentos rurais. Em 1998, em seu
No governo militar, foi elabora- segundo mandato, Fernando Henrique
da a primeira lei de Reforma Agrária, Cardoso adotou a política agrária de
representada pelo Estatuto da Terra – caráter neoliberal, reprimiu a luta pela
uma lei que expressava os princípios da terra e implantou uma política de mer-
reforma agrária clássica, que, todavia, ja- cantilização da mesma, denominada
mais foi aplicada. Em 1985, no primeiro “reforma agrária de mercado”. Ainda
governo da redemocratização, foi ela- criou a medida provisória no 2.109-50,
borado o I Plano Nacional de Reforma de 2001, que suspendeu por dois anos a
Agrária (PNRA). Elaborado pela equipe desapropriação de áreas ocupadas uma
do professor José Gomes da Silva, o pla- vez, e por quatro anos se ocupadas por
no retratava o ascenso do movimento duas vezes ou mais. Também destruiu
de massas da época e propunha o as- a política de crédito para a Reforma
sentamento de 1,4 milhão de famílias Agrária e a política de assistência téc-
em apenas quatro anos. Em resposta, os nica, inviabilizando o desenvolvimento
latifundiários se articularam politicamen- dos assentamentos e precarizando a
te e de forma armada para combater os vida de centenas de milhares de famí-
movimentos e as lutas sociais. Criaram a lias assentadas.
União Democrática Ruralista (UDR), que
A esperança na realização da Refor-
atuou intensamente para que o PNRA
ma Agrária foi recuperada com a eleição
jamais fosse implantado. José Gomes da
de Luiz Inácio Lula da Silva para pre-
Silva e sua equipe foram demitidos do
Instituto Nacional de Colonização e Re-
sidente do Brasil. Em 2003, foi elabo-
rado o II Plano Nacional de Reforma
M
forma Agrária (Incra) pelo então presi-
dente José Sarney (ver ORGANIZAÇÕES DA Agrária (II PNRA), com a promessa
CLASSE DOMINANTE NO CAMPO). de assentar 400 mil famílias por meio de
desapropriação, regularizar 500 mil pos-
Em 1988, na elaboração da nova ses, e assentar 130 mil famílias por meio
Constituição, a Reforma Agrária so- da política de crédito fundiário. Lula
freu revezes dos ruralistas. Embora te- foi reeleito em 2006 e, em 2010, quan-
nha sido aprovada na Constituição, os do terminou o segundo mandato, havia
ruralistas conseguiram retirar o prin- realizado parcialmente o que prometera
cípio da eliminação do latifúndio e o em 2003. No entanto, o Governo Lula
condicionaram a ser produtivo ou não, seguiu priorizando a regularização fun-
e ainda repassaram sua definição para diária na Amazônia, e só desapropriou
uma lei complementar que precisaria em casos de conflito intenso (Núcleo de
ser criada. Com essa estratégia, criaram Estudos, Pesquisas e Projetos de Refor-
um imbróglio jurídico que paralisou as ma Agrária, 2010). A Reforma Agrária
iniciativas e a celeridade do Incra. So- do Governo Lula incorporou a regula-
mente em 1993, com a aprovação da lei rização como componente principal,
no 8.629, passou a existir regulamenta- enquanto milhares de famílias perma-
ção para a desapropriação de terras. neceram acampadas. O compromisso
O aumento das ocupações de ter- de investir na melhoria da qualidade dos
ra e do número de famílias acampadas assentamentos foi cumprido parcial-
pressionou o governo do presidente mente, com investimentos em infraes-
Fernando Henrique Cardoso, eleito em trutura, comercialização e educação.

499
Dicionário da Educação do Campo

A participação do MST nos avanços Em todas as regiões do país, o latifún-


da Reforma Agrária e nas mudanças da dio, associado ao agronegócio, dispo-
questão agrária pode ser compreendida nibiliza suas terras para a produção de
pelas palavras de ordem que enunciam commodities. Uniram-se dois processos
as alterações na conjuntura agrária. De de exclusão: o latifúndio efetua a ex-
1979 a 1983, o lema foi: “Terra para clusão pela improdutividade, enquanto
quem nela trabalha”, influenciado pela o agronegócio promove a exclusão pela
CPT e pelas lutas por terra histori- intensa produtividade.
camente desenvolvidas na América Ainda nessa década, o MST parti-
Latina que partilhavam este lema. Em cipou da fundação da Via Campesina,
1984, no I Encontro Nacional, o lema
criando o lema “Globalizemos a luta,
foi “Terra não se ganha, terra se con-
globalizemos a esperança”. A questão
quista”. De 1985 a 1989, foram “Sem
agrária foi novamente alterada e am-
reforma agrária não há democracia”
pliada com a internacionalização da
e “Ocupação é a única solução”. Em
luta e o processo de estrangeirização da
1989, o MST criou o lema “Ocupar, re-
sistir, produzir”, que se tornou muito terra. As corporações do agronegócio,
conhecido, assim como sua bandeira, e mesmo os governos de países ricos,
criada no III Encontro Nacional, em preocupados com as crises alimenta-
1987. As palavras explicitam as ações res ocasionadas pela expansão de com-
pela democratização do acesso à ter- modities para a produção de agroener-
ra para trabalhar, produzir, viver dig- gia, como a cana-de-açúcar, passaram
namente. É a luta por um modelo de a comprar terras em países da América
desenvolvimento territorial, na qual os Latina, da África e da Ásia (Fernandes,
camponeses enfrentam as formas de 2011). Em seu V Congresso, o MST
subordinação impostas pelo capital. elaborou um novo lema: “Reforma
Não aceitar a submissão e lutar pela agrária, por justiça social e soberania
autonomia tornou-se marca da identi- popular”, que defende a soberania ali-
dade política do MST. mentar, de modo a garantir o direito de
No final da década de 1990, o MST as pessoas produzirem seus próprios
elegeu o lema “Reforma Agrária. Por alimentos, não deixando que o agrone-
um Brasil sem latifúndio”. No início gócio amplie seu controle sobre a ali-
de um novo milênio, a conjuntura agrária mentação. A luta pela terra passa a ser
mudou mais uma vez e a luta foi intensi- também uma luta pela comida. Estes
ficada. Além do latifúndio, os conflitos são dois dos principais elementos da
se multiplicaram com a emergência do questão agrária do mundo globalizado.
agronegócio. O massacre de Eldorado O MST se consolidou como um
dos Carajás, no Pará, em 1996, e o as- movimento camponês de identidade
sassinato de Valmir Motta, o Keno, diversa por reunir pessoas de todas as
em 2006, na ocupação, pela Via Cam- regiões do Brasil. Suas ações têm con-
pesina, de uma área experimental de tribuído para o desenvolvimento dos
produção de sementes transgênicas territórios camponeses e do país. Os
da empresa suíça Syngenta Seeds, no investimentos na produção, infraes-
Paraná, representam essa intensificação trutura, educação e saúde, feitos por
da conflitualidade contra o latifúndio e meio da organização de sua sociedade,
contra o agronegócio (Fabrini, 2009). transformaram o MST em um dos mo-

500
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

vimentos mais admirados pela popula- monocultivos. Como salientamos no


ção, ao mesmo tempo que os ruralistas caso da luta contra a Syngenta Seeds,
tentam imputar-lhe uma imagem de essa realidade tem criado novos confli-
atrasado e subversivo, por causa de sua tos entre o MST e o agronegócio – por
forte ação nas ocupações de terra. O exemplo, com a ocupação da fazenda
esforço dos Sem Terra ainda não con- da Cutrale, corporação que controla a
templou a superação de dificuldades produção de laranja, em setembro de
antigas, ao mesmo tempo que precisa 2009, no estado de São Paulo.
enfrentar novos desafios. Enquanto No início do século XXI, o MST
os militantes do MST trabalham nos passou a defender uma nova proposta
assentamentos e nos acampamentos de Reforma Agrária que definiu como
para melhorar as condições de vida, Reforma Agrária Popular. No atual está-
são ameaçados constantemente pelo gio do capitalismo, a agricultura se trans-
agronegócio, que, por meio da expan- formou num dos sistemas que formam
são das monoculturas, como a cana- o agronegócio. A agricultura é parte do
de-açúcar e o eucalipto, procura se conjunto de sistemas formados, princi-
apropriar dos territórios camponeses, palmente, pelo capital financeiro, que
conquistados na luta pela terra e pela controlam também sistemas industriais,
Reforma Agrária. tecnológicos, mercantis e ideológicos,
Em quase três décadas, o MST en- como a grande mídia corporativa. Nesse
frentou diferentes processos políticos contexto, a Reforma Agrária precisa
que tentaram destruí-lo. A cada déca- extrapolar a simples distribuição de
da, pelo menos, surgem novas situa- terra concebida pela Reforma Agrária
ções que desafiam a sua existência. As clássica. É preciso um programa de M
reações do MST foram importantes mudanças que inclua a reestruturação
para mudar as políticas agrárias e con- da produção, das técnicas e das esca-
tribuíram para a diversidade na pro- las para garantir a soberania alimentar.
dução de alimentos saudáveis e para Para isso, a Reforma Agrária Popular
a realização da vida com liberdade, deverá organizar agroindústrias coope-
sendo as pessoas mais importantes do rativas, mudar a matriz tecnológica de
que a produção de mercadorias. Essas produção para a agroecologia, demo-
reações vão de encontro aos objetivos cratizar o acesso à educação em todos
do agronegócio, que expropria milha- os níveis e priorizar a produção de ali-
res de camponeses para expandir seus mentos sadios.

Nota
1
Até 2011, o MST não estava organizado nos estados do Acre, Amapá e Amazonas.

Para saber mais


CARTER, M. (org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a Reforma Agrária no
Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2009.
FABRINI, J. E. A ocupação da estação experimental da Syngenta Seeds: um
confronto entre agronegócio e camponeses no Paraná. Boletim DATALUTA,
Presidente Prudente, n. 19, jul. 2009.

501
Dicionário da Educação do Campo

FERNANDES, B. M. Formação e territorialização do MST no estado de São Paulo. São


Paulo: Hucitec, 1996.
______. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
______. Estrangeirização de terras na nova conjuntura da questão agrária. In:
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Conflitos no campo Brasil 2010. Goiânia: CPT,
2011. p. 76-83.
______;; STEDILE, J. P. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil.
São Paulo: Perseu Abramo, 1999.
M ORISSAWA , M. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2001.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). Nossa proposta de
Reforma Agrária popular. In: ______. Notícias, 8 jul. 2009. Disponível em: http://
www.mst.org.br/node/7708. Acesso em: 17 ago. 2011.
NÚCLEO DE ESTUDOS, PESQUISAS E PROJETOS DE REFORMA AGRÁRIA (NERA). Relató-
rio DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra – 2009. Presidente Prudente:
Nera, 2010.

MST E EDUCAÇÃO
Edgar Jorge Kolling
Maria Cristina Vargas
Roseli Salete Caldart

A educação entrou na agenda do educação no MST. Isso se compreen-


Movimento dos Trabalhadores Rurais de considerando uma das característi-
Sem Terra (MST) pela infância. Antes cas da forma de luta pela terra deste
mesmo da sua fundação, ocorrida em movimento camponês, que é a de ser
1984, as famílias Sem Terra, acampadas feita por famílias inteiras, o que acaba
na Encruzilhada Natalino, Rio Grande gerando mais rapidamente outras de-
do Sul (1981), perceberam a educação da mandas que não apenas a conquista da
infância como uma questão, um desafio. terra propriamente dita. No início, as
A necessidade do cuidado pedagó- ações foram levadas à frente especial-
gico das crianças dos acampamentos mente pela iniciativa e sensibilidade de
de luta pela terra, aliada a certa intuição algumas professoras e mães presentes
das primeiras famílias em luta sobre se- nos acampamentos.
rem a escola e o acesso ao conhecimen- A história da educação no MST tem
to um direito de todos, foi, portanto, o relação direta com o percurso do movi-
motor do surgimento do trabalho com mento como um todo (ver MOVIMENTO

502
MST e Educação

DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA). pamentos. Quase ao mesmo tempo em


Não é possível entender o surgimento do que começou a lutar pela terra, o MST,
MST sem compreender as características por meio das famílias acampadas e de-
da formação social brasileira, que pres- pois assentadas, começou a lutar pelo
cindiu de fazer a Reforma Agrária, mes- acesso dos Sem Terra à escola. Orga-
mo em moldes capitalistas. Do mesmo nizar essa luta foi o objetivo principal
modo, também não é possível entender da criação de um Setor de Educação
por que o MST entra no trabalho com no movimento.
educação, e notadamente com educação No início, na década de 1980, a vi-
escolar, sem ter presente, além das carac- são da necessidade e do direito ia até a
terísticas de sua luta, a realidade educa- educação fundamental para crianças e
cional de um país que ainda não conse- adolescentes. Aos poucos, na década de
guiu garantir a universalização do acesso 1990, foi aparecendo com maior força a
à educação básica. questão da alfabetização e da educação
O MST, movido pelas circunstân- de jovens e adultos, que, em experiências
cias históricas que o produziram, foi pontuais, também já acontecia desde os
tomando decisões políticas que, aos primeiros acampamentos. Depois, veio a
poucos, compuseram sua forma de luta preocupação e o trabalho com a educa-
e de organização coletiva. Uma dessas ção infantil e, mais recentemente, com a
decisões foi a de organizar e articular o educação universitária. Na educação de
trabalho de educação das novas gera- nível médio, o trabalho começou com
ções no interior de sua organicidade e, cursos alternativos para a formação dos
com base nessa intencionalidade, ela-
borar uma proposta pedagógica espe-
professores das escolas conquistadas, e
logo se estendeu à formação de técnicos
M
cífica para as escolas dos assentamen- para as experiências de cooperação dos
tos e dos acampamentos, bem como assentamentos. No final dos anos 1990
formar seus educadores. O Encontro
e no início dos anos 2000, começaram
Nacional de Professoras dos Assenta-
as lutas específicas pelo ensino médio
mentos, realizado em julho de 1987,
nas áreas de Reforma Agrária ou, mais
em São Mateus, no Espírito Santo, e
amplamente, pela conquista de esco-
que formalizou a criação de um Setor
de Educação do MST, coincide com las de educação básica, incluindo todas
o período de estruturação e consoli- as suas etapas, hoje ainda um desafio em
dação do movimento como uma orga- muitos lugares.
nização nacional. Em dados estimados pelo MST, sua
Este texto pretende fazer uma conquista até aqui foi de aproximada-
caracterização geral do trabalho de mente 1.800 escolas públicas (estaduais
educação no MST, destacando os ele- e municipais) nos seus assentamentos e
mentos principais de sua atuação e da acampamentos, das quais 200 são de
concepção de educação que vem cons- ensino fundamental completo e cerca
truindo/afirmando em seu percurso. de 50 vão até o ensino médio, nelas
estudando em torno de 200 mil crian-
Uma característica de origem e do
desenho deste trabalho, também como ças, adolescentes, jovens e adultos Sem
traço do projeto de Reforma Agrária Terra. Nesse período, o MST ajudou
do MST, é fazer a luta por escolas públicas a formar boa parte dos mais de 8 mil
dentro das áreas de assentamentos e acam- educadores que atuam nessas escolas.

503
Dicionário da Educação do Campo

Também desencadeou um trabalho de camponeses têm o direito e o dever de


alfabetização de jovens e adultos que participar da construção do seu projeto
envolveu, em 2011, mais de 8 mil edu- de escola (Movimento dos Trabalhadores
candos e 600 educadores. O MST de- Rurais Sem Terra, 2004, p. 13).
senvolve práticas de educação infantil Aos poucos, o MST passou a en-
em seus cursos, encontros, acampa- tender que o avanço de suas conquis-
mentos e assentamentos, e tem cerca de tas dependia da pressão por políticas
50 turmas de cursos técnicos de nível públicas para o conjunto da população
médio e cusros superiores, em parceria trabalhadora do campo. Especialmente
com universidades e institutos fede- para conseguir escolas de ensino fun-
rais, com cerca de 2 mil estudantes. damental completo e de ensino médio,
O balanço dessa luta feito pelo era preciso uma articulação maior com
MST tem destacado, especialmente, outras comunidades do campo, porque
que: foi praticamente universalizado isso demanda uma pressão mais forte
o acesso das crianças assentadas aos sobre as secretarias de Educação e a
anos iniciais do ensino fundamental, sociedade política em geral. As expe-
acompanhando os dados da educação riências de pensar escolas como polos
nacional, o que certamente não te- regionais entre assentamentos e com
ria acontecido se as famílias tivessem estudantes de outras comunidades de
aceitado a lógica do transporte escolar, camponeses aos poucos vão educando
pressão que continua até hoje na im- o olhar dos trabalhadores Sem Terra
plantação de cada assentamento;; toda para uma realidade mais ampla. Foi
vez que se conquista uma escola de assim que o MST chegou à EDUCAÇÃO
DO CAMPO.
educação básica em um assentamento
ou acampamento, ela representa me- Uma segunda característica que
nos adolescentes e jovens do campo identifica o trabalho de educação do
fora da escola, e mais gente enraizada MST é a constituição de coletivos desde o
em seu próprio lugar (mas escolas que nível local até o nacional. A tarefa de
abranjam toda a educação básica ain- mobilização e de reflexão sobre a es-
da são um desafio na maioria das áreas cola nos acampamentos e assentamen-
de Reforma Agrária);; por meio desta tos se iniciou com a organização das
luta, se forma a consciência do direito chamadas equipes de educação, geral-
à educação e a noção de público entre mente compostas pelas educadoras e
as famílias, o que, em uma sociedade outras pessoas da comunidade que de-
de classes como a nossa, é fundamen- monstravam aptidão para essa questão.
tal para garantir políticas públicas de Não demorou muito para que essas equi-
interesse dos trabalhadores;; em muitos pes locais fossem transformadas em uma
lugares, foi possível, com esta luta es- articulação das áreas de Reforma Agrária
pecífica, recolocar a questão da educa- entre si, ampliando-se para regiões, che-
ção da população do campo na agenda gando à constituição dos Coletivos Esta-
de secretarias de Educação, dos conse- duais de Educação, e, depois, a um Cole-
lhos estaduais e do próprio Ministério tivo Nacional de Educação do MST.
da Educação (MEC);; aprendeu-se e Os coletivos de educação, com ta-
ensinou-se neste processo que a escola refas, força orgânica e discussões espe-
tem de estar onde o povo está, e que os cíficas que podem variar a cada perío-

504
MST e Educação

do, fortalecem o princípio organizativo tivas de escolarização e formação es-


de que a questão da educação, bem pecífica para professores que atuam no
como outras questões da vida social conjunto das escolas do campo, como
assumidas pelo MST, deve ser pensada o que se realiza hoje em cursos como o de
e implantada de forma coletiva. É uma Licenciatura em Educação do Cam-
lógica que implica tarefas a serem reali- po (Movimento dos Trabalhadores
zadas pelas pessoas, mas mediante um Rurais Sem Terra, 2004, p. 16).
planejamento e uma leitura de conjun- O MST desenvolve cursos formais
tura feita por um coletivo. de formação de educadores desde
Uma terceira característica do tra- 1990, primeiro de nível médio (magis-
balho de educação do MST tem sido a tério, hoje normal médio) e, a partir de
prioridade dada à formação de educadores da 1998, também de nível superior, como
Reforma Agrária, começando pela prepa- o curso Pedagogia da Terra. O trabalho
ração de pessoas das próprias comuni- do MST na formação de educadores
dades para atuar nas escolas públicas foi reconhecido pelo Fundo das Na-
que foram sendo conquistadas. Ainda que ções Unidas para a Infância (Unicef),
chamadas de “professoras leigas” na lin- em 1995, com o prêmio “Educação
guagem educacional oficial, a ausência de e Participação”. Com o impulso des-
titulação não as impediu de participar do se reconhecimento, foi realizado o
processo coletivo de produção do proje- I Encontro Nacional de Educadoras
to político-pedagógico que passou a ser e Educadores da Reforma Agrária
defendido pelo MST. Aos poucos, foram (Enera) em julho de 1997, uma espécie
de apresentação pública do trabalho
sendo incorporadas também pessoas de
fora das comunidades e do movimento, que vinha sendo desenvolvido nas es- M
sempre que dispostas a assumir o projeto colas dos assentamentos, na educação
de jovens e adultos, na educação infan-
educativo em construção.
til e na formação de professores. Serviu
O MST avalia que foi um acer- ainda como uma afirmação do trabalho
to histórico ter, no início, apostado de educação para dentro do próprio
na formação de educadores internos, movimento. Planejado para reunir 400
porque isso ajudou a garantir as esco- educadores, acabou reunindo mais de
las nos assentamentos e, principalmente, 700, como fruto do ambiente criado
nos acampamentos, nos quais, por fal- pela “Marcha Nacional a Brasília por
ta de professores da rede pública dis- Reforma Agrária”, realizada de feverei-
postos a trabalhar nessa realidade, elas ro a abril de 1997. O Enera incluiu uma
poderiam não passar de uma conquista boa representação de professores uni-
ilusória. E talvez tenha sido justamente versitários apoiadores do trabalho do
a fragilidade do trabalho inicial o que MST nos estados. Foi desse encontro
exigiu uma discussão mais coletiva so- que emergiu a proposta de se criar um
bre a concepção de escola e do próprio PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA
envolvimento do MST como organiza- REFORMA AGRÁRIA (PRONERA).
ção na formação de educadores, muitas E foi neste mesmo movimento
vezes disputando esta formação com que o MST assumiu o protagonismo
órgãos do Estado. Este envolvimento no processo de construção das Con-
se desdobrou depois na luta por inicia- ferências Nacionais de Educação do

505
Dicionário da Educação do Campo

Campo de 1998 e 2004 e do Seminário maiúsculas e sem hífen, o que indica


Nacional por uma Educação Básica o nome próprio construído no percur-
do Campo, realizado em 2002. so de luta e organização do MST). Há
O trabalho com cursos formais encontros e outras atividades com os
teve um impulso a partir da criação do Sem Terrinha que envolvem também
Pronera, em abril de 1998. Até então, adolescentes e jovens, ou que são espe-
eram poucas turmas e em poucos luga- cíficos para essa outra faixa etária, arti-
res. Com o novo programa, envolvendo culados pelo coletivo de trabalho com
universidades e institutos federais, foi a juventude (ver INFÂNCIA DO CAMPO).
possível alcançar uma escala maior, po- O MST também tem organizado
tencializando a experiência acumulada concursos nacionais de redação e de de-
de formação por alternância e vinculada senho, visando potencializar a dimen-
aos movimentos. O MST chega em 2011 são da expressão artística na formação
com 1.500 educadores formados nestas das novas gerações, atividade que ge-
turmas específicas e com 50 turmas em ralmente se desenvolve por meio das
andamento, nas diferentes áreas, com escolas. E, a partir de 2008, iniciou-se
aproximadamente 2 mil educandos de a produção de um encarte especial no
ensino médio, técnico e superior. Jornal Sem Terra (ferramenta de comu-
A dimensão específica da ocupação nicação do MST que completa 30 anos
da universidade, que iniciou com os em 2011) chamado “Jornal das Crianças
cursos de educação e aos poucos foi Sem Terrinha”. Na mesma perspectiva,
se estendendo para outras áreas, tem acontecem iniciativas de produção de
um significado histórico importante literatura específica para a formação
na formação de um intelectual coletivo de da infância e juventude.
classe, nesse caso orgânico ao trabalho Uma quinta característica funda-
nas áreas de Reforma Agrária: campo- mental do trabalho de educação do
neses trabalhando com camponeses. E MST é a construção coletiva de seu projeto
a combinação entre escolarização, for- político-pedagógico, sistematizada em ma-
mação político-ideológica e formação teriais de produção igualmente coletiva
técnica, inaugurada pelos cursos for- e para uso no conjunto de atividades
mais das áreas da educação e da pro- do MST, notadamente na formação
dução, foi, aos poucos, se afirmando de educadores.
como uma marca do trabalho de edu- Em seu percurso, o MST foi cons-
cação do MST. truindo uma concepção de educação,
Uma quarta característica deste tra- um método de fazer a formação das
balho se refere à atuação direta com as pessoas e uma concepção de escola em
crianças e os jovens dos acampamentos e dos diálogo com teorias sociais e pedagó-
assentamentos para que se integrem na orga- gicas produzidas por outras práticas
nicidade e identidade do movimento. Uma de educação dos trabalhadores, em
das iniciativas é a realização dos cha- diferentes lugares e tempos históri-
mados Encontros dos Sem Terrinha, cos. Desde o início da luta por escolas,
nome criado pelos participantes de houve a preocupação de fazer e, então,
um dos primeiros encontros para iden- ir pensando o que seria uma “escola
tificarem-se ao mesmo tempo como diferente”. Nos primeiros encontros
crianças e como Sem Terra (com letras nacionais que se seguiram ao de 1987,

506
MST e Educação

duas questões foram transformadas Ao longo destes anos, o MST


em eixos de reflexão coletiva, com base produziu, ou participou da produ-
nas práticas e perguntas formuladas ção, de aproximadamente cinquen-
nos estados ou em cada coletivo local: ta cadernos e livros, em sua maioria
o que queremos com as escolas dos as- organizados em coleções específicas:
sentamentos (e dos acampamentos) e Cadernos de Educação, Boletim da edu-
como fazer essa escola. Dessas práticas cação, “Fazendo escola”, “Fazendo
e reflexões sobre finalidades educativas história”, “Concurso Nacional de
e métodos pedagógicos, surgiu a for- Redação e Desenho”, Cadernos do Iterra,
mulação dos princípios da educação “Por uma educação do campo”,
no MST, com um conceito já ampliado “Pra soletrar a liberdade” e “Terra
de escola (que inclui a própria educa- de livros”.
ção universitária), e foi elaborada uma Percebe-se, entre os Sem Terra, que
PEDAGOGIA DO MOVIMENTO. o trabalho de educação do MST tem for-
Nessa dinâmica de produzir teo- talecido o valor do estudo como apro-
ria acumulando experiências práticas, priação e produção do conhecimento, e
merece destaque a criação do Instituto sua relação necessária, ainda que não
de Educação Josué de Castro, no Rio exclusiva, com o direito ao avanço,
Grande do Sul, em 1995, que se consti- cada vez mais ampliado, da escolari-
tuiu em espaço de experimentação pe- zação. O que isso pode significar nos
dagógica a partir de cursos vinculados rumos das lutas e da cultura camponesa
a diferentes setores do MST (produ- e da própria formação social brasileira é
ção, saúde, educação, formação, co-
municação e cultura). Trata-se de uma
algo que somente uma maior retrovi-
são histórica permitirá analisar com
M
escola que vem conseguindo construir maior cuidado.
novas referências para uma lógica de Um elemento fundamental para
organização escolar e do trabalho pe- a construção/afirmação coletiva de
dagógico voltada a outros objetivos uma concepção de educação foi iden-
formativos que não aqueles usualmen- tificar o processo de formação huma-
te assumidos por essa instituição na na vivido pela coletividade Sem Terra
forma de sociedade que temos. em luta como matriz para pensar
A produção de materiais do setor uma educação centrada no desenvol-
de educação expressa esse movimento de vimento mais pleno do ser humano e
pensar a prática e de formular con- ocupada com a formação de lutado-
cepções a partir dos embates em que res e construtores de novas relações
o MST está envolvido. E seu processo sociais. Isso levou a refletir sobre o
de elaboração também traz a marca da conjunto de práticas que faz o dia
produção coletiva. A grande maioria a dia dos Sem Terra e a extrair dele
dos escritos do setor é produto de mui- lições de pedagogia que permitem
tas cabeças e muitas mãos, e se caracte- qualificar a intencionalidade educa-
riza por ser sistematização de experiên- tiva do movimento, pondo em ação
cias coletivas: valorização da prática e diferentes matrizes constituidoras do
de seus sujeitos, e diálogo com teorias ser humano: trabalho, luta social, or-
produzidas desde a mesma perspectiva ganização coletiva, cultura, conheci-
de classe e de ser humano. mento, história...

507
Dicionário da Educação do Campo

Isso também permitiu pensar que a ções sociais. Nesse sentido, salienta-
“escola diferente” que desde o come- se a importância de discutir e experi-
ço se buscava construir era uma escola mentar novas formas de gestão e de
que assumisse o vínculo com esta luta, trabalho coletivo, de exercitar a auto-
com a vida concreta de seus sujeitos, organização dos estudantes, o cultivo
e partilhasse dos seus objetivos for- da mística e de padrões de cultura e
mativos mais amplos. Estes objetivos convivência que respeitem os valores
não seriam apenas da escola, visto não de igualdade, justiça e solidariedade,
ser ela capaz de realizar sozinha um e o modo de aprender específico de
projeto educativo. Por essa razão, a es- cada tempo de desenvolvimento hu-
cola não deve ser pensada fechada em mano, de cada idade.
si mesma, mas nos vínculos que pode Integra o mesmo percurso a com-
ter com outras práticas educativas do preensão de que é preciso ampliar as
seu entorno. dimensões do trabalho educativo da
Desde a compreensão de sua ma- escola sem deixar de considerar a es-
terialidade específica, o MST passou pecificidade da sua tarefa em relação
a expressar (fundamentar-se em) e a ao conhecimento: os camponeses do
reafirmar uma concepção de educação MST começaram essa história sabendo
que vincula a produção da existência que não poderiam abrir mão da instru-
social à formação do ser humano, con- ção proporcionada pela escola como
siderando as contradições como mo- ferramenta necessária à compreen-
tor, não apenas das transformações da são da realidade que lutam para co-
realidade social, mas da própria inten- letivamente transformar. Porém logo
cionalidade educativa, na direção de entenderam que o conhecimento de
um determinado projeto de sociedade e que necessitam somente se produz na
de humanidade. relação entre teoria e prática, pelo vín-
Por isso, costuma dizer-se que a culo do estudo com o trabalho, com
reflexão pedagógica do MST come- as questões da vida real. E aprendem
çou dentro da escola, mas precisou aos poucos a defender uma concep-
sair dela, ocupando-se da totalida- ção de conhecimento que dê conta de
de formativa em que se constituiu o compreender a realidade como tota-
movimento, para a ela retornar, a par- lidade, nas suas contradições, em seu
tir, então, de uma visão bem mais alar- movimento histórico.
gada de educação e de escola. Vincular a escola a essa concepção
Foi assim que, aos poucos, o MST de educação e de conhecimento implica
foi consolidando sua convicção de fazer transformações na forma escolar
que a escola deve ser tratada como atual, construída historicamente com
lugar de formação humana, e que uma outras finalidades sociais e a partir
proposta de escola vinculada ao movi- de outra matriz formativa. E uma
mento não pode ficar restrita às ques- transformação mais radical da esco-
tões do ensino, devendo se ocupar de la somente acontecerá como parte de
todas as dimensões que constituem transformações mais amplas na própria
seu ambiente educativo. A escola in- sociedade que a instituiu com uma ló-
teira deve ser pensada para educar: em gica apartada da vida, exatamente para
seus tempos, espaços e em suas rela- que suas contradições não possam ser

508
MST e Educação

compreendidas pela classe que pode sujeitos como centro das discussões
pretender enfrentá-las. de mudança. O trabalho de educa-
Há, no entanto, movimentos de ção do MST tem buscado construir
transformação que podem e vêm sen- referências teóricas e práticas da di-
do desencadeados à medida que se reção a seguir quando o movimento
consegue ter uma capacidade coleti- de construção de uma escola aberta
va de análise das condições presentes à vida, em todas as suas dimensões,
em cada escola concreta e se colocam e vinculada aos objetivos sociais dos
os objetivos de formação dos seus trabalhadores torna-se possível.

Para saber mais


CALDART, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 3. ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2004.
______ (org.). Caminhos para a transformação da escola. São Paulo: Expressão
Popular, 2010.
______; KOLLING, E. J. O MST e a educação. In: STEDILE, J. P. (org.). A Reforma
Agrária e a luta do MST. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 223-242.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). Construindo o caminho.
São Paulo: MST, 2001.
______. Educação no MST: balanço 20 anos. Boletim da Educação, São Paulo, M
n. 9, 2004.
______. Dossiê MST ESCOLA. Documentos e estudos 1990-2001. São Paulo:
Expressão Popular, 2005. (Caderno de Educação, n. 13).

509
O
OCUPAÇÕES DE TERRA
Marcelo Carvalho Rosa

As ocupações de terra são hoje a e imigrantes pobres – a ocupação das


principal estratégia de ação coletiva áreas que ainda não interessavam ao
adotada por movimentos sociais que capital, em geral as piores terras. Sem
lutam pela realização de uma reforma direitos reconhecidos, essas popula-
agrária no Brasil. Para entender suas ções trataram de manter seus modos
principais características, é importante de vida, instalando-se paulatinamente
conhecer também o contexto histórico em locais fora dos domínios das gran-
que contribuiu para a adoção dessa des propriedades dos senhores de terra
forma consagrada de reivindicar ter- (Sigaud, Ernandez e Rosa, 2010). Tais
ra. De forma mais específica, daremos ocupações deram origem aos atuais
atenção ao fato de, no último quartel territórios indígenas e aos espaços que
do século XX, as ocupações terem vêm sendo ocupados pelo campesi-
se transformado, por meio da ação de nato brasileiro (que inclui categorias
movimentos sociais, em um instru- como sitiantes, posseiros e ribeirinhos,
mento fundamental para a reivindica- entre outras).
ção da transformação, no país, da es- A maior parte desses grupos mar-
trutura da propriedade rural, em seus cou sua relação com a terra pela posse
diversos aspectos. (garantida pelo uso do solo) e não pela
propriedade (garantida pela aquisição
de títulos). Ao ocuparem as terras des-
O
As ocupações de
sa forma, tais grupos sociais reivin-
terra paulatinas dicavam o direito de nelas viver, sem
As ações e as formas de ocupação necessariamente exigirem o reconheci-
de terra fazem parte da história de mento do Estado para isso.
conflitos e controvérsias que deram O sentido das ocupações muda sig-
origem à nação brasileira, ganhando nificativamente a partir da década de
diversos significados ao longo de nos- 1960, quando começam a ser organi-
sa história. Inicialmente ocupadas por zadas coletivamente e a se voltar para a
diversos povos indígenas, as terras que reivindicação não apenas da posse, mas
viriam a constituir o território brasilei- também da propriedade. É nesse mo-
ro foram tomadas pelos colonizadores mento que passam a estar diretamente
portugueses, que, ao roubarem a terra associadas às reivindicações por Refor-
daqueles que nela viviam, instauraram ma Agrária.
o latifúndio como forma social e po-
lítica. A partir da imposição da agri- Ocupar e acampar
cultura de exportação como modelo
produtivo, restou aos não privilegiados – Na década de 1960, as primeiras
indígenas, escravos e seus descentes, ocupações que visavam à redistribuição

511
Dicionário da Educação do Campo

de áreas rurais para famílias de traba- de reivindicar terras ao Estado. Naquele


lhadores sem-terra eram chamadas de momento, ocupar transformou-se nu-
invasões. Naquele período, os estados ma forma possível de reivindicar.
do Rio Grande do Sul e do Rio de Após a fazenda Sarandi, ao longo
Janeiro foram palco de movimentos or- do ano de 1962, outras 18 áreas foram
ganizados cujo objetivo era não apenas invadidas, por grupos organizados pelo
o uso, mas a desapropriação e a redis- Master. De todas essas áreas, apenas
tribuição de áreas privadas por parte do o chamado Banhado do Colégio, na
Estado, para a realização de projetos cidade de Camaquã, acabou abrigando o
de colonização e de Reforma Agrária. futuro assentamento dos acampados.
É nesse momento que, pela primeira Essas lutas, que também ocorreram
vez, a ocupação de terras é seguida pela em outras partes do Brasil (como no
montagem de acampamento. Norte e na Baixada fluminenses, além de
No Rio Grande do Sul, a primei- em vários estados do Nordeste do país,
ra invasão em forma de acampamento por meio de sindicatos de trabalhadores
ocorreu na fazenda Sarandi – um dos rurais e das Ligas Camponesas), fo-
maiores latifúndios do estado, com ram fundamentais para que em 1964
cerca de 22 mil hectares –, em janei- fosse proclamado o Estatuto da Terra,
ro de 1962. Organizada por políticos que previa, pela primeira vez em nossa
e famílias de agricultores da cidade de história, a desapropriação de proprie-
Nonoai (distante cerca de 100 quilô- dades rurais que não tivessem uso so-
metros da ocupação), a entrada na fa- cial adequado.
zenda recebeu posteriormente apoio Após o longo período de repressão
de diversas forças sociais, como o Mo- da ditadura militar, as ocupações de ter-
vimento dos Agricultores Sem Terras ra e a montagem de acampamentos fo-
(Master) e parte do Partido Trabalhista ram novamente retomadas, em 1978,
Brasileiro (PTB), partido que governa- no Rio Grande do Sul. Nessa ocasião,
va o estado naquele momento. Mon- expulso das terras demarcadas para a
tadas inicialmente na margem entre Reserva Indígena Kaingang, um grupo
a estrada e uma rodovia estadual, as de cerca de 700 famílias de agricultores
barracas logo transpuseram as cercas da mesma cidade de Nonoai, depois da
da fazenda e chegaram a reunir mais tentativa fracassada de ocupar uma área
de mil famílias. Além das famílias de no próprio município, decidiu ocupar
Nonoai, o acampamento serviu para áreas da fazenda Sarandi que não ha-
atrair outras pessoas da região (nas cer- viam sido utilizadas para assentamen-
canias do município de Ronda Alta), to em 1963. Após cinco ocupações e
que também passaram a reivindicar acampamentos montados e reprimidos
terras. Todas as famílias acampadas no pela polícia, o governo estadual reco-
local foram cadastradas pelo governo nheceu o direito dos trabalhadores
estadual, na época comandado por rurais àquelas terras, formando-se os
Leonel Brizola. O cadastramento das assentamentos Macali I, Macali II e
famílias e o assentamento de parte delas Brilhante. A luta das famílias assenta-
em 1963 levaram à constatação de que das no Brilhante e nas duas áreas da
a invasão e o acampamento poderiam gleba Macali, mobilizada por assenta-
ser reconhecidos como formas legítimas dos, sindicalistas e agentes pastorais,

512
Ocupações de Terra

serviu para que milhares de outras ras, com a formação da União Demo-
famílias na mesma situação formas- crática Ruralista (UDR), que organizou
sem o acampamento da Encruzilhada os latifundiários de diversas partes do
Natalino, sobre uma pequena extensão país para o embate político que se deu
de terras de um agricultor que havia na Assembleia Nacional Constituinte
sido assentado no Macali I. e que acabou por limitar as intenções
previstas no PNRA (ver ORGANIZAÇÕES
DA CLASSE DOMINANTE NO CAMPO).
As ocupações do Movimento
A relação das ocupações com o di-
dos Trabalhadores Rurais
reito constitucional fica clara quando
Sem Terra percebemos que os números desse tipo
de mobilização cresceram exponencial-
Podemos afirmar que o uso do ter-
mente no Brasil após a regulamentação
mo ocupação de terras no seu sentido
dos dispositivos constitucionais rela-
contemporâneo foi cunhado pelo Mo-
tivos à Reforma Agrária, previstos no
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem
capítulo III, título VII, da Constitui-
Terra (MST). O uso do termo ocupa-
ção Federal. Aprovada em 1993, a lei
ção foi estratégico na formulação das
nº 8.629 define critérios de produtivi-
bases de justificação e legitimação
dade e de uso do solo em propriedades
do MST e na demanda pela realiza-
rurais para que elas sejam consideradas
ção da Reforma Agrária no Brasil.
produtivas. A mesma lei também define
Se o termo invasão, utilizado ao as formas de desapropriação e dis-
longo dos anos 1960 e 1970, trazia tribuição das terras consideradas im-
consigo tons pejorativos e denotava produtivas ou que não cumprem sua
prática considerada ilegal no que diz função social.
respeito ao direito de propriedade, o
uso do substantivo ocupação indica ou-
Outro marco constitucional vincula-
do às ocupações é a medida provisória
O
tro cenário. Ao usar o termo ocupação,
nº 2.183-56, de 24 de agosto de 2001,
o MST se refere ao direito constitucio-
editada no Governo Fernando Henrique
nal de todo cidadão brasileiro de ter
Cardoso, período em que o Brasil regis-
acesso à terra, conforme o Estatuto da
trou o maior número de ocupações de
Terra (lei nº 4.504, de 30 de novembro
terra, até os dias atuais. Essa medida pro-
de 1964), que, em seu artigo 2º, assegu-
visória reviu pontos cruciais do Estatuto
ra “a todos a oportunidade de acesso
da Terra e da lei nº 8.629. Além de excluir
à propriedade da terra, condicionada todas as terras ocupadas do PNRA, ela
pela sua função social” (Brasil, 1964). impede o acesso aos recursos públicos
As ocupações de terra realizadas de qualquer movimento ou grupo orga-
no início da década de 1980 no Rio nizado que promova ocupações de terra.
Grande do Sul e no Rio de Janeiro con- Essa política de criminalização da ação
tribuíram significativamente para que o dos movimentos sociais contribuiu para
primeiro governo não militar em qua- a retomada dos acampamentos em áreas
renta anos lançasse, em 1985, o Plano externas a propriedades que não cum-
Nacional de Reforma Agrária (PNRA). priam a sua função social, quando não
Nesse mesmo ano, em resposta às ocu- havia regulamentação dos critérios para
pações, surgiram reações conservado- desapropriação previstos no Estatuto.

513
Dicionário da Educação do Campo

Desde a sua fundação, o MST ocu- priadas pelo governo, a ocupação assi-
pa e realiza acampamentos para reivin- nala as terras em que as famílias dese-
dicar o uso socialmente justo de pro- jam ser assentadas. Nas ocupações, ao
priedades públicas e privadas que não fazerem a denúncia simultânea de um
cumpram a sua função social, seja em direito que lhes é negado e das ilegali-
relação aos níveis de produtividade, dades perpetradas pelos latifundiários,
seja no que diz respeito à conserva- e durante séculos acobertadas pelos
ção dos recursos naturais, ou, ainda, em governos de nosso país, as famílias
termos de relações justas entre traba- que desejam ter acesso à terra passam
lhadores rurais e patrões. a integrar as listas de possíveis bene-
Nesse sentido, as ocupações de ter- ficiários de projetos de assentamento
ra têm servido ao menos para dois fins: rural. Depois desses primeiros árduos
a) promover o direito do acesso à terra passos, a espera tem sido longa, como
para quem deseje fazer um uso social bem o sabem os acampados que vivem
justo de sua propriedade;; b) estabelecer hoje embaixo de uma lona, aguardando
limites ao direito de propriedade em o seu assentamento.
casos de uso meramente especulativo Para além da luta pela Reforma
do solo brasileiro, de cultivos ilegais Agrária, atualmente as ocupações são
e da exploração ilegal de trabalhadores parte do repertório de ação política
(trabalho escravo). de diversos movimentos sociais, ru-
Outra faceta importante das ocu- rais e urbanos. Desde os anos 1990,
pações de terra no Brasil é a demons- foi possível perceber que as lutas por
tração do protagonismo dos movimen- moradia, por créditos para a pequena
tos sociais na criação de agendas para o produção, contra a construção de bar-
Estado. Apesar dos diversos planos de ragens e a remoção de famílias têm se
Reforma Agrária criados pelos gover- valido desse modo de reivindicar para
nos estaduais e nacional ao longo dos chamar atenção do Estado. Quando as
últimos quarenta anos, as ocupações ocupações de terras e terrenos não sur-
foram e continuam sendo, na prática, tem os efeitos desejados, os movimen-
a única forma de o Estado identificar tos sociais têm recorrentemente ocu-
que uma terra não cumpre sua função pado também prédios públicos como
social. Em meio ao vasto conjunto de forma de estabelecer negociações com di-
fazendas que deveriam ser desapro- versos governos.

Para saber mais


BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964: dispõe sobre o Estatuto da
Terra e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 31 nov. 1964. Dis-
ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504.htm. Acesso em:
16 set. 2011.
SIGAUD, L.; ERNANDEZ, M.; ROSA, M. C. Ocupações e acampamentos: sociogênese das
mobilizações por Reforma Agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

514
Orçamento da Educação e Superávit

ORÇAMENTO DA EDUCAÇÃO E SUPERÁVIT


Gabriel Grabowski
Jorge Alberto Rosa Ribeiro

A organização estrutural de uma so- Estados monárquicos e absolutistas,


ciedade capitalista dependente e subor- de forte caráter aristocrático, em Es-
dinada como a brasileira se reflete na tados republicanos e representativos,
política e no financiamento da educa- inclusive na América recém-indepen-
ção. O fato de sermos uma das socie- dente. Ao contrário do que acontecia
dades com maior concentração de ri- nos Estados absolutistas e monárqui-
queza, e uma das mais desiguais do mun- cos, que não tinham compromisso com
do, tem como consequência a oferta gastos públicos e sociais, os Estados
de educação desigual para classes desi- republicanos prometiam realizá-los.
guais e a distribuição desigual de recur- Entretanto, o atendimento dos inte-
sos. Portanto, as políticas de financia- resses populares ficou na promessa,
mento e de distribuição dos recursos apesar de ser da cobrança de impostos
em sociedades capitalistas precisam ser do povo que os Estados sobrevivem.
estudadas e interpretadas não como ca- A constituição dos Estados republi-
tegorias isoladas, mas no seu conjunto, canos tornou os interesses dominan-
na sua totalidade (Frigotto, 1983). tes da burguesia liberal prioritários e
apresentados como representativos
Cabe salientar que a gestão dos
do povo, destinando os gastos dos
fundos públicos e o financiamento e o
orçamento da educação são revelado-
Estados para a satisfação das necessi-
dades, dos problemas e dos interesses
O
res das prioridades que o capital induz
associados com a estruturação de so-
o Estado a implementar e permitem
ciedades urbanas e industriais capitalis-
refletirmos sobre a natureza, a finalida-
tas competitivas e capazes de acumular
de e as prioridades estabelecidas pelos
e reproduzir o capital. Esse interesse
agentes de implementação de políti- estava acima do interesse genuinamen-
cas e programas sociais e educativos. te popular. Isso explica por que a oferta
Para Dias Sobrinho: “O financiamento de serviços e bens públicos, como
é uma questão crucial no quadro das os de educação, saúde e saneamento, não
mudanças de relações entre o Estado atendia a todos. De modo complemen-
e as instituições educacionais, especial- tar, essa burguesia justificava a precária
mente as públicas. As novas formas distribuição pública dos serviços e dos
de financiamento apresentam algumas bens públicos pela naturalizção das de-
características específicas e tão impor- sigualdades sociais conforme a origem
tantes que acabam dando o tom aos con- social de cada um. Na radicalização das
teúdos das reformas” (2002, p. 172). lutas sociais, que ganharam um conteú-
Historicamente, ao longo do século do mais democrático em alguns países
XIX, importantes lutas sociais tiveram nas primeiras décadas do século XX, as
como resultado a transformação dos receitas oriundas da economia popular,

515
Dicionário da Educação do Campo

obtidas por meio de tributos, impos- mento da dívida, tornando o país “con-
tos e taxas, tornaram possível promover fiável” do ponto de vista dos credores
e garantir, para todos, a oferta de servi- nacionais e internacionais.
ços e de bens públicos, como os referi- Esta ideia está viva, como compro-
dos anteriormente. va o caso brasileiro, pois, na consulta
Os Estados, além disso, tinham ou- ao sítio da Agência Câmara de Notí-
tros gastos vistos como prioritários, os cias em busca das expressões legislati-
quais, de modo corriqueiro, implicavam vas da Câmara Federal, lê-se que con-
pedir empréstimos para saldá-los. O en- tingenciamento significa o bloqueio
dividamento do Estado pode ser reco- de despesas previstas no Orçamento
nhecido como a marca mais caracte- Geral da União.1 Esse procedimento
rística da própria existência do Estado é empregado pela administração fede-
republicano liberal, burguês e capitalis- ral para assegurar o equilíbrio entre a
ta. Assim, atender o endividamento pas- execução das despesas e a disponibili-
sou a ser prioritário ora por razões de dade efetiva de recursos. As despesas
guerra religiosa ou ideológica, ora por são bloqueadas a critério do governo,
causa das frequentes crises econômicas que as libera ou não, dependendo da
e outros conflitos. O século XX está ca- sua conveniência. Essa conveniência
racterizado fundamentalmente por um tornou-se lei. Desde 1999, este pro-
conjunto histórico que tornou os inte- cedimento vem sendo aplicado respei-
resses, as necessidades e os problemas tando a Lei de Responsabilidade Fiscal,
populares secundários em relação às que afirma claramente a necessidade
prioridades da nação em conflito. de garantir que as contas públicas pro-
“Uma vez que a dívida pública duzam um índice chamado superávit pri-
do Estado tem o seu suporte nas re- mário do setor público, ou seja, sinaliza
ceitas do Estado, que tem que cobrir o quanto a receita da União, dos estados e
os pagamentos anuais por juros etc., municípios e das empresas estatais deve
o sistema de impostos moderno foi o ser maior do que as suas despesas, o que,
complemento necessário do sistema por sua vez, representa uma garantia do
de empréstimo nacional” (Marx, 1983, pagamento dos juros da dívida pública.
p. 150). A formulação desta ideia há qua- Dito de outra forma, entende-se por
se cento e cinquenta anos ainda escla- superávit primário uma relação entre a
rece os dias atuais. Marx, ao reconhecer receita e as despesas públicas na qual
no endividamento público um dos pro- o total da receita do governo é maior do
cessos históricos da acumulação primi- que os seus gastos não financeiros, ex-
tiva, explicitou o mecanismo de sua rea- cluídos os gastos financeiros destinados
lização: o “sistema de impostos” está a ao atendimento do pagamento de juros
serviço da cobertura dos pagamentos e encargos com a dívida pública. Este ín-
da dívida pública. Assim, a população dice, sendo positivo (superávit), sinaliza
mantinha um sistema de impostos para aos que emprestam ao Estado a capaci-
viabilizar um conjunto de bens e servi- dade que ele tem de pagar a sua dívida,
ços públicos, muitas vezes em estado tanto o valor principal quanto os juros
precário ou de extrema inoperância, e que incidem sobre o estoque da dívida.
destinava grande parte do orçamento Toda vez que este índice corre o ris-
público, prioritariamente, para o paga- co de ser negativo (déficit), passando os

516
Orçamento da Educação e Superávit

gastos a serem maiores do que a recei- como já observado, novos investimen-


ta, é aplicado o contingenciamento, o tos, já seja pela própria redução dos
bloqueio de despesas. Como afirma montantes a serem aplicados, ou seja
o boletim intitulado Políticas sociais – por promover a isenção de tributos
acompanhamento e análise, publicado pelo futuros como forma de financiar os
Instituto de Pesquisa Econômica Apli- novos investimentos.
cada (Ipea), em fevereiro de 2006: Até o ano passado, o bloqueio de
despesas, também chamado de Des-
Em face dessa conjuntura, não vinculação da Receita da União (DRU),
é de estranhar que prevaleça a podia incidir inclusive sobre aqueles
rígida subordinação das políti- investimentos destinados à educação,
cas sociais às políticas fiscal e ainda que os mesmos estivessem pre-
monetária em curso. Além do vistos no Orçamento Geral da União.
alto custo fiscal que advém des- Do ano 2000 até hoje, depois de 11
sa estratégia de estabilização, anos e da economia de algumas de-
que obriga o governo federal a zenas de bilhões de reais, os recursos
esterilizar e transferir recursos destinados à educação não podem mais
do lado real da economia (como ser contingenciados de recursos prove-
o são, por exemplo, os investi- nientes das receitas da União, estados
mentos e gastos em programas e municípios. Conforme o boletim
sociais) para um tipo de gestão do Ipea, a
financeirizada da dívida pública,
há efeitos perversos que se ma- [...] Emenda Constitucional [EC]
nifestam tanto na desaceleração nº 59 já se antecipou e estabe-
do ânimo capitalista para novos leceu a eliminação gradual dos
investimentos como na valoriza- recursos retidos pela Desvin-
ção cambial, que pode reduzir o culação das Receitas da União O
saldo exportador, justamente (DRU) em relação ao montante
os dois motores do crescimento que deve ser aplicado anualmen-
econômico recente. (Instituto te pela União. Desse modo, fi-
de Pesquisa Econômica Aplica- cou estabelecido que em 2009 o
da, 2006, p. 8) percentual a ser retido pela DRU
cairia para 12,5%;; em 2010, para
Nesse sentido, o país arrecada por 5%;; e em 2011, seria nulo. Até a
meio de uma estrutura tributária extrema- aprovação da EC no 59, a legisla-
mente injusta, que onera excessivamen- ção previa a manutenção integral
te os trabalhadores e consumidores, da DRU até o fim de 2011 – o
ao mesmo tempo que economiza jus- que significava permitir a desvin-
tamente na oferta de bens e serviços culação de até 20% do total de
destinados a atender esses grupos: ao impostos arrecadados pela União
priorizar o pagamento da dívida, deixa para aplicação discricionária por
sistematicamente de gastar em progra- parte do governo, independente-
mas e ações governamentais essenciais mente das vinculações previstas
para o bem-estar de sua população. na Constituição Federal de 1988.
Paralelamente, o atendimento à polí- (Instituto de Pesquisa Econômi-
tica de superávit primário desestimula, ca Aplicada, 2006, p. 130)

517
Dicionário da Educação do Campo

A Constituição Federal de 1988 de permitirmos que um seleto grupo de


expressa que a educação é um direito bilionários constitua fortunas exorbitan-
social e responsabiliza o Estado e a tes, sem taxá-los proporcionalmente.
família pelo seu provimento. Para res- Segundo Nelson Amaral (2011),
guardar o direito à educação, o Estado pesquisador do financiamento da edu-
estabeleceu a estrutura e as fontes de cação no Brasil, é necessário utilizar,
financiamento. Ao determinar a vin- pelo menos, duas outras variáveis fun-
culação de recursos financeiros para a damentais: o valor do PIB do país e o
educação, a Constituição garantiu per- tamanho do alunado a ser atendido.
centuais mínimos da receita, resultantes Neste sentido, temos uma população
de impostos, à manutenção e ao desen- educacional de 84,4 milhões de habi-
volvimento do ensino: 18% da receita tantes (45% da população), com um
de impostos da União e 25% da receita de PIB de 3,675 trilhões de reais em 2010,
impostos dos estados, do Distrito quando se investiram 81 bilhões de re-
Federal e dos municípios, incluindo-se ais em educação, ou seja, 5% do PIB.
as transferências ocorridas entre esferas O cálculo dos investimentos em
de governo e o salário-educação. Desta educação ainda gera muitas dúvidas
forma, o financiamento da educação e controvérsias. Enquanto o Ministé-
pública está alicerçado, de um lado, por rio da Educação (MEC) e o Instituto
um conjunto de “fontes de recursos Nacional de Estudos e Pesquisas Edu-
financeiros protegidos” (receita de im- cacionais (Inep) divulgam um gasto di-
postos, vinculações, salário-educação) reto de 5% do PIB e um gasto indireto
e, de outro, por um “financiamento de 5,7% do mesmo (considerando ina-
flexível” (contribuições sociais, con- tivos, previsão de aposentadorias fu-
cursos de prognósticos, empréstimos, turas etc.), a Organização das Nações
alocações orçamentárias etc.). Unidas para a Educação, a Ciência e a
A vinculação pura e simples de im- Cultura (Unesco), em estudos recentes
postos, excluindo gradativamente ou- (United Nations Educational, Scientific
tros mecanismos de arrecadação, como and Cultural Organization, s. d.), atri-
taxas e contribuições sociais, agregada bui ao Brasil um investimento de 4%.
aos contingenciamentos e às diversas O Plano Nacional de Educação (PNE
interpretações de gastos que podem 2001-2011) previa uma meta de 7%, ve-
ser considerados dentro dos percen- tada pelo Governo Fernando Henrique
tuais, permite que os entes federados, Cardoso;; e o novo projeto de lei
quando lhes falta compromisso ético- no 8.035/2010 (proposta de PNE para
político, não cumpram sequer os va- o período 2011-2021) propõe atingir
lores vinculados constitucionalmente. progressivamente 7% até 2020, com
Também a vinculação não representa avaliação em 2015, contrariando a pro-
nem a real necessidade nem a poten- posta aprovada na Conferência Na-
cialidade do país, expressa no produ- cional de Educação (Conae) de atingir
to interno bruto (PIB) e na riqueza 7% em 2011 e 10% até 2014.
acumulada por empresas e indivíduos, É importante destacar que o finan-
tanto que, mesmo sendo uma das maio- ciamento não é só alocação de recur-
res economias do mundo, não somos os sos financeiros para a educação é um
maiores investidores em educação, além conjunto de medidas e de outros ins-

518
Orçamento da Educação e Superávit

trumentos de gestão que impõe objeti- consumo educativo, reproduzindo as


vos comuns estabelecidos. Financiar a desigualdades sociais.
educação não é um fim em si mesmo, No plano das formulações de polí-
mas um meio para um fim maior: uma ticas e programas de educação do cam-
política nacional de Estado para a edu- po, é muito nítida a disputa de interes-
cação. Não existe um modelo ideal de ses das elites econômicas e privados
financiamento, tudo depende dos obje- sobre a escola, sobre os seus programas
tivos da política de educação em razão e, até, sobre a sua função social. Se-
do projeto social, econômico e políti- gundo algumas pesquisas (Grabowski,
co do país, dos jovens estudantes, das 2010;; Grabowski e Ribeiro, 2007;;
famílias, do mundo do trabalho, enfim, Cunha, 2007), a descontinuidade com-
da sociedade, cabendo ao Estado não prova, por um lado, a ausência de
apenas financiar e prover os recursos, uma política nacional de educação –
mas também coordenar, supervisionar, política que deveria ser construída
induzir e articular os programas e os ou- pelo conjunto da sociedade, como sín-
tros setores potenciais financiadores. tese possível que represente um pro-
Em Escola não é um empresa: o neolibe- jeto de nação –, e revela, por outro,
ralismo em ataque ao ensino público, Christian que governar com base em programas
Laval alerta que “se nós ainda não esta- e projetos é uma forma mais flexível
mos na liquidação brutal da forma esco- de repassar recursos públicos para a
lar como tal, nós assistimos seguramente esfera privada.
a uma mutação da instituição escolar que No contexto brasileiro de um mo-
se pode associar a três tendências: uma delo de financiamento da educação
desinstitucionalização, uma desvalorização baseado em “recursos protegidos” –
e uma desintegração” (2004, p. xviii). A mediante as vinculações de impostos –
desinstitucionalização decorre do modelo de
escola como “empresa aprendiz”, gerida
e “recursos flexíveis”, que dependem
da conjuntura política (prioridade de
O
por princípios do novo gerenciamento e governo), da economia, da balança co-
submetida à obrigação de resultados e de mercial (superávit), da inflação (cortes
inovações;; a desvalorização acontece quan- orçamentários e contingenciamentos) e
do os valores “clássicos” de emancipação da prioridade da política, nossa educa-
política e de expansão pessoal são substi- ção fica dependente da capacidade de
tuídos pelos imperativos prioritários de financiamento da economia, do Estado
eficácia produtiva e de inserção social;; e dos governantes (gestores), pois, re-
e a desintegração, por sua vez, ocorre na gularmente, os percentuais mínimos de
medida em que se introduzem meca- investimentos em educação estabeleci-
nismos de mercado no funcionamento dos não são integralmente aplicados ou
da escola, por meio da promoção da estão suscetíveis a contingenciamentos,
“escolha da família”, ou seja, de uma sendo alocados mais por critérios polí-
concepção consumidora da autonomia ticos do que de acordo com as necessi-
individual, em diferentes formas de dades sociais.

Notas
1
Ver http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/73423.html.

519
Dicionário da Educação do Campo

Para saber mais


AMARAL, N. C. O novo PNE e o financiamento da educação no Brasil: os recursos como
um percentual do PIB. In: SEMINÁRIO DO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
(CNE). Anais... Brasília: MEC, 2011.
CUNHA, L. A. O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o
Estado e o mercado. Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 809-829, out.
2007.
DIAS SOBRINHO, J. Universidade e avaliação: entre a ética e o mercado. Florianópolis:
Insular, 2002.
FRIGOTTO, G. Política e financiamento da educação: sociedade desigual, distribui-
ção desigual de recursos. Cadernos do Cedes, n. 5, p. 3-17, 1983.
GRABOWSKI, G. Financiamento da educação profissional no Brasil: contradições e desa-
fios. 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2010.
______;; RIBEIRO, J. A. R. Financiamento da educação profissional no Brasil: contradi-
ções e desafios. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNO-
LÓGICA, 1. Anais... Brasília: MEC/Setec, 2007.

HOBSBAWM, E. Historia del siglo XX. Barcelona: Grijalbo Mondadori, 1995.


INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Políticas sociais − acompa-
nhamento e análise, n. 12, fev. 2006. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/
sites/000/2/publicacoes/bpsociais/bps_12/bps%2012_completo.pdf. Acesso
em: 20 set. 2011.
LAVAL, C. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público.
Londrina: Planta, 2004.
MARX, K. Acumulação primitiva. In: ______;; ENGELS, F. Obras escolhidas. Lisboa:
Avante, 1983. V. 2, p. 104-158.
UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION (UNESCO).
INSTITUTE FOR STATISTICS. Data Centre. Montréal: Unesco Institute for Statis-
tics, [s.d.]. Disponível em: http://stats.uis.unesco.org/unesco/TableViewer/
document.aspx?ReportId=143&IF_Language=eng. Acesso em: 18 nov. 2011.

520
Organizações da Classe Dominante no Campo

ORGANIZAÇÕES DA CLASSE DOMINANTE


NO CAMPO
Regina Bruno
Elaine Lacerda
Olavo B. Carneiro

Alguns traços marcam a identidade Multiorganização


de classe e a organização política do
patronato rural no Brasil: a multiorga- Frequentemente uma mesma fração
nização, a representação direta, o em- de classe, setor produtivo ou porta-
penho na construção da união de todos voz participa, concomitantemente, de
acima dos interesses de cada fração, a várias instâncias de representação. Es-
exigência de um Estado provedor sas frações integram a estrutura sindi-
e protetor convivendo com a defesa cal patronal oficial, representada pela
do mercado, a visão da propriedade da Confederação Nacional da Agricultura
terra como direito absoluto, o discurso e Pecuária do Brasil (CNA). São mem-
da solidariedade entre as classes sociais bros da Organização das Cooperativas
no campo e a violência como prática de Brasileiras (OCB) e da tradicional So-
classe. São traços definidores da prá- ciedade Rural Brasileira (SRB). Par-
tica política e da retórica de legitima- ticipam da Associação Brasileira do
ção dos grandes proprietários de terra Agronegócio (Abag) e integram as inú-
e dos empresários rurais e do agro-
negócio no Brasil e que muito contri-
meras associações por produto e mul-
tiproduto criadas nas últimas décadas,
O
buem para o exercício da dominação e juntamente com a consolidação das ca-
a exploração de classe. deias produtivas. E os representantes
Procuraremos apresentar resumi- patronais de maior poder econômico e
damente neste verbete esses traços político têm assento nos conselhos das
característicos da organização e da re- Federações da Indústria e do Comércio
presentação política do patronato rural ligada à agricultura.
no Brasil. Em seguida, elencaremos as Em defesa do monopólio fundiá-
instâncias de organização e de repre- rio e contra as críticas sobre o uso
sentação mais significativas. Por anun- do trabalho escravo, grandes proprie-
ciar uma nova configuração na repre- tários de terra e empresários rurais e
sentação de interesses e construção da do agronegócio também se sentem-se
hegemonia, será dada atenção especial representados pela União Democrática
à Associação Brasileira do Agronegó- Ruralista (UDR), pela então denomina-
cio (Abag). Finalmente, ressaltaremos da Bancada Ruralista e pelos inúmeros
alguns elementos definidores da práti- grupos de defesa da propriedade da
ca política e da retórica de legitimação terra que costumam despontar como
patronal rural nos anos recentes. reação às lutas por terra, à demanda

521
Dicionário da Educação do Campo

por uma reforma agrária e à reivindi- tantes. Assim, nas cadeias produtivas,
cação do movimento quilombola pelo muitas vezes o lucro de um setor re-
direito ao território. A prática da mul- presenta o prejuízo de outro, e as con-
tiorganização em muito contribui para dições de acumulação dos grupos são
neutralizar a segmentação de interesses diferenciadas tanto à jusante quanto à
e para a construção do consenso. montante, ou quando situadas dentro
da porteira da fazenda. Além disso, de
Representação direta outra perspectiva, sempre foi intensa a
disputa pela primazia da representação
Quase sempre são os proprietários de classe.
de terras e empresários rurais e do Entretanto, quando se sentem
agronegócio que se fazem diretamente ameaçados em seus privilégios e in-
representar quer no Congresso Nacio- teresses comuns, como é o caso da
nal e em agências do Estado, ocupando defesa da concentração de terras, to-
postos federais, quer na sociedade civil. dos se unem, pois sabem que a união
Com frequência, são os melhores qua-
é condição primeira da reprodução
dros políticos que assumem o papel de
social e do exercício da dominação e
porta-vozes dos interesses patronais.
da exploração. Por essa razão, na dis-
Dentre os exemplos mais expres- puta política e nas divergências eco-
sivos, temos Roberto Rodrigues, pro- nômicas estão contidos os acordos e
prietário de terras, empresário rural e as alianças. E em nenhum momento
ex-ministro da Agricultura e Pecuária da história brasileira ouvimos falar de
(2003-2006), e Luiz Fernando Furlan, interesses conflitantes e divergências
empresário brasileiro, acionista e neto do sobrepondo-se à união de todos.
fundador do grupo Sadia, e ex-ministro
do Desenvolvimento, Indústria e Co-
mércio Exterior (2003-2007). A Banca- Por um Estado tutelar e
da Ruralista no Congresso Nacional é protetor dos interesses
outro exemplo de representação direta
em que se destacam o médico agrope-
patronais
cuarista Ronaldo Caiado (DEM/GO), Mais mercado e menos Estado,
o agropecuarista e empresário rural reivindicam os porta-vozes do patro-
Abelardo Lupion (DEM/PR), o rura- nato rural, para quem a livre inicia-
lista convicto e dono de terras Moacir tiva é a garantia para a construção
Micheletto (PMDB/PR), o arrozeiro de uma nova institucionalidade. En-
Paulo César Quartiero (DEM/RR) e a pro-
tretanto, ainda prevalece, como ele-
prietária de terras, empresária pecuarista e
mento norteador da prática patronal,
senadora Kátia Abreu (DEM/TO).
a defesa de um Estado tutelar, protetor
e provedor, assim como a cultura do fa-
União acima das vor, as relações oficiosas e a valorização
divergências de cada dos velhos recursos de patronagem –
fração, grupo ou setor em grande medida realimentados pelo
próprio Estado – convivendo lado a
As classes dominantes do campo – lado com relações legais e oficiais.
diversificadas e heterogêneas – frequen- Ademais, na visão do patronato ru-
temente apresentam interesses confli- ral, o Estado seria o único culpado pela

522
Organizações da Classe Dominante no Campo

pobreza e má distribuição de renda e de que implica a formação de milícias, a


recursos, pelo recrudescimento da vio- contratação de capangas, uma lista dos
lência no campo e pelo aparecimento marcados para morrer e os massacres.
do Movimento dos Trabalhadores Ru- E que exige o comprometimento de
rais Sem Terra (MST). todos. No entanto, quando necessário,
A defesa da livre iniciativa ou a exi- disputam politicamente os trabalhado-
gência da proteção do Estado depen- res do campo e lançam mão do discur-
derá do que melhor convier aos pro- so da solidariedade de classe e da ami-
pósitos patronais e do que melhor se zade entre patrões e empregados como
ajustar aos seus objetivos. “‘No Brasil instrumento de cooptação.
tem-se a moral que convém à produção
que se deseja’, declara um porta-voz
patronal” (Bruno, 2002, p. 16).
Entidades de
representação e ação
Propriedade como direito coletiva do patronato rural
absoluto e incontestável A prioridade da organização na de-
fesa de seus interesses sempre foi uma
Outro traço comum das classes do- preocupação das classes dominantes do
minantes no campo é a visão de pro-
campo no Brasil, remontando à própria
priedade como direito absoluto, in-
constituição dos grandes proprietários
contestável e “naturalmente” herdado.
de terra, dos empresários rurais e do
Além disso, da grande propriedade
fundiária teriam surgido os principais agronegócio como classe. As primeiras
valores da sociedade brasileira: a “au- entidades surgem no início do século
dácia” e a “bravura”. São atributos que, XIX, “com as experiências dos ‘Clubes
em certo sentido, carregam consigo de Lavoura’ e as ‘Sociedades Auxilia-
aquilo que Oliveira Viana caracteriza, doras’”, que “nasceram de dificuldades O
em seu livro Populações meridionais do localizadas visando interesses muito
Brasil (2000), como os elementos ideo- particulares e tiveram curta duração”
lógicos do domínio que nega a dimen- (Brito, 1991, p. 3).
são social da propriedade da terra. Dentre as entidades tradicionais
mais significativas, destacam-se a
A violência como Sociedade Nacional de Agricultura,
a Confederação Rural Brasileira e a
prática de classe Sociedade Rural Brasileira.
Associada à noção de propriedade Em 1897, é criada a Sociedade
da terra como domínio, temos a violên- Nacional de Agricultura, que despon-
cia como prática de classe. Seja física ou ta com a finalidade de “desenvolver
simbólica, é uma violência estruturante ações políticas e educacionais em prol
que expõe velhos e novos padrões de da agricultura brasileira”. A entidade
conduta e de pensamento, e impede “estimulou a fundação de sindicatos e
o reconhecimento do outro mediante o de associações patronais vinculados a
uso da força ou da coerção. distintos ramos produtivos e em várias
Não se trata de uma postura indi- regiões do país [...]. Tal postura con-
vidual e esporádica, e sim de uma vio- sistia em uma estratégia para aumentar
lência ritualizada e institucionalizada, a pressão pela criação do Ministério

523
Dicionário da Educação do Campo

da Agricultura, uma das principais de- de laranja e indústrias de insumos


mandas pleiteadas pela SNA no perío- (Ramos, 2011).
do” (Ramos, 2011, p. 31). Nas últimas
décadas, a SNA transformou-se em
Confederação Nacional da
instância de mediação de interesses e
de neutralização de conflitos patronais Agricultura e Pecuária do Brasil
rurais. Hoje, ela se autodefine como
A Confederação Nacional da Agri-
uma entidade na qual “a tradição e a
cultura e Pecuária do Brasil (CNA) é
modernidade convivem sob a égide da
o órgão máximo de representação do
qualidade”,1 expressando, assim, uma
sistema sindical patronal rural, abran-
ambivalência própria das classes domi-
gendo todas as federações de agricul-
nantes no campo no Brasil.
tura (uma por estado), que, por sua
Já a Confederação Rural Brasileira, vez, comportam todos os sindicatos
fundada em 1928, só veio a funcionar rurais espalhados pelo país. Os em-
efetivamente em 1951, e seu objetivo pregadores rurais e todos os proprie-
era “contribuir junto a órgãos do go- tários de terras que estejam acima da
verno federal na formulação de polí- dimensão do módulo rural estabele-
ticas agrícolas e também representar cido para a sua região estão oficial-
oficialmente o conjunto da agricultura mente representados pela CNA. O
do país” (Ramos, 2011, p. 34). sistema sindical rural, tanto de em-
Por último, a Sociedade Rural Bra- pregados quanto de trabalhadores, foi
sileira, fundada em 1919 na cidade regulamentado pelo Estatuto do Tra-
de São Paulo, entidade que apresenta balhador Rural (lei nº 4.214, de 2 de
como principais objetivos “represen- março de 1963), promulgado durante
tar o produtor rural brasileiro, enca- o governo João Goulart, e se orienta
minhar reivindicações e propostas às pelas normas gerais da Consolidação
autoridades, defender os interesses das Leis do Trabalho (CLT).
do setor na mídia, costurar alianças e Por ser a única representante legal-
atuar como mediadora entre os elos mente estabelecida do patronato rural
das cadeias produtivas, estimular a ge- em âmbito nacional, a CNA tem as-
ração de políticas públicas favoráveis sento em vários conselhos, comissões
à agropecuária”. 2 temáticas, grupos de trabalho e pro-
Em 1985, durante a Nova Repú- gramas oficiais relativos à agropecuá-
blica, a atuação da entidade, e de seu ria. Daí que tenha se tornado elemento
presidente Flávio Teles de Menezes, foi importante em torno do qual se agluti-
decisiva nos rumos da grande política nam as demais organizações patronais
institucional contra o I Plano Nacio- rurais (Leal, 2002).
nal de Reforma Agrária (I PNRA) e na A CNA é dirigida por uma diretoria
coordenação das estratégias de ação executiva, subordinada ao Conselho
das classes dominantes no campo. de Representantes, órgão máximo da
A entidade continua a represen- instituição, composto por um colégio
tar principalmente pecuaristas, cafei- de 27 presidentes das federações da
cultores e produtores de grãos, mas agricultura, e se atribuiu como “mis-
conta também com a participação de são”: a união da classe produtora ru-
outros segmentos, como produtores ral;; a defesa do homem do campo e da

524
Organizações da Classe Dominante no Campo

economia agrícola;; a valorização da e a direção política, representada por


produção agrícola e a preservação grandes cooperativas empresariais.
do meio ambiente, associadas ao de- Nas últimas décadas, a OCB bus-
senvolvimento da agropecuária e da cou apresentar-se como modelo de re-
produção de alimentos;; a defesa do presentação institucional e política para
livre comércio de produtos da agro- os demais grupos patronais rurais. Isso
pecuária e da agroindústria;; e a bus- porque, segundo um dos dirigentes, “o
ca e a demonstração do correto co- agricultor de nova geração exige uma
nhecimento de problemas e soluções entidade de representação eficiente”.
apropriados às questões da catego-
ria econômica.
Associação Brasileira do
Organização das Cooperativas Agronegócio
Brasileiras Apresentada oficialmente em 6
de maio de 1993 no auditório Nereu
Fundada em 1969, a Organização
Ramos, no Congresso Nacional, a As-
das Cooperativas Brasileiras (OCB) se
sociação Brasileira do Agronegócio
caracteriza pela estreita relação com o
(Abag) – inicialmente intitulada Asso-
governo federal. Tal situação
ciação Brasileira de Agribusiness – re-
presenta, desde a sua origem, impor-
[...] deveu-se a aspectos ine-
tante base de atuação do agronegócio3
rentes ao próprio ideário coo-
em sua busca por uma institucionalida-
perativista, marcado pela va-
de favorável ao modelo organizacional
lorização de três aspectos:
a) o caráter supostamente mais difundido pelo conceito de agronegócio,
o qual tem sido, nos últimos anos, res-
democrático das cooperativas;;
b) sua autorrepresentação en- significado como agricultura sustentável e O
quanto parte integrante de um traduzido por um sistema de gestão de ris-
projeto não capitalista e anti- cos cuja operacionalização inclui a pró-
lucro;; e, finalmente, c) a possi- pria definição de desenvolvimento.
bilidade de distribuição dos Vale mencionar que a então Asso-
“ganhos” entre os coopera- ciação Brasileira de Agribusiness foi
dos segundo seu “trabalho”, e apresentada ao grande público em 14
não segundo o capital investido. de junho – pouco mais de um mês
(Mendonça, 2005a, p. 4) após a cerimônia oficial de Brasília –,
no Seminário de Agribusiness realiza-
Ainda segundo essa autora, tais do na cidade de São Paulo, no qual se
argumentos “transformaram o coope- discutiram questões ligadas à seguran-
rativismo num dos mais expressivos ça alimentar;; ao agribusiness – concei-
movimentos de negação do conflito to e abrangência;; ao tamanho e custo
social” (ibid.). Entretanto, esse ideário do Estado;; e à infraestrutura e ao
tem sido insuficiente para neutralizar agribusiness brasileiro. A organicida-
as tensões existentes entre as bases de da iniciativa, considerando-se não
cooperativistas, compostas predomi- apenas o contexto de sua realização –
nantemente por pequenos agricultores, revisão da Carta de 1988 e eleição da

525
Dicionário da Educação do Campo

fome como problema nacional –, mas porteira da fazenda” eram sinônimos,


também a própria estratégia de re- e representavam, dentro das unidades
presentação empregada pela Abag – ou estabelecimentos rurais, um agrega-
baseada no resgate de temas de interesse do que seria responsável pela produção
comum entre suas bases sociais –, revela vegetal e animal (farming);; e 4) proces-
uma fina sintonia com a orquestração de samento e distribuição, agregado situa-
interesses que tem caracterizado o chama- do “depois da porteira da fazenda”, en-
do “novo” rural brasileiro (Silva, 1996). volvia as atividades na indústria e nos
Fruto do processo de politização da serviços para a conversão e a comer-
economia, a Abag materializa os esfor- cialização dos bens de consumo feitos
ços para a institucionalização da ideia com produtos de origem agropecuária
de agronegócio no país. Cunhado em (Araújo, Wedekin e Pinazza, 1990).
1957 por John Davis e Ray Goldberg Somados os agregados antes, den-
durante estudos desenvolvidos no Pro- tro e depois da porteira, temos a cons-
grama de Pesquisa Agricultura e Ne- tituição de uma rede de conexões cuja
gócios da Harvard Business School necessidade de ordenação e represen-
(HBS), o conceito de agribusiness seduziu tação política legitimaria o projeto de
o então presidente (herdeiro) do Gru- uma associação que traduzisse a nova
po Agroceres Ney Bittencourt de realidade e dotasse de importância
Araújo, cuja presença nos seminários política o poderoso complexo eco-
realizados na HBS passou a ser fre- nômico definido, didaticamente, nas
quente a partir da década de 1970. Essa obras editadas pela Agroceres de Ney
visão sistêmica das atividades agrí- Bittencourt de Araújo e, posteriormen-
colas cooptou de tal forma o empre- te, pela própria Abag no exercício de
sário, que ele incorporou a missão de sua função histórica real.
difundi-la no Brasil, dando início a um
Importa mencionar que, recordan-
processo de mobilização do patronato
do as origens da Associação Brasileira
rural o qual veio a congregar importan-
do Agronegócio, Roberto Rodrigues
tes lideranças de um setor que acabou
enfatiza a insistência de Araújo na ins-
sendo reinventado. A agricultura foi
titucionalização da própria Frente Am-
ressignificada então como agribusiness,
pla da Agropecuária Brasileira (Faab),
cujo exercício de tradução e acomo-
em cuja experiência Rodrigues identifi-
dação teria sido marcado, segundo os
ca a semente da Abag.
próprios porta-vozes do agronegócio,
por algumas “liberalidades”. Vale registrar que, mesmo localiza-
da na cidade de São Paulo, a associa-
Nesse sentido, foram realizadas al-
gumas aproximações: 1) complexo agroin- ção recebeu o qualificativo “nacional”,
dustrial e sistema agroalimentar exprimiam como forma de distinção em termos de
o conteúdo da palavra agribusiness;; abrangência de representação, conside-
2) setor de insumos e bens de produção, radas as suas experiências regionais,
setor “antes da porteira da fazenda”, materializadas na representação do
equivalia ao conjunto das atividades Rio Grande do Sul (Abag/RS) e de
econômicas que ofertaria produtos e Ribeirão Preto (Abag/RP).
serviços para agricultura (farm supplies);; Examinado o conteúdo discursivo
3) agricultura, setor rural, agropecuária, dos agentes da Abag, nele destacam-se
setor agrícola, produção agropecuá- quatro elementos estruturantes: o de-
ria e agrícola e atividades “dentro da senvolvimento sustentado, a integração

526
Organizações da Classe Dominante no Campo

à economia internacional, a elimina- sável (Ares), além de espaços como o


ção de desigualdades de renda e bol- PENSA, Centro de Conhecimento em
sões de miséria e o respeito ao meio Agronegócios, da Faculdade de Eco-
ambiente. Tais elementos são apon- nomia, Administração e Contabilidade
tados como problemas estruturais do da Universidade de São Paulo – cuja
Brasil, e a abordagem dos mesmos materialidade revela eficiente práxis
acaba apresentando uma linha de conti- do processo de institucionalização dos
nuidade em termos de demandas e pro- interesses do patronato rural, um pro-
posições na qual sobressaem três gru- cesso no qual as interações entre os
pos de ação: políticas públicas, orde- campos econômico, político e intelec-
nação das cadeias produtivas e nego- tual, no que diz respeito à condução
ciações internacionais. das atividades ligadas à agricultura, são
Não devemos esquecer que, tendo explicitadas. Enfim, constata-se uma
como perspectiva dotar de capacidade gama de organizações com porta-vozes
de direção o núcleo dirigente do em- próprios e com funções bem definidas
presariado rural no Brasil, a Abag se para o trabalho de valorização dos ne-
insere no complexo campo de disputa gócios e interesses do Sistema.
pela definição de agendas e pela esco- Vale reforçar que a conjuntura na
lha do tratamento dado aos problemas qual emergiu a Abag constitui causa e
eleitos como prioridade. De tal forma, consequência do estabelecimento de
suas frentes materiais (congressos, fó- novas configurações e do reordena-
runs etc.) não só buscam organizar o mento da organização e da represen-
aludido grupo no sentido de práticas e tação de classe.
discurso, mas também objetivam gerar
reconhecimento social para a legitima-
União Democrática
ção da condução dos processos sob a
ótica do agronegócio, divulgado como Ruralista O
o principal negócio do país. A partici- A União Democrática Ruralista
pação do Sistema no produto interno (UDR) foi fundada em 1985 por pecua-
bruto (PIB) do Brasil tem sido um dos ristas e grandes proprietários de terra,
principais argumentos da campanha de em sua maioria das regiões Centro-
afirmação do agronegócio como prin- Oeste e Sudeste, insatisfeitos com os
cipal base de sustentação da economia rumos da Reforma Agrária durante o
nacional. Entretanto, a mensuração de governo José Sarney, temerosos com
tal contribuição não tem levado em os possíveis desdobramentos do movi-
consideração os custos socioambien- mento de ocupações de terra durante a
tais que questionam a sustentabilidade Nova República e decepcionados com
do modelo produtivo defendido. a “timidez” de seus dirigentes, “acomo-
Fruto da soma dos esforços de fi- dados” com os privilégios dos gover-
guras de peso como Ney Bittencourt nos militares. Ronaldo Caiado, uma
de Araújo e Roberto Rodrigues, a Abag das principais lideranças da entidade,
pertence à complexa rede de orga- é descendente de tradicional família de
nizações – atenção aos think tanks 4 políticos e pecuaristas de Goiás.
Instituto de Estudos do Comércio A UDR se autodissolveu oficial-
e Negociações Internacionais (Icone) e mente no início dos anos de 1990,
Instituto para o Agronegócio Respon- entretanto frequentemente reaparece

527
Dicionário da Educação do Campo

no cenário político nacional como re- em comissões que tratam dos mais va-
ferência de uma prática caracterizada riados temas, nos acordos sobre o per-
pelo enfrentamento aberto e a defesa fil da mesa da Câmara dos Deputados e
explícita da violência contra os traba- na troca de favores intraclasses.
lhadores rurais e os sem-terras. Des- A rede de sociabilidade política
ponta também como sinônimo de mo- é seguramente a mais expressiva. Ela
bilização patronal e do corporativismo compreende, sobretudo, as atividades
e como símbolo da defesa absoluta do político-partidárias, sindicais, corpo-
monopólio fundiário. rativas e os cargos públicos. Diz res-
peito, por exemplo, à participação dos
A Bancada Ruralista deputados ruralistas nas diversas co-
missões parlamentares e à sua presen-
A Bancada Ruralista despontou nos ça nos grupos e frentes parlamentares
anos 1980, em meio ao debate sobre a e nas missões oficiais de representação
Assembleia Nacional Constituinte, como política. Diz respeito, também, às ati-
um dos desdobramentos da mobilização vidades sindicais e representativas de
patronal de grandes proprietários de terra classe. Já a rede de sociabilidade pro-
e empresários rurais durante o governo fissional, como o próprio nome enun-
da Nova República, e tem se apresentado cia, abrange as atividades profissionais
como importante espaço de representa- dos parlamentares – agricultores, pe-
ção dos interesses patronais rurais. cuaristas, empresários, cafeicultores,
A inserção dos parlamentares ru- empreiteiros, “donos” de universida-
ralistas nas inúmeras redes de socia- des e colégios, advogados, médicos
bilidade política, econômica, religiosa, etc. E, finalmente, a rede societal, que
cultural e social existentes tanto no compreende basicamente as atividades
Congresso Nacional quanto fora dele associativas e a participação dos depu-
não apenas contribui para a construção tados em agremiações sociais e religio-
de determinada concepção de mundo, sas, como a participação no Lions Club
fundamento de uma identidade rura- e na maçonaria (Bruno, 2009).
lista e do poder patronal, como tam-
bém garante o êxito de suas demandas,
além de contribuir para a criação de Grupos de defesa da
laços sociais com outros grupos não propriedade da terra
necessariamente ligados à agricultura.
Ou seja, há um entrelaçamento entre Nos momentos de intensificação
vários campos, instâncias, estruturas de conflitos fundiários e de demanda
e atores que realimenta pleitos e inte- pela Reforma Agrária, como ocorreu
resses os mais diferenciados. Sob essa durante a Nova República, costumam
perspectiva, a garantia de manutenção despontar vários grupos de defesa da
do monopólio e da concentração fun- propriedade da terra, em geral compos-
diários, a renegociação das dívidas e, tos por grandes proprietários de terra
recentemente, a aprovação do Código e pecuaristas, em especial nas regiões
Florestal contemplando várias reivindi- de conflito de terra e de concentração
cações ruralistas também são negocia- fundiária. Dentre os mais expressivos,
das nas inúmeras viagens em missões temos o Pacto de Unidade e Resposta
oficiais, na atuação dos parlamentares Rural (PUR), criado originalmente em

528
Organizações da Classe Dominante no Campo

Carazinho (RS), em 1985, por gran- ao mesmo tempo que há um “retorno” da


des proprietários de terra, em reação à UDR ao cenário político nacional, uma
proposta de Reforma Agrária da Nova maior visibilidade da CNA, que “vol-
República e às ocupações de terra. ta” a ter um lugar de destaque, com o
Também foram criadas ou reati- apoio estratégico e nem sempre visível
vadas entidades como a Sociedade do da SRB, e uma renovação na OCB.
Sudoeste do Paraná;; a Associação de É também quando se revitaliza o
Defesa da Propriedade Privada do Su- Movimento Nacional dos Produtores
doeste Catarinense;; a Associação dos (MNP) e quando assistimos mais uma
Empresários da Amazônia;; a Milícia vez à criação de várias organizações
Rural da Região do Araguaia;; a Asso- patronais rurais em defesa do monopó-
ciação de Produtores Rurais do Sul do lio da propriedade da terra. Dentre as
Pará;; o Comando Democrático Cristão, mais expressivas politicamente, temos
no Pará;; o Grupo de Defesa da Pro- o Primeiro Comando Rural (PCR), o
priedade de Andradina, em São Paulo;; Movimento Reforma Agrária Sem In-
e a Associação de Defesa da Proprie- vasão (MRASI), no estado do Paraná,
dade dos Usineiros, de Pernambuco a Associação Democrática dos Produ-
(Bruno, 2009). tores de Minas e a União de Defesa da
Posteriormente, em meados de Propriedade Rural (UDPR), também
2002, quando se vislumbrou a possível em Minas Gerais (Bruno, 2005).
vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na Ainda do ponto de vista da orga-
campanha para a Presidência da Repú- nização e da ação coletiva do patrona-
blica, teve início a constituição de um to rural brasileiro, temos os leilões, as
novo campo de conflito agrário, carac- feiras, as exposições agropecuárias e
terizado, de um lado, pela expectativa as mobilizações de rua, as quais se con-
dos movimentos sociais de luta pela
terra e, de outro, pelo temor dos gran-
figuram como lugar social de afirma-
ção e ampliação de poder e momento
O
des proprietários de terra e empresários de uma sociabilidade que gera, repro-
rurais do agronegócio quanto à possi- duz e reafirma símbolos e identidades
bilidade não só de realização de uma de classe.
reforma agrária, mas, sobretudo, de As mobilizações de rua ocorrem,
fortalecimento do Movimento dos Tra- geralmente, em torno de uma agenda
balhadores Rurais Sem Terra e das lu- fundiária, ou agenda de políticas setoriais.
tas pela terra. O medo dos desdobra- Essas mobilizações
mentos políticos e das possibilidades
abertas com a vitória de Lula e a de- [...] possuem um papel particu-
mora do governo em elaborar diretri- lar para visibilidade de um gru-
zes definidoras de uma política fundiá- po social e de seus interesses
ria – e, consequentemente, a retomada e demandas;; na construção de
das ocupações de terra – tiveram como uma imagem para a população,
desdobramento a intensificação da vio- para a mídia, para os agentes do
lência patronal rural e a revitalização Estado e para “dentro”;; na pres-
de suas instâncias de representação. são por reivindicações junto ao
Nesse mesmo período, tem início poder público;; no fortalecimen-
o fortalecimento da Bancada Ruralista, to ou enfraquecimento político

529
Dicionário da Educação do Campo

de entidades de representação terra e o “acompanhamento ostensivo”


[...]. (Carneiro, 2008, p. 1) durante as marchas dos Sem Terra. Es-
sas manifestações quase sempre con-
O Maio Verde e o Tratoraço são tam com o apoio, às vezes explícito, de
seus exemplos mais recentes. O pri- agremiações mais reconhecidas e com
meiro ocorreu em maio de 2004, como maior poder de representação, como é
resposta às ocupações de terras pro- o caso da CNA, da OCB e da SRB.
movidas pelo MST, denominadas Abril Enfim, cada vez mais a organiza-
Vermelho. O Maio Verde foi organiza- ção e a representação de interesses das
do pelas federações de agricultura de classes dominantes do campo no Brasil
treze estados. O Tratoraço, promovido ocupam um lugar estratégico na repro-
pela CNA com o apoio da OCB, ocor- dução de classe e se caracterizam por
reu entre os dias 27 e 30 de junho de um processo crescente de institucio-
2005, na Esplanada dos Ministérios, nalização e de profissionalização;; pela
em Brasília. Integrada principalmente ampliação e diversificação dos espaços
por produtores de grãos (soja, milho e de organização;; e pelo surgimento de
arroz) e de algodão e com a participa- uma nova geração política portadora
ção da UDR e do MNP, a manifestação de uma retórica de legitimidade e de
reivindicava a “renegociação” de dívi- identidade, fundada na competitivi-
das agrícolas, mas também apresenta- dade e na defesa da tecnologia como
va demandas sobre seguro rural, crédito paradigma da modernidade e do desen-
rural para a safra 2005-2006, preço da volvimento, ao mesmo tempo que rea-
saca do arroz, importação de agrotóxi- vivam práticas políticas arcaicas, como
cos e mais espaço nas instâncias do Es- a violência contra os trabalhadores do
tado, dentre outras (Carneiro, 2008). campo e os sem-terra, as listas dos mar-
Grandes proprietários de terras e cados para morrer e as mortes anun-
empresários rurais e do agronegócio ciadas, o recurso ao trabalho escravo
também costumam recorrer a outros e a dificuldade de perceber a diferença
modos de organização e de pressão – entre a coisa pública e o bem privado.
informais, mas igualmente eficazes – Ou seja, existe uma ambivalência que
em favor de seus interesses. Como se apresenta como princípio ordenador
exemplos, temos as vigílias de intimida- da retórica e da prática patronal rural,
ção nas proximidades de acampamen- que desponta como legitimadora das
tos de sem-terra e de assentamentos da desigualdades sociais econômicas e po-
Reforma Agrária, os “cercos” às áreas líticas, e que se atualiza e se objetiva
ocupadas por trabalhadores rurais sem- nos embates sociais e políticos.

Notas
1
Ver http://www.sna.agr.br.
2
Ver http://www.srb.org.br.
3
Mais do que um conceito com o qual o núcleo dirigente do empresariado rural nomeia
atividades e agentes ligados à agricultura sob a representação de um Sistema, o referido
vocábulo é empregado para nomear um movimento de articulação do aludido grupo no
sentido de institucionalizar seus interesses tendo como estratégia o uso da marca agronegócio
brasileiro na construção de uma identidade organizadora da multiplicidade de interesses que

530
Organizações da Classe Dominante no Campo

busca congregar. Atenção para o uso do adjetivo pátrio como meio de legitimação e de
reconhecimento social, com o qual o intenso processo de desnacionalização sofrido pelos
negócios em torno da agricultura brasileira acaba sendo ocultado. Para distinguir “Agrone-
gócio” enquanto movimento político-ideológico, de “Agronegócio” enquanto ferramenta
de análise econômica cuja leitura pela figura de um Sistema permitiria o aperfeiçoamento das
partes pela visão do todo – como divulgado por representantes do empresariado rural –, o
termo será destacado em itálico ou será substituído pela palavra Sistema quando empregado
no sentido patronal. Ver Lacerda, 2009.
4
“O conceito de think tank faz referência a uma instituição dedicada a produzir e difundir
conhecimentos e estratégias sobre assuntos vitais – sejam eles políticos, econômicos ou
científicos. Assuntos sobre os quais, nas suas instâncias habituais de elaboração (Estados,
associações de classe, empresas ou universidades), os cidadãos não encontram facilmente
insumos para pensar a realidade de forma inovadora” (http://www.imil.org.br).

Para saber mais


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(Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) – Programa de Pós-
graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade,
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533
P
PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS
Marise Ramos

A noção de competência é de tal a formação orientada pelas competên-


forma polissêmica que poderíamos ar- cias que se pretende desenvolver nos
rolar aqui um conjunto de definições a educandos dá origem ao que chama-
ela conferida. Uma das definições co- mos de pedagogia das competências, isto é,
mumente usadas considera a competên- uma pedagogia definida por seus ob-
cia como o conjunto de conhecimen- jetivos e validada pelas competências
tos, qualidades, capacidades e aptidões que produz.
que habilitam o sujeito para a discus- A emergência da pedagogia das
são, a consulta e a decisão de tudo o competências é acompanhada de um
que concerne a um ofício, supondo fenômeno observado no mundo pro-
conhecimentos teóricos fundamenta- dutivo de eliminação de postos de tra-
dos, acompanhados das qualidades e balho e redefinição de seus conteúdos
da capacidade que permitem executar de trabalho à luz do avanço tecnoló-
as decisões sugeridas (Tanguy, 1997, gico, promovendo um reordenamento
p. 16). Outras definições, propostas social das profissões. Este reordena-
por Zarifian (2008, p. 68-76) em sua mento levanta dúvidas sobre a capa-
principal obra sobre o tema, são: a cidade de sobrevivência de profissões
competência é a conquista de iniciati- bem delimitadas, e nele fica diminuída
va e de responsabilidade do indivíduo a expectativa da construção de uma
sobre as situações profissionais com as
quais ele se confronta;; a competência é
biografia profissional linear, do ponto
de vista do conteúdo, e ascendente, do
P
uma inteligência prática das situações ponto de vista da renda e da mobili-
que se apoiam sobre os conhecimen- dade social. Pode-se falar da crise do
tos adquiridos e os transformam, com valor dos diplomas, os quais perdem
tanto mais força quanto a diversidade importância para a qualificação real do
das situações aumenta;; a competência trabalhador, promovida pelo encontro
é a faculdade de mobilizar os recur- entre as competências requeridas pelas
sos dos atores em torno das mesmas empresas e adquiridas pelo trabalhador
situações, para compartilhar os acon- capazes de ser demonstradas na prática
tecimentos, para assumir os domínios (Paiva, 1997, p. 22).
de corresponsabilidade. Enquanto o conceito de qualificação
Ao ser utilizada no âmbito do tra- se consolidou como um dos conceitos-
balho, essa noção toma o número plu- chave para a classificação dos empre-
ral – competências –, buscando designar gos, por sua multidimensionalidade
os conteúdos particulares de cada fun- social e coletiva, apoiando-se especial-
ção em uma organização de trabalho. mente, mas sem rigidez, na formação
A transferência desses conteúdos para recebida inicialmente, as competências

535
Dicionário da Educação do Campo

aparecem destacando os atributos indi- independentes da atividade avaliada, efe-


viduais do trabalhador. Segundo o dis- tua-se por referência à instituição esco-
curso contemporâneo das empresas, o lar, dela separando-se simultaneamente,
apelo às competências requeridas pelo de uma maneira radical: com efeito, o
emprego já não está ligado (pelo me- diploma é um título definitivo, mesmo
nos formalmente) à formação inicial;; que seu valor possa variar no mercado,
ou, em outras palavras, as práticas cog- ao passo que a validação das aquisições
nitivas dos trabalhadores, necessárias profissionais – as competências – é
e relativamente desconhecidas, podem sempre incerta e temporária (Tanguy,
não ser representadas pelas classifica- 1997, p. 184).
ções profissionais ou pelos certificados A abordagem profissional pelas
escolares. Essas competências podem competências pretende, então, liberar
ter sido adquiridas em empregos ante- a classificação e a progressão dos in-
riores, em estágios, longos ou breves, divíduos das classificações dos postos
de formação contínua, mas também de trabalho, a partir da construção de
em atividades lúdicas, de interesse pú- um conjunto de instrumentos desti-
blico fora da profissão, atividades fa- nados a objetivar e a medir uma série
miliares etc. de dados necessários à aplicação dessa
As competências, a partir de proce- lógica. Com isso, a evolução das situa-
dimentos de avaliação e de validação, ções de trabalho e a definição dos em-
passam a ser consideradas como ele- pregos ocorrem muito mais em função
mentos estruturantes da organização do dos arranjos individuais do que das
trabalho, outrora determinada pela pro- classificações ou da gestão dos postos
fissão. Enquanto o domínio de uma de trabalho a que se referiam as quali-
profissão, uma vez adquirido, não pode ficações. As potencialidades do pessoal
ser questionado (no máximo, pode ser são colocadas no centro da divisão do
desenvolvido), as competências são apre- trabalho, tornando-se um instrumento
sentadas como propriedades instáveis indispensável das políticas da empresa.
dentro e fora do exercício do trabalho. Esse deslocamento da qualificação
Isso quer dizer que uma gestão funda- para as competências no plano do tra-
da nas competências encerra a ideia de balho produziu, no plano pedagógico,
que um assalariado deve se submeter outro deslocamento, a saber, do ensino
a uma validação permanente, dando centrado em saberes disciplinares para
constantemente provas de sua adequa- um ensino definido pela produção de
ção ao posto de trabalho e de seu direi- competências verificáveis em situações
to a uma promoção. Tal gestão preten- e tarefas específicas e que visam a essa
de conciliar o tempo longo de duração produção, característico da pedagogia
das atividades dos assalariados com o das competências. Essas competências
tempo curto das conjunturas do mer- devem ser definidas com referência às
cado, das mudanças tecnológicas, ten- situações que os alunos deverão ser
do em vista que qualquer ato de clas- capazes de compreender e dominar.
sificação pode ser revisado. Assim, a A pedagogia das competências passa
extensão das práticas de avaliação e de a exigir, então, tanto no ensino geral
validação, executadas por especialistas quanto no ensino profissionalizante,
detentores de técnicas relativamente que as noções associadas (saber, saber-

536
Pedagogia das Competências

fazer, objetivos) sejam acompanhadas mundo do trabalho, aplica-se a Classi-


de uma explicitação das atividades (ou ficação Brasileira de Ocupações, pro-
tarefas) em que elas podem se materia- duzida pelo Ministério do Trabalho e
lizar e se fazer compreender, explicita- Emprego (MTE). Esses referenciais,
ção essa que revela a impossibilidade que tomam as competências como base,
de dar uma definição a essas noções se- são, supostamente, as ferramentas de
paradamente das tarefas nas quais elas comunicação entre os agentes da insti-
se materializam. tuição escolar e os representantes dos
A afirmação desse modelo no ensino meios profissionais. Constituem-se,
técnico e profissionalizante é resultado também, em suportes principais de ava-
de um conjunto de fatores que expres- liação tanto na formação inicial e conti-
sa o comprometimento dessa mo- nuada quanto no ensino técnico, com o
dalidade de ensino com o processo intuito de permitir a correlação estreita
de acumulação capitalista, que impõe entre a oferta de formação e a distribui-
a necessidade de justificar a validade ção das atividades profissionais.
de suas ações e de seus resultados. Além de atender ao propósito de
Além disso, espera-se que seus agen- reordenar a relação entre escola e empre-
tes (professores, gestores, estudantes) go, a pedagogia das competências visa
não mantenham a mesma relação com também institucionalizar novas formas
o saber que os professores de discipli- de educar os trabalhadores no contexto
nas academicamente constituídas, de político-econômico neoliberal, entre-
modo que a validade dos conhecimen- meado a uma cultura chamada de pós-
tos transmitidos seja aprovada por sua moderna. Por isto, a pedagogia das
aplicabilidade ao exercício de atividades competências não se limita à escola,
na produção de bens materiais ou de mas visa se instaurar nas diversas prá-
serviços. A pedagogia das competên- ticas sociais pelas quais as pessoas se
cias é caracterizada por uma concepção educam. Nesse contexto, a noção de
eminentemente pragmática, capaz de
gerir as incertezas e levar em conta
competência vem compor o conjunto
de novos signos e significados talhados P
as mudanças técnicas e de organização na cultura expressiva do estágio de
do trabalho às quais deve se ajustar. acumulação flexível do capital, desem-
Essa redefinição pedagógica somen- penhando um papel específico na re-
te ganha sentido mediante o estabeleci- presentação dos processos de forma-
mento de uma correspondência entre ção e de comportamento do trabalhador
escola e empresa. Para isso constroem- na sociedade.
se, em alguns países, os “referenciais Assim, o desenvolvimento de uma
para a escola” – a exemplo da França, pedagogia centrada nessa noção tem
onde são chamados de referenciais de validade econômico-social e também
diploma – e os referenciais de empre- cultural, posto que à educação é con-
go ou de atividades profissionais, para ferida a função de adequar psicologi-
a empresa. No Brasil, o equivalente a camente os trabalhadores aos novos
esse processo, para a escola, são as di- padrões de produção. O novo senso
retrizes e os referenciais curriculares comum, de caráter conservador e libe-
nacionais produzidos pelo Ministério ral, compreende que as relações de tra-
da Educação (MEC), enquanto, no balho atuais e os mecanismos de

537
Dicionário da Educação do Campo

inclusão social se pautam pela compe- jetivas que os indivíduos extraem do seu
tência individual. mundo experiencial. O conhecimento
A competência, inicialmente um ficaria limitado aos modelos viáveis de
aspecto de diferenciação individual, inteiração com o meio material e social,
é tomada como fator econômico e se não tendo qualquer pretensão de ser re-
reverte em benefício do consenso so- conhecido como representação da reali-
cial, envolvendo todos os trabalhado- dade objetiva ou como verdadeiro.
res supostamente numa única classe, a A validade do conhecimento assim
capitalista;; ao mesmo tempo, forma-se compreendido é julgada, portanto, por
um consenso em torno do capitalismo sua viabilidade ou por sua utilidade. Pre-
como o único modo de produção capaz domina, então, uma conotação utilitá-
de manter o equilíbrio e a justiça social. ria e pragmática do conhecimento. Sua
Em síntese, a questão da luta de classes viabilidade e utilidade, muito além de
é resolvida pelo desenvolvimento e pelo serem consideradas históricas, são tidas
aproveitamento adequado das compe- como contingentes. Ou seja, não existe
tências individuais, de modo que a pos- qualquer critério de objetividade, de tota-
sibilidade de inclusão social subordina- lidade ou de universalidade para se julgar
se à capacidade de adaptação natural às se um conhecimento, ou um modelo re-
relações contemporâneas. A flexibili- presentacional, é válido, viável ou útil.
dade econômica vem acompanhada da Com isto, o caráter histórico-ontoló-
psicologização da questão social. gico do conhecimento é substituído pelo
A noção de competência situa-se, caráter experiencial. Essa concepção
então, no plano de convergência entre de conhecimento, às vezes chamada de
a teoria integracionista da formação epistemologia experiencial ou epistemo-
do indivíduo e a teoria funcionalista da logia socialmente construtivista, é, na ver-
estrutura social. A primeira demonstra dade, uma epistemologia adaptativa, visto
que a competência torna-se uma carac- que seu fundamento axiológico vincula-
terística psicológico-subjetiva de adap- se a essa função. As categorias de objeti-
tação do trabalhador à vida contempo- vo e subjetivo se fundem indistintamente
rânea. A segunda situa a competência no processo de inteiração, superando
como fator de consenso necessário à proposições de certeza e de universali-
manutenção do equilíbrio da estrutura dade em beneficio da particularidade, da
social, na medida em que o funciona- indeterminação e da contingência do co-
mento desta última ocorre muito mais nhecimento. Em outras palavras, o sen-
por fragmentos do que por uma sequ- tido e o valor de qualquer representação
ência de fatos previsíveis. do real dependeria do ponto a partir do
qual se vê o real (relativismo) e de quem
O processo de construção do co-
o vê (subjetivismo). Isto implica romper
nhecimento pelo indivíduo, por sua
com a epistemologia moderna em favor
vez, seria o próprio processo de adap-
de uma epistemologia que compõe o uni-
tação ao meio material e social. Nesses
verso ideológico pós-moderno.
termos, o conhecimento não resultaria
de um esforço social e historicamente A pedagogia das competências re-
determinado de compreensão da rea- configura, então, o papel da escola.
lidade para, então, transformá-la, mas Se a escola moderna comprometeu-se
sim, das percepções e concepções sub- com a sustentação do núcleo básico

538
Pedagogia das Competências

da socialização conferido pela família e plexos do que a abordagem das com-


com a construção de identidades indivi- petências hoje vigente.
duais e sociais, contribuindo, assim, para Em termos cognitivos, tais recons-
a identificação dos projetos subjetivos truções se fazem pela articulação do
com um projeto de sociedade, na pós- que Malglaive (1995) chama de “sabe-
modernidade, a escola é uma instituição res em uso”, constituídos pelos saberes
mediadora da constituição da alteridade teóricos (relativos ao conhecimento do
e de identidades autônomas e flexíveis, objeto de trabalho), técnicos (relativos
contribuindo para a elaboração dos pro- ao que se pode fazer do/com o objeto
jetos subjetivos, com o objetivo de torná- de trabalho) e metodológicos (relativos
los maleáveis o suficiente para que se ao como fazer do/com o objeto). Estes
transformem no projeto possível ante dois últimos se encontrariam no “saber
a instabilidade da vida contemporânea. prático”, que orientaria, em primei-
Atuar na elaboração dos projetos possí- ra instância, a realização da atividade.
veis é construir um novo profissionalis- Esses saberes seriam mobilizados por
mo, que implica preparar os indivíduos uma inteligência prática que possibi-
para a mobilidade permanente entre lita a tomada de decisão mediante um
diferentes ocupações numa mesma em- envolvimento direto com a atividade a
presa, entre diferentes empresas, para o ser realizada. Para além desses saberes,
subemprego, para o trabalho autônomo porém, existiriam novas aprendizagens
ou para o não trabalho. Em outras pa- que possibilitariam ações criadoras. Es-
lavras, a pedagogia das competências sas exigiriam o afastamento da situação
pretende preparar os indivíduos para a e um processo de estruturação do pen-
adaptação permanente ao meio social samento com base no saber teórico, por
instável da contemporaneidade. Nesses meio da “inteligência formalizadora”.
termos, a pedagogia das competências Para nós, este processo corresponde ao
pode ser compreendida como um movi- que a literatura sobre competência defi-
mento específico da pedagogia do capi-
tal sob a hegemonia do neoliberalismo.
ne como a mobilização de saberes.
A competência vista sob essa pers-
P
À parte desse movimento, porém, pectiva é complexa e dinâmica, e não
estudos demonstram que os trabalha- poderia ser objetivada na forma de re-
dores constroem conhecimentos no ferenciais curriculares ou de padrões de
seu trabalho e, também nele, recons- avaliação, como a pedagogia das com-
troem conhecimentos adquiridos nos petências tende a fazer. Ao contrário,
processos de formação, articulando a competência do trabalhador suporia
saberes formais com seus saberes tá- um conjunto de atributos dos sujeitos –
citos/práticos, ao mobilizá-los para o conhecimentos de diversas ordens, habi-
enfrentamento de situações concretas lidades cognitivas e operacionais, valores –,
de trabalho. Esse processo de cons- mas não se reduziria a eles, pois impli-
trução e reconstrução de saberes se dá caria a autonomia intelectual e as media-
no plano de sua subjetividade, sendo ções do contexto real em que a situação
impossível simulá-lo e/ou controlá-lo. é enfrentada, configurado pelas condi-
Portanto, os trabalhadores constroem ções objetivas e pelas relações sociais da
saberes por meio de mecanismos so- produção. Nesse sentido, compreende-
ciais e psicológicos muito mais com- ríamos a competência como produção

539
Dicionário da Educação do Campo

subjetiva – síntese da mobilização de sa- ser delimitados exclusivamente pela cul-


beres – que ocorre em contextos sócio- tura científica e/ou escolar, mas que im-
históricos e culturais determinados, plicam os aprendizados vindos da práxis
constituindo-se em particularidades de social, incluindo o próprio trabalho. Na
uma totalidade social mais ampla. Sen- verdade, esses conhecimentos são apro-
do estruturantes da ação, tais saberes se priados e reconstruídos pelos trabalha-
unificam num “saber profissional”. dores – como sujeitos singulares, como
Com a noção de saber profissional, categoria profissional e como classe so-
propomos apreender a dinâmica da re- cial – na forma dos saberes profissionais.
lação sujeito–objeto mediada pelo co- Com esse conceito, a virtuosidade origi-
nhecimento no trabalho, considerando nal da noção de competência presente na
as singularidades dessa relação, mas tam- valorização das subjetividades não se
bém sua generalidade, dada pela divisão perde numa individualização e fragmen-
social do trabalho e a constituição de tação perversas das atividades humanas,
classes sociais e de categorias profissio- mas é compreendida como produto das
nais. Com essa noção, reconhece-se que relações que se estabelecem no trabalho
nas atividades de trabalho entram em e, mais amplamente, nas relações sociais
jogo as subjetividades do trabalhador e, de produção que caracterizam uma so-
portanto, conhecimentos que não podem ciedade concreta.

Para saber mais


MALGLAIVE, G. Ensinar adultos. Porto: Porto Editora, 1995.
PAIVA, V. Desmistificações das profissões: quando as competências reais moldam
as formas de inserção no mundo do trabalho. Contemporaneidade e Educação, v. 2,
n. 1, p. 19-37, maio 1997.
RAMOS, M. N. Pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo:
Cortez, 2001.
TANGUY, L.; ROPÉ, F. (org.). Saberes e competências. O uso de tais noções na escola e
na empresa. São Paulo: Papirus, 1997.
ZARIFIAN, P. Objetivo competência. Por uma nova lógica. São Paulo: Atlas, 2008.

PEDAGOGIA DO CAPITAL
André Silva Martins
Lúcia Maria Wanderley Neves

Por pedagogia do capital, enten- obter o consentimento do conjunto da


demos as estratégias de dominação de população para o seu projeto político
classe utilizadas pela burguesia a fim de nas diferentes formações sociais con-

540
Pedagogia do Capital

cretas ao longo do desenvolvimento do ditar que sua condição de vida/trabalho


capitalismo monopolista (capitalismo é imutável, ou que pode ser mudada ex-
nos séculos XX e XXI). A estas estra- clusivamente pelo esforço pessoal e/ou
tégias de educação política denomina- pela “humanização” do capitalismo.
mos pedagogia da hegemonia. Além de promover a assimilação su-
As estratégias da pedagogia da bordinada das várias frações da classe
hegemonia são implementadas dire- trabalhadora ao projeto dominante,
tamente pelos intelectuais orgânicos a pedagogia da hegemonia se destina
singulares e coletivos da burguesia;; também a educar as frações subordi-
mediante políticas públicas que, de nadas da classe dominante, de modo a
modo geral e específico, expressam o torná-las corresponsáveis pelo projeto
papel central das frações da classe do- político do capital em seu conjunto.
minante no ordenamento das instân- Isso significa que a pedagogia da he-
cias executivas e legislativas da apare- gemonia viabiliza também o fortaleci-
lhagem estatal no capitalismo. mento da classe dominante, tornando-
São intelectuais singulares da peda- a mais coesa e orgânica.
gogia da hegemonia os indivíduos que As estratégias implementadas no
formulam e difundem no conjunto da âmbito da pedagogia da hegemonia pela
sociedade as ideias, valores e práticas classe dominante não substituem o uso
do projeto capitalista de sociedade em da força como instrumento de domina-
seus diferentes momentos históricos. ção de classe no mundo contemporâ-
São intelectuais coletivos as organiza- neo. Coerção e consenso são estratégias
ções internacionais, nacionais, regionais de dominação específicas e inerentes às
e locais que educam o consentimento relações sociais capitalistas.
do conjunto da população ao projeto No entanto, com o crescimento das
econômico e político-ideológico das lutas sociais, a consolidação dos regi-
classes dominantes. São exemplos des- mes formalmente democráticos, o sur-
ses organismos, no plano internacional,
o Banco Mundial, o Fundo Monetário
gimento de partidos de massa, a livre
organização sindical e a possibilidade
P
Internacional (FMI), a Organização das de criação de movimentos populares no
Nações Unidas (ONU), a Organização campo e na cidade, a dominação pelo
para a Cooperação e Desenvolvimento convencimento tem predominado nas
Econômico (OCDE), entre outros. sociedades capitalistas contemporâneas,
A pedagogia da hegemonia tem, que se tornaram mais complexas em
como objetivo principal, a conforma- função do desenvolvimento das forças
ção moral e intelectual do conjunto da produtivas e das relações de produção
população a um padrão de sociabili- da existência humana. Até mesmo o
dade (ou modo de vida) que responda uso da força, quando empregado, é re-
positivamente às necessidades de cres- vestido por uma estratégia de legitima-
cimento econômico e de coesão social, ção dirigida ao conjunto da sociedade
em cada período histórico, nos marcos para justificar tal medida.
do capitalismo. É possível verificar delineamentos
Nesse processo, mesmo sentindo os específicos da pedagogia da hegemonia
efeitos da exploração de classe em seu em duas grandes fases da história re-
cotidiano, os dominados passam a acre- cente. Um primeiro período se estende

541
Dicionário da Educação do Campo

do imediato pós-guerra, em 1945, até alterar os fundamentos de seu projeto


os anos finais de 1980;; um segundo de sociedade. Nesse processo, a peda-
período engloba a última década do sé- gogia da hegemonia procurou conquis-
culo XX e as duas primeiras décadas tar corações e mentes, demonstrando
do século XXI, quando a classe domi- que o capitalismo se configuraria como
nante conseguiu consolidar o estágio um sistema humanizado capaz de per-
neoliberal do capitalismo. mitir a conciliação de interesses, ainda
Na primeira fase, a pedagogia da que de forma restrita. Em síntese, as
hegemonia foi delineada para afirmar estratégias da pedagogia da hegemonia
a suposta superioridade do capitalismo buscaram impedir, por meio do con-
ante o socialismo. No plano mais ge- vencimento, que as frações da classe
ral, buscou assegurar um amplo senso trabalhadora − organizadas em sin-
comum acerca da sociabilidade bur- dicatos e partidos − se identificassem
guesa. As estratégias foram estabele- com o projeto socialista de sociedade.
cidas para difundir o modo capitalista Apesar dessa tentativa de assimilação,
de vida como sinônimo de liberdade, várias organizações da classe trabalha-
prosperidade e felicidade. Coube aos dora foram capazes de resistir, mantendo
intelectuais orgânicos da classe domi- vivo o ideal socialista.
nante ordenar os aparelhos culturais e Constituíram-se estratégias eficazes
políticos (o cinema, o teatro, os jornais, da pedagogia da hegemonia no século
as revistas, a publicidade, a escola, os XX até a década de 1980, especialmente
sindicatos e associações patronais, nos países capitalistas centrais (mas não
os partidos políticos identificados com só neles): o pleno emprego, os acordos
o projeto político da burguesia) para em fóruns tripartites – governo, em-
disseminar de forma orgânica as re- presários e trabalhadores – das relações
ferências morais e intelectuais com- de trabalho, os altos salários e a adoção
patíveis com a modernização conser- de políticas sociais universais. Com isso,
vadora da sociedade capitalista. Nesse os trabalhadores foram, pouco a pouco,
contexto, até a Igreja, em que pese a substituindo em suas lutas as estratégias
existência de alguns movimentos de de superação das relações sociais capita-
contestação da ordem vigente, atuali- listas por táticas de adaptação de reivin-
zou seu projeto de mundo para proje- dicações dentro da ordem estabelecida.
to político-ideológico burguês, e, nes- Essas estratégias contribuíram efetiva-
se processo, assumiu um importante mente para metamorfosear o caráter
papel político-ideológico: controlar revolucionário das lutas dos trabalha-
moralmente seus fiéis, ensinando a dores em lutas social-democratas, de
eles a resignação. natureza reformista.
No plano mais específico, diante da Nos anos 1990 e 2000, a pedagogia
pressão dos sindicatos operários, dos da hegemonia entrou em sua segunda
partidos políticos e dos movimentos fase. Em vez de defender a superiori-
sociais identificados com os trabalha- dade do capitalismo sobre o socialismo,
dores, a classe dominante buscou as- a nova pedagogia da hegemonia procura
similar de forma subordinada algumas afirmar o capitalismo como a única solu-
demandas econômicas, sociais e po- ção possível para a humanidade. Em um
líticas dos dominados sem, contudo, plano mais geral, tem reiteradamente

542
Pedagogia do Capital

afirmado a morte do socialismo como privado. Desse modo, efetiva-se uma


projeto político-ideológico, a inexistên- simbiose entre o público e o privado,
cia de antagonismo entre as classes so- na qual as mais diferentes instituições,
cais, e a obsolescência do materialismo independentemente de sua denomina-
histórico como método de análise da ção jurídica, realizam juntas ações de
realidade social contemporânea. “interesse público” que venham a con-
Em síntese, as estratégias da nova tribuir para o crescimento econômico
pedagogia da hegemonia, mantendo e a paz social. Os empresários, além de
inalterados os fundamentos da pedago- apropriadores da riqueza socialmente
gia da hegemonia precedente, procu- produzida, assumem a função de edu-
ram difundir mundialmente a possibi- cadores sociais, tornando-se parceiros
lidade da coexistência do mercado com privilegiados dos governos neoliberais.
a justiça social, conquistada a partir da Os governos, por sua vez, mercantili-
concertação social, ou seja, a partir da par- zam-se assumindo concepções e práti-
ticipação de “todos os indivíduos” na cas empresariais para implementar po-
resolução harmônica de conflitos de líticas de educação, saúde, habitação e
interesse pessoal ou grupista. transporte, entre outras, visando à con-
formação de uma nova sociabilidade.
Mundialmente, os intelectuais orgâ-
nicos singulares e coletivos da nova pe- Nessa dinâmica, as organizações
dagogia da hegemonia formulam e di- que historicamente assumiram a po-
fundem esses pressupostos e práticas, sição de resistência e/ou de crítica ao
realizando uma profunda alteração modo de vida capitalista são assimila-
no conteúdo e na forma das relações das e passam a prestar serviços sociais,
de dominação na atualidade, configu- vários deles sob a fachada de “colabo-
rando um movimento abrangente de ração técnica”, com atuação em âmbito
repolitização da política. nacional e/ou internacional. A conse-
A repolitização da política veio quência mais evidente dessa dinâmica
resulta na afirmação da sociedade civil
efetivando-se, nas décadas iniciais do
século XXI, de duas maneiras conco- como uma instância de conciliação das P
mitantes: por meio da reestruturação diferenças, em vez de instância de ela-
das práticas governamentais para o boração e confronto entre projetos so-
crescimento econômico mundial, com cietários antagônicos.
o estabelecimento da coesão social em Dessa forma, implementa-se, de
tempos de supressão de conquistas da modo específico, em cada sociedade
organização dos trabalhadores, e por in- singular capitalista, mais uma dimen-
termédio de uma profunda reestrutura- são do novo modo de fazer política −
ção da natureza e das práticas dos orga- que reduz as lutas da classe trabalha-
nismos da sociedade civil voltados para dora ao plano imediato de conquistas
a legitimação da ordem capitalista. secundárias dentro das regras do
Ao mesmo tempo que os governos jogo capitalista.
limitam a sua ação direta na reprodução Essas estratégias da nova peda-
do capital e da força de trabalho, e na gogia da hegemonia implementadas
obtenção de consenso, transfiguram-se por meio da aparelhagem estatal e no
em articuladores do desenvolvimento âmbito da sociedade civil, ao mesmo
de políticas públicas feitas no âmbito tempo em que mantêm a sociedade em

543
Dicionário da Educação do Campo

grande efervescência política de nature- momento de implementação, abran-


za conservadora, criam novos espaços gendo os dois Governos Fernando
de realização de lucros e restringem o Henrique Cardoso (FHC), e o momen-
antagonismo político a meros conflitos to de aprofundamento, abarcando os
de interesse. dois Governos Lula da Silva.
A legitimação social do novo pro- No período do Governo FHC, foi
jeto mundial de dominação de classe implementada a reforma da aparelha-
tem-se realizado por meio de diferentes gem estatal, que estabeleceu os marcos
estratégias de obtenção de consenso: a jurídicos e políticos do novo papel do
divulgação pela mídia, em diferentes aparato governamental na repolitiza-
linguagens, do individualismo como ção da política e na relação entre apa-
valor moral radical;; a refuncionaliza- rato governamental e sociedade civil na
ção dos organismos de síntese da clas- definição e implementação das políti-
se trabalhadora (partidos e sindicatos), cas públicas. A reforma da aparelha-
transformando os militantes políticos gem estatal instituiu referências novas
da contra-hegemonia em voluntários da para a velha relação entre capital e tra-
construção da harmonia social;; e a cria- balho no âmbito do Estado brasileiro,
ção de novos intelectuais coletivos – propiciando a fragilização da organi-
as chamadas organizações não gover- zação trabalhadora por meio da priva-
namentais (ONGs) – que, fragmenta- tização, do desemprego e do estímulo
riamente, reorientam as lutas sociais aos contratos precários de trabalho.
específicas (dos negros, dos gays, da Além disso, a nova pedagogia da hege-
terceira idade, dos jovens, dos indíge- monia procurou, conforme orientações
nas, das mulheres) desvinculadamente do Banco Mundial, “tornar o Estado
de um projeto contra-hegemônico, fa- mais próximo do povo”, estimulando
cilitando a acomodação dessas deman- a expansão dos organismos denomina-
das às relações sociais capitalistas. Es- dos oficialmente como fundações pri-
ses novos intelectuais coletivos atuam vadas e associações sem fins lucrativos
também na implementação de políticas (Fasfils) (ver Instituto Brasileiro de
sociais focalizadas em parcelas miserá- Geografia e Estatística, 2008). Nesse
veis das massas trabalhadoras. processo, a passagem do confronto à
Embora algumas estratégias de colaboração de classes foi fortalecida
conciliação de classe já tivessem sido por meio do atendimento parcial de
implementadas pela pedagogia da he- demandas efetivas do movimento so-
gemonia do segundo pós-guerra, em cial, cuja liderança, pouco a pouco,
especial pela gestão tripartite das po- foi se adaptando a essa nova forma de
líticas keynesianas no Estado de bem- convivência. As bases dos movimentos
estar social, elas se difundiram mais or- sociais, por sua vez, seduzidas pelas
ganicamente como políticas do conjun- novas mensagens de “participação”,
to dos Estados nacionais, no capitalis- redefiniram, ativa ou passivamente, a
mo neoliberal de terceira via, o capitalismo redefinir sua forma de inserção políti-
de face humanizada do século XXI. ca. As atividades focalizadas de assis-
No Brasil, a nova pedagogia da he- tência social passaram cada vez mais a
gemonia passou, até a primeira década atrair indivíduos e grupos em ações de
do século XXI, por dois momentos: o voluntariado e de parcerias.

544
Pedagogia do Capital

No período do Governo Lula da conciliação, propagando ideias e imple-


Silva, foram sedimentadas as diretri- mentando políticas reformistas contrá-
zes e as práticas da educação da so- rias à formação de uma consciência
ciabilidade do capitalismo neoliberal de classe dos trabalhadores. As organi-
de terceira via. As ações educadoras do zações não governamentais tradicionais,
novo governo emergiram da política de quer por necessidade de sobrevivên-
conciliação entre setores da classe tra- cia, quer por vinculação espontânea ao
balhadora e a classe burguesa em seu modo burguês de fazer política, subme-
conjunto. Essas ações, em boa parte, con- teram-se mais intensivamente às estra-
solidaram um novo patamar de relação tégias reformistas de concertação social
entre o Estado em sentido estrito e a e ao empresariamento das ações so-
sociedade civil iniciada no período do ciais. As Fasfils, que eram em número
Governo FHC. Manteve-se a mesma de 275.895, em 2002, atingiram, em
técnica política: ampliação seletiva do 2005, o total de 338 mil organizações
núcleo estratégico de comando gover- (Instituto Brasileiro de Geografia e
namental com alargamento dos canais Estatística, 2004 e 2008).
de participação popular, para reforçar No período do Governo Lula da
o papel da burguesia como classe di- Silva, as estratégias da nova pedago-
rigente. Isso significou que o projeto gia da hegemonia, sob a aparente am-
democrático-popular de inspiração so- pliação da democracia, atuaram na con-
cialista foi superado mais uma vez pela formação dos trabalhadores sob dois
nova pedagogia da hegemonia. pilares concomitantes − o empreende-
Nesse período, a burguesia ampliou dorismo e o colaboracionismo −, for-
sua ação direta na sociedade e sua in- mando os brasileiros do século XXI nos
tervenção nas políticas governamen- limites da nova sociabilidade burguesa.
tais por meio da expansão de suas re- O êxito da nova pedagogia da he-
des sociais formuladoras e difusoras da gemonia no Brasil, na primeira década
ideologia da responsabilidade social. Os
movimentos sociais, que até então con-
dos anos 2000, pode ser avaliado pelos
índices de popularidade dos Governos
P
testavam os pilares centrais do capita- Lula da Silva e pela votação insigni-
lismo neoliberal, passaram a aderir total ficante obtida pelas forças políticas
ou parcialmente às propostas de con- inspiradas no projeto socialista de so-
certação social. As forças políticas, que, ciedade nas eleições presidenciais de
no passado, haviam assumido posições 2010. A maneira ao mesmo tempo
importantes na luta anticapitalista − molecular e orgânica da implementa-
como partidos comunistas, setores do ção das estratégias da nova pedagogia
movimento estudantil, organizações da hegemonia, ao mesmo tempo que
dos servidores públicos federais etc. –, dificulta a construção de uma contra-
a partir de 2003, se alinharam às dire- hegemonia política, tem impulsionado
trizes gerais da dominação. A Central seus intelectuais orgânicos individuais
Única dos Trabalhadores (CUT), que já e coletivos a redefinirem suas estraté-
apresentava dificuldades de organizar gias de educação política, neste estágio
com clareza a luta dos trabalhadores da correlação de forças desfavorável
nos anos de 1990, assumiu, no período à organização da classe trabalhadora.
do Governo Lula, o sindicalismo de Contraditoriamente, alguns partidos

545
Dicionário da Educação do Campo

políticos, a Central Sindical e Popular ção de seus programas de governo.


da Coordenação Nacional de Lutas E, ainda, quando, sob a chancela do
(CSP-Conlutas), e alguns movimentos Ministério da Educação e de secreta-
sociais, entre eles o Movimento dos rias municipais e estaduais de Educa-
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ção, são estabelecidas “parcerias” entre
continuam colocando a questão da luta escolas públicas e empresas, e é feita
de classes e se identificam com a luta a compra, pelos governos, de pacotes
pelo socialismo. pedagógicos, mecanismos fundamen-
No contexto escolar, a nova pedago- tais de difusão de preceitos do projeto
gia da hegemonia se materializou como de sociabilidade burguesa para crianças
inovação educacional apresentada pela e adolescentes por intermédio dos pro-
pedagogia das competências ou pedagogia fessores desse nível de ensino.
do “aprender a aprender”. A base dessa Em relação à educação superior, o
orientação se encontra nos Parâmetros fortalecimento do conhecimento como
Curriculares Nacionais (PCNs) lança- mercadoria é exemplar. No lugar de uma
dos no Governo FHC e ratificados no formação integral pública e gratuita,
Governo Lula da Silva. Sob essa orien- uma formação diversificada, majorita-
tação, o trabalho pedagógico realizado riamente privada, com vistas a atender
na escola foi orientado a assumir um ca- interesses mercantis imediatos e obter o
ráter pragmático, o que significa reduzir consentimento de um contingente sig-
o ensino em boa parte ao treinamento nificativo de jovens ao projeto político
de habilidades cognitivas referenciadas hegemônico, por meio do acesso a esse
nas “competências”. Os conhecimen- nível de ensino. Além disso, a transfor-
tos científicos, filosóficos e artísticos mação das instituições de educação cien-
transformados em conteúdos escolares tífica e tecnológica, predominantemente
assumem uma posição secundária na públicas, em agências prestadoras de
formação das atuais e novas gerações, serviços educacionais e/ou agências
dificultando a compreensão crítica de inovação e difusão tecnológica, no
do mundo. país e no exterior, contribui para subor-
A política educacional no Governo dinar cada vez mais a educação escolar
Lula da Silva reafirmou os fundamen- aos interesses técnicos e ético-políticos
tos da nova pedagogia da hegemonia no das classes proprietárias.
âmbito escolar. Em relação à educação A subordinação da educação escolar
básica, a disseminação da nova pedago- aos interesses das classes dominantes e
gia da hegemonia pode ser facilmente dirigentes transforma a escola brasileira
atestada pela incorporação das propos- atual em sujeito político estratégico na
tas empresariais do movimento “Todos formação de intelectuais da nova peda-
pela Educação” na definição e execu- gogia da hegemonia.

Para saber mais


ARANTES, P. E. Esquerda e direita no espelho das ONGs. Cadernos Abong, n. 27,
p. 3-27, maio 2000.
COELHO, E. Uma esquerda para o capital: crise do marxismo e mudanças nos proje-
tos políticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). 2005. Tese (Doutorado

546
Pedagogia do Capital

em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal


Fluminense, Niterói. 2005.
DUARTE, N. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? Campinas: Autores
Associados, 2003.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
(V. 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce).
______. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000a.
(V. 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo).
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(V. 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política).
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(V. 4: Temas de cultura. Ação católica. Americanismo e fordismo).
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INSTITUTO B RASILEIRO DE G EOGRAFIA E E STATÍSTICA (IBGE). As fundações privadas
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MARTINS, A. S. A direita para o social: a educação da sociabilidade no Brasil contem-
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NEVES, L. M. W. (org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para
educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.
______ (org.). A direita para o social e a esquerda para o capital: intelectuais da nova
pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010. P
______;; PRONKO, M. Mercado do conhecimento e conhecimento para o mercado. Rio de
Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, 2009.
RODRIGUES, J. Empresários e educação superior. Campinas: Autores Associados, 2010.
WOOD, E. M. Capitalismo e emancipação humana: raça, gênero e democracia.
In: ______. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico.
São Paulo: Boitempo, 2003. p. 227-242.

547
Dicionário da Educação do Campo

PEDAGOGIA DO MOVIMENTO
Roseli Salete Caldart

A expressão Pedagogia do Movimento é pelo movimento da espiral dialético,


usada atualmente em um duplo e arti- pode ser uma chave de análise para que
culado sentido. Como nome abreviado o próprio MST, mas não só ele, reflita
de Pedagogia do Movimento dos Trabalha- criticamente sobre suas práticas educa-
dores Rurais Sem Terra (MST), identifica tivas, cotejando-as com seus objetivos
uma síntese de compreensão do traba- sociais e formativos mais amplos.
lho de educação desenvolvido por este Neste verbete, pretendemos trazer
movimento social de trabalhadores, os elementos conceituais básicos de
produzida por ele próprio ou desde constituição da Pedagogia do Movi-
sua dinâmica histórica. Como conceito mento no seu percurso de construção
específico, a Pedagogia do Movimento e nas conexões que podem defini-la
toma o processo formativo do sujeito como parte de uma teoria pedagógica
Sem Terra para além de si mesmo e e social com categorias que assumem o
como objeto da pedagogia, entendida contraponto de concepções de educa-
aqui como teoria e prática da formação ção, de horizontes de formação huma-
humana, reencontrando-se com sua na e de sociedade, buscando participar
questão originária: entender como se do próprio movimento de transforma-
dá a constituição do ser humano, para ção da realidade que a produz. A Pe-
nós, como ser social e histórico, pro- dagogia do Movimento reafirma, para
cesso que tem exatamente no movimento o nosso tempo, a radicalidade da con-
(historicidade) um dos seus compo- cepção de educação, pensando-a como
nentes essenciais. um processo de formação humana
O segundo sentido se produz des- que acontece no movimento da práxis:
de a base material do primeiro, mas o ser humano se forma transforman-
a sutileza desta distinção se relaciona do-se ao transformar o mundo.
aos objetivos mais amplos de sua for- Na origem da Pedagogia do Movi-
mulação. A Pedagogia do Movimento mento, está a experiência de trabalho
afirma os movimentos sociais como educativo do MST, desde a sua gênese
um lugar, ou um modo específico, de e no percurso de sua construção (ver
formação de sujeitos sociais coletivos MST E EDUCAÇÃO), e uma tentativa de
que pode ser compreendida como um interpretá-la, que foi assim batizada
processo intensivo e historicamente em determinado momento dessa his-
determinado de formação humana. Ela tória, no final da década de 1990, pela
também afirma que essa compreensão seguinte formulação: o MST tem uma
nos ajuda a pensar e a fazer a educação pedagogia que é o jeito pelo qual his-
dos sujeitos da transformação das re- toricamente vem formando o sujeito
lações sociais, que produzem, na atua- social (coletivo) de nome Sem Terra, e
lidade e contraditoriamente, organiza- que, no dia a dia, educa as pessoas que
ções de trabalhadores como o MST. E, dele fazem parte e pode orientar ações

548
Pedagogia do Movimento

organizadas especificamente para edu- dos, mas como sujeito coletivo, como
cá-las ou aos seus descendentes. classe. Esse processo é educativo, e
Trata-se de uma intencionalidade seu motor é justamente uma coletividade
formativa produzida na dinâmica de em movimento que passa a produzir uma
uma luta social (pela terra, pelo traba- referência de objetivos para cada ação
lho, de classe), e de uma organização do cotidiano das pessoas concretas que
coletiva de trabalhadores camponeses, a integram.
que pode ser pensada como um pro- A materialidade da luta e das rela-
cesso educativo. Sua lógica ensina so- ções sociais construídas e transforma-
bre como fazer a formação humana em das para sua sustentação são as “cir-
outras situações, mesmo institucionais, cunstâncias educadas” para conduzir
mas também pode ajudar a intenciona- a formação de um determinado tipo
lizar as próprias ações da luta na dire- de ser humano. E como educador das
ção de objetivos mais amplos: pensar circunstâncias e sujeito de práxis, o
como cada ação – seja uma ocupa- movimento social se constitui como
ção, uma marcha, uma forma de pro- sujeito pedagógico, pois põe em movi-
dução de alimentos – pode ajudar no mento diferentes matrizes de formação
processo de formação de seus sujeitos: humana, entre as quais, e com centra-
como Sem Terra, como camponês, como lidade, a matriz formadora combinada
trabalhador, como classe trabalhadora, da luta social e da organização coletiva, em
como ser humano;; que valores propõe, sua articulação necessária com as ma-
nega ou reforça;; que postura estimula trizes do trabalho, da cultura e da história
diante da luta, da sociedade, da vida;; (Caldart, 2004). Por isso, temos afirmado
e que desafios de superação coloca à que o MST não cria uma nova pedago-
sua humanidade. gia, mas, sim, recupera e mobiliza de um
Esta é a Pedagogia do Movimento Sem jeito específico, pela historicidade
Terra, cujo sujeito educador principal de suas ações, matrizes pedagógicas
construídas ao longo da história de
é o próprio movimento, não apenas
quando trabalha no campo específico formação da humanidade. E é este mo- P
da educação, mas fundamentalmente vimento pedagógico que está na base
quando sua dinâmica de luta e de or- de construção da concepção de educa-
ganização intencionaliza um projeto ção e também de escola do MST, desde
de formação humana. Há um processo os fundamentos, pois, que a projetam
formativo que começa com o enraiza- para além dele.
mento dos sem-terra (condição de tra- Na formulação inicial do conceito
balhador da terra desprovido dela) em mais amplo de Pedagogia do Movimen-
uma coletividade, que não nega o seu to, já na entrada do século XXI, esteve
passado e sinaliza um futuro que po- o desafio assumido pelo MST de cons-
derão ajudar a construir, e que conti- truir, junto com outros movimentos
nua no movimento contraditório, des- sociais camponeses, o projeto político-
contínuo, conflituoso de produção de pedagógico da EDUCAÇÃO DO CAMPO,
uma identidade coletiva que vai mos- capaz de envolver o conjunto dos su-
trando a esses trabalhadores que o jeitos trabalhadores do campo. Enten-
protagonismo de construção do futuro deu-se que a reflexão da Pedagogia do
não será deles como indivíduos isola- Movimento, embora construída desde

549
Dicionário da Educação do Campo

a experiência formativa do MST, ia além Nesse raciocínio, um movimento


dele, podendo se constituir como uma social terá um peso formador maior,
referência mais imediata de unificação à medida que se consolide como or-
da concepção formativa da nova articu- ganização coletiva e consiga formatar
lação de luta das organizações campo- esta organização (suas relações sociais
nesas pelo direito à educação. de constituição, suas relações de traba-
No percurso dessa construção, lho), e suas formas de luta, de modo
que continua, foram se explicitando coerente com objetivos sociais mais
duas contribuições sociais importantes amplos e envolvendo diferentes dimen-
dessa reflexão específica. Uma delas é sões da vida humana. Em alguns casos,
aprofundar a compreensão da dimen- passa a ser referência para organizar
são educativa dos movimentos sociais o cotidiano das pessoas: ser do movi-
para que ela possa ser potencializa- mento como uma relação social que
da por eles próprios, assumindo-se como formata as demais. Às vezes, a questão
pedagogos coletivos que pensam cri- que move para a luta, e que constitui
ticamente sobre suas ações e intencio- um movimento social, projeta a forma-
nalizam com radicalidade a formação ção de sujeitos exatamente pela radica-
do ser humano que suas lutas projetam lidade dos processos de humanização/
e sua classe necessita. Outra contri- desumanização nela envolvidos, mas
buição é pensar as implicações dessa a estrutura orgânica criada acaba não
pedagogia vivenciada no âmbito dos tendo força material suficiente para
movimentos sociais para a formulação realizar o que a luta específica projeta,
e a prática de uma estratégia educacio- diminuindo seu potencial formador.
nal dos trabalhadores, do campo e da Um sujeito social coletivo se refere à
cidade, que vise formá-los como pro- associação de pessoas que passam a ter
tagonistas da luta contra o capital e da uma identidade de ação na sociedade, e,
construção de novas relações sociais portanto, de formação e organização em
de produção. vista de interesses comuns e de um pro-
É importante ter presentes alguns jeto coletivo. Revela-se pelo nome
conceitos que integram essa rede concei- próprio por meio do qual a sociedade
tual de que aqui se trata. Movimentos sociais passa a identificar quem é de uma deter-
estão sendo entendidos como formas de minada organização, de um determinado
mobilização e de organização específica movimento (“Sem Terra”, “Sem Teto”,
das classes trabalhadoras para lutas so- “Atingidos por Barragens”). E sujeitos
ciais que passam a fazer alguma diferença coletivos se formam, não são dados pe-
no movimento histórico de uma dada so- las condições objetivas que os definem,
ciedade, acorde à sua capacidade de fazer exatamente porque seus membros par-
emergir (formar) novos sujeitos sociais tilham mais do que uma condição: parti-
coletivos. Nem todos os hoje denomina- lham objetivos construídos ou tornados
dos “movimentos sociais” se desenvol- conscientes no movimento histórico
vem a partir dessa intencionalidade, mas em que se afirmam ou são reconheci-
ela está presente na realidade específica dos pela sociedade. Em nosso tempo,
de movimentos do nosso tempo que ser- os movimentos sociais estão sendo re-
vem de referência para se pensar em uma conhecidos como espaços importantes
Pedagogia do Movimento. de formação de sujeitos coletivos.

550
Pedagogia do Movimento

A reprodução ou continuidade his- triz, desse agir. Podem ser associadas


tórica de um sujeito coletivo depende à ideia de “princípio educativo” quan-
de sua constituição projetiva como do esta expressão é usada para indi-
sujeito político, ou seja, aquele sujeito car o que seria uma matriz originária
coletivo que efetivamente passa a fazer da constituição do ser humano. Assim
diferença na correlação de forças polí- se compreende a afirmação do trabalho
ticas da sociedade em uma determinada como princípio educativo: ele é a base de
época – diferença pela força material constituição da práxis, como totalidade
de sua luta, ou porque ela, de alguma formadora do ser humano.
forma, torna-se capaz de interrogar o E consideramos que justamente a
“modo de ser” da sociedade (relações práxis é a categoria que pode fazer a
sociais de produção) e o “modo de ligação desses conceitos com uma
vida” (cultura) que ela reproduz e con- concepção de ser humano e de seu
solida, provocando a reflexão da socie- processo formativo. Práxis é enten-
dade sobre si mesma. Colocar em ques- dida, desde Marx, como “a atividade
tão a propriedade privada como valor concreta pela qual os sujeitos humanos
absoluto é um exemplo importante do se afirmam no mundo, modificando
que aqui se trata. a realidade objetiva e, para poderem
Lutas sociais são enfrentamentos or- alterá-la, transformando-se a si mes-
ganizados, portanto coletivos, de deter- mos” (Konder, 1992, p. 115). A práxis
minadas situações sociais, na defesa é, nesse sentido, a revelação do ser hu-
de interesses também coletivos, feitos, mano “como ser ontocriativo, como
de forma massiva, pelas próprias pes- ser que cria a realidade (humano-
soas envolvidas na situação. Em nos- social) e que, portanto, compreende a
sa formação histórica, têm sempre um realidade (humana e não-humana, a rea-
vínculo de classe social, ainda que não lidade como totalidade). A práxis [...]
necessariamente tenham um caráter não é a atividade prática contraposta
imediato (ou um objetivo de enfrenta- à teoria;; é determinação da existência
mento) de classe. E quanto mais estas humana como elaboração da realidade” P
lutas se vinculem a dimensões da pro- (Kosik, 1976, p. 202). É formadora e
dução social da vida humana, e se co- ao mesmo tempo forma específica do
loquem na perspectiva da luta de ser humano (ibid., p. 201).
classes, maior sua força (potencial) for- Pensando do ponto de vista da in-
madora;; quanto mais radical a trans- tencionalidade formativa, na práxis
formação do mundo que se pretende, cabe o que aqui estamos identifican-
mais radical a transformação humana do como diferentes matrizes pedagógi-
que se necessita para fazê-la. cas: o trabalho, a cultura, a luta social e
Matrizes formadoras e matrizes peda- a organização coletiva, todas inseridas
gógicas estão sendo usadas aqui como no movimento da história, que se con-
sinônimos que se referem a atividades forma também em matriz formativa.
ou situações do agir humano que são E é a categoria da práxis que nos aju-
essencialmente formadoras ou confor- da a compreender que nenhuma matriz
madoras do ser humano, no sentido de pedagógica deve ser vista isoladamente
constituir-lhe determinados traços que ou deve ser absolutizada em um pro-
não existiriam sem a atuação dessa ma- cesso educativo.

551
Dicionário da Educação do Campo

Afirmar que o ser humano se for- Dizer que a luta social educa as pes-
ma na luta social é reafirmar que ele se soas significa afirmar que o ser huma-
constitui como humano na práxis, que no se forma não apenas por processos
se educa na dialética entre transforma- de conformação social, mas, ao contrá-
ção das circunstâncias e autotransfor- rio, que há traços de sua humanidade
mação. É a atividade que forma o ser construídos nas atitudes de inconfor-
humano;; mas a atividade que huma- mismo e contestação social, e na busca
niza mais radicalmente é aquela que da transformação do “atual estado de
exige a autotransformação que pas- coisas”. E ela nos ensina, pela própria
sa pela compreensão teórica da rea- materialidade que a constitui, que essa
lidade. E, para Marx, esta atividade é, busca não pode ser do indivíduo, mas
originária e centralmente, o trabalho, também não se realiza sem ele. Neces-
como atividade humana criadora, ain- sita, portanto, da recuperação da dia-
da que não se esgote nele, projetando- lética entre indivíduo e coletividade
se como práxis revolucionária. ou, como trata Marx, da reintegração
Assumindo o vínculo essencial entre de individualidade e sociabilidade na
educação e práxis, a Pedagogia do Mo- realidade humana concreta do indivíduo
vimento destaca a especificidade forma- social (apud Mészáros, 2006, p. 246).
dora da luta social não para absolutizar A luta social não tem um objetivo em
sua dimensão educativa (ou relativizar si mesma: não se luta por lutar ou porque
a força formadora do trabalho, reafir- lutar eduque. Luta-se porque há situações
mado como princípio educativo), mas por que estão impedindo a vida humana ou a
considerar que ela ainda não foi suficien- sua plenitude. E nesta atitude de enfrentar
temente levada em conta, como matriz, ou de resistir contra o que desumaniza
pelas pedagogias inspiradas na tradição está o principal potencial formador da
teórica que vincula a educação à eman- luta, exatamente porque constrói condi-
cipação social e humana, e, nem mes- ções objetivas para a formação dos sujei-
mo, na compreensão da constituição da tos de uma práxis revolucionária (ainda
práxis. E também porque não tem sido que não a garanta).
refletida/trabalhada nestes termos pe- Afirmar o movimento social como
los próprios militantes das organizações sujeito pedagógico e a luta, e a sua orga-
de trabalhadores. nização, como matrizes formadoras não
Este destaque se torna ainda mais im- significa considerar que são pura positi-
portante hoje, quando o imaginário ins- vidade. Do mesmo modo que se afirma
tituído da sociedade é hegemonizado a dimensão formativa do trabalho e, ao
pelo “culto do indivíduo” (Mészáros, mesmo tempo, se analisa a contradição
2006) e pela visão de que tentar trans- presente nas formas históricas de traba-
formar o mundo, ou pensar em re- lho (a alienação do trabalho assalariado
voluções sociais, é algo ultrapassado, capitalista, por exemplo), pode-se ana-
anacrônico, da mesma forma que se lisar o caráter deformador (em nossa
associam (direta ou simbolicamente) concepção de formação) de formas de
organização e coletivos a formas tota- organização da luta social encontradas
litárias e autoritárias de pensar a socie- em alguns movimentos sociais, ou em
dade. A Pedagogia do Movimento quer determinadas situações dos próprios
ajudar a confrontar essa hegemonia. movimentos, que servem de base à com-

552
Pedagogia do Movimento

preensão de sua dimensão formadora. trabalhadores que fortaleça seu engaja-


São exatamente as contradições que mento massivo e organizado nas lutas
nos podem mostrar melhor o movimento pela superação do capitalismo.
da formação humana e como agir na É possível e necessário reproduzir
educação dos trabalhadores, visando e/ou projetar em outras práticas, ou
ao seu protagonismo efetivo no pro- em outros lugares educativos, valores,
cesso de refundação da sociedade. símbolos, conhecimentos, convicções,
No diálogo com a teoria pedagógi- sentimentos e posturas produzidas/
ca e social, trata-se de tomar posição projetadas pela Pedagogia do Movi-
diante do embate de tradições distin- mento, e, especialmente, pela matriz
tas de pensar e de fazer a formação formadora da luta social e sua organi-
humana. A Pedagogia do Movimen- zação coletiva. Para isso, é importante
to recupera, reafirma e, ao mesmo tem- analisar quais traços/aprendizados do
po, continua, desde uma realidade es- ser humano são produzidos, ou pelo
pecífica, com seus sujeitos particulares menos projetados, pela vivência con-
e em um tempo histórico determinado, tinuada no ambiente dos movimentos
a construção teórico-prática de uma sociais, e refletir sobre como estes tra-
concepção de educação de base mate- ços se formam e como poderiam ser
rialista, histórica e dialética. É herdeira trabalhados pela intencionalidade edu-
da filosofia da práxis como concepção cativa de outras práticas.
que radicaliza a ideia do ser huma- Note-se que, até agora, tratamos de
no (ser social e histórico) como pro- pedagogia e ainda não mencionamos a
duto de si mesmo: ao mesmo tempo escola, sendo este um registro necessá-
produto e sujeito da história, forma- rio na finalização deste verbete. A Pe-
do pela sociedade e construtor da so- dagogia do Movimento não tem como
ciedade – sujeito de práxis. seu objeto central de reflexão a escola,
E é herdeira também da Pedago- ainda que seu esforço de elaboração
tenha começado e se realize em torno
gia do Oprimido (Paulo Freire), que,
enquanto materialização dessa mes- dela e que o MST historicamente re- P
ma concepção, traz para a reflexão force seu papel específico na formação
pedagógica o potencial formador da dos trabalhadores.
condição de opressão, humanamente Foi lutando pelo direito dos Sem
exigente da atitude de busca da liber- Terra à escola e, ao mesmo tempo, bus-
dade e de luta contra o que oprime, e cando compreender as transformações
que coloca os oprimidos na condição necessárias nela para que se vinculasse
potencial de sujeitos da sua própria às suas lutas e aos seus objetivos so-
libertação: “Quem melhor do que os ciais mais amplos, que o MST chegou
oprimidos se encontrará preparado [...] a entender a dimensão e a importância
para ir compreendendo a necessidade histórica do que pretendia. Por isso,
da libertação? Libertação a que não temos o costume de afirmar que a Pe-
chegarão pelo acaso, mas pela práxis dagogia do Movimento não cabe na
de sua busca” (Freire, 1983, p. 32). A escola, mas a escola cabe na Pedagogia
Pedagogia do Movimento trata exata- do Movimento, pelo lugar que pode
mente dessa busca, que significa hoje ter em seu projeto político e educativo,
um processo coletivo de formação dos mas que somente será assumido se

553
Dicionário da Educação do Campo

encarnar uma historicidade não cir- interior) o movimento da práxis. No


cunscrita a ela mesma. E, por isso tam- MST, foi exatamente a rediscussão
bém, o MST tem dialogado, em seu per- das finalidades educativas da escola
curso de trabalho educacional, com as que acabou gerando uma reflexão so-
experiências da PEDAGOGIA SOCIALISTA. bre a necessidade e as possibilidades
O produto principal da Pedagogia de transformação da forma escolar
do Movimento não é uma proposta de e da lógica do trabalho pedagógico
escola, e nem seu objetivo é esgotar que ali se realiza.
a reflexão sobre ela e mesmo sobre a O desafio aos educadores de esco-
pedagogia. Porém consideramos que a la é também o de buscar compreender
Pedagogia do Movimento é a afirma- os processos de formação humana que
ção de uma concepção de educação acontecem fora dela, compondo um
que pode mexer bastante com os ru- método de condução pedagógica dos
mos da escola na direção dos interesses processos escolares mais próximo da
dos trabalhadores. No tempo em que complexidade da vida da formação hu-
vivemos, o que está em jogo, quando mana. Este processo é facilitado quan-
se trata de educação, “não é apenas a do a escola estabelece algum tipo de
modificação política das instituições vínculo orgânico com outros lugares
de educação formal” (Mészáros, 2006, de formação de sujeitos sociais coleti-
p. 264), mas uma estratégia educa- vos, e quando os próprios movimentos
cional socialista que assuma “a tare- sociais ocupam a escola e dela se ocu-
fa de transcender as relações sociais pam, incluindo a formação das novas
alienadas sob o capitalismo” (ibid.). gerações em sua práxis política e pe-
A hegemonia das relações capitalis- dagógica.
tas se alimenta da reprodução da vi- A materialidade da atuação dos mo-
são de mundo e da postura humana vimentos sociais com projeto histórico
que lhes corresponde. Um outro pro- parece fundamental para reproduzir a
jeto não sobreviverá nem se expan- práxis de formação humana que reali-
dirá sem uma intencionalidade nesta zam ou podem realizar pelo que obje-
esfera. É preciso construir um am- tivamente são. À medida que desenca-
biente cultural/educativo, combinada- deiam este movimento pedagógico
mente de inconformismo, de partici- capaz de interrogar o conjunto da so-
pação política, de projeto coletivo, de ciedade sobre seu destino, têm o gran-
análise rigorosa da realidade, que re- de compromisso de consolidar este
produza/fortaleça os sujeitos capazes movimento dentro de sua própria dinâ-
deste confronto de projetos. mica. E isto não é algo dado, mas sim
Não será pouco se o encontro entre construído, posto que seus integrantes
Pedagogia do Movimento e escola pro- também estão expostos às investidas
vocar uma reflexão sobre seus objetivos cada vez mais refinadas da PEDAGOGIA
formativos e sobre as matrizes pedagó- DO CAPITAL.
gicas que deve acionar para realizar sua Afirmar a Pedagogia do Movimen-
tarefa educativa específica, que implica to como referência política e pedagógi-
o trabalho com determinadas formas ca da Educação do Campo é hoje par-
de conhecimento, compondo o quadro te deste desafio. Significa reafirmar os
global dessa estratégia mais ampla e in- movimentos sociais como sujeitos pro-
tegrando (por realizar também no seu tagonistas deste projeto e considerar a

554
Pedagogia do Oprimido

luta social como matriz pedagógica que a totalidade formadora na qual dife-
integra a sua concepção de educação, rentes práticas educativas se põem e
compreendendo o campo (suas rela- contrapõem na constituição prática de
ções sociais, suas contradições) como determinado ser humano.

Para saber mais


BARATA-MOURA, J. Materialismo e subjetividade: estudos em torno de Marx. Lisboa:
Avante, 1998.
CALDART, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 3. ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2004.
______. Teses sobre a Pedagogia do Movimento. Porto Alegre, junho de 2005. (Mimeo.).
______. O MST e a escola: concepção de educação e matriz formativa. In:
______. (org.). Caminhos para a transformação da escola. São Paulo: Expressão
Popular, 2010. p. 63-83.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
KOSIK, K. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
KONDER, L. O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século XXI.
2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). Princípios da educa-
ção no MST. Caderno de Educação, n. 8, jul. 1996.
NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. 4. ed. São Paulo:
Cortez, 2008.
P
SADER, E. Quando novos personagens entram em cena. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
Miguel G. Arroyo

Como aproximar-nos da Pedagogia ceito na diversidade de formas de


do Oprimido? Que significados car- se conceituar a pedagogia? O que esse
rega para a teoria pedagógica, para a conceito traz de radicalidade política e
pedagogia dos movimentos sociais pedagógica?
e, especificamente, para a educação O próprio termo Pedagogia do
do campo? Trata-se de mais um con- Oprimido nos obriga a assumir a inse-

555
Dicionário da Educação do Campo

parabilidade de todo conceito do con- Os oprimidos sujeitos


texto cultural e político que é inerente
pedagógicos, educadores
à produção do conhecimento.
O próprio enunciado de Paulo
Um conceito que sustenta Freire, pedagogia do oprimido, aponta
para essa relação entre experiências de
práticas sociais opressão, entre sujeitos que padecem e
Pedagogia do Oprimido é um con- reagem à opressão e à radicalidade de-
ceito, uma concepção de educação cons- formadora-formadora desses proces-
truída em um contexto histórico e sos sociais. Não mais uma pedagogia
político concreto. É uma concepção reconceituada, entendida e praticada
e prática pedagógica construídas e re- para educar, politizar e conscientizar os
construídas nas experiências sociais e povos oprimidos, mas uma pedagogia
históricas de opressão e nas resistên- do oprimido, de tantos oprimidos por
cias dos oprimidos, dos movimentos relações sociais, econômicas e culturais,
sociais pela libertação de tantas formas por padrões de trabalho, de proprie-
persistentes de opressão. dade e de apropriação-expropriação-
exploração da terra e do trabalho –
Ao aproximar-nos dessa concepção
trabalhadores, mulheres, indígenas, ne-
de educação – Pedagogia do Oprimido –,
gros;; pedagogias desses coletivos que
aprendemos que todo conhecimento,
se for mam, conscientizam-se e se
toda concepção, tem origem nas ex-
libertam nas brutais e opressoras ex-
periências sociais. Todo conhecimento
periências e relações de opressão,
sustenta práticas sociais que exigem ser
de resistência e de libertação.
explicitadas para sua inteligibilidade e
para a ação política. Logo, a aproximação a esse concei-
to e a compreensão dele (como de todo
O conceito-concepção de Pedagogia
conceito e de todo conhecimento) nos
do Oprimido, como toda concepção,
obrigam a tomar como ponto de partida
sustenta-se e encontra inteligibilidade e
força político-pedagógica ao explicitar os sujeitos concretos – os oprimidos –
e revelar essas práticas sociais, políticas e no contexto histórico em que se hu-
pedagógicas. Foi construído e pratica- manizam e em que se formam, na me-
do com essa intenção. A Pedagogia do dida em que experimentam e reagem,
Oprimido nos ensina que, enquanto as libertando-se da opressão. Essa vincu-
experiências sociais, humanas, de tra- lação de todo conhecimento e de toda
balho, das vivências e resistências não pedagogia com as experiências das re-
forem reconhecidas e explicitadas como lações sociais e seus sujeitos históricos
conformantes dos conceitos, das teorias torna-o histórico, político, intencional,
e dos valores, não encontrarão significa- radical: pedagógico.
do histórico, não terão força pedagógi- Por sua vez, quando os conceitos
ca, nem política. A Pedagogia do Opri- se distanciam das experiências sociais,
mido também nos obriga a assumir que das relações políticas e dos sujeitos que
todo conhecimento é inseparável dos os produzem, perdem inteligibilidade
sujeitos históricos dessas experiências e radicalidade política e pedagógica,
produtoras de conhecimentos, de valo- sobretudo para os próprios sujeitos
res, de cultura e de emancipação. que os padecem e deles se libertam.

556
Pedagogia do Oprimido

Ninguém melhor do que os oprimidos dá à história feita pelos sujeitos: uma


para entender a radicalidade político- história humana e humanizadora –
pedagógica da Pedagogia do Oprimi- portanto, pedagógica. “Não há realida-
do, porque, nela, eles são sujeitos de sua de histórica que não seja humana. Não
pedagogia. Trata-se, portanto, de uma há história sem homens, como não há
diretriz pedagógica da maior radicali- uma história para os homens, mas uma
dade para toda docência e, em especial, história de homens que, feita por eles,
para a Educação do Campo. Como po- também os faz, como disse Marx”
demos entendê-la quando pensamos na (Freire, 1987, p. 127).
repolitização da educação do campo? A Pedagogia do Oprimido tenta
traduzir essa radical visão no pensar-
agir educativo, reconhecedo que os
Em que experiências
homens fazem a história e são feitos
sociais surge a Pedagogia por ela. Esse é um princípio educativo
do Oprimido? reafirmado pelos movimentos sociais:
a consciência de que, ao fazerem outra
A Pedagogia do Oprimido se insere sociedade, outro campo, outra história,
no movimento de educação e cultura fazem-se outros. Quanto mais radi-
popular que se dá no final dos anos cais são essas experiências de fazer a
1950 e se prolonga até os anos 1960, em história, mais radicais os processos de
um contexto de esgotamento do popu- formação, de fazer-se como seres hu-
lismo e de múltiplas manifestações dos manos. Ao longo destas décadas, a Pe-
setores populares em pressões sociais, dagogia do Oprimido vem sendo radi-
em um contexto de afirmação de su- calizada pelos oprimidos organizados,
jeitos políticos. Esse movimento se ali- em resistências e em ações coletivas
menta, sobretudo, das reações e da or- de emancipação.
ganização dos trabalhadores do campo Se a postura pedagógica inicial
nas Ligas Camponesas e em sindicatos.
Reflete o contexto político de lutas pe-
é partir dos sujeitos, como vê-los?
Paulo Freire nos leva a ver os sujeitos da
P
las Reformas de Base, da centralidade Pedagogia do Oprimido em antagôni-
das pressões pela Reforma Agrária e da cas relações sociais, econômicas, polí-
persistência tensa da questão da terra ticas e culturais. Os termos frequentes
na nossa formação social e política. para nomear os atores que se relacionam
O movimento de educação e cul- nesse processo são opressores e oprimi-
tura popular significa uma resposta dos, ou classes sociais em lutas antagô-
político-pedagógica a essas tensões, que nicas. “Não há nada, contudo, de mais
não se limitam ao Brasil, mas estão ex- concreto e real do que os homens no
postas nos povos da América Latina e mundo e com o mundo. Os homens
nos povos da África, em reação contra com os homens, enquanto classes que
o colonialismo. Lembremos que Paulo oprimem e classes oprimidas” (Freire,
Freire se refere com frequência à obra 1987, p. 126). Logo, há que vê-los em
de Fanon Os condenados da terra (1965). relações antagônicas entre classes, não
A ênfase na pedagogia do oprimido em polarizações vagas não antagônicas.
e não para educar os oprimidos se ali- Paulo Freire aponta o papel políti-
menta da centralidade que Paulo Freire co da teoria pedagógica: revelar essas

557
Dicionário da Educação do Campo

relações opressoras de classe e reco- oprimidos, se encontrará preparado


nhecer os oprimidos como educadores. para entender o significado terrível
É isso que confere sentido à Pedagogia de uma sociedade opressora? Quem
do Oprimido. Também ressalta o pa- sentirá, melhor do que eles, os efeitos
pel do movimento de educação-cultu- da opressão? Quem, mais do que eles,
ra popular e das lutas do coletivo de para ir compreendendo a necessidade
educadores que se aproximam dessas da libertação?” (Freire, 1987, p. 31).
vivências da opressão e das classes A relação com a opressão não é
oprimidas. São educadores (as) que, ao uma relação natural, ou com uma força
tentarem entender as dimensões for- natural, nem tem uma herança maldita:
madoras e educativas que perpassam uma relação com uma situação históri-
essas vivências, educam-se, e, nesse ca produzida;; situação que é fruto de
movimento, reconhecem os oprimi- opções e de relações sociais e políticas
dos como sujeitos de saberes, de cul- antagônicas de classe capazes de pro-
turas e de modos de ler o mundo e duzir reações e outras opções de liber-
de pensar-se. tação. Nesses processos, os oprimidos
Nessa prática-movimento de edu- se modificam ao tentarem modificar as
cação, ou nessa prática ético-política- relações de opressão. As vivências da
educativa, foi sendo elaborada essa opressão são vistas por Paulo Freire
concepção de educação, baseada em como autoconscientizadoras, autocria-
leituras da educação apreendidas de tivas. O oprimido é um ser que dá res-
Paulo Freire pelo coletivo de educa- postas;; ele não fica paciente-passivo,
dores e em leituras dos processos que como na visão dos opressores.
acontecem nas vivências da opressão e
A educação se dá nas respostas à ne-
da libertação dos próprios oprimidos.
gatividade, às carências e aos limites da
Os oprimidos vão reeducando os edu-
opressão a que são submetidos. Onde
cadores e o pensamento pedagógico,
situar a radicalidade da opressão? Nas
numa unção reeducadora que os movi-
carências de vida, de atender aos impe-
mentos sociais vêm assumindo.
rativos de um justo e digno viver como
humanos. As vivências da opressão não
A experiência da opressão são apenas culturais, de consciência
como matriz pedagógica a ser esclarecida, mas de necessidades
vitais, de povos privados de possibili-
Paulo Freire teve a ousadia de dades de poder manter a vida humana
acrescentar ao trabalho como prin- porque são oprimidos, sem terra, sem
cípio educativo a vivência e a reação- teto, sem territórios, sem trabalho, nos
libertação da opressão como matriz limites da sobrevivência – logo, sem li-
formadora. Os oprimidos criam e re- berdade de criar, recriar, viver pelo tra-
criam suas existências nas vivências- balho, pelas condições no limite para
reações à opressão, ao terem cons- produção-reprodução básica de suas
ciência da opressão e dela tentarem existências. A condição de opressão
libertar-se: criam alternativas, fazem incide primeiro, e de maneira radical,
escolhas, exercem sua liberdade huma- sobre essas condições materiais, so-
na;; formam-se nas vivências-reações à bre o carecimento das possibilidades
opressão. “Quem, melhor do que os de responder às necessidades básicas

558
Pedagogia do Oprimido

de viver como humanos. Aí radica a sua sos de humanização-desumanização


força antipedagógica, deformadora. na diversidade de dimensões do ser
Esse carecimento radical primeiro humano. É significativo que uma das
provoca as respostas mais radicais e, dimensões mais destacadas por Paulo
consequentemente, mais pedagógicas Freire na Pedagogia do Oprimido seja
na Pedagogia do Oprimido. Um alerta a identificação entre educação e hu-
da maior relevância para trabalhar na manização: como nos fazemos huma-
educação dos oprimidos das cidades nos ao fazermos a história. Assim se
e dos campos é o de vê-los oprimidos aprende a visão mais radical da teoria
nas possibilidades básicas de viver-ser pedagógica e do fazer educativo.
como humanos. Essa opressão é a mais Nas vivências da opressão-liberta-
radical no ser humano, e, por isso, é ção, descobre o ser humano que pouco
mais pedagógica em nossa história do sabe de si, de seu “posto no cosmos”,
que a opressão por convencimento, e se inquieta por saber mais, por sa-
por falsa consciência. ber de si. Faz de si mesmo problema.
É à opressão nas bases da produção “O problema de sua humanização [...]
da existência que os oprimidos reagem assume caráter de preocupação inilu-
em movimentos de libertação, em lutas dível” (Freire, 1987, p. 29). A Pedago-
por terra, território, trabalho, teto, vida. gia do Oprimido é uma pedagogia da
Nessas bases materiais, se dão as respos- humanização, das indagações sobre a
tas e opções mais radicais dos oprimidos condição humana vindas dos oprimi-
pela libertação das classes opressoras, dos;; é uma pedagogia do oprimido que
porque aí se dão as opressões mais ra- se indaga sobre o reconhecimento da
dicais: negação da vida e das condições desumanização que padece como reali-
de viver – terra, trabalho. Esse é um dos dade histórica.
sentidos mais político-pedagógicos da “É também, e talvez sobretudo, a
emancipação, da libertação que aconte- partir dessa dolorosa constatação que
ce nas vivências da opressão, na relação
inseparável entre carecimento, necessi-
os homens se perguntam sobre a outra
viabilidade – a de sua humanização”
P
dade e liberdade, libertação. Aí radicam (Freire, 1987, p. 29). Nessa relação dialé-
as virtualidades formadoras mais ra- tica entre desumanização-humanização,
dicais dos processos coletivos de liber- vivenciada de maneira radical na opres-
tação da opressão. são, é que a Pedagogia do Oprimido
encontra sua radicalidade: a humaniza-
Aprofundando a concepção da ção, uma vocação negada, mas também
educação como humanização afirmada na própria negação. “Vocação
negada na injustiça, na exploração, na
Toda ação pedagógica nos movi- opressão, na violência dos opressores,
mentos ou nas escolas deverá levar mas afirmada no anseio de liberdade,
em conta as formas históricas e diver- de justiça, de luta dos oprimidos, pela
sas das relações sociais de opressão- recuperação de sua humanidade rouba-
libertação. Paulo Freire aprofunda a da” (ibid., p. 30).
concepção de educação ao lembrar- A Pedagogia do Oprimido, seja
nos, que nessas vivências históricas nos movimentos, seja nas escolas,
de opressão, entram em jogo proces- seja nos cursos de formação, deve

559
Dicionário da Educação do Campo

reconhecer esses tensos processos, mentos de luta contra a colonização da


explicitá-los e trabalhá-los pedagogi- África. Nas últimas décadas, ela orienta
camente;; mostrar que a desumanização a ação pedagógica de diversos agentes
da opressão não é uma vocação histó- educadores e de diferentes coletivos
rica, mas assumir que, mesmo que a populares. Podemos ver, nessa trajetó-
desumanização seja um fato concreto, ria histórica, uma repolitização da Pe-
persistente na história, não é, porém dagogia do Oprimido. Que dimensões
destino dado, mas resultado de uma “or- são repolitizadas?
dem” injusta gerada pela violência dos
opressores. Explicitar, destacar essa
realidade histórica, não um destino Terra: matriz formadora
dado, é uma das tarefas da Pedagogia Os movimentos sociais repolitizam
do Oprimido e da pedagogia dos mo- a opressão-resistência-libertação nas
vimentos de libertação – uma tarefa da bases do viver, na produção da exis-
Educação do Campo e das escolas do tência humana. Os movimentos mais
campo, indígenas, quilombolas.
radicais mostram que a opressão se dá
Contudo, a tarefa vai além. Há que na expropriação da terra, do territó-
se destacar as lutas dos próprios opri- rio, do teto, do trabalho, na destruição
midos por recuperar a humanidade dos processos de viver, de produção,
roubada, dar centralidade pedagógica da agricultura camponesa... Nas re-
a elas e mostrar a pluralidade de pro- sistências e lutas por essas bases do
cessos de humanização: as lutas pela viver, os movimentos sociais colocam
humanização, pelo trabalho livre, pe- os aprendizados mais radicais: os pro-
la desalienação e pela sua afirmação cessos de humanização, libertação.
como pessoas, como “seres em si”.
Esses movimentos repolitizam a
O conceito de Pedagogia do Opri-
pedagogia da terra: o que essa peda-
mido, quando enraizado nas vivên-
gogia acrescenta à Pedagogia do Opri-
cias da opressão e nos sujeitos que as
mido e à pedagogia do trabalho? Terra
padecem e delas se libertam, leva a uma
é mais do que terra. É o espaço em
das concepções mais radicais: a edu-
cação como humanização, como recu- que o ser humano se defronta primei-
peração da humanidade roubada, como ro com a natureza, como força e como
libertação-emancipação. produtora de vida. Pela agricultura, o
ser humano se apropria da terra como
produção da vida e de si mesmo, mo-
Os movimentos sociais difica a terra e se modifica. Na agri-
repolitizam a Pedagogia cultura camponesa, o camponês e
do Oprimido toda a sua família produzem alimen-
tos e vida, e se produzem em todas as
A Pedagogia do Oprimido não se dimensões como humanos. O trabalho
esgota no contexto histórico em que na terra carrega sua pedagogia: terra
surge. Ela é apropriada em seus traços matriz formadora (Arroyo, 2011).
mais básicos na diversidade de movi- Os movimentos sociais reafirmam
mentos sociais urbanos e do campo, identidades, ações, movimentos cole-
na diversidade de sociedades latino- tivos, de sujeitos sociais, de políticos,
americanas, sobretudo, e nos movi- de educadores coletivos. A Pedagogia

560
Pedagogia do Oprimido

do Oprimido teve sua origem na orga- opressões históricas e lutam por sua
nização dos trabalhadores do campo libertação. Além disso, na formação e
em Ligas Camponesas, em sindicatos. na ação pedagógica dos educadores
Os novos movimentos urbanos e do e das educadoras do campo, indígenas e
campo, ao radicalizarem suas ações, quilombolas, deve-se dar centralida-
sua organização e suas estratégias de de aos processos de opressão: como
resistência e de libertação, radicalizam se manifesta a diversidade de formas de
os pressupostos e as dimensões da Pe- opressão desses coletivos? Como essas
dagogia do Oprimido. formas se concretizam nos processos
Esses movimentos não apenas de negação da escola e de precariza-
mostram a terra, o espaço, o território ção de suas vidas desde crianças? Como
como fronteira de expropriação – sem- trazem a opressão em suas vidas pre-
teto, sem-terra, sem-território –, mas carizadas para as salas de aula? Como
se afirmam como sujeitos coletivos, formar professores(as) que entendam
políticos, de políticas de outro projeto essas formas históricas de opressão
de campo e de cidade, de outro pro- das comunidades e dos povos do cam-
jeto de sociedade. Como movimentos, po com os quais trabalham? Impossí-
constroem outras pedagogias: outra re- vel construir outra escola do campo
flexão e teorização sobre suas práticas sem entender e trabalhar os processos
formadoras, e se afirmam como sujei- históricos de opressão da diversidade
tos de ação-reflexão-teorização peda- de povos do campo.
gógica (Caldart, 2000).

Ocupar o território-escola
A Pedagogia do Oprimido
e a escola do campo, A Pedagogia do Oprimido encontra
sua afirmação nos processos educativos
indígena e quilombola
extraescolares, sobretudo, mas também
A Pedagogia do Oprimido tem de
vencer resistências para ser assumida
inspira outra escola, outras práticas edu-
cativas escolares. O traço mais radical:
P
pela pedagogia escolar. Os movimen- ocupar o território-escola. Os movi-
tos sociais e coletivos de docentes- mentos sociais, ao lutarem por terra, es-
educadores tentam incorporá-la, mas paço e território, articulam as lutas pela
a pedagogia escolar resiste a deixar-se educação, pela escola – como território,
interrogar pela radicalidade teórica e espaço de educação – às lutas por direi-
política da Pedagogia do Oprimido. tos a territórios. Mostram a articulação
Entretanto, os movimentos so- entre todos os processos históricos de
ciais repolitizam a pedagogia esco- opressão, segregação e desumanização,
lar do campo, indígena, quilombola, e reagem, lutando em todas as fronteiras
inter-racial, das comunidades campo- articuladas de libertação. Escola é mais
nesas, negras... Que dimensões me- do que escola na pedagogia dos movi-
recem destaque? Primeiro, é preciso mentos. Ocupemos o latifúndio do co-
partir do reconhecimento de que os nhecimento como mais uma das terras,
sujeitos da ação educativa, educado- como mais um dos territórios negados.
res e educandos(as), desde crianças, e A escola, a universidade e os cursos
suas famílias e comunidades, padecem de formação de professores do cam-

561
Dicionário da Educação do Campo

po, indígenas, quilombolas são mais tam o território dos currículos nas esco-
outros territórios de luta e de ocupa- las do campo e nos cursos de formação e
ção por direitos. A negação, a precari- de licenciatura.
zação da escola, é equacionada como
uma expressão da segregação-opressão
histórica da relação entre classes. Já a
Disputar a presença
escola repolitizada é mais um territó- dos sujeitos
rio de luta e ocupação, de libertação da
Não apenas as experiências da
opressão. A Pedagogia do Oprimido é
opressão-libertação estão ausentes nos
radicalizada na pedagogia escolar pelas
currículos, mas, sobretudo, os seus su-
lutas dos movimentos por educação do
jeitos. Destacamos que a Pedagogia do
campo no campo, por escola do campo Oprimido é uma pedagogia de sujeitos,
no campo. de coletivos e de suas vivências so-
ciais, políticas, culturais, humanizado-
Disputar os currículos ras. Os sujeitos têm estado ausentes
nos processos de educação escolar ou
É impor tante dar centralidade, são vistos como passivos, contas ban-
nos currículos das escolas do campo, cárias. Como reconhecê-los ativos, re-
às experiências de opressão e, sobre- sistentes sujeitos de formação? Os mo-
tudo, de resistência que professores e vimentos sociais apontam a direção.
educandos carregam para as escolas;; Desconstroem a representação social
trazer as experiências sociais, coletivas, dos povos do campo como passivos,
assim como dar centralidade à história acomodados, pacientes, e os afirmam
de expropriação dos territórios, das resistentes, construtores de outro pro-
teorias, da destruição da agricultura jeto de sociedade e de campo, e de ou-
camponesa;; trazer para os currículos as tros saberes e valores desde crianças e
persistentes formas de resistência, de porque participando em ações coletivas
afirmação e de libertação dos povos e em movimentos de libertação.
do campo de que os próprios edu- Que a escola e o conjunto de ações
cadores e educandos participam – formadoras privilegiem o direito dos
experiências de formação-humaniza- oprimidos a saberem-se sujeitos de li-
ção, de recuperação da humanidade bertação da opressão e de recuperação
roubada, ausentes nos currículos oficiais de sua humanidade roubada, a sabe-
e no material didático, mas que dispu- rem-se sujeitos de humanização.

Para saber mais


ARROYO, M. As matrizes pedagógicas da Educação do Campo na perspectiva da
luta de classes. In: MIRANDA, S. G.; SCHWENDLER, S. F. (org.). Educação do Campo em
movimento. Curitiba: UFPR, 2011. V. 1.
CALDART, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Petrópolis: Vozes, 2000.
F ANON , F. Los condenados de la tierra. México, D. F.: Fondo de Cultura
Económica, 1965.

562
Pedagogia Socialista

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.


STRECK, D.; RODIN, E.; ZITKOSKI, J. (org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.

PEDAGOGIA SOCIALISTA
Maria Ciavatta
Roberta Lobo

A elaboração teórica e prática po da esquerda – a experiência da


de uma pedagogia socialista sempre pedagogia socialista russa e a da pe-
esteve organicamente vinculada às dagogia socialista cubana –, e duas
experiências de luta social e política, experiências silenciadas – a pedagogia so-
demarcando concepções diferencia- cialista mexicana e a pedagogia liber-
das de formação humana ante a con- tária espanhola.
cepção hegemônica do capital, que im-
põe aos homens a forma mercadoria A pedagogia socialista russa
como marco de construção da sua sub-
jetividade e materialidade histórica. Há que se levar em conta a rela-
Portanto, tratar de uma pedago- ção dialética entre a consciência e o
gia socialista, mais do que se ater a modo de produzir a vida, fundamental
princípios metafísicos, é dimensionar para a realização dos objetivos revolu-
dialeticamente as experiências concre- cionários. Não foi diferente na revo-
tas de formação humana no bojo dos
processos revolucionários, das orga-
lução socialista russa, que teve muitos
embates para implantar a “nova socie-
P
nizações políticas e dos movimentos dade” e contou com pedagogos apai-
sociais que apontaram, ao longo do sé- xonados pelos ideais da “educação
culo XX, para processos de formação do futuro” – a educação do “homem
humana nos quaisn o homem é a medida novo” que deveria crescer com a so-
de todas as coisas.1 Mesmo mantendo a ciedade comunista.
potência deste velho ensinamento pré- A Revolução Russa foi a culmi-
socrático e lançando esperança para nância de um projeto iniciado com a
tempos futuros, tais experiências são contradição histórica da primeira revo-
atravessadas por contradições, limites lução socialista, que teve lugar, não no
e deformações. Portanto, será na dinâ- mais avançado país capitalista, mas em
mica contraditória das experiências do um país atrasado onde as forças pro-
que podemos identificar como pedagogia dutivas e a estrutura da sociedade eram
socialista que focaremos nosso olhar. ainda semifeudais. Um país onde não
A escolha do recorte histórico se havia ensino formal para a maioria dos
dará na seguinte direção: as duas ex- operários e dos camponeses, ao me-
periências mais conhecidas no cam- nos três quartos da população eram

563
Dicionário da Educação do Campo

analfabetos, os professores não esta- res das escolas elementares (Castles e


vam capacitados, tinham baixos salários Wüstenberg, 1982, p. 66-69).
e baixa posição social e a Igreja Ortodo- Além disso, o Estado assumiria as
xa dirigia a maioria das escolas (Castles escolas privadas e confessionais. Have-
e Wüstenberg, 1982, p. 66-69). ria, entre outras medidas, “separação
Neste breve texto, vamos nos de- entre Estado e Igreja e entre Igreja e es-
ter apenas na primeira etapa da cons- cola”, “transformação de todas as
trução de um sistema educacional escolas em escolas unitárias de traba-
socialista (1917 a 1931), período tido lho”, cuja estrutura fixava duas etapas:
como balizador da educação preten- dos 8 aos 13 anos (cinco anos de estu-
dida pelos pedagogos revolucioná- do);; e dos 13 aos 17 anos (mais quatro
rios, sendo alguns de seus expoentes anos);; e jardim de infância vinculado
Schulgin, Kr upskaia, Lunacharsky, às escolas para crianças de 5 a 7 anos.
Pistrak e Makarenko. O trabalho produtivo combinado com
Com a ascensão de Stalin em 1931, a aprendizagem escolar era um ele-
há mudanças substantivas de direção mento essencial desse tipo de escola –
política que põem em confronto uma objetivo que foi muito reduzido e
concepção de Estado e de seu pa- distorcido posteriormente, na União
pel na organização da sociedade e da Soviética e na Europa Ocidental (Castles
educação diferente da que defendiam e Wüstenberg, 1982, p. 73-74).
os primeiros pedagogos para a educa- Para Krupskaia, o princípio do tra-
ção socialista. balho deve ser educativo e gratificante,
e ele deve ser levado a cabo sem efei-
Schulgin, Krupskaia e Lunacharsky tos coercitivos sobre a personalida-
de da criança e organizado de forma
No primeiro governo revolucio- social e planejada, para que a criança
nário, a tarefa de Krupskaia foi a de desenvolva uma disciplina interna sem
projetar um novo sistema educativo. a qual o trabalho coletivo planejado ra-
Lunacharsky tinha a responsabilidade cionalmente seria impensável (Castles
da administração de todos os tipos de e Wüstenberg, 1982, p. 73-74). Ela e
educação. A população foi informada Lunacharsky enfatizavam que a edu-
sobre as mudanças pretendidas: educa- cação socialista não era somente uma
ção geral, livre e obrigatória para todas questão de conteúdos de ensino, mas
as crianças e cursos especiais para os também de seus métodos. Rejeitavam
adultos;; escola secular, unitária com di- a escola livresca e exigiam que as crian-
ferentes níveis, para todos os cidadãos;; ças aprendessem tomando parte no
apoio para o movimento educativo e trabalho e na vida social. Defendiam o
cultural das massas trabalhadoras, assim método complexo, segundo o qual os pro-
como para organizações de soldados fessores não deviam ensinar de acordo
e operários;; os professores deveriam com um programa rígido, por matérias
cooperar com outros grupos sociais e acadêmicas. Em vez disso, deveriam
seriam tomadas medidas imediatas em tomar como ponto de partida os pro-
relação à “miserável situação material” blemas das crianças, da produção lo-
dos mais pobres, os mais importantes cal e da vida cotidiana e examiná-los,
trabalhadores culturais e os professo- simultaneamente, à luz das várias dis-

564
Pedagogia Socialista

ciplinas (Castles e Wüstenberg, 1982, e a Comuna Dzerzinski (1927-1935).


p. 74-75). Sua inserção no projeto educacional
Seu método sofreu oposição do da Revolução ocorreu no momento em
grupo Petrogrado de Educadores, lide- que o Estado soviético proporcionou
rado por Blonsky, que aceitava a escola todas as condições para a educação,
unitária de trabalho, mas queria que se inclusive com a redução do horário de
mantivessem a divisão entre as maté- trabalho em duas horas para todos os
rias, a forma de ensino sistematizada, que estudavam. Além disso, “era per-
um programa de estudos definido e a mitido aproveitar as Casas do Povo,
diferenciação em diversos ramos do igrejas, clubes, casas particulares e lo-
conhecimento no oitavo e no nono ano cais adequados nas fábricas, empresas
(Castles e Wüstenberg, 1982, p. 75). e repartições públicas para dar aulas”
(Capriles, 1989, p. 30-31).
Pistrak
A pedagogia socialista da
“A ideia básica de uma nova socie- Revolução Cubana
dade que realizaria a fraternidade e a
igualdade, o fim da alienação, era uma A história da Revolução Cubana
imensa esperança coletiva que tomou deve ser vista no contexto do continen-
conta da sociedade soviética entre 1918 te latino-americano. Cuba era um país
e 1929” (Tragtenberg, 1981, p. 8-9). secularmente dominado pela explora-
Pistrak era um dos grandes educadores ção colonialista, caracterizada pela pre-
desse ideário pedagógico dos primeiros sença de ditaduras, gangsters, policiais,
tempos da Revolução. Ele tinha uma militares neocoloniais, conservado-
visão educacional em sintonia com res escravistas, falsos reformistas. Os
a ascensão das massas na Revolução, “a povos da América Latina tiveram no
qual exigia a formação de homens vin- movimento cubano um exemplo de
culados ao presente, desalienados, mais
preocupados em criar o futuro do que
luta de libertação vitoriosa e de con-
tinuidade na tentativa de implantar P
em cultuar o passado, e cuja busca do o ideário socialista.
bem comum superasse o individualis- Antes da Revolução Cubana, fra-
mo e o egoísmo” (ibid., p. 8). cassaram todos os projetos de refor-
Em 1824, com o coletivo de sua mas e investidas nacionalistas. Porém,
escola-comuna, Pistrak publicou o livro desde os anos 1920, o país contava
Fundamentos da Escola do Trabalho (2000), com “um dos partidos comunistas mais
talvez o mais completo e importante combativos e melhor armados ideolo-
documento sobre sua experiência. gicamente para a luta de libertação e a
luta operária” (Casanova, 1987, p. 187).
Trabalhadores assalariados, operários
Makarenko industriais e camponeses eram uma
Seu trabalho iniciou-se em 1920, força potencialmente socialista. Ho-
quando passou a dirigir duas institui- mens “morais e valentes” – tais como
ções educacionais “correcionais” para José Martí e Céspedes, e os mais novos,
crianças e adolescentes abandonados: Fidel Castro, Carlos Rafael Rodríguez e
a Colônia Maxim Gorki (1920-1928) outros – começaram uma nova história

565
Dicionário da Educação do Campo

apoiada em três linhas de conduta: de- sociedade e contando com o desloca-


mocrática, humanista e comunista. mento de jovens e maestros (professo-
Fidel Castro e seus companhei- res) de outros países da América Latina
ros haviam estudado o marxismo e o para alfabetizar onde houvesse analfa-
leninismo, e sabiam “que a revolução betos, nos lugares mais distantes do
devia contar com as massas e estas país (Murillo et al., 1995;; Rossi, 1981a;;
precisavam estar conscientes – como Bissio, 1985).
ator coletivo – dos requisitos do su- Outro princípio é a combinação estu-
cesso” (Casanova, 1987, p. 188-189). O do e trabalho, que tem profundas raízes
grupo que tomou de assalto o Quar- no ideário pedagógico de José Martí.
tel de Moncada e o grupo que saiu do Consiste em vincular “a teoria com a
México de barco, no Granma, em 1956, prática, a escola com a vida e o ensino
ligaram-se ao “setor mais atrasado e com a produção” (Cuba, 1993, p. 13),
combativo”: os camponeses da serra, o trabalho manual com o trabalho in-
que queriam terras. telectual e “a fusão destas atividades
na obra educacional da escola” (ibid.).
O desenvolvimento da luta na Destaca-se também a necessidade de
serra, da luta de guerrilhas, não uma nova formação humana para a
foi feito apenas na serra, nem edificação da sociedade socialista.
só com armas. O grupo rebelde Pelo princípio da participação de toda
repartiu terra enquanto comba- a sociedade nas tarefas da educação do povo,
tia, fundou escolas e hospitais, reconhece-se a sociedade como uma
praticou uma educação política grande escola. Outros princípios são
e militar dos camponeses com- a coeducação e a gratuidade, com um
batentes e de seus próprios qua- amplo sistema de bolsas para estu-
dros. (Casanova, 1987, p. 190) dantes e condições especiais para os
trabalhadores visando à universaliza-
A educação das massas foi uma das ção do ensino. Não obstante a pressão
metas principais da Revolução Cubana internacional, e, particularmente, o
desde o seu início, em 1959. Um dos bloqueio econômico e político con-
seus princípios norteadores é o cará- duzido pelos Estados Unidos, Cuba
ter massivo da educação, ou “a educação tem, até hoje, os mais altos índices
como um direito e um dever de todos é uma de universalização e qualidade da
realidade em Cuba” (Cuba, 1993, p. 12;; educação em todos os níveis, índices
grifo nosso), o que significa a educação que são comparáveis aos dos países
para crianças, jovens e adultos, em to- ricos capitalistas.
das as idades, sexo, grupos étnicos, re-
ligiosos, por local de residência ou por A pedagogia socialista
limitações físicas ou mentais, de modo no México
a alcançar a universalização do ensino
primário inicialmente e, progressiva- Existe um forte movimento da
mente, o ensino secundário (ibid.). A educação no México que tem suas ori-
nova educação teve início com uma gens no processo da Revolução Mexi-
ampla campanha de alfabetização, logo cana (1910-1917). A partir da década
após a Revolução, envolvendo toda a de 1920, iniciou-se um movimento

566
Pedagogia Socialista

do Estado e de toda a sociedade a fim converteu no núcleo dirigente do Mo-


de garantir o direito à educação para vimiento de Unidad y Lucha Popular
uma população constituída por 84% de (Mulp) e tornou-se, nos anos 1990,
analfabetos. Era tarefa dos educadores uma das maiores organizações políti-
chegar às comunidades do campo, às cas do México, e cujo objetivo princi-
aldeias mais distantes, às minas, às co- pal era a integração dos movimentos e
munidades indígenas, às fábricas, mul- das organizações sociais, bem como a
tiplicando as escuelas normales rurales de construção do poder popular. Possuía
formação de professores, bem como as como referência teórica o marxismo,
escolas agrícolas e industriais. Esse foi mantendo uma forte base social no
um movimento intenso que atingiu a movimento de maestros. Estendeu sua
Constituição Mexicana de 1934, insti- influência aos movimentos estudantil,
tuindo, por meio do artigo terceiro, a campesino, indígena, operário e po-
implantação da educação socialista. pular. Entre os anos 2003 e 2004, só
A educação socialista no México no estado de Michoacán, existiam 300
mantinha a referência com os princípios maestros liberados do trabalho como pro-
da solidariedade, do trabalho e da re- fessores nas escolas (ou seja, militantes
lação direta com a comunidade, porém “profissionalizados”), atuando em todo
nunca foi unanimidade no regime re- o território nacional, com o objetivo
volucionário. A dificuldade de defini- de fortalecer e organizar os movimen-
ção e a interpretação equivocada do tos sociais. Em 2003, o movimento dos
conceito de educação socialista impe- maestros de Michoacán realizou um tra-
diu um projeto nacional de educação. balho de organização dos camponeses
Como consequência, o desempenho e indígenas, criando a Organización
dos maestros não seguia uma diretriz ou Magisterial, Campesina e Indígena de
orientação geral. Assim, cada maestro Michoacán. A relação escola, comuni-
(principalmente os das escolas rurais) dade, trabalho e luta social é a base da
filosofia e da práxis educativa do mo-
atuava de acordo com a sua interpreta-
ção pessoal. Na década de 1950, surgiu vimento social dos maestros, que além P
um grupo de professores que, influen- dos clássicos do pensamento marxista,
ciados pela Revolução de 1910, e pe- possui forte influência de Paulo Freire,
los principais pensadores socialistas da consolidando, na primeira década do sé-
época, fundaram o Movimiento Revo- culo XXI, a implementação das escolas
lucionario de los Maestros (MRM). integrais experimentais nos estados de
Michoacán e Oaxaca.
O MRM atravessou momentos de
fluxo e refluxo, até desaparecer. Porém
muitos de seus dirigentes permanece- A pedagogia libertária
ram atuando politicamente e ajudando na Espanha
a construir outros movimentos sociais
fora da categoria. Dentro da categoria, A educação libertária remonta a
estes dirigentes dos anos 1950 conse- uma tradição pouco tratada nos com-
guiram formar uma nova geração de pêndios da história da educação. Nela
maestros combativos. No final da década evocam-se autores como Rousseau,
de 1980, surgiu o Movimiento Demo- Charles Fourier, Proudhon, Pelloutier,
crático Magisterial (MDM). O MDM se Paul Robin, Ferrer i Guardia, Élisée

567
Dicionário da Educação do Campo

Reclus, Sébastien Faure, Puig Elias. A dos, reconhecendo que eles não per-
construção do socialismo na liberdade, tencem ao Estado, a Deus, à família ou
a atitude ativa e livre em espaços libera- às organizações políticas, mas apenas a
dos de coações, um modo educativo na si mesmos.2
liberdade das paixões e dos desejos, o Aliado ao princípio de uma educa-
fazer-se livre, a educação pela liberdade e ção antiautoritária, encontra-se o prin-
a liberdade pela educação são as bases cípio da integralidade, também comum
do processo formativo do ser humano aos marxistas e aos liberais progressis-
segundo esta tradição. Sendo o pro- tas. Tal princípio estava associado a três
cesso educativo na liberdade um per- dimensões: a dimensão do desenvolvi-
manente pôr-se em ato, não há uma
mento pleno da criança;; a dimensão da
crença no método como garantia infalí-
divisão social do trabalho com base na
vel, daí seu caráter experimental confor-
autogestão e da negação da reprodu-
me as circunstâncias sociais e o contexto
ção do domínio das classes sociais por
histórico. Neste sentido, as teorizações
possuem como referência práticas edu- meio da separação entre trabalho manual
cativas difusas, ricas e contraditórias, e intelectual;; e a dimensão da integra-
como base nos princípios de um ensino ção da vida social nas atividades e re-
antiautoritário, integral, solidário e au- flexões dos educandos. Como base dos
togestionário (Moriyón, 1989a). princípios e das relações libertárias, es-
tão a solidariedade e o apoio mútuo, que
Uma educação antiautoritária, con-
fortalecem não apenas um projeto de
tudo, não está isenta de dilemas no que
educação, mas um projeto societário.
diz respeito à relação existente entre
liberdade e autoridade na formação No caso da Espanha, o educar na li-
das crianças e jovens. Deve-se deixar berdade estava mais marcado pelo edu-
a criança desenvolver seus interesses car no espírito da ciência, libertando
próprios e suas opções sociais sem in- as crianças do dogmatismo da Igreja
terferência ou incentivar nela o espírito Católica e dos preconceitos que anulam
de rebelião, de crítica ao mundo social- o real desenvolvimento da criatividade
mente injusto? Deixar a própria crian- e da autonomia do pensar e do agir no
ça escolher seus horários, bem como o mundo. Francisco Ferrer i Guardia foi
estudo de conteúdos ou intervir deter- o primeiro pedagogo que de fato en-
minando minimamente os conteúdos a frentou o domínio da Igreja Católica na
partir da experiência social e de uma Espanha, baseando-se na seguinte con-
autogestão escolar? Não há como for- cepção: formar individualidades livres
çar ninguém a ser confiante em suas capazes de dispensar líderes, padres,
escolhas ou ser solidário e amável com leis, a força da Igreja, do governo e do
os outros. Resolver os problemas da poder do Estado;; educação artística,
educação através de coações resulta intelectual e moral, conhecimento de
no ocultamento dos mesmos, bem como tudo que nos rodeia, conhecimento
num processo repetitivo de submissão das ciências e das artes, sentimento do
incondicional dos educandos, acos- belo, do verdadeiro e do real, desenvol-
tumando-os a serem constantemente vimento e compreensão sem esforço e
persuadidos. É preciso, então, deixar por iniciativa própria (Moriyón, 1989b,
que a organização escolar surja espon- p. 20). Em outubro de 1901, fundou
taneamente dos interesses dos educan- em Barcelona a Escola Moderna, tendo

568
Pedagogia Socialista

como anseio a busca de uma educação anos de 1910 e 1930, são fundadas de-
livre, cooperativa, solidária, uma expe- zenas de escolas modernas no Brasil,
riência de crítica radical da organização assim como universidades populares,
educativa estatal. centros de estudos sociais e biblio-
tecas sociais tendo como referência
os princípios da educação libertária
A influência da pedagogia divulgada pela experiência do educa-
libertária no Brasil dor espanhol.
No Brasil, a formação das escolas Cumpre ressaltar que o movimento
operárias adere à concepção da es- da educação libertária vai ganhar intensa
cola moderna. No ano de 1903, cria- força social no contexto da Guerra Civil
se, no Rio Grande do Sul, a Escola Espanhola. A própria Confederação
Libertária Germinal, que seguia o mé- Nacional do Trabalho (CNT) espanho-
todo da Escola Moderna de Barcelona. la estimulou, a partir das coletivizações
No mesmo ano, em Campinas, a Liga libertárias, a criação de centros de liber-
Operária funda a Escola Livre para os tação profissional agrícola e industrial,
filhos dos trabalhadores. No ano de e de escolas de agricultores como meio
1904, em Santos, a União dos Operá- para se organizar a renovación campesina.
rios Alfaiates funda a Escola Socieda- Como expressão desta concepção, a Fe-
de Internacional. No Rio de Janeiro, deração Nacional de Coletividades pro-
no mesmo ano, nasce a Universidade jetou a criação de escolas de formação
Popular, organizada por um grupo de agrária e a Federação Regional de Cam-
intelectuais e militantes anarquistas, poneses de Levante fundou a Universi-
dentre eles, o médico Fábio Luz. Com dade Agrícola, voltada para estudos da
o fuzilamento de Ferrer i Guardia vida do campo (Bernal, 2006).
em 1909, nasce em São Paulo e no Podemos afirmar que no Brasil há
Rio de Janeiro a Comissão Pró-Escola uma lacuna no que diz respeito ao co-
Moderna. As escolas operárias já eram
uma realidade quando da notícia do
nhecimento acerca das experiências de
educação libertária. Existe um movi- P
fuzilamento de Ferrer, mas tal crime mento recente nas áreas da filosofia e
imprimiu maior velocidade à fundação da educação em busca da socialização
de novas escolas. Em 1910, funda-se deste conhecimento, mas ainda é ne-
em Santos a Liga do Livre Pensamen- cessário ampliar a pesquisa, bem como
to e, em São Paulo, o Círculo de Estu- socializar estes conhecimentos no cam-
dos Sociais Francisco Ferrer. Entre os po da militância social.

Notas
1
Protágoras (século V a.C.) “é um dos filósofos [gregos] preocupado não com as cosmo-
gonias e sistemas, mas com a introdução de um certo humanismo na filosofia” (Japiassú e
Marcondes, 1996, p. 223).
2
Em diferentes momentos da história da educação esta problemática é abordada. Na Es-
cola Rural de Yasnaia Poliana, criada por Tolstoi em 1859 (apesar de não ser anarquis-
ta, seus conceitos coincidiam com a tradição pedagógica anarquista), nada era obrigató-
rio, nem horários, nem assistência às aulas, nem programas, nem normas disciplinares.

569
Dicionário da Educação do Campo

Outra referência neste sentido foi o movimento pedagógico das comunidades escolares de
Hamburgo durante a República de Weimar (1919-1933). Esta polêmica também foi intensa
na Espanha da primeira década do século XX, expressa nas personalidades de Francisco
Ferrer i Guàrdia e Ricardo Mella.

Para saber mais


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P
P
POLÍTICA EDUCACIONAL
E EDUCAÇÃO DO CAMPO
Celi Zulke Tafarel
Mônica Castagna Molina

O campo de estudos da área de po- tado brasileiro na elaboração dos pla-


lítica educacional pode ser compreendi- nos educacionais em diferentes perío-
do como aquele que analisa os interes- dos de história, com a perspectiva de
ses sociais e econômicos que se fazem localizarmos a inserção, nesta agenda,
presentes nos programas e ações go- das políticas de Educação do Campo
vernamentais no âmbito da educação. e dos interesses que representa.
A partir deste entendimento, o objeti- Precede a definição de política
vo deste verbete é fazer uma rápida re- educacional a compreensão de como
cuperação dos interesses hegemônicos nos tornamos seres humanos e como,
que fundamentaram a atuação do Es- ao longo da história da humanidade,

571
Dicionário da Educação do Campo

organizamos o modo de produção e cando em normas e leis que configu-


reprodução da vida. raram, na superestrutura da socieda-
Para manter-se em pé e criar as de, aquilo que constitui a sua base na
condições de sua existência, a matéria, infraestrutura, ou seja, nas relações de
no tempo, no espaço, em movimento, produção material da vida humana.
sujeita a leis do desenvolvimento, deu Esta superestrutura se expressa em
saltos qualitativos e quantitativos. Não um aparato jurídico, a partir de iniciati-
nascemos seres humanos;; nós nos vas do Poder Executivo e do Legislati-
tornamos seres humanos ao longo da vo, devidamente aprovado pelo Poder
existência da matéria. Judiciário. Impõe, assim, o contraditó-
O que somos depende das condi- rio: o poder da minoria, pela vontade
ções objetivas da existência, ou seja, de da maioria. A isto denominamos de-
leis sociais históricas, para além das leis mocracia – a vontade do povo. As leis
biológicas, químicas, físicas. seriam a vontade da maioria, a vonta-
de do povo. A “democracia”, a “von-
Construímo-nos como seres huma-
tade do povo”, em uma sociedade de
nos em relações interpessoais e intrap-
classes em franca decomposição e
síquicas. Ou seja, nossas funções psico-
degeneração, está sujeita à correlação
lógicas superiores, que nos permitem
de forças decorrentes do poder da clas-
conhecer – constatar, compreender, ex-
se dominante, de um lado, e do poder da
plicar, agir no meio, transformando-o –,
classe trabalhadora, de outro.
dependem de nossas aprendizagens.
O nosso desenvolvimento depende de As leis são asseguradas pelos apara-
nossas aprendizagens. O ato de conhe- tos legais, institucionais, ou, então, por
cer não é dado ao ser humano, e sim aparatos que se imponham mediante
aprendido em suas relações sociais, que rebeliões ou insurreições, coerção ou
dependem da materialidade de condi- cooptação à vontade de uns (classe
ções concretas objetivas de vida. dominante) da vontade de outros (clas-
se trabalhadora).
Portanto, é na relação com os seres
humanos, com a natureza em geral, que As leis definidas e asseguradas nos
os homens, pelo trabalho, constroem a aparatos legais próprios de cada modo
sua cultura e tornam-se seres humanos. de produção podem ser identificadas
pelo seu âmbito de abrangência tem-
É pela produção e reprodução das con-
poral. Leis que perpassam governos
dições de existência que nos tornamos
dizem respeito à política de Estado –
seres humanos.
por exemplo, a Constituição Nacional,
Das primitivas sociedades organi- a lei maior, e as leis que dela decorrem,
zadas em clãs à atual complexa organiza- como a Lei de Diretrizes e Bases da
ção dos países imperialistas hegemôni- Educação Nacional (LDB). Leis que
cos – que impõem, aos demais países, perduram somente durante um ou dois
por meio de acordos internacionais, mandatos de governo e são interrom-
sejam eles políticos, econômicos e de pidas, revogadas, dizem respeito às
guerra, as relações baseadas na divisão políticas de governo. Essa é uma das
internacional do trabalho –, o poder características da política governamen-
de decidir os rumos dos assuntos de tal no capitalismo: ela não perdura o
interesse de todos foi se complexifi- suficiente para garantir o ponto de re-

572
Política Educacional e Educação do Campo

versibilidade, ou seja, o ponto em que Em cada período histórico, por-


o avanço não permite mais o retroces- tanto, o rumo dos assuntos de interes-
so, com o que se superararia o está- se público é definido pela correla-
gio inferior e se atingiria um patamar ção de forças existente. Desta correlação
superior da política. São estes os tra- resultam projetos, programas, decre-
ços básicos da política compensatória, tos e leis que configuram a política de
focal própria do neoliberalismo para Estado e/ou de governos. Ou seja, a
aliviar a pobreza e jamais para superar política que perpassa governos e se ins-
o modo de produção capitalista, que titui como a lei maior, ou a política de
tem na propriedade privada, no Estado governo que são leis menores, que não
burguês e nos valores individualistas e podem contrariar a lei maior, mas so-
egoístas da família burguesa seus pilares mente executá-la, complementá-la.
centrais de sustentação. O Brasil, até o
As políticas de Estado e de gover-
momento, não atingiu a supremacia e
nos determinam, em primeira ou se-
soberania no campo educacional para
gunda instâncias, as condições de vida
superar o modo de o capital organizar
na sociedade. Em última instância, o
a produção e a reprodução da vida. So-
que determina a política são o desen-
mos um país de educação dependente
volvimento das forças produtivas e as
dos países imperialistas. Nossos planos
relações de produção: a relação entre
educacionais continuam vindo de fora.
os homens, a natureza, a produção dos
Em cada período histórico, de acor- bens materiais e imateriais, e o sistema
do com o modo de produção e repro- de trocas daí decorrente.
dução da vida, configurou-se o poder
entre classes sociais, e configuraram-se Da necessidade de assegurar, de
os planos educacionais. Isto pode ser uma geração a outra, o conhecimen-
constatado, na história da humanidade, to que configura este acervo de bens
por exemplo, no período comunal, na culturais materiais e imateriais, sem o
organização das tribos;; no período es- que a humanidade pereceria, é que se
cravocrata, na dominação dos mais be-
licosos sobre as propriedades, os bens
configura a exigência da educação, que
assume, em cada modo de produção,
P
e os seres humanos;; no período feudal, características próprias. Podemos verifi-
na dominação dos senhores feudais – car esta lei geral da história traçando o
com seus exércitos, feudos e servos – percurso da educação no Brasil de 1500
sobre outros senhores, propriedades até hoje, analisando, pelos fatos históri-
e servos;; e no período capitalista, na cos, os rumos da política educacional.
organização do Estado moderno, com Assim, a política educacional brasileira
seus poderes – Executivo, Legislativo pode ser diferenciada em quatro perío-
e Judiciário – estruturados de acordo dos principais, de acordo com os mode-
com a correlação de forças existente. los econômicos predominantes.
Enfim, essa relação de poder se dá em No período da colonização, no qual as
cada período histórico, entre as classes relações econômicas eram escravocra-
que detêm os meios de produção e a tas, a terra, propriedade dos senhores,
classe que somente detém sua força era recebida por concessão dos im-
de trabalho, ou seja, a correlação de peradores e transmitida por heredita-
forças entre a classe dominante e a riedade. As leis maiores que governa-
classe trabalhadora. vam a educação no Brasil eram as leis

573
Dicionário da Educação do Campo

oriundas de Portugal, e nossa educa- estas leis são formuladas, aprovadas e


ção estava sujeita às determinações de implementadas. O novo plano para a
fora, da Corte portuguesa. As reformas educação brasileira vinha impregnado
educacionais do Brasil eram desdobra- do escolanovismo norte-americano;;
mentos das reformas educacionais em portanto, nossos planos, no que diz
Portugal, como o foi, por exemplo, a respeito à concepção pedagógica, con-
reforma educacional pombalina. As tinuavam vindo de fora do Brasil.
primeiras reformas estavam diretamen- Com o golpe militar, instala-se no
te relacionadas às reformas do país co- Brasil a ditadura que veio para conter
lonizador. Os planos para a educação as aspirações revolucionárias que avan-
no Brasil vinham de fora do Brasil. Os çavam em toda a América Latina. Para
primeiros educadores e as primeiras es- garantir as bases capitalistas de desen-
colas eram ligados à Igreja, e estavam volvimento do Brasil, a educação passa
intimamente relacionados com os inte- por reformas e selam-se pactos e acor-
resses dos senhores escravocratas. dos internacionais, principalmente com
No período da Proclamação da Repú- os Estados Unidos, que subordinavam
blica, com as contradições evidentes o Brasil às relações internacionais de
do modelo escravocrata (que se mos- produção. De um país agrícola, o Brasil
trava insuficiente para garantir o de- avançou para se consolidar como um
senvolvimento agrário e industrial), a país agroindustrial, exportador de
aprovação da Lei de Terras e das leis matéria-prima, dependente dos dita-
contra a escravatura, o rompimento do mes exteriores. Os planos educacionais
Brasil com Portugal, os avanços da re- continuavam vindo de fora do Brasil.
volução burguesa e com as aspirações Com a fim do regime militar e os
dos trabalhadores por igualdade, liber- avanços para a democratização, identi-
dade e fraternidade, avança a política ficam-se alterações na política educacio-
educacional, e promulga-se a primei- nal, decorrentes de pressões externas,
ra lei, decretada por d. Pedro I, sobre que visavam situar o Brasil dentro dos
a educação. ajustes internacionais dos interesses do
Com a República instalada e a in- grande capital. Trata-se do período da
dustrialização em curso, avança a orga- chamada abertura democrática. O capital
nização do Estado e, com ela, as aspi- internacional especulativo avança, rom-
rações a respeito da educação. Trata-se pendo fronteiras e internacionalizando-
do período do Estado Novo. Os pioneiros se, com a intensificação da privatização
da educação reivindicam a escola nova, dos meios de produção – a terra, os ins-
laica, pública, sob responsabilidade do trumentos, o conhecimento, a força de
Estado, surgindo as primeiras reivindi- trabalho do trabalhador.
cações de uma lei de diretrizes e bases A este projeto internacional corres-
da educação nacional em confronto ponde uma dada política educacional
com os interesses da burguesia – tudo que pode ser identificada nos embates e
isto relacionado a um projeto de nação, rumos que assumem as leis maiores do
defendido pelas elites, em confron- país – por exemplo, a Constituição
to com o projeto de nação defendido de 1988. Dela decorreram as leis sobre
pela classe trabalhadora. Este emba- a educação: LDB, o Plano Nacional
te vai aparecer nas instâncias em que de Educação (PNE), o Plano de De-

574
Política Educacional e Educação do Campo

senvolvimento da Educação (PDE), palmo a palmo, pelos recursos públi-


entre outras. As análises críticas sobre cos, travadas entre os que defendem a
as políticas educacionais demonstram educação pública e os que defendem os
que os planos continuam vindo de fora interesses privados.
do Brasil. Este processo pode ser caracterizado,
Portanto, os rumos da educação de na atualidade, na disputa travada em
um país, considerando o modo de pro- defesa da Educação do Campo, que diz
dução capitalista – baseado na proprie- respeito aos interesses da classe traba-
dade privada, na superexploração dos lhadora organizada no campo, e contra
assalariados e dos trabalhadores em ge- os interesses do agronegócio, gerido
ral, e no Estado burguês (que concen- pelo capital nacional e internacional.
tra o poder a seu favor e nos valores Em contraponto a este movimento
da família burguesa) –, dependem da das frações da burguesia local, também
correlação de forças instituída em cada agem os movimentos sociais do campo,
momento histórico. que disputam a construção de políticas
A atual fase do imperialismo impõe públicas, mas numa outra lógica. Sua
às nações seus ajustes, acordos e proje- perspectiva é garantir os direitos sociais
tos, como o projeto de mundialização a todos os camponeses, especialmente
da educação. Este projeto pode ser veri- os direitos à educação. Para isso, exigem
ficado, segundo Santos (2011), pela ba- não qualquer política, mas uma política
se epistemológica relativista e pelo viés diferenciada na forma e no conteúdo,
pedagógico escolanovista. Além disso, definida com sua presença e participa-
pode ser reconhecido pela compre- ção. O protagonismo que os movimen-
ensão do papel do Estado – mínimo tos sociais de trabalhadores rurais vêm
para o social e máximo para o capital – tendo na última década para a promo-
e pela compreensão da função social ção do avanço da consciência do direito
da escola – formar trabalhadores com à educação tem forçado o Estado brasi-
competências voltadas para atender o
mercado de trabalho capitalista, educa-
leiro a conceber e implementar políticas
de Educação do Campo. P
dos para o consenso. E tal objetivo dos movimentos so-
As evidências de tal projeto tam- ciais, principalmente na primeira déca-
bém podem ser constatadas no embate da do movimento da Educação do
entre o público e o privado na educa- Campo, materializou-se. Materializou-
ção brasileira. Podem ser observadas se na disputa contra a hegemonia, em
nas leis e medidas de governo que momentos nos quais o movimento so-
desresponsabilizam o Estado de suas cial, com base no acúmulo de forças
atribuições com a educação, precari- conquistadas, soube aproveitar a cor-
zam o trabalho e flexibilizam direitos relação de forças existente, disputando
dos trabalhadores da educação, transfe- frações do Estado a serviço da classe
rem recursos públicos para a iniciativa trabalhadora. As políticas conquistadas
privada, e permitem, assim, a apropria- foram importantes: PROGRAMA NACIO-
ção de fundos públicos, destruindo o NAL DE EDUCAÇÃO NA REFORMA AGRÁ-
patrimônio dos trabalhadores, expresso RIA (PRONERA), RESIDÊNCIA AGRÁRIA,
em suas instituições públicas. Podem LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAM-
ser constatadas, ainda, nas disputas, PO, entre outras, todas elas resultado de

575
Dicionário da Educação do Campo

longos processos de negociação e dis- Este conteúdo só é possível nestas


puta com o Estado. O grande diferen- políticas mediante a luta de classes, os
cial destas políticas reside não apenas confrontos e conflitos, e forte presença
na participação dos movimentos na sua dos sujeitos camponeses na sua elabo-
concepção e na sua proposta de execu- ração, o que, por sua vez, fez-se pos-
ção, mas, prioritariamente, nos objeti- sível também a partir de determinado
vos formativos que as conduzem. Ao contexto histórico.
contrário da concepção hegemônica No caso do Pronera, por exem-
nas práticas educativas atuais – orien- plo, sua conquista se deu no contexto
tadas para a inserção no mercado pura de acirramento da luta pela terra, na
e simplesmente, sem questionamentos transição dos mandatos de Fernando
da lógica que as conduz, maximizando Henrique Cardoso, após o Massacre de
infinitamente o individualismo, a com- Eldorado dos Carajás (abril de 1996),
petição e o consumismo de pessoas e a Marcha Nacional pela Reforma
de coisas –, a concepção de formação Agrária (abril de 1997) e a realização
contida nas políticas de Educação do I Encontro Nacional dos Educado-
Campo conquistadas necessariamen- res e Educadoras da Reforma Agrária
te parte da reflexão sobre o perfil de (Enera) (julho de 1998) – enfim, após
ser humano que se almeja formar com um conjunto de fatores que geraram
tais políticas: para qual campo e para uma maior sensibilização, mobilização
qual sociedade. Os valores embutidos e envolvimento da classe trabalhadora
nestas políticas contrapõem-se aos va- na defesa de seus direitos e na luta pe-
lores capitalistas, baseando-se no ideal las suas reivindicações, um acuamento
das coletividades, na solidariedade, do governo perante a sociedade e uma
na superação da propriedade privada, na necessidade de dar respostas políticas
construção de uma sociedade em que ao impacto da truculência do Estado
todos trabalhem, recusando a forma na no trato da questão agrária, tal como
qual uns vivem do trabalho de outros. fora a ação policial em Carajás.
Tanto o Pronera quanto a Residên- Exatamente pelas características que
cia Agrária e as licenciaturas em Educa- possuem estas políticas de Educação do
ção do Campo orientam as ações for- Campo tanto nos objetivos formativos
mativas nos cursos que se desenvolvem que contêm quanto no protagonismo dos
com base em uma perspectiva crítica de sujeitos com as quais estas se realizam,
educação, a qual não admite uma con- elas estão, durante toda sua realização,
cepção de educação apartada de um expostas às permanentes disputas em
projeto de ser humano e de sociedade torno do Estado e da apropriação dos
que se almeja construir. fundos públicos pelas classes dominan-
Como parte da intencionalidade tes, que sabem valer-se dos diferentes
dos seres humanos que querem contri- aparelhos para disputar esta hegemonia.
buir para formar o desenho destas po- Manter essas políticas em vigência
líticas, necessariamente se impõe como tem exigido muita luta da classe traba-
desafio contribuir para a superação lhadora, vigilância constante e resistên-
da lógica de subordinação dos cam- cia aos inúmeros ataques sofridos de
poneses ao mercado e à monocultura diferentes frentes: dos latifundiários,
do agronegócio. dos capitalistas monopolistas, do agro-

576
Política Educacional e Educação do Campo

negócio, da mídia capitalista e de seto- jetivos das elites dominantes e suas po-
res do Estado, com suas medidas contra líticas de Estado e de governos que ex-
os trabalhadores rurais e seus proje- ploram e alienam a classe trabalhadora da
tos no interior dos poderes Judiciário cidade e do campo. Como afirma Marx:
(tribunais de contas, ministérios pú-
blicos), Legislativo e Executivo, sejam Do ponto de vista político, Es-
eles municipais, estaduais ou federal. tado e organização da sociedade
Ao produzir alianças com setores não são duas coisas distintas. O
que defendem os interesses imediatos, Estado é a organização da socie-
mediatos e históricos da classe traba- dade. Donde concluímos que,
lhadora, como, por exemplo, setores para mudar o Estado, é preciso
das universidades públicas brasileiras, alterar as leis que regem a so-
para sua execução, estas três políticas, o ciedade. E estas leis não são na-
Pronera, a Residência Agrária e a Li- turais, mas sim, sócio-históricas,
cenciatura em Educação do Campo, ou seja, produzidas pelos seres
tornam-se ainda mais incômodas, pois, humanos, em especial a clas-
além da força dos movimentos sociais se trabalhadora, a quem cabe a
de luta no campo que a protagonizam, função de revolucionar a socie-
o envolvimento, de forma mais perma- dade e o Estado. (2010, p. 38)
nente, da juventude estudantil e de pro-
fessores e pesquisadores – intelectuais A luta dos trabalhadores do campo
orgânicos da classe trabalhadora, mili- em defesa de uma Educação do Campo
tantes culturais – com os camponeses e de uma política educacional emancipa-
permite alianças que alteram a correla- tória para o campo brasileiro é uma indi-
ção de forças. E esta combinação pode cação deste processo que está em curso –
produzir efeitos indesejáveis para os ob- com fluxos e refluxos, mas em curso.

Para saber mais P


AZEVEDO, J. M. L.; AGUIAR, M. A. Características e tendências dos estudos sobre
a política educacional no Brasil: um olhar a partir da Anped. Educação e Sociedade,
v. 22, n. 77, p. 49-70, dez. 2001.
FREITAG, B. Política educacional e indústria cultural. São Paulo: Cortez, 1987.
LEHRER, R. Para fazer frente ao apartheid educacional imposto pelo Banco
Mundial: notas para uma leitura da temática trabalho–educação. In: REUNIÃO
ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO
(ANPED), 22. Anais... Caxambu: Anped, 1999.
MARX, K. Glossas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”. De
um prussiano. In: ______;; ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo:
Boitempo, 2010.
NEVES, L. M. W. Educação e política no Brasil de hoje. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
SANTOS, C. F. dos. Relativismo e escolanovismo na formação do educador : uma análise
histórico-crítica da Licenciatura em Educação do Campo. 2011. Tese (Douto-

577
Dicionário da Educação do Campo

rado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia,


Salvador, 2011.´
WITTMANN, L. C.; GRACINDO, R. V. (org.). O estado da arte em política e gestão da educa-
ção no Brasil: 1991 a 1997. Brasília: Anpae;; Campinas: Autores Associados, 2001.

POLÍTICAS EDUCACIONAIS NEOLIBERAIS


E EDUCAÇÃO DO CAMPO
Roberto Leher
Vânia Cardoso da Motta

A expressão “políticas educacio- particularmente, a atuação da iniciati-


nais neoliberais” parece, à primeira va privada e, mais amplamente, do ca-
vista, um contrassenso. Afinal, se neo- pital na educação brasileira – e, a con-
liberal, não deveriam caber medidas do trapelo, as iniciativas dos trabalhadores
Estado para subordinar a educação ao em prol do caráter público da educação
mercado. Contudo, um exame mais sis- estatal, como é o caso da Educação do
temático da questão permite concluir Campo, é importante destacar, inicial-
que o neoliberalismo é, sobretudo, mente, que o neoliberalismo realmente
uma produção que tem muito de es- existente não possui uma conceituação
tatal;; por isso, a existência de políticas precisa e consolidada, pois as suas prá-
educacionais neoliberais é cabível e, na ticas não correspondem exatamente
perspectiva dominante, inevitável. Para às que a ideologia neoliberal propaga
compreender esse aparente paradoxo, como doutrina e princípios.
é importante submeter à crítica a au- Em Hayek (1998), a base do libera-
torrepresentação do neoliberalismo se- lismo anglo-saxão, o único que consi-
gundo os seus teóricos. dera genuíno, é a liberdade individual
O termo “neoliberalismo” é recen- dentro da lei. É esse princípio basilar
te, data do ano de 1945, e é utilizado, em que explica o progresso das nações
geral, para denotar a adesão à doutrina prósperas e bem-sucedidas. Para esse
liberal de tradição anglo-saxã que afir- expoente da Escola Austríaca de Eco-
ma ser a liberdade do indivíduo dentro nomia, a vertente racionalista e cons-
da lei a melhor forma de alcançar, por trutivista do liberalismo francês, ao
meio de métodos pragmáticos, a pros- contrário, deturpa o verdadeiro libera-
peridade e o progresso. O cerne dessa lismo, pois, ao preconizar medidas de
noção é a defesa do capitalismo de li- Estado para garantir certa igualda-
vre mercado. O Estado somente deve de social, seja por meio do sufrágio
intervir para restabelecer a livre con- universal seja pela concessão de alguns
corrência econômica e a iniciativa indi- direitos aos trabalhadores, instaura a
vidual. Para compreender o significado ditadura da maioria e configura um Es-
das políticas educacionais neoliberais – tado social hiperdimensionado, buro-

578
Políticas Educacionais Neoliberais e Educação do Campo

crático, custoso e ineficiente que acaba reduzisse, exclusivamente, à garantia


por produzir as crises do capitalismo. do mínimo de educação possível para
Desse modo, para o principal propa- os “perdedores”, aqueles que, seja por
gandista do neoliberalismo, é este o sua “natureza humana inferior”, seja
conceito central do liberalismo por algum outro infortúnio, sucumbi-
ram no mercado. Alternativamente, a
[...] sob a aplicação de regras educação em livre metabolismo com
universais de conduta justa, pro- o mercado seria a mais adequada, pois
tegendo um reconhecível do- ensinaria às crianças e aos jovens a vir-
mínio privado dos indivíduos, tude do individualismo e da ordem so-
formar-se-á uma ordem espon- cial competitiva.
tânea das atividades humanas
Contudo, em que pese o fato de en-
de muito maior complexidade do
contrarmos nessas proposições muito
que jamais se poderia produzir
da ideologia neoliberal praticada pelos
mediante arranjos deliberados
governos afins e pelas corporações
[...]. (Hayek, 1998, p. 49)
que atuam direta ou indiretamente na
educação – formar competências para
Eis aqui o fundamento da “mão
o mercado, flexibilização do controle
invisível” do mercado e da crença de
que é a ordem espontânea (o mercado estatal sobre a educação privada, indi-
autorregulável) que produz a sociedade vidualização do ato pedagógico, ava-
mais próspera e complexa. Na ordem de liação tecnocrática para estimular a
mercado, os cidadãos livres interagem competição entre as instituições educa-
naturalmente, sobressaindo-se os mais cionais por meio de rankings, prêmios
capazes, em geral os proprietários – e castigos, educação compensatória
os cidadãos ativos, para utilizar uma elementar (ler, contar e escrever) para
noção kantiana. Os demais, conside- os chamados pobres, associação dos
rados “cidadãos passivos” – mulheres objetivos educacionais com os da go-
e trabalhadores –, devem ser privados
de participação política e econômica
vernabilidade etc. –, é irrefutável que,
mesmo nas experiências neoliberais P
real. A ideologia liberal é refratária, mais ortodoxas, todos reivindicam al-
por conseguinte, ao universalismo e à gum papel do Estado na educação. De
conceituação dos seres humanos como fato, o fundo público é demandado
“seres humanos genéricos”, na qual to- permanentemente pelo setor privado
dos os que possuem um rosto huma- e pelas corporações. Quando a alta fi-
no devem ter igual cidadania política e nança passa a operar também no servi-
econômica. Em outros termos, o libe- ço educacional, a voracidade do capital
ralismo anglo-saxão, tal como definido sobre as verbas educacionais toma pro-
por Hayek, é incompatível com a de- porções ainda maiores, como é possí-
mocracia e com o igualitarismo. vel depreender de programas como o
Nos termos dessa doutrina, seria Fundo de Financiamento ao Estudante
de supor que as políticas neoliberais do Ensino Superior (Fies).
advogariam o afastamento radical do Sobre os nexos capital–Estado, é
Estado da educação, em benefício de preciso recusar a leitura não crítica da
um mercado autorregulável ou, pelo restrição do âmbito do Estado aos orga-
menos, que a atuação do Estado se nismos estatais centralizados que atuam

579
Dicionário da Educação do Campo

com servidores públicos, dirigentes go- A despeito dessa atuação difusa,


vernamentais, leis, normas etc. O capi- não institucionalizada, o capital, em
tal age de modo difuso, por meio de todas as suas expressões – institui-
pressões diretas e indiretas, como as em- ções financeiras, corporações, organi-
preendidas por organismos internacio- zações de diversos tipos etc. –, deseja
nais e agências financeiras que definem, manter relação com os governos para
mediante condicionalidades, o risco chegar ao coração do Estado (a cha-
país, os acordos das relações exteriores, mada área econômica), objetivando
as taxas cambiais, a política de juros, os criar normas que subordinem a edu-
incentivos fiscais etc. Parte relevante cação à lógica do capital. Ademais, é
desse modo de agir do capital é operada indubitável que os representantes do
diretamente pelas frações burguesas capital têm todo interesse em fortale-
locais que manejam o Estado. É isso o cer o papel educador do Estado (em
que explica a força relativa de iniciati- termos gramscianos, no sentido de
vas como o Movimento Compromisso levar aos “quatro cantos” a sua lógica),
de Todos pela Educação, o sujeito de em prol da coesão e do controle so-
maior relevância na definição da agenda ciais em um contexto de permanente
educacional no Brasil de hoje, ou dos “estado de exceção”, para utilizar uma
bancos e dos fundos de investimen- expressão benjaminiana.2 Dificilmen-
tos que estão redefinindo o setor priva- te os padrões de exploração do tra-
do mercantil de educação e até mesmo, balho e de expropriação dos meios
por meio de parcerias público-privadas, de trabalho e de direitos sociais pode-
a educação pública. riam ser manejados com “paz social” sem
De fato, a principal medida edu- esse protagonismo estatal, compreen-
cacional do Governo Lula da Silva, o dido aqui não apenas como sociedade
Plano de Desenvolvimento da Educa- política, mas como Estado integral, do
ção, expressa a agenda dos setores do- qual a sociedade civil é parte decisiva.
minantes, servindo de referência para Pelo exposto, é possível postular
que estados e municípios se lancem em que as políticas educacionais neolibe-
desenfreada corrida rumo às parcerias rais não podem ser confundidas com
público-privadas, principalmente com o livre mercado, pois elas são não
organizações que lideram o referido apenas compatíveis com determinado
Todos pela Educação – como Itaú- grau de ação estatal, como dificilmente
Social, Airton Senna, Gerdau, Roberto poderiam existir sem o Estado, como
Marinho, Vitor Civita, entre outras –, demonstrou de modo preciso Polanyi
mas também com empresas do agro- (2000). Essa proposição é fundamen-
negócio, que implementam, nas esco- tal para a compreensão do modo de
las públicas rurais, sua concepção de agir neoliberal. Porém, é igualmen-
educação e desenvolvimento sustentá- te indispensável não perder de vista que
vel. O referido movimento tem avan- a força determinativa do capital sobre a
çado na política de que já é hora de o educação não se resume ao Estado estri-
Estado abandonar suas escolas públi- to senso, pois o capital opera de modo
cas, ofertando-as à gestão privada, por difuso, mas eficaz, fora da organização
meio das escolas charters e da difusão estatal, como apontado anteriormen-
dos vouchers.1 te. A consequência dessa proposição é

580
Políticas Educacionais Neoliberais e Educação do Campo

que, ao contrário da crença comum, o público. Como já salientado, a Consti-


simples fato de o Estado empreender tuição admitiu o repasse de recursos
iniciativas no terreno da educação não públicos apenas para as instituições
assegura, a priori, o abandono de prin- (ditas) sem fins lucrativos (art. 213),
cípios neoliberais. não contemplando as particulares, pre-
Em relação às políticas estatais vistas no artigo 209. Entretanto, o capi-
congruentes com os valores e princí- tal tem a sua própria dinâmica e engen-
pios difundidos pelo neoliberalismo, dra, permanentemente, leis que lhe são
cabe destacar, no plano normativo convenientes. Por isso, não pode abrir
mais geral, as medidas que abrangem mão de assegurar governos permeáveis
as leis maiores, como a Constituição aos seus propósitos. Ao contrário da
Federal: “O ensino é livre à iniciati- crença vulgar do neoliberalismo, o mer-
va privada...” (art. 209);; “Os recursos cado é forjado por iniciativas estatais.
públicos serão destinados às escolas pú- O mercado de educação, evidentemen-
blicas, podendo ser dirigidos a escolas te, não é infinito: o ensino médio, por
comunitárias, confessionais ou filan- exemplo, alcança apenas metade dos
trópicas” (art. 213). Também as leis jovens na idade correspondente (15 a
ordinárias, como a Lei de Diretrizes 17 anos). Além disso, a renda demasia-
e Bases da Educação Nacional (LDB) damente concentrada impede a expan-
(lei nº 9.394/1996), contribuem para a são do mercado consumidor das merca-
segurança jurídica dos investidores. Em dorias educacionais.
primeiro lugar, cabe salientar a inversão Certamente, foram demandas do ca-
operada pela LDB na garantia do con- pital que levaram à criação e à descon-
quistado direito à educação: “A edu- certante expansão do Fundo de Fi-
cação, dever da família e do Estado” nanciamento ao Estudante do Ensino
(art. 2º) (Brasil, 1996). Reforçando os Superior. Trata-se de outra forma de
termos do artigo 209 da Constituição, subsídio ao setor privado que, embo-
a LDB propugna que “O ensino é li- ra independente, está cada vez mais
vre à iniciativa privada” (art. 7º) (ibid.) articulada ao Programa Universidade P
e define as categorias das instituições para Todos (ProUni), pois vem sendo
privadas, objetivando garantir o segmen- utilizada para financiar, com juros sub-
to propriamente empresarial (art. 20). sidiados, as bolsas parciais. O subsídio
Também o repasse de verbas para as público se dá por meio do custeio, pelo
escolas privadas foi estabelecido na lei: Estado, dos juros praticados no emprés-
“Considerar-se-ão como de manuten- timo ao estudante, juros que são inferio-
ção e desenvolvimento do ensino as res aos de mercado. Trata-se, por conse-
despesas [...]. VI – concessão de bolsas guinte, de um subsídio implícito.
de estudo a alunos de escolas públicas Esses valores referem-se aos juros
e privadas [...]” (art. 70) (ibid.). subsidiados, mas a eles é preciso acres-
A rápida expansão do setor privado centar a inadimplência, parcialmente
particular com fins lucrativos, a partir coberta pela União. Em 2007, dos 467
dos anos 1990, não teria sido possível mil contratos ativos, 55 mil estavam em
sem as proposições elencadas acima. O atraso, totalizando R$ 498,5 milhões.
capital opera a sua reprodução ampliada O Fies teve uma execução de R$ 685,5
também acessando diretamente o fundo milhões em 2007. O Plano Plurianual

581
Dicionário da Educação do Campo

(PPA) 2008-2011 apontava como meta Como salientado, a compreensão da


do Fies atingir 700 mil beneficiários em mercantilização da educação superior e,
2011, com 100 mil novos beneficiários mais recentemente, da educação tecno-
a cada ano, o que significaria aumentar lógica, que se dá com a criação do Pro-
em quase 50% o número de contratos grama Nacional de Acesso ao Ensino
ativos existentes em 2007. Cabe desta- Técnico e Emprego (Pronatec) – que
car que, ao final do Governo Fernando amplia o ProUni e o Fies à educação
Henrique Cardoso, inequivocamente tecnológica – requer a consideração ge-
comprometido com o setor privado, ral do ProUni. Esse programa foi difun-
o Fies possuía 200 mil contratos. A lei dido exaustivamente pelas campanhas
nº 11.552/2007 (Brasil, 2007) possibi- publicitárias do MEC como o principal
litou o financiamento pelo Fies de até meio de acesso à educação superior dos
100% dos encargos para os estudantes setores das classes populares pertencen-
que são bolsistas parciais do ProUni, tes aos segmentos menos pauperiza-
inclusive para os que possuem bolsa dos. É um extraordinário programa de
complementar de 25% oferecida pelas subsídio público para os negócios pri-
IES participantes desse mesmo progra- vados. Atualmente, apenas pouco mais
ma – o que atesta a complementaridade da metade das vagas anunciadas pelo
dos vários programas (Leher, 2010). ProUni são efetivamente ocupadas. Por
Em um contexto de enorme des- isso, o custo aluno/ano está em torno
compasso entre a oferta da educação do dobro da mensalidade efetivamente
“terciária” privada e o mercado consu- paga pelos estudantes matriculados nas
midor (a concentração de renda no país privadas e que não fazem parte do pro-
não permite ampliar o chamado mer- grama. Ademais, a qualidade desses cur-
cado educacional) e atendendo ao lobby sos, em sua esmagadora maioria, é me-
privado, amplamente engajado na base díocre. Outro aspecto a salientar é que
do Governo Lula da Silva, em maio de os cursos oferecidos são, no geral, os de
2010 o Ministério da Educação (MEC) menor custo relativo. Apenas 0,7% das
ampliou ainda mais o programa de matrículas preenchidas pelo programa
subsídio público, por meio do Fies, às são de Medicina e 0,002% de Geologia
instituições privadas. Entre as princi- (o custo dos cursos de Geologia é eleva-
pais medidas de ampliação, cabe citar do por causa do material de laboratório
a redução da taxa de juros à metade e pesquisa de campo). Ao mesmo tem-
(de 6,5% para 3,4% ao ano), o prolon- po, os cursos de curta duração seguem
gamento do crédito (de 9,5 para 14,5 curva ascendente, ultrapassando 10%
anos) e a instituição de mensalidades das vagas (Brasil, 2009;; Leher, 2010).
fixas, independentemente da inflação e Resultou dessas políticas pró-mer-
da taxa de juros real. Seguramente, es- cantis uma extraordinária expansão do
sas medidas, destinadas a compensar setor empresarial de educação supe-
a diferença entre o empréstimo e a taxa rior. Assim, por exemplo, conforme o
de juros real, aumentaram os gastos pú- Censo da Educação Superior do Insti-
blicos. A expectativa do MEC em 2010 tuto Nacional de Estudos e Pesquisas
era investir R$ 1,6 bilhão no programa, Educacionais (Inep), em 2002 havia
subsidiando 200 mil novas matrículas 1.637 instituições de ensino superior
nas instituições privadas (Leher, 2010). no Brasil, das quais 195 eram públicas,

582
Políticas Educacionais Neoliberais e Educação do Campo

317 (ditas) sem fins lucrativos e 1.125 e organizações de direito privado sem
particulares (com fins lucrativos). Em fins lucrativos, voltadas para atividades
2008, último ano do Censo Inep em de pesquisa. A propriedade intelectual
que foi feita a discriminação entre pri- sobre os resultados obtidos pertence-
vadas sem fins lucrativos e com fins rá às instituições detentoras do capital
lucrativos, o total de instituições tinha social e não às universidades. Ademais,
subido para 2.252, sendo 236 públicas, os professores universitários podem se
437 (ditas) sem fins lucrativos e 1.579 dedicar às atividades empresariais, des-
particulares (com fins lucrativos) (Ins- vinculando-se de suas obrigações de
tituto Nacional de Estudos e Pesquisas ensino e pesquisa públicos, mas man-
Educacionais, 2009). tendo seus salários pelo Estado.
Porém a mercantilização não se es- Os editais que definem as áreas
gota no suporte financeiro e legal do prioritárias de atuação da universidade
Estado ao setor privado-mercantil;; al- são definidos com relevante presença
cança, inclusive, o cerne da educação empresarial. Com isso, o que é dado a
superior: as prioridades de pesquisa, o pensar na universidade é parcialmente
teor do currículo, as formas de avalia- estabelecido pela representação direta
ção e a carreira docente. O principal do capital. Desse modo, as corpora-
ordenamento do Estado que permite ções podem definir linhas de pesquisa
ao capital influenciar diretamente o e prioridades do fazer acadêmico, em
conhecimento produzido ou em circu- detrimento da função social das uni-
lação na universidade é a Lei de Inova- versidades de problematizar as teorias
ção Tecnológica (lei nº 10.973/2004), científicas e de se engajarem na solu-
que estabelece medidas de incentivo à ção dos problemas atuais e futuros dos
inovação e à pesquisa científica e tec- povos. No agronegócio, a presença
nológica no ambiente produtivo, por das corporações difunde, no seio mes-
meio do apoio à constituição de alian- mo da atividade universitária, o modelo
dos transgênicos e, mais genericamen-
ças estratégicas e ao desenvolvimento
de projetos de cooperação envolvendo te, do agronegócio voltado para a ex- P
empresas nacionais, universidades e portação, em detrimento da soberania
centros públicos de pesquisa e funda- alimentar dos povos.
ções ditas de apoio privado nas uni- A admissão das corporações e das
versidades. As universidades podem, parcerias das universidades com as
mediante remuneração e por prazo empresas, por meio dos editais, altera
determinado, nos termos do contrato o lugar dos serviços no fazer universi-
ou convênio, compartilhar seus labo- tário, protegidos que estão dos espaços
ratórios, equipamentos, instrumentos, públicos da universidade em poderosas
materiais e demais instalações com mi- fundações, ditas de apoio, privadas;;
croempresas e empresas de pequeno isso possibilita ao capitalismo acadê-
porte, em atividades voltadas à inova- mico assumir um lugar de prestígio e
ção tecnológica, e permitir a utilização de poder na hierarquia interna da uni-
de seus laboratórios, equipamentos, versidade, o que realimenta a força do
instrumentos, materiais e demais ins- referido capitalismo acadêmico.
talações existentes em suas próprias Se, sob o ponto de vista dos seto-
dependências por empresas nacionais res dominantes, não parecem restar

583
Dicionário da Educação do Campo

dúvidas sobre o fato de que eles em- tos, mas o conjunto dos trabalhadores,
preendem intensa luta de classes no como parte do processo de constitui-
campo educacional, sob o ponto de ção da classe nas lutas do presente.
vista dos trabalhadores tal questão está Dilemas estratégicos, contudo, estão
longe de integrar a estratégia de grande longe de terem sido equacionados. Al-
parte dos setores da esquerda socialista. guns movimentos preconizam que a
Com efeito, o objetivo político dos se- educação popular deve ser organizada
tores dominantes ao buscarem subme- fora do âmbito estatal;; outros susten-
ter a educação à sua estratégia política tam que a educação deve estar assegu-
vem sendo combatido principalmente rada como dever do Estado, mas que
por movimentos sociais, notadamente não compete ao Estado educar – tarefa
pelos movimentos próximos ao Movi- dos educadores e do poder popular.
mento dos Trabalhadores Rurais Sem O tema é importante, pois confor-
Terra (MST), por sindicatos da educa- ma os arcos de forças das lutas pela
ção autônomos em relação aos gover- educação pública.
nos, pelo Fórum Nacional em Defesa Em relação à estratégia de luta pelo
da Escola Pública entre 1987 e 2005 público, as ações do MST em prol da
e, no caso da educação superior, por educação do campo são as mais mar-
setores minoritários das universidades, cantes do Brasil. Buscando dar um sen-
particularmente pela esquerda estu- tido ao público que recusa a tutela esta-
dantil e pelo movimento docente or- tal, o movimento sustenta um projeto
ganizado no Sindicato Nacional dos ético-político universal que contém as
Docentes das Instituições de Ensino principais marcas da pedagogia socialis-
Superior (Andes-SN). No âmbito latino- ta – como o sentido do trabalho na for-
americano, os mais relevantes movi- mação do ser social e, dialeticamente,
mentos sociais estão tomando para si como forma de alienação a ser superada
as tarefas de formação política de seus nas lutas sociais – sem perder de vista
militantes e de educar suas crianças a particularidade do campo, recusando as
e jovens. É o caso das experiências concepções arcaicas da educação rural
dos zapatistas, com os conselhos de e da educação para o campo.
bom governo (juntas de buen gobierno), Para derrotar a pedagogia pró-
e da Assembleia dos Povos de Oaxaca sistêmica encaminhada pelas diversas
(APPO) no México;; da Coordena- expressões do capital, os movimentos
ção Nacional dos Povos Indígenas do que apostam na autoformação da clas-
Equador (Conaie);; dos trabalhadores se e na luta pelo público têm amplia-
desempregados e das fábricas ocupa- do seus próprios espaços educativos
das, na Argentina, por meio dos bacha- nos moldes preconizados por Gramsci
relados populares;; e do MST, no Brasil, (2000): o “partido” como educador
inscritas nesses processos. coletivo capaz de elevar a consciência
Para alterar a correlação de forças social para o momento ético-político.
com o capital, essas iniciativas de for- Nesse prisma, cada militante tem de es-
mação política e de educação popular tar preparado para ser um organizador
necessitam de um salto de qualidade, da atividade política, potencializando
visando construir processos que en- as ações diretas, a democracia protagô-
volvam não apenas alguns movimen- nica e o debate estratégico.

584
Políticas Educacionais Neoliberais e Educação do Campo

Para fortalecer a formação ético- educação pública somente será de fato


política do conjunto da classe traba- pública quando for parte das lutas ge-
lhadora, a ESCOLA DO CAMPO é pensa- rais dos trabalhadores (Leher, 2011).
da como uma instituição educacional No caso brasileiro, as oportuni-
passível de ser forjada como espaço de dades de autoconstrução de espaços
elevada formação – porque omnilateral formativos originais, densos teorica-
(ver EDUCAÇÃO OMNILATERAL) – que as- mente e ousados no enfrentamento
segure a todas as crianças e jovens co- dos problemas estão circunscritas a
nhecimentos e métodos para diagnosti- determinados movimentos, não con-
car e solucionar os grandes problemas figurando um quadro de clara luta de
nacionais e dos povos. O MST sustenta classes no terreno da educação. Os
que não basta garantir o acesso à esco- desafios são políticos, teóricos, orga-
la pública. Urge uma revisão profunda nizativos e pedagógicos. Porém, como
das formas de pesquisar e de produzir lembra Marx, os humanos se colocam
o conhecimento. Sem uma crítica ra- problemas que, potencialmente, po-
dical ao eurocentrismo e à sua forma dem ser resolvidos.
atual – o pensamento único neoliberal –, Em tempos de crise, ocorre uma ace-
a educação serve de arma a favor dos leração do tempo e muitas das fortalezas
setores dominantes. do capital apresentam fraturas. A inves-
A crítica ao capitalismo dependente tigação sobre o modo como os setores
somente será possível fora das teias das dominantes operam a comodificação da
ideologias dominantes. Esse é um de- educação é uma condição para o êxito
safio teórico que não será resolvido da resistência ativa e para forjar a des-
nos espaços intramuros das institui- mercantilização radical da educação pú-
ções educacionais, pois, como subli- blica unitária, pois recusa a disjunção en-
nhou Florestan Fernandes (1989), a tre pensar e fazer, mandar e obedecer.

Notas P
1
O sistema voucher e o modelo de escola charter são mecanismos de repasse de fundos públi-
cos ao setor privado para a gestão de escolas públicas de ensino básico que vêm se generali-
zando nos sistemas educacionais do Chile e dos Estados Unidos, com algumas experiências
similares nas redes de ensino público brasileiro. Os vouchers são subsídios às famílias para
que elas paguem pela educação de seus filhos nas escolas de sua escolha. E as escolas char-
ters são um tipo de financiamento público de abertura de escolas por entidades privadas.
Representam a institucionalização do protagonismo do setor privado na educação pública
e a desresponsabilização do Estado pela educação básica, sob o signo da “autonomia” dos
pais na escolha da escola e da eficiência da gestão privada.
2
Em 1921, Walter Benjamin escreveu o ensaio Zur Kritik der Gewalt (Para uma crítica da
violência) no qual desenvolve, dialeticamente, uma reflexão sobre a violência, construída
com base na ambiguidade da palavra Gewalt, que em alemão designa tanto a violência quan-
to o poder legítimo. Dessa reflexão sobre a pura violência, Benjamin define que vivemos,
como regra geral, num “estado de exceção” (ver Benjamin, 1986 e 1987).

585
Dicionário da Educação do Campo

Para saber mais


BENJAMIN, W. Documentos de cultura – documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix–
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www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=102480. Acesso em:
28 set. 2011.
______. Lei no 10.973, de 2 de dezembro de 2004: dispõe sobre incentivos à
inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras
providências. Diário Oficial, Brasília, 3 dez. 2004. Disponível em: http://www.
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______. Lei nº 11.552, de 19 de novembro de 2007: altera a lei nº 10.260, de 12
de julho de 2001, que dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao Estudante
do Ensino Superior – Fies. Diário Oficial, Brasília, 20 nov. 2007. Disponível em:
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POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro:
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586
Políticas Públicas

TRINDADE, A. C. Movimentos sociais e a luta pelo público na educação: escolas itinerantes


no Brasil e bacharelados populares na Argentina. 2011. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2011.

POLÍTICAS PÚBLICAS
Mônica Castagna Molina

O objetivo deste verbete é forne- educação nas áreas de Reforma Agrá-


cer elementos que subsidiem o enten- ria, com as exigências para a criação
dimento da relação da Educação do do PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO
Campo com as políticas públicas: por NA REFORMA AGRÁRIA (PRONERA), e, na
que se deu tanta centralidade a esse sequência, com a ampliação das lutas
conceito neste movimento histórico pela garantia do direito à educação
da construção da Educação do Campo para todos os povos do campo, orga-
nos últimos doze anos, a ponto de a ca- nizadas e desencadeadas coletivamente
tegoria incluir-se no que vimos deno- a partir da I Conferência Nacional de
minando como sua tríade estruturante: Educação Básica do Campo, em 1998.
campo–políticas públicas–educação? O tema das políticas públicas adquire
Pretendemos apresentar aqui a com- ainda maior centralidade na história da
preensão que fundamenta, no período Educação do Campo a partir da II Con-
histórico atual, e no qual se dá a cons- ferência Nacional de Educação Básica
trução da Educação do Campo, as ra- do Campo, realizada em 2004, quando
zões para a ênfase que adquiriu o con- se consolida, como sua palavra de or-
ceito. Não é possível debater as políticas
públicas sem utilizar outros quatro con-
dem, a expressão “Educação do Cam-
po: direito nosso, dever do Estado”.
P
ceitos fundamentais: direitos, Estado, Desde então, o tema das políticas pú-
movimentos sociais e democracia.1 blicas e a luta por elas foi se ampliando,
arregimentando apoiadores e oposito-
Desenvolvimento e contexto res, quer nos movimentos sociais cam-
poneses quer entre seus parceiros das
atual do debate sobre universidades e demais instituições que
políticas públicas trabalham com Educação do Campo.
Por que esse tema é tão controverso?
Na história da EDUCAÇÃO DO CAM-
Que questões se colocam como pano
PO, o debate e a compreensão sobre o
de fundo no debate sobre políticas
tema das políticas públicas torna-se re-
públicas que são capazes de provocar
levante porque, desde o seu surgimen-
tanto dissenso?
to, a Educação do Campo se configura
como demanda relativa à garantia do Primeiro, é preciso explicitar que
direito à educação para os trabalha- o debate sobre políticas públicas, na
dores rurais: inicialmente, com a luta história da Educação do Campo, rela-
dos Sem Terra para garantir o direito à ciona-se sempre à ideia dos direitos. As

587
Dicionário da Educação do Campo

políticas públicas significam o “Estado que se consolida a partir do acúmulo


em ação” (Gobert e Muller, 1987 apud de centenas e centenas de lutas sociais.
Hofling, 2001, p. 32). Elas traduzem Em decorrência de sua própria
formas de agir do Estado, mediante construção histórico-social, os direitos
programas que objetivam dar materiali- humanos estão em permanente pro-
dade aos direitos constitucionais. Entre cesso de construção, desconstrução
os direitos constitucionais que se mate- e reconstrução. E essa característica
rializam por meio das políticas públi- de construção sócio-histórica, de im-
cas, estão principalmente os direitos permanência, da ideia de direitos e da
sociais, definidos no artigo 6º da Cons- igualdade dos seres humanos é de gran-
tituição Federal brasileira de 1988: edu- de importância para a compreensão do
cação, saúde, trabalho, moradia, lazer, que a Educação do Campo intenciona
segurança, previdência social, proteção ao provocar o debate e ao lutar por
à maternidade e à infância e assistência políticas públicas no tempo histórico
aos desamparados. Pelo fato de as po- que vivemos. Porque a construção da
líticas públicas serem formas de atua- noção da igualdade tem importância
ção do Estado para garantir os direitos histórica ímpar, visto termos convivi-
sociais, elas também são denominadas, do durante muito tempo na história da
muitas vezes, políticas sociais. humanidade com a ideia das diferenças
A filósofa Marilena Chauí (2003) intrínsecas entre seres humanos – por
nos ensina a diferenciar direito de exemplo, nos séculos em que imperava
outras categorias, exaltando o peso o regime da escravidão. A respeito des-
e a importância da construção desse se debate, Telles (1999) observa que a
conceito. “Um direito difere de uma igualdade resulta da “organização hu-
necessidade ou carência e de um in- mana, porquanto é orientada pelo prin-
teresse. Uma necessidade ou carência cípio da justiça. Não nascemos iguais,
é algo particular e específico” (ibid., nos tornamos iguais, como membros
p. 334). Existem tantas carências quan- de um grupo, por força de nos conce-
tos grupos sociais. Explica ainda a auto- dermos direitos iguais” (ibid., p. 62).
ra que necessidades e carências podem É em torno da ideia da igualdade
ser conflitantes entre si. Chauí enfa- jurídico-política que se processam as
tiza que “um direito, ao contrário de críticas dos opositores à importân-
necessidades, carências e interesses, cia adquirida pelas lutas por políticas
não é particular e específico, mas ge- públicas. A pertinente crítica que se
ral e universal, válido, para todos os faz é que a igualdade jurídico-política
indivíduos, grupos e classes sociais” oculta a impossibilidade de a igualda-
(ibid.). Essa é a principal característica de real se materializar nas sociedades
da ideia de direito: ser universal, refe- capitalistas: existe nelas uma barreira
rir-se a todos os seres humanos, inde- intransponível para a igualdade real en-
pendentemente da sua condição social. tre os sujeitos decorrente da instituição
A compreensão e a legitimação da ideia da propriedade privada, que impede os
da educação como um direito humano, sujeitos de serem iguais de fato, visto
e, mais do que isso, a própria constru- que uns se apropriam privadamente
ção do ideal dos direitos humanos, são dos meios de produção e da força de
fruto de longa construção histórica, trabalho de outros.

588
Políticas Públicas

A construção da ideia da emancipa- gente nesta nova fase da mundialização


ção política tem suas raízes histórico- do capital. É preciso termos presente,
ontológicas no ato de compra e venda conforme ressalta Alba Maria Pinho
da força de trabalho, com todas as suas de Carvalho, que “existe uma distinção
consequências para a sociedade capita- entre a forma de funcionamento do
lista. “Este ato originário produz neces- capitalismo no século XIX até os anos
sariamente a desigualdade social, uma 1970 e aquela em vigor nas duas últi-
vez que opõe o possuidor dos meios de mas décadas do século XX adentrando
produção ao simples possuidor da força o século XXI” (2008, p. 16).
de trabalho” (Tonet, 2005, p. 475). A Uma das consequências desse pro-
criação de condições para a existência cesso de mundialização do capital
da igualdade real exige mudanças es- que se intensifica a partir da revolu-
truturais profundas na sociedade. Se ção técnico-científica e da ampliação
nosso horizonte é a construção de uma do desenvolvimento do que se tem
sociedade sem exploração do homem considerado como “forças produtivas
pelo homem, é imprescindível a supe- cibernéticas-informacionais” é o des-
ração da propriedade privada, pois, carte de centenas de milhares de traba-
como afirma Tonet, “a efetiva emanci- lhadores, produzindo um contingente
pação humana é, por seus fundamentos crescente de trabalhadores supérfluos.
e sua função social, algo radicalmente Esse processo aumenta, de forma cada
diferente e superior à cidadania, que é vez mais acelerada, “para aqueles vi-
parte integrante da emancipação políti- vem do seu trabalho e que dele obtêm
ca” (ibid., p. 476). Não se está afirman- seu meio de vida, a ameaça permanen-
do com isto, como ressalta o próprio te de negação do valor de uso de sua
Tonet, que se deve menosprezar a luta força de trabalho” (Carvalho, 2008,
pela efetiva conquista da cidadania. p. 18). Um traço estrutural do capita-
Mesmo com esses limites e ressalvas, lismo na fase atual é o agravamento da
é ainda extremamente relevante a luta questão social para a classe trabalhado-
pela garantia da igualdade jurídico po- ra, materializando um perverso proces- P
lítica, pois ela significa espaços de re- so de “destituição e desconstrução de
sistência dos avanços já conquistados direitos econômicos e sociais: direito
pela humanidade em torno do ideal dos ao trabalho, e mais especificamente, a
direitos humanos, embora saibamos que um emprego;; direito ao acesso à terra;;
nosso horizonte para garantir a liberda- direito à moradia, à educação, à saúde, ao
de de fato para todos é bem maior. lazer” (ibid., p. 19).
Exatamente com base na ideia da A aceleração e a intensificação da
historicidade dos direitos humanos, dos perda dos direitos humanos, conquista-
processos de luta para sua instituição dos durante décadas de luta, é um pro-
e das possibilidades de sua reversão e cesso que se tem verificado em vários
desconstrução, é que se faz necessária países do mundo e que teve um modo
a luta por políticas públicas no âmbito peculiar de desenvolvimento na socie-
da Educação do Campo neste momen- dade brasileira nas duas últimas déca-
to histórico. Vivemos um tempo de das. Com a perspectiva de compreen-
profunda desconstituição dos direitos, der as contradições sociais enfrentadas
decorrente da lógica de acumulação vi- pelo Brasil, Carvalho (2008) apresenta

589
Dicionário da Educação do Campo

dois processos que ocorreram simulta- Uma das características do Esta-


neamente nestas duas últimas décadas do ajustador é que, paralelamente aos
no país: as transformações no âmbito processos que promove ao favorecer o
do Estado no sentido da promoção das acúmulo de capitais, via desregulamen-
mudanças necessárias aos ajustes reque- tação/desnacionalização e privatização
ridos pela reconfiguração da lógica de (Carvalho, 2008, p. 22), ele mesmo
acumulação do capital – que configuram vai progressivamente isentando-se do
o “Estado ajustador” – e os processos seu papel de garantidor de direitos,
de mudanças sociais rumo à democrati- materializando-se uma profunda dimi-
zação, ocorridos no mesmo período. nuição de suas responsabilidades so-
A autora analisa que, nesse intervalo ciais. E é na dimensão desse embate,
temporal, a sociedade brasileira tem se e em oposição a ele, que se coloca a
desenvolvido, articuladamente, entre compreensão da Educação do Cam-
esses dois processos estruturais bási- po na luta por políticas públicas.
cos: “Têm-se, em disputa, no interior Uma das consequências da nova
do sistema do capital, dois projetos po- ordem do capital, e do novo papel que
líticos, com perspectivas distintas e, até ela vai imprimindo no Estado, é exa-
mesmo, com dimensões antagônicas, tamente a redução do âmbito dos di-
no tocante aos direitos e às políticas reitos na sociedade. Esse fenômeno se
públicas” (Carvalho, 2008, p. 21). Inte- dá simultaneamente, em dupla dimen-
ressa-nos compreender as contradições são, sendo ambas de extrema gravidade:
entre esses dois projetos em disputa no a primeira é a erosão real dos direitos
Estado, pois são em torno desses dife- historicamente conquistados, que são
rentes perfis que se situam os embates negados ou fragmentados;; a segunda é
sobre as políticas públicas da Educação a erosão da própria noção de direitos
do Campo. e das referências pelas quais eles pode-
Carvalho propõe como chave de riam ser reformulados. A autora afirma
leitura para a conformação do Esta- que esse tempo de ajustes do Estado à
do brasileiro nos últimos vinte anos nova ordem do capital provoca “o enco-
o que denomina de “confluência con- lhimento do horizonte da legitimidade
traditória entre democratização e ajus- dos direitos” (Carvalho, 2008, p. 23).
te à nova ordem do capital” (2008,
O processo geral de reconfigura-
p. 21). A autora afirma que a conflu-
ência desses dois processos, democrati- ção da lógica do capital, com a perda
zação e ajuste à nova ordem capitalista, de direitos sociais que haviam sido his-
constitui, a partir da década de 1990, o toricamente conquistados em intensos
tecido do Estado nacional, expressando- processos de luta empreendidos pelas
se em duas configurações distintas, classes trabalhadoras, exprime parte
que oscilam entre “Estado democráti- da importância que se tem dado, no
co ampliado, na busca de encontros e movimento histórico da Educação
pactos, reconhecendo o conflito como do Campo, às lutas pelas políticas pú-
via democrática por excelência;; Estado blicas, pois esse movimento integra um
ajustador, que se restringe a agir sob a movimento maior de reação da socie-
égide do mercado, com a destituição/ dade civil, de homens e mulheres que
anulação da política, ajustando-se à se recusam a aceitar o modo de vida
nova ordem do capital” (ibid.). imposto pelo sociabilidade do capital,

590
Políticas Públicas

que a tudo mercantiliza, e exigem do A importância do


Estado, na luta por seus direitos, a ins-
protagonismo dos
titucionalização das políticas sociais.
Essas conquistas significam, de acordo movimentos sociais
com Carvalho (2008), a instauração Um dos mais fortes contrapontos
da contrariedade na cena pública bra- que a história da Educação do Campo
sileira, repercutindo, em alguma me- traz para o debate das políticas pú-
dida, na organização do Estado con- blicas refere-se aos sujeitos que a
temporâneo, obrigando-o a construir protagonizam e à forma e conteú-
estratégias que deem sustentação às do de sua concepção. Para além do
conquistas desses direitos, ainda que estabelecido nos clássicos debates
em cenários extremamente desfavo- da ciência política sobre as fases de
ráveis aos sujeitos coletivos que os elaboração das políticas públicas –
conquistaram. Assim, no Brasil, formação da agenda, formulação
das políticas, processo de tomada de
[...] as políticas sociais consti- decisões, implementação, avaliação –,
tuem um espaço privilegiado o movimento da Educação do Campo
de atuação política no (re)de- enfatiza, na cena pública brasileira, a
senho do Estado, estabelecen- presença de S UJEITOS C OLETIVOS DE
do o vínculo necessário entre D IREITOS vindos do campo.
conflitos/demandas por direi- Embora os camponeses já tivessem
tos e busca de alternativas de por diversas vezes sido protagonistas
emancipação. Sob esse prisma, na cena pública nacional, ainda não o
os movimentos sociais pela haviam sido para exigir seus direitos
definição e implementação de no âmbito da educação. E ao fazê-lo,
políticas públicas, com suas em razão da histórica experiência acu-
múltiplas expressões, articulan- mulada nas lutas sociais, trazem para o
do novas e tradicionais estraté-
gias, constituem-se vias aber-
debate e para a construção das políti-
cas públicas a marca de coletivos or-
P
tas, no confronto com a ló- ganizados que têm objetivos comuns
gica do capital mundializado. e a consciência de um projeto coletivo
(Carvalho, 2008, p. 25) de mudança social, de coletivos priva-
dos de seus direitos e que exigem do
Essas questões gerais das lutas dos Estado ações no sentido de garanti-los.
movimentos sociais para garantir e Conforme afirmamos no trabalho
conquistar direitos sociais e sua mate- “Reflexões sobre o protagonismo dos
rialização por meio de políticas públi- movimentos sociais na construção de
cas são as que explicam a importância políticas públicas de Educação do Cam-
que o tema adquiriu neste tempo his- po” (Molina, 2010), uma das maiores
tórico, no qual surge a Educação do riquezas da experiência histórica da
Campo. Portanto, é com base nessas construção de políticas públicas refere-
contradições maiores que enfrenta- se exatamente à presença dos sujeitos
mos também as questões específi- coletivos de direitos. São eles e suas
cas da Educação do Campo no âmbito práticas os responsáveis pelas trans-
das políticas públicas. formações por que tem passado a

591
Dicionário da Educação do Campo

elaboração das políticas públicas na mensão indissociável desse conceito, a


área. A maior transformação refere-se práxis social dos sujeitos camponeses,
ao caráter dos direitos por eles pro- a materialidade de suas condições de
pugnados: direitos coletivos de grupos vida, as exigências às quais estão sub-
sociais excluídos historicamente da metidos os educandos e suas famílias
possibilidade de vivenciar os direitos no processo de garantia de sua reprodu-
já existentes, ao mesmo tempo em que ção social, tanto como indivíduos quan-
se enfatiza a necessidade da criação e to como grupo (Molina, 2010).
positivação de novos direitos. Essa tensão se amplia na medida do
A pressão e o processo organizativo próprio processo de ampliação do mo-
desencadeado pela ação social de reivin- vimento da Educação do Campo e de
dicação da garantia de seus direitos pe- sua inserção na agenda pública. Com
los camponeses têm obrigado diferentes base na compreensão que se tem da
níveis de governo a criarem espaços ins- Educação do Campo, e ao contrário da-
titucionais para o desenvolvimento de quela perspectiva negativa dos conflitos,
ações públicas que deem conta das é preciso reconhecer sua dimensão ins-
demandas educacionais do campo. Es- tituinte: os conflitos devem ser trabalha-
sas instâncias governamentais tendem dos politicamente, pois são eles a pos-
a excluir a materialidade dos conflitos sibilidade de construção de superações,
presentes no campo, revelando uma de mudanças, de transformações:
compreensão do conflito carregada de
um imaginário negativo, temido e que A democracia é a única forma
necessariamente deve ser eliminado. política que considera o conflito
Uma das tensões da Educação do legal e legítimo, permitindo que
Campo no que diz respeito às políti- seja trabalhado politicamente pe-
cas públicas, especialmente em relação la própria sociedade. Significa
àquelas executadas pelas secretarias que os cidadãos são sujeitos de
estaduais e municipais de Educação, é direitos, e que onde eles não
o apartamento, a ruptura, a separação estejam garantidos, tem-se o
da Educação do Campo. Exatamente dever de lutar por eles e exigi-
o que lhe é constitutivo, o que a fez los [...]. A mera declaração do
surgir, que foram as lutas e os conflitos direito à igualdade não faz exis-
no campo e a busca dos movimentos tir os iguais, mas abre o cam-
sociais e sindicais por outro projeto de po para a criação da igualdade
campo e de sociedade – e, dentro dele, através das exigências e deman-
outro projeto de educação –, tem sido das dos sujeitos sociais. Em ou-
intencionalmente negado por seto- tras palavras: declarado o direi-
res relevantes dessas instâncias gover- to à igualdade, a sociedade pode
namentais. Assim, exclui-se do planeja- instituir formas de reivindicação
mento da ação pedagógica o essencial: o para criá-lo como direito real.
próprio campo e as determinações que (Chauí, 2003, p. 344)
caracterizam os sujeitos que vivem nesse
território. Essas instâncias governamen- São as garantias reais de direitos
tais querem fazer Educação do Campo negados aos trabalhadores rurais que a
sem o campo: sem considerar, como di- luta coletiva busca conquistar. A ques-

592
Políticas Públicas

tão a destacar é que, para não perder o do Estado, aos sujeitos do campo.
seu potencial contra-hegemônico, con- Dissemos anteriormente que direitos
tribuindo com o desencadear de proces- são universais, que eles dizem respeito
sos de mudanças de fato estruturais, é a todos os cidadãos e que somente o
imprescindível a permanência do cam- Estado tem condições de instituí-los
po no centro dos processos formativos mediante suas ações, ou seja, por meio
desses sujeitos e na elaboração de polí- de políticas públicas. Porém importa-
ticas públicas de Educação do Campo, nos compreender como é possível
com todas as tensões, contradições e provocar essa ação. E aí precisamos
disputas de projeto que isso significa. recorrer a outra ideia fundamental
É também imprescindível garantir a sua para o entendimento da instituição
materialidade de origem, pois, ao per- das políticas públicas, intrinsecamente
der o vínculo com as lutas sociais do relacionada com a esfera da cultura na
campo que a produziram, ela deixará de sociedade, compreendendo-se cultura
ser Educação do Campo. Ou seja, para como o conjunto de valores, padrões
continuar sendo contra-hegemônica, e normas sociais vigentes em determi-
a Educação do Campo precisa manter nado tempo histórico.
o vínculo e o protagonismo dos sujei- Conforme Gramsci, é preciso re-
tos coletivos organizados, ser parte da cuperar a compreensão da indissocia-
luta da classe trabalhadora do campo bilidade da política e da cultura para
por um projeto de campo, educação melhor entendermos a importância do
e sociedade. avanço das consciências no acúmulo
Se política pública significa o Es- de forças para a conquista de políti-
tado em ação, promoção, pelo Estado, cas sociais. Ampliar o espectro social
de formas de executar aquilo que está a fim de que se reconheçam os sujeitos
no âmbito de seus deveres, como se do campo como sujeitos de direitos,
provoca essa ação? Quem/o quê o faz como iguais, é passo importante para
agir? Essa resposta vincula-se à com-
preensão que se tem do que é Estado.
a conquista das políticas públicas. Pois,
conforme ressalta Azevedo (1997) em
P
No verbete E STADO , partindo-se da trabalho clássico sobre educação e po-
perspectiva marxista de Gramsci, líticas públicas, essas guardam intrínse-
afirma-se que o Estado “não é sujei- ca conexão com os valores culturais e
to nem objeto, mas sim uma relação simbólicos que a sociedade tem de si
social, ou melhor, a condensação das própria. A autora afirma que “as repre-
relações presentes numa dada socie- sentações sociais dominantes fornecem
dade”. E é exatamente o resultado das valores, normas e símbolos que estru-
forças presentes nessa condensação turam as relações sociais e, como tal, se
das relações sociais que faz o Estado fazem presentes no sistema de domi-
agir, ou seja, que o faz conceber e exe- nação, atribuindo significados à defini-
cutar essa ou aquela política pública. ção social da realidade, que vai orientar
Por isso, tem-se dado tanta ênfase, os processos de decisão, formulação e
na construção da Educação do Cam- implementação das políticas públicas”
po nos últimos anos, à importância de (ibid., p. 6). Nesse ponto reside uma
se debater com a sociedade a necessi- das principais forças que a Educação
dade da garantia do direito, pela ação do Campo acumulou nos últimos doze

593
Dicionário da Educação do Campo

anos: a luta dos movimentos sociais e capazes de traduzir, na prática da ação


sindicais do campo para conquistar os do Estado, os princípios da igualdade
programas existentes fez avançar tam- formal e da igualdade material determi-
bém a compreensão dos trabalhadores nados na Constituição Federal de 1988.
rurais sobre a importância do acesso ao Ao refletir sobre a constituciona-
conhecimento e, principalmente, con- lidade do direito à educação dos po-
tribuiu para que eles próprios se cons- vos do campo, a pesquisadora Clarice
cientizassem de que são titulares do Seixas Duarte afirma que o “princípio
direito à educação. Esse movimento da igualdade material, ou igualdade fei-
de ampliação da consciência dos tra- ta pela lei, visa criar patamares míni-
balhadores que decorre de suas lutas mos de igualdade no campo do acesso
para garantir seus direitos – entre eles, aos bens, serviços e direitos sociais.”
o direito à educação – tem duplo esco- (2008, p. 34). Nessa concepção, o Es-
po de resultados: ao mesmo tempo em tado encontra-se obrigado, com base
que vai formando os próprios trabalha- na própria Constituição Federal, a im-
dores e ampliando a sua consciência, plantar, mediante políticas públicas,
também vai fazendo avançar a visão ações que sejam capazes de criar con-
e a compreensão da sociedade sobre dições que, de fato, garantam igualdade
esses trabalhadores como sujeitos por- de direitos a todos os cidadãos.
tadores de direitos. As várias lutas pro-
tagonizadas pelos sujeitos coletivos Conforme explicita Duarte (2008), a
do campo desencadeiam mudanças no articulação entre os princípios de igual-
imaginário da sociedade, abrindo cami- dade formal e de igualdade material
nho para novas transformações a se- fundamenta a criação de políticas espe-
rem trilhadas e consolidadas no âmbito cíficas que têm como objeto determina-
da garantia real desses direitos. dos grupos em situação de maior pri-
vação de direitos, obrigando o Estado
Esses processos articulados rele-
a conceber políticas diferenciadas para
vam a importância da manutenção do
assegurar o direito a esses grupos: “Não
protagonismo dos movimentos sociais
basta que o Estado garanta apenas di-
e sindicais na disputa pela construção
reitos universais formais, pois assim as
de políticas públicas de Educação do
desigualdades já existentes na socieda-
Campo. O embate atual refere-se às ca-
de vão ser acirradas. O Estado deve ter
racterísticas que essas políticas devem ter
uma postura intervencionista, para pro-
para, de fato, serem capazes de garantir
por políticas específicas para os grupos
aos camponeses os direitos dos quais es-
em situação desfavorável” (ibid., p. 38).
tiveram privados por tantos séculos.
São as fortes desigualdades exis-
tentes no acesso à educação pública no
Políticas de Educação do campo, e em sua qualidade, que obri-
Campo: universalidade gam o Estado, no cumprimento de suas
e especificidade atribuições constitucionais, a conceber
e a implantar políticas específicas que
A efetiva promoção do direito à edu- sejam capazes de minimizar os incontá-
cação em todos os níveis de ensino para veis prejuízos já sofridos pela população
as populações do campo requer a ado- do campo, em virtude de sua histórica
ção de políticas e programas que sejam privação do direito à educação escolar.

594
Políticas Públicas

Quando, em decorrência da luta dade de responder às particularidades


social, esses direitos passam a se ma- resultantes de determinado processo
terializar em políticas públicas específi- histórico que excluiu do acesso à edu-
cas, o argumento jurídico que sustenta cação a classe trabalhadora do campo.
a legitimidade dessas políticas é o fato Radicalizando o princípio da igualdade,
de que cabe ao Estado, ao universalizar o estabelecimento da universalidade do
os direitos, considerar as consequên- direito exige, nesse caso, ações espe-
cias decorrentes das diferenças e desi- cíficas para atender a demandas dife-
gualdades históricas quanto ao acesso a renciadas resultantes de desigualdades
estes direitos. históricas no acesso à educação.
Quando os movimentos sociais do Se a universalidade se coloca como
campo se fazem porta-vozes dessas a principal característica da ideia de
reivindicações, sublinham exatamente direito, a regulamentação jurídica for-
a diferença que marca o modo como mal, por sua vez, por causa das desi-
dimensionam as respostas necessárias gualdades resultantes das contradições
à garantia dos direitos historicamente fundamentais da sociedade do capital
negados e reivindicam, assim, que se não garante por si só o acesso de fato a
contemplem as especificidades sócio- esses direitos. A luta por direitos, por-
históricas que foram impressas nas tanto, é inerente à sociedade do capi-
suas trajetórias pessoais e coletivas de tal e faz a desigualdade no acesso aos
exploração e opressão. direitos transformar-se em fundamen-
É necessário, portanto, que a di- to para a demanda por reconhecimento
mensão abstrata da universalidade das especificidades históricas que cons-
seja complementada pela intencionali- tituem esses sujeitos de direito.

Nota
1
Todos esses conceitos são discutidos em diferentes verbetes deste Dicionário. Sua leitura
articulada reforça a compreensão das contradições e contrapontos a serem tratados aqui.
P
Para saber mais
A ZEVEDO , J. L. A educação como política pública. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 1997.
CARVALHO, A. M. P. A luta por direitos e a afirmação das políticas sociais no Brasil
contemporâneo. Revista de Ciências Sociais, v. 39, n. 1, p. 16-26, 2008.
CHAUÍ, M. A sociedade democrática. In: MOLINA, M. C.; SOUZA JÚNIOR; J. G.;
TOURINHO, F. (org.). Introdução crítica ao direito agrário. Brasília: Editora UnB, 2003.
p. 332-340.
D UARTE , C. S. A constitucionalidade do direito à educação dos povos do cam-
po. In: S ANTOS , C. (org.). Campo–política pública–educação. Brasília: Nead, 2008.
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HOFLING, E. M. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos Cedes, v. 21, n. 55,
p. 30-41, nov. 2001.

595
Dicionário da Educação do Campo

KERSTENETZKY, C. L. Políticas sociais: focalização ou universalização. Textos para


Discussão, Universidade Federal Fluminense, Niterói, out. 2005.
MOLINA, M. C. A constitucionalidade e a justiciabilidade do direito à educação
dos povos do campo. In: SANTOS, C. (org.). Campo–política pública–educação. Brasília:
Nead, 2008. p. 19-31.
______. Reflexões sobre o protagonismo dos movimentos sociais na construção
de políticas públicas de educação do campo. In: ______ (org.). Educação do Campo
e Pesquisa II: questões para reflexão. Brasília: Nead, 2010. p. 137-149.
MONTAÑO, C.; DURIGUETTO, M. L. Estado, classe e movimento social. São Paulo:
Cortez, 2010.
TELLES, V. S. Direitos sociais: afinal, do que se trata? Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999.
TONET, I. Educar para a cidadania ou para a liberdade? Revista Perspectiva, v. 23,
n. 2, p. 469-484, jul.-dez. 2005.

POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS


Valter do Carmo Cruz

A partir do final da década de 1980, lidade empírica (histórica e política).


são identificadas sensíveis mudanças, Porém, apesar de serem amplamente
na América Latina e no Brasil, na dinâ- utilizadas em diversos contextos, não
mica política dos conflitos sociais do há um significado único e preciso para
mundo rural, sobretudo pela emergên- essas expressões, que carregam grande
cia de uma espécie de “polifonia po- polissemia e ambiguidade não apenas
lítica”, com o surgimento de uma di- como “categoria de análise”, mas tam-
versidade de novas vozes, de “novos” bém como “categoria da ação política”.
sujeitos políticos protagonistas que Entender o significado desses ter-
emergem na cena pública e nas arenas mos implica discutir sua origem, sua
políticas. Nesse período, começam a historicidade e suas diversas formas de
ganhar força e objetivação, na forma apropriação como “categoria de análi-
de movimentos sociais, as reivindi- se” – ou seja, como conceito socioan-
cações de uma diversidade de grupos tropológico que busca nomear, carac-
sociais denominados ou autodenomi- terizar e classificar certas comunidades
nados “populações tradicionais”, ou, rurais – e como “categoria da ação” –
mais recentemente, “povos e comuni- ou seja, como identidade sociopolítica
dades tradicionais”. Nesse novo cená- mobilizadora das lutas por direitos. Es-
rio, esses termos têm assumido dupla sas duas dimensões, embora apresen-
centralidade/visibilidade: uma centrali- tem especificidades, entrecruzam-se
dade analítica (teórica) e uma centra- nas lutas e disputas em torno dessas

596
Povos e Comunidades Tradicionais

categorias, que são, ao mesmo tempo, fortaleceu-se também, paralelamente,


epistêmicas e políticas. o campo das lutas pelos direitos dos
Se buscarmos a genealogia da emer- povos indígenas no plano interna-
gência dos termos “povos e comuni- cional. Um marco fundamental desse
dades tradicionais” no léxico político processo foi a aprovação, em 1989, da
e teórico brasileiro, podemos localizar Convenção 169 da Organização Inter-
como momento decisivo o final da déca- nacional do Trabalho (OIT), na qual
da de 1970 e o início da década de se definiu um conjunto de direitos e
1980. Porém, é sobretudo no início garantias dos “povos indígenas e tri-
dos anos 1990, com a consolidação da bais em países independentes”. Essa
questão ambiental, que esses termos declaração tornou-se um mecanismo-
popularizam-se e, aos poucos, vão sen- chave nas lutas pelo reconhecimento
do apropriados por um conjunto mais dos direitos dos povos indígenas. No
amplo de grupos sociais, movimentos Brasil, com o processo de redemocrati-
sociais, organizações não governamen- zação e a ampliação do espaço político
tais (ONGs), pela mídia, pela academia da sociedade civil na década de 1980,
e pelo próprio Estado, que institucio- ganhou força a mobilização dos povos
nalizou essas categorias na forma de indígenas e de quilombolas em torno
legislação, direitos e políticas públicas. de reivindicações étnicas ante o Estado.
Segundo Paul Litlle (2006), es- Como resultado dessas lutas, impor-
ses termos surgiram em dois campos tantes reivindicações territoriais e cul-
distintos, ainda que entrelaçados: o turais foram incorporadas na Consti-
campo ambiental e o campo de lutas tuição Federal de 1988, fortalecendo
por direitos culturais e territoriais de juridicamente a situação fundiária e a
grupos étnicos. No campo ambiental, identidade coletiva desses grupos.
essas expressões apareceram no deba- Esses termos surgidos nos campos
te internacional sobre as políticas de discursivos das lutas e das políticas am-
preservação e conservação ambiental
relacionadas a temas como biodiver-
bientais e das lutas por direitos étnicos,
aos poucos se disseminaram e se en-
P
sidade e desenvolvimento sustentável. raizaram nos mais diversos domínios
É nesse contexto que emergiu o uso discursivos. No campo acadêmico, são
dos termos “povos e comunidades trabalhados como uma “categoria de
tradicionais” para nomear, identificar análise”. Nessa dimensão mais teórico-
e classificar uma diversidade de cultu- conceitual, os termos “povos e comu-
ras e modos de vida de um conjunto nidades tradicionais” buscam uma
de grupos sociais que, historicamente, caracterização socioantropológica de
têm ocupado áreas agora destinadas à diversos grupos. Estão incluídos nes-
preservação e à conservação ambiental. sa categoria povos indígenas, quilombolas,
O segundo campo no qual esses ter- populações agroextrativistas (seringueiros,
mos ganharam visibilidade é o das lu- castanheiros, quebradeiras de coco de
tas pelo reconhecimento dos direitos babaçu), grupos vinculados aos rios ou ao
culturais e territoriais dos múltiplos mar (ribeirinhos, pescadores artesanais,
grupos indígenas ou autóctones. caiçaras, varjeiros, jangadeiros, maris-
No mesmo período em que o mo- queiros), grupos associados a ecossistemas
vimento ambientalista se consolidou, específicos (pantaneiros, caatingueiros,

597
Dicionário da Educação do Campo

vazanteiros, geraizeiros, chapadeiros) e pação se expressa numa relação


grupos associados à agricultura ou à pecuária de ancestralidade, memória e sen-
(faxinais, sertanejos, caipiras, sitiantes- tido de pertencimento em relação
campeiros, fundo de pasto, vaqueiros). a certas áreas e lugares específicos.
Apesar da enorme diversidade dos O território tem, para esses gru-
grupos, alguns pesquisadores buscaram pos, importância material (base de
identificar traços e características co- reprodução e fonte de recursos)
muns a eles. Nesse sentido, pesquisado- e forte valor simbólico e afetivo (re-
res como Diegues (2000), Little (2006) ferência para a construção dos mo-
e Barreto Filho (2006), mesmo reco- dos de vida e das identidades dessas
nhecendo a imprecisão e a dificuldade comunidades). A constituição dos
de uma definição mais rigorosa, elen- territórios é caracterizada por gran-
cam um conjunto de características que de diversidade de modalidades de
seriam atributos dos grupos denomi- apropriação da terra e dos recursos
nados “povos e comunidades tradicio- naturais (apropriações familiares,
nais”. Dentre essas várias característi- comunitárias, coletivas). Essas “ter-
cas, podemos destacar: ras tradicionalmente ocupadas” vão
para além do modelo da proprie-
• A relação com a natureza (racionalidade dade individual, como nas “terras
ambiental): essas comunidades têm de preto”, “terras de santo”, “terras de
uma relação profunda com a na- índio”, nos “faxinais”, nos “fundos
tureza;; os seus modos de vida es- de pasto” etc.
tão diretamente ligados à dinâmica • A racionalidade econômico-produtiva: a
dos ciclos naturais;; e suas práticas produção econômica dessas comu-
produtivas, e o uso dos recursos nidades está assentada na unidade
naturais, são de base familiar, co- familiar, doméstica ou comunal;; as
munitária ou coletiva. Esses gru- relações de parentesco ou compa-
pos possuem extraordinária gama drio também têm grande impor-
de saberes sobre os ecossistemas, tância no exercício das atividades
a biodiversidade e os recursos na- econômicas, sociais e culturais. As
turais como um todo. Esse acervo principais atividades econômicas
de conhecimento está materializado são a caça, a pesca, o extrativismo,
no conjunto de técnicas e sistemas de a pequena agricultura e, em alguns
uso e manejo dos recursos naturais, casos, as práticas de artesanato e
adaptado às condições do ambiente artes. A tecnologia utilizada por es-
em que vivem. sas comunidades na intervenção no
• A relação com o território e a territoria- meio ambiente é relativamente sim-
lidade: outra característica marcante ples, de baixo impacto nos ecossis-
desses grupos é uma forte relação temas. Há reduzida divisão técnica
com o território e com o sentido de e social do trabalho, sobressaindo
territorialidade. Essas comunida- o modelo artesanal de produção, no
des normalmente têm longa histó- qual o produtor e sua família do-
ria de ocupação territorial sobre os minam todo o processo de produ-
espaços em que vivem, sendo co- ção até o produto final. O destino
mum várias gerações ocuparem a da produção dessas comunidades é
mesma área. Essa história de ocu- prioritariamente o consumo pró-

598
Povos e Comunidades Tradicionais

prio (subsistência), além de desti- decreto de 27 de dezembro de 2004,


narem parte da produção às práticas criou a Comissão Nacional de Desen-
sociais, como festas, ritos, procis- volvimento Sustentável das Comuni-
sões, folias de Reis etc. A relação dades Tradicionais (Brasil, 2004). Por
com o mercado capitalista é parcial: meio desse decreto, os termos “povos e
o excedente da produção é vendido comunidades tradicionais” foram insti-
e compram-se produtos manufatu- tucionalizados, suturando-se, com isso,
rados e industrializados. certo sentido jurídico e político ligado à
• As inter-relações com os outros grupos da construção de políticas públicas.
região e autoidentificação: essas comu- O uso dessa identidade sociopolíti-
nidades mantêm inter-relações com ca faz parte de um conjunto mais amplo
outros grupos similares na região de reconfigurações identitárias reali-
onde vivem, relações que podem zadas por parte das comunidades rurais
ser de natureza cooperativa ou con- brasileiras, que, na luta pela afirmação
flitiva, e é mediante essas formas de seus direitos, vêm ressignificando e
de interação que as comunidades até rasurando as categorias classificató-
constroem, de maneira relacional rias tradicionalmente utilizadas em sua
e contrastiva, suas próprias identi- definição. Essas comunidades, objetiva-
dades. No processo de construção das em forma de movimentos sociais,
do sentido de pertencimento, tais adotaram como estratégias discursi-
grupos são considerados como di- vas e políticas certo distanciamento das
ferentes da maioria da população da clássicas identidades de trabalhador ru-
região onde vivem. Isso se expressa ral, camponês, lavrador, ou, ainda, daque-
no uso de categorias classificatórias las que recentemente ganharam força,
e identitárias pelos outros grupos como é o caso de agricultor familiar.
para nomearem e classificarem es-
Esses novos protagonistas apre-
sas comunidades, bem como na uti-
sentam-se mediante múltiplas denomi-
lização dessas mesmas categorias
pelas próprias comunidades, para
se autoidentificarem e se diferen-
nações e apontam para a construção
de novas e múltiplas identidades e de P
diferentes formas de associação que
ciarem dos demais.
ultrapassam o sentido estreito das or-
Apesar da tentativa de uma defini- ganizações camponesas clássicas. Isso
ção de caráter mais técnico ou teórico- não significa uma destituição do atribu-
conceitual por parte da antropologia e to político da categoria de mobilização
da sociologia, o uso dos termos “povos camponês – a evidência mais incontestá-
e comunidades tradicionais” não se re- vel disso é a vitalidade do Movimento
sume a uma “categoria de análise”, pois dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
trata-se de um termo com fortes conota- (MST) e da Via Campesina! –, contudo,
ções políticas, tornando-se uma catego- é inegável que a emergência das “no-
ria da prática política incorporada como vas” denominações/identidades dos
uma espécie de identidade sociopolítica movimentos sociais espelha um con-
mobilizada por esses diversos grupos junto de novas práticas organizativas
na luta por direitos. Progressivamente, que traduz transformações políticas
esses termos vêm sendo incorporados mais profundas na capacidade de orga-
pelo próprio Estado brasileiro, que, em nização/mobilização desses grupos em

599
Dicionário da Educação do Campo

face do poder do capital e do poder do naturais. A constituição desses novos


Estado e em defesa de seus territórios sujeitos políticos e de direito vem re-
(Almeida, 2004). definindo as táticas e estratégias da
Nesse processo, é importante des- luta pela terra no Brasil, sobretudo por
tacar uma espécie de ressemantização causa do impacto da emergência das
da ideia de tradição e de tradicional. questões ambiental e étnica, que vêm
Normalmente essas palavras carregam redefinindo o padrão de conflitividade e o
forte conotação negativa, pois são defi- campo relacional dos antagonismos.
nidas e significadas numa relação de Isso implica uma espécie de “ambienta-
contraste com a ideia de modernida- lização” e “etnização” das lutas sociais,
de ou modernização, que traz em si complexificando a questão fundiária e
uma positividade expressa na ideia do agrária, foco irradiador dos principais
novo. Nessa leitura, a noção de povos conflitos no campo brasileiro.
tradicionais/comunidades tradicionais Essas novas formas de agenciamen-
traz consigo um sentido pejorativo, tos políticos implicaram a amplia-
pois o tradicional significa atraso, ig- ção das pautas de reivindicações e a
norância, improdutividade, em contra- criação de novas agendas políticas. Esses
ponto com a ideia de um modo de vida novos movimentos lutam não apenas
e de um modo de produção moder- contra a desigualdade – pela redistribuição
nos, marcados pela urbanização, pela de recursos materiais (a terra) –, mas
industrialização, pela produtividade e também pelo reconhecimento das diferen-
pela velocidade, características típicas ças culturais, dos diferentes modos de
do modo de produção e de vida ca- vidas que se expressam em suas dife-
pitalistas. Contudo, a forma como os rentes territorialidades. Não se trata
movimentos sociais e as comunidades simplesmente de lutas fundiárias por
rurais vêm mobilizando esse termo redistribuição de terra;; elas envolvem
busca ressignificar essa carga pejorati- também o reconhecimento de elementos
va e estereotipada, acrescentando certa étnicos, culturais e de afirmação iden-
positividade à ideia de tradicional, em titária das comunidades tradicionais,
muitos sentidos até idealizada;; nessa apontando para a necessidade do re-
perspectiva, o tradicional não signifi- conhecimento jurídico e de seus ter-
ca o atraso, não se restringe à ideia de ritórios e territorialidades. É nesse pro-
tradição e ao passado;; tem um senti- cesso que ocorre um deslocamento
do político-organizativo e apresenta-se semântico, político e jurídico da luta
como alternativa ao modo de produção pela terra para a luta pelo território.
e ao modo de vida capitalistas. Nesse processo de afirmação de
No entanto, essas reconfigurações novas identidades políticas e da cons-
identitárias não são gratuitas: repre- trução de novas agendas nas lutas dos
sentam novas estratégias na luta por povos e comunidades tradicionais, há
direitos, formas de garantias de direi- um deslocamento do eixo das lutas so-
tos sociais e culturais, notadamente o ciais por justiça e emancipação, funda-
chamado “direito étnico à terra” e o di- das nas ideias de igualdade e redistribui-
reito à “posse agroecológica da terra”, ção, para um novo eixo, estruturado em
que buscam assegurar a posse coletiva torno da valorização do direito à diferença
ou familiar das terras e dos recursos e de uma noção de justiça alicerçada

600
Povos e Comunidades Tradicionais

no reconhecimento do outro (Fraser, 2002). ça, não é absolutamente evidente que


Isso implica o deslocamento das lutas as atuais lutas pelo reconhecimento es-
contra a exploração, a privação, a mar- tejam contribuindo para complementar
ginalização e a exclusão social – fruto e aprofundar as lutas mais amplas por
das desigualdades socioeconômicas es- Reforma Agrária e pela redistribuição
truturais de nossas sociedades capita- igualitária da terra;; na realidade, para
listas periféricas – para as lutas contra muitos críticos dessas novas ideias e
o não reconhecimento e o desrespeito práticas, as lutas por reconhecimento
das minorias, que resultam das for- podem estar contribuindo para frag-
mas de dominação cultural e étnico/ mentar, enfraquecer e deslocar a luta
racial herdadas em sociedades com um por Reforma Agrária e justiça social.
passado colonial/racista nas quais ain- O desafio teórico e político que es-
da permanece, como padrão de poder ses grupos têm de enfrentar é a cons-
atual e atuante, a colonialidade do po- trução de uma concepção de justiça e
der (Quijano, 2005). emancipação social bifocal. Assim, vis-
A percepção do significado político ta por uma das lentes, a justiça é uma
desses deslocamentos que as lutas dos questão de redistribuição igualitária da ter-
“povos e comunidades tradicionais” ra ;; nesse sentido, a luta por Reforma
vêm realizando no imaginário e na Agrária é claramente uma luta anticapi-
cultura política brasileira é controver- talista. Vista pela outra, a justiça é uma
sa. Para muitos, esse deslocamento do questão de reconhecimento de territórios;;
paradigma da redistribuição de terra para nessa perspectiva, a luta por Reforma
o reconhecimento de territórios representa Agrária é claramente uma luta desco-
um alargamento da contestação políti- lonial, luta pela descolonização do Es-
ca e um novo entendimento de justiça tado e da sociedade (Quijano, 2005).
social, ultrapassando uma visão restrita Cada uma das lentes foca um aspecto
de justiça e de emancipação fixada em importante da justiça social, mas ne-
torno do eixo da classe, e incluindo ou- nhuma, por si só, basta. A compreen-
tros elementos, como a “raça”, a etnici- são plena só se torna possível quando P
dade, a sexualidade etc., elementos que as duas lentes são sobrepostas. Isso,
não foram contemplados na agenda porém, não é tarefa fácil, pois envol-
clássica de lutas no campo. Contudo, ve todas as tensões e contradições da
se essa nova cultura política amplia e construção de um projeto de eman-
enriquece noções de justiça social e cipação social em que igualdade e di-
emancipação por meio da incorpora- ferença sejam pilares equivalentes no
ção da ideia de reconhecimento da diferen- horizonte de justiça social.

Para saber mais


ALMEIDA, A. W. B. Terras tradicionalmente ocupadas, processos de territoriali-
zação e movimentos sociais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 6,
n. 1, p. 9-32, maio 2004.
ARRUTI, J. M. A. A emergência dos “remanescentes”: notas para o diálogo entre
indígenas e quilombolas. Mana, v. 3, n. 2, p. 7-38, 1997.

601
Dicionário da Educação do Campo

BARRETTO FILHO, H. T. Populações tradicionais: introdução à crítica da ecologia


política de uma noção. In: ADAMS, C.; MURRIETA, R. S. S.; NEVES, W. A. (org.).
Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e invisibilidade. São Paulo: Annablume,
2006. p. 109-143.
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto de 27 de dezembro de 2004: cria a
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicio-
nais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 28 dez. 2004. Dis-
ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Dnn/
Dnn10408.htm. Acesso em: 30 set. 2011.
DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. 3. ed. São Paulo: Hucitec,
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FRASER, N. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e par-
ticipação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 7-20, out. 2002.
LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil. Anuário Antropológico
2002-2003, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, p. 251-290, 2005.
______. Mapeamento conceitual e bibliográfico das comunidades tradicionais no Brasil.
Brasília: Departamento de Antropologia da UnB, 2006. (Mimeo.).
QUIJANO, A. A colonialidade do poder: eurocentrismo e América Latina. In:
LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais latino-
americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-280.
P

POVOS INDÍGENAS
Marilda Teles Maracci

Povos indígenas é uma expressão gené- minar esses povos: autóctones, aborígines,
rica comumente utilizada para referir- nativos e originários. Nativos e originá-
se aos grupos humanos originários de rios, de modo mais específico, são ex-
determinado país, região ou localidade, pressões que nos remetem ao fato de
os quais, embora bastante diferentes essas populações serem preexistentes
entre si, guardam semelhanças funda- às invasões de seus territórios pelos
mentais que os une significativamente, colonizadores europeus. Por conta das
principalmente no que diz respeito ao diversas semelhanças que unem os po-
fato de cada qual se identificar como vos indígenas originários das Américas,
uma coletividade específica, distinta de há quem também se refira a eles
outras com as quais convive e, princi- como ameríndios.
palmente, do conjunto da sociedade na- Cabem aqui algumas considerações
cional na qual está inserida (Conselho a respeito do uso da palavra índio e suas
Indigenista Missionário, 2011a). derivações, enquanto noção, conceito
Além de indígenas, outras expres- ou categoria. O índio sempre foi defi-
sões também são utilizadas para deno- nido como uma construção da cultura

602
Povos Indígenas

da sociedade dominante. Há um con- Esse tipo de manifestação é recorrente


ceito forjado de “índio” que pouco se entre os povos indígenas e reflete a sua
relaciona com a identidade e a cultura noção de identidade e autonomia.
de cada povo ou grupo, tornando-se, O mesmo ocorre com a ideia de
assim, uma classificação homogenei- povo, que sugere a concepção de uma
zante, pois engloba, em uma única ca- única identidade coletiva, uma noção
tegoria, povos muito diferentes. Alcida de sociedade homogênea. As lutas e
R. Ramos (1990) atribui à situação de articulações dessas novas identidades
contato na antinomia índio/branco que se organizam em movimentos so-
uma dimensão política na qual o con- ciais como povos indígenas ressignificam
traste índio/branco é uma expressão a ideia de povo quando a substituem pela
política que anuncia o poder. O que ideia de povos, noção plural que abri-
significa dizer que a categoria índio é ga a noção de diversidade étnica. Essa
sempre mutuamente exclusiva e irre- ideia constitui as novas identidades co-
dutível à categoria branco. “Ser ‘índio’ letivas que, mediante suas demandas
é um infortúnio histórico” (Ramos, 1990, por territórios (não apenas por mais
p. 288). Segundo Sara Brandon (2005), terras), objetivam manter e desenvolver
desde que Cristóvão Colombo atingiu suas próprias organizações econômi-
a ilha de San Salvador, nas Bahamas, cas e culturais, ou seja, sua autonomia
em 1492, e denominou os habitantes enquanto comunidades indígenas, uma
de “índios”, porque acreditava ter atin- aspiração secular que explicita formas
gido o leste das Índias, o conceito foi próprias de organização e produção.
lapidado, impregnando o imaginário da Quanto aos povos indígenas ou povos
sociedade dominante e desumanizando originários do continente americano,
diversos povos nativos das Américas. embora guardem diferenças entre si,
No entanto, ser índio, para esses especialmente a língua – são mais de
povos, é independente daquilo que o seiscentas línguas indígenas no conti-
branco lhe diz o que isso tenha sido
ou venha a ser: “A autodeterminação
nente –, o processo histórico do qual
foram vítimas, bem como suas resis- P
[...] torna-se um bem escasso [...], al- tência, organização, mobilização e luta,
cançável pela apropriação da mesma os fazem mais semelhantes do que di-
arma do oponente – a própria noção ferentes entre si. Esses povos possuem
de índio – metamorfoseada em pala- vínculos milenares de caráter espiritual
vra de ordem na luta política pelo di- e de visão de mundo.
reito de ser diferente” (Ramos, 1990, As populações indígenas experien-
p. 289). Assim, os povos indígenas em ciam ancestralmente interações com-
luta apropriam-se da noção de índio e plexas com o ambiente e a produção,
a ressignificam na afirmação do direi- a sociedade e a economia, os saberes e
to à diferença, em que índio é igual a seus exercícios, e as formas sociais de
branco, não por semelhança, mas por apropriação do espaço, constituindo-o
equivalência de direitos. Segundo o em território, têm para elas importân-
guarani Karay Djekupé: “Nós nunca cia existencial. Território para essas
nos importamos muito com os nomes populações é mais do que terra, é bio-
dados pelos brancos, porque nós sa- diversidade mais cultura (Maracci, 2008).
bemos quem somos” (Tavares, 2007). Essas territorialidades ancestrais, tradi-

603
Dicionário da Educação do Campo

cionais, originárias, nativas, por resis- ciedade moderna, colonial e capitalista,


tência histórica aos danos ambientais, de caráter produtivista e excludente.
culturais e econômicos desde as in- Sendo assim, os povos indígenas são vis-
vasões europeias, são povos que po- tos e tratados historicamente como um
demos considerar, como sugere obstáculo, um entrave aos projetos de
Arturo Escobar (2005), espaços de dominação política e econômica, des-
“reserva ética”. Essas “sociedades da natureza” de o início do processo de colonização
(Descola apud Escobar, 2005) constroem até as suas mais recentes atualizações
e sentem os seus ambientes de maneiras (Maracci, 2008).
muito próprias, constituindo vínculos
de continuidade entre o mundo biofísi- Vivemos séculos de coloniza-
co, o humano e o supranatural. ção, e hoje as imposições de
políticas neoliberais, chamadas
Nesse sentido, seus mundos vincu-
de globalização, continuam le-
lam-se entre si por matrizes indígenas
vando à pilhagem e ao roubo de
originárias, como podemos perceber,
nossos territórios, apoderando-
por exemplo, neste trecho da declara-
se de todos os espaços e meios
ção dos Povos e Nacionalidades Indíge-
de vida dos povos indígenas,
nas de Abya Yala:1 “reafirmamos nossos
causando a degradação da Mãe
princípios milenares, de complementa-
Natureza, a pobreza e a migra-
ridade, reciprocidade e parceria, e nossa
ção, por causa da sistemática
luta pelo direito ao território, pela Mãe
intervenção na soberania dos
Natureza, pela autonomia e a livre deter-
povos pelas empresas transna-
minação dos povos indígenas”2 (Cumbre
cionais em parceria com os go-
Continental de Pueblos y Nacionalidades
vernos.3 (Cumbre Continental
Indígenas de Abya Yala, 2007). de Pueblos y Nacionalidades
Suas existências, seus mundos de viver Indígenas de Abya Yala, 2007)
(Maracci, 2008) e suas lutas territoriais
problematizam profundamente os va- No atual contexto marcado pelo
lores societários, tanto na dimensão es- neoliberalismo e pelo modelo de
piritual quanto na dimensão da pessoa desenvolvimento econômico pautado
humana e da natureza, ante a hegemo- no agronegócio/agroindústria, e com
nia do capitalismo e respectivas formas o agravo da crise econômica mundial, os
de dominação, exploração, genocídio, povos indígenas de Abya Yala, a cha-
epistemicídio, nas suas mais variadas mada América dos colonizadores,
formas de exercício de estratégias de voltam-se, segundo Paulino Montejo,
inferiorização. As próprias dinâmicas líder indígena maia da Guatemala,
territoriais indígenas testemunham o “para criar condições para se organi-
caráter antagônico das suas raciona- zar e para defender, inclusive com a
lidades em relação à racionalidade do própria vida, o pedaço de chão ou o
capital, em especial na sua expressão território, que nesse novo modelo de
como modelo produtivista, concen- desenvolvimento é agredido e ameaça-
trador de terras e de recursos naturais, do” (Wolfart e Fachin, 2009). Confron-
monocultor e agroindustrial, tal como tados na sua existência e sobrevivência
vigora na atualidade. São matrizes in- pela ameaça das frentes civilizatórias
dígenas figurando no plano epistêmico aos seus espaços culturais sagrados, ao
como problematização profunda da so- seu ambiente natural e à biodiversida-

604
Povos Indígenas

de que têm preservado milenarmente terra – indígenas, camponeses e as cha-


e da qual dependem, os povos indígenas madas populações tradicionais – ne-
do mundo inteiro avançaram nas suas cessitam criar condições para se orga-
lutas nas últimas três décadas, forjando nizarem e para defenderem, inclusive
mudanças nas leis constitucionais de com a própria vida, seus territórios ou
diversos Estados nacionais da América um pedaço de chão. Tais características
Latina, afirmando, concomitantemen- de antagonismo à lógica capitalista, co-
te, suas diferenças culturais, identitá- muns aos povos indígenas, permitem,
rias e epistêmicas, e explicitando seus por suas expressões políticas como
modos de ser e de pensar distintos movimento social, que sejam conside-
da cultura dominante ocidental cristã rados “movimentos antissistêmicos”
capitalista. Ensejam, assim, uma mu- (Wallerstein, 2004).
dança na mentalidade integracionista,
homogeneizante e autoritária dos Es- Lutas e resistências
tados latino-americanos. indígenas na América Latina
Nesse sentido, esses povos articu-
lam diversos espaços políticos, sociais Desde as invasões europeias, os
e culturais em diferentes escalas, cons- povos de Abya Yala oferecem resistên-
tituindo o movimento indígena. For- cia ao saqueio de seus territórios e às
mam, assim, redes de relações que ex- situações assimétricas de poder cons-
trapolam suas escalas locais e que vão truídas desde então. Embora possamos
além das fronteiras artificiais constituí- referir-nos aos povos indígenas como
das pelos Estados nacionais, amplian- identidade coletiva em construção, as
do espacial e politicamente suas ações, distintas trajetórias experimentadas pe-
ao mesmo tempo em que afirmam e re- los diversos povos, nações e grupos in-
constroem suas territorialidades espe- dígenas da América Latina configuram
cíficas (Maracci, 2008). Partem, assim, um cenário com diferentes níveis de
ainda segundo Paulino Montejo, articulação entre eles e de alianças com
as lutas dos trabalhadores do campo
e da cidade, bem como diferentes ní-
P
[...] para as lutas de caráter regio-
nal, no caso da América Latina, veis de influência nas políticas de Esta-
do e respectivas leis constitucionais.
e inclusive de caráter mundial,
ocupando espaços em organis- As articulações indígenas na escala
mos internacionais, como a pró- continental, por exemplo, pautam agen-
pria Organização das Nações das de lutas, também na escala conti-
Unidas (ONU), via comissão de nental, cujos eixos principais englobam
direitos humanos, via grupos terra, territórios e unidade com a Mãe Na-
de trabalho sobre populações tureza – esse último o pilar fundamental
indígenas e atualmente no Fó- de suas existências e união. Esses são ei-
rum Permanente da ONU para xos comuns a todos os povos indígenas
os Povos Indígenas. (Wolfart e e, com base neles, constroem lutas, en-
Fachin, 2009) tre outras, pela reconstituição dos seus
povos e amplas articulações do mo-
Há, ainda, uma percepção nes- vimento indígena;; pela implantação
ses povos de que todos os segmentos dos direitos coletivos como povos in-
sociais que têm algum vínculo com a dígenas;;4 pela legítima representação

605
Dicionário da Educação do Campo

indígena nos processos nacionais e in- Os povos indígenas nas últimas déca-
ternacionais, chegando a efetivar o das, especialmente na América Latina,
início da construção dos Estados plu- fazem-se visíveis no cenário político
rinacionais e sociedades interculturais, internacional como identidade coleti-
como tem sido a experiência na Bolí- va que se constrói na organização po-
via, por exemplo. lítica, na reconstrução e afirmação de
Mesmo partilhando experiências suas identidades etnoculturais, na luta
históricas comuns nos confrontos por seus territórios, na explicitação das
às frentes civilizatórias de colonização e suas visões de mundo ou de seus mun-
ao capitalismo, dada a diversidade dos de viver, na promoção de significa-
epistêmica própria dos povos indígenas tivas mudanças constitucionais em al-
e a diversidade das suas experiências guns Estados nacionais, na eleição
históricas específicas, verificam-se no de alguns presidentes indígenas (Evo
movimento social indígena desde lu- Morales na Bolívia, Rafael Correa no
tas pontuais e isoladas, conforme os Equador e Hugo Chávez na Venezuela),
desafios imediatos dados pelas obje- na problematização profunda da racio-
tivações locais da racionalidade capi- nalidade dominante que produz a tec-
talista, limitadas à circunscrição do nonatureza contra a natureza. Os povos
seu território original, até propostas indígenas em luta ampliam o debate so-
anticapitalistas, antipatriarcais e anti- bre os problemas sociais, econômicos,
imperiais diversas. A grande maioria políticos e culturais gerados pelo capi-
das entidades indígenas mescla for- talismo e pela sua expressão neoliberal,
mas organizativas não índias com suas junto com outras lutas sociais do campo
formas tradicionais de organização. e da cidade, afirmando princípios de
Em termos de lutas de embates solidariedade, cooperação, complemen-
mais localizados, que podem ou não ser taridade, reciprocidade, parceria e auto-
ampliadas para projetos maiores de re- nomia dos povos. Assim, declaram: “So-
sistência, os indígenas se articulam em nhamos nosso passado e recordamos
diversas organizações locais, regionais nosso futuro”6 (Cumbre Continental
e na escala dos respectivos Estados- de Pueblos y Nacionalidades Indígenas de
nações que os envolvem. No que se Abya Yala, 2007).
refere às articulações continentais ou
mundiais dos povos indígenas, há ex- Povos indígenas no Brasil
pressões significativas. Assim, os po-
vos indígenas reunidos em Iximche No Brasil, a Constituição Federal de
(terras altas do oeste da Guatemala) 1988, em vigor, estabelece que os direi-
declararam a intenção de “consolidar tos dos índios sobre as terras que tra-
o processo de alianças entre os po- dicionalmente ocupam são de natureza
vos indígenas, dos povos indígenas e originária, ou seja, anteriores à formação
dos movimentos sociais do continente do Estado nacional brasileiro. Em seu
e do mundo, que permitam enfrentar artigo 231, a Constituição estabelece:
as políticas neoliberais e todas as for-
mas de opressão”5 (Cumbre Continen- Art. 231 – São reconhecidos
tal de Pueblos y Nacionalidades Indí- aos índios sua organização so-
genas de Abya Yala, 2007). cial, costumes, línguas, crenças

606
Povos Indígenas

e tradições, e os direitos origi- Embora povos específicos tenham


nários sobre as terras que tra- diminuído demograficamente e alguns
dicionalmente ocupam, com- estejam até ameaçados de extinção,
petindo à União demarcá-las, verifica-se nas três últimas décadas um
proteger e fazer respeitar todos crescimento acelerado da população in-
os seus bens. dígena no Brasil. De acordo com dados
do Instituto Brasileiro de Geografia e
§ 1º – São terras tradicional- Estatística (IBGE), em 1991, o percen-
mente ocupadas pelos índios tual de índios em relação à população
as por eles habitadas em ca- total brasileira era de 0,2%, equivalen-
ráter permanente, as utiliza- te a 294 mil pessoas. “Em 2000, 734
das para suas atividades pro- mil pessoas (0,4% dos brasileiros) se
dutivas, as imprescindíveis autoidentificaram como indígenas, um
à preservação dos recursos crescimento absoluto, no período entre
ambientais necessários ao censos, de 440 mil indivíduos ou um
seu bem-estar e as necessá- aumento anual de 10,8%” (Instituto
rias a sua reprodução física e Brasileiro de Geografia e Estatística,
cultural, segundo seus usos, 2005). De acordo com o Censo de
costumes e tradições. 2010, os 230 povos indígenas contabi-
lizados – 241, segundo o Conselho In-
Assim, ficou estipulado que o Es-
digenista Missionário (Cimi) (2011) –
tado brasileiro não deve mais atuar no
somam 817.963 pessoas (Instituto
sentido da integração desses povos à
Brasileiro de Geo-grafia e Estatística,
“comunidade nacional”, ou seja, para
2010). Delas, 315.180 vivem em cida-
a sua integração econômica (às for-
des e 502.783, em áreas rurais.
ças de trabalho) e cultural pelas vias
da “tutela orfanológica”, da “pacifica- Nesse censo, todos os estados bra-
ção”, da miscigenação e da submissão sileiros acusaram a presença de índios:
ao poder estatal (política implantada
nas ações do Serviço de Proteção ao
“Em termos absolutos, o estado brasi-
leiro com maior número de indígenas P
Índio – SPI e da Fundação Nacional é o Amazonas, com uma população de
do Índio – Funai), 7 processo que es- 168 mil. Já em termos percentuais, o
tendeu e ampliou atrocidades cometi- estado com maior população indíge-
das desde 1500, resultando na extin- na é Roraima, onde os indígenas re-
ção de grupos tribais. presentam 11% da população total do
Algumas estimativas indicam que estado” (Brasil, 2011). Segundo dados
no século XVI havia no Brasil de 2 oficiais divulgados pela Funai, a po-
a 4 milhões de pessoas, pertencen- pulação indígena está distribuída em
tes a mais de mil povos diferentes. “683 terras indígenas8 e algumas áreas
Após um longo período de perdas urbanas. Há também 77 referências de
populacionais causadas por guerras grupos indígenas não contatados, das
e epidemias e pelos processos de es- quais 30 foram confirmadas. Existem
cravização, os povos indígenas ini- ainda grupos que estão requerendo o
ciaram um processo de recuperação reconhecimento de sua condição indí-
demográfica, muitas vezes consciente gena junto ao órgão federal indigenista”
(Azevedo, 2011). (Brasil, s.d.).

607
Dicionário da Educação do Campo

Esse crescimento (e/ou “descober- mesmos problemas. São práticas ar-


ta”) pode ser atribuído à soma de vá- caicas que ocorrem no país e que se
rios fatores, dentre os quais podemos somam a ocorrências relativamente
destacar a melhoria paulatina das for- recentes, tais como uso de drogas, al-
mas de coletar os dados de cada cen- coolismo, assassinatos e demais viola-
so (a categoria indígena só foi incluída ções de direitos. Os numerosos casos
no Censo de 1991 e a autodeclaração, de violência contra o patrimônio dei-
apenas no Censo de 2000);; a atuação xam claro que a situação conflituosa
fundamental das populações indíge- vivida pelos indígenas brasileiros está
nas, e de suas lideranças, e uma nova intimamente ligada ao modelo desen-
consciência étnico-política;; a interação volvimentista adotado pelo país, à falta
da população indígena com outros mo- de acesso a terra e ao desrespeito à de-
vimentos sociais e a forte pressão de marcação de suas terras (ibid.).
antropólogos, juristas, cientistas políti- O referido relatório identifica em
cos, missões religiosas e organizações 2010, no Brasil: a) violência contra o pa-
não governamentais (ONGs);; um am- trimônio, provocada pela omissão e
biente mais favorável para que as pes- morosidade na regularização de terras
soas se autodeclarem (percepção social e conflitos relativos a direitos territo-
da inter-relação entre questão indígena riais (grandes monoculturas, invasões,
e questão ambiental, Constituição de desmatamentos, invasões possessórias,
1988, Conferência Rio-92, a preocu- exploração ilegal de recursos natu-
pação do governo com a imagem do rais e danos diversos ao patrimônio);;
país e sua repercussão internacional);; b) violência contra a pessoa praticada por
os tratados de direitos de minorias e particulares e agentes do poder público: as-
direitos humanos dos quais o Brasil é sassinatos, tentativa de assassinato,
signatário desde 1966;; a alta fecundi- ameaça de morte, lesões corporais do-
dade, derivada de determinantes cultu- losas (despejo violento após retomada
rais, associada à queda da mortalidade;; de sua terra tradicional, exploração de
e a recuperação demográfica conscien- trabalho com violência física, atrope-
te ou intencional (da qual são exem- lamentos, agressões físicas, espanca-
plo os yanomami e os guarani-mbya), mentos etc.), abuso de poder da Polícia
entre outros. Federal, racismo e discriminação étnico-
cultural (declarações discriminatórias,
declarações preconceituosas na impren-
Problemas enfrentados sa, agressões física e verbal, retenção
pelas populações indígenas de documentos), e violência sexual (es-
no Brasil tupro, abuso sexual com agressões físi-
cas, exploração sexual, molestamento);;
Segundo o relatório do Cimi (Con- c) violências provocadas por omissão do poder
selho Indigenista Missionário, 2011a), público (âmbitos municipal, estadual e
as populações indígenas no Brasil en- nacional), tais como suicídio e tentati-
frentam um alarmante quadro de vio- va de suicídio (principalmente entre os
lência e violações de seus direitos que jovens),9 desassistência na área de saú-
não se modificou nos últimos anos: de,10 sendo as crianças as mais vulne-
o cenário é o mesmo e os fatores de ráveis, mortalidade infantil (os índices
violência se mantêm, reproduzindo os são alarmantes e aumentaram 513%,

608
Povos Indígenas

quando comparados com os do ano No que diz respeito aos povos indí-
de 2009), disseminação de bebida al- genas isolados e de pouco contato (mais de
coólica e outras drogas, desassistência 90 povos), que são os mais vulneráveis
na área de educação escolar indígena, pois não possuem nenhum instrumen-
desassistência geral (serviços básicos, to de luta contra o avanço do grande
infraestrutura básica nas aldeias, ha- capital, a realidade é desesperadora.
bitação, não assistência na produção O relatório do Cimi mostra que esses
agrícola, escassez de alimentos, desvio povos estão sob ameaça de massacres,
de verbas, falta de recursos etc.) (Con- genocídio e extinção como resultado
selho Indigenista Missionário, 2011a). das invasões e ocupações e da explora-
Nos estados do Sul do Brasil ção de seus territórios, em ações que se
(Paraná, Santa Catarina e Rio Grande associam à lógica predatória em curso
do Sul), a pesquisa do Cimi consta- e que atingem todas as populações in-
tou que existem populações indígenas dígenas: incursão ilegal de fazendeiros,
vivendo há anos na margem de estra- garimpeiros e madeireiros em terras
das e rodovias, com completa omissão indígenas (mesmo aquelas já demarca-
por parte das administrações estaduais. das);; avanço da frente econômica do
Num conflito diário, elas sofrem pres- agronegócio, resultando em desma-
sões dos agricultores e do poder poli- tamento e em monoculturas de soja
cial, que causam “um número assusta- transgênica, cana-de-açúcar, eucalipto
dor de suicídios, de assassinatos e de e pinus ou, ainda, a criação de gado em
prisões de índios no Sul” (Conselho terras que estão em demarcação;; as-
sentamentos do Instituto Nacional de
Indigenista Missionário, 2011a).
Colonização e Reforma Agrária (Incra)
A situação no Mato Grosso é gravís- e/ou projetos de colonização;; ecotu-
sima, por ser “o estado que mais derru- rismo;; abertura de novas rodovias e
ba áreas de floresta, com uma ‘explosão’ ferrovias, bem como pavimentação de
nos números referentes ao desmatamen- estradas que rasgam terras indígenas;;
to ambiental, afetando 100 áreas indíge-
nas e 20 áreas de proteção” (Conselho
grilagem de terras;; caçadores e pesca-
dores profissionais;; contágio por doen-
P
Indigenista Missionário, 2011a). Além ças;; políticas governamentais;; grandes
disso, o número de vítimas do descaso projetos;; empreendimentos com negli-
na área de saúde no Mato Grosso, com gência proposital por parte do governo
a falta de atendimento médico, é alar- federal em relação à presença de po-
mante: 15 mil indígenas. vos isolados,11 como os grandes proje-
No Maranhão, “quase não há mais tos de infraestrutura agora implantados
áreas de florestas, as únicas estão em bol- por meio da Iniciativa de Integração da
sões demarcados indígenas”, e são corri- Infraestrutura Regional Sul-Americana
queiros os conflitos por terras, madeiras (Iirsa) e pelo Programa de Aceleração
e recursos naturais (Conselho Indigenis- do Crescimento (PAC), com o propó-
ta Missionário, 2011b). Em “quase 100% sito de facilitar a exploração, o acesso e
das construções de hidrelétricas no a livre circulação de mercadorias (ma-
Brasil, as áreas alagadas ou alagáveis atin- deira, minérios, peixes, água e outros)
gem áreas de reservas indígenas”, sendo e o escoamento dos recursos natu-
o caso de Belo Monte, no Pará, o mais rais da região. Cabe ressaltar as conces-
emblemático, segundo o Cimi (ibid.). sões governamentais para a construção

609
Dicionário da Educação do Campo

das hidrelétricas de Jirau e Santo o Movimento Indígena Revolucionário


Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, (AIR) e o Acampamento Terra Livre
e de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, (ATL), cuja oitava edição aconteceu
mesmo em face de todas as contesta- em maio de 2011.
ções e provas da ineficiência do projeto Em relação às articulações mais
e do perigo de que as obras restrinjam amplas no Brasil, o movimento na-
ainda mais os espaços de refúgio dos cional indígena se organiza em articu-
povos livres (Conselho Indigenista lações nacionais, como a Articulação
Missionário, 2011b). dos Povos Indígenas do Brasil (Apib),
Para os indígenas que vivem nas cida- e em comissões e conselhos nacionais e
des, segundo o relatório do Cimi (Con- regionais, sendo realizados encontros
selho Indigenista Missionário, 2011a), locais, estaduais, regionais e nacionais.
faltam políticas específicas e adequadas “Somos, como bem lembrou um de
e não há infraestrutura: faltam água, nossos parentes, os povos do amanhã,
ou a água disponível está contaminada, porque não pensamos só no hoje. Que-
e apoio à produção agrícola e as vias de remos que a terra e a natureza perma-
acesso são precárias. Além disso, não neçam vivas para sempre!” (Encontro
são aceitos os documentos indígenas Nacional dos Povos Indígenas, 2011).
para o acesso a direitos, não há encami- A Articulação dos Povos Indígenas
nhamento para o auxílio-maternidade e do Brasil, instância nacional de delibera-
o auxílio-doença, e não são oferecidas ção e articulação política do movimento
cestas básicas. indígena, congrega as organizações in-
dígenas regionais de todo o país, entre
Articulações e organizações elas a Articulação dos Povos Indígenas
do Nordeste, Minas Gerais e Espírito
indígenas no Brasil Santo (Apoinme), a Articulação dos
No Brasil, são diversas as expressões Povos Indígenas do Pantanal e Região
das organizações dos povos indígenas, não (Arpipan), a Articulação dos Povos In-
apenas de entidades com regulamen- dígenas do Sudeste (Arpin-Sudeste),
tação jurídica (associações), mas tam- a Articulação dos Povos Indígenas do
bém de entidades de luta. Algumas or- Sul (Arpin-Sul), a Grande Assembleia
ganizações podem se constituir desde do Povo Guarani Aty Guassu e a Coor-
as aldeias;; outras envolvem todas as al- denação das Organizações Indígenas da
deias de uma etnia. Há também organi- Amazônia Brasileira (Coiab). A Apib
zações regionais que abrangem diversos também possui uma comissão nacional
povos indígenas e, ainda, organizações es- permanente em Brasília, formada por
truturadas por temas, como educação e representantes das organizações e
saúde indígenas, direitos indígenas etc. por assessores técnicos.
Em termos de resistência cultural, os Como exemplo de articulação mais
indígenas no Brasil realizam diversas ampla entre os povos indígenas do Brasil
mobilizações e eventos, a exemplo do e de outros países, cabe citar que em 16
XV Encontro de Contação de Histórias de setembro de 2010, 66º dia da greve de
Indígenas, realizado em 2010. Dentre fome dos 32 prisioneiros políticos
os movimentos e mobilizações indíge- mapuche, lideranças do Acampamen-
nas de expressão nacional, destacam-se to Indígena Revolucionário (AIR), do

610
Povos Indígenas

Centro de Etnoconhecimento Socio- rios das três Américas” (Acampamento


ambiental e Cultural Cauieré (Cesac) e Indígena Revolucionário, 2011).
do American Indian Movement (AIM) Os povos indígenas, assim, reafir-
reuniram-se no bairro de Santa Teresa, mam cada vez mais a sua presença e a
no Rio de Janeiro, a fim de “discutir sua capacidade histórica de resistência
caminhos para romper com o silên- a todo tipo de agressões e aos massacres
cio criminoso da mídia corporativa, se praticados pelas sociedades nacionais
omitindo quanto às ações de genocídio, e pelo avanço capitalista, que impõe pa-
etnocídio e de terrorismo de Estado râmetros societários completamente di-
perpetrados contra os povos originá- versos dos praticados por esses povos.

Notas
1
Abya Yala é o nome dado ao continente americano pela etnia kuna, do Panamá e Colômbia,
antes da chegada de Cristóvão Colombo e dos europeus. O nome também foi adotado por
diferentes povos e nações indígenas, que insistem no seu uso, em vez de América, para
se referir ao continente americano. Abya Yala quer dizer terra madura, terra viva, terra em
florescimento. O uso do nome Abya Yala é assumido como posição política, argumentando-
se que o nome América ou a expressão Novo Mundo é própria dos colonizadores europeus
e não dos povos originários do continente. “Los gobiernos de Abya Yala son ancestrales y
los gobiernos de los Estados son coloniales […] nosotros no somos etnias, somos naciones,
pueblos, nacionalidades” (Encuentro Continental de Pueblos y Nacionalidades Indígenas
del Abya Yala, 2006).
2
“[...] ratificamos nuestros principios milenarios, complementariedad, reciprocidad y duali-
dad, y nuestra lucha por el derecho al territorio, la Madre Naturaleza, la autonomía y libre
determinación de los pueblos indígenas.”
3
“Vivimos siglos de colonización, y hoy la imposición de políticas neoliberales, llamadas de
globalización, que continúan llevando al despojo y saqueo de nuestros territorios, apoderán-
dose de todos los espacios y medios de vida de los pueblos indígenas, causando la degrada-
ción de la Madre Naturaleza, la pobreza y migración, por la sistemática intervención en la P
soberanía de los pueblos por empresas transnacionales en complicidad con los gobiernos.”
4
Ver a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas
(Organização das Nações Unidas, 2008) e a ratificação da Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho (2011).
5
“Afianzar el proceso de alianzas entre los pueblos indígenas, de pueblos indígenas y los
movimientos sociales del continente y del mundo que permitan enfrentar las políticas
neoliberales y todas las formas de opresión.”
6
“Soñamos nuestro pasado y recordamos nuestro futuro.”
7
O Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, mais tarde
apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI), foi criado pelo decreto-lei nº 8.072, de 20
de junho de 1910. Em 1967, durante a ditadura militar, foi criada a Fundação Nacional do
Índio (Funai), em substituição ao SPI.
8
Terra indígena: o texto constitucional trata de forma destacada esse tema, apresentan-
do, no parágrafo 1º do artigo 231, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios, definidas como aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais

611
Dicionário da Educação do Campo

necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições”. Terras que, segundo o inciso XI do artigo 20 da Constituição
Federal, “são bens da União”, sendo “inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas
imprescritíveis” (art. 231, parágrafo 4º). Os critérios para a identificação e a delimitação
de uma terra indígena, que devem ser realizadas por um grupo de técnicos especializados,
estão definidos no decreto nº 1.775/1996 e na portaria nº 14/MJ, de 9 de janeiro de 1996
(Brasil, s.d.).
9
“Segundo a Organização Mundial da Saúde, um índice de 12,5 mortes por 100 mil pessoas é
considerado muito alto;; o índice de suicídio entre os guarani e kaiowá é de 32,5. Nos últimos anos,
aconteceram vários suicídios entre o povo karajá” (Conselho Indigenista Missionário, 2011a).
10
Ver tabela “Capítulo III – Violência por omissão do Poder Público” (Conselho Nacional
Indigenista, 2011a, p. 151).
11
Também chamados de povos livres, por terem optado por se manter afastados das so-
ciedades nacionais, não têm, como estratégia de sobrevivência, contato algum com elas.
Continuam, assim, fugindo das frentes colonizadoras de expansão nacional e dos grandes
projetos. No entanto, esses povos não se encontram livres da usurpação de seus territórios,
e estão, assim, seriamente ameaçados de extinção.

Para saber mais


ACAMPAMENTO INDÍGENA REVOLUCIONÁRIO (AIR). A águia, o carcará e o caboré:
a resistência indígena nas Américas sobrevoa Estados e fronteiras. AIR, 20
set. 2011. Disponível em: http://acampamentorevolucionarioindigena.blogspot.
com/2010/09/aguia-o-carcara-e-o-cabore-resistencia.html. Acesso em: 4 out. 2011.
AZEVEDO, M. M. Diagnóstico da população indígena no Brasil. Ciência e Cultura,
São Paulo, v. 60, n. 4, p. 19-22, 2008. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.
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3 out. 2011.
BRANDON, S. E. Penas de papel: um estudo comparativo da imagem indígena no
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BRASIL. FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI). Índios do Brasil. As terras indí-
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anteriores/maio-2011/boletim-1279-09.05/populacao-indigena-cresceu-11-
segundo-ibge/. Acesso em: 8 nov. 2011.
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Violência contra os povos indígenas no
Brasil: dados de 2010. Relatório. Brasília: Cimi, 2011a. Disponível em: http://www.

612
Povos Indígenas

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Dicionário da Educação do Campo

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em: 3 out. 2011.

PRODUÇÃO ASSOCIADA E AUTOGESTÃO


Lia Tiriba
Maria Clara Bueno Fischer

O termo produção associada e autoges- sujeitos coletivos o poder de decisão


tão nos remete a relações econômico- sobre o processo de produzir a vida
sociais e culturais nas quais trabalhado- social. Diz respeito a um conjunto de
res e trabalhadoras têm a propriedade práticas coletivas de pessoas ou grupos
e/ou a posse coletiva dos meios de pro- sociais que se identificam por compar-
dução e cuja organização do trabalho tilhar concepções de mundo e de so-
(material e simbólico) é mediada e re- ciedade fundadas no autogoverno e na
gulada por práticas que conferem aos autodeterminação das lutas e experiên-

614
Produção Associada e Autogestão

cias das classes trabalhadoras. Ao con- dores, que o trabalho associado, “que
trário da heterogestão, os princípios, as maneja suas ferramentas com a mão
regras e as normas de convivência que re- hábil e entusiasmada, espírito alerta
gem o trabalho associativo e autoges- e coração alegre” (apud Bottomore,
tionário são criados e recriados pelos 1993, p. 20), representa a negação do
seus integrantes. No caso do Movi- trabalho assalariado.
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Nessa perspectiva, a cooperação
Terra (MST), por exemplo, criado por pode ser entendida como uma “for-
aqueles que lutam pelo direito à terra ma de trabalho em que muitos traba-
em que trabalham, o objetivo é a reali- lham juntos, de acordo com um plano”
zação de um interesse de classe. (Marx, 1980, p. 374), objetivando a
A compreensão do termo requer reprodução ampliada da vida (e não do
sua decomposição em duas catego- capital). No entanto, Marx alerta que,
rias: “produção associada” e “autoges- enquanto as associações cooperativas
tão”. A primeira pode ser entendida: não se desenvolverem em nível nacional,
a) como trabalho associado, ou pro- representarão apenas “um estreito cír-
cesso em que os trabalhadores se asso- culo dos esforços casuais de grupos de
ciam na produção de bens e serviços;; e trabalhadores” (apud Bottomore, 1993,
b) como a unidade básica da “sociedade p. 20), e condena a desvirtuação que fa-
dos produtores livres associados”. Im- zem os “porta-vozes e filantropos da
portante destacar que, na perspectiva burguesia” (ibid.), ao transformarem a
do materialismo histórico, a produção cooperativa em instrumento de valori-
diz respeito à totalidade dos proces- zação do capital. Para Marx, a derrota
sos de criação e recriação da realidade do capitalismo só será possível com o
humano-social mediados pelo traba- poder político nas mãos das classes tra-
lho, pelos quais o ser humano confe- balhadoras;; no entanto, mesmo limita-
re humanidade às coisas da natureza e da na sociedade capitalista, ele acredita
que a produção associada seja a célula
humaniza-se com as criações e repre-
sentações que produz sobre o mundo. da “sociedade dos produtores livres as- P
Para Karl Marx (1998), no horizonte sociados” (ibid.).
da emancipação humana, o “modo de No sentido restrito, autogestão é
produção de produtores associados” uma prática social que se circunscreve
seria fundado na propriedade e na ges- a uma ou mais unidades econômico-
tão coletivas dos meios de produção e sociais, educativas ou culturais, nas
na distribuição igualitária dos frutos do quais, em vez de se deixar a organiza-
trabalho. Referindo-se às formas que a ção do processo de trabalho aos capi-
produção associada pode apresentar na talistas e a seus representantes e/ou
sociedade capitalista, Marx utiliza os delegá-la a uma “gerência científica”,
termos trabalho associado, produção cole- trabalhadores e trabalhadoras tomam
tiva, sociedades cooperativas e associação para si, em diferentes níveis, o controle
cooperativa. Embora não tenha analisado dos meios de produção, do processo
as formas particulares dessas organiza- de trabalho e do produto do traba-
ções econômico-sociais e culturais, ele lho. No sentido político, econômico e
declara, em 1864, quando da criação da filosófico, as práticas sociais autoges-
Associação Internacional de Trabalha- tionárias carregam consigo o ideário da

615
Dicionário da Educação do Campo

superação das relações sociais capita- As experiências históricas de produ-


listas e a constituição do socialismo, ção associada e autogestão se expressam
concebido como uma sociedade auto- de variadas formas e sentidos, apresen-
gestionária. Em ambas as acepções, as tando diferentes graus de controle dos
práticas de autogestão visam à consti- meios de produção, sendo as mais co-
tuição de uma cultura do trabalho que nhecidas a Comuna de Paris (1871), os
se contrapõe à racionalidade da cultura sovietes de representantes operários,
do capital. camponeses e soldados na Rússia (1905
Autogestão é tradução literal da e 1917), a Guerra Civil Espanhola
palavra servo-croata samoupravlje (samo, (1936-1939), a República Húngara de
equivalente eslavo do prefixo grego Conselhos Operários (1918-1919), os
auto, e upravlje com significado apro- conselhos operários de Turim, na Itália
ximado de gestão). Guillerm e Bourdet (1919-1921), da Iugoslávia (1950), da
(1976) afirmam que o termo autogestion Hungria (1956) e da Polônia (1956,
só aparece na língua francesa no início 1970 e 1980, com o movimento
dos anos 1960, identificando a expe- Solidarnosc), a experiência da Argélia
riência política, econômica e social da (1962) e da Checoslováquia (1968) e
Iugoslávia de Tito, em sua ruptura com a Revolução dos Cravos em Portugal
o stalinismo (anos 1950). Com os acon- (1974). No âmbito latino-americano,
tecimentos do Maio de 68 na França, temos Cuba (1959), Chile (1972) e
ele passou a ser utilizado para qualifi- Nicarágua (1979), além de curtas expe-
car práticas sociais alternativas ao capi- riências vividas na Bolívia e no Peru,
talismo, tornando-se palavra de ordem e a dos indígenas em Chiapas (desde
nas lutas reivindicatórias no âmbito de 1994). No Brasil, especialmente no
todas as esferas da vida social. Ernest campo, vale lembrar as experiências
Mandel destaca, por exemplo, que “os da República de Canudos (1896), do
estudantes recorreram à tradição mar- Quilombo dos Palmares (na segunda
xista revolucionária e fizeram reivindi- metade do século XVII), do Caldeirão
cações tais como: ‘controle estudantil’, de Santa Cruz do Deserto (1920) e das
‘poder estudantil’, ‘autogestão’ das es- Ligas Camponesas (1950), destacando-
colas universitárias” (1988, p. 43). se pela criação da Sociedade Agrícola e
No entanto, embora o termo seja Pecuária de Plantadores de Pernambuco
relativamente novo, a ideia da autoges- (SAPPP) (1954), com a participação de
tão é tão antiga quanto o próprio Francisco Julião.
movimento operário, remontando ao A partir da década de 1990, além
início do século XIX. Com diferen- das iniciativas associativas do MST e a
tes doutrinas, as formulações acerca outros movimentos sociais no campo,
de modelos de sociedade fundados na proliferam na América Latina práticas
autogestão do trabalho e da vida so- de cunho autogestionário, por exem-
cial estão ligadas à própria história de plo, as dos movimentos de fábricas
resistência e de busca de formas ocupadas e recuperadas pelos trabalha-
de trabalho e de vida alternativas ao dores. Importante observar que essas
capitalismo, sendo seus precursores experiências não se constituem apenas
Fourier, Owen, Saint-Simon, Louis em momentos revolucionários, ou seja,
Blanc, Lassale e Proudhon. não ocorrem em contextos históricos

616
Produção Associada e Autogestão

nos quais estão em jogo a conquista do capital” (1990, p. 37). Assim, não
do Estado e a ruptura com o sistema se confundem com as práticas capita-
capital. Também merece destaque o listas de organização da produção em
fato de que, embora o modo de produ- equipes de “grupos autônomos”, “se-
ção capitalista seja hegemônico, persis- miautônomos”, “ilhas de produção” e
tem e subsistem outras formas de pro- outras inovações da organização capi-
duzir a vida social, por exemplo, nas talista que constituem novas tecnolo-
comunidades indígenas, quilombolas e gias de produção e gestão da força de
em outras comunidades tradicionais trabalho. É importante não esquecer
a cultura do trabalho não é pautada na que empresas familiares, cooperativas
valorização do capital. e outras organizações econômicas as-
As categorias produção associada e sociativas vêm sendo demandadas para
autogestão podem ser apreendidas fazerem valer a flexibilização das rela-
e problematizadas se consideradas as ções entre capital e trabalho, favore-
condições objetivas/subjetivas em que, cendo a criação das cadeias produtivas
nos diversos espaços/tempos histó- necessárias ao novo regime de acumu-
ricos, as classes trabalhadoras tomam lação. As cooperativas de trabalho e de
para si os meios de produção. Nos mo- produção que se organizam em torno
vimentos campesinos, há de se levar da agroindústria e do agronegócio são
em conta as artimanhas e imperativos exemplos disso.
do sistema capital, no interior do qual Se, como assinalava Marx, “o sabor
trabalhadores e trabalhadoras associa- do pão não revela quem plantou o tri-
dos constroem e reconstroem relações go” (1980, p. 208), o entendimento da
econômico-sociais e culturais, seja no produção associada e autogestionária
acampamento, no assentamento ou requer que nos debrucemos teórica e ati-
mesmo no seu lote. Há, ainda, que se vamente na análise das relações sociais
considerar a relação das associações de produção em que homens e mulhe-
camponesas com os demais movimen- res produzem o pão ou qualquer outro
tos sociais populares e com o próprio bem necessário para saciar a fome e, ao P
Estado, assim como os limites impos- mesmo tempo, criar e recriar a realidade
tos pela sociedade de classes às formas humano-social. Partindo do pressupos-
de organização da produção em que os to de que os movimentos sociais cam-
próprios trabalhadores (e não os pro- poneses têm se constituído como um
prietários privados da terra) decidem campo fértil do trabalho de produzir
o que, para que e como produzir a vida associativamente, as categorias
(Vendramini, 2008). produção associada e autogestão, por
As experiências associativas reve- serem abstratas, podem ganhar mate-
lam que, no embate contra a explora- rialidade histórica quando recuperada a
ção e a degradação do trabalho, não é essência dos processos de trabalho na
suficiente aos trabalhadores se apro- agricultura camponesa, incluindo muti-
priarem dos meios de produção. Como rões, puxirões e outras práticas culturais
sinaliza Lúcia Bruno, “práticas autoges- do trabalho de semear, plantar, colher,
tionárias têm que realizar uma altera- distribuir, consumir...
ção profunda nas relações de trabalho, Fundada na premissa do princípio
destruindo os processos de valorização educativo do trabalho, a unidade de

617
Dicionário da Educação do Campo

produção associada pode ser entendida livres associados” (o que pressupõe


como uma “unidade de produção as- a negação do capitalismo, entendido
sociada de saberes” na qual vão bro- por Marx como uma sociedade pro-
tando novos saberes e fazeres. A es- dutora de mercadorias, cujo objetivo é
cola da vida (e do trabalho associado) a produtividade geral do capital). Se os
se encarrega de “ensinar” a crianças, processos de produção da vida social
jovens e adultos que os movimentos de se configuram como processos de pro-
luta pela terra são fundamentais para dução de saberes, haveremos de ter em
aprender que o capitalismo não é um conta as experiências associativas que
sistema inexorável. No entanto, para vão se tecendo em meio às contradi-
além do saber produzido e construído ções entre capital e trabalho. É possí-
cotidianamente, o trabalho associa- vel afirmar que, nessas experiências, a
do e autogestionário requer a articu- cultura do trabalho caracteriza-se pela
lação dos saberes fragmentados pelo unidade da diversidade de culturas
capital, bem como a apropriação dos e experiências vividas coletivamente
conhecimentos histórica e socialmente por trabalhadores e trabalhadoras no
produzidos pela humanidade. percurso do seu fazer-se como classe
A autogestão no trabalho, profunda- trabalhadora (Thompson, 1987), o que
mente pedagógica, também se estende têm repercutido em um vasto repertó-
à autogestão escolar, o que significa rio de “saberes do trabalho associado”
dizer que na perspectiva da EDUCAÇÃO (Fischer e Tiriba, 2009a e 2009b).
OMNILATERAL e da ESCOLA UNITÁRIA O trabalho de produzir a vida asso-
caberia aos trabalhadores e trabalha- ciativamente pressupõe o aprendizado
doras associados a reflexão e a decisão de novas relações sociais. Assim a es-
quanto aos modos de produção de co- cola do trabalho pode se tornar escola
nhecimento utilizados na escola e em do trabalho associado, constituindo-se
outras instâncias de formação vividas como “escola-comuna” (Pistrak, 2009)
no campo e na cidade. Para que possa- onde crianças, jovens ou adultos apren-
mos nos contrapor à pedagogia do ca- dem a autogestão. Afinal, na perspecti-
pital, valeria perguntar em que medida va de uma “sociedade dos produtores
os processos de trabalho, entendidos livres associados”, o sentido da educa-
como processos educativos, têm per- ção “não pode ser senão o [de] rasgar
mitido a cada um dos trabalhadores e a camisa de força da lógica incorrigível
trabalhadoras (e não apenas a alguns) do sistema: perseguir de modo plane-
participar e decidir sobre os rumos da jado e consistente uma estratégia de
produção. No que diz respeito ao pro- rompimento com o controle exerci-
cesso de trabalho escolar que envolve do pelo capital, com todos os meios
crianças, jovens e adultos, como po- disponíveis” (Mészáros 2005, p. 35).
demos garantir – horizontalmente – o Experienciar práticas coletivas de
exercício de falar, escutar, duvidar, cri- trabalho é, sem dúvida, a principal escola
ticar, sugerir e decidir? para aprender o que significa produzir
As práticas de produção associa- e gerir associativamente e de forma au-
da e autogestão nos encaminham para togestionária o trabalho e a vida. Atual-
a possibilidade de realização de uma mente, no entanto, essa não tem sido a
utopia: a “sociedade dos produtores nossa principal escola. Trata-se, então,

618
Produção Associada e Autogestão

de um longo e contraditório proces- tre si, no campo ou na cidade. Para além


so de instituição de novas práticas so- da ideia de “para cada sócio um voto”,
ciais, e, ao mesmo tempo, de reflexão o desafio é que todos os trabalhadores
crítica sobre elas para produzir uma e as trabalhadoras (e não apenas alguns)
nova cultura. A autogestão das coope- possam, nos limites impostos pelo ca-
rativas por trabalhadores e trabalha- pital, tornar-se “senhores” do proces-
doras, baseada em decisões tomadas so de produzir a vida associativamente.
democraticamente, pelo coletivo dos Como nos indica Gramsci (1982), no
associados, nos núcleos de base, nas as- horizonte da emancipação das classes
sembleias e nas demais instâncias de trabalhadoras, o projeto educativo é
decisão, vai tecendo novos saberes, que todos os trabalhadores possam se
valores e, portanto, uma nova cultura. tornar governantes de si e de seu traba-
No caso do MST, a instituição escola lho, controlando aqueles que transito-
é considerada um lugar em que práti- riamente o dirigem. As dimensões edu-
cas com base na autogestão devem ser cativas do trabalho de produzir a vida
instituídas. É preciso ocupar a escola e associativamente se manifestam, entre
lá também fazer o aprendizado da au- outras, nas cooperativas de trabalhado-
tonomia e da autogestão, por meio de res do MST e em diversas associações
mecanismos de exercício do poder, na dos movimentos que compõem a Via
interface da escola com o seu entorno. Campesina, por exemplo. Também se
Trata-se de uma disputa de hegemonia manifestam no exercício de participa-
no conjunto das práticas sociais, em ção dos estudantes nos processos de
diferentes, mas articulados, tempos e trabalho e na gestão coletiva da escola
espaços da vida social. Defender uma ou de outra instância de formação hu-
organização do poder escolar baseada mana. Em síntese, a produção associada
na democracia direta compartilhada por e a autogestão situam-se no contexto de
todos os sujeitos da comunidade esco- afirmação e de formação de trabalhado-
lar representa a possibilidade de con- res e trabalhadoras para a construção de
frontar a heterogestão e a meritocracia
escolar, que expressam e ao mesmo
uma “sociedade dos produtores livre-
mente associados”. Parafraseando Marx
P
tempo alimentam a ordem vigente. (1980, p. 50), o pai é o trabalho asso-
Como prática social e parte inte- ciado (garantido pela propriedade e/ou
grante de um projeto societário alter- posse coletiva dos meios de produção)
nativo ao sistema capital, a autogestão e a mãe é a terra (onde são criadas e
materializa-se no exercício de tornar recriadas as condições para tornar ho-
horizontais as relações que diversos rizontais as relações econômico-sociais,
produtores associados estabelecem en- culturais e educacionais).

Para saber mais


BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1993.
BRUNO, L. B. O que é autonomia operária. São Paulo: Brasiliense, 1990.
GUILLERM, A.; BOURDET, Y. Autogestão: uma mudança radical. Rio de Janeiro:
Zahar, 1976.

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Dicionário da Educação do Campo

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associado e autogestão. In: CANÁRIO, R.; RUMMERT, S. (org.). Mundos do trabalho e
aprendizagem. Lisboa: Educa, 2009a. p. 174-188.
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Dicionário internacional da outra economia. São Paulo–Coimbra: Almedina, 2009b.
p. 293-298.
GRASMCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982.
MANDEL, E. Controle operário, conselhos operários, autogestão. São Paulo: Centro
Pastoral Vergueiro, 1988.
MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. Livro 1.
______. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Livro 3.
MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
PISTRAK, M. M. (org.). A escola-comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
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1987. V. 1: A árvore da liberdade.
VENDRAMINI, C. R. A relação entre trabalho, cooperação e educação nas pesquisas
sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Perspectiva, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, v. 26, n. 1, p. 119-147, jan.-jun. 2008.

PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS


(PNDH)
Paulo Vannuchi

Em junho de 1993, aconteceu em rassem um plano nacional de direitos


Viena, na Áustria, a mais importante humanos;; 2) a afirmação do princípio
conferência sobre direitos humanos da indivisibilidade.
já realizada pela Organização das Na- Além desses dois pontos centrais,
ções Unidas (ONU). O Brasil teve a conferência reforçou a indicação
participação destacada e ficou res- para que fosse criado, em dezem-
ponsável pela redação do documento bro do mesmo ano, pela Assembleia
conclusivo daquele evento, que reuniu Geral da ONU, o Alto Comissariado
mais de dez mil pessoas de 171 paí- para os Direitos Humanos, sediado
ses. Entre as centenas de propostas desde então em Genebra, na Suíça. Um
aprovadas, tiveram maior importância de seus titulares foi o brasileiro Sergio
duas inovações: 1) a recomendação de Vieira de Mello, morto num atentado
que todos os países da ONU elabo- no Iraque em 2003.

620
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)

A indivisibilidade dos direitos huma- e de organização sindical, liberdade de


nos é apresentada sempre ao lado das opinião etc.
palavras universalidade e interdependência. A burguesia detentora do poder,
Universal significa que, para ser titu- como regra geral, respondeu com re-
lar desses direitos, basta ser humano: pressão, violência e desqualificação das
de qualquer país, idade, gênero, cor da reivindicações apresentadas pelas maio-
pele, condição econômica, religião, rias excluídas. Abandonou os ideais da
cultura, ideias políticas e opção sexual. Revolução Francesa. Aquelas bandeiras
Interdependência significa que os di- tinham servido à sua pressão contra o
reitos à vida, à liberdade de expres- velho regime. Porém a nova elite não
são, à alimentação, à participação po- admitia que liberdade, igualdade e fra-
lítica, à crença religiosa, à educação, à ternidade servissem, agora, à caminhada
saúde e à cultura estão sempre ligados popular na mesma direção, rumo a uma
entre si. A garantia de um deles depen- sociedade sem nenhum tipo de explora-
de do respeito a todos os demais. ção econômica ou exclusão política.
A formulação da indivisibilidade Nenhum direito social, até hoje,
foi um ponto de virada porque, desde foi conquistado pela classe trabalhado-
antes da Declaração Universal dos Di- ra, em qualquer país do mundo, sem
reitos Humanos, de 1948, fortes con- que houvesse muita luta, pressão, or-
trovérsias cercaram o equilíbrio entre os ganização, mobilização e, muitas vezes,
eixos simbolizados pelos ideais de liber- sangue derramado por aqueles que cla-
dade, igualdade e fraternidade, da Revolu- mavam por justiça.
ção Francesa de 1789. Aquela revolução Quando, em 1993, a Conferência de
marca a ascensão ao poder da nova bur- Viena aprovou o conceito de indivisibi-
guesia revolucionária, cuja importância lidade, pretendia superar uma anteposi-
tinha crescido na Europa nos séculos ção que já durava desde o século XIX.
anteriores, mas sem que pudessem rom- Grosso modo, a elite burguesa sempre ar-
per com sua condição subalterna ante a
nobreza feudal.
gumentou que a sociedade capitalista,
do mercado e da livre iniciativa, garante P
Vitoriosa e já no poder, a nova eli- os direitos civis e políticos, ou seja, os
te política capitalista passou a enfren- chamados direitos de liberdade. E que
tar a pressão exercida por outro ator esses são os mais importantes. Os mo-
social, a moderna classe trabalhadora, vimentos populares e sindicais, por sua
que passou a exigir os mesmos direi-tos vez, colocavam os temas da igualdade
que tinham servido de bandeiras revo- econômica e social com força, sem
lucionárias à burguesia no momento desprezar a conquista de direitos po-
anterior, de ruptura das estruturas feu- líticos, mas deixando brechas, algumas
dais. Nasceram e cresceram as lutas ope- vezes, para a leitura de que a liberdade
rárias, sindicais e socialistas, exigindo pode ficar em segundo plano.
a materialização dos mesmos ideais Tanto é que, no século XX, o ci-
de liberdade, igualdade e fraternidade. clo de revoluções socialistas iniciado
Concretamente falando: luta por leis na Rússia de 1917 com Lenin e depois
de proteção ao trabalho, salários decen- Stalin, bem como outras experiências
tes, combate à exploração econômica, do chamado “socialismo real” que tive-
direito de voto, de participação política ram seu teto no desmoronamento do

621
Dicionário da Educação do Campo

Muro de Berlim e na desagregação da Somente em 1966 se conseguiu pro-


União Soviética, em 1989 e 1992 res- duzir esse resultado. Contudo, as diver-
pectivamente, não conseguiu construir gências agudas sobre a importância dos
um sistema político democrático. E as direitos de liberdade ou dos direitos
ditaduras sempre geram burocracias de igualdade no ambiente da Guerra
opressoras, tornando-se inevitável o Fria, que dividia o mundo entre as li-
desfecho de derrota. deranças norte-americana e soviética,
Criada em 1945, a ONU estabele- impediu que houvesse um documento
ceu como seu objetivo assegurar um único. Na mesma Assembleia Geral, a
ambiente de paz e segurança entre os ONU aprovou dois pactos, o dos Di-
países, para que nunca mais se repetisse reitos Civis e Políticos e o dos Direi-
o horror da Segunda Guerra Mundial tos Econômicos, Sociais e Culturais.
e do nazismo, que custou ao mundo Nessa separação revelava-se a velha
mais de 50 milhões de vidas humanas, tensão entre direitos de liberdade e di-
com 6 milhões de judeus extermina- reitos de igualdade que Viena buscaria
dos pelo simples fato de serem judeus resolver ao adotar o conceito de indivi-
e duas bombas atômicas jogadas so- sibilidade, ao lado da universalidade e
bre populações civis em Hiroshima da interdependência.
e Nagasaki. Entre esses três conceitos, indivi-
Só pode existir paz e segurança sibilidade é o mais forte e mais carre-
numa sociedade em que exista justiça gado de significado histórico. Significa
e liberdade. Por isso, a Declaração Uni- que os chamados direitos de liberdade
versal dos Direitos Humanos, aprova- não dispensam os direitos de igualda-
da pela ONU em 1948, valeu como o de, e vice-versa. Quando são garantidas
seu primeiro programa político mais as liberdades políticas, mas ignorada a
amplo. Isto é: só haveria paz se fossem igualdade econômica e social, os di-
respeitados os trinta artigos daquele reitos humanos estão sendo violados.
documento. A declaração abre com a Vale o mesmo para os países onde
afirmação de que todos os seres hu- as liberdades são suprimidas em nome da
manos nascem livres e iguais em dig- igualdade. Os direitos civis e políticos
nidade e direitos e convoca cada país são tão importantes quanto os direitos
signatário a garantir a seus povos uma econômicos, sociais e culturais, não
vida de justiça e liberdade. podendo existir hierarquia entre eles.
Acontece que uma declaração, A recomendação para que todos os
nas regras da ONU, é uma espécie de países-membros da ONU elaborassem
documento genérico, que não impõe um Plano Nacional de Direitos Hu-
obrigações e deveres compulsórios manos também foi um ponto de vira-
aos países. Por isso, começou a ser da. Até então, a agenda dos direitos
discutido e preparado um instrumento humanos era sempre um programa de
(jargão que pode se referir a declara- controle, fiscalização, denúncia e co-
ções, convenções, pactos e tratados) brança sobre cada país. Com a nova
detalhando o conteúdo e a forma desse proposta, as nações estavam convoca-
compromisso dos Estados, bem como das a elaborarem, elas mesmas, à luz
estabelecendo mecanismos de controle de suas concretas condições, um plano
e monitoramento. firmando compromissos e metas de to-

622
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)

dos os poderes públicos. Viena reco- minou as eleições livres, impôs censura
mendou também que a elaboração des- à imprensa e às manifestações artísticas,
se plano nacional contasse com ampla prendeu opositores e torturou, matou e
participação da sociedade civil, isto é, eliminou os corpos de militantes que se
organizações e movimentos sociais, sin- engajaram na resistência.
dicatos, ONGs, igrejas e universidades. Sendo prioritária, naquele período,
Essa recuperação de informações a luta pela democracia, entende-se por
históricas é necessária para se compreen- que a visão formada sobre os direitos
der melhor a história dos planos nacio- humanos se resumia quase inteiramente
nais de direitos humanos no Brasil e, aos direitos civis e políticos: liberda-
principalmente, a grande polêmica de- de. Antes de 1964 e durante a dita-
sencadeada, em 2010, em torno do lan- dura sempre ocor reram lutas por
çamento do terceiro Programa Nacional direitos econômicos e sociais. Predo-
de Direitos Humanos (PNDH-3)1 – minava, porém, a impressão de que
terceira versão do plano nacional de direitos humanos eram apenas os direi-
direitos humanos brasileiro – pelo pre- tos de participação política, expressão
sidente Luiz Inácio Lula da Silva. do pensamento, garantia de defesa num
processo justo, proteção contra prisões,
torturas e desaparecimentos por causa
PNDH-1 e PNDH-2 da militância política. Direitos econô-
Entre 1964 e 1985, o Brasil esteve micos e sociais, como posse da terra
submetido a uma ditadura militar-civil para viver e produzir, casa para morar,
cuja superação só se completou, de saúde, educação, transporte público e
fato, com a promulgação da Consti- trabalho decente, só pouca gente com-
tuição de outubro de 1988. Estudando preendia que também faziam parte dos
com atenção os livros, documentos e direitos humanos.
jornais sobre as lutas populares no A Constituição de 1988 marcou o
Brasil antes do período ditatorial, nota-
se que os temas dos direitos humanos
reencontro do país com a democracia
institucional plena, mas ficava claro P
raramente são abordados. As bandeiras que ainda seria longa a caminhada para
de justiça, igualdade, combate à explo- transformar o Brasil num país onde
ração e direitos dos pobres estão pre- os direitos humanos fossem satisfato-
sentes, mas quase nunca há a menção riamente respeitados. Nesse sentido, a
aos direitos humanos. É como se esti- Constituição, longe de ser o ponto fi-
véssemos na pré-história brasileira da nal de chegada, representava um ponto
afirmação desses direitos. de partida muito importante. Den-
Foi no enfrentamento da violação tro de sua moldura, estava desenhada
sistemática de direitos humanos pratica- a estrada para avançar, ano a ano, na
da pela ditadura que começou a nascer construção dos direitos ainda não asse-
e a se fortalecer uma nova consciência gurados. A democracia é uma reinven-
nacional a respeito da importância do ção permanente da política, explica a
assunto. O regime de 1964 reprimiu sin- filósofa Marilena Chauí (2001).
dicatos de trabalhadores e organizações Em 1989, Fernando Collor de Mello
estudantis, cassou mandatos parlamen- foi eleito presidente da República e
tares e obrigou milhares ao exílio, eli- teve seu mandato interrompido pela

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Dicionário da Educação do Campo

vitoriosa luta popular, exigindo seu Durante o Governo Itamar Franco,


impeachment. Seguiu-se o mandato- sendo chanceler Fernando Henrique
tampão de Itamar Franco e, depois Cardoso, o Brasil promoveu diálogos
dele, dois governos sucessivos de com a sociedade civil para preparar uma
Fernando Henrique Cardoso e dois forte atuação na Conferência de Viena,
de Lula. Deixando um pouco de lado voltando dela com elevado prestígio
as diferenças ideológicas e políticas en- pelo desempenho de liderança. Tornou-
tre esses dois governos, muitos avaliam se um dos primeiros países do mundo a
que houve uma continuidade de 16 anos concretizar a deliberação a respeito da
de avanços do Estado brasileiro no entro- necessidade de formulação dos planos
samento com os organismos e tratados nacionais de direitos humanos.
internacionais da ONU e da Organiza- O Brasil lançou seu primeiro Pro-
ção dos Estados Americanos (OEA) em grama Nacional de Direitos Humanos
defesa dos direitos humanos, bem como em 13 de maio de 1996, com um decre-
nas políticas internas voltadas para a de- to presidencial de Fernando Henrique
fesa e a promoção desses direitos. Cardoso;; foi lançado como programa,
O impulso a favor da democracia e não como plano, devido ao enten-
tornou-se tão vigoroso com as mobiliza- dimento de que um plano precisa ter
ções das Diretas Já, em 1984, que mes- elementos concretos, datas e quanti-
mo nos governos de José Sarney, Collor ficações que são dispensáveis em um
e Itamar é possível localizar mudanças programa. Ele foi discutido e desenha-
positivas nessa direção, sobretudo no do em seis seminários regionais – São
que se refere à adoção, pelo Brasil, dos Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre,
principais instrumentos internacionais Belém, Recife e Natal –, com a partici-
nesse campo. Por exemplo, no Governo pação de 334 especialistas e represen-
José Sarney, o Brasil aderiu a duas im- tantes de 210 entidades, sendo levado
portantes convenções da ONU – Con- então a debates, em abril de 1996, na
venção contra a Tortura e Outros Tra- I Conferência Nacional de Direitos
tamentos ou Penas Cruéis, Desumanos Humanos, promovida pela Comis-
ou Degradantes e convenção sobre os são de Direitos Humanos da Câmara
Direitos da Criança –, além de reconhe- dos Deputados.
cer, com pequena ressalva, a Convenção Esse primeiro PNDH sistemati-
Americana dos Direitos Humanos, que za nada menos do que 228 propostas,
cria as duas instituições de proteção abrangendo áreas de responsabilidade
da OEA, a Comissão Interamericana de diversos ministérios, separadas em
de Direitos Humanos, sediada em objetivos de curto, médio e longo pra-
Washington, e a Corte Interamericana zos, referentes a garantias do direito à
de Direitos Humanos, sediada em San vida, combate à tortura, segurança das
José, na Costa Rica. No Governo Collor pessoas, luta contra a impunidade, li-
de Mello, sendo chanceler Celso Lafer, berdade de expressão, enfrentamento
o Brasil aderiu aos dois pactos da ONU do trabalho forçado, igualdade perante
já mencionados, aprovados em 1966: a lei, direitos de crianças e adolescen-
o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o tes, das mulheres e da população negra
Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e indígena, de idosos, de pessoas com
e Culturais. deficiência etc.

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Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)

Em 13 de maio de 2002, último (lésbicas, gays, bissexuais e travestis);;


ano do segundo mandato de Fernando segurança alimentar;; meio ambiente;; se-
Henrique Cardoso, foi lançado o gurança pública;; economia solidária;;
PNDH-2, cujo avanço mais importante, saúde;; educação;; saúde mental;; comu-
em comparação com a primeira edição, é nicações;; cidades;; agricultura familiar
uma abordagem mais ampla dos direitos etc. O Brasil começou a perceber que,
econômicos, sociais e culturais, resultado sem diminuir a importância essencial
da avaliação já contida na apresentação do parlamento e da atuação dos re-
do PNDH anterior, de que ele se con- presentantes eleitos pelo voto popular
centrava muito nos temas dos direitos (vereadores, deputados estaduais, de-
civis. Essa incorporação atendeu a uma putados federais e senadores), a demo-
reivindicação central da IV Conferência cracia se fortalece quando os cidadãos
Nacional de Direitos Humanos, reali- podem participar diretamente nos de-
zada pela Câmara dos Deputados em bates para elaborar políticas públicas.
1999. As propostas de revisão e atua- Nesse contexto, tornava-se obriga-
lização do PNDH-1 foram também dis- tório que a elaboração da terceira ver-
cutidas em seminários regionais e esti- são do Programa Nacional de Direitos
veram sob consulta pública, via internet, Humanos correspondesse a esse salto
durante três meses, resultando em 518 na participação democrática. Assim é
propostas governamentais organizadas que, discursando em janeiro de 2008,
em decreto presidencial. num evento do dia internacional que a
ONU definiu para lembrar as vítimas
PNDH-3 do holocausto nazista, Lula convocou
o Brasil a promover uma ampla jorna-
O Governo Lula teve início em da de discussões, debates e seminá-
2003, trazendo como grande marca o rios para atualizar o PNDH. Esse
tema central dos direitos econômicos, verdadeiro mutirão nacional marcou
sociais e culturais, e o combate à fome a celebração, também, do 60º ani-
e à extrema pobreza. No plano dos di- versário da Declaração Universal dos P
reitos civis e políticos, propôs-se a for- Direitos Humanos.
talecer os mecanismos de democracia Em abril foi convocada por decreto
participativa, realizando ao longo de presidencial a XI Conferência Nacio-
oito anos mais de setenta conferências nal de Direitos Humanos, promovida
nacionais sobre todos os temas de in- e coordenada de forma tripartite pelo
teresse social. Executivo Federal, pela Comissão de
Em suas etapas municipais, regio- Direitos Humanos da Câmara dos De-
nais, estaduais e nacionais, essas confe- putados e por um fórum de entidades
rências chegaram a mobilizar em torno nacionais de direitos humanos, com-
de 5 milhões de brasileiras e brasileiros posto de organizações da sociedade ci-
que integravam instituições públicas vil. O tema central da XI Conferência
ou entidades da sociedade civil rela- era a revisão e atualização do PNDH.
cionadas a temas como igualdade ra- Foi constituído um Grupo de Trabalho
cial;; direitos da mulher, de crianças e Nacional, com uma Executiva, respon-
adolescentes, dos idosos, de pessoas sável pela condução desse processo,
com deficiência e do segmento LGBT sendo incorporados também represen-

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Dicionário da Educação do Campo

tantes do Poder Judiciário, do Minis- ciais, por sua vez, se empenhou no sen-
tério Público e da Defensoria Pública. tido de que a redação final incorporasse,
Dentro do governo federal, as ativida- quanto fosse possível, aquilo que havia
des foram centralizadas pela Secretaria sido aprovado no debate democrático.
Especial dos Direitos Humanos, que Negociações desse tipo são difíceis,
Lula tinha promovido a ministério já muitas vezes envolvem momentos de
no início de seu governo. tensão e litígio, mas são fundamentais
Realizaram-se, então, conferências na convivência democrática. De modo
municipais, regionais e estaduais nos me- geral, as diferentes representações se
ses seguintes, além de 137 conferên- sentiram satisfeitas com o produto do
cias livres sobre diferentes temas, seu trabalho. Faltava, então, uma etapa
preparando a fase final que acontece- final, decorrente da decisão conjunta
ria em Brasília em dezembro daquele do Grupo de Trabalho Nacional de se
ano, com a presença do presidente da avançar mais um passo na comparação
República e vários ministros. Com o com as edições anteriores do PNDH:
lema “Democracia, desenvolvimento o decreto presidencial não seria pro-
e direitos humanos superando as de- posto apenas pela Secretaria de Direi-
sigualdades”, cerca de 14 mil pessoas tos Humanos e sim por todos os mi-
participaram diretamente desses deba- nistérios que aceitassem partilhá-lo e
tes em suas distintas fases, culminan- promovê-lo. Foram necessários, então,
do com a participação de 2 mil pes- muitos meses de debate interministe-
soas, entre as quais 1.200 delegados rial aparando arestas e promovendo ex-
escolhidos nas etapas estaduais, nes- plicações, convencimento e ajustes.
sa etapa conclusiva. O PNDH-3 foi lançado num grande
Foi aprovada então, nessa XI Con- evento público em 21 de dezembro
ferência Nacional dos Direitos Huma- de 2009. A grande imprensa, muito
nos, realizada nos dias 15 a 18 de de- despreparada para entender as questões
zembro de 2008, a espinha dorsal do envolvendo direitos humanos, preferiu
que viria a ser o decreto presidencial de destacar apenas o fato de que, pela
Lula, publicado em 21 de dezembro primeira vez, a ministra-chefe da Casa
de 2009, instituindo o PNDH-3. Esse Civil e candidata presidencial apoia-
intervalo de um ano foi consumido em da por Lula, Dilma Roussef, apareceu
vários meses de diálogo e negociação em público sem usar a peruca utilizada
entre representantes dos poderes pú- durante uma terapia para tratamento de
blicos e as representações da sociedade câncer. As fotos estamparam, quando
civil para sistematizar o texto a ser pro- muito, seu rosto em lágrimas ao entre-
posto ao presidente da República. gar o Prêmio Nacional de Direitos Hu-
A bancada governamental dessa manos a Inês Etienne Romeu, ex-presa
negociação era integrada por vários mi- política que Dilma conhecia desde a
nistérios e se preocupou em ajustar ou juventude e única sobrevivente da Casa
modificar propostas aprovadas na XI da Morte, que os torturadores do regi-
Conferência que pudessem conter even- me de 1964 montaram em Petrópolis
tuais problemas de constitucionalidade para eliminar opositores da resistência.
ou graves impedimentos orçamentários. Na apresentação do PNDH-3,
A representação dos movimentos so- Lula escreveu:

626
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)

[...] reafirmo que o Brasil fez federal. Nada menos do que 31


uma opção definitiva pelo for- ministérios assinam a exposição de
talecimento da democracia. motivos, encaminhada a Lula, soli-
Não apenas democracia polí- citando o decreto presidencial.
tica e institucional, grande an- c) Inclusão de recomendações aos po-
seio popular que a Constituição deres Judiciário e Legislativo para
de 1988 já materializou, mas que assumam suas responsabilida-
democracia também no que diz des em relação a diversos itens do
respeito à igualdade econômica PNDH. Foi adotada a palavra “re-
e social. (Silva, 2010, p. 11) comendação” porque a Constituição
estabelece independência e autono-
Afirma ainda que “o PNDH-3 re- mia para cada poder republicano,
presenta um verdadeiro roteiro para mas o PNDH-3 inovou ao frisar que
seguirmos consolidando os alicerces os três poderes possuem responsa-
desse edifício democrático” (Silva, 2010, bilidades equivalentes. No que se
p. 11), lembrando também que os direitos refere ao Poder Executivo, as pro-
humanos devem ser observados como postas valem como determinações, e
“ação integrada de governo e, mais ain- não como recomendações apenas.
da, como verdadeira política de Estado, d) Criação de um Comitê de Acompa-
com prosseguimento sem sobressaltos nhamento e Monitoramento, inte-
quando houver alternância de partidos grado por 21 ministérios, que con-
no poder, fato que é natural e até indis- vidou representantes da sociedade
pensável na vida democrática” (ibid.). civil para suas reuniões.
Numa síntese, pode-se considerar e) Previsão de que metas, prazos e re-
que os principais avanços do PNDH-3 cursos necessários à implantação do
na comparação com as duas primeiras PNDH sejam definidos e aprovados
versões do programa foram: em planos de ação bienais (aqui, sim,
a palavra é plano, conforme já expli-
a) Ampla participação democrática em
sua elaboração e discussão, envol-
cado antes). P
f) Organização de suas 521 ações
vendo compromissos dos poderes programáticas em seis grandes ei-
públicos e participação dos movi- xos orientadores, que equilibram as
mentos sociais em todas as unida- duas gerações de direitos humanos,
des da Federação, acentuando a im- ampliando a abordagem sobre os di-
portância dos aspectos federativos reitos civis e políticos e discorrendo
presentes em todas as políticas pú- amplamente sobre direitos econômi-
blicas de proteção e promoção de cos, sociais, culturais e ambientais.
direitos humanos, o que significa o
reconhecimento de que as respon- Esses eixos orientadores são os
sabilidades também cabem aos mu- seguintes:
nicípios e estados. 1) Interação democrática entre Estado e
b) Transversalidade (interministeriali- sociedade civil: participação popular
dade) nas suas formulações, apon- na discussão de todas as políticas
tando nominalmente as áreas res- públicas por meio de: conferências;;
ponsáveis pela implantação de cada conselhos;; orçamentos;; controles
proposta, no âmbito do governo externos sobre órgãos públicos;;

627
Dicionário da Educação do Campo

ouvidorias;; sistemas de dados e in- nos em todas as etapas do ensino


dicadores;; relatórios anuais;; meca- formal;; valorização das experiên-
nismos de iniciativa popular como cias da chamada educação não for-
plebiscitos e referendos;; além da mal (associações, sindicatos, mo-
prestação de contas aos organismos vimentos, igrejas, clubes etc.) em
da ONU e da OEA. direitos humanos;; discussão sobre a
2) Desenvolvimento e direitos humanos: ge- importância da mídia na divulgação
ração e distribuição de renda;; sus- e construção de uma cultura social
tentabilidade ambiental;; reforma de respeito à diversidade e ao plu-
agrária;; combate à fome;; economia ralismo, coibindo programas que
solidária e cooperativismo;; cautelas incitam a violência e o preconceito.
perante a expansão das monocultu- 6) Direito à memória e à verdade: comple-
ras e o manejo florestal predatório;; mento dos passos já dados no re-
combate ao trabalho infantil;; pro- conhecimento da responsabilidade
teção das populações ribeirinhas do Estado brasileiro pelas violações
e indígenas em grandes projetos de direitos humanos no contexto da
de infraestrutura;; fortalecimento da repressão política durante o regime
agricultura familiar e agroecológica;; de 1964 (lei sobre mortos e desa-
tecnologias socialmente inclusivas. parecidos e lei criando a Comissão
3) Universalização dos direitos em um con- de Anistia);; abertura de todos os
texto de desigualdades: direito à saúde, arquivos e informações ainda não
à habitação, à educação pública de abertos sobre a repressão política;;
qualidade;; cultura, lazer e esportes;; instituição da Comissão Nacional
direitos das crianças e adolescentes;; da Verdade;; resgate da história e da
igualdade racial;; direitos da mulher;; memória dos que foram mortos na
povos indígenas;; pessoas com defi- luta contra a ditadura.
ciência;; direitos dos idosos;; direito
à diversidade sexual;; liberdade reli-
giosa e Estado laico. Reações ao PNDH-3
4) Segurança pública, acesso à justiça e com- Logo após seu lançamento, o
bate à violência: erradicação da tor-
PNDH-3 foi alvo de um ataque con-
tura;; sistema prisional;; grupos de
servador bem articulado, que durou
extermínio;; programas de proteção
vários meses e tentou obter vantagens
a vítimas e testemunhas;; programas
eleitorais para a candidatura de oposi-
de proteção aos defensores de di-
ção a Lula nas eleições presidenciais de
reitos humanos;; mediação pacífica
de conflitos;; combate à criminali- 2010. Essa ofensiva reacionária mani-
zação de movimentos sociais;; cau- pulou – buscando assustar a cidadania
telas necessárias na execução dos menos informada sobre direitos huma-
mandados de reintegração de pos- nos – antigos preconceitos contra os
se nos casos de ocupação de terras direitos da mulher (questões do abor-
ou de moradias por movimentos to) e de homossexuais (união civil está-
populares. vel), além de vários outros temas.
5) Educação e cultura em direitos humanos: O estopim desse ataque foi a rea-
introdução e aprofundamento dos ção do próprio Ministério da Defesa do
temas relativos aos direitos huma- Governo Lula aos termos com que o

628
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)

PNDH-3 apresentava a proposta de se fossem ouvidos os trabalhadores


criar uma Comissão Nacional da Verda- envolvidos;;
de, com o objetivo de examinar todas as 3) o programa continha “ranços”
violações aos direitos humanos pratica- contra o agronegócio (quando na
das no contexto da repressão política. verdade ele alertava para os peri-
A mídia hegemônica, que nos últi- gos do envenenamento do planeta
mos anos vem radicalizando sua abor- pelos agrotóxicos e recomendava
dagem partidarizada e sempre se opôs prioridade à produção de alimentos
ao Governo Lula, aproveitou essa di- e ao fortalecimento da agricultura
vergência interna do próprio governo familiar);;
para desfechar uma artilharia de críticas 4) o decreto fazia “recomendações” ao
ao conteúdo do programa. Para reagir Judiciário e ao Legislativo que agre-
a isso, algumas redações e propostas diam a Constituição (como se “reco-
do PNDH-3 receberam ajustes numa mendação” fosse uma ordem);;
versão que foi republicada em maio de 5) o decreto defendia o casamento gay
2010, com alguns recuos. Sem com- (quando na verdade defendia os di-
prometer ou desqualificar a profunda reitos constitucionais da população
natureza democrática do programa, as LGBT, incluindo o direito à união
mudanças buscaram demonstrar que o homoafetiva);;
Governo Lula estava aberto a críticas 6) o aborto era um assassinato (quando
e se dispunha a promover aperfeiçoa- na verdade o PNDH-3 buscava asse-
mentos em busca de um consenso gurar a autonomia e os direitos da mu-
mais amplo. lher nessa delicada questão, tão carre-
gada de ideias religiosas e tabus);;
Tendo como atores principais os
7) o PNDH-3 pretendia controlar e
grandes veículos da mídia, as entida-
censurar a imprensa (quando na ver-
des de ruralistas, setores conservado-
dade chamava seus órgãos a se com-
res do Judiciário e do Legislativo, par-
prometerem com a defesa dos direi-
tidos da direita e segmentos religiosos,
o ataque ao PNDH-3 pautou-se por
tos humanos e coibirem o incentivo P
à violência e às discriminações);;
escandalosas distorções a respeito do
8) pretendia-se eliminar os símbolos
que o texto do programa propunha.
religiosos, sendo que um bispo cató-
Só raramente cuidaram de “ouvir as
lico chegou a dizer que o PNDH-3
duas partes”, como recomendam os
queria retirar o Redentor do alto
bons manuais de redação na imprensa.
do Corcovado (quando na verdade
Entre os pontos criticados, tiveram propunha apenas respeitar o caráter
destaque as alegações de que: laico do Estado brasileiro, evitando
que símbolos religiosos, de uma
1) era revanchismo pretender apurar
única religião, fossem expostos nos
as torturas, mortes e desapareci-
estabelecimentos da União como se
mentos do período ditatorial;; aquela fosse a religião obrigatório
2) era agressão ao direito de proprie- para todos).
dade e interferência sobre a esfera
do Judiciário a proposta de media- Na verdade, todo esse festival de
ção pacífica de conflitos em ocupa- distorções e o virtual linchamento
ções de terra, por recomendar que do PNDH-3 significaram, agora sim,

629
Dicionário da Educação do Campo

uma verdadeira revanche contra os direitos humanos em defesa do


avanços democráticos e populares obti- PNDH-3, que também foi apoiado
dos durante o período Lula. Por ou- publicamente pela Alta Comissária
tra parte, a grande imprensa omitiu das Nações Unidas para os Direitos
os muitos pronunciamentos em favor Humanos, a sul-africana Navy Pilay,
do PNDH-3 que foram aprovados em pela Reunião de Altas Autoridades em
áreas progressistas do Legislativo e do Direitos Humanos e Chancelarias do
Judiciário, bem como por entidades Mercosul e Países Associados e por
representativas da sociedade civil e autoridades da OEA.
dos movimentos populares. Manifes- Ao fim e ao cabo, fracassou o re-
taram apoio a Ordem dos Advogados sultado eleitoral esperado por quem
do Brasil (OAB), a Central Única dos promoveu o ataque. No final do Go-
Trabalhadores (CUT), a Confedera- verno Lula, foi instituído oficialmente
ção Nacional dos Trabalhadores da o Comitê de Monitoramento, que
Agricultura (Contag), o Movimento já vem cuidando de acompanhar o
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra cumprimento das mais de quinhentas
(MST), a União Nacional dos Estu- ações programáticas em todas as áreas
dantes (UNE), a Federação Nacional do governo federal. Está em tramita-
dos Jornalistas, associações de defen- ção avançada no Legislativo a criação
sores públicos e do Ministério Público, da Comissão Nacional da Verdade. O
a Federação Nacional dos Médicos, o Supremo Tribunal Federal já decidiu
Conselho Federal de Psicologia e par- que deve ser respeitado o direito cons-
tidos políticos, como o Partido dos titucional do segmento LGBT à união
Trabalhadores (PT), Partido Socialista homoafetiva. Todos os demais temas
Brasileiro (PSB), Partido Democrático voltaram a ser debatidos e trabalha-
Trabalhista (PDT), Partido Comunista dos sem os ódios, preconceitos e agres-
do Brasil (PCdoB) e Partido Socialis- sões do ataque conservador de 2010.
mo e Liberdade (Psol). Isso sem fa- O PNDH-3 precisa seguir adiante,
lar na total unidade demonstrada por como importante passo no sentido de
toda a militância e todas as entidades concretizar muitas das promessas ainda
nacionais ligadas especificamente aos não cumpridas da democracia brasileira.

Nota
1
Essa versão pode ser lida na íntegra, e reproduzida, a partir do endereço da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República: http://www.direitoshumanos.gov.br/pndh.

Para saber mais


BRASIL. Decreto nº 1.904, de 13 de maio de 1996: institui o Programa Nacional de
Direitos Humanos I. Brasília: Presidência da República, 1996. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1904.htm. Acesso em: 25
out. 2011.
______. Decreto nº 4.229, de 13 de maio de 2002: dispõe sobre o Programa Na-
cional de Direitos Humanos – PNDH, instituído pelo decreto nº 1.904, de 13

630
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)

de maio de 1996, e dá outras providências. Brasília: Presidência da República,


2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/
D4229impressao.htm. Acesso em: 25 out. 2011.
______. Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009: aprova o Programa Nacional
de Direitos Humanos – PNDH-3, e dá outras providências. Brasília: Presidên-
cia da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm. Acesso em: 25 out. 2011.
______. SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Pro-
grama Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília: Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República, 2010. p. 11-15. Disponível em: http://
www.direitoshumanos.gov.br/pndh. Acesso em: 25 out. 2011.
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2011.

P
P
PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA
REFORMA AGRÁRIA (PRONERA)
Clarice Aparecida dos Santos

O Programa Nacional de Educação Os projetos educacionais do


na Reforma Agrária (Pronera) é uma po- Pronera envolvem alfabetização, anos
lítica pública do governo federal, espe- iniciais e finais do ensino fundamen-
cífica para a educação formal de jovens tal e ensino médio na modalidade de
e adultos assentados da Reforma Agrária e educação de jovens e adultos (EJA),
do crédito fundiário e para a formação ensino médio profissional, ensino
de educadores que trabalham nas esco- superior e pós-graduação, incluindo
las dos assentamentos ou do seu entorno neste nível uma ação denominada
e atendam a população assentada. RESIDÊNCIA A GRÁRIA.

631
Dicionário da Educação do Campo

O programa foi criado em 16 de para esta parcela da população que aos


abril de 1998, por portaria do então poucos, pela instalação dos PAs, foi se
Ministério Extraordinário da Política estabelecendo nestes novos territórios.
Fundiária (MEPF), num contexto de É importante ressaltar ser comum que
ascenso da luta pela Reforma Agrária prefeitos e governadores reputem ao
que aliava as condições de forte organi- Instituto Nacional de Colonização e
zação e mobilização dos Sem Terra por Reforma Agrária (Incra) a responsabi-
todo o território nacional à sensibilida- lidade pelas políticas públicas voltadas
de da sociedade brasileira em torno da aos agricultores assentados.
causa, mobilizada após os massacres de No ano de 2005, foi publicado o re-
Corumbiara, em Rondônia, em 1995, sultado da I Pesquisa Nacional de Edu-
e de Eldorado dos Carajás, no Pará, cação na Reforma Agrária (I Pnera),
em 1996. Os movimentos sociais do realizada pelo Incra/Pronera, em con-
campo souberam bem aproveitar este junto com o Instituto Nacional de Es-
ambiente favorável à Reforma Agrária tudos e Pesquisas Educacionais (Inep),
para trazer a público outras pautas nor- do Ministério da Educação (MEC). O
malmente esquecidas ou desconhecidas estudo, censitário, pesquisou a situa-
pelas autoridades, entre elas a situação ção de escolaridade da população e a
da Educação no Campo, notadamente situação das 8.679 escolas localizadas
a falta de escolas, e a falta de educado- nos assentamentos e concluiu que, em
res para as poucas que existiam, o que média, 23% da população declarava-se
impunha uma condição de acesso ape- analfabeta;; a oferta de educação funda-
nas aos anos escolares iniciais, repro- mental até os quatro anos iniciais atin-
duzindo, nos assentamentos, a mesma gia patamares aceitáveis, mas a educa-
lógica de negação histórica do direito, ção fundamental completa e o ensino
aos camponeses, de acesso aos níveis médio eram negligenciados para aquela
mais elevados de escolaridade. população;; e menos de 1% tinha aces-
A necessidade de um programa so ao ensino superior.
de educação específico para a popu- Em razão destes resultados, o
lação da Reforma Agrária justificava- Pronera, que até então executava ma-
se, à época, pela constatação expressa joritariamente projetos de alfabetiza-
em um estudo denominado Censo da ção e escolarização em séries iniciais,
Reforma Agrária (Schmidt, Marinho passou a incentivar projetos de ensino
e Rosa, 1997) – encomendado pelo fundamental completo e nível médio.
Ministério Extraordinário da Política Com o desenvolvimento destes pro-
Fundiária, em 1997, ao Conselho dos jetos, a consequente conclusão deste
Reitores das Universidades Brasileiras nível de ensino e a necessidade de for-
(Crub) – de que nos projetos de assen- mação de professores para as escolas
tamento (PAs) havia um índice de anal- conquistadas para os PAs, os próprios
fabetismo acima da média verificada movimentos sociais passaram a de-
no campo, e um índice de escolaridade mandar projetos de cursos superiores,
extremamente baixo, ambos decorren- inicialmente restritos à área de Peda-
tes da ausência do poder público mu- gogia e licenciaturas, posteriormente
nicipal ou estadual na organização das ampliados para outras áreas, como as
condições que assegurassem educação de Ciências Agrárias.

632
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)

No ano de 2004, pela força e am- educativos que se desenvolvem nas


plitude de suas ações, o Pronera pas- universidades, nas escolas técnicas e
sou a integrar o Plano Plurianual (PPA) nas escolas do campo com estes sujei-
do governo federal, instrumento por tos, e um projeto de desenvolvimento
meio do qual é assegurada a inclusão de campo que tem a Reforma Agrária
de ação específica no Orçamento Ge- como vetor.
ral da União (OGU). Assim, a partir do Para além destes elementos da his-
OGU de 2005, o Pronera passou a in- tória, instituído, o Pronera se afirma
tegrar o orçamento da União com pre- igualmente com um caráter instituinte
visão de recursos para a execução de pois, pelos seus princípios e pela sua
suas ações, o que constituiu mais um forma, permitiu mudanças significati-
avanço na perspectiva do planejamen- vas nos projetos educacionais desen-
to das ações, uma vez expressa a pu- volvidos nas instituições de ensino,
blicidade e o compromisso do governo nos vários níveis e nos mais diversos
em executá-las. campos do conhecimento.
Em junho de 2009, por meio da in- O Pronera instituiu possibilidades
clusão do artigo nº 33 na lei nº 11.947, o de ressignificação do conteúdo e da
Congresso Nacional autorizou o Poder metodologia dos processos de educa-
Executivo a instituir o Pronera. Em 4 de ção formal, por meio dos princípios
novembro de 2010, o presidente da Re- básicos da participação e da multiplica-
pública editou o decreto nº 7.352, que ção. A participação se materializa pelo
institui a Política Nacional de Educação fato de que a indicação das demandas
do Campo e o Pronera (Brasil, 2010b). educacionais é feita pelas comunida-
A lei e o decreto constituem avanços des das áreas de Reforma Agrária e suas
no que se refere ao novo status conferi- organizações, que, em conjunto com os
do ao Pronera, de política permanente, demais parceiros, decidirão sobre a ela-
instituída no âmbito do ordenamento boração, o acompanhamento e a avalia-
ção dos projetos. Já a multiplicação se
jurídico do Estado brasileiro, sendo es-
tes os instrumentos necessários à conti- realiza porque a educação dos assenta- P
nuidade da política independentemente dos visa à ampliação não só do número
do governo em exercício. de pessoas alfabetizadas e formadas
Tais instrumentos ganham ainda em diferentes níveis de ensino, mas
maior importância quando se conside- também garantir educadores, profissio-
ra que se trata de uma política voltada nais, técnicos, agentes mobilizadores e
para os camponeses e suas famílias, en- articuladores de políticas públicas para
volvidos em uma política correlata, a da as áreas de Reforma Agrária.
Reforma Agrária, cujo tema carrega em Esses princípios dizem respeito à
si alto grau de conflitividade e polêmica intencionalidade organizativa dos pro-
no âmbito do Poder Executivo, do Po- jetos, que, articulados, efetivamente
der Legislativo e do Poder Judiciário. permitem a entrada dos camponeses
E os componentes desta conflitividade e suas organizações no interior das
afetam de maneira definitiva uma po- instituições de ensino, para pensar,
lítica educacional como o Pronera por- juntamente com os professores, todo
que, em seus princípios, ele afirma a o processo. Esse modo de desen-
indissociabilidade entre os projetos volver as ações, comum e exigido na

633
Dicionário da Educação do Campo

elaboração dos projetos do Pronera, e organização do processo educativo


produziu, no âmbito da própria nor- formal. Uma das principais mudanças
mativa do programa, expressa no seu inauguradas pelo programa refere-se à
Manual de Operações, o que se denomina entrada coletiva dos camponeses nas
“Princípios orientadores das práticas” instituições de ensino. Os cursos se ins-
(Brasil, 2011). São eles: o princípio do tituem em caráter especial e são auto-
diálogo, que diz respeito a uma dinâmica rizados, tanto pelo Incra quanto pelas
de aprendizagem-ensino que assegure instituições de ensino, para uma turma
o respeito à cultura do grupo, a valo- específica. Esta característica amplia o
rização dos diferentes saberes e a pro- conceito de política afirmativa no que
dução coletiva do conhecimento;; o diz respeito ao acesso e permanência
princípio da práxis, como um proces- no sistema educativo, uma vez que o
so educativo que tenha por base o mo- financiamento envolve, para além dos
vimento ação–reflexão–ação e a pers- custos do curso, a cobertura dos custos
pectiva de transformação da realidade, de permanência dos estudantes nas ins-
uma dinâmica de aprendizagem-ensino tituições, como o transporte, hospeda-
que ao mesmo tempo valorize e pro- gem, alimentação e material didático-
voque o envolvimento dos educandos pedagógico.
em ações sociais concretas, ajudando Outra característica importante diz
na interpretação crítica e no aprofun- respeito aos tempos e espaços educa-
damento teórico necessário a uma atu- tivos, pela adoção da metodologia da
ação transformadora;; e o princípio da alternância na organização dos cursos
transdisciplinaridade, assegurando que os de nível médio e superior. Os tempos
processos educativos contribuam para educativos divididos em dois períodos –
a articulação de todos os conteúdos tempo escola e tempo comunidade –
e saberes locais, regionais e globais, de asseguram, nos projetos, a dimensão
forma que nas práticas educativas os da indissociabilidade entre os conheci-
sujeitos identifiquem as suas necessi- mentos sistematizados no ambiente
dades e potencialidades. escolar e/ou acadêmico e os conhe-
Pode-se afirmar, desta forma, que a cimentos presentes e historicamente
presença dos camponeses, como sujei- construídos pelos camponeses, nos
tos coletivos de direitos, no ambiente seus processos de trabalho de organi-
acadêmico, tem fortalecido a perspec- zação das condições de reprodução da
tiva de novas práticas nos campos do vida no campo e nos processos organi-
ensino e da pesquisa, não como novi- zativos de classe. Os espaços educati-
dade pedagógica, mas como práxis, re- vos da escola/universidade e do campo
sultado de uma interação entre sujeitos são duas particularidades de uma mes-
historicamente estranhos – daí tratar- ma totalidade que envolve o ensino, a
se de uma interação que nem sem- pesquisa e as práticas, em todas as áreas
pre é pacífica, mas, ao contrário, é do conhecimento e da vida social.
normalmente tensa e conflitiva e, por Por estas condições, o programa
isso mesmo carregada de potencia- tem sofrido uma série de questiona-
lidades emancipatórias. mentos, pela via de ações civis públi-
O Pronera pela sua dinâmica insti- cas (ACP), ou de ações dos órgãos de
tui, igualmente, novas formas de acesso controle, como o Tribunal de Contas

634
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)

da União (TCU). Houve três ações ci- e permanência na escola” (art. 3°,
vis públicas contra os cursos de Agro- I, da lei nº 9.394/1998). A não
nomia, Direito e Medicina Veterinária, ser que se pretenda conferir
em parceria com as universidades fe- caráter apenas retórico ao prin-
derais de Sergipe (UFS), Goiás (UFG) cípio de igualdade de condições para
e Pelotas (UFPel), respectivamente. o acesso e permanência na es-
Na base de todas as ações, a alegação cola, deve-se a esta assegurar a
de que os cursos, realizados para tur- possibilidade de buscar formas
mas específicas de assentados, aten- criativas de propiciar a natureza
tam contra o princípio constitucional igualitária do ensino.
da isonomia de acesso ao ensino su-
9. Políticas afirmativas, quando
perior, constituindo-se em privilégio
endereçadas a combater genuí-
aos assentados, condição de que não
nas situações fáticas incompa-
desfrutam os demais grupos sociais.
tíveis com os fundamentos e
Ações estas agravadas ainda mais pelo
princípios do Estado social, ou a
histórico preconceito de parte dos re-
estes dar consistência e eficácia,
presentantes dessas instituições do Es-
em nada lembram privilégios,
tado, ao afirmarem que os camponeses,
nem com eles se confundem.
pelo fato de viverem e trabalharem no
campo, não necessitam de ensino su- Em vez de funcionarem por
perior, mas apenas de conhecimentos exclusão de sujeitos de direitos,
técnicos básicos para o trabalho na estampam nos seus objetivos e
agricultura. No caso do curso de Di- métodos a marca da valorização
reito, foram movidas duas ações, sen- da inclusão, sobretudo daqueles
do que na primeira, a justificativa para aos quais se negam os benefí-
coibir a entrada dos camponeses num cios mais elementares do patri-
curso especial de Direito se baseava no mônio material e intelectual da
fato de esta ser uma área voltada para Nação. Frequentemente, para
o meio urbano. privilegiar basta a manutenção
do status quo, sob o argumento
P
Em todos os casos, recursos im-
petrados pelo Incra e pelas universi- de autoridade do estrito respei-
dades tiveram acolhida nas instâncias to ao princípio da igualdade.
do Poder Judiciário. O relatório do de- 10. Sob o nome e invocação
sembargador do Superior Tribunal de do mencionado princípio, pra-
Justiça (STJ) designado para oferecer
ticam-se ou justificam-se algu-
parecer no caso do curso de Medicina
mas das piores discriminações,
Veterinária, além de ter acatado as ra-
ao transformá-lo em biombo
zões apresentadas em defesa do curso,
retórico e elegante para ene-
constitui importante referência para a
voar ou disfarçar comporta-
afirmação do direito dos camponeses
mentos e práticas que negam
à universidade:
aos sujeitos vulneráveis direi-
8. Entre os princípios que vincu- tos básicos outorgados a todos
lam a educação escolar básica e pela Constituição e pelas leis.
superior no Brasil está a “igual- Em verdade, dessa fonte não
dade de condições para o acesso jorra o princípio da igualdade,

635
Dicionário da Educação do Campo

mas uma certa contraigualda- Pronera é um programa indutor de no-


de, que nada tem de nobre, vas políticas públicas nesta perspectiva,
pois referenda, pela omissão como a LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO
que prega e espera de admi- DO CAMPO, sob gestão do Ministério
nistradores e juízes, a perpe- da Educação.
tuação de vantagens pessoais, Nos seus primeiros dez anos, o pro-
originadas de atributos indivi- grama logrou importantes resultados
duais, hereditários ou de casta, quantitativos. Foram centenas de pro-
associados a riqueza, conheci- jetos desenvolvidos, em parceria com
mento, origem, raça, religião, mais de sessenta instituições de ensi-
estado, profissão ou filiação no, que alfabetizaram, escolarizaram
partidária. (Brasil, 2010c) e capacitaram cerca de 400 mil traba-
lhadores rurais assentados. Tais resul-
Na mesma linha de reação de seto- tados impactaram significativamente a
res do Estado refratários à ampliação da redução da taxa média de analfabetis-
participação social no ambiente acadê- mo nos territórios da Reforma Agrária,
mico e, de maneira particular, à entrada ainda que esta se mantenha alta para o
coletiva de camponeses em determina- padrão de uma sociedade que se pro-
dos cursos, o Pronera sofreu a reação a põe um desenvolvimento com justiça
esta forma de gestão colegiada e cole- social. A Pesquisa de Qualidade na
tiva, notadamente à participação direta Reforma Agrária (PQRA), realizada e
dos movimentos sociais e sindicais do publicada pelo Incra no ano de 2010
campo. Acórdão de 2008 do Tribunal de indicava uma taxa média de analfabe-
Contas da União (Brasil, 2008), deter- tismo de 15,8% nos assentamentos.
minou ao Incra a exclusão da participa- Além disso, os índices de escolaridade
ção dos movimentos sociais na gestão continuam ainda muito baixos: em mé-
dos projetos do Pronera, considerando- dia, apenas 27% da população concluiu
os entes estranhos à administração pública, o ensino fundamental (Brasil, 2010a).
em que pese estar na Constituição Fe- O Pronera produziu, no âmbito do
deral e na Lei de Diretrizes e Bases da debate acadêmico, o diálogo com uma
Educação Nacional (LDB), não apenas nova perspectiva de produção do co-
recomendado, mas estabelecido que nhecimento e de pesquisa;; legitimou o
os processos educacionais devem ter a conflito no ambiente da universidade,
participação das comunidades na sua ao reconhecer os camponeses como su-
gestão, e de a mesma LDB considerar, jeitos coletivos de direitos, que entram,
no seu artigo 1º, os movimentos sociais coletivamente, como turma específica
como agentes educativos. no ensino superior;; e estabeleceu um
Por outro lado, a materialidade e a rompimento conceitual, ao reconhecê-
dinâmica do Pronera permitiram que se los como portadores de conhecimento,
ampliasse o debate sobre a instituição e não apenas como objeto de pesquisa.
de políticas públicas de Educação do Os novos sujeitos políticos campo-
Campo com estas características para neses que emergiram das lutas surgidas
outros segmentos do campo, como entre o final do século XX e o início
agricultores familiares e quilombolas, do século XXI – da questão agrária, do
entre outros. Pode-se afirmar que o debate sobre um novo projeto de

636
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)

agricultura articulado com a questão lado, pelo exercício de um papel a ela


ambiental e dos direitos humanos e destinado de complementaridade em
sociais – necessitam ser reconhecidos relação às políticas educacionais exe-
pelas suas práticas e pelo acúmulo de cutadas pelo Ministério da Educação,
conhecimento construído no âmbi- pelos estados e municípios, e, por ou-
to de suas organizações, e devem ser tro lado, como um dos instrumentos
identificados nas políticas educacionais de emancipação e cidadania dos cam-
como portadores de tal patrimônio. poneses, pelos princípios e pela for-
Tão importante quanto os resul- ma de implantação de seus projetos, o
tados quantitativos é o significado do que dialoga com a estratégia de supera-
Programa como política pública con- ção da histórica condição de subalter-
quistada pelos movimentos sociais, nidade dos camponeses aos interesses
ainda que num ambiente de adversida- dominantes, o que o coloca na condi-
de. É inegável a dimensão do Pronera ção de um território camponês con-
como espaço desta interseção entre o quistado, na esfera do Estado. Entre-
Estado, as instituições de ensino e tanto, há de se reconhecer seu limite
no contexto das lutas e das disputas na
os movimentos sociais, especialmen-
perspectiva da construção de uma nova
te entre estes dois últimos, pois apro-
hegemonia, também no campo da edu-
xima e faz o encontro entre dois
cação, uma vez que mudanças profun-
mundos historicamente apartados,
das na educação pública brasileira se fa-
dado que os processos de formação rão por meio do envolvimento de todos
humana costumam ser apartados dos os interessados na educação pública – e,
processos de trabalho. mais especificamente, na educação pú-
O Pronera constitui, assim, uma blica que interessa aos trabalhadores, na
política pública reconhecida, por um perspectiva das transformações.

Para saber mais


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637
Dicionário da Educação do Campo

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638
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera)

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639
Q
QUESTÃO AGRÁRIA
João Pedro Stedile

Objeto do estudo da de proprietários capitalistas. Ou seja, o


questão agrária advento do capitalismo como modo de
produção predominante, combinado
O termo questão agrária é utilizado com o regime político republicano, que
para designar uma área do conhecimen- havia introduzido o direito à proprie-
to humano que se dedica a estudar, pes- dade privada de bens e de mercadorias,
quisar e conhecer a natureza dos pro- trouxe como consequência o fato de
blemas das sociedades em geral relacio- a terra, antes vista como um bem da na-
nados ao uso, à posse e à propriedade tureza sob controle monopólico das oli-
da terra. Ao se fazer o estudo da for- garquias ou clãs (no período do feuda-
ma de organização socioeconômica do lismo), tornar-se agora uma mercadoria
meio rural de qualquer país, está-se es- especial, sujeita à propriedade privada.
tudando a questão agrária daquele país. Em seus estudos sobre o desenvolvi-
Porém, durante muito tempo, o termo mento do capitalismo na agricultura, Karl
foi utilizado principalmente como sinô- Marx (1988, tomo 3, “Teoria da renda da
nimo dos problemas agrários existen- terra”) chamou a terra de “mercadoria
tes e, mais reduzidamente, quando, em especial”, pois, com base nos conceitos
determinada sociedade, a concentra- da economia política, não era possível
ção da propriedade da terra impedia o classificá-la como uma mercadoria: a
desenvolvimento das forças produtivas terra não é fruto do trabalho humano, é
na agricultura. E essa forma de interpre- um bem da natureza;; portanto, não tem
tar a questão agrária tem uma história valor em si. No entanto, ao se introdu-
que precisa ser conhecida. zir nesse bem da natureza o direito à sua Q
A origem da expressão vem dos propriedade privada – e, com ele, a cerca,
primeiros estudiosos que, a partir do a delimitação de tamanhos etc. –, a terra
século XVIII e até o século XX, anali- passou a ser regida pelas mesmas regras
saram o desenvolvimento do modo de do capitalismo. Assim, cada vez que o
produção capitalista, ficando conheci- capitalista agrícola ganha mais dinheiro,
dos como “pensadores clássicos”. Ao tem mais lucros e acumula capital, ele
investigarem o comportamento do ca- vai comprando mais terras de outros
pital na organização da produção agrí- proprietários privados. Ou seja, o mes-
cola e em relação à propriedade da ter- mo movimento de acumulação de capital
ra, esses pensadores concluíram que, à que ocorre na indústria e no comércio
medida que o modo de produção capi- passa a ocorrer também na propriedade
talista se desenvolvia, com sua lógica e da terra, pela tendência lógica do capi-
leis, a propriedade da terra foi se con- talismo a ir produzindo concentração da
centrando nas mãos de menor número propriedade da terra.

641
Dicionário da Educação do Campo

Historicamente, a propriedade pri- Aqui no Brasil, esse reducionismo


vada da terra foi se consolidando a par- de que o problema agrário se resumia
tir das revoluções burguesas, do estabe- na ocorrência ou não de concentração
lecimento das regras republicanas e da da propriedade como fator inibidor do
organização do Estado burguês. Nesse capitalismo foi influenciado pela di-
regime, todos os cidadãos passaram a vulgação de A questão agrária, de Karl
ter direito à propriedade de terras, des- Kautsky (1968). O estudo de Kautsky
de que tivessem dinheiro-capital para é bem específico: ele analisa, à luz das
comprá-las do seu ocupante, ou, se leis da economia política, o compor-
fossem terras públicas, do Estado. tamento do capitalismo na agricultura
À medida que o capitalismo evoluiu da Alemanha, do final do século XIX
da fase mercantil para o capitalismo até o início do século XX. E nosso
industrial, como decorrência do pro- colonialismo intelectual e acadêmico
cesso de acumulação de capital, houve nos levou a crer que a questão agrária
também uma crescente concentração se resumiria às teses defendidas por
da propriedade da terra. Ao analisarem Kautsky para a sociedade alemã de
o comportamento do capitalismo que determinado período histórico.
levava à contínua concentração da pro-
priedade da terra, alguns pesquisadores Agros = terra
da época defenderam a tese de que a
concentração da propriedade da terra se trans- O verbete “agrário” tem sua origem
formara numa contradição e, portanto, num na palavra grega agros, sinônimo de ter-
problema agrário para o desenvolvimento do ra. Portanto, todas as palavras portu-
capitalismo industrial. Segundo essa tese, guesas que possuem o prefixo agro se
o capitalismo industrial precisava, para o referem a atividades relacionadas com
seu crescimento, que se desenvolvesse a terra, o solo. O termo agri-cultura, por
um mercado interno de consumidores exemplo, está relacionado com todas
dos bens da indústria. Ao concentrar as atividades de cultivar a terra, como
a propriedade da terra e manter os lavouras, hortas ou árvores etc., e até
camponeses sem terra – e, portanto, mesmo a pecuária é uma atividade den-
despossuídos de renda –, esse modelo tro da agricultura;; já agri-cultor diz res-
freava o desenvolvimento do mercado peito à arte, ao conhecimento, à profis-
interno e das forças produtivas. são daquele que sabe cultivar a terra.
A essa situação, que ocorreu em
alguns dos países da Europa ocidental O conceito de questão
que primeiro ingressaram na etapa in- agrária hoje
dustrial, é que os pensadores clássicos
atribuíram a condição de existência de O significado do conceito de
um problema agrário. Assim sendo, “questão agrária” como originalmente
num primeiro momento, a expressão interpretado pelos pensadores clássi-
problema agrário das sociedades capi- cos evoluiu nas últimas décadas. Hoje
talistas nasceu como sinônimo da ele- há um entendimento generalizado
vada concentração da propriedade da de que a “questão agrária” é uma área do
terra, que impedia o desenvolvimento conhecimento científico que procura
do mercado interno. estudar, de forma genérica ou em ca-

642
Questão Agrária

sos específicos, como cada sociedade cravo, o monopólio da propriedade da


organiza, ao longo de sua história, o terra pela Coroa e a posse entregue em
uso, a posse e a propriedade da terra. Essas concessão de uso apenas a alguns gran-
três condições possuem características des latifundiários. Da mesma forma,
diferentes, ainda que complementares. pode-se estudar a questão agrária no
Cada sociedade tem uma forma es- final do século XX, caracterizada pelas
pecífica de usar a natureza, de organizar influências do capitalismo globalizado,
a produção dos bens agrícolas. E o seu pelas empresas agrícolas transnaciona-
uso vai determinar que produtos são lizadas e pelo capital financeiro.
cultivados, para atender a que necessi- É frequente, porém, encontrar-se
dades sociais e que destino se dá a eles. ainda na literatura especializada da eco-
A posse da terra refere-se a quais nomia política a terminologia “ques-
pessoas e categorias sociais moram tão agrária” apenas como sinônimo de
em cima daquele território e como “problema agrário”, estando esses pro-
vivem nele. blemas agrários reduzidos à existência
ou não da concentração da proprie-
E a propriedade é uma condição
dade da terra como fator inibidor do
jurídica, estabelecida a partir do capita-
desenvolvimento do capitalismo.
lismo, que garante o direito de uma pes-
soa, empresa ou instituição que possua
dinheiro-capital comprar e ter a proprie- Estudos clássicos sobre
dade privada de determinada área da na- o desenvolvimento do
tureza, podendo cercá-la e ter absoluto capitalismo na agricultura
controle sobre ela, impedindo que ou-
Na literatura clássica sobre o tema,
tros a ela tenham acesso. Essa condição
existem diversos estudos realizados
jurídica estabelecida por leis da ordem
acerca da questão agrária dos países em
institucional de cada país é que transfor-
que o capitalismo industrial se desen-
ma a terra numa mera mercadoria que
volveu primeiro. Os pensadores que
se pode comprar e vender, e da qual se
interpretaram a questão agrária desses
pode ser proprietário absoluto.
países construíram diferentes teses so-
Ao se estudar a questão agrária de
determinada sociedade, em determi-
bre a natureza do desenvolvimento do
capitalismo na agricultura.
Q
nado período histórico, analisa-se como
aquela sociedade organiza a produção Karl Marx (1988, tomo 1, cap. 24)
dos bens agrícolas, a posse de seu ter- estudou o desenvolvimento do capita-
ritório e a propriedade da terra. E, para lismo na agricultura na Inglaterra du-
cada aspecto estudado de cada socie- rante a transição do capitalismo mer-
dade em cada período histórico, serão cantil para o capitalismo industrial
encontrados diferentes “problemas (final do século XVI até meados do
agrários”, surgidos como resultado século XIX). E as formas específicas
das contradições criadas pelas for- descritas pelo autor para aquela forma de
mas de organização presentes naquela capitalismo receberam a denominação
sociedade. Por exemplo, pode-se estu- de “via inglesa” do desenvolvimento do
dar a questão agrária no Brasil durante capital na agricultura.
o período colonial, no qual as carac- Karl Kautsky (1968), como men-
terísticas principais são o trabalho es- cionado, fez o mesmo estudo em

643
Dicionário da Educação do Campo

relação à Alemanha, abordando o fi- Finalmente, encontramos na li-


nal do século XIX e o início do século teratura a análise da questão agrária
XX, e as características descritas por em países com condições edafocli-
ele receberam a denominação de “via máticas 2 mais difíceis para a produ-
prussiana”, uma referência ao antigo ção agrícola anual. É o caso de países
Império Prussiano, que imprimia ca- montanhosos ou com invernos rigo-
racterísticas semelhantes a toda aquela rosos, como a Suíça, ou das regiões
região da Europa Central. desérticas, como a Sicília. Esses es-
Vladimir Ulianov, o Lenin, fez um tudos foram realizados por Giovanni
estudo do mesmo período tratado no Arrighi na década de 1960, e o desen-
trabalho de Kautsky sobre as caracte- volvimento do capitalismo na agri-
rísticas do capitalismo na agricultura cultura nessas áreas recebeu a deno-
da Rússia, denominando-as de “via minação de “via suíça”. 3
junker”,1 numa referência à forma como
o latifundiário local havia se transfor- A questão agrária no Brasil
mado em fazendeiro capitalista.
Lenin também realizou estudos A questão agrária no Brasil, inter-
semelhantes acerca do desenvolvi- pretada como a análise das condições
mento do capitalismo na agricultura de uso, posse e propriedade da terra na
nos Estados Unidos no período que nossa sociedade, já foi objeto de muitos
abrange do final do século XIX até o estudos sobre os diferentes períodos da
início do século XX. As características história, e existe farta bibliografia so-
específicas desse processo receberam a bre o tema. Embora sempre haja inter-
denominação de “via farmer” ou “via pretações específicas ou divergentes, a
americana”, em referência ao predomí- maioria dos pesquisadores considera
nio da agricultura familiar-capitalista ter predominado, no período colonial,
decorrente da colonização democráti- a plantation como forma de organização
ca, pela qual todas as famílias de agri- capitalista na agricultura brasileira do
cultores tiveram o direito de acesso à período. Com a entrada da economia
mesma quantidade de terra, distribuí- na etapa do capitalismo industrial, a
da pelo Estado. partir da década de 1930 e durante todo
Há também diversos estudos clássi- o século XX, a agricultura brasileira se
cos que analisam o comportamento da modernizou, intensificando-se os in-
questão agrária imposto pelo capitalis- vestimentos capitalistas. Esse período
mo nas colônias. Em todas as colônias foi resumido, na tese de José Graziano
do hemisfério sul houve basicamente da Silva (1982), como de “moderniza-
duas formas de organização da questão ção dolorosa”, porque desenvolveu as
agrária: a plantation, que associava gran- forças produtivas do capital na produ-
des extensões de terra, produção para ção agrícola, porém excluiu milhões de
exportação e trabalho escravo;; e as ha- trabalhadores rurais, que foram expul-
ciendas, implantadas, sobretudo, pelo sos para a cidade ou tiveram de migrar
capitalismo espanhol nas suas colônias, para as fronteiras agrícolas, em busca
e que combinaram trabalho servil, pro- de novas terras.
dução para a exportação e produção Sobre a natureza da questão agrária
para o mercado interno. nas últimas duas décadas (1990-2010),

644
Questão Agrária

há dois enfoques básicos. O primeiro, adianta recursos, cobra juros e divide a


defendido por pesquisadores que se renda gerada na agricultura.
somam à visão burguesa da agricultura, Do ponto vista social, percebem-
argumenta que existe um intenso de- se esses problemas na extrema desi-
senvolvimento do capitalismo na agri- gualdade social que essa estrutura
cultura brasileira, que aumentou enor- econômica gera no meio rural brasilei-
memente a produção e a produtividade ro, onde existem 7 milhões de pessoas
da terra. Para essa concepção, a con- que vivem ainda na pobreza absoluta e
centração da propriedade e seu uso já 14 milhões de adultos analfabetos. O
não representam um problema agrário programa Bolsa Família, distribuído
no Brasil, pois as forças capitalistas para 11 milhões de famílias que passam
resolveram os problemas do aumento
necessidades alimentícias, é revelador
da produção agrícola a seu modo, e a
da tragédia social no país. Além disso,
agricultura se desenvolve muito bem,
a maioria dos jovens que vive no meio
do ponto de vista capitalista. Ou seja, a
rural não tem acesso ao ensino funda-
agricultura é uma atividade lucrativa,
mental completo (oito anos), nem ao
com aumento permanente da pro-
ensino de nível médio e muito menos
dução e da produtividade agrícolas.
ao ensino superior.
O outro enfoque, de pensadores
Há, também, um enorme passivo
marxistas, críticos, analisa que a forma
ambiental resultante da forma preda-
como a sociedade brasileira organi-
dora da exploração capitalista na agri-
za o uso, a posse e a propriedade dos
bens da natureza ocasiona ainda gra- cultura brasileira, que degrada o solo e
ves problemas agrários e de natureza contamina rios e lençóis freáticos, além
econômica, social, política e ambiental. de desmatar sem nenhum controle,
Esses problemas aparecem no elevado desrespeitando inclusive as leis ambien-
índice de concentração da propriedade tais do Código Florestal. O Instituto
da terra – apenas 1% dos proprietá- Brasileiro do Meio Ambiente e dos
rios controla 46% de todas as terras;; Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
no elevado índice de concentração da aplicou multas por crimes ambientais
a grandes fazendeiros brasileiros, no
produção agrícola, em que apenas 8%
dos estabelecimentos produzem mais valor total aproximado de 8 bilhões de Q
de 80% das COMMODITIES AGRÍCOLAS reais, segundo o noticiário da imprensa
exportadas;; na distorção do uso de ao longo de 2011, que, no entanto, não
nosso patrimônio agrícola, pois 80% foram pagas.
de todas as terras são utilizadas ape- A tecnologia utilizada pelo modo
nas para produzir soja, milho e cana- capitalista de produzir na agricultura
de-açúcar, e na pecuária extensiva;; na brasileira está baseada no uso intensivo
dependência econômica externa à que da mecanização e dos venenos agríco-
a agricultura brasileira está submetida, las. E essas duas formas, além de expul-
por causa do controle do mercado, dos sarem a mão de obra e a população do
insumos e dos preços pelas empresas campo, representam uma agressão per-
agrícolas transnacionais;; e na subordi- manente ao meio ambiente, trazendo
nação ao capital financeiro, pois a pro- como consequência desequilíbrios am-
dução agrícola depende cada vez mais bientais que afetam toda a população,
das inversões do capital financeiro, que mesmo a que mora na cidade. Pesquisa

645
Dicionário da Educação do Campo

coordenada pelo médico e pesquisa- va contaminado por venenos agrícolas


dor Wanderlei Pignati, da Universidade assimilados do meio ambiente, da água
Federal do Mato Grosso (UFMT), no ou de alimentos contaminados.
período de 2000 a 2010, na região de Esses são exemplos de como há,
monocultivo da soja do estado, revelou ainda na atualidade, segundo essa cor-
que até o leite materno de mulheres rente de pesquisadores, um grave pro-
que vivem nas cidades da região esta- blema agrário na sociedade brasileira.

Notas
1
O termo junker era usado no meio rural russo da época como sinônimo de fazendeiro rico;;
é provável que tenha sido adotado por causa da proximidade da Rússia com a Alemanha.
2
Condições características de cada região, relacionadas com a fertilidade natural do solo, a
quantidade de água e sol, e as condições de clima para agricultura.
3
Para cada modelo de desenvolvimento capitalista na agricultura aqui expresso há farta
literatura, que já está disponível em português.

Para saber mais


KAUTSKY, K. A questão agrária. Rio de Janeiro: Laemmert, 1968.
LINHARES, M. Y.; SILVA, F. C. T. Terra prometida: uma história da questão agrária no
Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
MARTINS, J. de S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1986.
MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os economistas).
MITSUE, M. A história da luta pela terra no Brasil e o MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2001.
SILVA, J. G. da. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e traba-
lhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
STEDILE, J. P. A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2005. 5 v.
______. Bibliografia básica sobre a questão agrária no Brasil. Fortaleza: Edições
Nudoc/UFC–Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará,
2005.
______. Questão agrária no Brasil. 11. ed. rev. São Paulo: Atual–Saraiva, 2011.

646
Quilombolas

QUILOMBOLAS
Simone Raquel Batista Ferreira

Uma conversa acerca do termo de presença negra africana e de seus


quilombolas deve trazer à tona a histo- descendentes. No território colonizado
ricidade desses sujeitos sociais e dos pelo Estado português e batizado
conceitos que os representam. Se em Brasil, os termos quilombo e quilombo-
áreas banto da África, kílombò signifi- las foram utilizados para caracterizar
cava sociedades de homens guerrei- os sujeitos e grupos sociais organiza-
ros, no Brasil colonial a denominação dos em torno da contestação ao sis-
quilombola passou a designar homens e tema hegemônico escravista. Seguin-
mulheres, africanos e afrodescenden- do a tradição banto, o termo quilombo
tes, que se rebelavam ante a sua situa- foi trazido e utilizado por africanos e
ção de escravizados e fugiam das fazen- afrodescendentes para caracterizarem
das e de outras unidades de produção, seus territórios de resistência ante o siste-
refugiando-se em florestas e regiões de ma colonial escravista. Quilombolas tor-
difícil acesso, onde reconstituíam seu naram-se os seus habitantes, aqueles
modo de viver em liberdade. Findo o que se rebelavam com a situação de es-
sistema escravista, o termo quilombola cravização e marginalização em que se
foi passando por releituras e adqui- encontravam, nela forçosamente inse-
rindo outros significados, como o de ridos, como trabalhadores explorados
sujeito de direitos, resultante de conquis- à exaustão, capturados e arrancados de
tas jurídicas do movimento negro pe- seus territórios originários, comprados
rante o Estado brasileiro. e vendidos como mercadoria.
Também no território coloniza-
Da África ao Brasil colonial do pelo Estado espanhol – a América
Espanhola – a resistência à escravidão
Na África, a palavra kílombò é origi- africana se fez presente: cimarrones eram Q
nária dos povos de língua banto, e tem os escravos fugidos, e palenques, os seus
a conotação de sociedades guerreiras, espaços fortificados.
constituídas por homens oriundos de Esses dados revelam formas de
diversas linhagens e organizados em es- organização de pessoas e grupos so-
truturas centralizadas baixo disciplina ciais de origem africana que resistiam à
militar, no contexto histórico dos sé- escravização a que foram submetidos
culos XVI e XVII – caracterizado por pelo sistema colonial europeu inaugura-
conflitos pelo poder, por cisões e alian- do nos séculos XV e XVI, e consoli-
ças entre grupos e pelas migrações em dado com a expansão territorial de
busca de novos territórios (Munanga, Portugal e Espanha sobre outros terri-
1995-1996). tórios e seus povos originários. Nessa
No mesmo período, este tipo de relação colonial, a África e a América
organização societária também podia eram criadas como espaços habitados
ser encontrado em outros territórios por povos primitivos, selvagens e atrasados,

647
Dicionário da Educação do Campo

enquanto a Europa nascia como vetor para os impérios colonizadores, com o


da civilização e da modernidade, e seu de- saque dos recursos naturais, como ma-
senvolvimento capitalista era projetado deiras nobres e minérios, e a produção
como caminho único a ser seguido por de mercadorias agrícolas e semielabo-
toda a humanidade. radas, como o açúcar, em grandes lati-
No mesmo sentido, elegia-se como fúndios, sob o poder da classe senhorial.
única a história do expansionismo eu- O escravismo colonial sempre ge-
ropeu sobre os demais povos, classi- rou variadas formas de resistência, ora
ficados como sem história. Uma pre- coletivas, ora mais individuais (Reis
tensiosa história mundial se inau- e Gomes, 1996), como as fugas, o sui-
gurava, ignorando e tornando in- cídio, o assassinato de senhores e feito-
visíveis diversas histórias milenares, res, a formação de irmandades negras
seus sujeitos e sua diversidade de sa- e os quilombos.
beres. No território colonizado deno- Quilombolas ou calhambolas torna-
minado América, a diversidade de ram-se identidades de mulheres e
povos – astecas, maias, aimarás, incas e homens negros africanos e afrodes-
chibchas, dentre outros – ficou reduzi- cendentes que se insubordinavam em
da à limitante categoria de “índios”, relação à ordem colonial no território
enquanto os axântis, iorubás, zulus, Brasil, fugindo das fazendas escravis-
congos e bacongos, entre outros povos tas ou outras unidades de produção e
trazidos forçadamente como escravos refugiando-se em áreas de difícil aces-
do território colonizado denominado so. Nesses locais, constituíam seus no-
África, foram reduzidos à classifica- vos territórios – os quilombos –, abertos a
ção de “negros” (Quijano, 2005). todos os segmentos oprimidos da so-
Com essas classificações, o projeto ciedade e organizados em permanente
colonizador estabelecia, portanto, que estado de defesa e com base nas ativida-
o caminho a ser seguido por todos os des familiares de produção destinadas
povos seria aquele protagonizado pe- preferencialmente à subsistência: agri-
los europeus de pele branca, capitalis- cultura, pesca, caça, coleta e outras for-
tas e cristãos – categorias que foram mas de extrativismo.
identificadas como elementos de supe- Em algumas comunidades negras
rioridade –, enquanto os demais povos – rurais, ainda é viva a memória desses
não europeus, não brancos, não capita- acontecidos e a familiaridade com o
listas e não cristãos – foram inseridos conceito: “É, os escravos fugiam, pe-
na esfera da inferioridade. gavam era nome de calhambola. Tava
Esses povos originários foram trans- escondido no mato” (entrevista com
formados em trabalhadores forçados morador da Comunidade Quilombo-
do sistema colonial, seja pela servi- la de São Domingos, território Sapê
dão “indígena”, seja pela escravidão do Norte, Espírito Santo, realizada
“negra” africana – a qual fomentou em 2005).
o mais lucrativo comércio colonial no Essa memória revela um imaginá-
Atlântico. Ao serem dominados pela rio onde o termo calhambolas (ou qui-
lógica do capitalismo europeu em ex- lombolas) ficou associado à figura de
pansão, seus territórios ancestrais pas- “fugitivos”, em decorrência de serem
saram a ter a função de gerar riquezas identificados pelo olhar colonial como

648
Quilombolas

“negros fugidos”, que deveriam ser na qual terra, natureza e gente eram
capturados pelas forças repressoras. transformadas em mercadoria.
Da significação de espaço de resistência, Com o fim do escravismo colonial,
o termo quilombo (e sua derivação qui- o termo quilombola foi adquirindo ou-
lombolas) adquiria novo significado na tros significados, que devem ser con-
linguagem do colonizador: espaço de textualizados historicamente.
“negros fugidos”.
Enquanto “negros fugidos” da es-
cravidão, os quilombolas foram objeto de
Da identidade étnica
busca e captura por parte dos senhores quilombola e seus
de terras, das autoridades políticas pro- sujeitos de direitos
vinciais e das forças policiais. Durante
todo o escravismo colonial, foi intensa A identidade étnica é uma forma de
a troca de correspondências entre esses organização estrategicamente elaborada
sujeitos dominantes da ordem estabe- pelos grupos sociais para afirmar suas
lecida, revelando as constantes fugas diferenças em relação ao “outro” (Barth,
e enfatizando a necessidade de sua re- 2000). Em cada contexto histórico e geo-
pressão e da captura dos fugitivos. gráfico, essa identidade é reformulada
No entanto, se por um lado essa tro- pelos grupos sociais, no intuito de ma-
ca de correspondências mostra as arti- nifestar suas especificidades.
culações do aparelho repressor colo- A construção da identidade quilom-
nial, por outro revela o grande temor bola sempre caminhou em contraste
provocado pelos “negros fugidos” com o sistema hegemônico. No caso
nos grupos sociais dominantes, não só dos africanos escravizados e forçosa-
porque suas fugas lhes traziam prejuí- mente trazidos como mercadoria para
zos de ordem material, mas também, o mundo colonial, a identidade negra foi
sobretudo, porque seu movimento de sendo tecida como instrumento de afir-
rebelião e ruptura em relação à situa- mação das próprias origens, de sua an-
ção de escravizado ameaçava a ordem cestralidade e de seus saberes. Quan-
estabelecida (Azevedo, 1987). do se rebelavam, fugiam e constituíam
Quilombolas eram os sujeitos e gru- os quilombos, organizavam-se enquanto Q
pos sociais que se libertavam da escra- quilombolas, identidade que passava a
vização imposta, negando a inferiori- representar os sujeitos da resistência ante
dade que lhes era atribuída pela ordem o sistema colonial escravista.
colonial (Quijano, 2005). E nos quilom- Com o fim do sistema escravocra-
bos, eles se organizavam pela ótica da ta, o primeiro retorno do termo qui-
campesinidade – modo de viver basea- lombolas ao discurso oficial do Estado
do no trabalho familiar sobre a terra, brasileiro ocorreu durante o processo
como patrimônio a ser transmitido às constituinte de 1988. Baseando-se
novas gerações (Woortmann, 1990). no significado da resistência e trazen-
Presente também em diversos outros do a questão da reparação dos danos
grupos sociais, esse modo de viver provocados pela escravidão negra, o
contrapunha-se à ordem latifundiária e movimento negro encaminhou a dis-
monocultora colonial, regida pela lógi- cussão referente à necessidade de se
ca da acumulação desigual de riquezas, reconhecerem direitos singulares aos

649
Dicionário da Educação do Campo

afrodescendentes e de incorporá-los à a apresentação de documentos e cer-


Carta Magna. tificação antropológica. Essas deter-
Essa conquista constitucional que minações restringiam enormemente as
reconhece parte da população negra possibilidades de titulação das terras,
brasileira como sujeito de direitos foi pois abstraíam a realidade dessas pos-
consolidada no artigo 68 do Ato das ses sem documentação e os processos
Disposições Constitucionais Transi- expropriatórios historicamente sofri-
tórias, que assim determina: “Aos rema- dos pelas comunidades.
nescentes das comunidades dos qui- Um significativo avanço foi con-
lombos que estejam ocupando suas quistado pelo movimento negro, cuja
terras, é reconhecida a propriedade articulação política resultou na pro-
definitiva, devendo o Estado emitir- mulgação do decreto presidencial
lhes os títulos específicos”. nº 4.887/2003, que considerou como
Embora timidamente inserida ao “remanescentes das comunidades dos
final do texto da Constituição Federal quilombos” os “grupos étnico-raciais,
de 1988, essa conquista abria um novo segundo critérios de autoatribuição, com
campo para os direitos étnicos no sis- trajetória histórica própria, dotados de
tema jurídico brasileiro: pela primeira relações territoriais específicas, com
vez, o Estado reconhecia algum direito presunção de ancestralidade negra re-
de parte da população negra, à qual de- lacionada com a resistência à opressão
nominou “remanescentes das comuni- histórica sofrida” (Brasil, 2003).
dades dos quilombos”. No entanto, sua Ao incorporar o princípio da
referência a “remanescentes” os carac- autoatribuição, baseado na Convenção
teriza como quase extintos ou em processo nº 169 da Organização Internacional do
de desaparecimento, podendo o qualifica- Trabalho (OIT), promulgada em 1989
tivo ser interpretado como relativo a e também conhecida como Convênio
grupos ou indivíduos, diminuindo sobre Povos Indígenas e Tribais, o de-
a importância da afirmação coletiva creto nº 4.887/2003 avança no sentido
do direito. do entendimento da identidade étnica des-
Após a publicação do artigo 68 ses grupos. A autoatribuição passa a ser
das Disposições Transitórias, muitas o elemento fundamental para que o gru-
demandas foram apresentadas por di- po seja reconhecido pelo Estado como
versas comunidades negras rurais ao sujeito do direito, sujeito a quem cabe indi-
Estado brasileiro, visando à obten- car os próprios critérios que fundamen-
ção da propriedade definitiva das ter- tarão a demarcação de seus territórios.
ras ocupadas. No entanto, a aplicação O procedimento para a identificação
do artigo 68 esbarrava na definição dos e a delimitação desses territórios par-
sujeitos do direito e nos procedimentos te da memória coletiva de seus mora-
para a titulação de suas terras. dores, que passam a ressignificar suas
Da parte do Estado brasileiro, as próprias histórias de vida. Saber-se
primeiras tentativas de regulamentação dono de direitos assegurados pelo Es-
do artigo 68 afirmavam que os “rema- tado faz ampliar a consciência da signi-
nescentes das comunidades dos qui- ficação política da identidade étnica para
lombos” deveriam comprovar a ocupa- a afirmação do território de direito (Walsh
ção da terra que pleiteavam, mediante e Garcia, 2002).

650
Quilombolas

Em seu processo de construção cionados à sua ancestralidade e ao perío-


identitária, as comunidades quilombo- do da escravidão;; às suas formas pecu-
las do território Sapê do Norte (mu- liares de linguagem presentes nas cate-
nicípios de Conceição da Barra e São gorias nativas;; aos seus saberes oriun-
Mateus, no Espírito Santo) dialogam com dos da observação, leitura e usos do
diversas definições dos termos quilombo ambiente;; às suas práticas de cura;; aos
e quilombolas, e elaboram as suas pró- seus rituais religiosos e festivos;; e
prias, como “organização de pessoas às suas redes de parentesco, trocas
oprimidas”, “comunidade que luta por e solidariedade.
objetivos comuns, pela terra e liberda- Essas particularidades históricas,
de”, “o negro e suas origens”, “o que culturais e sociais comprovam a pre-
luta para ter direitos”. Essas definições sença dos grupos em seus territórios e
trazem tanto a dimensão da resistência constituem elementos representativos
negra quanto a reconstrução de ele- da resistência negra. Ademais, funda-
mentos da ancestralidade africana re- mentam a organização étnica quilombola
elaborados no espaço-tempo presente, ante o Estado brasileiro, exigindo-lhe
revelando a mobilização e a organiza- políticas de reparação em relação ao pro-
ção do grupo em prol da aplicação do cesso que lhes foi imposto de escravi-
artigo 68 (O’Dwyer, 2006). zação, desterritorialização, exploração
Nesse sentido, à medida que a or- e discriminação.
ganização étnica dessas comunidades Assim como durante o sistema co-
avança, amplia-se a dimensão da resis- lonial escravista, a identidade étnica qui-
tência presente nos termos quilombos e lombola continua explicitando a situação
quilombolas, os quais passam a ser asso- de conflito historicamente vivenciada
ciados a aspectos históricos, culturais e por sujeitos e comunidades negras, que
raciais dos grupos. A afirmação étnica passam a se organizar enquanto movi-
produz uma nova valorização da memó- mento social, visando à mudança do
ria e das próprias histórias vividas: “Vo- lugar social até então ocupado por elas
cês são quilombo porque sabem contar (Porto-Gonçalves, 2003). No entanto,
a história do lugar” (entrevista com mo- muito além da caracterização colonial de
rador da Comunidade Quilombola do
Angelin, Território do Sapê do Norte,
“negros fugidos” e das determinações
jurídicas do Estado brasileiro, a identida-
Q
Espírito Santo, realizada em 2005). de quilombola caminha na desconstrução
A memória coletiva traz elementos da inferioridade que foi ideologicamente
que testemunham a pertença territorial atribuída pelo sistema colonial a todos
dessas comunidades, como aqueles rela- e quaisquer elementos da negritude.

Para saber mais


ALMEIDA, A. W. B. de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, E. C. (org.).
Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
p. 43-82.
AZEVEDO, C. M. M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites –
século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

651
Dicionário da Educação do Campo

BARTH, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: ______. O guru, o iniciador. Rio
de Janeiro: Contracapa, 2000.
BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003: regulamenta o procedi-
mento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que
trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial,
da União Brasília, 21 nov. 2003. Disponível em: http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/legis-
lacao/legislacao-docs/quilombola/decreto4887.pdf. Acesso em: 5 out. 2011.
MUNANGA, K. Origem e histórico do quilombo na África. Revista USP, n. 28,
p. 56-63, dez.-fev. 1995-1996.
O’DWYER, E. C. Os quilombos e as fronteiras da antropologia. Antropolítica,
Niterói, n. 19, p. 91-112, 2º sem. 2005.
PORTO-GONÇALVES, C. W. Geografando nos varadouros do mundo: da territorialidade
seringalista (seringal) à territorialidade seringueira (a reserva extrativista). Brasília:
Ibama, 2003.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:
LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais –
perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 227-278.
REIS, J. J.;; GOMES, F. (org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
WALSH, C.;; GARCÍA, J. El pensar del emergente movimiento afroecuatoriano:
Reflexiones (des)de un proceso. In: MATO, D. (org.). Estudios y otras prácticas intelec-
tuales latinoamericanas en cultura y poder. Caracas: Clacso–Ceap, Universidad Central
de Venezuela, 2002. p. 317-326.
WOORTMANN, K. “Com parente não se neguceia”: o campesinato como ordem
moral. Anuário Antropológico, v. 69, p. 11-73, 1990.

QUILOMBOS
Renato Emerson dos Santos

O conceito de quilombo encontra-se ocorre pela convergência de tradições


em pleno processo de redefinição desde discursivas (sobretudo aquelas pela Re-
que se iniciou a aplicação do disposi- forma Agrária e antirracismo) que, no
tivo da Constituição Federal de 1988 bojo da definição dos sujeitos de direi-
que prevê a titulação das terras para tos, promove uma releitura do passado
as comunidades remanescentes de qui- e do presente e da história e das relações
lombos. A ressemantização do conceito sociais que constituem os quilombos.

652
Quilombos

A primeira acepção para o termo a partir da fuga dos escravos, organiza-


remete aos agrupamentos de fugiti- do em torno de atividades produtivas.
vos (negros e, em menor proporção, não Tal concepção de quilombo é a indi-
negros) do sistema escravocrata, a par- cada pelo Conselho Ultramarino de
tir do passado colonial brasileiro. Nesse Portugal em 1740, que o define como
sentido, o quilombo aparece como uma “toda habitação de negros fugidos, que
das formas de resistência à escravidão passem de cinco, em parte despovoada,
imposta, sobretudo, a africanos seques- ainda que não tenham ranchos levanta-
trados e trazidos para as Américas. dos e nem se achem pilões nele”. Tal
Essa configuração na formação acepção, segundo Almeida, estrutura-
colonial do território traz diversos se em cinco pilares analíticos:
significados e interpretações para os
quilombos. Eles eram sinônimos de li- 1) a fuga;; 2) uma quantidade
berdade para uns e ameaça (de roubos, mínima de fugidos;; 3) o isola-
de libertação de escravizados, de guer- mento geográfico, em locais de
rilhas etc.) para outros. Para muitos difícil acesso e mais próximos
escravos fugidos (e também homens li- de uma “natureza selvagem”
vres desprovidos de recursos dentro que da chamada civilização;;
da ordem escravocrata), eles represen- 4) moradia habitual, referida no
tavam a possibilidade de inserção num termo “rancho”;; 5) autoconsu-
sistema de produção e repartição social mo e capacidade de reprodução,
mais igualitária, sendo, com isso, um simbolizados na imagem do pi-
modelo alternativo de sociedade que lão de arroz. (1999, p. 14-15)
engendrava um confronto com o mo-
delo escravista. A partir do artigo nº 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitó-
Tais significados expressam a diver- rias da Constituição Federal de 1988,
sidade de inserções e relações territo- esse conceito de quilombo começa a
riais dos quilombos dentro da ordem ser redefinido. O enunciado do artigo
escravocrata. Havia quilombos em diz: “Aos remanescentes das comuni-
guerrilha contra fazendas e núcleos de dades de quilombos que estejam ocu-
ocupação, outros estabeleciam com pando suas terras é reconhecida a pro- Q
eles relações de troca (comercial, social priedade definitiva, devendo o Estado
etc.), outros, ainda, encontravam-se em emitir-lhes os títulos respectivos”. Esse
situações de isolamento (relativo ou dispositivo constitucional vai permitir
absoluto). A onipresença do quilombo que as lutas quilombolas sofram uma
na formação social escravocrata en- transformação na percepção que a so-
gendrava essa diversidade, bem como ciedade tem dos quilombos, efetuando-
a existência de quilombos com portes se uma reconfiguração simbólica (com
bastante diferenciados, que iam desde a atribuição de uma dimensão positiva)
núcleos com dezenas de habitantes até do ser descendente de escravos na qual
outros bastante populosos – casos de se confere relevo à dimensão da resis-
Palmares, em Alagoas, ou do Negro tência à escravidão.
Cosme, no Maranhão. A ênfase na resistência contraria uma
Todas essas menções remetem a tese bastante comum na formação es-
um tipo de quilombo, estruturado colar de grande parte da população

653
Dicionário da Educação do Campo

brasileira: a de que os africanos foram novas possibilidades de futuro para as


escolhidos como força de trabalho por comunidades quilombolas. As defini-
se adaptarem e, em certa medida, acei- ções que vão surgindo, e que ressal-
tarem a escravidão, diferentemente do tam a formação de sujeitos coletivos,
indígena, que não a aceitava e fugia. processos identitários, territorialidades
Essa versão alimentava, no cotidiano e de patrimônio cultural, entre outros
escolar, a reprodução de estereótipos aspectos mobilizados como traços dia-
pejorativos nos educandos negros e críticos constituintes de sujeitos de
contribuía para a sustentação do racis- direitos, retiram da história o monopó-
mo na escola. Além disso, a menção à lio na instituição de representações do
quilombagem, não raro, remetia apenas que é ou não é quilombo.
ao Quilombo dos Palmares, como se Essa perda do monopólio não é
ele fosse o único (e exceção) em toda a ruptura com fatos históricos, mas sim
formação escravocrata. reelaboração de leituras da história,
Grande parte da população brasilei- permitindo emergir o que muitas vezes
ra, portanto, desconhecia o fenômeno era ocultado. Assim, além das comuni-
da quilombagem, e a Constituição de dades e núcleos formados a partir da
1988 abre o caminho para a conscien- fuga, ganha importância histórica a
tização sobre a não aceitação da condi- multiplicidade de processos originários
ção imposta de escravidão, mostrando de comunidades negras engendradas
a resistência e a luta como intrínsecas por e com base nas relações de escravi-
aos escravizados. O quilombo reemer- dão: comunidades surgidas em antigas
ge, então, como símbolo de lutas dos senzalas e em fazendas abandonadas,
negros (no passado e no presente), ou por heranças, doações ou direito
significado que vinha sendo construí- de uso conferidos por proprietários
do pelo movimento negro brasileiro – com o fim da escravidão, bem como
o jornal O Quilombo, organizado por a compra de terra durante e depois da
Abdias do Nascimento na década de escravidão, são apenas alguns exemplos
1940, e a eleição do dia 20 de novem- da origem de comunidades relacionadas
bro, data do assassinato do líder Zumbi com a ordem escravocrata (durante sua
dos Palmares, como Dia da Consciên- vigência ou em seu processo de derro-
cia Negra, são exemplos dessa cons- cada). Ignorar tais processos ou negar
trução pelo movimento social. às comunidades assim geradas a con-
A aplicação do preceito constitu- dição de sujeitos de direitos coletivos
cional vai ensejar disputas acerca de é ruptura com o fato histórico de que,
interpretações sobre os quilombos, dentro da ordem escravocrata, muitas
processo no qual ocorre uma redefi- vezes existia mais continuidades do
nição e um alargamento conceitual. que isolamento entre elas e os quilom-
O deslocamento do alcance do con- bos formados por fuga.
ceito de expressão de uma forma de O que se impõe é a compreensão
organização e existência no passado de processos sociais que engendram
para definidor de direitos no presente formas espaciais que podem durar mais
impulsiona uma releitura da formação do que eles próprios, transformando-
do território brasileiro e, nesse sentido, se em “rugosidades” no espaço. Essas
constitui novas formas de articulação formas não apenas se mantêm, mas,
entre passado e presente – o que cria pela sua propriedade de “inércia di-

654
Quilombos

nâmica” (são práticos inertes), são re- a forma hegemônica das relações
funcionalizadas por novos processos capitalistas) e sua extensão ao cam-
espaciais que elas também influenciam. po, a chamada modernização (social)
A ressignificação do passado escravo- da agricultura.
crata, ao tomar em conta a dimensão A racialização das relações sociais
processual do fim da escravidão (em emerge, portanto, como mais uma
vez de operar com a ideia de que ela dimensão de dominação, exploração
foi extinta numa mesma data, em todo e dominação. No campo, a emer-
o território nacional), deve então in- gência dos quilombolas, enquanto
corporar seus legados e continuidades modalidade de “campesinato negro”
na transição para o trabalho livre, e (Gomes, F. S., 2006) que se enuncia
observar as formas de inserção das co- como sujeito coletivo, evidencia que
munidades negras na nova ordem. Nas a não consideração da racialidade nas
últimas décadas antes do ano de 1888, relações de espoliação é, na verdade,
data oficial da abolição da escravatura, um alisamento analítico do território
bem como nas décadas seguintes, o (Deleuze e Guattari, 1997), não con-
Brasil, a exemplo de outros países nas templando a gama de relações que
Américas, experimentou um projeto constituem as condições concretas
de branqueamento da população. Tal das experiências cotidianas de indi-
projeto, executado com descontinuida- víduos e grupos. Se ao nos remeter-
des no espaço e no tempo, teve como mos ao passado podemos pensar os
uma de suas dimensões constitutivas a quilombos como sendo a expressão
difusão de um ideário de superioridade da luta de classes entre senhores e
racial do branco sobre os não brancos, escravos, na contemporaneidade eles
o que ajudou a organizar os mercados aparecem como expressão da multipli-
de trabalho livre (assalariado ou não) cidade de hierarquias constitutivas do
segundo hierarquias raciais. Com isso, sistema capitalista – assim como o gê-
a assimilação inferiorizante de popu- nero, a cultura, a religiosidade e a clas-
lações negras (nos espaços agrários e se, entre outras (Grosfoguel, 2010).
urbanos) na sociedade de classes trou- A própria racialidade das relações
xe como marcas a discriminação, a des-
qualificação (de indivíduos, de grupos,
sociais no padrão brasileiro deve ser com-
preendida como um fenômeno multi-
Q
de patrimônios culturais, de formas dimensional. Raça é um fenômeno e
comportamentais etc.) e a segregação conceito social, não biológico (Quijano,
de base racial. 2007). Na condição de reguladora de
Tais processos engendraram e con- comportamentos e relações, a raça não
solidaram “comunidades negras”, ru- é uma variável social independente em
rais e urbanas, e grafagens espaciais dos absoluto, estando comumente associa-
padrões de relações raciais hierárquicos da a outras variáveis. É dessa forma que
da sociedade brasileira pós-abolição da o racismo se manifesta nas experiên-
escravatura. A ideologia do racismo cias concretas de indivíduos e grupos,
foi assim refuncionalizada no século em diferentes eixos de discriminação:
XX, seja dentro do projeto nacional pela cor/fenótipo corpóreo, pela cultu-
ag rarista-expor tador-imig rantista ra, pela religiosidade, por práticas cul-
(Vainer, 1990), seja no processo de turais, por saberes, entre outros. Isso
industrialização (compreendido como explica a pluralidade (de organizações

655
Dicionário da Educação do Campo

e de agendas) da luta antirracismo do condições para a vida, em oposição à


movimento negro brasileiro e permite valorização da individualidade. Isso se
compreender a luta quilombola como remete diretamente a origens comuns,
interseção entre o antirracismo e a luta dadas pela ancestralidade africana
pela democratização do acesso à terra e/ou pelos laços sanguíneos entre os
(no campo e na cidade). membros do grupo. A memória de um
Os quilombos estão inseridos no ancestral comum (matriarca, patriarca,
fluxo da luta antirracismo, sendo a pró- uma família ou um conjunto pequeno
pria promulgação do Ato das Disposi- de núcleos familiares originários, di-
ções Constitucionais Transitórias, que mensão de origem que substitui o tem-
lhes confere o direito à titulação, parte po histórico por um tempo mítico) é
dessa luta – resultado e condição da traço diacrítico demarcador de identi-
sua configuração atual. A complexida- dade que, na verdade, equilibra hierar-
de da luta do movimento negro, com quias entre os indivíduos no presente e
suas variantes, vai permitir a multipli- reforça a supremacia do coletivo sobre
cidade de diálogos em convergência as individualidades.
na luta quilombola, com intercâmbios Os processos de reconfiguração
de problemáticas, bandeiras e agendas de identitária quilombola compreendem a
luta e reivindicações. O alargamento reprodução das formas de existência,
do escopo da luta quilombola, de uma a transmissão de patrimônio cultural,
luta pela titulação da terra para uma lu- a valorização da origem comum e dos
ta pelo território se dá nessa imbrica- laços sanguíneos, entre outros, de ma-
ção de múltiplas dimensões: lutar pelo neira que o grupo reconstitui e mantém
território significa buscar manter (e, sua memória do passado para (re)ela-
mesmo, reconstituir) práticas, saberes, borar sua existência étnica no presen-
sociabilidades, formas de relação com te. Dissociar tais dimensões da forma
a natureza e patrimônios culturais e como é encaminhada a luta pela terra
históricos (memórias), entre outros (titulação coletiva) bloqueia a percep-
aspectos inerentes aos processos de ção de que esse campesinato negro vive
territorialização de cada grupo (Arruti, experiências diferenciadas no capitalis-
2002). Em cada comunidade, tais agen- mo brasileiro, e tem na valorização de
das assumem configurações variadas, suas matrizes de relações sociais (cultu-
com maior ou menor peso, mas a ar- rais, de ancestralidade, de africanidades,
ticulação das comunidades em luta entre outras) estratégias fundamentais
evidencia a importância da dimensão de resistência e sobrevivência.
territorial dos quilombos. Traço marcante dessa luta pelos
A opção de reivindicação da titula- territórios quilombolas é a manuten-
ção coletiva, em vez do parcelamento ção e a valorização de relações com a
individual de propriedades, é parte da natureza, que aparecem, entre outras,
luta pelo território. A valorização de em práticas etnobotânicas e agroe-
práticas e regimes fundiários em ampla cológicas (Gomes, A., 2009), que se
medida baseados no uso comum é re- particularizam e singularizam na articu-
sultado e condição das territorialidades lação sistêmica da vida de quilombolas:
construídas no seio das comunidades: plantas e plantios associam dimensões
a coletividade e a comunalidade como como religiosidade, ritos e manifestações

656
Quilombos

culturais, alimentação, estética (do inte- às múltiplas dimensões do capitalismo.


rior e/ou do exterior da casa, da rua ou Por exemplo, a preservação de uma
da comunidade), medicina e mesmo etnobotânica de origem africana por
atividades econômicas. Uma mesma meio das chamadas “farmácias vivas”
planta pode cumprir várias dessas (e permite a manutenção do controle so-
mesmo outras) “funções”, evidencian- bre a saúde e o bem-estar, controle que
do a indissociabilidade delas para a vida vem sendo expropriado pela indústria
nessas matrizes de relações sociais. Isso farmacêutica como resultado da apro-
não elimina valorizações mais específi- priação de saberes, do seu monopólio
cas dentro de sistemas de saberes que e dos epistemicídios. Manter e utilizar
vão definir algumas espécies mais como plantas “medicinais” é resistir a uma
“plantas litúrgicas” – utilizadas em ri- dimensão de alienação do capital con-
tuais ou integradas ao cotidiano (por cernente à relação homem–natureza,
exemplo, como proteção na porta de aquilo que Milton Santos denominou
casas) –, “plantas de cura/medicinais”, avanço do “meio técnico-científico-
que podem estar num quintal, na rua informacional” (Santos, 2002). É tam-
ou numa área “vazia”, de uso coletivo, ou bém uma contraposição à forma mo-
“plantas alimentares”, entre outras. derno-colonial e eurocêntrica de mane-
Essas relações são reproduzidas e jo da agricultura, de homogeneização
mantidas por redes de saberes transmi- de cultivos e espécies, e de valorização da
tidos oralmente, por ritos religiosos/ dimensão comercial das plantas em de-
culturais ou pela própria observação de trimento de outras dimensões da vida.
exemplos de usos. É assim que se cons-
É no seio dessa complexidade de
titui um entrelaçamento entre diversi-
dade biológica e diversidade cultural, formas de territorialização e inserção
com heterogêneas misturas de espécies socioespacial das comunidades que
que já compunham etnobotânicas afri- são engendradas lutas, resistências,
canas e espécies autóctones, presentes processos identitários... Os quilom-
em grotões, matas ciliares e outros am- bos passam a representar “uma mo-
bientes de territorialização de comu- dalidade de representação de uma
existência coletiva” (Almeida, 1999,
nidades quilombolas. A manutenção
desses costumes e tradições é base para p. 18). A condição de “remanescente” Q
sustentos, para a reprodução do gru- não deve, portanto, considerar apenas
po enquanto coletividade (reprodução uma forma de existência no passado;;
material, simbólica), mas também, ine- deve levar em conta a multiplicidade
quivocamente, é forma de resistência de formas do presente.

Para saber mais


ALMEIDA, A. W. de. Os quilombos e as novas etnias. In: LEITÃO, S. (org.). Direitos
territoriais das comunidades negras rurais. São Paulo: Instituto Socioambiental, 1999.
p. 5-18.
ARRUTI, J. M. Territórios negros. Koinonia. Territórios Negros – Egbé: Relatório
Territórios Negros. Rio de Janeiro: Koinonia, 2002.

657
Dicionário da Educação do Campo

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:


Editora 34, 1997. V. 5.
GOMES, A. Rotas e diálogos de saberes da etnobotânica transatlântica negro-africana: terrei-
ros, quilombos, quintais da Grande BH. 2009. Tese (Doutorado em Geografia) –
Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2009.
GOMES, F. S. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio
de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos
pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.
In: SANTOS, B. de S.;; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez,
2010. p. 455-491.
QUIJANO, A. O que é essa tal de raça? In: SANTOS, R. E. (org.). Diversidade, espaço
e relações étnico-raciais: o negro na geografia do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,
2007. p. 43-52.
SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2002.
VAINER, C. B. Estado e raça no Brasil. Notas exploratórias. Estudos Afro-Asiáticos,
Rio de Janeiro, n. 18, p. 103-118, 1990.

658
R
REFORMA AGRÁRIA
João Pedro Stedile

Reforma Agrária é um programa de O segundo instrumento é a expro-


governo que busca democratizar a pro- priação ou confisco. É quando a titu-
priedade da terra na sociedade e garantir laridade da propriedade dos grandes
o seu acesso, distribuindo-a a todos que a fazendeiros é transferida para o Estado
quiserem fazer produzir e dela usufruir. sem nenhuma indenização ou pagamen-
Para alcançar esse objetivo, o prin- to de valores. Essa situação depende
cipal instrumento jurídico utilizado em da legislação existente em cada país, e
praticamente todas as experiências exis- é uma punição por irregularidades pra-
tentes é a desapropriação, pelo Estado, ticadas pelo fazendeiro.
das grandes fazendas, os LATIFÚNDIO, Há casos intermediários em que
e sua redistribuição entre campone- o governo não paga pelas terras, mas
ses sem-terra, pequenos agricultores indeniza o proprietário pelas benfei-
com pouca terra e assalariados rurais torias que porventura haja na fazenda,
em geral. como casas, galpões, cercas. No Brasil,
Há, no entanto, diversas formas de tem ocorrido essa situação quando os
obtenção de terra pelo Estado, para fazendeiros entram em terra pública,
eliminar a grande propriedade. A pri- sem que possuam o direito legal sobre
meira e mais usada é o instrumento da elas;; o governo, então, retira-os da ter-
desapropriação. Estabelecidos os crité- ra pública, indenizando as benfeitorias
rios de classificação de latifúndios e/ou que tenham feito.
grandes propriedades que devem ser No caso brasileiro, a desapropria-
repartidos, o governo emite um de- ção se dá por meio de um decreto que
creto desapropriando, ou seja, trans- transfere de forma compulsória a
ferindo a propriedade privada daquela propriedade das terras para o Estado,
área do fazendeiro/proprietário capita-
lista para o Estado. Para haver essa
mediante indenização. Existe ainda
a modalidade de compra negociada R
transferência de titularidade, o gover- com o fazendeiro (decreto nº 433, de
no indeniza o ex-proprietário mediante 24 de janeiro de 1992), em que se ne-
critérios de valores definidos pelas leis gociam valores de indenização sem
de cada país. Esses valores podem ser que haja necessidade de decreto desa-
simbólicos ou podem ser os mesmos propriatório. A possibilidade de confis-
preços praticados no mercado. Feita co, que não prevê qualquer pagamento,
a transferência da propriedade da fa- ocorre, no Brasil, no caso de fazendas
zenda para o Estado, ele organiza um utilizadas para contrabando, atividades
projeto de distribuição daquela terra do narcotráfico ou plantio de plan-
às famílias de agricultores sem-terra da tas psicotrópicas – como a maconha,
região que assim o reivindicarem. por exemplo.

659
Dicionário da Educação do Campo

Há dez anos aguarda votação na do capitalismo industrial, muitos países


Câmara dos Deputados a proposta de e governos implementaram programas
emenda constitucional nº 438/2001, de Reforma Agrária. Esses programas,
já aprovada no Senado, que imporia a que surgiram ainda no século XIX, ti-
expropriação e o confisco de todas as nham como objetivo garantir o direito
fazendas em que for encontrado regi- à terra e construir sociedades mais de-
me de trabalho análogo à escravidão. mocráticas, procedendo-se uma distri-
A bancada dos parlamentares ligados buição mais justa de um bem da natu-
ao latifúndio tem impedido a votação reza que, a rigor, deveria ser de toda a
desse projeto. população que vive naquele território.
As características e a natureza dos
Projetos de colonização processos de distribuição de terra e
desapropriação dos latifúndios variam
Em diversos países pouco povoa- muito nos diferentes países, dependen-
dos e onde existe enormes áreas dis- do das circunstâncias históricas e das
poníveis que ainda são de domínio condições geográficas e edafoclimá-
público ou de propriedade do Estado, ticas1 de cada país. Assim, com base
foram aplicados programas de dis- nas diversas experiências de Reforma
tribuição dessas terras para uso dos agri- Agrária ocorridas em todo o mundo,
cultores. As terras são públicas, não há pode-se aglutiná-las e classificá-las em
ainda propriedade privada, estão desa- diferentes tipos de Reforma Agrária.
bitadas ou muitas vezes os governos as Para efeito deste Dicionário, vamos
apropriam das populações nativas, po- procurar descrevê-las de forma sucin-
vos indígenas que nelas habitavam por ta;; o leitor/estudioso deverá buscar li-
tempos imemoráveis. Foi o que aconte- teratura especializada para aprofundar-
ceu, por exemplo, na distribuição das se na compreensão das características e
terras do Oeste dos Estados Unidos detalhes de cada experiência concreta
entre 1862 e 1910, e o que acontece no em determinado país.
Brasil até hoje, com a distribuição das
terras públicas da Amazônia Legal, em
projetos de colonização. Reforma Agrária clássica
Muitos governos fazem programas Assim são considerados aqueles pro-
de distribuição dessas áreas para agri- gramas de governo para desapropria-
cultores, transformando-os então em ção e distribuição massiva de terras que
proprietários privados. A distribuição ocorreram durante o processo de in-
dessas terras constitui projetos de co- dustrialização. Esse tipo de Reforma
lonização, que são diferentes dos pro- Agrária foi o primeiro realizado pelo
gramas de Reforma Agrária, pois estes Estado burguês. Sua característica prin-
implicam a democratização da terra e a cipal é o fato de essas reformas terem
eliminação do latifúndio. sido feitas com legislação aplicada por
governos da burguesia industrial. O
Tipos de Reforma Agrária objetivo principal desses governos era
aplicar o direito republicano e demo-
Ao longo da história moderna, mas, crático de garantir a todos os cidadãos
sobretudo, a partir do desenvolvimento o acesso à terra e também desenvolver

660
Reforma Agrária

o mercado interno para a indústria, com Entre a Primeira e a Segunda Guerras


a distribuição de terra e renda aos cam- Mundiais, cerca de 20 países da Europa
poneses até então desprovidos de bens. Oriental aplicaram leis de Reforma
Em geral, todas as experiências de Agrária, por meio de governos das bur-
Reforma Agrária clássica foram mas- guesias locais que distribuíram terras
sivas e amplas. Ou seja, estabeleceram aos camponeses. Nesse caso, suspeita-
um limite máximo de tamanho da pro- se que a motivação principal não era o
priedade rural e desapropriaram todas desenvolvimento do mercado interno,
as fazendas acima desse limite. Por outra pois eram países de baixo nível indus-
parte, procuraram distribuir e atender a trial, mas sim o medo de que a Revolu-
todas as famílias de camponeses que qui- ção Russa de 1917 se alastrasse para os
sessem trabalhar na terra. países vizinhos.
Do ponto de vista político, sua Depois da Segunda Guerra Mun-
aplicação representou uma aliança en- dial, as forças militares intervencionis-
tre a burguesia industrial e comercial tas dos Estados Unidos promoveram
e os camponeses contra os interesses leis de Reforma Agrária em alguns pa-
da oligarquia rural, que concentrava a íses da Ásia por eles invadidos e con-
propriedade da terra. trolados durante a guerra. E assim, a
manu militari, foram feitas reformas
As reformas agrárias clássicas tive-
agrárias amplas no Japão, nas Filipinas
ram início nos países industrializados
e na província chinesa de Taiwan, que,
da Europa Ocidental, em meados do
por ser uma ilha, foi protegida pelas
século XIX, e se estenderam até o pós-
forças armadas norte-americanas da
Segunda Guerra Mundial.
revolução popular maoísta. Após 1956,
Pode-se considerar que a lei de ter- fez-se uma Reforma Agrária também
ras do governo Abraham Lincoln, nos na Coreia do Sul.
Estados Unidos, promulgada no meio
da guerra civil, em 1862, também foi
uma Reforma Agrária clássica. Essa Reforma Agrária anticolonial
lei garantiu a todos os cidadãos que
Durante os processos de indepen-
morassem no território dos Estados
dência política das colônias da América
Unidos o direito de acesso a 100 acres de
Latina, houve também algumas expe-
terra (o equivalente a mais ou menos
riências de Reforma Agrária. Foram
80 hectares). Nem mais, nem menos. E
isso era autoaplicável pelos próprios ci-
promovidas no contexto de uma nova R
dadãos. O objetivo era quebrar o poder ordem política de vocação nacionalis-
econômico do latifúndio escravocrata ta que tratou de desapropriar as terras
do Sul e buscar uma justa distribui- dos latifundiários subalternos às me-
ção das terras da fronteira agrícola do trópoles, distribuindo-as entre os cam-
Oeste, extorquidas dos povos indíge- poneses sem-terra locais.
nas, mediante a sua eliminação ou pelo A maior de todas as experiências
confinamento em reservas. Apesar des- desse tipo foi a do Haiti, realizada a
sa origem, essa lei beneficiou mais de partir de 1804. Ela foi muito importan-
6 milhões de famílias de agricultores te para a população haitiana, pois com-
de 1862 a 1910. E distribuiu mais de binou a libertação da escravidão do
300 milhões de hectares de terras. jugo político francês com a implantação

661
Dicionário da Educação do Campo

da república e a distribuição massiva da e 1954, quando, repetindo o caso me-


terra aos camponeses, ex-escravos. xicano, os camponeses se armaram,
No Paraguai, durante o governo re- marcharam sobre a capital La Paz, im-
publicano de José Gaspar de Francia, puseram um governo revolucionário e,
no período de 1811 a 1816, também ao longo desse processo, expropriaram
houve, até seu governo progressista ser todas as grandes propriedades e as dis-
derrubado do poder pelas forças locais tribuíram entre si, sem lei e sem o po-
conservadoras, um intento de Reforma der do Estado. Nesse caso, a história se
Agrária, com distribuição de terras aos repetiu. A revolução foi derrotada, os
camponeses de origem guarani, porém camponeses voltaram para as suas co-
de forma limitada. munidades, mas o novo poder político
respeitou a distribuição das terras feita
E no Uruguai, durante o governo de durante o processo.
José Artigas, a partir de 1811, houve um
intento, mais limitado ainda, de distri-
buição de terras aos camponeses criollos, Reforma Agrária popular
em terras de estancieiros espanhóis.
Consiste na distribuição massiva de
terras a camponeses, no contexto de pro-
Reforma Agrária radical cessos de mudanças de poder nos quais
se constituiu uma aliança entre governos
Caracteriza-se pela tentativa da
de natureza popular, nacionalista, e os
erradicação do latifúndio e pela dis-
camponeses. Desses processos resulta-
tribuição da terra realizada pelos pró-
ram leis de Reforma Agrária progressis-
prios camponeses. Esses processos tas, populares, aplicadas combinando-se
excluíram a necessidade de o Estado a ação do Estado com a colaboração dos
burguês criar leis de Reforma Agrária, movimentos camponeses.
realizando-se no bojo de revoltas po-
pulares mais amplas. Onde esse tipo de Reforma Agrária
ocorreu, ele não afetou necessariamen-
O primeiro exemplo histórico de te o sistema capitalista, e seu grau de
Reforma Agrária radical é o da Revo- abrangência esteve relacionado com os
lução Mexicana, ocorrida de 1910 a processos de mudanças sociais, econô-
1920, quando os camponeses, liderados micas e políticas havidas em cada país.
por Pancho Villa no norte e Emiliano Algumas dessas reformas tiveram re-
Zapata no sul, armaram-se e, sob o sultados que perduram até os dias de
lema “Terra para quem nela trabalha”, hoje, outras foram derrotadas e os fa-
distribuíram as terras entre si, expul- zendeiros desapropriados recuperaram
sando ou fuzilando os latifundiários. suas terras.
Mesmo com a Revolução Mexicana Há muitos exemplos desse tipo de
derrotada e seus líderes mortos, a bur- Reforma Agrária. Citamos aqui apenas
guesia nacional que tomou o poder ao os casos mais notórios ou que tiveram
final teve de respeitar a distribuição das maior influência sobre outros países e
terras que fora feita sem a lei e sem a governos. A mais importante experiên-
normatização do Estado. cia de Reforma Agrária popular foi
A segunda experiência é a Revo- a que ocorreu durante o processo da
lução Popular na Bolívia, entre 1952 Revolução Chinesa, no período que vai

662
Reforma Agrária

de 1930 a 1950. Na medida em que o vernos locais, de cunho burguês e alia-


Exército Vermelho e o Partido Comu- dos do imperialismo, obrigaram-se a
nista iam liberando territórios, eram implantar políticas de Reforma Agrária.
também aplicados processos de distri- Estas, no entanto, em geral não tiveram
buição de terras, que uniam o poder do um caráter massivo e amplo, uma vez
governo revolucionário, popular, com que esses governos também eram com-
os camponeses, que também estavam postos pelas oligarquias rurais.
engajados no Exército Vermelho. O O Governo Kennedy, nos Estados
objetivo principal era garantir terra a Unidos, durante a década de 1960, che-
todos os camponeses que viviam nos gou a fazer pressões para que governos
povoados rurais, base da organização conservadores seus aliados implan-
social do interior da China e, por meio tassem políticas de Reforma Agrária,
dela, trabalho para todos, eliminando- como forma de conter o ímpeto de
se as rendas pagas aos latifundiários e mudanças que havia no continente. Seu
criando-se condições para a produção governo propôs a necessidade de re-
de alimentos para todos. formas agrárias clássicas, numa famo-
Na década de 1950, houve expe- sa conferência realizada em Punta del
riências de Reforma Agrária popular Este, no Uruguai, em 1961, pois ima-
nas margens do rio Nilo, durante o ginava que, sendo a maior parte da po-
Governo Nasser, no Egito;; e no nor- pulação rural, uma Reforma Agrária
te do Vietnam, nas áreas liberadas dos poderia produzir reformas que evitas-
franceses. Existiu ainda a tentativa de sem mudanças mais radicais, como ha-
Reforma Agrária na Guatemala no cur- via ocorrido recentemente em Cuba.
to espaço do governo de Jacobo Arbenz Nessa conferência, criou-se o Insti-
(1951-1954). tuto Interamericano de Ciências Agrá-
Depois, na década de 1960, tivemos rias (IICA), com sede na Costa Rica,
as experiências mais conhecidas de que tinha por objetivo servir de re-
Cuba, que, ao longo de sua história, fez taguarda a esses processos. Assim,
três Reformas Agrárias, com natureza houve alguns intentos de Reforma
e amplitude diferentes, mas a primei- Agrária em alguns países, porém par-
ra, logo após a Revolução Popular de ciais, não atingindo a maioria dos lati-
1959, teve uma natureza essencialmen- fúndios, e poucas famílias camponesas
te popular. A outra experiência, mais foram beneficiadas.
recente, foi a da Revolução Sandinista, Pode-se incluir nessas experiências R
na Nicarágua, entre 1979 e 1989, que diversos casos de Reforma Agrária
também desenvolveu um processo de ocorridos na América Latina no pe-
Reforma Agrária popular. ríodo 1964-1970, como as do Chile,
durante o governo de Eduardo Frei
Reforma Agrária parcial (1964-1970), do Peru, durante o gover-
no militar de Velasco Alvarado (1968-
Logo após a Segunda Guerra Mun- 1975) e do Equador (1963-1966) e de
dial, com a efervescência da luta de Honduras (1963-1980), governados
classes e o reascenso de movimentos por juntas militares. A Reforma Agrá-
revolucionários em diversos países da ria mexicana realizada durante o gover-
América Latina, África e Ásia, os go- no do general Lázaro Cárdenas (1934-

663
Dicionário da Educação do Campo

1940) teve certa amplitude;; foi dirigida As reformas agrárias socialistas se


pelo governo progressista, mas não baseiam no princípio de que a terra
conseguiu atender a todas as famílias pertence a toda a nação. Portanto, não
de camponeses sem-terra. pode existir propriedade privada da
terra, nem compra e venda de terra. E
o Estado organiza as diversas formas
Reforma Agrária de de uso e propriedade social das terras.
liberação nacional As formas sociais de uso e propriedade
mais adotadas foram o associativismo
Experiências ocorreram basica-
de base, em pequenos grupos de famí-
mente nos países da África, a partir da
lias, empresas sociais autogestionárias,
década de 1960, durante o processo de
cooperativas de produção e empre-
luta pela independência e descoloni-
sas estatais. Cada país, de acordo com
zação. No contexto dessas vitórias, a
suas condições objetivas e subjetivas,
maioria dos governos se apoderou das
teve a predominância de uma ou outra
terras utilizadas, de “propriedade” de
forma de propriedade social.
colonos europeus, em geral fazendei-
ros capitalistas brancos. Essas terras Nos processos de Reforma Agrária
foram então distribuídas das mais di- socialista, a produção foi planejada pelo
ferentes formas para as comunidades e Estado de acordo com as necessidades
líderes tribais. Em alguns casos, foram de toda a sociedade e induzida para ser
seguidos critérios mais democráticos aplicada pelas diferentes formas de or-
que procuravam atender a todos os ganização da produção e da terra.
camponeses que quisessem terra. Os casos mais conhecidos desse
Os casos que tiveram maior ampli- tipo de Reforma Agrária foram as ex-
tude foram os processos de liberação periências na Rússia, em especial no
nacional e distribuição de terras na período do governo de Josef Stalin
Tanzânia, Moçambique, Angola, Guiné- (1924-1953), mas houve também expe-
Bissau, Congo, Líbia e Argélia. No riências na Iugoslávia, Coreia do Norte,
entanto, houve também processos Alemanha Oriental, Ucrânia e outros
de liberação nacional em que, depois da países do chamado bloco soviético.
independência, os novos governantes A China tentou fazer uma Reforma
fizeram acordos com os fazendeiros Agrária socialista durante o período da
capitalistas brancos e não distribuíram Revolução Cultural, na década de 1960,
a terra aos camponeses, como acon- mas ela foi infrutífera;; depois, nos anos
teceu no Quênia, no Zimbabwe e na 1980, o país voltou às origens, com a
África do Sul. Reforma Agrária popular. Cuba também
tentou avançar para uma Reforma Agrá-
Reforma Agrária socialista ria socialista a partir de 1975, estimulan-
do novas forças coletivas de produção e
Realizada em diversos países no ampliando o peso das empresas estatais
contexto de processos revolucionários no campo, em especial na produção da
que buscavam também a superação do cana-de-açúcar;; porém, depois da crise
capitalismo e a construção do modo de de 1989, voltou aos processos anterio-
produção socialista. res de Reforma Agrária popular.

664
Reforma Agrária

Política de assentamentos rurais ram que a concentração é maior agora


do que em 1920, quando o país havia
São aqueles programas de governo acabado de sair da escravidão.
que procuram distribuir terras a famí- Durante o Governo João Goulart
lias de camponeses, utilizando-se da (1961-1964) houve uma tentativa de
desapropriação ou compra da terra dos Reforma Agrária clássica, pregada para
fazendeiros. São, porém, limitados na toda a América Latina pela Comissão
abrangência e não afetam a estrutura Econômica das Nações Unidas para a
da propriedade da terra (ver ASSENTA- América Latina (Cepal) e expressa no
MENTO RURAL). projeto organizado pelo então minis-
São políticas parciais, que atendem tro do Planejamento Celso Furtado.
aos camponeses, mas não são massivas, No entanto, logo após o anúncio do
e por isso funcionam mais para resol- envio do projeto de lei ao Congresso,
ver problemas sociais localizados ou o governo foi derrubado (1º de abril
atender populações mobilizadas que de 1964).
pressionam politicamente o governo. Seguiram-se vinte anos de regime
O governo dos Estados Unidos, militar, que priorizou apenas progra-
principalmente, tem estimulado essa mas de colonização, distribuindo as
política em muitos países, mediante terras públicas na fronteira agrícola
ações e recursos do Banco Mundial, da Amazônia Legal para camponeses
que ajuda a financiar a compra de ter- sem-terra e, sobretudo, para grandes
ras dos fazendeiros. Os programas do fazendeiros e empresas capitalistas do
Banco Mundial ficaram conhecidos Centro-Sul.
como CRÉDITO FUNDIÁRIO, Banco da A partir de 1984-1985, foi retoma-
Terra etc. e foram aplicados nos países do o regime democrático, com o res-
de maior tensão na disputa pela terra, surgimento dos movimentos sociais
como Brasil, Filipinas, África do Sul, camponeses. Até o momento, porém,
Guatemala, Colômbia e Indonésia. não houve acúmulo suficiente de for-
ças políticas para implementar progra-
A Reforma Agrária no mas massivos de Reforma Agrária, in-
dependentemente de sua natureza.
Brasil
Há ainda diversas polêmicas na so-
Com base na definição de Refor-
ma Agrária e nas tipologias ocorridas
ciedade brasileira em relação ao tema
da Reforma Agrária: elas aparecem na
R
nas experiências históricas dos povos, imprensa, no governo, na academia e
pode-se concluir que no Brasil nun- mesmo entre os movimentos sociais do
ca houve um processo de Reforma campo. Primeiro, a expressão Refor-
Agrária. Por isso, a concentração da ma Agrária continua sendo utilizada
propriedade da terra aumenta a cada no Brasil apenas como sinônimo de
ano, como resultado da lógica de acu- desapropriação de alguma fazenda e
mulação do capital. Os índices de Gini2 da política de assentamentos rurais.
relativos a 2006, medidos pelo censo A segunda polêmica é sobre haver ou
agropecuário do Instituto Brasileiro de não necessidade de uma verdadeira Re-
Geografia e Estatística (IBGE) revela- forma Agrária. As forças conservado-

665
Dicionário da Educação do Campo

ras presentes no governo, na impren- também grandes proprietários de fa-


sa e na academia defendem a ideia de zendas e controlam amplos setores da
que o Brasil já resolveu seu “problema produção e do comércio agrícolas.
agrário”;; portanto, não há necessidade Os movimentos sociais do campo
de uma Reforma Agrária do tipo clás- articulados na Via Campesina, como
sico. Do ponto de vista do capitalis- o Movimento dos Trabalhadores Ru-
mo, agora em sua fase de dominação rais Sem Terra (MST), o Movimento
pelo capital financeiro e pelas empresas dos Pequenos Agricultores (MPA), o
transnacionais, de fato, não há neces- Movimento das Mulheres Camponesas
sidade de democratização da propriedade (MMC Brasil), o Movimento dos Atin-
da terra como fator indutor do desen- gidos por Barragens (MAB), o Movi-
volvimento do mercado interno e das mento das Comunidades Quilombolas
forças produtivas no campo, como é o e o Movimento dos Pescadores e Pesca-
caso na fase do capitalismo industrial. doras do Brasil, defendem a necessidade
Há, no entanto, na sociedade bra- de uma Reforma Agrária popular.
sileira, forças populares e sociais que A proposta de Reforma Agrária po-
defendem ainda a possibilidade de uma pular por estes movimentos defendida
Reforma Agrária clássica como a pre- tem características similares às que se
vista no projeto de Celso Furtado du- aplicaram historicamente em outros paí-
rante a década de 1960. Para esses seto- ses, mas apresenta especificidades que
res, no Brasil, há ainda a possibilidade levam em conta a realidade brasileira.
e a necessidade de uma Reforma Agrá- Em termos gerais, ela compreende a
ria do tipo clássico, pois existem em necessidade de um amplo processo de
torno de 120 milhões de hectares de desapropriação das maiores proprie-
terra considerados grandes proprie- dades, estabelecendo-se inclusive um
dades improdutivas – e que, portanto, limite máximo da propriedade rural
não desempenham a sua função social. no Brasil – a proposta dos movimen-
E seria possível, sem afetar as áreas tos é que o limite máximo seja de até
dominadas pelo capital e pelo agrone- 35 módulos (o módulo varia de região
gócio, desapropriar essas fazendas e para região, mas a média do limite na-
distribuí-las aos camponeses sem-terra cional ficaria em 1.500 hectares) – e
visando-se à geração de emprego, ao sua distribuição a todas as 4 milhões
desenvolvimento do mercado interno de famílias de camponeses sem-terra
e à solução do problema social dos mi- ou com pouca terra que ainda vivem no
lhões de trabalhadores sem-terra. Ela, meio rural brasileiro. Combina a distri-
porém, não é feita por falta de vonta- buição de terras com a instalação de
de política da burguesia industrial bra- agroindústrias cooperativas em todas as
sileira, que não vê necessidade, pelos comunidades rurais, para que haja um
motivos elencados anteriormente, de desenvolvimento das forças produtivas
apoiar uma Reforma Agrária clássica e para que os trabalhadores rurais pos-
que elimine o latifúndio da realidade sam auferir a renda do valor agregado
agrária brasileira. Até porque, o capita- às matérias-primas agrícolas pelo pro-
lismo brasileiro mesclou nas empresas cesso de industrialização. Compreen-
as diversas formas de capital comercial, de a necessidade de adoção de novas
industrial e financeiro, capitais que são técnicas agrícolas, baseadas na agroe-

666
Reforma Agrária

cologia, que consigam aumentar a pro- que permita aumentar a produtivida-


dutividade das áreas e do trabalho em de do trabalho, diminuindo o esforço
equilíbrio com a natureza e sem uso físico humano, sem expulsão da mão
de venenos agrícolas. Prevê, ainda, a de- de obra do campo. E, finalmente, com-
mocratização da educação formal, ga- preende um amplo programa de va-
rantindo o acesso à escola desde o ensi- lorização das manifestações culturais
no fundamental até o ensino superior a do meio rural em geral vinculado aos
todos os jovens que vivem no campo hábitos alimentares, músicas, cantorias,
e a superação completa do analfabe- poesias, celebrações religiosas e fes-
tismo entre os trabalhadores adultos. tas rurais. Essas são as características
Além disso, implica um programa na- fundamentais de uma proposta de Re-
cional de mecanização agrícola baseado forma Agrária popular para a realidade
em pequenas máquinas e ferramentas, brasileira nos tempos atuais.

Notas
1
Condições características de cada região relacionadas com a fertilidade natural do solo, a
quantidade de água e sol, e as condições de clima para agricultura.
2
O índice de Gini serve para medir desigualdades (de terra, de renda, de riqueza, de acesso
a bens etc.) e varia de 0 a 1, sendo que, quanto mais igualitária a distribuição, mais próximo
de 0 fica o índice, e quanto maior a desigualdade, mais próximo de 1 ele fica.

Para saber mais


BOGO, A. Lições da luta pela terra. Salvador: Memorial das Letras, 1999.
BRASIL. Decreto nº 433, de 24 de janeiro de 1992: dispõe sobre a aquisição de imó-
veis rurais, para fins de reforma agrária, por meio de compra e venda. Brasília:
Presidência da República, 1992.
CARTER. M. Combatendo a desigualdade social: o MST e a Reforma Agrária no Brasil.
São Paulo. Editora da Unesp, 2010.
D’INCAO, M. da C. (org.). Reforma Agrária: significado e viabilidade. Petrópolis:
Vozes, 1982. R
FERNANDES, B. M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
GRAZIANO NETO, F. A tragédia da terra. São Paulo: Iglu/Editora da Unesp, 1990.
______. Qual reforma agrária? Terra, pobreza e cidadania. São Paulo: Geração
Editorial, 1996.
LEAL, L. (org.). Reforma Agrária na Nova República. São Paulo: Cortez–Educ, 1985.
LERRER, D. Reforma agrária: os caminhos do impasse. São Paulo: Garçoni, 2003.
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MEDEIROS, L. S. de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989.

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Dicionário da Educação do Campo

______;; LEITE, S. (org.). Assentamentos rurais: mudança social e dinâmica regional.


Rio de Janeiro: Mauad, 2004.
MITSUE, M. A história da luta pela terra no Brasil e o MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2001.
ROCHA, J.;; BRANDFORD, S. Rompendo a cerca. São Paulo: Casa Amarela. 2003.
SILVA, J. G. da. A Reforma Agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
______. Caindo por terra. São Paulo: Busca Vida, 1987.
______. Buraco negro: a Reforma Agrária na Constituinte. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989.
STEDILE, J. P. (org.). A questão agrária no Brasil: programas políticos. São Paulo:
Expressão Popular, 2005. V. 3.
______;; FERNANDES, B. M. Brava gente brasileira: a trajetória do MST e a luta pela
terra no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 1999.
VEIGA, J. E. da. A Reforma Agrária que virou suco: uma introdução ao dilema agrário
no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1990.

Páginas na rede de computadores que tratam da


questão agrária no Brasil
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE REFORMA AGRÁRIA (ABRA) – entidade de pesquisa e
estudos: http://www.abrareformagraria.org.br.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT) – organismo de pastoral das Igrejas Católica
e Luterana: http://www.cpt.org.br.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA AGRICULTURA (CNA) – representação sindical dos
patrões na agricultura: http://www.cna.org.br.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA (CONTAG) –
representação sindical dos trabalhadores na agricultura: http://www.contag.org.br.
DATALUTA – núcleo de pesquisa e dados estatísticos de conflitos no campo
da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Presidente Prudente:
http://www.dataterra.org.br.
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA): http://www.
incra.gov.br.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST): http://www.mst.org.br.
NÚCLEO DE ESTUDOS AGRÁRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) – núcleo de
estudo e dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário: http://www.nead.
gov.br.

668
Renda da Terra

RENDA DA TERRA
João Pedro Stedile

Renda da terra é uma teoria ge- natureza, o ciclo da produção, o limi-


ral dentro da área da economia política te físico da unidade de produção e a
que procura estudar e explicar como dispersão dos produtores capitalistas.
funciona a lógica do capital na organi- Assim, a teoria que explicava o fun-
zação da produção agrícola no modo cionamento do capital dentro de uma
de produção capitalista. fabrica não era suficiente para expli-
Karl Marx foi o principal estudioso car a realidade do capital na produção
que, no século XIX, procurou desven- agrícola. Ele percebeu, portanto, que
dar com detalhes como funcionava a havia muitas diferenças entre a atuação
lógica do desenvolvimento do capital do capital na indústria, no comércio e
na organização da produção de todos na agricultura.
os bens na sociedade. Em seu método Na indústria e no comércio se for-
de trabalho, ele aproveitou as pesqui- mava uma taxa média de lucro por
sas e reflexões que haviam sido feitas ramo de atividade. Os capitalistas con-
por outros pensadores mais antigos, e por corriam entre si, dentro do mesmo
alguns de seus contemporâneos, entre ramo, para conseguir maior produtivi-
eles François Quesnay, Adam Smith, dade do trabalho e taxas de lucro mais
David Ricardo, Stuart Mill e Thomas altas. Assim, os capitalistas que obti-
Robert Malthus. Marx se baseou nos vessem taxas menores de lucro, abaixo
estudos que seus antecessores fizeram e da média, teriam menor capacidade de
no funcionamento real do capitalismo acumulação e de crescimento e tende-
industrial para elaborar as teorias clás- riam a ir à falência ou suas empresas
sicas que explicam a lógica do capital serem compradas por outros capitalis-
na organização da produção e que es- tas. E esse processo gerava uma con-
tão reunidas nas teorias da mercadoria, centração permanente do capital num
do valor, da mais-valia, da acumulação mesmo ramo de produção.
e da reprodução ampliada do capital. Já na agricultura, Marx percebeu
Entre 1848 e 1883, período em que que a taxa média de lucro não se dava R
produziu suas principais teorias, Marx por produto agrícola, mas era deter-
estudou o funcionamento do capitalis- minada pela utilização de todas as ter-
mo por meio de pesquisas empíricas ras na produção de todos os produtos
na agricultura inglesa e nas fábricas, no agrícolas colocados no mercado. A es-
auge do desenvolvimento do capitalis- sas características específicas da forma
mo industrial.1 de funcionamento do capital na agri-
No entanto, ao estudar a forma cultura Marx chamou de teoria geral da
como o capital se desenvolvia e orga- renda da terra.
nizava a produção na agricultura, Marx Contudo, como já ressaltamos aci-
concluiu que havia particularidades ma, Karl Marx usou como método
e especificidades relacionadas com a de trabalho os estudos preliminares

669
Dicionário da Educação do Campo

de outros autores, seus antecessores, independentemente do tipo de produto


sobre as especificidades do capital na e do tamanho da área de terra utilizada.
agricultura. Ele partiu das concepções Essa taxa média de lucro será deter-
elaboradas sobretudo por Adam Smith, minada por todos os produtores, seja
Johann Karl Rodbertus, David Ricardo aqueles que obtêm elevadas taxas com
e Thomas Robert Malthus, que trata- produtos mais lucrativos, seja aqueles
ram do tema usando também a deno- que atuam nas piores terras, distan-
minação de renda da terra. Marx se tes do mercado e com produtos menos
apropriou dessa designação e a utilizou rentáveis. Todos eles terão garantida
como referência à teoria do desenvol- uma taxa média de lucro.
vimento do capital na agricultura. Essa assertiva se comprova na prá-
Feita esta contextualização teórico- tica, pois, caso um capitalista que atua
histórica, vamos aos conceitos funda- em terras menos férteis, mais distan-
mentais construídos por Marx. tes etc. não tivesse lucro, ele abando-
naria a produção daquele produto e
migraria somente para aqueles que ge-
Taxa média de lucro
rassem lucro. E, ao longo do tempo,
na agricultura teríamos a produção de apenas poucos
Na agricultura capitalista, exis- produtos na agricultura, independen-
tem em cada país, em geral, milhares temente das necessidades da sobrevi-
de produtores capitalistas, donos dos vência humana. Portanto, mesmo nas
meios de produção, que aplicam seu piores terras, e nas piores condições de
capital na organização da produção produção, o fazendeiro capitalista tem
de mercadorias agrícolas. Essas mer- “direito” a ter lucro.
cadorias podem ser alimentos para E como a taxa média de lucro é
seres humanos ou animais, matérias- formada pela média de todos os pro-
primas para a indústria do vestuário, dutores de todos os ramos de produ-
têxtil e de calçados, mercadorias para ção, cada vez que um produto agrícola
construção civil ou pata a obtenção aumenta muito a sua taxa de lucro par-
de energia, como carvão e lenha. Mais ticular, imediatamente influencia para
recentemente surgiram novas merca- que a taxa média suba, fazendo, por-
dorias de origem agrícola, que são os tanto, que aumente a taxa de lucro de
chamados AGROCOMBUSTÍVEIS (etanol, todos os demais produtores agrícolas.
óleo diesel vegetal, álcool etc.) – no Portanto, quando um produto
vocabulário da imprensa em geral, agrícola sobe de preço no mercado,
também são conhecidos pela expres- por qualquer motivo, ele aumenta a
são biocombustíveis. taxa de lucro daquele produtor, e in-
Os produtores capitalistas e os flui no aumento da taxa média dos
agricultores em geral precisam da terra, demais, influenciando para que haja
que é um bem da natureza fundamen- aumento de preço médio em todos
tal para a produção dessas mercadorias. os produtos agrícolas daquela região
Marx defende a tese de que na agricul- ou universo.
tura se forma uma taxa média de lucro Essa assertiva também se revela
entre todos os produtores capitalistas, verdadeira até os dias de hoje.

670
Renda da Terra

Renda da terra trabalho humano, e portanto não ter


valor, passou a ter preço – um preço
Há um limitante na produção ca- determinado por essa condição de pro-
pitalista de bens agrícolas, que é a priedade privada, para quem tivesse ca-
existência da terra, do espaço físico pital para investir nela.
necessário. Afinal, só é possível produ- Do regime jurídico-político do di-
zir mercadorias agrícolas sobre a terra. reito à propriedade privada de um es-
Mesmo quando se aplicam técnicas es- paço da natureza é que surgiu, então, o
pecificas de produção em estufas ou de “monopólio” da propriedade da terra,
hidroponia, que usa alto componente por parte daqueles que tivessem maior
de água e fertilizantes líquidos, essas dinheiro-capital para se apropriar dela.
instalações necessitam de um espaço e Pois se a terra é limitada pela existência
clima determinado. E a terra é um bem na natureza, seria muito difícil que to-
da natureza, limitado no espaço. dos os cidadãos de uma mesma socie-
Não é isso o que acontece na in- dade tivessem iguais condições de
dústria. A instalação de uma ou de vá- dinheiro e que houvesse terras de ex-
rias fábricas não é determinada pelo ploração agrícola para todos.
fator terra ou pela limitação de espaço. A teoria da renda da terra procura
Como a produção industrial se con- explicar que os capitalistas, ao investi-
centra em pequenos espaços, é pos- rem seus capitais na compra e manu-
sível instalar um número indefinido tenção da propriedade da terra, depois
de novas fábricas, em muitos lugares, cobram de toda a sociedade uma es-
sem estar limitado pela inexistência de pécie de taxa de retorno desse capital,
terra. Nesse caso, o espaço físico não embutindo nos preços agrícolas uma
é limitante. E, teoricamente, a expan- renda extra, acima do lucro médio, pelo
são de novas fábricas para produzir a simples fato de serem proprietários
mesma mercadoria não estaria limita- privados daquela terra. Então, podería-
da pela necessidade de mais terrenos mos dizer que a renda da terra é um va-
para sua instalação, pois o espaço físi- lor acima do lucro médio que todos os
co ocupado por uma fábrica é reduzi- produtores capitalistas auferem e que é
do e tanto o planeta quanto o território inserido no valor das mercadorias agrí-
de um país permitiriam sua expansão colas vendidas, mas que se destina ape-
quase infinita. nas aos que são proprietários da terra.
Com o desenvolvimento do modo Essa renda da terra é resultante ape- R
de produção capitalista, introduziu-se nas do fato de existir a propriedade pri-
na sociedade o direito à propriedade vada da terra. Por isso, Marx chamou a
privada da terra. Ou seja, como par- esse tipo de renda auferida pelos pro-
te da lógica do capitalismo, os Estados prietários capitalistas da terra de renda da
republicanos, sob a hegemonia da classe terra absoluta – porque se refere a um “di-
burguesa, garantiram o direito da pro- reito” privado, adquirido de forma abso-
priedade privada sobre um bem da na- luta, que ninguém contesta em função do
tureza, como uma espécie de segurança regime político existente no capitalismo –
dada pelo Estado aos capitalistas que o qual determina a propriedade privada
investissem seu capital na agricultura. dos meios de produção e, no caso, tam-
E a terra, apesar de não ser fruto do bém de um bem da natureza.

671
Dicionário da Educação do Campo

Mas atenção: nem todos os capi- A essa taxa de lucro extraordinário,


talistas da agricultura auferem a renda que apenas alguns fazendeiros capita-
da terra absoluta, apenas aqueles que listas obtêm, Marx chamou renda da
são proprietários da terra. Alguns capi- terra diferencial.
talistas não proprietários inclusive pa- Marx tentou explicar as razões para
gam a renda da terra. Se um fazendei- que apenas alguns fazendeiros obtives-
ro capitalista organiza a produção de sem essa taxa de lucro extraordinário.
mercadorias agrícolas, mas não possui E a primeira explicação encontrada foi
a propriedade da terra, certamente ele que alguns produtores capitalistas pos-
precisará arrendá-la. E, portanto, con- suem terras mais férteis, que precisam
seguirá obter uma taxa média de lucro, de menos adição de adubos, e, portan-
porém terá de pagar, ou seja, transferir to, têm menor custo e obtêm maior
uma parcela de seu lucro ao proprietá- produtividade física das plantas ou ani-
rio da terra, que não investe na produ- mais. Há ainda situações em que as fa-
ção, mas cobra um “pedágio” pelo uso zendas, mesmo não tendo essas condi-
da sua propriedade. ções naturais de fertilidade, possuem
E como seria determinado o valor uma característica geográfica particular:
dessa renda da terra absoluta? Os pen- estão mais próximas do mercado con-
sadores clássicos nos deram a pista: é sumidor, das cidades ou do porto de
o valor médio do arrendamento que exportação, o que gera menor custo
caracteriza o valor da renda da terra de transporte, oportunidades de me-
absoluta, praticado em cada sociedade. lhores preços nas entressafras etc. Ao
lucro extraordinário recebido pelos fa-
zendeiros capitalistas essas condições
Renda da terra diferencial particulares, Marx chamou renda da
Ao seguir suas pesquisas, Marx terra diferencial I.
descobriu que as condições específi- Porém o estudo da realidade da
cas de produção são diferentes de um agricultura revelou que havia também
fazendeiro-capitalista para outro, por alguns fazendeiros que obtinham um
causa da localização, das condições das lucro extraordinário, acima dos demais,
terras, da proximidade ou não do mer- por outra razão: porque conseguiam
cado etc. Essa enorme diferenciação, administrar seu capital constante aplica-
no entanto, não se dá na indústria, do em máquinas e benfeitorias de uma
onde, em um mesmo ramo, as condi- forma mais produtiva do que a maioria
ções de produção são bastante simi- dos outros fazendeiros. Ou seja, com-
lares. Por exemplo, entre as fábricas parando dois ou mais fazendeiros que
de calçados, o sistema de produção é tivessem as mesmas condições de fer-
basicamente o mesmo, com a mesma tilidade das terras, igual proximidade
tecnologia, as mesmas máquinas, as do mercado e produzissem um mesmo
mesmas condições, variando apenas a produto agrícola, alguns deles organi-
escala de produção. Na agricultura, zavam o processo produtivo com um
portanto, alguns capitalistas do cam- número de máquinas mais apropriado,
po obtêm um lucro extraordinário, que levou a uma produtividade do tra-
acima da taxa média de lucro obtida balho maior do que a de seus vizinhos
pela maioria dos outros fazendeiros. fazendeiros. Por exemplo, dois fazen-

672
Renda da Terra

deiros possuem mil hectares de terra E como se determina o preço des-


cada um, produzem soja e têm a mes- sa mercadoria especial, que em geral é
ma produtividade física: 45 sacos de fixado por hectare, na moeda de cada
soja por hectare. Porém um deles, em país? Segundo os pensadores clássicos,
vez de ter dez tratores pequenos, e por- o preço da terra é na verdade a renda
tanto dez tratoristas, investiu em cinco absoluta acumulada. Ou, em outras pa-
tratores maiores, que conseguem culti- lavras, uma antecipação do lucro que
var os mesmos mil hectares, com ape- um capitalista faz ao ex-proprietário da
nas cinco tratoristas. Com isso, esse terra, transferindo a ele certo valor em
fazendeiro terá uma produtividade do dinheiro, na expectativa de poder ob-
trabalho, de seus empregados, maior ter de volta esse capital, ao longo do
do que o fazendeiro vizinho. A esse se- tempo.
gundo tipo de renda diferencial Marx Em muitas regiões agrícolas do
chamou renda da terra diferencial II. Brasil e de todo o mundo, muitas vezes
o preço médio da terra é fixado em di-
Preço da terra nheiro, pelo equivalente do volume de
mercadorias que se pode obter naquela
A terra é um bem da natureza e, terra, o que, no fundo, representa tam-
portanto, não é fruto do trabalho hu- bém a possibilidade de obtenção do
mano. Pela teoria geral do valor, os lucro médio, com aquela determinada
bens, as mercadorias só têm valor no produção. Assim, por exemplo, em áreas
mundo capitalista quando são fruto de soja, fixa-se o preço do hectare de
do trabalho. E, inclusive, seu valor se terra pelo preço de mercado de 30
mede pela soma dos dias de trabalho sacos de soja. No exemplo concreto,
necessários em média para produzi-lo, como a produtividade seria de 45 sacos
seja no tempo pregresso, na forma das por hectare, o capitalista comprador
matérias-primas e ferramentas necessá- está antecipando ao vendedor parte da
rias, seja no trabalho imediato da pro- renda absoluta que ele obteria se ele
dução daquele bem. Com base nessa mesmo fosse utilizar a terra.
teoria, a terra não é fruto de trabalho, Por outra parte, quando um fazen-
logo, ela não tem valor. deiro ou camponês organiza a produção
Como então explicar que a terra não agrícola numa determinada área, ele apli-
tem valor, mas tem um preço? A ex- ca dias de trabalho sobre a terra nua, na
plicação dos pensadores clássicos ante- forma de preparo para agricultura (por R
riormente citados é que a propriedade exemplo, desmatamento ou sistematiza-
privada da terra a transformou numa ção da área em curvas de níveis), cons-
mercadoria especial, que pode ser com- trução de benfeitorias, bens, cercas etc.
prada por qualquer pessoa que pague Esses dias de trabalho que se incorpo-
por ela. Na verdade, quando se compra ram à propriedade também são contabi-
uma terra, não se compra o valor tra- lizados no preço médio da terra. Assim,
balho que haveria dentro dela, mas sim duas áreas iguais, localizadas na mesma
um direito de exploração. Por isso, ela se região, voltadas para o mesmo produto,
transformou numa mercadoria especial, podem ter preços diferentes pelo fato de
uma mercadoria-fetiche, porque o que uma delas ter também um valor agregado
as pessoas compram é um direito. por mais trabalho realizado nela.

673
Dicionário da Educação do Campo

Como a teoria nos explica, se o pre- que possuem dinheiro e não necessa-
ço médio das terras é determinado pela riamente têm interesse em produzir na
expectativa e possibilidades reais de lu- agricultura. Eles aplicam o dinheiro
cro a ser obtido dela, na vida real das so- comprando o direito de determinadas
ciedades capitalistas, cada vez que sobe áreas de terra;; quando a taxa de lucro
a taxa de lucro na agricultura, sobem sobe, e portanto os preços das ter-
também os preços por hectare de ter- ras aumentam, eles as revendem para
ra. E cada vez que cai a taxa média de obter maiores margens de lucro nessa
lucro da agricultura, caem também os operação comercial-especulativa.
preços por hectare de terra. Há uma segunda forma de prática
de especulação sobre o preço das ter-
A especulação com os ras. Ela ocorre nas regiões de fronteira
agrícola, onde as terras ainda não es-
preços da terra
tão incorporadas à propriedade priva-
À medida que o capitalismo foi se da dos capitalistas. Em alguns países
desenvolvendo e hegemonizando as ou em algumas regiões dentro dos paí-
condições de produção na agricultura, ses – como, aqui no Brasil, é o caso da
os capitalistas perceberam que a terra região amazônica –, há ainda muitas
era uma mercadoria especial e finita, terras que não possuem proprietários.
pois o tamanho das terras é determina- Elas talvez sejam utilizadas de forma
do pela natureza. Não se pode aumen- comunitária, por populações locais e
tar seu tamanho, portanto seu acesso nativas, ou podem ser consideradas
estaria limitado a alguns proprietários. terras públicas, de domínio do Estado.
Com essa perspectiva, muitos capitalis- Nessas regiões, muitos capitalistas es-
tas que não estavam vinculados ao se- peculadores se apoderam das terras, to-
tor agrícola, nem tinham interesse em mando posse delas ou comprando-as,
produzir mercadorias agrícolas, passa- a preços simbólicos, das comunida-
ram a investir seu capital-dinheiro na des locais. Depois essas terras são cer-
compra do “direito” de ter terra, como cadas e registradas como propriedade
uma forma de reserva de valor para privada. Após o registro, seus compra-
seu capital-dinheiro. Por ser um direi- dores promovem o desmatamento e a
to, essa terra seria, ao mesmo tempo, melhoria do acesso a estradas, prepa-
facilmente negociável, quando os pre- ram as terras para o cultivo e revendem
ços oscilassem para acima do que foi a outros capitalistas por preços mais
pago. Formou-se então um mercado valorizados, obtendo assim altas taxas
de disputa das terras pelos capitalistas de lucro.

Nota
1
O conjunto das teorias de Marx sobre o funcionamento do capitalismo está reunido na
obra clássica O capital: crítica da economia política. Durante o século XX, outros pesquisadores
contemporâneos recuperaram escritos e anotações do Marx que revelam seu método de
trabalho, suas pesquisas e os comentários que fazia aos autores que o antecederam. As refle-
xões anotadas nos cadernos manuscritos de Marx foram editadas, como Grundrisse, Teorias
da mais-valia, Manuescritos de Marx e, ainda, no tomo IV de O capital.

674
Repressão aos Movimentos Sociais (Campo e Cidade)

Para saber mais


K AUTSKY, K. A questão agrária. Rio de Janeiro: Laemmert, 1968. Cap. 5: O caráter capitalista
da agricultura moderna.
MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. L. 3, v. 4.
______. O capital. São Paulo: Nova cultural, 1988. (Os economistas, 5).
______. Teorías sobre la plusvalía. Buenos Aires: Grijalbo, 1975. T. 3.
ROSENBERG, D. Comentarios a El capital. México, D. F.: Universidad Autónoma de México,
1977. (Apostilas de la Unam).
UMBELINO, A. de O. Modo capitalista de produção e agricultura. São Paulo: Ática, 1990.

REPRESSÃO AOS MOVIMENTOS SOCIAIS


(CAMPO E CIDADE)
Maurício Campos dos Santos

Repressão é um conceito amplo que Estado. As ações violentas realizadas


abrange diversos tipos de ações, leva- por agentes privados (principalmen-
das a cabo pelas elites dominantes, de- te pistoleiros, sicários e paramilitares)
tentoras do poder econômico, político são na maior parte das vezes ilegais e
e militar para impedir, paralisar ou derrotar deveriam ser combatidas pelo Estado,
as lutas travadas pelos movimentos sociais. mas na realidade há uma enorme coni-
Inclui a violência (repressão física) vência dos diferentes poderes estatais
como ação de última instância, mas (Executivo, Legislativo e Judiciário)
também a JUDICIALIZAÇÃO das lutas com tais crimes, sendo que muitos gru-
e dos lutadores (ou seja, seu enqua- pos armados privados são organizados
dramento em processos judiciais, nor- e formados dentro do próprio apare-
malmente com base na legislação penal) lho estatal. Uma vez que a ação estatal
reveste-se de uma legitimidade de princí-
e todas as ações culturais, ideológicas e
midiáticas utilizadas para obter apoio pio, posto ser considerada expressão R
social e para justificar e favorecer (em da vontade da coletividade (por todas
uma palavra, legitimar) as ações violen- as concepções do Estado que negam
tas e judiciais. seu caráter ou fundamento de classe), vamos
Todas as modalidades de repressão nos concentrar nela.
podem ser efetuadas tanto por agentes Desde a origem do Estado moder-
privados a serviço direto das elites (pis- no, a repressão oficial aos movimentos,
toleiros, grupos paramilitares, empresas protestos e lutas sociais tem sido justi-
de segurança privada, imprensa corpo- ficada como uma repressão a delitos, ou
rativa, escritórios de advocacia, grupos seja, como ações necessárias para a ma-
culturais e religiosos etc.) quanto pelo nutenção da ordem e da normalidade da

675
Dicionário da Educação do Campo

sociedade, equiparáveis à repressão à ma, não há dúvida que, hoje em dia,


criminalidade comum. Assim, o mesmo a legitimidade dos regimes de exceção
aparato policial utilizado para controlar declarados é muito reduzida, e eles são
e reprimir delitos individuais ou ações casos isolados no mundo.
ilegais não motivados pela defesa cole- Diante das conquistas de liberdades
tiva de direitos e objetivos emancipató- e garantias políticas e sociais logradas pe-
rios tem sido, em geral, utilizado na re- los movimentos populares, as elites
pressão física aos movimentos sociais e dominantes têm buscado novas for-
revolucionários. Isso também se aplica mas de legitimação da repressão. Uma
à maior parte do aparato judiciário-penal delas é a instituição e a manutenção de
(juízes e promotores, legislação penal e uma legislação excepcional, ou simples-
sistema prisional etc.). mente a criação de situações localizadas
Nesse aspecto, ficaram famosas de exceção de fato, sem a revogação
no Brasil as palavras de Washington total das liberdades, mas que permite
Luís, presidente da República no início suspender ou derrogar garantias de in-
do século XX (1926-1930), de que “A divíduos, grupos ou situações particu-
questão social é caso de polícia”. Com lares. O principal exemplo, generaliza-
efeito, a legislação defensora da pro- do em todo o mundo, são as chamadas
priedade privada e das condições para leis antiterroristas, que se tornaram mais
o lucro e a acumulação do capital tornava duras na última década, mas na verda-
e ainda torna muitas ações dos movi- de nunca deixaram de vigorar, mesmo
mentos sociais potencialmente ilegais nos países mais “democráticos”. Outro
(mas não ilegítimas), permitindo a sua exemplo importante são as leis e medidas
equiparação a condutas delituosas. Só contra a imigração, claramente voltadas
progressivamente, a custa de muitas contra refugiados e imigrantes de paí-
lutas e sacrifícios, direitos e liberdades ses mais pobres do que o país onde são
(como o direito de greve) foram sendo aplicadas. Estados de emergência temporá-
conquistados, atenuando em parte a rios, justificados por surtos de crimina-
identificação entre lutas e delitos. lidade, realização de grandes eventos
Não obstante, em diversos períodos internacionais ou mesmo catástrofes
históricos e regiões do mundo, regimes naturais (como terremotos, enchentes
de exceção criaram todo um aparato de ou furacões), também têm se tornado
repressão explicitamente voltado para muitos frequentes.
a repressão política e social, compreen- Entretanto, a principal forma que
dendo desde polícias políticas (a Gestapo vem se afirmando na busca por legiti-
nazista continua sendo um dos exem- mar velhas e novas formas de repres-
plos mais representativos), até a legisla- são é o aprofundamento da tradicional
ção e os tribunais de exceção. As lutas con- identificação entre lutas e delitos, entre
tra tais regimes, como aquelas lutas so- lutadores sociais e criminosos, tudo
ciais na América Latina que levaram ao isso visando a uma mais profunda ju-
fim dos regimes ditatoriais civis-militares dicialização dos movimentos, à sua vi-
dos anos 1970 e 1980, buscaram con- gilância permanente e à sua fragmenta-
quistar direitos e garantias que impe- ção, recuo e paralisia. Essa tendência é
dissem a ressurgência de tais situações o que chamamos propriamente crimina-
de exceção generalizada. De toda for- lização dos movimentos e dos protestos sociais,

676
Repressão aos Movimentos Sociais (Campo e Cidade)

que não é nova em si mesma, mas tem crescentes e graves violações cometi-
adquirido dimensões assustadoras nas das pelo Estado contra seus direitos,
últimas décadas. bem como a militarização crescente de
Para entendermos a criminalização áreas pobres da cidade e do campo e
dos movimentos como ela ocorre hoje, do espaço público em geral – um conjun-
é preciso recapitular alguns aspectos to de ideias e práticas que se denomina
da evolução econômica, social e cul- hoje criminalização da pobreza, fenôme-
tural das sociedades capitalistas nos no que não é novo, mas tem adquirido
últimos trinta anos aproximadamente, grandes proporções atualmente.
principalmente na América Latina e no A criminalização da pobreza é acom-
Caribe. A depressão econômica mundial panhada da crescente importância da-
iniciada em meados dos anos 1970, e a da à segurança nas políticas públicas, e
adoção de políticas neoliberais cada vez também nas relações privadas. A segu-
mais generalizadas que se seguiu a ela, rança pública, mesmo quando chama-
gerou grande aumento do desemprego da “segurança cidadã”1 ou “segurança
estrutural, e intensificação da precariza- democrática”,2 passa a ser apresentada
ção do trabalho e da concentração do capital, como prioridade absoluta e acaba vin-
incluindo a concentração da propriedade culando-se a políticas internacionais de
da terra. Acompanhando o aprofunda- segurança, justificadas pelo “combate
mento da globalização capitalista, as redes ao terrorismo” ou pelo “combate ao
criminosas internacionais se expandiram, narcotráfico”, que começaram a ganhar
valendo-se tanto das facilidades de cir- corpo nas Américas em 1995, com a
culação internacional de capitais quan- elaboração da Doutrina da Coopera-
to da disponibilidade de “mão de obra” ção para a Segurança Hemisférica dos
para atividades criminosas, em decor- Estados Unidos da América, adotada
rência do desemprego e da precariza- pela Organização dos Estados Ameri-
ção (Ziegler, 2003). canos (OEA).3
Paralelamente, ideologias e culturas A “segurança pública” passa a ser,
individualistas e antissolidárias fortalece- assim, a sucessora das doutrinas de se-
ram-se, e mais ainda após o colapso gurança nacional da época das ditaduras
dos regimes de socialismo de Estado na civis-militares na América Latina, e ser-
antiga União das Repúblicas Socialistas ve de justificativa para a manutenção
Soviéticas (URSS) e no Leste Europeu, de diversos instrumentos e legislações
fazendo ressurgir uma profunda reação de exceção (Longo e Korol, 2008). R
ao fenômeno da criminalidade crescente Todo esse ambiente de exceção,
que não busca questionar suas causas suspensão de garantias e direitos e de
e conexões econômicas, políticas e so- militarização dos espaços e da vida pú-
ciais, mas que simplesmente se baseia blica em geral é utilizado para a crimi-
no medo e na exigência de repressão e nalização e a repressão aos movimentos
de endurecimento penal (Longo e Korol, sociais. Embora nenhum movimento
2008). Os indivíduos e comunidades contestador escape a esse cerco da
pobres, e em especial a juventude, e seus “segurança”, são os movimentos oriundos
locais de moradia e convivência passam dos setores mais pobres da cidade e do cam-
a ser vistos coletivamente como a fonte po seus alvos principais. E isso ocorre,
do crime e da violência;; e isso justifica em primeiro lugar, como consequência

677
Dicionário da Educação do Campo

direta da criminalização, não só dos viduais dos agentes do Estado en-


pobres que buscam se organizar e lutar volvidos, que estariam agindo sob a
coletivamente, mas da pobreza em ge- tensão exigida pelo suposto “com-
ral. Em segundo lugar, porque, ao con- bate à criminalidade” e pela suposta
trário dos setores mais formalizados “necessidade de manutenção da or-
da classe trabalhadora, que conquista- dem”;; isso explica a repetição de
ram, ao longo de décadas, legitimidade chacinas e massacres cometidos por
e algumas garantias para suas formas policiais e militares no Brasil a partir
de luta típicas (como greves), os seto- da década de 1990, por exemplo.
res “excluídos”, em seus movimentos
A criminalização, e a repressão que
mais avançados e organizados, utilizam
a acompanha, relaciona-se, portanto,
formas de luta não inteiramente novas,
com a deslegitimação das lutas e dos mo-
mas que se generalizam cada vez mais e
vimentos sociais, que são apresentados
alcancem grandes proporções na atua-
como delituosos e não como expressão
lidade, formas de luta que atingem
de vontades solidárias e afirmação de
diretamente os “direitos” do capital e
direitos fundamentais. Nesse proces-
da propriedade privada (como ocupa-
so de deslegitimação, têm papel fun-
ções de terras, terrenos e imóveis, blo-
damental os grandes meios de comunicação
queios de estradas e vias públicas etc.),
corporativos, pela maneira como omitem
e as legislações que os protegem.
informações sobre os movimentos ou
A criminalização dos movimentos as apresentam de forma distorcida. Na
sociais permite que se intensifique, de maior parte do tempo, a grande mídia
diferentes maneiras, a repressão a eles: omite completamente e busca invisibi-
1) a judicialização das lutas e dos luta- lizar os movimentos, suas motivações,
dores passa a ser mais frequente, sua história, sua organização e com-
e mesmo que não resulte em con- posição. Quando uma ação dos movi-
denações, os milhares de proces- mentos – normalmente ações diretas,
sos abertos acabam conseguindo como manifestações, ocupações e blo-
seu objetivo de manter militantes queios – obriga a grande mídia a não
e movimentos recuados e paralisa- mais ignorá-los, ela continua omitindo
dos, exigindo que muitos recursos e suas motivações e demandas, focando
tempo dos movimentos sejam utili- a “informação” nos supostos aspectos
zados em defesas jurídicas;; de “desordem”, “confusão”, “bagun-
2) a vigilância sobre os movimentos ça” das lutas, sem dar palavra aos pró-
torna-se mais próxima e contínua, prios lutadores e lutadoras, ao mesmo
inclusive por parte dos serviços se- tempo em que privilegia as versões
cretos de inteligência, que recebem apresentadas pelo Estado (comumente
novos poderes e, assim, podem co- pela polícia).
lher informações para se antecipar A criminalização nem sempre tem
às ações dos movimentos;; como objetivo destruir completamente
3) a repressão física encontra novas os movimentos;; pode servir simples-
justificativas e a impunidade das mente para mantê-los sob controle e dentro
violações de direitos cometidas au- dos limites permitidos pela ordem capitalista.
menta, uma vez que os abusos são O Estado, paradoxalmente, argumenta
classificados como “excessos” indi- que, diante das conquistas democráti-

678
Repressão aos Movimentos Sociais (Campo e Cidade)

cas e dos direitos garantidos pela lei, a utilização de formas brutais de vio-
os movimentos devem se restringir a lência. Trata-se, entretanto, de latifún-
reivindicações institucionais, como po- dios e grandes propriedades totalmente
líticas públicas, e utilizar para isso só ilegítimos, pois foram construídos com
os meios institucionais convencionais, base no despojo das terras indígenas,
como a representação parlamentar. no trabalho escravo e nas formas mais
Esse discurso acaba sendo absorvido e cruéis de exploração e esmagamento
reproduzido por aqueles setores insti- da resistência popular.
tucionalistas dos movimentos, que não Essa denúncia da perversidade e
compreendem o caráter irreconciliável das dos fundamentos ilegítimos da ordem
contradições de classe e creem na ilusão de econômica e social do capital faz parte
superar a desigualdade, a opressão e a do contínuo esforço que os movimen-
exploração sem transformar radical- tos sociais devem realizar para relegiti-
mente o regime econômico e social. mar suas organizações e suas lutas ante
Em relação a isso, é preciso reafir- as várias estratégias de criminalização.
mar que a conquista de liberdades, di- De maneira geral, isso significa reafir-
reitos formais e garantias constitucio- mar que a luta dos movimentos sociais
nais é muito importante, mas por si só busca no final das contas a construção
não altera a realidade socioeconômica de uma nova sociabilidade, igualitária,
desigual e perversa construída ao lon- solidária e livre, capaz de efetivar os
go de séculos de violências. Se, por um direitos fundamentais à vida, à saúde, à
lado, a “ordem constitucional” provê educação, à cultura e ao trabalho, que
direitos e garantias formais (na letra da sempre são prioritários e devem se so-
lei), por outro sanciona a concentração da brepor aos “direitos” ao lucro e à acu-
propriedade e do poder econômico nas mãos mulação do capital.
de uns poucos, o que foi construído ao A criminalização dos movimentos
longo de um doloroso processo de es- será enfraquecida, em primeiro lugar, se
poliação, totalmente ilegítimo, que na os próprios movimentos populares de-
América Latina incluiu o genocídio e senvolverem uma posição clara e uma
o roubo de terras dos povos originá- denúncia coerente da criminalização
rios (indígenas) e a escravização de da pobreza: é comum que os militan-
vários povos africanos. tes dos movimentos reajam à sua cri-
Dessa maneira, no Brasil, por minalização, exigindo que “não sejam
exemplo, embora a Constituição de tratados como bandidos”, como se os R
1988 seja muito avançada nos objeti- abusos e violações de direitos come-
vos colocados, nos princípios estabele- tidos em nome do suposto “combate
cidos e nos direitos e garantias defini- à criminalidade” fossem de alguma
dos, estabelecendo inclusive restrições maneira justificáveis. Admitir a viola-
ao direito de propriedade na definição ção de direitos fundamentais em nome
de sua função social, o Brasil continua da “segurança pública” fragiliza os
sendo, na prática, um dos países com movimentos e abre campo para a sua
maior concentração da propriedade da própria criminalização. É preciso ter
terra (rural e urbana) em todo o mun- uma compreensão clara do fenômeno
do, e a legislação ordinária permite a da criminalidade, suas origens e cone-
proteção dessas propriedades mediante xões, e de como só a luta anticapitalista

679
Dicionário da Educação do Campo

e pela vigência dos direitos humanos Por fim, fica evidente a necessi-
fundamentais permite um efetivo en- dade de ampliar o conhecimento dos
frentamento das redes criminosas. militantes dos movimentos sobre
Por outra parte, para fazer frente direitos humanos – seus fundamentos,
aos meios de comunicação corporati- sua história, e inclusive suas con-
vos e à sua atividade de desinformação tradições, suas formas de defesa e
e distorção, é necessário construir uma aplicação –, bem como de construir
ampla rede de comunicação popular alter- redes de advogados, juristas e defen-
nativa, utilizando tecnologias não só sores de direitos que apoiem os mo-
tradicionais, mas também mais atuais. vimentos contra violações.

Notas
1
Expressão utilizada em países como Argentina e Chile, por exemplo.
2
Expressão utilizada na Colômbia e na América Central, por exemplo.
3
Documentos, resoluções e outras informações sobre a doutrina podem ser consultados
na página da Comissão de Segurança Hemisférica, do Conselho Permanente da OEA. Ver
http://www.oas.org/csh/portuguese/default.asp.

Para saber mais


AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2011.
BUHL, K.; KOROL, C. (org.). Criminalização dos protestos e movimentos sociais. São
Paulo: Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2008.
HOLLOWAY, T. L. Polícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.
LENIN, V. I. O Estado e a revolução. In: ______. Obras escolhidas em seis tomos.
Moscou: Progresso;; Lisboa: Avante!, 1985. V. 3, p. 189-289.
LONGO, R.;; KOROL, C. Criminalização dos movimentos sociais na Argentina.
In: BUHL, K.; KOROL, C. (org.). Criminalização dos protestos e movimentos sociais. São
Paulo: Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2008. p. 18-77.
LUXEMBURG, R. Milicia y militarismo. In: ______. Obras escogidas. México, D. F.:
Era, 1978. p. 85-101.
MOTTA RIBEIRO, A. M.;; IULIANELLI, J. A. (org.). Narcotráfico e violência no campo. Rio
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RODRIGUES, T. Tráfico, guerras e despenalização. Le Monde Diplomatique Brasil,
n. 26, p. 6-7, set. 2009.
T HERBORN, G. ¿Cómo domina la clase dominante? Madri: Siglo XXI, 1979.
WACQUANT, L. Da escravidão ao encarceramento em massa: repensando a “ques-
tão racial” nos Estados Unidos. In: SADER, E. Contragolpes: seleção de artigos da
New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 11-30.
ZIEGLER, J. Senhores do crime. São Paulo: Record, 2003.

680
Residência Agrária

RESIDÊNCIA AGRÁRIA
Fernando Michelotti

Residência Agrária é uma modalida- 1) a prioridade dada à modernização


de específica de curso de especialização do latifúndio e dos grandes estabele-
(pós-graduação lato sensu) atendida pelo cimentos agropecuários e florestais,
PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA identificados como as principais for-
REFORMA AGRÁRIA (PRONERA). Essa mo- ças impulsionadoras do desenvolvi-
dalidade de curso orienta-se pelos objeti- mento rural, mediante a produção
vos, princípios, diretrizes e fundamentos em monoculturas de larga escala e
legais mais gerais do Pronera. Apesar voltadas para a exportação;;
disso, possui objetivos e diretrizes espe- 2) a adoção de uma matriz tecnológica
cíficos, voltados para o fortalecimento da de caráter industrialista, baseada no
relação entre assistência técnica, Educa- uso intensivo de insumos químicos
ção do Campo e desenvolvimento. e mecânicos, na manipulação gené-
Diferentemente das demais modali- tica e na homogeneização e simpli-
dades de cursos atendidos pelo Pronera, ficação da natureza, fundamentada
o Residência Agrária atende, além dos na ciência moderna;;
assentados e beneficiários diretos da 3) a relação marginal com as diferen-
política de Reforma Agrária, um públi- tes frações do campesinato por
co mais amplo: também podem partici- meio de práticas de extensão rural,
par desses cursos os profissionais que atuando no sentido de sua subordi-
atuam nos programas de assistência nação ao modelo hegemônico, pela
técnica e de educação em assentamen- indução a uma especialização pro-
tos de Reforma Agrária em localidades dutiva, à homogeneização e simpli-
camponesas, bem como egressos de ficação da natureza e à adoção da
cursos superiores com potencialidade matriz tecnológica do agronegócio.
de atuação nessas localidades. Como consequência dessa concep-
A proposição de uma ação específi- ção, os profissionais de Ciências Agrá-
ca de Residência Agrária no âmbito da rias egressos das instituições de ensi-
no superior tendem a desconhecer a
R
Educação do Campo, em especial
do Pronera, fundamenta-se numa lei- realidade camponesa, fortalecendo-se
tura de que a concepção hegemônica a ideia de que trabalhar no campo do
de ensino superior em Ciências Agrá- agronegócio é o único horizonte profis-
rias no Brasil é orientada pelo modelo sional possível. Por outra parte, mesmo
de desenvolvimento rural do agrone- quando esses profissionais vão atuar
gócio. Três questões-chave emergem em localidades camponesas, carecem de
dessa hegemonia, relacionadas tanto formação que lhes permita compreen-
com o processo de formação de no- der as especificidades da unidade de
vos profissionais quanto com a produ- produção camponesa, seja do ponto
ção de conhecimento por essas insti- de vista da gestão e da organização so-
tuições de ensino: cial e produtiva, seja do ponto de vista

681
Dicionário da Educação do Campo

da relação com a natureza. Assim, es- ou que virão a atuar nos processos de
ses profissionais têm dificuldade para assistência técnica numa perspectiva
romper com a matriz tecnológica na que rompa com essa concepção he-
qual se formaram, mesmo que ela não gemônica. Para tanto, seus conteúdos
se mostre a mais adequada para a so- concentram-se em três grandes grupos
lução dos problemas ecológicos e pro- de questões: questão agrária/questão
dutivos camponeses, inclusive pela au- camponesa;; agroecologia/sistemas fa-
sência de produção de conhecimentos miliares de produção;; e extensão rural/
no interior das instituições superiores Educação do Campo. Busca-se, dessa
vinculados a esse tipo de demanda. forma, ampliar as reflexões teóricas
A hegemonia do agronegócio no dos profissionais de assistência técnica,
ensino superior em Ciências Agrárias de modo a descortinar o projeto hege-
no Brasil mostra-se especialmente mônico de desenvolvimento do campo
problemática para o Movimento pela e a reconhecer a existência do campe-
Educação do Campo, em especial para sinato e suas especificidades.
o Pronera, por dois motivos. Em pri- A abordagem da questão agrária
meiro lugar, pelo reconhecimento que nesses cursos pretende provocar nos
esse programa tem da universidade pú- educandos uma reflexão sobre o proje-
blica como um espaço institucional de to hegemônico de desenvolvimento do
produção do conhecimento técnico- campo na formação econômica e social
científico indispensável à formação brasileira, estudando suas raízes histó-
acadêmica articulada à Reforma Agrá- ricas em articulação com as dinâmicas
ria e ao desenvolvimento rural (Sá, mais gerais de expansão do capital, a
2009, p. 373). Em segundo lugar, pela atuação do Estado e das políticas pú-
perspectiva de indissociabilidade, na blicas na sua indução e as tendências de
Educação do Campo, da tríade campo– destruição ou subordinação do campe-
política pública–educação (Caldart, sinato. Ao mesmo tempo, objetiva uma
2008), na qual o conceito de campo leitura das lutas camponesas, em suas
evidencia a disputa por certo projeto diversas expressões, como processos
de desenvolvimento do campo que tem de resistência à destruição ou subordi-
na produção camponesa a sua centrali- nação, mas também como possibilidade
dade. Portanto, em última instância, a de construção de projetos contra-
intencionalidade principal do Progra- hegemônicos e emancipatórios. Dessa
ma Residência Agrária é constituir-se forma, problematiza-se a temática do
em política capaz de estimular a pro- desenvolvimento do campo para além
dução de conhecimento sobre e para o da visão unilateral predominante na
campesinato, no âmbito das Ciências formação em Ciências Agrárias.
Agrárias, nas universidades públicas, Com a temática da agroecologia
com base na pesquisa e extensão em nesses cursos espera-se não apenas uma
áreas de Reforma Agrária (Molina, ruptura com a matriz tecnológica in-
2009, p. 19). dustrialista aplicada à agricultura, co-
Nessa perspectiva, os cursos de es- nhecida como matriz da REVOLUÇÃO
pecialização do Programa Residência VERDE, mas, sobretudo, romper com o
Agrária objetivam contribuir com a próprio paradigma científico que a sus-
formação dos profissionais que atuam tenta. Nessa perspectiva, a ciência mo-

682
Residência Agrária

derna perde a condição de única forma mesmos já envolvidos no universo de


legítima de produção de conhecimento, trabalho da assistência técnica como
reconhecendo-se a importância da pro- assentados e/ou extensionistas – ou
dução de conhecimento pelos cam- ainda com egressos de cursos superio-
poneses, com toda a sua diversidade res com potencial de engajamento so-
de experiências históricas acumuladas. bre as concepções e perspectivas desse
Para isso, o diálogo de saberes entre “quefazer”. Paulo Freire já provocava
camponeses e academia passa a ser essa reflexão, ao questionar o sentido
fundamental na construção do para- de “domesticação” do camponês em-
digma agroecológico. butido na ideia de extensão como es-
Porém, além da reflexão sobre a tender, transferir conhecimentos do
matriz tecnológica e científica, propõe- que tudo sabe ao que nada sabe (Freire,
se identificar quem são os agentes que 1983). Por isso, já alertava que o co-
podem materializar uma agricultura nhecimento pressupõe uma relação
de base agroecológica. O agronegó- dialógica entre o agrônomo-educador
cio, pautado na lógica da acumulação e o camponês, uma relação problema-
de lucro e na racionalidade industrialis- tizadora da realidade que se pretende
ta, organiza sua produção com base em compreender e transformar.
relações sociais de assalariamento, que Nessa perspectiva, Freire (1983)
pressupõem a exploração do trabalho, enxerga o assentamento de Reforma
e na simplificação extrema da nature- Agrária (tomando o exemplo histórico
za, sendo, portanto, estruturalmente do Chile) não apenas como unidade de
predatório. As unidades de produção produção, mas como unidade pedagó-
camponesas ao contrário, guiam-se gica, na qual são educadores não ape-
por uma racionalidade cujo elemento nas os professores, mas os agrônomos
central é a reprodução social da famí- e todos os que atuam no seu processo
lia, em todas as suas dimensões, e pela de desenvolvimento. Reforça-se, assim,
não separação entre os que trabalham a ideia do profissional da assistência
e os que organizam a produção, consti- técnica como um educador do campo,
tuindo uma unidade indissociável entre capaz de atuar como mediador no diá-
as esferas da produção e do consumo logo entre saberes acadêmicos e cam-
(Costa, 2000, p. 114-118). Essas carac- poneses, não de forma mecânica, como
terísticas específicas do campesinato uma ponte que liga duas ilhas, mas
criam uma maior tendência de busca construindo as representações sociais R
da diversificação produtiva e da sobe- dos mundos que pretende interligar, o
rania alimentar que faz a agricultura campo de relações que torna possível
camponesa representar, estruturalmen- essa interligação e a si próprio, como
te, maior possibilidade de convivência mediadores (Neves, 2006, p. 52-53).
com uma natureza diversificada e com Em que pese sua importância na
o estabelecimento de sistemas de pro- fundamentação da ruptura com a con-
dução baseados nos princípios e estra- cepção dominante do ensino superior
tégias da agroecologia. de Ciências Agrárias, esses conteúdos
Com a temática da extensão rural, e reflexões teóricas propostos para os
espera-se refletir com os educandos cursos de especialização, no entanto,
dos cursos de especialização – eles não são suficientes para a formação

683
Dicionário da Educação do Campo

dos profissionais de assistência técni- mas se prolonga às outras dimensões da


ca/educadores do campo. O elemento formação acadêmica, posto que esses
fundamental desse processo formati- três sujeitos – assentados que fizeram
vo é a vivência dos educandos e dos sua graduação por meio do Movimento
seus educadores nos cursos de espe- pela Educação do Campo, profissionais
cialização nas localidades camponesas. de assistência técnica que atuam nas
Casimiro chama atenção para a impor- áreas de assentamento e egressos
tância desse processo de vivência, ou das universidades que fizeram estágios
vivências, em que “professores, agricul- de vivência durante sua formação –
tores, estudantes, técnicos mergulham compõem o grupo de educandos dos
em uma realidade de forma intensiva cursos de especialização.
para aprender e ensinar” (2009, p. 31). Do ponto de vista metodológico, a
Daí o próprio nome Residência Agrá- expectativa gerada pela vivência pro-
ria, que a diferencia da ideia de um cur- longada nas áreas de assentamento e
so de especialização comum, cada vez demais localidades camponesas é que
mais aligeirado, e enfatiza a perspectiva os educandos do curso e seus educa-
de inserção e permanência, por longos dores orientadores – os professores
períodos, dos estudantes universitários universitários – possam compreender,
nos assentamentos e localidades cam- a partir do diálogo entre os sujeitos en-
ponesas (Molina, 2009, p. 17). volvidos no processo, ou seja, campo-
Com essa vivência nos assentamen- neses e suas organizações, profissionais
tos e localidades camponesas, propõe- de assistência técnica e acadêmicos, o
se ainda uma forte articulação com as campo como lócus de produção de co-
ações concretas de assistência técnica nhecimento. Daí decorre a opção pela
existentes, sobretudo por meio dos formação em alternância de tempos e
programas financiados pelo próprio espaços no Programa Residência Agrá-
Instituto Nacional de Colonização e Re- ria, mas, como alerta Casimiro (2009,
forma Agrária (Incra) e pelo Ministério p. 34), rompendo com uma visão frag-
do Desenvolvimento Agrário (MDA), mentada, comum em muitas institui-
mediante a Política Nacional de As- ções de ensino de Ciências Agrárias,
sistência Técnica e Extensão Rural na qual o tempo no campo é o tempo
(Pnater). Dessa articulação, espera-se da prática e o tempo na universidade,
que a Residência Agrária não apenas o da teoria. Ao contrário, busca-se, na
estude a assistência técnica, mas, so- alternância de tempos e espaços, to-
bretudo, contribua com a sua execução mar a realidade do campo como ponto
(Molina, 2009, p. 20). de partida, identificando-a com ba-
Por isso, a importância do diálogo se em diagnósticos e diálogos, dos quais
entre as próprias famílias e organiza- emergem as questões fundamentais
ções camponesas, os profissionais da para o estudo aprofundado ao longo
assistência técnica que atuam nas loca- do curso e para o confronto com a abs-
lidades e, em especial, mas não exclu- tração teórica e com a experimentação
sivamente, os estudantes e professores laboratorial. Isso gera conhecimentos
universitários dos cursos de Ciências novos que, por serem fragmentados
Agrárias. Esse diálogo não fica restri- e específicos, só podem fazer sentido
to à vivência na localidade camponesa, se, num movimento de síntese, forem

684
Residência Agrária

permanentemente confrontados com a riência acumulada em ações de ensino,


realidade do campo e de seus sujeitos – pesquisa ou extensão relacionadas com
que são, portanto, não apenas ponto de a Reforma Agrária, com a assistência
partida, mas também ponto de chegada técnica e com o movimento estudantil
desse movimento dialético da constru- de Agronomia, que, através da Federa-
ção do conhecimento. ção dos Estudantes de Agronomia do
Por isso, reafirma-se que a principal Brasil (Feab), já realiza estágios de vi-
intencionalidade do Programa Residên- vência em assentamentos rurais desde
cia Agrária, para além da formação de 1987 (Costa, 2006, p. 40).
algumas turmas de profissionais es- O Programa Residência Agrária foi
pecialistas, é provocar a aproximação criado em 2004, pela portaria nº 57 do
das instituições de ensino em Ciên- Ministério do Desenvolvimento Agrá-
cias Agrárias ao universo camponês rio, de 23 de julho de 2004, e da nor-
e à Reforma Agrária, influenciando ma de execução MDA/Incra nº 42, de
na introdução e no fortalecimento de 2 de setembro de 2004. Oficialmente,
uma produção de conhecimento capaz foi denominado Programa Nacional
de responder às demandas de desen- de Educação do Campo: Formação de
volvimento do campo na perspectiva Estudantes e Qualificação Profissional
camponesa. Ao aproximar docentes para a Assistência Técnica. O progra-
e discentes universitários do universo ma teve início como um projeto piloto
da Reforma Agrária, o Programa Re- diretamente vinculado ao Ministério do
sidência Agrária faz-lhes um convite Desenvolvimento Agrário, com forte
ao engajamento na construção de um parceria com o Incra, o que englobava
projeto contra-hegemônico e emanci- os docentes de universidades públicas e
patório de campo. movimentos sociais do campo, em es-
Em vista da experiência já materia- pecial o Movimento dos Trabalhadores
lizada pelo Programa Residência Agrá- Rurais Sem Terra (MST) e a Confede-
ria, essa proposta começou a ser gesta- ração Nacional dos Trabalhadores na
da no interior da coordenação nacional Agricultura (Contag).
do Programa Nacional de Educação na Esse projeto piloto foi organizado
Reforma Agrária, ao se perceber que, em duas fases: na primeira, quinze uni-
apesar da boa recepção que o progra- versidades públicas das cinco regiões
ma vinha tendo em muitas institui- do país organizaram estágios de vivên-
ções brasileiras de ensino superior, o cia nos projetos de assentamento e em R
envolvimento nos cursos de Ciências localidades rurais para alunos dos cur-
Agrárias era muito reduzido. Por isso, sos de Ciências Agrárias que estavam
a coordenação do Pronera começou a no último semestre. As localidades es-
propor ações concretas de envolvi- colhidas para as vivências deveriam ser
mento desse segmento da educação atendidas por programas de assistência
superior na educação do campo. Ape- técnica, sendo que profissionais des-
sar da hegemonia conservadora nos ses programas atuavam como técnicos
cursos de Ciências Agrárias, o Pronera orientadores de campo. Nesse estágio
buscou estabelecer um diálogo mais de vivência, os alunos, seus técnicos
direto com as universidades de Ciên- orientadores e os professores das uni-
cias Agrárias que já tivessem expe- versidades, em diálogo com as famílias

685
Dicionário da Educação do Campo

e suas organizações, realizaram diag- período de 2004 a 2006 (Molina et al.,


nósticos que apontassem prioridades 2009;; Costa, 2006).
de pesquisa e assistência técnica. Na se- Após uma etapa de avaliações, em
gunda fase, cinco dessas universidades 2008, dessa experiência piloto, o Pro-
realizaram cursos de especialização, em grama Residência Agrária foi incor-
parceria com as demais universidades porado pelo Programa Nacional de
envolvidas na primeira fase, compon- Educação na Reforma Agrária como
do turmas tanto com os egressos dos uma ação específica dos cursos de es-
cursos de Ciências Agrárias que parti- pecialização (pós-graduação lato sensu),
ciparam da primeira fase quanto com sendo que a vivência dos egressos em
os técnicos orientadores de campo das assentamentos, organizada pela pró-
mais diversas formações acadêmicas. pria universidade que pleiteia o proje-
Essa experiência piloto foi realizada no to, deve ser condição prévia.

Para saber mais


CALDART, R. S. Sobre Educação do Campo. In: SANTOS, C. A. (org.). Campo–
políticas públicas–educação. Brasília: MDA–Incra, 2008. p. 67-86.
CASIMIRO, M. I. E. C. Uma residência para as ciências agrárias: saberes coletivos
para um projeto camponês e universitário. In: MOLINA, M. C. et al. (org.). Educa-
ção do Campo e educação profissional: a experiência do Programa Residência Agrária.
Brasília: MDA, 2009. p. 29-38.
COSTA, F. de A. Formação agropecuária da Amazônia: os desafios do desenvolvimento
sustentável. Belém: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal
do Pará, 2000.
COSTA, M. I. E. Uma residência para as ciências agrárias: saberes coletivos para um
projeto camponês e universitário. 2006. Dissertação (Mestrado em Política e
Gestão Ambiental) – Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de
Brasília, Brasília, 2006.
FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
MOLINA, M. C. Residência Agrária: concepções e estratégias. In: ______ et al.
(org.). Educação do Campo e educação profissional: a experiência do Programa Residên-
cia Agrária. Brasília: MDA, 2009. p. 17-28.
______ et al. (org.). Educação do Campo e educação profissional: a experiência do Pro-
grama Residência Agrária. Brasília: MDA, 2009.
NEVES, D. P. Importância dos mediadores culturais para a promoção do desen-
volvimento social. In: MOURA, E. G.;; AGUIAR, A. C. F. (org.). O desenvolvimento
rural como forma de ampliação dos direitos no campo: princípios e tecnologias. São Luiz:
Uema, 2006. p. 27-64.
SÁ, L. M. A Questão camponesa e os desafios do Programa Residência Agrária.
In: MOLINA, M. C. et al. (org.). Educação do Campo e educação profissional: a experiên-
cia do Programa Residência Agrária. Brasília: MDA, 2009. p. 372-385.

686
Revolução Verde

REVOLUÇÃO VERDE
Mônica Cox de Britto Pereira

A introdução em larga escala, a de grande produtividade. Contudo, fo-


partir da década de 1950, em muitos ram surgindo críticas em decorrência
países do mundo, inclusive no Brasil, dos inúmeros impactos sociais e am-
de variedades modernas de alta pro- bientais gerados por ela, com destaque
dutividade foi denominada Revolução para a perda de variedades antigas e a
Verde. Esse ciclo de inovações, cujo perda irrecuperável de material genéti-
objetivo foi intensificar a oferta de co e de alternativas alimentícias.
alimentos, iniciou-se com os avanços Por um lado, há os que abordam a
tecnológicos do pós-guerra, com um Revolução Verde apenas como enfoque
programa de valorização do aumento tecnológico e consideram que os pro-
da produtividade agrícola por meio de blemas que dela decorrem podem ser
uma tecnologia de controle da natureza resolvidos mediante inovações tecno-
de base científico-industrial, a fim de lógicas. Por outro, há os que concebem
solucionar a fome no mundo, visto que a Revolução Verde como um proble-
na época se considerava a pobreza, e ma sob os aspectos social, econômico,
principalmente a fome, como um pro- político, cultural, agronômico e ecoló-
blema de produção. gico, e, portanto, avaliam que a Revo-
Com base nessa lógica, a Revolução lução Verde causou grandes mudanças
Verde foi concebida como um pacote estruturais, não cabendo analisá-la da
tecnológico – insumos químicos, visão de uma neutralidade científica.
sementes de laboratório, irrigação, me- Afirmam que a Revolução Verde foi
canização, grandes extensões de terra – veículo de desigualdade social, bem
conjugado ao difusionismo tecnológi- como obstáculo ao desenvolvimento
co, bem como a uma base ideológica dos camponeses, visto que eles se
de valorização do progresso. Esse pro- tornaram dependentes de empre-
cesso vinha sendo gestado desde o sé- sas globais fabricantes dos pacotes
culo XIX, e, no século XX, passou a
se caracterizar como uma ruptura com
tecnológicos. Além disso, as políticas
de desenvolvimento que privilegiaram R
a história da agricultura. o viés técnico acabaram por deixar de
Porém, desde o início existiram con- lado mudanças sociais e estruturais,
trovérsias. Os defensores da Revolução tais como a Reforma Agrária.
Verde afirmavam que somente com a O processo de modernização da
melhoria das técnicas de produção seria agricultura ao longo do século XX le-
possível acabar com a escassez e a de- vou a grandes transformações e a uma
pendência de alimentos;; consideravam- ruptura no modo de conceber a agri-
na, assim, como uma solução para a cultura. Podemos considerar a Revolu-
crise de alimentos. A nova tecnologia ção Verde como um novo paradigma,
genético-química conheceu o êxito em quando comparado com a chamada
meados dos anos 1960, com resultados Primeira Revolução Agrícola, que diz

687
Dicionário da Educação do Campo

respeito à intensificação do uso da ter- gia de base renovável da agricultura


ra, porém referenciada nos recursos e tradicional camponesa.
ciclos ecológicos endógenos. A Primei- Foram modificações radicais e que
ra Revolução Agrícola ocorreu a partir transformaram a base da agricultura: o
do século XVIII, quando a integração conhecimento milenar prático do pró-
entre atividades agrícolas e pecuárias prio agricultor foi substituído pelo
na agricultura permitiu o plantio de conhecimento científico;; os ciclos eco-
forragens em sistemas de rotação com lógicos locais, pautados nos recursos
outras culturas, levando a grande me- endógenos, foram substituídos por in-
lhoria da fertilidade dos solos, com a sumos exógenos industriais;; o trabalho
integração dos ciclos ecológicos e, so- que era realizado em convivência com
bretudo, a valorização das variedades a natureza foi fragmentado em partes –
locais e da autonomia do agricultor. agricultura, pecuária, natureza, socie-
Em meados do século XIX, a for- dade –, e cada esfera passou a ser con-
mulação de teorias científicas com base siderada em separado, quebrando-se
em experimentos levou aos adubos a unidade existente entre ser humano
químicos e à seleção de característi- e natureza.
cas genéticas nas plantas, como resul- Os sistemas diversificados rotacio-
tado dos trabalhos do químico Justus nais foram substituídos por sistemas
von Liebeg – que criou o laboratório especializados em monoculturas, basea-
de química e descobriu que as plantas dos no pacote tecnológico da Revolução
alimentícias cresciam melhor e tinham Verde, em insumos industriais (adubos
maior valor nutritivo quando eram químicos, agrotóxicos, motores à com-
adicionados ao seu cultivo elementos bustão interna, variedades de plantas e
químicos – e dos experimentos com animais de laboratório considerados de
ervilhas feitos por Gregor Mendel com alto potencial produtivo), no conheci-
o objetivo de entender as característi- mento técnico-científico, nas grandes
cas hereditárias dos seres vivos. Assim, extensões de terra (latifúndios) e na
o cultivo da terra pelos agricultores irrigação. Essas transformações resul-
com base na fertilização do solo pela taram em êxodo rural, dependência da
matéria orgânica realizado por milênios agricultura em relação à indústria e às
foi sendo substituído pela utilização de corporações, dependência do agricul-
substâncias químicas, orientada por tor da ciência e da indústria, desterrito-
técnicos e vendedores, levando à adu- rialização dos camponeses, invasão cul-
bação química industrial. A seleção de tural e contaminação do ser humano e
variedades vegetais, realizadas des- do ambiente como um todo. A Revolu-
de o início da agricultura, passou a ção Verde contribuiu para marginalizar
ser controlada em laboratórios, com grande parte da população rural.
a seleção de linhagens vegetais que A categoria chave do paradigma da
passaram a ser chamada de varieda- Revolução Verde é a chamada varieda-
des “melhoradas”. Também ocorre- de de alto rendimento (VAR), conside-
ram transformações da matriz ener- rada símbolo da agricultura moderna
gética de produção, com a introdução de monoculturas. Essas variedades são
do motor de combustão interna, no inferidas como sementes milagrosas
lugar da tração animal, fonte de ener- que, por suas características, teriam um

688
Revolução Verde

rendimento maior do que os cultivos tem como base em seu conhecimento


tradicionais que elas substituem. Um tradicional a interação solo–planta–
equívoco, visto que VAR é uma cate- água–ecossistema. O solo é visto como
goria reducionista. A agricultura da uma unidade viva, rico em organismos
Revolução Verde substitui a interação que fazem a aeração e a decomposição
simbiótica entre solo, água, plantas da matéria orgânica, renovam os nu-
e animais da agricultura camponesa trientes e fertilizam o solo de um ci-
pela integração de insumos, sementes clo para o outro. Uma agricultura que
e produtos químicos. Sua estratégia é projeta futuro para humanidade e para
aumentar a produtividade de um úni- o planeta.
co componente de uma propriedade Na Revolução Verde, para cada safra,
rural à custa de reduzir outros com- novos insumos externos, como se-
ponentes do sistema e de aumentar mentes, adubos químicos, agrotóxicos,
os insumos externos. Ela substitui os petróleo e irrigação, são necessários e
ciclos ecológicos por fluxos lineares precisam ser adquiridos. As sementes
de insumos químicos. Assim, novas “melhoradas” somente são produtivas
variedades foram chamadas de muito com base no pacote tecnológico. Sem
produtivas mesmo que, no que diz res- os insumos adicionais, seu desempe-
peito aos ecossistemas, não o sejam. nho é inferior ao das variedades nati-
É importante esclarecer que o material vas. Portanto, o termo “variedades de
genético não pode ser artificialmente alto rendimento” pode ser considerado
criado;; apenas pode ser recombinado. enganoso, pois não é pelas característi-
As variedades laboratoriais não foram cas intrínsecas que as variedades apre-
criadas: elas se originaram de plantas sentam alta produtividade.
e de animais selecionados por campo- Além disso, com o estreitamento
neses em seus territórios por muitas das bases genéticas da agricultura, as
gerações e milênios. culturas ficaram fragilizadas e vulne-
O pacote da Revolução Verde ráveis a desequilíbrios, às chamadas
baseia-se em monoculturas genetica- “pragas” e doenças (que decorrem
mente uniformes (cultivos homogê- de aumento da população de uma ou
neos de variedades de laboratório);; já outra espécie por causa de desequi-
os sistemas agrícolas tradicionais são líbrios ecológicos nas interações
ecológicas da cadeia alimentar), e às
complexos e extremamente diversos
(cultivos diversificados com sementes variações climáticas. R
nativas milenares de grande variabilida- A agricultura tradicional de base
de genética), e sua produção também camponesa é responsável pela conser-
envolve a conservação das condições vação das condições de produtividade.
de produtividade. A cada ciclo produ- A base dessa agricultura é sustentável,
tivo da agricultura de base camponesa, ao passo que a agricultura de base in-
são utilizadas sementes nativas, solo dustrial que usa o pacote da Revolução
fertilizado por processos ecológicos da Verde não conserva as condições de
natureza manejados pelos agricultores, produtividade. Ela considera o solo
água do ambiente, que são recursos como substrato, adiciona a ele adubo
endógenos que foram mantidos por químico e água, e prepara-o com o uso
gerações, visto que a agricultura nativa de máquinas.

689
Dicionário da Educação do Campo

As variedades nativas não são pro- riqueza nutricional foram sendo subs-
duzidas somente para o mercado: são tituídas por alimentos homogêneos
cultivadas para produzir comida, for- que não oferecem balanço nutricional
ragem para os animais e fertilizantes saudável. O que é produzido pelo pa-
orgânicos para o solo, e podem ser con- cote acaba por precisar ser enriqueci-
sideradas, sob vários aspectos, melho- do industrialmente, um paradoxo do
res do que as chamadas “melhoradas modelo da Revolução Verde. O arroz
cientificamente por seleção de certas irrigado, por exemplo, em decorrência
características que respondem bem ao da poluição gerada pelo uso crescente
pacote”. Por exemplo, uma variedade de agrotóxicos (inseticidas, herbicidas
antiga de trigo e uma variedade de alto etc.), extinguiu grande parte da fauna
rendimento produzem 1.000 kg de ma- dos rios, destruindo importante fonte
téria bruta. A variedade nativa produz local de proteína: o peixe.
300 kg de grãos e 700 kg de palha – A segurança alimentar das socie-
que tem vários usos no sistema agrí- dades em várias partes do mundo está
cola tradicional –, enquanto a de “alto ameaçada, assim como a soberania
rendimento” produz 500 kg de grãos e alimentar, visto que foi sendo impos-
500 kg de palha, priorizando a produ- to o mesmo pacote tecnológico para
ção como mercadoria para venda. os vários continentes, um pacote que
As monoculturas, que privilegiam utiliza grandes extensões de terras nos
algumas variedades apenas, acabam países em desenvolvimento e trabalho
por ameaçar a grande diversidade de precarizado, ameaçando o controle da
espécies nativas e seus usos múltiplos. agricultura pela diversidade de grupos
O pacote da Revolução Verde foi cria- camponeses por todo o mundo. Há
do para substituir a diversidade em um confronto entre diferentes modos
dois níveis: monoculturas de grãos, de fazer agricultura: uma agricultura do
que substituíram os cultivos mistos e a agronegócio, hegemônica e homogê-
rotação de culturas diversas, e base ge- nea em disputa com uma agricultura de
nética limitadíssima. Quando há subs- base camponesa.
tituição dos sistemas nativos diversifi- O saber local faz uso múltiplo da
cados por plantações com sementes do diversidade, as variedades locais dos
pacote da Revolução Verde, a diversi- sistemas agrícolas diversificados são
dade é ameaçada – e sua perda é irrepa- selecionadas para satisfazer esses usos
rável. Daí podermos ressaltar que está múltiplos. A destruição da diversidade
em curso uma erosão genética, com e a criação da uniformidade envolvem
perda de material genético de inúmeras simultaneamente a destruição da esta-
variedades nativas não aproveitadas, as bilidade e a criação da vulnerabilidade.
quais, se não forem plantadas, acabarão As variedades introduzidas pelo pacote
sendo extintas, levando à extinção de da Revolução Verde nas monoculturas
suas sementes. aumentam o uso de insumos externos
Podemos chamar atenção para as no ambiente e introduzem impactos
características diversas dessas sementes ecológicos graves e destrutivos. Adu-
“melhoradas”, destacando, por exem- bos químicos e agrotóxicos poluem os
plo, que a alimentação vem sendo trans- solos e águas. A irrigação e a redução
formada: a diversidade alimentar e a e escassez de biomassa vegetal levam a

690
Revolução Verde

alterações na recarga de água dos len- mento da percepção de diversidade, de


çóis freáticos, alterando o regime hídri- múltiplas possibilidades;; por conse-
co e secando nascentes. guinte, leva à monocultura da mente,
No pacote da Revolução Verde, a que acaba por ter em seu mapa mental
perda dos usos múltiplos para além do exclusivamente o modelo homogêneo
uso para o mercado não é considerada: como possível e as alternativas, que
os custos ecológicos são deixados de sempre existiram e existirão não são
fora como externalidades, assim como mais vistas, percebidas ou considera-
os sistemas de saber nativos são de- das. Com a Revolução Verde, o ser hu-
gradados e desaparecem. O modelo da mano passou a reduzir a diversidade
Revolução Verde pode ser caracteriza- em vez de aumentá-la. Genes, varieda-
do como um sistema insustentável sob des, sabores, alimentos mantidos por
o aspecto social e ecológico. milênios na interação entre cultura e
O sistema de saber dominante é natureza transformaram-se em mer-
incompatível com igualdade e justiça, cadorias apropriadas pelas corpora-
pois despreza a diversidade e a plurali- ções. O conhecimento da natureza e
dade de sujeitos, desconsiderando uma a reprodução da vida estão ameaçados
série de caminhos que leva ao conhe- pelo processo de dominação e difusão
cimento da natureza. O reducionismo do pacote da chamada agricultura mo-
nele embutido implica o desapareci- derna da Revolução Verde.

Para saber mais


ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. Porto
Alegre: Agropecuária;; Rio de Janeiro: AS-PTA, 2002.
EHLERS, E. O que é agricultura sustentável. São Paulo: Brasiliense, 2008.
HOBBELINK, H. (org.). Biotecnologia: muito além da Revolução Verde. Porto Alegre:
Tradução, 1990.
PETERSEN, P. (org.). Agricultura familiar camponesa na construção do futuro. Rio de
Janeiro: AS-PTA, 2009.
SHIVA, V. Monoculturas da mente. São Paulo: Gaia, 2003.
R

691
S
SAÚDE NO CAMPO
Fernando Ferreira Carneiro
André Campos Búrigo
Alexandre Pessoa Dias

O conceito ampliado de saúde está um contexto em que emergem novas


expresso no artigo 196 da Constituição necessidades, com graves repercussões
Federal de 1988, que afirma: “A saúde na saúde, notadamente das popula-
é direito de todos e dever do Estado, ções do campo e da floresta (Pessoa,
garantido mediante políticas sociais e 2010), onde os altos níveis de pobreza
econômicas que visem à redução do e as dificuldades de acesso a bens e ser-
risco de doença e de outros agravos viços são históricos.
e ao acesso universal e igualitário às Os resultados dos diversos estu-
ações e serviços para sua promoção, dos sobre as condições de saúde des-
proteção e recuperação.” ses grupos evidenciam um perfil mais
Falar em saúde no campo do ponto precário quando comparadas às da po-
de vista tanto humano quanto ambien- pulação urbana. No campo, ainda exis-
tal significa falar de determinantes so- tem importantes limitações de acesso e
ciais, riscos, agravos, atenção, promo- qualidade nos serviços de saúde, bem
ção e vida numa perspectiva justa. A como uma situação deficiente de sa-
saúde deve ser vista como um processo neamento ambiental. As condições de
histórico de luta coletiva e individual saúde nas áreas de REFORMA AGRÁRIA
que expressa uma conquista social dos estão entre as questões com pior ava-
povos de um determinado território liação pelas famílias, em termos de sua
(Pinheiro et al., 2009). melhora após serem assentadas (Leite
et al., 2004).
O avanço no processo de moder-
nização agrícola no Brasil, caracte-
rizado por concentração de terras, Saúde e modelo de
expansão de monocultivos, uso intensi- desenvolvimento
vo de equipamentos e modelo produtivo
químico-dependente de AGROTÓXICOS e
fertilizantes sintéticos, vem induzindo
Josué de Castro (2003), um dos
maiores estudiosos da questão da fome
S
processos de desterritorialização que no mundo, já fazia a crítica da orientação
repercutem sobre o modo de vida dos de nossa política agrícola em 1946, por
trabalhadores do campo e das comuni- ter sido inicialmente direcionada pelos
dades. Esse processo de desterritoriali- colonizadores europeus e depois pelo ca-
zação do CAMPESINATO, de insegurança pital estrangeiro. Essa política enfatizou
alimentar e de contaminação ambien- a produção para a exportação, em vez de
tal e humana modifica as relações de priorizar a agricultura camponesa, capaz
trabalho, e seus riscos conformam de matar a fome do povo brasileiro.

693
Dicionário da Educação do Campo

A MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA no GÊNICOS, associado ao consumo cres-


Brasil, ao provocar migrações expressi- cente de venenos agrícolas, levaram o
vas do campo para a cidade, determi- Brasil a se tornar, desde 2008, o país
nou alterações nos padrões de adoe- que mais utiliza agrotóxicos no mun-
cimento e mortalidade da população do. Os impactos socioambientais desse
do país. A partir da década de 1960, modelo de agricultura têm se agravado
intensificam-se as transformações no e se concentram justamente nas popu-
meio rural, que repercutem negati- lações que vivem em piores condições
vamente nas condições de vida e na saú- de moradia, saneamento, renda, acesso
de dos trabalhadores do campo. Essas a serviços de saúde e educação.
transformações foram se processando
no nível da produção em si e também no Políticas de saúde
âmbito das relações patrão–empre-
gado. O camponês, ao ser expulso da para o campo
terra, passou a residir nas periferias Evidenciadas principalmente na
das cidades, encontrando no mercado década de 1950 e no início da déca-
a possibilidade de oferecer a sua for- da de 1960, as ações e campanhas de
ça de trabalho para grandes empreen- combate às endemias rurais estiveram
dimentos agrícolas. Às suas condições associadas aos projetos e ideologias do
de saúde já debilitadas acresceram-se desenvolvimento. Entre os argumentos
novos padrões de desgaste, que se tra- elencados para essas ações, estavam a
duziram em envelhecimento precoce, recuperação da força de trabalho no
morte prematura e doenças cardiovas- campo, a modernização rural, a ocu-
culares, degenerativas e mentais, entre pação territorial e a incorporação de
outras (Alessi e Navarro, 1997). espaços saneados à lógica da produção
A política econômica neoliberal capitalista (Lima et al., 2005).
vigente nas últimas décadas vem res- A evolução das políticas de saúde
tringindo o papel do Estado (Vianna, para o campo no Brasil esteve principal-
1998), o que contribui para que a po- mente associada aos interesses econô-
pulação do campo continue com gran- micos ligados à garantia de mão de obra
des dificuldades de acesso aos serviços sadia para a exploração dos recursos na-
públicos básicos. Uma das expressões turais, como ocorreu na exploração da
desse modelo também está na moder- borracha;; ou para apaziguar os ânimos
nização conservadora da agricultura dos movimentos sociais do campo e sua
brasileira (Delgado, 2002), que con- capacidade de organização, como ocor-
centra a propriedade da terra, precari- reu com as Ligas Camponesas e a conse-
za as condições de trabalho e tem im- quente criação do Fundo de Assistência
pactado os ecossistemas. As famílias ao Trabalhador Rural (Funrural) (Pinto,
expulsas da terra acabam migrando 1984). Criado em 1971 a partir do Esta-
para as cidades em busca de trabalho e tuto do Trabalhador Rural, de 1963, o
melhores condições de acesso à saúde Funrural permitiu formalmente o aces-
e a outros serviços. so dos trabalhadores rurais, com cartei-
O aprofundamento da crise ecoló- ra de trabalho assinada, a um modelo de
gica da agricultura na última década, assistência à saúde tipicamente urbano e
com a liberação da venda dos TRANS- curativo (Carneiro et al., 2007).

694
Saúde no Campo

Embora a Constituição de 1934 menos não da forma explícita como


afirmasse o direito à previdência social constava no relatório da VIII CNS.
a todos os trabalhadores brasileiros, a Essa mudança reflete as dificuldades
população rural só teve acesso à pro- impostas pelos grandes proprietários
teção social no início dos anos 1970. de terras na construção de uma políti-
Essa conquista, em plena ditadura mi- ca de saúde para o campo, pois a con-
litar e período de desenvolvimento da centração de terras é causa estrutural
REVOLUÇÃO VERDE, deveu-se à grada- da desigualdade social no Brasil, tendo,
tiva mobilização dos trabalhadores ru- portanto, grande impacto na saúde das
rais desde os anos 1950, expressa no populações do campo e da cidade.
crescimento da organização sindical e Em todas as CNS realizadas após a
em movimentos como as Ligas Cam- constituição do Sistema Único de Saúde
ponesas em torno da reivindicação por (SUS), da IX a XIII, nas quais a par-
Reforma Agrária e pela extensão ao ticipação da sociedade é garantida en-
campo de políticas trabalhistas e so- quanto princípio do sistema de saúde,
ciais (Delgado, 2002). as questões de saúde no campo sempre
A VIII Conferência Nacional de aparecem de forma detalhada em vá-
Saúde (CNS), realizada em 1986, signi- rias propostas, reforçando a necessida-
ficou o marco político de construção de da implementação de medidas para
da Reforma Sanitária Brasileira, for- garantir o acesso dessas populações às
necendo as bases para as definições ações e aos serviços de saúde.
da Constituição de 1988. O relatório Atendendo a reivindicações dos
desta conferência define a saúde como movimentos sociais do campo rela-
um direito de todos e dever do Esta- tivas à necessidade de construção de
do, afirma a necessidade de se criar um uma política de saúde para o campo,
sistema único de saúde, estabelece os em 2003 o Ministério da Saúde criou
princípios e diretrizes para esse sistema o Grupo da Terra, formado com re-
e cria o conceito ampliado de saúde: presentação de todas as áreas do
“a saúde é resultante das condições Ministério da Saúde, da Agên-
de alimentação, habitação, educação, cia Nacional de Vigilância Sanitária
renda, meio ambiente, trabalho, trans- (Anvisa), da Fundação Nacional de
porte, emprego, lazer, liberdade, acesso Saúde (Funasa) e da Fundação Oswaldo
e posse da terra e acesso à serviços de Cruz (Fiocruz), além de representantes
saúde” (Brasil, 1986, p. 4). dos governos estaduais e municipais
Passados dois anos, os artigos da e da sociedade civil organizada: MO-
Constituição Federal que se referem VIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS S
especificamente à saúde (art. 196 a SEM TERRA (MST), Confederação Na-
200) foram regulamentados pelas Leis cional dos Trabalhadores na Agricultu-
Orgânicas da Saúde (leis nº 8.080/1990 ra (Contag), MOVIMENTO DAS MULHERES
e nº 8.142/1990). Importante conquis- CAMPONESAS (MMC BRASIL), COMISSÃO
ta do movimento sanitário é a noção PASTORAL DA TERRA (CPT), Marcha das
de saúde como produção social. Po- Margaridas e Coordenação Nacional
rém, “o acesso e a posse da terra” não de Articulação das Comunidades Ne-
está incluído no conceito de saúde re- gras Rurais Quilombolas (Conaq), com
conhecido pelo Estado brasileiro, pelo a posterior agregação do Conselho

695
Dicionário da Educação do Campo

Nacional de Seringueiros (CNS). Ape- Estratégia Saúde da Família (ESF) para


sar de reservar em torno de 75% dos essas populações, em especial para os
assentos para os representantes do go- assentamentos da Reforma Agrária e
verno até o fim de 2009, o Grupo da de remanescentes de quilombos. A ESF
Terra abriu a possibilidade de reconhe- oferece serviços que podem ter gran-
cimento das populações enquanto su- de impacto na redução e no controle de
jeitos da construção da política, sendo algumas doenças e mortes – por exem-
estabelecidas maiores pontes de diálo- plo, na redução da mortalidade infan-
go entre saberes. til. Se, por um lado, a expansão da ESF
A proposta de Política Nacional representa avanços, por outro, esses
de Saúde Integral das Populações do avanços são limitados e até mesmo
Campo e da Floresta (PNSIPCF) foi contraditórios caso não estejam arti-
apresentada e aprovada por unanimi- culados com a efetiva incorporação da
dade, no Conselho Nacional de Saúde, PNSIPCF ao SUS. Volta-se para uma
em agosto de 2008. Entretanto, desde política direcionada por tecnocratas e
então, ficou paralisada no âmbito da profundamente influenciada pela ra-
Comissão Tripartite, aguardando pac- cionalidade biomédica, planejada para
tuação entre os representantes dos os espaços urbanos, portanto, como
gestores da saúde. Finalmente, em políticas de saúde para o campo e não
2 de dezembro de 2011, o Ministério do campo.
da Saúde publicou a portaria nº 2.866, Historicamente, as populações do
que institui a PNSIPCF. O texto da po- campo sempre enfrentaram a desconti-
lítica reconhece a necessidade de supe- nuidade das ações de políticas de saúde
ração do modelo de desenvolvimento e de modelos que não se consolidaram, e
agrícola hegemônico na busca de rela- uma fragmentação de iniciativas que
ções homem–natureza responsáveis e ainda contribuem para seus altos ní-
promotoras da saúde e a extensão de veis de exclusão e discriminação pelos
ações e serviços de saúde que atendam serviços de saúde. Como lições para se
as populações, respeitando suas espe- pensar em novas políticas para essas
cificidades. Para isso, assume a “trans- populações, deve-se ressaltar o fracas-
versalidade como estratégia política so das propostas de caráter desinte-
e a intersetorialidade como prática grado, centralizado, curativo, urbano e
de gestão, norteadoras da execução das não universais.
ações e serviços de saúde voltados às
populações do campo e da floresta”,
cabendo ao Ministério da Saúde garan- Por uma saúde do campo
tir a implantação da PNSIPCF (Brasil, Atualmente, quase 30 milhões de
2011) através do Grupo da Terra pessoas vivem em áreas consideradas
(Brasil, 2005). rurais (Instituto Brasileiro de Geografia
Com o estímulo do Grupo da Ter- e Estatística, 2011), ou seja, têm seus
ra e a pressão de movimentos sociais modos de vida e sua (re)produção social
como o MST, o principal avanço em relacionados com o campo, as florestas
termos da saúde para o campo que o e as águas. São camponeses, agriculto-
Sistema Único de Saúde apresentou res familiares, indígenas, quilombolas,
nos últimos anos foi a expansão da ribeirinhos, atingidos por barragens,

696
Saúde no Campo

caiçaras, extrativistas, artesãos, cabo- res e pesquisadores. Nesse movimen-


clos, comunidades de terreiros, fundos to, os agricultores e as agricultoras são
de pasto, extrativistas, entre outras co- considerados educadores e os princi-
munidades tradicionais. Além desses, há pais protagonistas.
ainda os trabalhadores rurais sem-terra Entre essas experiências, está a valo-
e os trabalhadores temporários, muitos rização dos cuidadores populares em
deles expulsos do campo. saúde e do trabalho de raizeiros, partei-
Desde as décadas de 1970 e 1980, ras e benzedeiras;; dos conhecimentos
algumas organizações não governamen- passados de geração em geração;; de re-
tais (ONGs) e centros de formação em médios caseiros preparados com ervas
agricultura alternativa vêm desenvol- medicinais;; e daqueles que cuidam da
vendo e apoiando experiências de pro- saúde das famílias e das comunidades
dução saudável alternativas ao modelo e que conhecem os efeitos positivos da
de agricultura da Revolução Verde, em alimentação saudável. Não se trata
nosso país. Essas experiências compar- de negar a importância do acesso aos
tilham valores e princípios antagônicos serviços públicos de saúde, mas da ne-
àqueles do AGRONEGÓCIO: produção cessidade de diálogo entre as diferentes
diversificada, relações homem–nature- racionalidades de cuidados em saúde.
za produtoras de saúde, autonomia dos O encontro crescente entre pro-
agricultores sobre o modo de produ- fissionais e pesquisadores de saúde –
ção da vida, valorização das práticas e entre eles certamente trabalhadores
conhecimentos tradicionais do povo, da ESF – com o movimento agro-
entre outros. ecológico, os educadores e cuidadores
Essas experiências iniciais tiveram populares e os trabalhadores rurais
grande importância na formação do organizados indica que a construção de
movimento agroecológico no Brasil, um projeto de saúde do campo está em
que cresceu e ganhou força nos últi- curso. Esse projeto está representado
mos dez anos, tendo como marco a não só pelo aumento do número de
realização do I Encontro Nacional de pesquisas sobre a saúde das popu-
Agroecologia em 2002. Organizaram- lações do campo, tanto de denúncia
se redes de agroecologia de diferentes dos impactos do modelo de produção
biomas que se reúnem na Articulação agrícola dominante quanto das alter-
Nacional de Agroecologia. Muitos en- nativas em construção, mas também
contros, feiras, congressos e jornadas em cursos protagonizados de forma
de agroecologia foram realizados nesse autônoma pelos trabalhadores rurais
período, em que os movimentos so- organizados, conjuntamente com tra- S
ciais que fazem parte da VIA CAMPESI- balhadores e instituições públicas de
NA, entre eles o MST, incorporaram a saúde. O fortalecimento de campos
agenda da produção agroecológica. E da saúde, como os da educação po-
criaram-se escolas e cursos de Agro- pular em saúde e da saúde ambien-
ecologia. Também deve-se destacar tal, por intermédio da I Conferên-
o papel de vários sindicatos de tra- cia Nacional de Saúde Ambiental
balhadores rurais e a organização da (Brasil, 2010), realizada em dezembro
Associação Brasileira de Agroecologia de 2009, é exemplo dos espaços por
(ABA), que reúne técnicos, professo- que passam esses encontros.

697
Dicionário da Educação do Campo

A produção saudável, as técnicas na forma de cooperativas e as mobi-


de saneamento ambiental e ecológico, lizações sociais são exemplos de ações
a valorização de práticas e conheci- que têm levado a maior autonomia dos
mentos tradicionais, a defesa da biodi- territórios e devem nortear não apenas
versidade, as escolas do campo geridas políticas públicas promotoras da saúde
pelos movimentos sociais, a geração de do campo, como também a constru-
renda proveniente de agroindústrias ção de políticas de saúde do campo.

Para saber mais


ALESSI, N. P.; NAVARRO, V. L. Health and Work in Rural Areas: Sugar Cane
Plantation Workers in Ribeirão Preto, São Paulo, Brazil. Cadernos de Saúde Pública,
v. 13, supl. 2, p. 111-121, 1997.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria GM nº 2.460, de 12 de dezembro de 2005: dis-
põe sobre a criação do Grupo da Terra. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. Dis-
ponível em: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/gab05/gabdez05.htm. Acesso em:
26 out. 2009.
______. ______. Portaria GM nº 2.866, de 2 de dezembro de 2011: institui, no âm-
bito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral
das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF). Brasília: Ministério da Saú-
de, 2011. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/
prt2866_02_12_2011.html. Acesso em: 20 dez. 2011.
______. ______. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8. 1986. Relatório. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/html/pt/home.html. Acesso em: 23 out. 2006.
______. ______. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE AMBIENTAL, 1. 2009. Relató-
rio final. Brasília, 2010. Disponível em: http://189.28.128.179:8080/cnsa. Acesso
em: 25 jun. 2010.
CARNEIRO, F. F. et al. A saúde das populações do campo: das políticas oficiais
às contribuições do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Cadernos de Saúde Coletiva, v. 15, p. 209-230, 2007.
CASTRO, J. A geografia da fome – o dilema brasileiro: pão ou aço. 3. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DELGADO, G. C.; CARDOSO JUNIOR, J. C. (org.). A universalização de direitos sociais no
Brasil: a previdência rural nos anos 90. 2. ed. Brasília: Ipea, 2002.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo 2010. Rio de
Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/
populacao/censo2010/primeiros_resultados/default_primeiros_resultados.
shtm. Acesso em 10 jun. 2011.
LEITE, S. et al. (org.). Impacto dos assentamentos: um estudo sobre o meio rural brasi-
leiro. Brasília: Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, Núcleo

698
Sementes

de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural;; São Paulo: Editora da Unesp,


2004.
LIMA, N. T. et al. (org.). Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
PESSOA, V. M. Tecendo atenção integral em saúde ambiental e saúde do trabalhador na
atenção primária à saúde em Quixeré – Ceará. 2010. Dissertação (Mestrado em Saúde
Pública) – Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, Universidade Federal
do Ceará, Fortaleza, 2010.
PINHEIRO, M. M. T. et al. Saúde no campo. In: GT SAÚDE E AMBIENTE DA ABRASCO
(org.). Caderno de texto – I Conferência Nacional de Saúde Ambiental. Rio de
Janeiro: Abrasco, 2009. p. 25-29.
PINTO, V. G. Saúde para poucos ou para muitos: o dilema da zona rural e das pequenas
localidades. Brasília: Ipea, 1984.
VIANNA, M. L. T. W. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil: estraté-
gias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan–Iuperj, 1998.

SEMENTES
Eitel Dias Maicá

Encontramos nos livros de história sementes e que servem de mecanismos


que, teoricamente, há 20 mil anos se de defesa e perpetuação das espécies.
iniciou o processo de domesticação das Com o avanço da domesticação e
espécies, mediante a domesticação de o agrupamento das sementes em se-
plantas silvestres. Desde os primórdios menteiras, ocorreu a primeira interfe-
da agricultura, a semente assumiu pa- rência no processo agrícola: o medo
pel fundamental na vida do homem. O da perda dos cereais para alimentação
processo de domesticação foi inicial- causada pelo clima fez o homem colher
mente inconsciente;; depois, ocorreu as plantas que germinavam primeiro e
de forma deliberada. que possuíam embriões mais vigorosos S
A domesticação levou a perdas no (não dormentes), em detrimento das
mecanismo de proteção natural;; isso se plantas que apresentavam maior difi-
deve ao fato de a população inicial ser culdade de emergência inicial – e que,
selvagem e heterogênea, e, em seu es- portanto, eram eliminadas no processo
tado natural, muitas vezes as sementes de colheita. Isto levou à competição
possuírem dormência e germinarem em entre as sementes cultivadas de forma
até três estações. A dormência decorre agrupada na sementeira.
da existência de substâncias inibidoras As sementes em sementeiras es-
nas glumas e glumelas que envolvem as tão expostas às mesmas condições e

699
Dicionário da Educação do Campo

a pressões climáticas, ocorrendo a se- espécies de plantas e que pelo menos


leção de espécies de germinação rápi- 500 dessas espécies e variedades têm
da, nas quais as sementes são ricas em sido cultivadas ao longo da história.
açúcares, mas pobres em proteínas e Atualmente, apenas 30 vegetais culti-
gorduras. Além disso, o processo de vados perfazem 95% da dieta humana,
colheita das plantas selvagens na época e o trigo, arroz, milho e soja repre-
da domesticação das sementes, quando sentam mais de 85% do consumo de
as mesmas passaram a ser cultivadas grãos. Por milhares de anos, o homem
nas sementeiras, reduziu ou eliminou multiplicou e melhorou suas sementes,
os mecanismos de defesa natural das chegando a domesticar e selecionar,
plantas, tais como dormência, invó- em algumas localidades, como ocorreu
lucro espesso, sementes pequenas e nas Filipinas, 33 mil variedades de ar-
numerosas, pequenas inflorescências, roz. No Afeganistão, os camponeses
caules, embriões frágeis e debulha fácil chegaram a selecionar e a melhorar 12
da semente, que pode ser levada pelo mil variedades de trigo.
vento e pela água a longas distâncias. Até há duzentos anos, a vida era
Porém a domesticação das espécies sedentária;; nesse período, começaram
trouxe um incremento da diversidade, a ocorrer mudanças no comportamen-
pela mutação e os ciclos de hibridação, to da humanidade, com a migração do
surgindo então as variedades locais em campo para as cidades e o surgimento
diversas regiões do mundo. As varieda- dos grandes sistemas mercantilistas.
des locais passaram a fazer parte de um Até então ainda havia alta diversidade
sistema agrícola, e estão entrelaçadas com de plantas no planeta, mas, nos dois
diferentes práticas de cultivos e com a cul- últimos séculos, a humanidade cresceu
tura humana, a ecologia e a história local. e começou a sofrer transformações,
Após a domesticação das espécies ocorrendo também o início da ero-
selvagens que hoje fazem parte da sua são genética1 e a perda da diversidade
dieta alimentar, o homem buscou sa- genética. Como exemplo, podemos
ciar a deficiência de alimento pela ma- mencionar que, há duzentos anos, os
nutenção e reprodução de sementes, índios americanos consumiam em
não apenas na forma de alimento, mas torno de 1.200 espécies diferentes de
também para satisfazer outras necessi- plantas cultivadas.
dades, como festas e rituais. Após do- Em 1850, nas ilhas Galápagos,
mesticar a semente, o agricultor criou na América do Sul, Charles Darwin
uma dependência, e por que não dizer observou as variações entre plantas e
também uma interação e uma ambi- animais que viviam na mesma região;;
guidade imensas, com a semente, pois ele constatou que, à medida que muda-
após isso a maioria das espécies ficou vam de ambiente, as espécies sofriam
totalmente dependente do manejo hu- pequenas mudanças, além de compro-
mano para a sua perpetuação. var a sobrevivência dos mais fortes.
Darwin e de Candolle realizaram os
Centros de origem primeiros estudos sobre as origens das
plantas cultivadas. Por volta de 1885,
Estima-se que os povos pré-histó- de Candolle afirmou que nos centros de
ricos alimentavam-se de mais de 1.500 origem (locais onde se identificou a

700
Sementes

origem de determinadas espécies), as principais espécies são coco,


plantas ainda eram encontradas no seu banana, inhame, pomelo e cana-
estado natural e selvagem e com o má- de-açúcar.
ximo de diversidade genética.
3) Asiático Central: é um centro me-
Foi, porém, Vavilov, agrônomo nor que os anteriores, localizado a
russo diretor do Instituto de Investiga- noroeste da Índia, na região ocupa-
ções Científicas de Leningrado, quem da pelas antigas repúblicas da des-
efetivamente identificou os centros de membrada União Soviética e pela
origem das plantas cultivadas, criando região ocidental da China. O centro
os chamados Centros de Vavilov. En- produz melão, pera, uva, trigo, cen-
tre 1920 e 1950, o pesquisador formou teio (centro secundário), ervilha,
uma equipe e fez levantamentos em lentilha, gergelim, linho, cenoura
várias partes do mundo – totalizando e rabanete.
a área estudada sessenta países – para
tentar entender a origem das plantas 4) Oriental Próximo: tem como região
cultivadas e concluiu que havia na Terra mais importante a Ásia Menor e in-
onze zonas de diversificação de plantas clui entre suas espécies melão, figo,
cultivadas. Vavilov agrupou essas onze pera, uva, trigo (centro primário), ce-
zonas em oito centros de origem. Por vada, centeio (centro primário),
definição, os centros de origem são in- aveia, lentilha e alfafa.
dependentes, estão separados por bar- 5) Mediterrânico: esse centro agrupa
reiras naturais dentro de uma área geo- o norte da África e o sul da Europa,
gráfica – desertos, oceanos, cadeias de ou seja, toda a região do mar Me-
montanhas e florestas, entre outros –, diterrâneo, e produz algumas espé-
e cada um pode ser identificado por de- cies, em geral de sementes grandes:
terminado grupo de espécies. Os cen- trigo, aveia, feijão-fava, brassicas
tros de origem definidos por Vavilov (couve, repolho, rúcula, mostarda
estão distribuídos da seguinte maneira: etc.), azeitona e alface foram des-
critos como espécies desse centro.
1) Chinês: é o mais antigo e de maior
contribuição dentre os centros. Fo- 6) Abissínia: localizada na região da
ram listadas 136 espécies presentes África conhecida atualmente como
nesse centro, entre elas caqui, laran- Etiópia, distingue-se pelo grande
ja, limão, ameixa, nectarina, pêsse- número de cereais. Encontram-se
go, pera, soja, feijão, gergelim, chá. zoneados nesse centro trigo, ceva-
da, grão-de-bico, mileto africano,
2) Indiano: é considerado o segundo
centro em importância, com 117
mamona e café. S
espécies, entre elas coco, manga, 7) Mexicano do Sul e Centro-Ame-
arroz, milheto, grão-de-bico, berin- ricano: é composto também pelas
jela, inhame, pepino, pimenta, juta Antilhas. A lista de espécies englo-
e algodão arbóreo;; ba frutíferas de clima tropical de
grande importância para o nosso
2a) Indo-malaio: é considera- país, além de culturas totalmente
do complementação do Centro adaptadas ao Brasil, entre elas mi-
Indiano, inclui todas as ilhas da lho, pimenta, feijão, sisal, algodão,
Malásia e da Indonésia, e suas abóbora e moranga.

701
Dicionário da Educação do Campo

8) Sul-Americano: compreende a re- monopólios e a introdução de registros


gião da cordilheira dos Andes, e patentes biológicas. A título de curio-
especialmente Bolívia, Colômbia, sidade, a primeira patente registrada foi
Equador e Peru. Abacate, caju, ma- a do leite materno artificial, registrada
mão, goiaba, cacau, batata-doce, pela IGB Farb, uma junção das empre-
batatinha, feijão-lima, tomate, algo- sas alemãs, Basf, Hoechst e Bayer, con-
dão, fumo, maracujá e goiaba estão glomerado hoje denominado Bayer
descritos nesse centro;; Crops and Life Science.
Quanto às sementes, começaram a
8a) Chiloé: é uma das subdivi-
ser criadas híbridos delas. A primeira
sões do Centro Sul-Americano,
planta a sofrer a hibridação foi o mi-
sendo o menor de todos em nú-
lho. O início da pesquisa, pelo cientista
mero de espécies. Batatinha e
George Hanrison Shull, ocorreu em
moranguinho são plantas desse
1909, e a comercialização das sementes
centro.
se deu a partir de 1920, nos Estados
8b) Brasileiro-Paraguaio: é ou- Unidos. No Brasil, o início do melho-
tra subdivisão do Centro Sul- ramento do milho ocorreu em 1932,
Americano. Abacaxi, castanha- no Instituto Agronômico de Campinas
do-pará, jabuticaba, maracujá, (IAC), e os primeiros híbridos, descen-
cacau, mandioca, amendoim, dentes do milho cateto, foram lançados
cacau, seringueira, estevia e em 1939.
guaraná são espécies originárias A expansão da fronteira agrícola
desse centro. causou pressão em todos os ecossiste-
Nota-se que a maioria das plantas mas terrestre, ocorrendo uma erosão
tem seu local de origem em países do genética jamais vista na humanidade, e
Terceiro Mundo, que são ricos em bio- muitas espécies foram dizimadas.
diversidade mas pobres em capital. Já No entanto, surgiram aglomerações
os chamados “países ricos”, extrema- de multinacionais e transnacionais,
mente pobres em germoplasmas ve- muitas vezes mais ricas do que mui-
getais originais, são importadores de tos países, cuja única visão é a do lu-
germoplasmas dos países pobres, mas cro e da dominação. Uma das formas
são eles os que realmente lucram com a de dominação é o controle sobre as
biodiversidade local, pois suas institui- sementes. Por exemplo, um país como
ções de pesquisas e empresas, muitas o Brasil, com a sua dimensão agrícola
vezes por meio de práticas de biopira- e sua megadiversidade, não possui ne-
taria, conseguem levar germoplasmas nhuma empresa nacional de médio ou
para seus programas de melhoramento, de grande porte produtora de semen-
produzindo variedades “melhoradas”. tes de milho: todas foram adquiridas
Mais recentemente, há cem anos, por empresas transnacionais.
inicia-se o processo de modernização Além disso, há um trabalho muito
da agricultura, com a intensificação da intenso da grande mídia mundial de
utilização de produtos químicos e com propaganda da REVOLUÇÃO VERDE, am-
a mecanização, a irrigação e a introdu- parado na sua pretensa capacidade de
ção de variedades melhoradas, ocor- resolver o problema da fome mundial.
rendo também o início da formação de A nova fase da Revolução Verde está

702
Sementes

direcionada para os organismos gene- tadas e multiplicadas localmente. À


ticamente modificados (OGMs) – os medida que o agricultor seleciona as
chamados transgênicos. As grandes sementes durante certo período de
multinacionais mantêm a produção tempo, ele as melhora e aclimata às va-
de seus cultivares melhorados visando riações de um local.
elevar cada vez mais a taxa de produti-
vidade;; na prática, esses cultivares são Semente variedade
muito homogêneos e estáticos em rela-
ção às adversidades locais, como clima, São aquelas de todas as espécies que
doenças e pragas. Essas características possuem uma designação a qual pode
conferem ao cultivar um padrão único: sofrer variações, daí o nome variedade,
caso ocorra a incidência de uma praga que é uma subclassificação da espécie.
ou de uma doença durante um culti- Como exemplo, temos o caso do mi-
vo, toda a população do cultivar será lho, que é a espécie, já a variedade pode
atacada. Os cultivares são produzidos ser a Dente de Cão ou Mato Grosso,
para responder a pacotes tecnológicos por exemplo. As variedades também
e sua vida é curta, sendo necessários podem ter sofrido melhoramento ge-
constantes aprimoramentos e lança- nético ou ser oriundas de cruzamen-
mento de novas sementes (híbridas tos realizados por empresas públicas
e transgênicas). ou privadas. Como exemplo, temos a
variedade de milho BRS Planalto, de-
senvolvida pela Empresa Brasileira de
Diferenças entre as classes
Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
de sementes
Existem muitas dúvidas no nos- Semente híbrida
so meio sobre as sementes, principal-
mente sobre o que significam as ter- Um híbrido sempre resulta de um
minologias crioula, variedade, híbrida, material variedade ou crioulo. O méto-
transgênica, certificada etc. Abaixo, do de hibridação é simples: ocorre o
define-se sucintamente algumas classes retrocruzamento de uma mesma planta
de sementes: que vai originar como produto dessa
autofecundação plantas raquíticas que
serão cruzadas com outro material.
Semente crioula Posteriormente, as plantas são colhidas
e criam-se linhagens que vão ser testa-
É o material cultivado localmente,
geração após geração, o que determina das por um período de tempo, geral- S
a sua adaptação à comunidade onde está mente de três a oito anos. Geralmente,
sendo cultivado, pelos camponeses que as plantas são selecionadas por sua
ali habitam. A semente é selecionada produtividade. No Brasil, são lançados
pelo método de seleção massal.2 Como em torno de duzentos híbridos de mi-
exemplo, podemos citar as diversas va- lho por ano. Em geral, as sementes de
riedades de milho, feijão e alface, entre híbridos, quando replantadas na safra
outros, dos quais os agricultores pos- seguinte, produzem de 25 a 50% menos,
suem as sementes por várias gerações, e essa produção diminui cada vez mais,
sementes que são constantemente plan- à medida que vão sendo replantadas.

703
Dicionário da Educação do Campo

Semente transgênica Semente genética


É um método de criação de se- É a semente obtida mediante pro-
mentes que não envolve processos da cesso de melhoramento de plantas;; ge-
natureza, sendo realizado mediante en- ralmente, é produzida por instituições
genharia genética. Esse método modi- de pesquisa ou empresas sementeiras. É
fica os genes das plantas, que recebem um material de reprodução sob a res-
genes de outros organismos os quais, ponsabilidade e o controle direto de seu
muitas vezes, nem pertencem ao reino obtentor ou introdutor. Suas classes são
vegetal, como vírus e agrobactérias, sementes variedades comerciais, híbri-
entre outros. Um exemplo é o da soja das e transgênicas. Possuem valor de
transgênica, que recebe genes da tulipa venda muito alto, porque os melhoristas
híbrida (uma flor), do vírus do mosaico ou as instituições de pesquisas cobram
da couve-flor (uma hortaliça), de uma um valor elevado pelos novos materiais
bactéria de solo (a Agrobacterium sp CP4) genéticos inventados por “eles” no mo-
e de uma bactéria que vive em simbio- mento da comercialização.
se com outras plantas (Agrobacterium
tumefacium), além de três fragmentos de Semente básica
genes desconhecidos. Geralmente, os
transgênicos necessitam de um marca- É a semente obtida pela multipli-
dor,3 que é um antibiótico. Outro pro- cação de semente genética realizada de
blema é que são materiais patenteados;; forma a garantir sua identidade genéti-
portanto, o agricultor paga royalties pelo ca e sua pureza varietal.
invento, que são os genes modificados,
e não pela semente. Sementes S1 e S2
São categorias de sementes origina-
Semente certificada
das do plantio de sementes certificadas
É a semente originária da reprodu- C1 ou C2. A semente S1 (selecionada de
ção de uma semente básica por pro- primeira geração) é produzida a partir
dutores registrados no Registro Nacio- de sementes C1 ou C2 e dá origem a uma
nal de Sementes e Mudas (Renasem), semente S2 (selecionada de segunda ge-
do Ministério da Agricultura Pecuária ração). Apesar de não serem certificadas,
e Abastecimento (Mapa). As sementes são produzidas e comercializadas por
certificadas possuem duas categorias: produtores registrados no Renasem.
C1 (semente certificada de primeira
geração) e C2 (semente certificada de Legislação e produção de
segunda geração). No primeiro ano, sementes no Brasil
planta-se uma semente básica e se
obtém uma semente C1;; no segundo No Brasil, existe regulamentação
ano, ao se plantar uma C1, obtém-se legal das sementes estabelecida pela
uma semente C2. As sementes certifi- lei nº 10.711, de 5 de agosto de 2003,
cadas são utilizadas pela indústria se- pelo decreto nº 5.153, de 23 de julho
menteira e, dependendo de sua classe, de 2004 e pela instrução normativa
são vendidas aos agricultores. nº 9, de 2 de junho de 2005.

704
Sementes

No projeto de produção de sementes têm um significado amplo. Semente


BioNatur, a semente crioula apresenta é vida: é base de alimento, de multi-
as seguintes características, que devem plicação, de sobrevivência, de auto-
compor o seu conceito, construído con- nomia, de liberdade, de perpetuação,
juntamente com os agricultores e com as de poder popular, de independência, de
comunidades produtoras de sementes: autossuficência. Antes, as sementes
a) é uma variedade local, ou regional, de pertenciam aos povos camponeses e
domínio dos povos indígenas, das co- indígenas;; pertenciam a toda a comu-
munidades locais ou quilombolas ou de nidade. Eram um bem comum, um
pequenos agricultores;; b) é composta símbolo da vida e, em muitas cultu-
de genótipos com ampla diversidade ge- ras, eram vistas como algo sagrado.
nética;; c) está adaptada a um habitat espe- Na atualidade, as sementes se torna-
cífico;; e d) é resultado da seleção natu- ram mercadoria. Representam apenas
ral, combinada com a seleção feita pelos negócios, lucros, a exploração e o
agricultores no ambiente local. domínio de grandes empresas capita-
Para a experiência de produção listas multinacionais dos produtores
de sementes BioNatur, as sementes rurais de todo o mundo.

Notas
1
Erosão genética é a perda de materiais genéticos decorrente da seleção de cultivares mais
produtivos, levando à redução do cultivo de espécies anteriormente cultivadas.
2
Seleção massal é um método de seleção de plantas feito por meio de similaridades feno-
típicas, como tamanho das plantas, cor das folhas etc.
3
Os laboratórios utilizam marcadores moleculares para a identificação de novos cultivares.

Para saber mais


BRASIL. Decreto n° 5.153 de 23 de julho de 2004: aprova o Regulamento da Lei
nº 10.711, de 5 de agosto de 2003, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Se-
mentes e Mudas – SNSM, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
26 jul. 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2004/Decreto/D5153.htm. Acesso em: 10 out. 2011.
______. Instrução normativa nº 9, de 2 de junho de 2005: aprova as normas
para produção, comercialização e utilização de sementes. Diário Oficial da União,
Brasília, seção 1, p. 4, 10 jun. 2005. Disponível em: http://www.aeflor.org/
S
wp-content/uploads/2010/07/RENASEM.pdf. Acesso em: 11 out. 2011.
______. Lei n° 10.711 de 5 de agosto de 2003: dispõe sobre o Sistema Nacional
de Sementes e Mudas e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
6 ago. 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/
L10.711.htm. Acesso em: 10 out. 2011.
CARDOSO, E. T.; SILVA FILHO, P. M. Apostila do curso de Produção de Sementes, mi-
nistrado na Bionatur, em 1º de dezembro de 2005. Capão do Leão: Embrapa/
SNT–Escritório de Negócios de Capão do Leão, 2005.

705
Dicionário da Educação do Campo

GEORGE, R. A. T. Producción de semillas de plantas hortícolas. Madri: Mundi-Prensa,


1989.
MOREIRA, V. R. R.; CAPELESSO, E. Orientações para uma agricultura de base ecológica no
pampa gaúcho. Bagé: Gráfica Instituto de Menores, 2006.
______; CORTEZ, C.; CORREA, C. E. Bionatur Sementes, patrimônio dos povos a serviço da
humanidade. Brasília: ANCA, 2006.
SILVA, E. C. A. da. Polinização em culturas anuais: soja, girassol e feijão. In: CONGRES-
SO BRASILEIRO DE APICULTURA, 13. Anais... Florianópolis, 2000. (CD-ROM).

SINDICALISMO RURAL
Leonilde Servolo de Medeiros

No Brasil, embora haja notícias de com suas famílias no interior das pro-
alguns sindicatos de trabalhadores ru- priedades e trabalhavam numa determi-
rais criados já na década de 1930, so- nada cultura comercial (cana-de-açúcar,
mente no início dos anos 1960 é regu- café etc.), mas tinham acesso à moradia
lamentado o direito à sindicalização da e a um pedaço de terra para plantio de
categoria, numa conjuntura em que eles víveres. Nesse caso, tratava-se de lutas
emergiam como atores na cena política. por melhor remuneração, mas que, em
Essa regulamentação tem sua origem algumas situações, envolviam também
quer nos conflitos que ocorriam em di- o acesso à terra.
versas locais no campo brasileiro, quer Ao longo dos anos 1950 e 1960,
na ação de diferentes agentes de me- esses segmentos se organizaram em
diação que impulsionaram a organiza- associações locais, reuniram-se em en-
ção dos trabalhadores e os apoiaram na contros regionais, estaduais e mesmo
criação de sindicatos. Entre eles, desta- nacionais, e começaram a consolidar
caram-se o Partido Comunista e a Igre- algumas bandeiras de luta: Reforma
ja Católica. As Ligas Camponesas, em- Agrária, direitos trabalhistas, regula-
bora inicialmente mostrando-se críticas mentação de contratos de parceria e
à organização sindical, endossaram- arrendamento e direito à sindicaliza-
na no momento em que se intensifi- ção. Em torno deste último ponto,
cou a criação de sindicatos, em especial havia grande disputa, uma vez que as
em Pernambuco. entidades patronais então existentes –
Os conflitos que então possuíam principalmente a Confederação Rural
maior visibilidade tinham diversas ver- Brasileira (CRB) e a Sociedade Rural
tentes: lutas pela posse da terra, envol- Brasileira (SRB) (ver ORGANIZAÇÕES DA
vendo posseiros versus pretensos pro- CLASSE DOMINANTE NO CAMPO) – argu-
prietários;; disputas em torno de prazos mentavam que havia uma unidade de
de contratos de arrendamento;; tensões interesses entre todos os que viviam no
entre os trabalhadores que moravam campo, fossem patrões ou emprega-

706
Sindicalismo Rural

dos, e, portanto, bastava uma única or- dicatos reconhecidos (Medeiros, 1989;;
ganização que os representasse. Assim, Novaes, 1987;; Stein, 1991).
essas entidades reagiram fortemente à Fruto desse processo e expressando
ideia de que os trabalhadores pudes- determinado arranjo de forças, em final
sem se organizar em sindicatos, pois de 1963 foi fundada a Confederação
consideravam que, se criados, trariam Nacional dos Trabalhadores na Agricul-
para o meio rural tensões classistas que tura (Contag). Nela, o PCB ficou com a
até então, segundo eles, só existiam presidência (Lyndolpho Silva, que tam-
nas cidades. bém era presidente da União dos La-
Quando, no início dos anos 1960, vradores e Trabalhadores Agrícolas do
num contexto de ampliação e fortale- Brasil, criada em 1954, e que agregava
cimento das lutas, foi regulamentada associações de lavradores de diversos
pelo governo federal a sindicalização pontos do país) e a tesouraria (Nestor
dos trabalhadores rurais, foram tam- Veras), além da maioria dos cargos.
bém definidas quatro categorias de en- A AP ficou com a secretaria (Sebastião
quadramento: trabalhadores na lavou- Lourenço de Lima). Na composição ge-
ra, trabalhadores na produção extrativa ral, a Igreja Católica, que tivera impor-
rural, trabalhadores na pecuária e pro- tante papel na criação de sindicatos no
dutores autônomos (aqueles que exer- Nordeste e no Sul do país, ficou com
ciam a atividade rural sem empregados, dois cargos pouco importantes.
em regime de economia familiar). A
partir daí, houve um grande esforço de O sindicalismo rural
transformar as associações já existentes
em sindicatos e de criar essas entidades
durante o regime militar
onde não havia nenhuma organização A Confederação Nacional dos Traba-
prévia. Tratava-se de buscar condições lhadores na Agricultura foi reconhecida
legais para fundar federações estaduais em janeiro de 1964. Logo depois, so-
e, depois, uma confederação nacional. breveio o golpe militar e, com ele, uma
Como diversas forças políticas atua- forte repressão sobre as organizações
vam no campo tentando organizar os de trabalhadores. Diversas lideranças fo-
trabalhadores – Partido Comunista ram mortas ou tiveram de passar para a
Brasileiro (PCB), diferentes vertentes clandestinidade. No meio rural, muitos
da Igreja Católica, Ação Popular (AP), sindicatos recém-criados desapareceram,
Ligas Camponesas –, elas concorriam e houve intervenção do Ministério do
pelo controle dos sindicatos, de forma Trabalho naqueles com maior enraiza-
a obter a direção das federações, e da mento social. O mesmo aconteceu em S
confederação nacional que seria criada diversas federações e também na Contag.
posteriormente. Essa disputa permeava Não se tratava de eliminar os sindicatos,
o próprio Estado, uma vez que o Minis- mas sim o “perigo comunista”, e, por
tério do Trabalho tinha a prerrogativa meio de intervenções, dar uma nova di-
de reconhecer sindicatos, federações reção política às organizações existentes.
e a confederação. Assim, quem tinha Na maior parte dos casos, os intervento-
maior influência na Comissão Nacional res eram ligados à Igreja Católica.
de Sindicalização Rural também tinha No ano seguinte, as diferentes cate-
maior possibilidade de ter “seus” sin- gorias de enquadramento sindical foram

707
Dicionário da Educação do Campo

fundidas numa só. Por determinação do cal e pouco afeita a enfrentamentos. Com
Ministério do Trabalho, por meio da por- a aprovação do Fundo de Assistência ao
taria nº 71, de 2 de fevereiro de 1965, pas- Trabalhador Rural (Funrural) em 1971,
saram a existir no campo somente sindica- essa rede cresceu ainda mais em alguns
tos de trabalhadores rurais, envolvendo uma estados, pois os sindicatos tornaram-se
diversidade de situações: assalariados, mediação privilegiada para que os traba-
posseiros, arrendatários, parceiros, lhadores recebessem direitos previdenciá-
proprietários de terra que trabalhavam rios (aposentadoria, auxílio-doença, pen-
em regime de economia familiar etc. são), assistência médica e dentária. Muitos
As entidades patronais também tiveram prefeitos apressaram-se em criar sindica-
de se adequar à nova regulamentação: as tos onde eles não existiam, como tentativa
associações municipais preexistentes e que de ampliar sua clientela política.
constituíam a base das federações esta- Apesar dessas circunstâncias e da
duais e da Confederação Rural Brasileira heterogeneidade de suas bases, ao lon-
foram transformadas em sindicatos rurais. go dos anos 1970, a Contag difundiu,
A entidade nacional que os reunia passou por meio de seus boletins, cursos de
a se chamar Confederação Nacional da formação, encontros regionais e temá-
Agricultura (CNA). ticos, e da atuação de suas assessorias
Apesar da repressão e da interven- educacionais e jurídicas, noções tanto
ção generalizada nos sindicatos de tra- de direito à terra quanto de direitos tra-
balhadores, a memória das lutas e dos balhistas. O sistemático encaminhamento
direitos obtidos era muito forte em de relatórios de conflitos fundiários ao go-
alguns locais, e conflitos continuavam verno federal, acompanhados de pedidos
a ocorrer. Logo após o golpe, já come- de desapropriação de terras por interesse
çaram a ser articuladas ações para colo- social, nos termos do Estatuto da Terra,
car, na direção de algumas federações, não se desdobrava, no entanto, a não ser
trabalhadores que, ligados ao sindica- pontualmente, em formas de ação cole-
lismo cristão, eram comprometidos tiva que garantissem a permanência dos
com as principais bandeiras de luta do trabalhadores na terra. Foram raras as de-
período anterior. Como resultado, em sapropriações ocorridas, mas, apesar dessa
finais de 1967, articulou-se uma chapa condução “administrativa” dos conflitos e
de oposição para a direção da Contag, de sua pouca eficácia em termos de sustar
liderada por José Francisco da Silva, despejos e evitar a expulsão de trabalha-
proveniente da zona canavieira de dores do interior das propriedades, não
Pernambuco e formado pela Igreja Ca- se deve subestimar a capacidade que essas
tólica e pelo Movimento de Educação iniciativas tiveram de traduzir os confli-
de Base (MEB). Compondo-se com al- tos no campo na linguagem da Reforma
guns membros da direção proveniente Agrária, construindo a junção entre o de-
do período de intervenção, essa chapa sejo de acesso à terra e uma possibilidade
ganhou a eleição e assumiu a direção de política agrária, formatada por uma
da Contag. legislação aprovada pelo próprio regime
A Contag controlava extensa rede militar (o Estatuto da Terra). Em outros
sindical, difusa por diversos pontos do locais, a legislação trabalhista era a âncora
país, com orientações políticas diversas e, política para a luta por salários, por indeni-
em muitos casos, dominada pelo poder lo- zações em caso de expulsões das fazendas

708
Sindicalismo Rural

e também pelo acesso à terra, como é o esses fenômenos, podem-se destacar,


caso da demanda pelo cumprimento da entre outros:
lei que garantia aos trabalhadores da cana-
• ocupações de terra em vários pon-
de-açúcar o acesso a dois hectares de terra
tos do país, em especial no Sul, e que
para plantio de subsistência (Houtzager,
2004;; Medeiros, 1989;; Palmeira, 1985). acabaram por gerar novo formato
organizativo, mais fluido. Se, num
Resistência na terra contra ameaças primeiro momento, emergiam com
de expulsão, busca de melhores salários uma forte relação com alguns sindi-
e condições de trabalho, demanda por catos, logo depois firmaram o Mo-
melhores preços para os produtos agrí- vimento dos Trabalhadores Rurais
colas, lutas por direitos previdenciários Sem Terra (MST) como uma força
eram alguns dos temas recorrentes que autônoma que, desde então, passou
emergiam, quer por causa das diferen- a pesar decisivamente nos destinos
tes formas de inserção no processo das lutas por terra no país;;
produtivo e da diversidade de interes- • os atingidos pela construção de
ses, quer pelas diferenciações regionais barragens, que passaram a deman-
próprias a um país do tamanho e com- dar reassentamento ou a questionar
plexidade do Brasil. Os congressos da
a própria construção de barragens.
Contag eram momentos em que essa
Nesse processo, emergiram organi-
diversidade se visibilizava e nos quais
zações próprias (como é o caso da
se expressavam as diferenças entre os
Comissão Regional dos Atingidos
segmentos que faziam parte do amplo
por Barragens, também no Sul, e,
guarda-chuva que a categoria trabalhador
bem depois, do M OVIMENTO DOS
rural representava;; mas também eram a
A TINGIDOS POR BARRAGENS – MAB,
ocasião em que se reafirmava a unidade
de alcance nacional) ou estabelece-
de representação em torno dos sindi-
ram-se rearranjos organizacionais
catos, federações e confederação, e se
no interior do sindicalismo, como
consolidavam bandeiras de luta.
a criação do Polo Sindical do Sub-
médio São Francisco, uma experi-
A emergência de novas ência inédita de articulação local
organizações e a perda do de sindicatos de estados diferentes
monopólio da Contag (Pernambuco e Bahia);;
• os seringueiros, que, ameaçados
Na segunda metade dos anos 1970, de expulsão da terra, passaram a
as práticas sindicais contaguianas bem lutar por permanecer na floresta,
como o próprio modelo de organi- tentando impedir sua derrubada S
zação sindical por ela construído come- por meio de mobilizações deno-
çaram a ser postos em cheque, como minadas “empates”. Os sindicatos
resultado da intensificação dos confli- eram seu principal suporte, mas,
tos e da emergência de mobilizações. em meados dos anos 1980, foi
Surgiram novas propostas organiza- criada uma organização própria,
tivas, com diferentes relações com o o Conselho Nacional dos Serin-
sindicalismo, que configuravam sinais gueiros, articulando seringueiros
da fragilização do padrão de ação e da e extrativistas de diversas regiões
organização sindical vigentes. Dentre do Norte do país;;

709
Dicionário da Educação do Campo

• as quebradeiras de coco, que exi- dos trabalhadores eram importantes


giam o livre acesso aos babaçuais instrumentos de luta. Sob seu comando
para coleta dos frutos, gerando ocorreram, já em 1980, manifestações
também associações com formato públicas por melhores preços para os
próprio, dando destaque à presença produtos agrícolas, com o fechamento
das mulheres. de estradas e ocupações de praças no
• as mulheres, que, organizando-se Sul do país, bem como greves de as-
tanto nos sindicatos quanto em mo- salariados rurais que, iniciando-se com
vimentos em busca de igualdade de os canavieiros de Pernambuco, esten-
direitos em relação aos homens, em deram-se por todo o Nordeste e alguns
especial no que se refere ao acesso estados do Sudeste. Engajando-se for-
à terra, mas questionando também temente nas lutas pelo fim do regime
tradicionais arranjos das atividades militar, a Contag desempenhou impor-
domésticas e direitos costumeiros tante papel na incorporação da Refor-
de herança, passaram a exigir mais ma Agrária como uma das bandeiras
espaço nas instâncias de represen- da Aliança Democrática – articulação de
tação, sindicais ou não. forças que se opunham ao regime
Para complexificar ainda mais o militar – e apoiou a proposta do Plano
quadro, surgiram também experimen- Nacional de Reforma Agrária (PNRA)
tos organizativos sindicais que ques- elaborada no início da Nova Repúbli-
tionavam o modelo de sindicalismo ca. Com isso, buscava adequar-se aos
existente. É o caso das chamadas opo- novos tempos de abertura política e re-
sições sindicais. Apoiadas pela COMISSÃO construir a hegemonia do sindicalismo
PASTORAL DA TERRA (CPT), no início de trabalhadores sobre a condução dos
dos anos 1980, articularam-se em tor- conflitos no campo.
no da Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e passaram a fazer sistemática
oposição ao sindicalismo contaguiano.
Relações CUT/Contag
Desde a redemocratização, as diver- Em 1986, no II Congresso da CUT,
gências no interior do sindicalismo foi criada uma Secretaria Nacional dos
de trabalhadores rurais se acirravam, Trabalhadores Rurais. No congresso se-
opondo o sindicalismo cutista e o con- guinte, em 1988, essa secretaria foi trans-
taguiano em torno de temas como a formada em Departamento Nacional dos
estrutura sindical, o presidencialismo – Trabalhadores Rurais (DNTR), o que
muito comum nas direções, as decisões significava maior autonomia política, ad-
estão mais centralizadas em uma única ministrativa e financeira. Essas instâncias
pessoa, que tem maior controle sobre o organizavam os sindicatos cutistas. Do
sindicato – e as formas mais adequadas ponto de vista da lógica de ação, prevale-
de mobilização dos trabalhadores e de ceu a ideia de flexibilidade, ou seja, com
fazer pressão sobre o Estado. base na avaliação local, era possível criar
A Contag, por sua vez, desde o seu sindicatos por ramos de produção ou
III Congresso Nacional, realizado em conservar o desenho existente, disputar
1979, ao mesmo tempo em que de- federações ou criar estruturas estaduais
fendia a unidade de representação, autônomas. Em São Paulo, por exemplo,
assumia que a pressão e a mobilização o DNTR apoiou a criação da Federação

710
Sindicalismo Rural

dos Empregados Rurais Assalariados luta que agilizavam a tomada de decisões e


do Estado de São Paulo (Feraesp). Nos se dispunham a produzir maior descentra-
estados do Sul, endossou a criação de lização decisória e ganhos em termos de
sindicatos de avicultores, fumicultores encaminhamento das lutas sindicais.
e suinocultores. Dessa forma, os sin- Em 1995, a Contag filiou-se à CUT.
dicalistas cutistas exercitavam o prin- No entanto, esse fato não fez que as di-
cípio da liberdade e autonomia sindi- versas federações estaduais resistentes
cais, bem como a crítica à unicidade, aos princípios cutistas os adotassem,
defendida pela Contag, que advogava trazendo novas tensões para o interior
que o sindicato dos trabalhadores rurais da estrutura sindical de trabalhadores
deveria ser a única instância de repre- rurais. A questão que permanecia era a
sentação da categoria. Esses sindica- de até onde a cultura sindical dominante
listas também procuravam intensificar no campo fora modificada, uma vez que
as ações coletivas. para isso era preciso mais do que a disputa
Desde a sua consolidação, o sindica- pelo controle de aparelhos e a mudança
lismo cutista disputou diversas federa- de pessoas.
ções, em alguns casos por meio de chapa
própria, em outros em composição com
as diretorias fiéis às linhas da Contag.
Alguns dilemas
Em 1991, a disputa estendeu-se à eleição A filiação da Contag à CUT não re-
para a direção da Contag, que também solveu alguns dos dilemas centrais do
culminou numa composição. Se no final sindicalismo. Em várias situações, quan-
dos anos 1980, no campo cutista, falava- do se rompia, por vezes abruptamente,
se que a Contag já não tinha mais fôlego com práticas tidas como assistenciais
político, o próprio fato de ser arduamente atribuídas ao sindicalismo contaguiano,
disputada mostra seu significado, que ora constatava-se o abandono do sindicato
aparecia relacionado à infraestrutura ma- por grande número de associados, o que
terial de que dispunha, ora ao patrimônio sugeria dificuldades de alguns sindicalis-
político e histórico que representava para tas em sintonizarem-se com as demandas
os trabalhadores rurais. do cotidiano dos trabalhadores e de as
A experiência de composição política traduzirem em uma linguagem mobiliza-
entre linhas sindicais distintas na direção dora. Muitas vezes, ansiosos por trazer
da Contag teve efeitos diferenciados. Um às “bases” as “grandes questões”, deixa-
deles foi o estímulo a um processo, que já ram de transformar em questões sindicais
vinha em curso, de disputa de federações, as carências cotidianas. Outro elemento
em alguns casos privilegiando-as em de- a ser considerado é a persistência do pre-
sidencialismo, que, fortemente arraigado
S
trimento da construção dos departamen-
tos estaduais de trabalhadores rurais. No na cultura sindical, limita a participação
que diz respeito às concepções cutistas, a dos associados e dos demais membros da
simples presença de algumas de suas lide- diretoria. No entanto, seria ingênuo igno-
ranças na direção não trouxe mudanças rar que a persistência do presidencialismo
visíveis na prática da Contag. No entan- e da centralização decisória são mecanis-
to, houve mudanças na sua estrutura de mos por meio dos quais as lideranças se
gestão, como é o caso, por exemplo, constituem e acumulam um capital
da constituição de secretarias por frente de que lhes garante uma situação de poder,

711
Dicionário da Educação do Campo

mecanismos que não podem ser alterados mas não chegaram a ganhar as federa-
por simples ato de vontade. ções. Mesmo com a filiação da Contag
Para pensar nas dificuldades dos sin- à CUT, e a consequente extinção dos
dicatos, há que trazer ainda à discussão al- Departamentos Estaduais dos Traba-
guns aspectos do processo de formação de lhadores Rurais (DETRs), os sindica-
lideranças. Muitas vezes, a rápida ascensão tos cutistas da região mantiveram-se
de direções para o plano regional, esta- atuando em conjunto, e dessa articula-
dual ou nacional ou mesmo a sua conver- ção surgiu uma ruptura no interior do
são para a luta político-partidária deixam sindicalismo. Inicialmente, as difíceis
um vazio nas localidades. A formação de relações dos sindicatos cutistas com a
líderes é longa e tortuosa, não bastando Federação de Santa Catarina, acabaram
para isso sucessões de cursos e informa- gerando a criação, em 1997, da Federa-
ções. Por outra parte, há toda uma cultura ção dos Trabalhadores na Agricultura
centralizadora e pouco participativa (não Familiar do Estado de Santa Catarina
só no sindicalismo, mas como um traço (Fetrafesc). O não reconhecimento des-
da sociedade brasileira) que torna ainda sa federação pela Contag acabou por
maior a dificuldade de geração de novos fortalecer a articulação dos sindicatos
quadros, no ritmo que a reprodução sin- cutistas da região Sul que culminou com
dical exige. O resultado é a produção de a fundação, em 2001, da Federação dos
vazios políticos que desmobilizam os tra- Trabalhadores na Agricultura Familiar
balhadores e os afastam do sindicato. da Região Sul (Fetraf-Sul), abrangendo
Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
A persistência de tensões foi acom-
Paraná. Essa federação inovava em re-
panhada de um grande esforço de equa-
lação à tradição sindical de diferentes
cionamento de questões e de tentativa
maneiras. Apoiava-se em sindicatos de
de unificação de diretrizes e concepções,
agricultores familiares, rompendo com
consolidado no Projeto CUT/Contag
a tradição unitária de representação
de Formação Sindical, iniciado em 1997,
que vinha desde os anos 1960. Além
e que resultou no esforço de produção de
disso, criava outra base federativa, que,
um Projeto Alternativo de Desenvolvi- em 2005, se organizou como confe-
mento Rural Sustentável e Solidário. Ao deração: a Fetraf Brasil. Em 2010, a
mesmo tempo, ocorriam grandes mobi- Fetraf Brasil tinha se firmado em qua-
lizações, como os Gritos da Terra e as se todos os estados do Brasil – exceto
Marchas das Margaridas, que consolida- no Rio de Janeiro e no Espírito Santo,
vam as bandeiras de luta dos anos 1970. na região Sudeste, e na maior parte dos
Essas iniciativas acabaram por colocar estados da região Norte (Acre, Amapá,
em destaque o lugar do que passou a se Amazonas, Rondônia e Roraima). E a
chamar de agricultores familiares. Contag tinha federações vinculadas
em todos. Dessa forma, os chamados
O aparecimento da “agricultores familiares” passaram a ter
Federação dos Trabalhadores duplicidade de representação tanto no
plano estadual quanto no plano nacio-
na Agricultura Familiar nal: a Contag e a Fetraf.
Nos estados do Sul do Brasil as Essa situação fez que, em 2009, a
oposições sindicais fortaleceram-se, Contag decidisse por se desfiliar da

712
Sindicalismo Rural

CUT, que havia apoiado a criação da sentação dos trabalhadores do campo,


Fetraf Brasil. Nesse momento, parte a grande novidade foi a afirmação da
das federações contaguianas (Bahia, agricultura familiar como uma das prin-
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, cipais bandeiras das diferentes verten-
Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do tes sindicais. Tanto a Contag quanto
Sul e Santa Catarina) já estava filiada a Fetraf, no entanto, mantêm o acesso à
à Confederação dos Trabalhadores do terra como uma de suas reivindicações
Brasil (CTB), criada em 2007 a partir importantes, disputando com o MST,
de uma dissidência do Partido Comu- em diversos lugares, a condução dessas
nista do Brasil (PCdoB);; três não es- lutas. Ao mesmo tempo, os assalaria-
tavam ligadas a nenhuma central;; e as dos rurais, cujas lutas tiveram impor-
demais permaneciam vinculadas à CUT tância nos anos 1980, pouco a pouco
(Picolotto, 2010). perderam o protagonismo, e, apesar
Ao longo dos últimos anos de pro- das suas condições adversas, não têm
fundas mudanças no sindicalismo rural encontrado no sindicalismo um canal
brasileiro e de concorrência pela repre- importante de representação.

Para saber mais


CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (CUT); CONFEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES
NA AGRICULTURA (CONTAG). Desenvolvimento e sindicalismo rural no Brasil. São Paulo:
Projeto CUT/Contag, 1998.
H OUTZAGER , P. Os últimos cidadãos: conflito e modernização no Brasil rural
(1964-1995). São Paulo: Globo, 2004.
MEDEIROS, L. S. de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase,
1989.
NOVAES, R. R. Contag e CUT: continuidades e rupturas da organização sindical
no campo. In: BOITO JUNIOR., A. (org.). O sindicalismo brasileiro nos anos 80. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.
PALMEIRA, M. A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferenciação do
campesinato. In: PAIVA, V. (org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola, 1985.
PICOLOTTO, E. L. As mãos que alimentam a nação: agricultura familiar, sindicalis-
mo e política. 2011. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade) – Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de
S
Janeiro, Seropédica, 2011.
RICCI, R. Terra de ninguém: representação sindical rural no Brasil. Campinas:
Editora da Unicamp, 1999.
STEIN, L. Sindicalismo e corporativismo na agricultura brasileira (1930-1945). 1991.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1991.

713
Dicionário da Educação do Campo

SISTEMAS DE AVALIAÇÃO E CONTROLE


Luiz Carlos de Freitas

Os sistemas de avaliação e controle Na educação básica, a avaliação é


são um conjunto de ações organizadas feita pelo Sistema de Avaliação da Edu-
na forma de “sistema” de procedimen- cação Básica (Saeb), ao qual se integra
tos para avaliar e controlar os resulta- a Prova Brasil, que, junto com a prova
dos da educação. Insere-se dentro da do Saeb, são dois exames complemen-
característica do Estado a de regular tares que compõem o Sistema de Ava-
as atividades de interesse público, ca- liação da Educação Básica.
racterística amplamente enfatizada pela A prova do Saeb abrange estudantes
nova forma estatal que o capitalismo for- das redes públicas e privadas do país,
jou, no âmbito do neoliberalismo mais das áreas urbana e rural, matriculados
recente, e na qual o Estado aparece na 4ª ou na 8ª séries (ou 5º e 9º anos)
como um Estado mínimo que se isenta do ensino fundamental e também no
das operações, facilitando que o mer- 3º ano do ensino médio. São aplicadas
cado atue em áreas antes reservadas provas de Língua Portuguesa e Mate-
ao próprio Estado, que, portanto, atua
mática. A avaliação é feita por amos-
como um Estado avaliador: um Estado
tragem. Os resultados são computados
que não faz, mas pretensamente “ava-
para cada unidade da federação e para
lia” quem faz (o mercado).
o Brasil como um todo.
Essa visão ganhou força, no Brasil,
A Prova Brasil é uma avaliação cen-
durante a era Fernando Henrique
sitária aplicada a todos os alunos de 4ª
Cardoso. A exemplo de outras áreas,
e 8ª séries do ensino fundamental pú-
a educação também criou sua “agên-
cia reguladora”, com a transforma- blico, das redes estaduais, municipais e
ção do Instituto Nacional de Estudos federais, do campo e da área urbana,
e Pesquisas Educacionais Anísio em escolas que tenham no mínimo 20
Teixeira (Inep) em centro de avaliação alunos matriculados na série avaliada.
e controle da educação brasileira. Além A prova oferece resultados por escola,
do plano federal, essas ideias também município, unidade da federação e para
penetraram, nestes últimos vinte anos, o Brasil como um todo.
nas gestões de estados e municípios Os resultados dessas provas fazem
brasileiros. E mesmo com algumas di- parte do cálculo do Índice de Desen-
ficuldades de expansão durante a era volvimento da Educação Básica (Ideb),
Luiz Inácio Lula da Silva, foram sen- que leva em conta também a corres-
do aplicadas em várias esferas, tendo pondência série–idade (defasagem ou
o Inep se consolidado como agência não) dos alunos. Todas as escolas pú-
reguladora da qualidade da educação blicas do Brasil são avaliadas e têm seu
nacional. Assim, a responsabilidade Ideb calculado e divulgado, sendo o
pela concepção, organização, aplica- índice comparado com as metas que
ção, processamento e divulgação dos deveriam ser atingidas pelas escolas.
resultados das avaliações nacionais está Ainda que alguns estados brasileiros
concentrado no Inep. também tenham seus próprios siste-

714
Sistemas de Avaliação e Controle

mas de avaliação e controle, elaboran- ensino, pesquisa, extensão, responsabi-


do os seus próprios índices, o Ideb tem lidade social, desempenho dos alunos,
alcance nacional. gestão da instituição, corpo docente e
Nesse mesmo nível de escolarida- instalações, além de vários outros as-
de, existe ainda a Provinha Brasil, uma pectos. Existe uma série de instrumen-
avaliação diagnóstica do nível de alfa- tos complementares ao sistema: auto-
betização das crianças matriculadas no avaliação, avaliação externa, avaliação
2º ano de escolarização das escolas pú- dos cursos de graduação, instrumen-
blicas brasileiras. Essa avaliação acon- tos de informação (censo e cadastro)
tece em duas etapas: no início e no e o Exame Nacional de Desempenho
término do ano letivo. A aplicação em dos Estudantes (Enade), uma prova
períodos distintos possibilita aos pro- que mede o nível de desempenho dos
fessores e gestores educacionais a rea- alunos das universidades e instituições
lização de um diagnóstico mais preciso de ensino superior ao ingressarem e
sobre o que foi agregado na aprendi- quando eles se formam. Os resultados
zagem das crianças, em termos de ha- das avaliações possibilitam traçar um
bilidades de leitura, dentro do período panorama da qualidade dos cursos e
avaliado. A avaliação deverá ser aplica- das instituições de educação superior
da também, nos próximos anos, para no país. Os processos avaliativos são
acompanhar a aprendizagem de Mate- coordenados e supervisionados pela
mática. A Provinha Brasil é aplicada e Comissão Nacional de Avaliação da
processada pelo próprio professor das Educação Superior (Conaes).
séries iniciais. Seu resultado não é uti- A existência de sistemas de avalia-
lizado para o controle da escola;; serve ção por si só não é um mal. Eles for-
apenas para uso da própria escola. necem dados importantes sobre como
Para a avaliação da qualidade do está evoluindo a educação. Entretanto,
ensino médio, foi criado o Exame a forma como tais sistemas foram im-
Nacional do Ensino Médio (Enem). plantados no Brasil faz eles estarem
Ao contrário da Prova Brasil, ele não voltados mais para a cobrança e o con-
é obrigatório e não é aplicado nas es- trole das escolas do que para a política
colas. Os alunos que desejam fazê-lo pública posta em prática pelos próprios
se inscrevem no Inep, que oferece governos. Sistemas de avaliação geram
o exame em datas e locais específicos. O dados que deveriam, primeiramente,
Enem também é usado pelas universi- ser utilizados pelos governos para reo-
dades como um dos elementos para se- rientarem as suas políticas públicas e
monitorarem a evolução da qualidade
leção de alunos que pretendem entrar
no ensino superior. da educação ao longo dos anos. S
No que diz respeito à avaliação do A avaliação deve ser, portanto,
ensino superior, o Inep administra voltada para o desenvolvimento e não
o Sistema Nacional de Avaliação do para o controle. Porém, no Brasil, a fi-
Ensino Superior (Sinaes), formado por losofia aplicada pelo Inep privilegia o
três componentes principais: avaliação uso dos dados de avaliação de sistemas
das instituições, avaliação dos cursos e como forma de controle, expondo pu-
avaliação do desempenho dos estudan- blicamente as escolas à crítica. Ocor-
tes. O Sinaes avalia todos os aspectos re que tais sistemas de medição não
que giram em torno desses três eixos: são precisos;; no máximo fazem uma

715
Dicionário da Educação do Campo

estimativa da situação da qualidade de dificuldades de aprendizagem a parti-


ensino em determinada escola e, mesmo ciparem delas.
assim, baseada apenas na medição do Outro problema é que os testes são
desempenho do aluno em um teste elaborados com base na escola urbana,
de Português e Matemática – o que é mas também são aplicados às escolas do
insuficiente para caracterizar a qualida- campo, sem levar em conta as diferen-
de de uma escola. Além da não avalia- ças culturais, econômicas e sociais que
ção de outras disciplinas, há também existem entre essas duas realidades.
outros aspectos do desenvolvimento Em contraposição a essa concep-
humano que não são considerados nos ção dos sistemas de avaliação, é pos-
sistemas de avaliação vigentes. sível pensar um processo que tenha a
Pressionadas por esse tipo de con- perspectiva de fornecer informações
trole, as escolas são levadas a enfatizar úteis a processos internos das escolas
somente o ensino das disciplinas que destinados a pensar coletivamente a
caem nos testes de avaliação, estrei- prática pedagógica e o desenvolvimen-
tando a formação dos alunos. Muitas to dos alunos. Para tal, deve-se enfati-
formas de contracontrole são desen- zar a organização do coletivo escolar
volvidas nas escolas para não serem e estimulá-lo a pensar os problemas
caracterizadas como deficientes, entre pedagógicos da escola, mobilizando-
elas fraudar provas, ensinando os alu- o para garantir demandas da escola e,
nos no ato da aplicação dos testes, ou ao mesmo tempo, comprometendo-o
desestimular os alunos com maiores com a melhoria dos processos escolares.

Para saber mais


FREITAS, L. C. Qualidade negociada – avaliação e contrarregulação na escola
pública. Educação e Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, 2005.
______ et al. Avaliação educacional: caminhando pela contramão. Petrópolis: Vozes,
2009.
SAUL, A. M. Avaliação emancipatória. São Paulo: Cortez, 1988.

SOBERANIA ALIMENTAR
João Pedro Stedile
Horacio Martins de Carvalho

Segurança alimentar é uma políti- o dever de prover os recursos para que


ca pública aplicada por governos de as pessoas se alimentem. Para executar
diversos países que parte do princí- essa política, os governos se utilizam
pio de que todas as pessoas têm o direi- de diversos mecanismos: distribuição
to à alimentação e que cabe ao Estado de alimentos, cestas básicas, tíquetes

716
Soberania Alimentar

de refeições, instalação de refeitórios antes, entender a natureza do proble-


populares subsidiados, além de pro- ma da fome.
gramas de renda mínima e de cartões A fome e a desnutrição, que atin-
para receber ajuda mensal em dinheiro, gem milhões de seres humanos, sem-
como é o caso, no Brasil, do programa pre foram, ao longo da história da
Bolsa Família. humanidade, um dos problemas so-
Soberania alimentar é o conjunto de cioeconômicos mais graves da organi-
políticas públicas e sociais que deve ser zação das sociedades. Sua ocorrência
adotado por todas as nações, em seus tem sido formalmente explicada por
povoados, municípios, regiões e países, diversos fatores: a) baixo conhecimen-
a fim de se garantir que sejam produ- to de técnicas de produção de alimen-
zidos os alimentos necessários para a tos mais produtivas;; b) disputa e perda
sobrevivência da população de cada dos territórios mais férteis, aptos para
local. Esse conceito revela uma polí- a produção de alimentos;; c) ocorrência
tica mais ampla do que a segurança de fenômenos naturais que destroem
alimentar, pois parte do princípio de colheitas e fontes naturais de alimen-
que, para ser soberano e protagonista tos;; d) epidemias que atingem grande
do seu próprio destino, o povo deve parte da população e impedem a pro-
ter condições, recursos e apoio neces- dução de alimentos;; e e) ocorrência de
sários para produzir seus próprios ali- guerras generalizadas que não apenas
mentos. Acredita-se que, em todas as mobilizam os trabalhadores, mas tam-
regiões do planeta, por mais diferentes bém inutilizam as áreas agricultáveis
e inóspitas que sejam, há condições de para a produção de alimentos.
produzir os alimentos adequados para Durante o século XX, os povos
a população local. Portanto, as políti- conseguiram se organizar de tal ma-
cas públicas dos governos, Estados e neira que a maioria desses fatores dei-
instituições, e as políticas dos movi- xou de ser suficiente para explicar a
mentos de agricultores e da população ocorrência de fome e desnutrição em
em geral devem ser direcionadas para elevada parcela da população mundial.
garantir os recursos e as condições téc- No entanto, a fome e a desnutrição
nicas necessárias para alcançar a con- jamais atingiram tantas pessoas como
dição de produzir todos os alimentos na era contemporânea. Qual seria a
básicos que um povo necessite em seu causa agora?
próprio território.
A explicação pode ser encontrada
Os conceitos de soberania alimen- nas teses defendidas, já na década de
tar e de segurança alimentar têm sido 1950, por Josué de Castro, quando su- S
defendidos nas últimas duas décadas gere que a fome e a desnutrição não
como medidas públicas necessárias para são uma ocorrência natural, mas resul-
combater os problemas mais trágicos tado das relações sociais e de produ-
da humanidade: a fome, a desnutrição ção que os homens estabelecem entre
e a alimentação aquém das necessidades si. De fato, a ocorrência da fome, que
básicas para a sobrevivência digna. atingiu, em 2009, 1 bilhão de seres hu-
Para se entender a importância e manos – índice que, em 2010, recuou
o significado dessas políticas e a na- para 925 milhões –, tem suas causas no
tureza de seus conceitos, é necessário, controle da produção e da distribuição

717
Dicionário da Educação do Campo

dos alimentos e na renda auferida reito humano, que fere a sobrevivência


pelas pessoas. da própria espécie.
Nunca antes na história os ali- As políticas públicas de abasteci-
mentos estiveram tão concentrados e mento alimentar, sob responsabilidade
sob o controle de uma mesma matriz dos governos que controlam os apara-
de produção. Nunca antes na história tos estatais, estão subordinadas a forças
tão poucas empresas oligopolizaram políticas determinadas pela macroeco-
o mercado internacional e tiveram tanto nomia mundial e corroboradas pelas
controle sobre a produção e o comér- práticas dos organismos multilaterais
cio de produtos alimentícios como ago- de defesa dos mercados oligopolistas.
ra. Estima-se que menos de cinquenta Assim, o Fundo Monetário Internacio-
grandes empresas transnacionais têm nal (FMI), a Organização Mundial do
o controle majoritário da produção de Comércio (OMC), criada na década
sementes e insumos agrícolas, e da pro- de 1990, e o Banco Mundial sempre
dução e distribuição de alimentos em defenderam, em primeiro lugar, os in-
todo mundo. teresses das empresas, encobertos pelo
O direito à alimentação é um direi- manto da liberdade de circulação do ca-
to de todos os seres humanos, inde- pital e das mercadorias. E no máximo,
pendentemente da condição social, cor com o agravamento do problema do
da pele, etnia, local de moradia, crença abastecimento alimentar, aceitam polí-
religiosa, gênero ou idade. No entanto, ticas governamentais compensatórias,
na atual fase do capitalismo globali- que não afetam os interesses do merca-
zado, esse direito fundamental para a do, para que a fome e a desnutrição não
sobrevivência dos seres humanos vem se transformem em tragédias sociais
sendo sistematicamente violado como ou conflitos políticos internacionais. O
resultado do controle que as grandes organismo da Organização das Nações
empresas transnacionais têm sobre Unidas (ONU) criado para cuidar es-
o mercado de alimentos, subordinando o pecificamente do tema, a Organização
acesso a eles às condições do lucro e das Nações Unidas para Alimentação e
da acumulação. Portanto, as pessoas só Agricultura (FAO), está completamente
podem ter acesso aos alimentos quan- ausente e é incapaz de propor políticas
do têm dinheiro e renda para comprá- de mudanças estruturais aos governos.
los. Como em praticamente todas as A FAO se transformou, nas últimas
sociedades, e mais gravemente nos décadas, em um organismo burocráti-
países do hemisfério sul, há elevada co de pesquisa e registro dos volumes
concentração da renda, as populações da fome e da desnutrição que atingem
pobres, majoritárias, que vivem nesses a humanidade. Ajuda a denunciar,
países sofrem as consequências da falta porém não tem forças para combater
de acesso aos alimentos. suas causas.
Vive-se uma situação mundial con- O professor suíço Jean Ziegler,
traditória: nunca o planeta havia produ- consultor da ONU e um dos mais im-
zido tantos alimentos, como resultado portantes estudiosos contemporâneos
das técnicas agrícolas e da capacidade do problema, adverte:
de beneficiamento e armazenamento;;
ao mesmo tempo, nunca tantas pessoas Uma das principais causas da
estiveram privadas do acesso a esse di- fome e da desnutrição de mi-

718
Soberania Alimentar

lhões de seres humanos é a do PAM para todos os países que têm


especulação, que sobrevêm, so- populações famintas dispõe de menos
bretudo, da Chicago Commo- recursos do que o programa Bolsa Fa-
dity Stock Exchange [bolsa das mília do governo brasileiro! E quando
matérias-primas agrícolas de comparamos os trilhões de dólares gas-
Chicago], onde são estabeleci- tos pelos governos dos países do Norte
dos os preços de quase todos os com socorros financeiros aos bancos na
produtos alimentícios do mun- crise econômica de 2008-2009, vemos o
do. (2008, p. 1) quanto é irrisória a aplicação de alguns
poucos milhões de dólares em ajuda
Para resolver a crise atual, sugere- alimentar para o Sul.
se, entre outras medidas, impedir a es- Tudo leva a crer que, em nome da
peculação de preços e volumes sobre competitividade na produção agropecu-
alimentos;; vetar o uso de produtos ária e florestal nos mercados mundiais,
alimentícios para agrocombustíveis;; as grandes empresas transnacionais – e
mudar a política das instituições multi- não os governos nacionais – é que deve-
laterais de Bretton Woods1 e da OMC, rão definir e implantar as macropolíticas
que deveriam dar prioridade absoluta estratégicas de abastecimento alimentar
aos investimentos nos produtos ali- em todo o mundo. E isso não apenas
mentícios de primeira necessidade e pelo controle das cadeias alimentares
na produção local, incluindo sistemas mais importantes seja do ponto de vista
de irrigação, infraestrutura, sementes, dos volumes negociados, dos produ-
pesticidas etc. tos de interesse da agroindustriali-
O programa de distribuição de ali- zação ou da padronização dos alimen-
mentos para as populações mais po- tos em todo mundo, mas também pelo
bres dos países periféricos promovido controle interno dos principais produ-
pela FAO representa apenas um palia- tos em dezenas de países, tanto no co-
tivo: não alcança toda a população em mércio por atacado quanto no varejo,
situação de pobreza, e sua amplitude se por meio das cadeias multinacionais
reduz cada vez mais. É até certo pon- de supermercados.
to irônico que os alimentos distribuí- Essas macropolíticas alimentares
dos pelo Programa Alimentar Mundial mundiais já estão sendo parcialmen-
(PAM) para reduzir a fome de milhões te consolidadas. Como afirmam Blas,
de pessoas – e cujos fundos são cons- Weaver e Mundy em reportagem publi-
tituídos por doações de vários gover- cada no Financial Times e reproduzida no
nos no mundo – sejam adquiridos das
grandes empresas multinacionais no
jornal Valor Econômico: “as maiores em-
presas alimentícias do mundo (Nestlé,
S
mercado internacional de alimentos. E Monsanto, Bunge, Dreyfus, Kraft
as empresas também usam o programa Foods, Pepsi-Cola, Coca-Cola, Unilever,
para induzir o consumo de alimentos Tyson Foods, Cargill, Marte, ADM,
transgênicos, às vezes proibidos nos Danone) controlam 26% do mercado
países recebedores, e/ou usam estoques mundial, e 100 cadeias de vendas di-
de alimentos que se encontram no li- retas ao consumidor controlam 40%
mite do vencimento do prazo de garan- do mercado global” (2010). Resumin-
tia do valor nutritivo. Sua importância do, uma absurda minoria de empresas
é tão limitada que o programa mundial e uns quantos multimilionários que

719
Dicionário da Educação do Campo

possuem ações dessas empresas con- cerca de 435 espécies da flora


trolam enormes porcentagens de ali- e fauna silvestres, das quais 229
mentos, agroindústrias e mercados são comestíveis.3 (Shiva, 1998)
básicos para a sobrevivência de bilhões
de seres humanos. Essa biodiversidade está relacionada
A padronização dos alimentos pe- com os padrões alimentares e as práti-
las empresas transnacionais afeta di- cas de medicina preventiva, pois, além
retamente os hábitos alimentares e as de um alimento saudável e local, os
práticas domésticas tradicionais das condimentos utilizados servem também
populações de proverem seus próprios como remédios naturais preventivos
alimentos, com base nos biomas onde e garantidores da saúde da população.
vivem e na sua cultura alimentar cente- Tudo isso está sendo destruído pela sa-
nária. Para que se tenha uma ideia, as nha do capital internacional, contribuin-
hortas domésticas nos países periféri- do para mais pobreza e fome, e levando
cos e agrários à migração das populações.
Nas últimas décadas, hove uma
[...] são, muitas vezes, verdadei- evolução positiva sobre os termos e
ros “laboratórios experimen- conceitos utilizados para analisar o pro-
tais” informais, onde as espécies blema da fome e da desnutrição. Du-
autóctones são transformadas, rante a maior parte do século XX, o
estimuladas e cuidadas, sendo assunto foi tratado como um problema
experimentadas a fundo e usa- social decorrente de fenômenos natu-
das para obter produtos espe- rais. Porém, a obra de Josué de Castro
cíficos e, se possível, variados. Geografia da fome (1963), traduzida para
Um estudo recente realizado na mais de quarenta idiomas, consolidou
Ásia mostrou que 60 hortas de o conceito de que a fome é um problema
um mesmo povoado continham social, resultante da forma de organização so-
cerca de 230 espécies vegetais cial da produção e distribuição dos alimentos.
diferentes, e que a diversidade E sua contribuição teórica foi tão im-
de cada horta ia de 15 a 60 es- portante que os governos reunidos nas
pécies.2 (Bunning e Hill, 1996) Nações Unidas lhe atribuíram o cargo
de primeiro secretário-geral da FAO na
Na Índia, década de 1950.
A teoria de Josué de Castro foi
[...] as mulheres utilizam 150 combatida nas décadas de 1960 e 1970,
espécies diferentes de plantas no contexto da luta ideológica duran-
para a alimentação humana e te o período da Guerra Fria, com um
animal e para os cuidados com conceito introduzido e difundido pelo
a saúde. Em Bengala ocidental, governo dos Estados Unidos de que
há 124 espécies de ‘‘pragas” o problema da fome era causado pela
colhidas nos arrozais que têm baixa produtividade física das lavouras.
importância econômica para Portanto, era preciso difundir novas
os agricultores. Na região de técnicas de produção agrícola baseadas
Expana, em Veracruz, no Mé- no modelo de agroquímicos, com uso
xico, os camponeses utilizam intensivo de adubos químicos, vene-

720
Soberania Alimentar

nos agrícolas e mecanização agrícola. insumos para a agricultura, a produção


Esse pacote tecnológico foi chamado agrícola e o comércio dos alimentos.
REVOLUÇÃO VERDE, pois o aumento da Na década de 1990, criou-se o con-
produtividade física das lavouras elimi- ceito de segurança alimentar. Esse
naria a fome e seria combatida a pro- conceito, cujo intuito era que, nos
posta da “Revolução Vermelha” defen- marcos dos direitos humanos, todas as
dida pelas ideias socialistas. pessoas tivessem assegurado o direito
O debate ideológico foi tão inten- à alimentação, cabendo aos governos
so durante as décadas de 1960 e 1970 o dever de implantar políticas públicas
que o governo dos Estados Unidos que garantissem a oferta de alimentos
utilizou da sua influência para que o básicos à população de seus países, foi
Prêmio Nobel da Paz de 1970 fosse sendo adotado e adaptado pela maior
entregue ao agrônomo estadunidense parte dos governos, em consonância
Norman Borlaug, que se transformou com as propostas da FAO. Assim, to-
no principal propagandista mundial das as pessoas supostamente teriam a
da Revolução Verde. E, assim, a maior “segurança” da sobrevivência, desde
parte dos países capitalistas sob influ- que possuíssem rendimentos familiares
ência norte-americana passou a adotar suficientes para adquirir os alimentos.
os métodos e o pacote tecnológico da As pessoas com baixos ou insuficien-
Revolução Verde. tes rendimentos poderiam ter acesso
Nessa época (década de 1970), a aos alimentos básicos que os governos,
fome atingia aproximadamente 60 mi- direta ou indiretamente, ofertariam
lhões de pessoas em todo o mundo. a preços subsidiados ou mesmo por
meio de doações, alimentos esses
Passadas quatro décadas da aplicação
considerados os necessários para a
da Revolução Verde, a fome aumentou
sua sobrevivência.
dez vezes. O que se pode constatar, de
fato, é que as tecnologias agrícolas Esse passo foi importante porque
da Revolução Verde foram, antes de se constituiu num compromisso éti-
tudo, uma forma das empresas norte- co de todos os governos para resolver o
americanas difundirem e venderem, problema da fome, constatado em
em todo o mundo, suas máquinas, seus parcelas da sua população. Porém, as
adubos e seus venenos agrícolas. Me- políticas públicas implantadas foram
nos do que equacionar a problemática insuficientes para dar conta das causas
da fome e da desnutrição, o resultado da fome e da desnutrição.
principal da Revolução Verde foi a mais Mais recentemente, surgiu um novo
intensa concentração da propriedade conceito, o de soberania alimentar, intro-
duzido, em 1996, pela VIA CAMPESINA
S
da terra e da produção, que ampliou
o êxodo rural e as migrações entre Internacional, no contexto da Cúpula
países, ocasionando maior empobre- Mundial sobre a Alimentação (CMA),
cimento dos camponeses e mais fome realizada em Roma pela FAO. O de-
em todo o mundo. Nesse processo, bate oficial girava em torno da noção
poucas e grandes empresas transnacio- de segurança alimentar, reafirmando-a
nais norte-americanas se transforma- como o direito de toda pessoa a ter acesso a
ram em grandes grupos internacionais alimentos sadios e nutritivos, em consonância
oligopolistas, controlando a oferta de com o direito a uma alimentação apropriada e

721
Dicionário da Educação do Campo

com o direito fundamental a não passar fome. alimentar significa que cada comunida-
No entanto, as organizações campone- de, município, região, povo têm o direi-
sas e, em especial, as delegadas mulhe- to e o dever de produzir seus próprios
res presentes no fórum paralelo à CMA alimentos. Por mais dificuldades natu-
foram críticas em relação aos termos rais que ocorram, em qualquer parte
utilizados na discussão dos governos, do nosso planeta, as pessoas podem
que, em sintonia com a hegemonia do sobreviver e se reproduzir dignamente.
neoliberalismo e com os princípios Já existe conhecimento científico acu-
defendidos pela OMC, ajustaram a mulado para enfrentar as dificuldades
definição de segurança alimentar, ten- naturais e garantir a produção de ali-
tando vincular o direito à alimentação à mentos suficientes para a reprodução
liberalização do comércio de alimentos, social dos seres humanos.
abrindo caminho para fazer da alimenta- E se a produção e a distribuição
ção um grande e lucrativo negócio para de alimentos fazem parte da soberania de
as empresas transnacionais, a indústria um povo, elas são inegociáveis e não
química e de fast-food, entre outros. podem depender de vontades políticas
As organizações camponesas con- ou práticas conjunturais de governos ou
trapuseram então ao conceito de segu- empresas de outros países. Como
rança alimentar o conceito de soberania advertia José Martí, já no início do sé-
alimentar. Partiram do principio de que culo XX, em relação à dependência da
o alimento não é uma mercadoria, é um direi- América Latina dos capitais estrangei-
to humano, e a produção e distribuição ros: um povo que não consegue produ-
dos alimentos é uma questão de so- zir seus próprios alimentos é um povo
brevivência dos seres humanos, sendo, escravo. Escravo e dependente do ou-
portanto, uma questão de soberania po- tro país que lhe fornece as condições
pular e nacional. Assim, soberania ali- de sobrevivência.
mentar significa que, além de terem Esse novo e transgressor concei-
acesso aos alimentos, as populações de to representa uma ruptura em relação
cada país têm o direito de produzi-los. à organização dos mercados agrícolas
E é isso que pode garantir a elas a so- imposta pelas empresas transnacio-
berania sobre suas existências. O con- nais e os governos neoliberais no seio
trole da produção dos seus próprios das negociações da OMC e da FAO,
alimentos é fundamental para que as cujas orientações políticas já tinham
populações tenham garantido o aces- violado as normas protecionistas para
so a eles em qualquer época do ano e a agricultura familiar e camponesa im-
para que a produção desses alimentos plantadas por alguns governos nacio-
seja adequada ao bioma onde vivem, nalistas e populares, mediante impos-
às suas necessidades nutricionais e aos tos sobre as importações baratas de
seus hábitos alimentares. O alimento alimentos, favorecendo o preço de ali-
é a energia de que necessitamos para mentos nacionais, outorgando faixas
a sobrevivência, de acordo com o meio de preços e mantendo os poderes dos
ambiente onde vivemos e nos reprodu- compradores públicos.
zimos socialmente. A utopia de uma soberania alimentar
A partir daí, o conceito evoluiu é fundamental para o fortalecimento de
para a compreensão de que soberania uma visão de mundo favorável a uma

722
Soberania Alimentar

democratização econômica, social, consumo, assim como o modelo tecno-


étnica e de gênero contra-hegemônica lógico, sobre a base da sustentabilidade
à visão neoliberal de democracia. Essa ambiental, social e econômica.
concepção recebeu um complemento A soberania alimentar promove
essencial em 2007, durante o Fórum o comércio transparente que garan-
Mundial pela Soberania Alimentar, rea- te não apenas renda digna para todos
lizado em Mali, cujo documento final, a os povos, mas também os direitos dos
Declaração de Nyéléni, afirma: consumidores de controlar sua própria
alimentação e nutrição. Garante tam-
A soberania alimentar é um di- bém que os direitos de acesso e gestão
reito dos povos a alimentos nu- da terra, dos territórios, das águas, das
tritivos e culturalmente adequa- sementes, do gado e da biodiversidade
dos, acessíveis, produzidos de estejam nas mãos daqueles que produ-
forma sustentável e ecológica, zem os alimentos. A soberania alimen-
e seu direito de decidir seu pró- tar supõe novas relações sociais livres
prio sistema alimentício e da opressão e das desigualdades entre
produtivo. Isto coloca aqueles os homens e mulheres, entre povos,
que produzem, distribuem e entre grupos étnicos, entre classes so-
consomem alimentos no co- ciais e entre gerações.
ração dos sistemas e políticas As organizações sociais e campone-
alimentárias, por cima das exi- sas que construíram o termo soberania
gências dos mercados e das alimentar enfatizam a ideia de ele ser
empresas. (Fórum Mundial pela mais do que um conceito. Trata-se de um
Soberania Alimentar, 2007) princípio e de uma ética de vida que
não respondem a uma definição acadê-
Essa concepção defende os inte- mica, mas emergem de um processo co-
resses dos povos, seja para as gerações letivo de construção, um processo par-
atuais ou para as futuras. Oferece uma ticipativo, popular e progressivo que
estratégia para resistir, para defender os foi se enriquecendo em seus conteú-
regimes alimentares locais e a necessida- dos como resultado de um conjunto de
de de os alimentos serem produzidos por debates e discussões políticas iniciadas
produtores locais, além de desmantelar a no próprio processo de conformação
tese das empresas transnacionais de que da instância que abriga as organizações
o livre comércio seria a única forma de camponesas críticas das atuais políticas
garantir a “segurança alimentar”. agrárias liberalizadoras e de alimentação.
A soberania alimentar dá priorida- Nos diversos documentos e declara- S
de à produção e ao beneficiamento de ções elaborados coletivamente, ao con-
alimentos pelas economias locais e à ceito de soberania alimentar foi agrega-
sua distribuição por mercados locais e do o conjunto de direitos dos povos de
nacionais, outorgando o poder de pro- definir suas próprias políticas de agri-
dução e oferta alimentar aos campone- cultura e de alimentação, o que inclui
ses, aos agricultores familiares, aos pes- proteger o meio ambiente e os recur-
cadores artesanais e às diversas formas sos naturais, regulamentar a produção
de pastoreio tradicional. E mais, trata a agropecuária e o comércio agrícola
produção alimentar, a distribuição e o interno para o desenvolvimento sus-

723
Dicionário da Educação do Campo

tentável, proteger os mercados locais baseadas no pensamento do Bom Viver


e nacionais contra as importações e li- ou Bem Viver, o Sumak Kawsay, conceito
mitar o dumping social e econômico de que nasce da herança ancestral andina
produtos nos mercados. Materializa- e latino-americana como alternativa
se no direito de decidir como organi- que vem se tecendo a partir das orga-
zar o que produzir e como plantar, como nizações populares de base. E que, ao
organizar a distribuição e o consumo mesmo tempo, está em consonância
de alimentos de acordo com as neces- com os direitos dos povos de controlar
sidades das comunidades, em quanti- seus territórios, seus recursos naturais,
dade e qualidade suficientes, prio- sua fertilidade, sua reprodução social
rizando produtos locais e variedades e a integração entre etnias e povos de
nativas (Coordinadora Latinoamerica- acordo com interesses comuns, e não
na de Organizaciones del Campo, 2010, apenas determinados pelo comércio e o
p. 23-25). lucro. E há também uma influência na
Mais recentemente, na Conferência construção do conceito da visão femi-
Mundial dos Povos sobre Mudanças nina do mundo, baseada na fertilidade
Climáticas e os Direitos da Mãe Terra, e na reprodução social da humanidade
realizada em Cochabamba, na Bolívia, em condições igualitárias e justas.
em abril de 2010, foi ratificado que a As declarações e acordos sobre a
soberania alimentar se refere ao direito soberania alimentar construídos em fó-
dos povos de controlar suas próprias runs, seminários e conferências nacio-
sementes, terras e água, garantindo, nais e mundiais, contando com a parti-
por meio de uma produção local e cul- cipação da maior parte das instituições
turalmente apropriada, o acesso dos da sociedade civil, de movimentos
povos a alimentos suficientes, varia- camponeses e de mulheres, e de al-
dos e nutritivos, em complementação guns setores governamentais, infeliz-
com a Mãe Terra, e aprofundando a mente ainda não têm tido ressonância
produção autônoma, participativa, prática, com a sua transformação em
comunitária e compartilhada de cada políticas públicas pela maioria dos go-
nação e povo. Nessa proposta, foram vernos e pelos organismos multilate-
afirmadas novas visões e conceituações rais internacionais.

Notas
1
Com instituições multilaterais de Bretton Woods nos referimos ao Banco Mundial e ao
Fundo Monetário Internacional. Essas instituições, assim como um sistema de regras e
procedimentos para regular a política econômica internacional, foram constituídas em ju-
lho de 1944, durante a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, conhecida
posteriormente como as Conferências de Bretton Woods (cidade localizada no estado de
New Hampshire, nos Estados Unidos) ou o sistema de Bretton Woods. As Conferências
de Bretton Woods contaram com a presença de representações de 44 nações então aliadas,
como consequência da Segunda Guerra Mundial.
2
“[...] are often informal ‘experimental stations’ in which they transfer, encourage and
tend indigenous species, trying them out and adopting them for their specific – and
maybe varied – products. A recent study in Asia showed that 60 homegardens in one village
contained about 230 different plant species. Individual garden diversity ranged from 15 to
60 species.”

724
Soberania Alimentar

3
“In Indian agriculture women use 150 different species of plants for vegetables, fodder
and health care. In West Bengal 124 ‘weed’ species collected from rice fields have economic
importance for farmers. In the Expana region of Veracruz, Mexico, peasants utilise about
435 wild plant and animal species of which 229 are eaten.”

Para saber mais


AMIN, S. Las Luchas campesinas y obreras frente a los desafíos del siglo XXI. Barcelona:
El Viejo Topo, 2005.
ARANHA, A. V. (org.). Fome Zero: uma história brasileira. Brasília: Editora do
Ministério do Desenvolvimento Social, 2010. 3 v.
B LAS , J.; W EAVER , C.; M UNDY , S. Cresce o temor por oferta de alimentos.
Valor Econômico, São Paulo, 3 set. 2010. Disponível em: http://www.valor.com.br/
arquivo/845409/cresce-o-temor-por-oferta-de-alimentos. Acesso em: 18 out.2011.
BUNNING, S.; HILL, C. Farmers’ Rights in the Conservation and Use of Plant Genetic Resources:
Who are the Farmers? In: SUSTAINABLE DEVELOPMENT DEPARTMENT (SD), WOMEN IN
DEVELOPMENT SERVICE (SDWW), FAO WOMEN AND POPULATION DIVISION, June 1996.
Disponível em: http://www.fao.org/sd/WPdirect/WPan0006.htm. Acesso em:
18 out. 2011.
CASTRO, J. Geografia da fome. 8. ed. São Paulo, Brasiliense, 1963. 2 v.
COORDINADORA LATINOAMERICANA DE ORGANIZACIONES DEL CAMPO (CLOC). Docu-
mento preparatório ao congresso da CLOC 2010. Quito: Cloc, 2010.
FORO MUNDIAL SOBRE LA REFORMA AGRARIA (FMRA). Valencia (Espanha), 2004.
In: AGÊNCIA CARTA MAIOR, São Paulo, dez. 2004. Disponível em: http://www.
cartamaior.com.br/templates/index.cfm?home_id=51&alterarHomeAtual=1.
Acesso em: 17 out. 2011.
FÓRUM MUNDIAL PELA SOBERANIA ALIMENTAR. Declaração de Nyéléni. Nyéléni (Mali),
2007. Disponível em: http://www.wrm.org.uy/temas/mujer/Declaracion_
Mujeres_Nyeleni_PR.html. Acesso em: 19 out. 2011.
MOORE LAPPÉ, F.; COLLINS, J.; ROSSET, P. Doce mitos sobre el hambre: un enfoque
esperanzador para la agricultura y la alimentación del siglo XXI. Barcelona:
Icaria, 2005.
S
SERREAU, C. Solutions locales pour un desordre global. Paris: Actes Sud, 2010.
SHIVA, V. Monocultures, Monopolies, Myths and the Masculinisation of Agriculture. Nova
Delhi: Secretariat of Diverse Women for Diversity, Research Foundation for
Science, Technology and Ecology, 1998. Disponível em: http://www.nodo50.org/
mujeresred/india-shiva.html. Acesso em: 18 out. 2011.
ZIEGLER, J. Aqueles que violam o direito à nutrição. 2008. (Mimeo.). Disponível em:
http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=5&noticiaId=698. Acesso em: 17
out. 2011.

725
Dicionário da Educação do Campo

SUJEITOS COLETIVOS DE DIREITOS


Maria Lúcia de Pontes

Os movimentos sociais do campo, Como parte da alienação que o pro-


como sujeitos coletivos de direitos e cesso legislativo estimula, deve ser des-
políticas, expressam e reafirmam a ca- tacada a imposição da obrigatoriedade
pacidade transformadora dos homens da aplicação da lei, sem possibilida-
e mulheres do campo, quando se mo- de de questionamento direto pelos
vimentam em marchas e ações coleti- cidadãos, os quais, apesar de excluí-
vas buscando um objetivo comum. E, dos do processo legislativo, aceitam tal
assim, instituem, de forma autêntica, imposição, não importando a falta de
novos direitos, construindo na prática coincidência entre a regra legal e as ne-
experiências transformadoras. cessidades reais do povo.
Direitos podem ser definidos como Como exemplo da obrigatoriedade
poderes/deveres que refletem as necessidades de aplicação de lei injusta, questiona-
de homens e mulheres dentro de uma sociedade da pelos movimentos sociais rurais,
determinada, que ora podem recair sobre citamos a regra que estabelece a proi-
bens materiais (direito de propriedade) bição de vistoria, pelo Instituto Nacio-
ou sobre aspectos da personalidade (di- nal de Colonização e Reforma Agrária
reito ao nome), podendo ainda referir- (Incra), em terra ocupada, no processo
se a princípios humanos (dignidade da de desapropriação para fins de Refor-
pessoa humana). ma Agrária, regra que criminaliza a ação
Para o positivismo jurídico (teoria política da ocupação e representa a pre-
que predomina no pensamento e na miação de proprietários que mantêm a
ideologia do Estado moderno), direi- improdutividade da terra, acirrando os
tos são aqueles reconhecidos e decla- conflitos entre excluídos da terra, pro-
rados em normas jurídicas positivadas, prietários e representantes do Estado.
ou seja, elaboradas por representantes Os direitos não resultam da criação
eleitos para mandatos nas casas legisla- abstrata de homens e mulheres letra-
tivas: Câmaras de Vereadores, Câmaras dos e iluminados, afastados da reali-
de Deputados e Senado Federal. dade social, mas são, enquanto expres-
A afirmação do processo legislati- são das necessidades humanas, os po-
vo como mecanismo exclusivo para a deres/deveres definidos pelas relações que se
criação de direitos contribui para que produzem dentro da sociedade, os quais,
a ordem estabelecida na sociedade seja atravessando o processo legislativo,
mantida e reforçada, pois, em geral, podem se transformar em direito po-
nega-se a capacidade transformadora sitivado ou permanecer na sociedade
das ações diretas dos excluídos, ações como prática social, como é o caso da
motivadas pela realidade social e base- negociação da laje (parte da casa onde
adas nas necessidades reais do povo e fica o telhado) pelos moradores de fave-
que produzem as verdadeiras condi- las, chamado de “direito de laje”, que não
ções para a criação de direitos. tem correspondência em norma legal.

726
Sujeitos Coletivos de Direitos

A sociedade de mercado é composta Reforma Agrária e hoje movimentam o


por proprietários e não proprietários, agronegócio, produziu como resultado
latifundiários e camponeses sem terra, da violência instalada no campo a ne-
exploradores e explorados, incluídos e cessidade de organização dos trabalha-
excluídos, sujeitos coletivos com interesses dores rurais.
diferentes e em geral inconciliáveis, interes- Em resposta à violência produzida
ses que, em confronto, resultam em pela propriedade capitalista da terra, os
conflitos e disputas permanentes. trabalhadores rurais criaram um dos
O exercício de um direito por um principais movimentos de resistência
dos grupos integrantes da sociedade no campo, o Movimento dos Trabalha-
de mercado limita ou exclui o interes- dores Rurais Sem Terra (MST), surgido
se do grupo contrário;; isso resulta em na década de 1980, com o acúmulo das
conflitos e ações de resistência que colocam experiências dos movimentos sociais
o direito em movimento. Exemplifi- do campo, como as Ligas Campone-
cando essa contradição, podemos citar sas. O Movimento dos Trabalhadores Ru-
a ocupação coletiva de uma terra rural, rais Sem Terra instituiu a ação coletiva como
na qual temos cidadãos sem terra que, mola propulsora de transformação e criação
buscando cumprir a ordem constitu- de direitos.
cional da função social da proprieda- Os movimentos sociais do campo,
de, ocupam a terra, limitando com essa quando colocam em ação coletiva os
ação o direito do proprietário capita- camponeses excluídos da terra, reen-
lista de exercer a especulação sobre a contram direitos já reconhecidos abs-
terra ocupada, ou seja, o direito de dar tratamente nas legislações nacionais e
função social a terra com a ação de internacionais, e negados pela prática
ocupação confronta-se com o direito capitalista de mercado. Dessa contra-
de especular do capitalista, conflito dição surgem os conflitos sociais e a
social que com frequência é levado ao afirmação de poder.
Poder Judiciário. A ocupação coletiva de terras é
Os direitos resultam de um proces- uma das principais ações produzidas
so social real e coletivo, e a ação co- pelos movimentos sociais do campo
letiva dos movimentos sociais reafirma enquanto forma instituinte, geradora de
a capacidade transformadora do povo direitos, evidenciando a modalidade co-
em movimento. letiva da propriedade como resposta efi-
A criminalização dos movimentos caz ao enfrentamento da expulsão dos
sociais rurais tem como um de seus pequenos agricultores e trabalhadores
principais objetivos a tentativa de limi- do campo. S
tar a potencialidade transformadora e A força da ação coletiva dos mo-
a capacidade instituinte de direitos das vimentos sociais rurais tem como re-
ações coletivas de resistência;; por isso, sultado concreto o questionamento do
é comum uma maior criminalização em individualismo como solução para as
resposta a uma maior movimentação massas excluídas de poder na socieda-
dos trabalhadores. de de mercado.
A concentração de terras e renda O objetivo da propaganda individua-
no campo, produto da ação coletiva lista é negar a ação coletiva como ação
dos latifundiários, que impediram a política necessária para a produção de

727
Dicionário da Educação do Campo

novas formas de organização social, do bem. No entanto, aduz que


que resultem em relações sociais mais não há uma preocupação com
humanas e solidárias. a justiça distributiva, ou seja, o
Da experiência de ocupação co- cumprimento da função social
letiva vivenciada pelo MST, decorre a não está vinculado a um proje-
seguinte afirmação: propriedade legíti- to de uma sociedade mais justa
ma da terra é o resultado do exercício e igualitária, que proporcione
e da prática dos não proprietários! Ter- oportunidades a todos os cida-
ra abandonada, sem utilização racional dãos. (Saule Junior, Libório e
ou que produza danos para a socieda- Aurelli, 2009, p. 107)
de (plantação ilegal, ou utilização de
mão de obra escrava) descumpre sua Reafirma-se, assim, o papel da ação
função social, portanto é propriedade coletiva dos movimentos sociais para
ilegítima. Nesse caso, a ação política transformar esse requisito da proprie-
do movimento social rural é capaz de, dade em uma bandeira para a emanci-
mediante a ocupação coletiva da terra, pação dos trabalhadores sem-terra.
corrigir a ilegitimidade da propriedade Os movimentos sociais, quando re-
quando os não proprietários utilizam a sistem e enfrentam o conflito social em
terra para plantar alimentos e morar. ações coletivas, encontram no Poder
A propriedade abandonada pe- Judiciário a tentativa de desqualifica-
los proprietários e ocupada pelos não ção do seu poder transformador. Essa
proprietários em ação política e cole- desqualificação se dá com a passagem
tiva transforma-se em propriedade le- do conflito social para o processo
gítima. Podemos afirmar, então, que a judicial, que trata o conflito como exce-
propriedade da terra é legítima quando ção à normalidade, e nesse sentido ele
cumpre sua função social. Por con- é analisado, como caso individual, pelo
sequência, afirmamos também que a Estado-juiz. O Poder Judiciário trata o
propriedade da terra cumpre sua fun- conflito social como conflito localiza-
ção social quando é capaz de gerar au- do e individualizado, apresentado em
tonomia para os trabalhadores rurais, um ambiente estático e formal, local
que passam a retirar da terra ocupada denominado de “processo”, no qual os
os frutos que ela produz, e quando é sujeitos são despidos de suas particula-
utilizada para moradia e trabalho. ridades, vivências e experiências, com
Segundo Saule Junior, Libório e seus nomes apagados e transformados
Aurelli, num estudo sobre a função so- apenas em “partes”: autor e réu. Além
cial apresentado na Série Pensando o disso, o conflito social encontra no Po-
Direito (n. 7/2009), para Celso Antônio der Judiciário a tentativa de desqualifi-
Bandeira de Mello, estudioso do direito, cação de seu poder transformador.
Quando aprisionado no proces-
[...] não basta ser observada a so judicial e levado ao Estado-juiz como
função social da propriedade uma abstração da realidade, o conflito
como um bem que esteja cum- social passa a ser analisado e desqua-
prindo economicamente sua lificado enquanto questionamento das
função, ou seja, a função social regras estabelecidas na sociedade. De-
é vista como a utilização plena pois do processo finalizado, quando o

728
Sujeitos Coletivos de Direitos

juiz afirma “o direito de cada uma das Ocupar todos os espaços de poder
partes do processo”, o conflito deve com ações de resistência representa o
ser compreendido como solucionado exercício necessário para a transforma-
e imediatamente é esquecido em um ção da realidade. Nesse sentido, o espaço
arquivo judicial, valendo e vinculan- do Poder Judiciário, longe de ser um
do apenas os indivíduos que partici- espaço privilegiado do movimento so-
param do conflito original, que res- cial, merece ser enfrentado com serie-
tará aprisionado definitivamente no dade, criando-se redes de apoio jurídico
processo judicial. à direção dos movimentos sociais –
Enquanto sujeito coletivo transfor- como já ocorre com o Poder Legislati-
mador, real e marcado pelas experiên- vo –, com a consciência de que as ações
cias de lutas, o movimento social é o não podem ser tomadas de forma iso-
único sujeito social capaz de desquali- lada, afastando-se as ações diretas, mas
ficar a atividade do Estado-juiz em sua devem se interligar para que produzam
ação de decidir o conflito como caso in- resultados positivos.
dividual. Para que tal desqualificação se Os movimentos sociais e militantes
produza, o conflito deve ser libertado de direitos humanos já utilizam o espa-
do processo judicial estático, com a ço do Poder Legislativo como espaço
proposição pelos movimentos sociais em disputa, buscando garantir que os
de ações externas ao Judiciário que re- direitos que protegem os trabalhadores
qualifiquem o conflito, devolvendo-o e excluídos sejam positivados, virem lei.
para a realidade, por meio de marchas, Vale destacar uma interessante obser-
manifestações de rua e vigílias durante vação sobre esse fenômeno de Carlos
os atos processuais. Miguel Herrera: “a codificação de di-
Os movimentos sociais, ao assu- reitos do homem em uma declaração,
mirem as ações coletivas de denúncia tal como aparece em fins do século
do processo judicial mediante ações XVIII, expressa a tentativa de consti-
de rua, disputam espaço na sociedade. tucionalizar um movimento insurrecio-
Como exemplo da requalificação de con- nal” (2008, p. 11).
flitos aprisionados no processo judi- Os movimentos sociais, com as
cial mediante a ação coletiva dos mo- experiências vitoriosas de suas lutas
vimentos sociais rurais, destaque-se concretas, devem assumir seu lugar de
as manifestações de rua em vigília a destaque na ação de transformar a rea-
julgamentos processuais, numa verda- lidade, contagiando, com suas ações
deira ação transformadora na esfera do coletivas, as disputas travadas nos de-
Poder Judiciário. mais espaços de poder. S
Para saber mais
HERRERA, C. M. Estado, Constituição e direitos sociais. In: SOUZA NETO, C. P. de;;
SARMENTO, D. (org.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais
em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 7-35.
LANZELLOTTI BALDEZ, M. Sobre o papel do direito na sociedade capitalista – ocupações
coletivas: direito insurgente. Petrópolis: Centro de Defesa dos Direitos Humanos,
1989.

729
Dicionário da Educação do Campo

LYRA FILHO, R. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1980.
SAULE JUNIOR, N.;; LIBÓRIO, D.; AURELLI, A. I. (org.). Conflitos coletivos sobre a posse e
a propriedade de bens imóveis. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério
da Justiça, 2009. (Série Pensando o Direito, 7/2009).
SOUSA JUNIOR, J. G. de. Movimentos sociais e práticas instituintes de direito: perspectivas
para a pesquisa sociojurídica no Brasil. Coimbra: Coimbra Editora, 1999.

SUSTENTABILIDADE
Carlos Eduardo Mazzetto Silva

O debate que envolve a noção da ajuntamento de recursos naturais alea-


sustentabilidade passa pelo ascenso e a tórios, e sim um conjunto integrado
popularização do termo desenvolvimento de unidades naturais, que chamamos de
sustentável. Por isso, este verbete está ecossistemas, tal capacidade do planeta
bastante relacionado com verbete an- se expressa concretamente na sustenta-
terior que aborda o DESENVOLVIMENTO bilidade ou insustentabilidade dos ecos-
SUSTENTÁVEL. Assim, a leitura de um é sistemas, pois são os seus fluxos, ciclos,
complementar à leitura do outro, posto elementos e recursos que são atingidos
que as ênfases são distintas: o primei- pela expansão da produção e consumo
ro faz uma crítica do desenvolvimento das sociedades. Como os ecossistemas
sustentável enquanto discurso apro- são complexos, auto-organizados e au-
priado pelo capital na disputa ideoló- torreprodutíveis, a insustentabilidade
gica;; o segundo aborda a sustentabili- pode ser gerada quando a intervenção
dade enquanto atributo da agricultura humana desestrutura esse processo
camponesa e em contraponto ao de- de complexificação, auto-organização
senvolvimento sustentável. e autorreprodução. Nos ambientes tro-
picais, como sabemos, a biodiversidade
Por onde chega o debate joga um papel-chave na estabilidade e
equilíbrio dos ecossistemas. Portanto,
sobre a sustentabilidade já podemos afirmar que a homoge-
Sustentabilidade é um termo que neização das monoculturas é um fator
começa a fazer parte do debate público de simplificação e desestabilização dos
a partir do que podemos chamar de ad- ecossistemas naturais.
vento da questão ambiental. Essa ques-
tão ambiental, que começa a ser anun- Aumentando a escala
ciada nos anos 1960-1970, diz respeito
à capacidade do planeta de sustentar as No entanto, podemos aumentar a
sociedades humanas e seu nível de con- escala desta análise e falar de sociedades
sumo de materiais e energia, e a conse- sustentáveis ou insustentáveis. Se hoje
quente produção crescente de dejetos estamos discutindo a crise ambiental e a
e poluição. Como a natureza não é um problemática da sustentabilidade é por-

730
Sustentabilidade

que determinado modelo dominante antropocêntrica do mundo na qual


de sociedade ameaça a natureza, ou, se o homem é o senhor e dominador
quisermos dizer de outro modo, deter- da natureza.
minada forma de relação sociedade–
natureza nos trouxe a esta crise am- Da agricultura moderna
biental que é, na verdade, socioambien-
industrial ao agronegócio
tal. Estamos falando das sociedades
ocidental-capitalistas que dominaram o global
mundo nos últimos quinhentos anos e A chamada modernização da agri-
do modo industrial de apropriação da cultura é uma expressão da ascensão
natureza que se instituiu, a partir da Re- do modo industrial de apropriação da
volução Industrial, no final do século natureza no campo. Alguns se referem
XVIII e viabilizou enorme aceleração a esse processo como apropriacionismo,
do processo de acumulação de capital, mas aí a referência é à apropriação da
às custas de uma também enorme ca- agricultura pela indústria. Essa apro-
pacidade de transformação de matéria priação está baseada na artificialização
e energia contidas nos ecossistemas e extrema dos agroecossistemas pela in-
em ilhas de recursos geologicamen- trodução de enormes áreas monocul-
te armazenados (petróleo, gás, jazidas turais, com material genético “melho-
minerais etc.). A insustentabilidade é, rado” pela indústria, uso intensivo da
portanto, um problema civilizatório do mecanização e de insumos industriais
tipo de civilização ocidental dominan- sintéticos (fertilizantes químicos, agro-
te, cuja relação com a natureza é guiada tóxicos, rações, antibióticos, hormô-
pelos seguintes fenômenos fundamen- nios etc.). Todos conhecemos os efeitos
tais e associados: socioambientais perversos, fartamente
• perda do caráter sagrado da mãe documentados, dessa modernização.
Terra, que se transforma em Natureza- Ela se expressa muito simbolicamen-
objeto e Natureza-máquina na con- te hoje, nestes tempos de globalização
cepção reducionista e mecanicista econômica, por meio do termo agrone-
da ciência moderna, operadora da gócio, que radicaliza a noção de espaço
divisão do conhecimento em com- rural, e dos recursos naturais nele con-
partimentos estanques;; tidos, como mercadoria. Na sua estra-
• instituição progressiva da mercan- tégia, a paisagem do campo, em vez da
tilização da vida pela lógica e ética diversidade dos sistemas camponeses
próprias do capitalismo (Natureza- tradicionais e da sociabilidade coopera-
mercadoria);; tiva das comunidades, estaria reduzida S
• crescimento econômico acelerado a campos homogêneos e monótonos
da produção e do consumo propi- de monocultivos sem gente.
ciado pela tecnociência moderna Ressalte-se que essa lógica não é
e pela produção industrial, estimula- estritamente agro. Constitui também a
do pela lógica da acumulação de capi- base de diversos complexos da econo-
tal e pelo crescimento populacional;; mia global nas áreas da siderurgia, ce-
• entendimento da natureza como lulose, energia etc. Portanto, para além
algo exterior e inferior à vida hu- do sistema agroalimentar global, o
mana, caracterizando uma visão espaço rural e seus recursos estão a

731
Dicionário da Educação do Campo

serviço de um produtivismo acelerado A definição de Sevilla Guzmán (2000),


e guloso. É uma lógica de desenvolvi- baseada na abordagem agroecológica,
mento que desterritorializa comuni- revela a articulação entre campesina-
dades e culturas e desloca, completa- to e modelos sustentáveis de uso dos
mente, o lugar de produzir e viver do ecossistemas:
lugar de consumo. Os fluxos que ligam
os espaços rurais ao mundo são os O campesinato é a forma de
complexos globais, que demandam as manejo da natureza que, na
commodities do campo para suas cadeias coevolução social e ecológica,
produtivas, as quais devem sustentar a gerou cosmovisões específicas
expansão do modelo de produção e de (quer dizer, uma forma de vida
consumo urbano-industrial. De susten- resultante de uma interpretação
tável, portanto, esse desenvolvimento da relação homem–natureza
não tem nada (Silva, 2008). que estabelece a articulação de
elementos para um uso múltiplo
da natureza), mediante as quais
Modos camponeses de desenvolve processos de produ-
apropriação da natureza ção e reprodução sociais, culturais
e sustentabilidade e econômicos sustentáveis ao
manter as bases bióticas e iden-
Numa lógica contrária a esse mode- titárias nele implicadas. (Apud
lo, os modos camponeses de apropria- Carvalho, 2005, p. 195)
ção da natureza há 10 mil anos (adven-
to da agricultura) vêm desenvolvendo É importante ressaltar que as ca-
estratégias de adaptação diversificada racterísticas assinaladas por Sevilla
aos ecossistemas (Toledo, 1996), nas Guzmán são fruto de um saber local
quais produção e consumo sempre es- (muitas vezes também ancestral) sofis-
tiveram integrados e onde os espaços ticado, oriundo dessa coevolução his-
rurais se constituíam não só em terra tórica. Esse saber foi desprezado e tido
de trabalho, como disse José de Souza como atrasado pela ciência moderna,
Martins (1980), mas também em lu- sendo objeto de políticas de crédito e
gares de vida, em habitats e territórios de extensão rural visando à sua subs-
nos quais natureza e cultura se articu- tituição por métodos moderno-indus-
lam em modos de vida comunitários. triais. Hoje, com a crise ambiental e a
As paisagens camponesas, talvez com ascensão das abordagens etnoecológi-
algumas raras exceções no contexto ca e agroecológica, começa-se a se re-
europeu,1 sempre foram biodiversas, conhecer a importância desses saberes
mesmo nas condições de expropriação locais, também chamados de tradicio-
que marcaram sua história, seja no feu- nais, para a manutenção de paisagens
dalismo, seja no colonialismo, seja ain- e sistemas que conservam a biodiver-
da no capitalismo. Nesses contextos, sidade e as águas. É uma conservação
já está demonstrado que a economia dinâmica, não a concepção estática
camponesa sempre foi de natureza não museológica do mito moderno da nature-
capitalista, baseada no valor de uso e za intocada (Diegues, 1996). Ela se dá
visando à reprodução familiar e comu- no seio de modelos produtivos que de-
nitária (Chayanov, 1981). pendem desses recursos naturais para

732
Sustentabilidade

a sua reprodução. Esses modelos só pescadores, catadores de caranguejo,


serão reprodutíveis se conservarem a apanhadores de flor, faxinalenses etc.
base de recursos que os mantém. É Algumas comunidades, como as que
a ideia da coevolução e da correprodu- chamamos hoje de quilombolas, são
ção simultâneas. Por isso, grupos que etnicamente identificadas.
podemos chamar de camponeses, e que São modos de vida e modelos
são hoje, em geral, chamados de povos socioespaciais-produtivos portadores
ou comunidades tradicionais, vêm se de relações ser humano/sociedade/
tornando os maiores defensores dos natureza moldadas pelas especificida-
principais biomas brasileiros – muitas des socioculturais e ecológicas do lu-
vezes, inclusive, sendo assassinados gar. Sua sustentabilidade está perma-
por causa da disputa com os setores nentemente ameaçada pelo avanço das
predatórios. É o que Martínez Alier formas moderno-industriais de pro-
(1998) chamou de ecologismo de sobrevi- dução de commodities e pelas demandas
vência, em contraste com o ecologismo da por recursos das sociedades urbanas
abundância, praticado por membros da energo-intensivas. Por isso, a questão
classe média urbana que não depen- do direito territorial está, hoje, no cen-
dem diretamente desses recursos para tro dos problemas e das estratégias de
a sua sobrevivência. resistência e reprodução dessas comu-
Por tudo isso, é importante dizer nidades. Com tudo isso e por tudo isso,
que campesinato é uma categoria so- as comunidades camponesas (e tam-
cial genérica que abriga diversas iden- bém as indígenas) são, e poderão ser
tidades específicas de caráter local- muito mais, células implementadoras
territorial, cuja denominação, muitas da noção da sustentabilidade na prática
vezes, refere-as aos ecossistemas de cotidiana, assegurando a conservação
origem ou a algum recurso neles abri- dinâmica e cuidando de ecossistemas
gado e que é estratégico para a sobre- e paisagens diversificadas e produti-
vivência do povo do lugar: seringuei- vas, incrementando a economia local,
ros, ribeirinhos, caiçaras, geraizeiros, gerando segurança alimentar e benefi-
vazanteiros, caatingueiros, sertanejos, ciando, assim, o conjunto da sociedade
pantaneiros, quebradeiras de coco, da qual participam.

Nota
1
Ressalte-se que é o policultivo associado à criação animal que marca os sistemas campone-
ses de produção na Europa pré-modernização da agricultura.
S
Para saber mais
CARVALHO, H. M. O campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes do
desenvolvimento do campesinato no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005.
CHAYANOV, A. V. Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas. In:
GRAZIANO DA SILVA, J; STOLCKE, V. (org.). A questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981.
p. 133-166.
DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.

733
Dicionário da Educação do Campo

MARTÍNEZ ALIER, J. Da economia ecológica ao ecologismo popular. Blumenau: Edifurb,


1998.
MARTINS, J. de S. Expropriação e violência. São Paulo: Hucitec, 1980.
SEVILLA GUZMÁN, E. Sobre el campesinado, la globalización de la economía y el desarrollo
rural. Córdoba: Instituto de Sociología y Estudios Campesinos de la Universidad
de Córdoba–Escuela Técnica Superior de Ingeniería Agronómica y de Montes de
la Universidad de Córdoba, 2000.
SILVA, C. E. M. Envolvimento local e territorialidades sustentáveis: desvelando
a desterritorialização do desenvolvimento. In: WILDHAGEN, C. D. (org.). Diálogos
sociais: reflexões e experiências para sustentabilidade do desenvolvimento do nor-
te e nordeste de Minas Gerais. Belo Horizonte: Sedvan/Idene–Editora Instituto
Mineiro de Gestão Social, 2008. p. 173-203.
TOLEDO, V. M. La apropiación campesina de la naturaleza: un análisis etnoecológico.
1996. (Mimeo.)

734
T
TEMPOS HUMANOS DE FORMAÇÃO
Miguel G. Arroyo

Podemos partir de um dado históri- nares da sociologia, da história, da an-


co: escolas, redes e coletivos de docen- tropologia e da psicologia (Sarmento e
tes e educadores no Brasil e de vários Gouveia, 2008).
sistemas educacionais avançaram para Esses avanços teóricos estão na
reorganizar as escolas, os tempos- base das políticas dos sistemas educa-
espaços, o trabalho e os processos tivos de vários países, que passaram a
de ensino-aprendizagem tendo como reestruturar os tempos, os currículos,
orientação o respeito aos tempos hu- os agrupamentos e os percursos esco-
manos de formação, de vida, de socia- lares respeitando os ciclos-tempos de
lização e de aprendizagens. formação dos educandos. Entre nós, as
A primeira parte deste verbete ana- iniciativas têm ficado por conta de es-
lisa o que leva ao reconhecimento da colas e redes. A Lei de Diretrizes e Ba-
especificidade formadora de cada tem- ses da Educação Nacional (LDB), em
po humano. A segunda parte destaca as seu artigo 23, admite apenas a diversi-
consequências desse reconhecimento dade de formas de organização escolar,
na organização das escolas do campo, sem que exista uma opção política na-
nos currículos e na superação da orga- cional. Isso enfraquece a reestrutura-
nização seriada e multisseriada. ção de nosso sistema escolar com base
nesses avanços teóricos. Há resistências
Bases teóricas dos tempos políticas a superar e é preciso alterar a
estrutura seletiva, reprovadora, de nos-
humanos de formação
so sistema escolar, uma estrutura que
Podemos encontrar bases teóricas tem resistido a formas mais igualitárias
sólidas para o reconhecimento dos e democráticas de organização escolar.
tempos de formação. Lembremos, por As opções por reestruturar as esco-
exemplo, a diversidade de estudos sobre las respeitando os tempos-ciclos huma-
desenvolvimento e formação humana nos têm como fundamento entre nós
(Piaget, Vygostsky, Wallon) que incen- opções político-pedagógicas que radi-
tivam os currículos e a organização dos calizam essas bases teóricas de modo
tempos escolares de modo a garantir a a avançar na construção de uma socie-
formação e o pleno desenvolvimento dade e de um sistema escolar menos
segregadores e mais igualitários.
T
humano intelectual, ético, cultural, das
funções simbólicas, da percepção,
da memória e da imaginação. Educação como humanização
Também têm contribuído para esse
reconhecimento os estudos sobre a A organização por ciclos-tempos
infância, a adolescência e a juventude, de formação nas redes e nas escolas
e os estudos geracionais interdiscipli- tem significado um embate político-

735
Dicionário da Educação do Campo

pedagógico entre as diferentes con- humanizarem plenamente no trabalho


cepções de educação construídas nos e na produção de sua existência. Esse
movimentos sociais, na relação trabalho- direito implica o reconhecimento de
educação, no movimento de educação uma pluralidade de dimensões forma-
e cultura populares, na tradição socia- doras que são produzidas pelos seres
lista... Dar centralidade aos tempos de humanos nas suas relações sociais con-
formação humana carrega uma opção cretas. A retomada do direito à educa-
por uma concepção de educação como ção como direito à formação humana
humanização e pela retomada da edu- plena repõe para a pedagogia e para a
cação, da formação humana, como escola assumirem esses processos de
direito – um direito tão negado aos produção do ser humano como huma-
trabalhadores nas relações sociais e po- no pleno – no trabalho e nas relações
líticas de nossa história. sociais e de produção da existência e na
As políticas autoritárias mercan- educação escolar.
tilizantes conservadoras e neoliberais Nesse sentido, há uma tentativa
vêm reduzindo o direito à educação ao de traduzir, na organização escolar, as
domínio das habilidades e competên- relações entre trabalho-educação e
cias exigidas pelo mercado, ou seja, aos as análises que, nas últimas décadas,
domínios elementares de letramento, vêm marcando a teoria pedagógica, a
contas e noções primárias de ciências formação de professores e as propos-
para a empregabilidade em trabalhos tas pedagógicas de escolas e até as re-
precarizados. A mercantilização e a pre- des (Arroyo, 1998). Essas propostas
carização do trabalho levam a reduzir o incorporam também as concepções do
direito à educação básica a domínios movimento de educação popular, com
elementares de competências escola- sua ênfase na educação como humani-
res. O mercado como determinante da zação (ver PEDAGOGIA DO OPRIMIDO),
sociabilidade humana leva, assim, ao assim como as concepções dos diversos
empobrecimento da formação do tra- movimentos sociais, em sua condição
balhador, o que tem reforçado a orga- de movimentos pedagógicos que rea-
nização hierárquica etapista, seriada e firmam os vínculos entre as lutas pelo
multisseriada, e os currículos utilitaris- trabalho, pela terra, pelo espaço, pe-
tas e pragmatistas dirigidos a avaliações los territórios, pelas identidades cole-
tivas e o direito à formação humana
por resultados para a competitivida-
plena. São avanços políticos na concep-
de, para um trabalho-vida provisório.
ção de educação que passam a orientar
Quando se negam os direitos ao traba-
os currículos, a organização dos tempos-
lho ou quando ele se precariza, nega-
espaços, as didáticas e o material peda-
se ou se precariza o direito à educação
gógico das escolas.
como formação humana plena.
A ênfase no direito à educação
como formação humana plena é uma O viver precarizado dos
opção política que se contrapõe aos educandos e a sua
reducionismos mercantis do trabalho formação plena
e da formação humana e se filia às
pedagogias vinculadas aos interesses Há ainda um dado relevante que
dos trabalhadores, ao seu direito a se incentiva a superação das estruturas

736
Tempos Humanos de Formação

segregadoras de nosso sistema e a re- processos vivenciados pela infância-


tomada do direito à educação como adolescência e pelos jovens e adultos
formação humana plena: as lutas pelo que chegam às escolas das periferias
acesso à escola não só de crianças, urbanas, regionais e do campo? Como
adolescentes, jovens e adultos popu- traduzir esses direitos em organizações
lares, mas também de trabalhadores escolares mais humanas e menos se-
das cidades e dos campos, indígenas, letivas e hierárquicas? Essas têm sido
quilombolas... Esses novos educandos as preocupações políticas das escolas
carregam para as escolas vivências do e redes que se estruturam em ciclos-
trabalho, do desemprego, da sobrevi- tempos de formação para o respeito
vência, do viver precário, mas também à especificidade formadora de cada
de resistências individuais e coletivas. tempo humano.
São processos tensos de formação
que interrogam a teoria pedagógica, A especificidade formadora
as didáticas, os currículos e a docência de cada tempo humano
para o reconhecimento dos processos
formadores e deformadores, humani- Podemos destacar motivos mais
zadores e desumanizadores que edu- radicais nas justificativas para respeitar
candos e educandas vivenciam desde os tempos de vida, socialização e for-
a infância. Cresce a sensibilidade dos mação humanas – justificativas a serem
coletivos de docentes-educadores a encontradas nas concepções pedagógi-
esses processos totais de formação- cas dos movimentos sociais, especifica-
deformação, o que vem inspirando mente do campo.
ações coletivas e propostas pedagó- Se a matriz pedagógica é o trabalho,
gicas que assumem como orientação o fazer a história, as ações coletivas, os
entender e acompanhar como é vivida movimentos nos quais os seres hu-
a formação em cada tempo humano manos se fazem e se formam como
e em cada coletivo geracional, social, humanos, a questão nuclear para a pe-
étnico, racial, de gênero, do campo ou dagogia passa a ser como vivem e par-
da periferia... ticipam da história, do trabalho, das
Os processos pedagógicos e a do- ações coletivas, dos movimentos os
cência são obrigados a assumir a rela- seres humanos em cada tempo humano,
ção entre as vivências efetivas da pro- na especificidade do ser criança, ado-
dução das existências dos educandos lescente, jovem ou adulto.
enquanto seres humanos em formação Os movimentos sociais agem nessa
plena. Há uma especificidade histó- concepção pedagógica, inserindo cada
rica que confere dinâmicas concretas tempo humano, na sua especificidade,
de sociabilidade, de habitação, de tra-
balho, de alimentação e de vida incer-
nas lutas e ações coletivas e nos movi-
mentos sociais. A agricultura familiar,
T
tos, precarizados. À teoria pedagógica por sua especificidade histórica, insere
chegam indagações desestabilizadoras os membros da família camponesa no
que pressionam por entender e acom- trabalho e nos processos produtivos,
panhar esses processos humanos tão respeitando a especificidade de cada
tensos e complexos. O que significa o tempo humano, geracional. Essas es-
direito à educação-humanização nesses pecificidades de inserção no fazer da

737
Dicionário da Educação do Campo

história, nos movimentos, no trabalho currículos e as propostas pedagógi-


e na agricultura camponesa carregam cas dos cursos de Pedagogia da Terra,
também uma especificidade formadora Formação de Professores do Campo e
para as vivências de cada tempo humano. Formação de Gestão das Escolas em
Com essa especificidade formadora relação aos tempos e agrupamentos,
chegam à escola as crianças e os ado- repensando as multisséries, os currícu-
lescentes, os jovens e adultos do cam- los e as didáticas. Incorporar com cen-
po. A questão que se coloca à gestão tralidade, nesses currículos, a exigência
escolar para a organização dos tempos de que os mestres se aprofundem nas
e dos agrupamentos na escola é como especificidades do viver a infância, a
respeitar essas especificidades de ex- adolescência, a juventude e a vida adul-
periências e de formas de inserção no ta no campo, na produção camponesa
trabalho, nas ações coletivas e na pro- e nos movimentos sociais;; que se en-
dução camponesa. Ou como respeitar fatize aquilo que é mais determinante
e incorporar essa formação específica para a conformação de outra organiza-
de cada vivência do seu tempo huma- ção escolar nas escolas do campo e não
no nos tempos escolares, de aprendiza- a discussão superficial sobre se a escola
gem, nos currículos... do campo deve ser seriada ou multis-
seriada. Esse debate superficial e esco-
Uma das questões obrigatórias para
larizado termina por ocultar o debate
a organização de agrupamentos, tem-
mais radical da especificidade das for-
pos, didáticas, aprendizados e do traba-
mas de vivenciar cada tempo humano
lho dos mestres-educadores e dos edu-
na especificidade do trabalho, da pro-
candos será tentar entender como os
dução camponesa, da inserção nos mo-
diversos sujeitos do campo – crianças,
vimentos sociais – formas de inserção/
adolescentes, jovens, adultos – vivem
matrizes formadoras que deveriam ser
essas experiências de trabalho, de so-
conformantes da organização dos pro-
brevivência, de socialização, de apren-
cessos de formação escolar.
dizagens;; como esses tempos, enquanto
processos formadores, são experimen- Se aceitarmos como determinantes
tados na especificidade da inserção no formadoras as vivências do trabalho,
trabalho, na produção camponesa, da inserção na produção e na cultura
na inserção nos movimentos sociais. camponesas e dos movimentos, a ques-
tão central para as propostas de reorga-
nização da educação do campo deverá
Propostas pedagógico- equacionar como é vivido cada tempo
curriculares que confiram humano, e não cada ano biológico,
centralidade aos sujeitos seis, sete anos, nem cada série/ano
escolar, mas cada tempo social, cultu-
Outro aspecto do tema diz respeito ral, formador, socializador, de apren-
às consequências do reconhecimento da dizagens;; como é vivida a infância ou
especificidade formadora na organiza- a adolescência, a juventude ou a vida
ção das escolas do campo e dos seus adulta no campo. Em outros termos, é
currículos e na superação da organi- urgente que os sujeitos sejam reconhe-
zação seriada e multisseriada. Esse cidos como centrais na proposta curri-
reconhecimento exige repensar os cular (Arroyo, 2011).

738
Tempos Humanos de Formação

As organizações seriada ou mul- centralidade dos sujeitos e de suas vi-


tisseriada se legitimam na propos- vências em seus tempos de formação. A
ta de ensino ou no que se ensina e primeira exigência será ir além das crí-
como se ensina. Legitimam-se nos ticas à organização das escolas do cam-
conteúdos, e não nos sujeitos. Por sua po e à sua organização em multisséries;;
vez, a proposta curricular se materiali- ir além do sonho da transformação das
za na organização, seja ela seriada ou escolas multisseriadas em seriadas. Pes-
multisseriada, que ignora os sujeitos e quisas realizadas mostram que a seria-
os segrega. Quando optamos por orga- ção reivindicada como solução para os
nizar as turmas, os tempos-espaços e males da escola multisseriada do cam-
o trabalho tanto de educadores quanto po já está vigente sob a configuração
de educandos respeitando seus tempos da multissérie (Antunes-Rocha e Hage,
humanos de socialização, de formação 2010). Em outros termos, é a lógica se-
e de aprendizagem, temos de repen- riada – que obedece a uma organização
sar não apenas a organização seriada e linear, segmentada, dos conhecimentos
multisseriada, mas construir uma pro- a serem ensinados e aprendidos – pre-
posta pedagógica e curricular centrada sente na organização multisseriada, que
nos educandos e nos educadores. está em crise nas escolas do campo e
As pesquisas sobre as escolas mul- das cidades. Uma lógica estamental, de
tisseriadas (Antunes-Rocha e Hage, domínio de competências hierarquiza-
2010) mostram educadores e educado- das e segmentadas, em correspondên-
ras que trabalham nesse tipo de esco- cia com os domínios que o mercado
las tentando propostas pedagógicas que de emprego exige na desqualificação
incorporam as experiências sociais dos e segregação do trabalho.
educandos: os saberes, a cultura, os mo- Por sua vez os processos de ensino-
dos de lerem seu mundo, de se entende- aprendizagem e as didáticas são reféns
rem como crianças, adolescentes, jovens dessa organização linear-etapista que
ou adultos. São, porém, tentativas ino- determina os conteúdos que, na multis-
vadoras tensas. E essas tensões passam série, as crianças e adolescentes terão de
pela disputa com os conteúdos curricu- dominar em cada série dos cinco anos ini-
lares oficiais, que ignoram os sujeitos e ciais e finais. As avaliações, aprovações-
a especificidade de suas vivências e de retenções, obedecem à mesma lógica de
seus tempos de formação, socialização domínios segmentados.
e aprendizagem, propondo conteúdos Como destacamos neste verbete,
abstratos, descontextualizados. Passam, a crítica exige ser posta na concepção
ainda, pela lógica linear segmentada, de educação empobrecida e mercantil
etapista, seriada inerente a esses conteú- que inspira essa organização da es-
dos e que se traduz e se estrutura na or-
ganização seriada e multisseriada.
cola seriada e multisseriada. Logo, é
preciso focar a questão na retomada T
da concepção de educação como for-
Que organização das mação humana plena que inspira os
escolas do campo? movimentos do campo e a escola do
trabalho. No entanto, é urgente inter-
A questão central é como repensar vir na organização dos agrupamentos,
a organização escolar reconhecendo a dos tempos-espaços e do trabalho em

739
Dicionário da Educação do Campo

que os conteúdos se materializam. Por saberes, socializações, identidades e


onde começar para reinventar os currí- aprendizagens humanas e sociais. Por
culos e a organização da escola? exemplo, na educação da infância, já
se organizam agrupamentos por pro-
1) Começar conhecendo os educan-
ximidade de vivências – de 0 a 3 anos,
dos e as educandas, como vivem seu
de 3 a 6 anos... – em espaços ade-
tempo humano, social e cultural no
quados, com propostas e atividades
campo. Organizar uma proposta pe-
pedagógicas apropriadas à especifici-
dagógica que incorpore as vivências
dade desses tempos da infância, com
de formação em que os educandos
educadoras e educadores capacitados
se encontram e as coloque em diá-
para entender e acompanhar a espe-
logo com saberes, culturas e ciências
cificidade desses tempos humanos
sistematizados em currículos. de formação.
2) Como respeitar essas vivências de O Conselho Nacional de Edu-
cada tempo humano na organiza- cação já aconselha que na educação
ção escolar? O pressuposto é que os fundamental se respeite também a
agrupamentos por coletivos que vi- especificidade do tempo da infân-
venciam determinado tempo per- cia que está nos anos iniciais, sendo
mitem partir de vivências, saberes, o coletivo de 6 a 8 anos agrupado e
socializações, valores e aprendiza- acompanhado como um tempo-
dos comuns ou próximos a serem ciclo específico homogêneo de for-
trabalhados nos currículos esco- mação, assim como orienta que se
lares da educação da infância, da trabalhe com os pré-adolescentes
adolescência, da juventude ou de 9 a 11 anos, ou com os adoles-
da educação de jovens e adultos centes de 12 a 14 anos como co-
(EJA). A articulação dessa diversi- letivos homogêneos, próximos em
dade de processos formadores no experiências sociais, humanas,
trabalho, nos movimentos sociais éticas, culturais.
e na escola, nos cursos de Pedago-
4) Essa organização exige professores-
gia ou nas licenciaturas é uma das
educadores formados para traba-
marcas políticas da Educação do
lhar com a especificidade desses
Campo. A questão que passa a ser
coletivos de educandos, com enten-
central é que tipo de organização
dimento de seus processos de for-
dos agrupamentos, dos tempos e
mação nas vivências fora e dentro
espaços e do trabalho escolar será
das escolas e capacitação para pôr
mais propício a essa centralidade
em diálogo os saberes, valores do
política da Educação do Campo.
trabalho, do seu viver e os saberes
3) Organizar turmas e agrupamentos
dos currículos. Uma diversidade de
para cada um desses tempos, traba-
escolas e redes organiza as turmas e
lhando cada idade como um coleti-
os processos educativos no que diz
vo, e não em separado, e priorizan- respeito à especificidade dos tem-
do o que os aproxima em vivências, pos de formação dos educandos.
saberes, culturas, identidades. Com
isso, ter como orientação pedagógi- Essas formas de organização da
ca a questão de que agrupamentos escola e de suas práticas pedagógicas
são mais próximos em vivências, superam os debates desfocados sobre

740
Tempos Humanos de Formação

converter as multisséries em séries, ou letivos de educandos-educadores por


sobre tentar corrigir os impasses da tempos de formação. Que organização
organização multisseriada, formando do trabalho? Se organizarmos a infân-
professores nas artes difíceis de tra- cia em tempos de 0 a 3 e de 3 a 6 anos,
balhar na lógica seriada em escolas as educadoras e os educadores serão
multisseriadas. É preciso abandonar a organizados e formados para traba-
ênfase no treinamento de professores lhar a especificidade de cada tempo da
como auxílio para novos materiais, en- infância. Se organizarmos a educação
focando os impasses do trabalho na ló- fundamental respeitando a infância, 6
gica seriada dentro da estrutura multis- a 8 anos, como um tempo específico,
seriada e enfatizando a superação dessa ou a pré-adolescência, 9 a 11 anos, ou,
lógica-estrutura, trazendo os educan- ainda, a adolescência, 12 a 14 anos,
dos e seus processos de formação será necessário formar coletivos do-
como estruturantes dos agrupamentos centes especializados na especificidade
e do trabalho de mestres e educandos. formadora de cada um desses tempos.
Quando o número de educandos em
Reestruturar a organização cada tempo humano não comportar
agrupamentos para que cada docente-
do trabalho
educador reúna os educandos em tem-
À concepção parcelada, etapista pos próximos, é possível organizar os
dos conteúdos do currículo e de seu educandos em agrupamentos próxi-
ensino-aprendizagem corresponde uma mos, os quais devem permitir propos-
organização do trabalho docente e tas, atividades e aprendizados, e res-
discente também segmentada, etapis- peitar essas proximidades de tempos de
ta. Cada docente é responsabilizado formação sem cair em tratos por anos,
em solitário por sua turma, seus con- séries e multisséries.
teúdos, sua disciplina, sua aprovação- Organizar o trabalho docente em
reprovação: uma organização do traba- coletivos de tempos de formação signi-
lho esgotante e empobrecedora. Será fica avançar para outra organização do
essa a melhor organização do trabalho trabalho docente e para outra formação
de mestres e alunos para um projeto de do trabalhador docente, um trabalhador
Educação do Campo? As tensões docen- preparado para acompanhar a especifi-
tes, o esgotamento e o empobrecimento cidade de cada tempo de formação dos
aumentam nas escolas seriadas e, com educandos. Avançamos na formação
maior intensidade, nas multisseriadas. de educadores do campo por áreas, mas
Organizar as escolas, os currículos, será necessário ir além: formar por e para
os agrupamentos respeitando a especi- a especificidade de formação de cada
ficidade dos educandos em seus tempos
humanos de formação supõe superar
tempo humano;; formar, ainda, não aulis-
tas solitários, mas profissionais prepara-
T
essa organização solitária, segmentada dos para entender e acompanhar em co-
do trabalho e avançar para formas mais letivo a especificidade do tempo humano
coletivas e mais concentradas em co- dos educandos de que serão educadores.

741
Dicionário da Educação do Campo

Para saber mais


ANTUNES-ROCHA, M. I.; HAGE, S. M. (org.). Escola de direito: reinventando a escola
multisseriada. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
ARROYO, M. G. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011.
______. Trabalho-educação e teoria pedagógica. In: FRIGOTTO, G. (org.). Edu-
cação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 1998.
p. 138-165.
SARMENTO, M.; GOUVEIA, M. (org.). Estudos da infância: educação e práticas sociais.
Petrópolis: Vozes, 2008.
T

TERRA
Paulo Alentejano

Desde os tempos da colonização sesmaria era dado o controle sobre a


portuguesa, terra é sinônimo de poder e área e a tarefa de proteger a terra da co-
riqueza no Brasil e de disputas acirradas biça de outras potências estrangeiras.
pelo seu controle. Existem ainda hoje Entretanto, a concessão de sesma-
no Brasil diversas formas de uso e con- rias, embora fosse a única forma legal
trole da terra, mas a forma dominante é, de acesso à terra na colônia, não foi
sem dúvida, a propriedade privada. a única forma efetiva de ocupação do
Tal realidade, entretanto, é relativa- território colonial pelos portugueses.
mente recente, pois data de meados do sé- Somava-se a ela a posse, praticada por
culo XIX, isto é, tem pouco mais de “homens livres e pobres da ordem es-
150 anos. Durante os mais de trezentos cravocrata” – para evocar o título de
anos de colonização portuguesa e qua- importante livro sobre o período1 –,
se trinta de Império, não houve pro- mas também pelos próprios detentores
priedade da terra no Brasil. Do ponto das sesmarias, que, muitas vezes, am-
de vista legal, o que havia no período pliavam as áreas sob seu controle ao
colonial era o instituto das sesmarias, arrepio da lei. Vale dizer que, enquan-
transladado de Portugal para o Brasil. to os posseiros em geral não tinham a
Segundo esse instituto, a terra, proprie- posse efetiva das terras que ocupavam
dade da Coroa, era cedida mediante o reconhecida legalmente, no caso dos
compromisso do aproveitamento eco- detentores das sesmarias a legislação
nômico em benefício do reino de Por- tratou de viabilizar formas de legaliza-
tugal, sendo, portanto, ao mesmo tem- ção das mesmas.
po instrumento econômico e político. Foi com a Lei de Terras de 1850
Econômico, pois o detentor da sesma- que a propriedade privada da terra é
ria deveria tornar a terra produtiva, de instituída no Brasil – e, com ela, o mer-
forma que ela gerasse riquezas para a cado de terras, uma vez que a terra pas-
Coroa;; político, porque ao detentor da sa a ser acessível apenas por meio da

742
Terra

compra. Entretanto, como já ocorrera CIAL DA PROPRIEDADE, foram objeto de


antes, a Lei de Terras tratou de viabili- desapropriação, e suas terras destina-
zar o reconhecimento legal das terras das à criação de assentamentos rurais,
controladas pelo latifúndio, inauguran- permanecendo sob o controle formal
do uma verdadeira corrida mediante a do Instituto Nacional de Colonização e
grilagem2 de terras no Brasil, pois a lei Reforma Agrária (Incra) (ver REFORMA
estabeleceu um prazo para a legalização AGRÁRIA e ASSENTAMENTO RURAL).
das terras daqueles que comprovassem Há as terras indígenas, resultado
titulação anterior das mesmas. Isso deu do reconhecimento do Estado brasi-
margem à falsificação de documentos, leiro do direito das populações origi-
artificialmente forjados como antigos, nárias que sobreviveram ao genocídio
a fim de assegurar o controle sobre as às terras que outrora ocupavam (ver
terras. Há na historiografia controvér- POVOS INDÍGENAS).
sias em relação aos objetivos dos legis-
Há, ainda, as terras devolutas, cuja
ladores no que diz respeito à criação
denominação tem origem nas terras
da Lei de Terras,3 mas é inegável que
das sesmarias que, por não terem sido
ela resultou na reafirmação do sistema
utilizadas, deveriam ser devolvidas à
latifundiário no Brasil. Se o mecanismo
Coroa, mas que acabaram por se tornar
de acesso à terra fosse o da posse, es-
sinônimo de terras não distribuídas, pú-
cravos libertos e camponeses europeus e
blicas, uma vez que praticamente não
asiáticos que imigraram para o Brasil na
havia devolução de terras não explora-
segunda metade do século XIX e início
das pelos detentores das sesmarias. Do
do século XX poderiam nela se estabele-
ponto de vista legal, o conceito de terra
cer livremente, o que resultaria na demo-
devoluta com o sentido atual foi firma-
cratização da estrutura fundiária brasilei-
do pela Lei de Terras de 1850, cujo ar-
ra;; porém, sem recursos para comprá-las,
tigo 3º diz: “São terras devolutas: 1) as
eles tiveram de se submeter ao controle
que não se acharem aplicadas a algum
latifundiário sobre as terras, agora no
uso público;; 2) as que não se acharem
regime da propriedade privada.
em domínio particular;; 3) as que não
Isso, contudo, não faz da proprieda- se acharem dadas por sesmarias;; e 4) as
de privada a única forma de acesso à ter- que não se acharem ocupadas por pos-
ra no Brasil. Permanece uma realidade se que, apesar de não se fundarem em
do campo brasileiro a existência de ou- título legal, foram legitimadas por esta
tras formas de acesso, uso e controle lei.” (Motta, 2005, p. 469). Em resumo,
da terra no Brasil. Há as terras tradi- terras devolutas são as pertencentes ao
cionalmente ocupadas, isto é, terras Estado e, portanto, estão fora do mer-
de uso comum, ocupadas há tempos cado de terras. Entretanto, o Estado
por comunidades rurais que fazem uso
delas para o extrativismo, a criação de
brasileiro tem pouco domínio sobre as
mesmas, apesar de a Constituição de T
gado e a agricultura, mas em relação às 1988 ter dado um prazo de três anos
quais não têm a propriedade legal (ver para a discriminação das terras devolu-
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS). tas. Assim, muitas delas são hoje objeto
Há as terras da Reforma Agrária, de legítima ocupação coletiva e usufru-
latifúndios que, por não cumprirem o to por populações camponesas, mas
preceito constitucional da FUNÇÃO SO- outras tantas são objeto de grilagem.

743
Dicionário da Educação do Campo

Terras griladas são aquelas que indicando o crescimento da estrangei-


foram apropriadas ilegalmente. A gri- rização das terras brasileiras. Diante
lagem, como vimos, prática arraigada da repercussão política negativa dessas
na história agrária brasileira, tem sido medidas, o governo, por meio da Advo-
impulsionada nos últimos anos por cacia Geral da União (AGU), reto-
atos governamentais, como os levados mou procedimentos de controle sobre
a cabo pelo Governo Luiz Inácio Lula a aquisição de terras por estrangeiros
da Silva (medidas provisórias nº 422 e que haviam sido abandonados desde
nº 458), que legalizam processos frau- 1998, mas com muito pouco resultado
dulentos de apropriação de terras, so- prático. Afinal, o parecer nº LA-01,
bretudo na Amazônia. de 19 de agosto de 2010, retoma a lei
Existe, ainda, o arrendamento como nº 5.709, de 7 de outubro de 1971, que
forma de acesso à terra no Brasil, estabelece o limite máximo de uma
subdividindo-se em duas modalidades: propriedade de 50 módulos (art. 3º) e o
arrendamento de pequenas áreas por limite para a soma das propriedades de
trabalhadores rurais sem-terra ou com um quarto da área de um mesmo mu-
pouca terra;; e arrendamento de gran- nicípio (art. 12), o que, diante da imen-
des extensões de terra por empresários sidão de alguns municípios brasileiros
e empresas. Em ambos os casos, esta- e da inexistência de um limite para o
mos diante da apropriação da RENDA DA número de propriedades em nome de
TERRA pelos proprietários fundiários, uma mesma pessoa ou empresa, pou-
mas no caso das pequenas áreas, trata- co significa. Além do mais, a legislação
se de um mecanismo de exploração brasileira atual prevê que uma empresa
a que é submetido o arrendatário, ao aberta no Brasil, independentemen-
passo que, no caso dos capitalistas, te da origem de seus donos ou de seu
trata-se de uma estratégia econômica capital, é considerada empresa brasi-
relacionada com os custos elevados de leira;; assim, as terras controladas di-
aquisição da propriedade da terra. retamente pelo capital estrangeiro são
Por último, há que se registrar o seguramente muito maiores do que os
crescente processo de estrangeiriza- dados do Incra registram.
ção da propriedade da terra no Brasil. Em síntese, o que se observa em
Embora do ponto de vista percentual relação à terra no Brasil é uma comple-
ainda seja reduzida a participação de xa realidade que envolve, de um lado,
estrangeiros e empresas estrangeiras múltiplas formas de acesso coletivo e
no controle das terras no Brasil, ocorre comunitário, e lutas pelo seu contro-
um evidente crescimento dessa parti- le democrático, no que diz respeito a
cipação. Segundo Sauer e Leite (2010), terras indígenas, quilombolas, tradicio-
havia, em 2008, 34.632 imóveis regis- nalmente ocupadas ou ocupadas pelos
trados em nome de estrangeiros no ca- movimentos sociais em luta pela Refor-
dastro do Incra, num total de 4.037.667 ma Agrária;; e, de outro, a reafirmação
hectares. Isso significa pouco mais de de formas monopolistas de controle da
0,6% dos imóveis e 0,7% da área ca- propriedade da terra no Brasil, favore-
dastrada no Incra. Porém, após essa cidas por ações das diversas esferas do
data proliferaram notícias sobre com- Estado brasileiro, seja quando nega a
pra de terras por estrangeiros no Brasil, titulação de terras indígenas, rejeita o

744
Terra

reconhecimento de terras quilombolas propriedade de quem utiliza mão de


e não legitima terras tradicionalmente obra escrava.
ocupadas, seja quando não desapropria Portanto, mais de meio século após
para fins de Reforma Agrária as terras o início da colonização portuguesa,
que descumprem a função social, fa- terra continua sendo sinônimo de po-
vorece a grilagem de terras, garante a der e riqueza concentrados nas mãos
manutenção de latifúndios improduti- de poucos no Brasil, e não necessaria-
vos intocados e preserva o direito de mente de brasileiros.

Notas
1
O livro Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, escrito em
1964, é um clássico da literatura brasileira do período.
2
A denominação “grilagem” vem da prática recorrente à época de colocar papéis novos em
gavetas com grilos para que as secreções desses animais amarelecessem o papel, dando aos
documentos a aparência de antigos.
3
Para melhor compreensão dessa polêmica, ver, entre outros, Martins, 1990 e Silva, 1996.

Para saber mais


BRASIL. Lei nº 5.709, de 7 de outubro de 1971: regula a aquisição de imóvel rural por
estrangeiro residente no país ou pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar
no Brasil, e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1971. Dis-
ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5709.htm. Acesso em:
27 out. 2011.
______. ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Parecer nº LA-01, de 19 de agosto de
2010. Brasília: Advocacia Geral da União, 2010. Disponível em: http://www.
agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/NormasInternas/AtoDetalhado.
aspx?idAto=258351&ID_SITE. Acesso em: 27 out. 2011.
FRANCO, M. S. de C. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Editora
da Unesp, 1997.
MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1990.
MOTTA, M. (org.). Dicionário da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SAUER, S.;; LEITE, S. P. A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil. Carta
Maior, São Paulo, 20 dez. 2010. T
SILVA, L. O. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

745
Dicionário da Educação do Campo

TERRITÓRIO CAMPONÊS
Bernardo Mançano Fernandes

Tratar do território camponês nem (Marques, 2000 e 2008). Esse território


sempre é uma tarefa simples, pois a pode ser analisado como uma unida-
noção de território ensinada nas esco- de econômica, como o fez Chayanov
las e universidades refere-se, predomi- (1974), ao estudar a sua organização
nantemente, ao espaço de governança, a partir da lógica do trabalho familiar.
ou seja, ao território como espaço de Desde uma referência absoluta, como
gestão do Estado em diferentes escalas lugar da unidade familiar, até uma re-
e instâncias: federal, estadual e munici- ferência relativa, como uma região,
pal. De fato, essa noção de território é pode-se falar em territórios camponeses
fundamental;; é o ponto de partida para de várias escalas – como o Nordeste, o
pensarmos outros territórios que são, ao maior território camponês do país, consi-
mesmo tempo, frações desse território da derando que na região se concentra o
nação, ou unidades que possuem caracte- maior número de famílias camponesas
rísticas próprias, resultantes das diferentes do Brasil.
relações sociais que os produzem (Oliveira, Pode-se dizer, então, que o território
1991). Desde essa compreensão, pode- camponês é uma unidade espacial, mas
mos analisar diferentes tipos de territórios também é o desdobramento dessa uni-
que estão em confronto permanente, porque dade, caracterizada pelo modo de uso
são espaços em que essas relações sociais se desse espaço que chamamos de território,
realizam (Fernandes, 2009). por causa de uma questão essencial que
O território camponês é o espaço de é a razão de sua existência. A unidade es-
vida do camponês. É o lugar ou os lugares pacial se transforma em território camponês
onde uma enorme diversidade de cul- quando compreendemos que a relação
turas camponesas constrói sua existên- social que constrói esse espaço é o traba-
cia. O território camponês é uma unidade lho familiar, associativo, comunitário,
de produção familiar e local de residên- cooperativo, para o qual a reprodução da
cia da família, que muitas vezes pode família e da comunidade é fundamental. A
ser constituída de mais de uma família. prática dessa relação social assegura a
Esse território é predominantemente existência do território camponês, que,
agropecuário, e contribui com a maior por sua vez, promove a reprodução
parte da produção de alimentos saudá- dessa relação social. Essas relações so-
veis, consumidos principalmente pelas ciais e seus territórios são construídos
populações urbanas. e produzidos, mediante a resistência,
O território camponês entendido como por uma infinidade de culturas campo-
fração ou como unidade é o sítio, o lote, nesas em todo o mundo, num processo
a propriedade familiar ou comunitária, de enfrentamento permanente com as
assim como também é a comunidade, o relações capitalistas.
assentamento, um município onde pre- Em sua quase totalidade, a produ-
dominam as comunidades camponesas ção camponesa está subordinada ao

746
Território Camponês

mercado capitalista;; é ele que determi- mesmo que distante de sua re-
na os preços de modo a que as empre- gião de origem. É por isso que
sas capitalistas se apropriem de parte boa parte da história do campe-
da renda dos produtores familiares. sinato sob o capitalismo é uma
Nessa condição de subalternidade, a história de (e)migrações. (2007,
maioria absoluta do campesinato brasi- p. 11)
leiro entrega a riqueza produzida com
seu trabalho ao capital, vivendo em si- É importante enfatizar que a resis-
tuação de miséria. tência camponesa é responsável por
Essa miséria é gerada cotidiana- sua (re)criação no enfrentamento per-
mente pelas relações capitalistas, que, manente com o capitalismo. Criação
depois de se apropriarem da riqueza e recriação acontecem em diferentes
produzida pelo trabalho familiar cam- conjunturas. Um exemplo é a recriação
ponês, também se apropriam de seu camponesa no Paraguai, onde parte
território. Ao perder a propriedade, da população expulsa da terra segue
seu espaço de vida, seu sítio, sua ter- lutando para reconquistar seu territó-
ra e território, a família camponesa é rio (Kretschmer, 2011). Outro exem-
desterritorializada. Como reação a esse plo é a criação camponesa no Brasil,
processo, ocorrem a luta pela terra onde a maior parte da população que
e as ocupações, na tentativa de criação e ocupa terra vive na cidade há décadas
recriação da condição camponesa: cam- (Fernandes, 2000 e 2009). Entende-se
pesinato e território são indissociáveis, e como recriação a luta de uma popula-
a separação entre eles pode significar a ção camponesa para voltar à terra;; já
destruição de ambos. a criação ocorre quando uma popula-
ção urbana se organiza, em diversos
A existência do campesinato sem
movimentos camponeses, na luta pela
território é muito conhecida em todo o
terra. Sem dúvida, o crescimento vege-
mundo, por meio das distintas formas
tativo da população camponesa é tanto
de luta pela terra. No Brasil, o Movi-
criação quanto recriação.
mento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) é uma das mais expres- Criação e recriação significam ter-
sivas referências da luta de resistência ritorialização e reterritorialização do
camponesa pela terra e por territórios campesinato, ao passo que a destruição
(Fabrini, 2002). Terra e território são significa a sua desterritorialização. É
espaços e recursos, condições e possi- na formação que acontece a territoria-
bilidades de criação ou recriação e de lização do campesinato. Desde as lu-
desenvolvimento da população campo- tas das Ligas Camponesas até as lutas
nesa (Paulino e Almeida, 2010;; Moreira, do MST, por exemplo, pela conquista
de frações do território brasileiro que
2008). E, de acordo com Oliveira:
denominamos de latifúndios, lutas nas T
O camponês deve ser visto quais algumas dessas frações são trans-
como um trabalhador que, mes- formadas em assentamentos, acontece
mo expulso da terra, com fre- a formação do território camponês.
quência a ela retorna, ainda que Simultaneamente a esse processo de
para isso tenha que (e)migrar. formação e territorialização do cam-
Dessa forma, ele retorna à terra pesinato, muitas famílias camponesas

747
Dicionário da Educação do Campo

são expulsas, expropriadas, ou seja, são camponês do território capitalista –


desterritorializadas. territórios com lógicas e processos
Além do processo territorialização- distintos, e que constroem diferentes
desterritorialização-reterritorialização modelos de desenvolvimento territo-
(T-D-R), que representa a essência da rial. Porém, embora o território cam-
resistência do campesinato no enfren- ponês subsista subordinado às relações
tamento com o capital, ocorre também capitalistas, sua existência é garantida
o processo de monopólio do território pelo trabalho familiar, cooperativo, as-
camponês pelo capital (Oliveira, 1991) sociativo e por outras formas de rela-
ou da territorialidade do capital em ções não capitalistas. O grande desafio
território camponês (Fernandes, 2009;; do campesinato é manter sua sobera-
Fernandes, Welch e Gonçalves, 2010). nia desenvolvendo seu território por
Exemplo concreto disso é o denomina- meio de sua autonomia relativa e do en-
do processo de “integração” mediante frentamento à hegemonia do capital.
o qual as empresas capitalistas subor- De acordo com o Censo Agrope-
dinam o território camponês para a cuário de 2006 (Instituto Brasileiro de
produção de commodities. Nesse caso, Geografia e Estatística, 2009), o Brasil
o capital impõe um modelo produtivo tem 851.487,659 hectares, tendo utiliza-
monocultor, impedindo que a família do 330 milhões de hectares para a pro-
camponesa pratique a policultura. dução agropecuária no período 1996-
Ao analisarmos esses processos, 2006. A área agricultável representou
percebemos a existência de uma in- 375 milhões de hectares no período
tensa disputa territorial, que se renova 1975-1985 – uma das maiores áreas
a cada dia. A disputa contra o capital agricultáveis do mundo –, o que signi-
se intensificou a partir da organização fica que o Brasil utiliza de 39% a 44%
do agronegócio, com a reunião de um de seu território na produção agrope-
complexo de sistemas – agropecuá- cuária. Quando comparamos a agricul-
rio, industrial, mercantil, tecnológico, tura camponesa com o agronegócio,
financeiro e ideológico – que está se observamos enorme desigualdade ter-
territorializando sobre os latifúndios, ritorial rural. O mesmo censo registrou
desterritorializando o campesinato. A 5.175.489 estabelecimentos, sendo que
produção do território do capital acon- 84,4% deles (4.367.902) são unidades
tece através das relações capitalistas. As familiares e 15,6% (805.587) são em-
relações de produção capitalistas des- presas capitalistas. A área total das uni-
troem as relações de produção não dades camponesas era de 80.250.453
capitalistas (Oliveira, 1991), ou seja, as hectares e a área total dos estabeleci-
relações de trabalho familiar, relações mentos capitalistas era de 249.690.940
que sustentam a maior parte dos terri- hectares. Embora o agronegócio ou a
tórios camponeses (Fernandes, 2008). agricultura capitalista tenham utilizado
Entre as inúmeras referências que 76% da área agricultável, o valor bruto
podem ser utilizadas na definição de anual da produção foi de 62%, ou 89
território camponês, o trabalho fami- bilhões de reais, ao passo que o valor
liar, por ser estrutural, é uma das mais bruto anual da produção da agricultura
importantes. A organização familiar do camponesa foi de 38% ou 54 bilhões
trabalho e o conjunto de características de reais, utilizando apenas 24% da
relacionado a ela diferencia o território área total.

748
Território Camponês

Embora utilizando apenas 24% As diferenças entre o agronegócio


da área agrícola, a agricultura campo- ou a agricultura capitalista e a agri-
nesa reúne 74% do pessoal ocupado: cultura camponesa também revelam
12.322.225 pessoas;; já o agronegócio diferentes formas de uso dos territó-
emprega em torno de 26%: 4.245.319 rios: enquanto para o campesinato a
pessoas. Essa desigualdade fica mais terra é lugar de produção, de moradia
evidente quando observamos que a e de construção de sua cultura, para
relação pessoa/hectare nos territórios o agronegócio a terra é somente um
do agronegócio é de apenas duas pes- lugar de produção de mercadorias,
soas para cada 100 hectares, enquanto do negócio. E essas são característi-
nos territórios camponeses a relação é cas essenciais para conceber o cam-
de quinze pessoas para cada 100 hec- pesinato e o agronegócio como dife-
tares. Essa diferença mostra que, além rentes modelos de desenvolvimento
de o campesinato utilizar maior núme-
territorial, os quais, por isso, criam
ro de pessoas no trabalho – porque a
territórios distintos.
sua reprodução significa a reprodução
de sua população –, a maior parte das Território camponês é um con-
pessoas que trabalham na agricultura ceito importante para entender a sua
camponesa vive no campo. A lógica do existência. Inseparáveis, são destruí-
agronegócio é diminuir cada vez mais dos e recriados pela expansão capita-
o número de pessoas no trabalho, in- lista, mas também se fazem na secular
tensificando a mecanização, a fim de luta pela terra, na qual o camponês luta
garantir a competitividade. para ser ele mesmo.

Para saber mais


CHAYANOV, A. V. La organización de la unidad económica campesina. Bueno Aires:
Nueva Visión, 1974.
FABRINI, J. E. Os assentamentos de trabalhadores rurais sem-terra do Centro-Oeste/PR
enquanto território de resistência camponesa. 2002. Tese (Doutorado em Geografia) –
Programa de Pós-graduação em Geografia, Faculdade de Ciências e Tecnologia,
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FERNANDES, B. M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
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(org.). Campo, políticas públicas e educação. Brasília: Incra/MDA, 2008. V. 7, p. 39-66.
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Territórios e territorialidades: teoria, processos e conflitos. São Paulo: Expressão T
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______; WELCH, C. A.; GONÇALVES, E. C. Agrofuel Policies in Brazil: Paradigmatic
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749
Dicionário da Educação do Campo

KRETSCHMER, R. La disputa por la tierra y reforma agraria en Paraguay. Boletim


Dataluta, Nera, Presidente Prudente, n. 39, mar. 2011. Disponível em: http://
www2.fct.unesp.br/grupos/nera/boletimdataluta/boletim_dataluta_3_2011.
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MARQUES, M. I. M. De sem-terra a “posseiro”: a luta pela terra e a construção do
território camponês no espaço da Reforma Agrária – o caso dos assentados nas
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de Pós-graduação em Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
______. A atualidade do uso do conceito de camponês. Revista Nera, Presidente
Prudente, n. 12, p. 57-67, 2008.
MOREIRA, C. Vida e luta camponesa no território: casos onde o campesinato luta,
marcha e muda o território capitalista. 2008. Tese (Doutorado em Geografia) –
Programa de Pós-graduação, Departamento de Geografia, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
OLIVEIRA, A. U. Modo capitalista de produção, agricultura e Reforma Agrária. São Paulo:
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______. Agricultura camponesa no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.
PAULINO, E. T.;; ALMEIDA, R. A. Terra e território: a questão camponesa no capitalis-
mo. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO


Gaudêncio Frigotto
Maria Ciavatta

A compreensão do sentido dado compra e venda da força de trabalho,


ao trabalho como princípio educativo ou pela posição de intelectuais do cam-
dentro da visão da formação humana po crítico que, por não trabalharem
integral de Marx e outros pensadores as contradições, veem no trabalho sob
é fundamental para os movimentos o capitalismo pura negatividade.
sociais do campo e da cidade e para Em uma concepção dialética, por
todos aqueles que lutam pela superação ser a forma mediante a qual, em qual-
da exploração humana. É importante quer tempo histórico, se define o modo
também para, ao mesmo tempo, não humano de existir, criando e recriando
nos enganarmos pelas orientações da o ser humano, mesmo nas formas mais
Organização Internacional do Traba- brutais da escravidão, o trabalho hu-
lho (OIT), cuja preocupação na proi- mano não é pura negatividade. Mesmo
bição do trabalho infantil, por exem- o escravo, ainda que não reconhecido
plo, está na concorrência em relação à como tal e tomado como um animal,

750
Trabalho como Princípio Educativo

como um meio de produção, é um mo histórico, no qual se parte do traba-


ser humano que não se reduz a obje- lho como produtor dos meios de vida
to e cria realidade humana. Não fosse tanto nos aspectos materiais quanto
assim, teria sido impossível superar as culturais – ou seja, de conhecimento,
relações escravocratas e feudais, e o de criação material e simbólica e de
capitalismo seria eterno. for mas de sociabilidade (Marx e
Princípios são leis ou fundamentos Engels, 1979;; Ciavatta, 2009).
gerais de uma determinada racionali- Sabemos que não tem sido esta a
dade, princípios dos quais derivam leis compreensão do trabalho até o pre-
ou questões mais específicas. No caso sente no interior das relações sociais
do trabalho como princípio educativo, vigentes, em que uma classe social do-
trata-se de compreender a importância minante explora o trabalho das demais.
fundamental do trabalho como princí- Mesmo assim, Marx vai nos mostrar
pio fundante na constituição do gênero que no processo histórico foram sen-
humano. Na construção da sociedade, do suplantadas formas de explora-
cabe interiorizar desde a infância o fato ção do trabalho. O capitalismo, por
de que todo ser humano, enquanto ser exemplo, para se afirmar, teve de su-
da natureza e, ao mesmo tempo, distin- plantar as relações de trabalho escra-
to dela, não pode prescindir de, por sua vocratas e servis. No entanto, como
ação, sua atividade física e mental, se gerou uma sociedade de classes
seu trabalho, retirar da natureza seus e de exploração, a tarefa crítica, agora, é
meios de vida. A afirmação remete à superar as relações de trabalho sob
produção do ser humano como um ser o próprio capitalismo.
da natureza, mas também como produ- Historicamente, o ser humano se uti-
to da sociedade e da cultura de seu tem- liza dos bens da natureza pelo trabalho
po. Trata-se, então, de, no processo de e, assim, produz meios de sobrevivên-
socialização, afirmar, o entendimento cia e conhecimento. Posto a serviço de
do meio de produção e reprodução da outrem, no entanto, nas formas sociais
vida de cada ser humano – o trabalho – de dominação, o trabalho ganha um
como um dever e um direito em fun- sentido ambivalente. É o caso tanto das
ção exatamente do seu caráter humano. sociedades antigas, e suas formas servis
Tal interiorização é fundamental, como e escravistas, quanto das sociedades mo-
sublinha Gramsci (1981), para não for- dernas e contemporâneas capitalistas.
mar pessoas que se comportem como Por isso, além dessa questão mais
mamíferos de luxo, vale dizer pessoas que geral, o que se há de considerar é o tra-
acham natural viver do trabalho dos balho na sociedade moderna e contem-
outros, explorando-os. porânea, na qual a produção dos meios
Daí deriva a relação entre o traba-
lho e a educação em todas as suas for-
de existência se faz dentro do capita-
lismo. Este sistema se mantém e se re-
T
mas, em que se afirma o caráter forma- produz pela apropriação privada de um
tivo do trabalho e da educação como tempo de trabalho do trabalhador, que
ação humanizadora mediante o desen- vende sua força de trabalho ao empre-
volvimento de todas as potencialidades sário ou empregador, o detentor dos
do ser humano. Seu campo específi- meios de produção. O salário ou remu-
co de discussão teórica é o materialis- neração recebida pelo trabalhador não

751
Dicionário da Educação do Campo

contempla o tempo de trabalho exce- tal investido inicialmente pelo capita-


dente ao valor contratado, a mais-valia, lista (Marx, 1980, cap. 1).
que é apropriada pelo capital, confor- Este é o fenômeno do fetiche da mer-
me expõe longamente Marx (1980).1 cadoria, o seu caráter misterioso, como
Em termos cronológicos, esta am- diz Marx (1980), que provém da pró-
bivalência do termo ganha forma a pria forma de produzir valor, em que
partir do século XVI, se considerarmos “a igualdade dos trabalhos humanos
o Renascimento, o nascimento das fá- fica disfarçada sob a forma da igual-
bricas e a transformação do sentido da dade dos produtos do trabalho” (ibid.,
palavra trabalho como a mais elevada p. 80). Esta separação do trabalhador de
atividade humana, ou a partir do século seu próprio fazer é o que Marx (2004)
XVIII, se considerarmos o industrialis- chamou de alienação (ou estranhamento,
mo e a Revolução Industrial, nos seus dependendo da interpretação do tradu-
primórdios na Inglaterra (De Decca, tor do alemão). O conceito veio a ser
1985;; Iglesias, 1982). desenvolvido posteriormente por au-
Marx realizou o mais completo es- tores marxistas, entre os quais os mais
tudo entre os economistas que o prece- destacados são Lukács e Gramsci.
deram e a mais aguda crítica ao modo O trabalho como princípio educati-
de produção capitalista e às contradi- vo ganha nas escolas a feição de princí-
ções implícitas nas relações entre o tra- pio pedagógico, que se realiza em uma
balho e o capital. O autor desenvolveu dupla direção. Sob as necessidades do
os conceitos de valor de uso e valor capital de formação da mão de obra para
de troca presentes na mercadoria. Os as empresas, o trabalho educa para a
valores de uso são os objetos produzi- disciplina, para a adaptação às suas for-
dos para a satisfação das necessidades mas de exploração ou, simplesmente,
humanas, como bens de subsistência e para o adestramento nas funções úteis
de consumo pessoal e familiar. Defi- à produção. Sob a contingência das
nem-se pela qualidade, são as diversas necessidades dos trabalhadores, o tra-
formas de usar as coisas, de transfor- balho deve não somente preparar para
mar os objetos da natureza, gerando o exercício das atividades laborais –
cultura e sociabilidade. Porém, esses para a educação profissional nos ter-
mesmos objetos, as mesmas mercado- mos da lei em vigor –, mas também
rias, que têm uma existência histórica para a compreensão dos processos
milenar, quando se tornam objeto técnicos, científicos e histórico-sociais
de troca, representando quantidades que que lhe são subjacentes e que susten-
se equivalem a outras, um tempo de tam a introdução das tecnologias e da
trabalho que tem um equivalente em organização do trabalho.
salário, inserem-se em relações sociais No Brasil, desde o início do sé-
de outra natureza. Criam-se vínculos de culo XX, com a criação das Escolas
submissão e exploração do produtor de Aprendizes e Artífices em 1909, há
e de dominação por parte de quem evidência histórica da introdução do
se apropria do produto e do tempo de trabalho (das oficinas, do artesanato,
trabalho excedente. Este gera certa dos trabalhos manuais) em instituições
quantidade de valor que vai propiciar educacionais com a finalidade de pre-
a acumulação e a reprodução do capi- parar trabalhadores para a produção

752
Trabalho como Princípio Educativo

industrial e agrícola. E houve a expe- gime comunista da revolução socialista


riência socialista do início do mesmo de 1917 na Rússia, que, tendo por base
século, introduzindo na escola a EDU- a obra de Marx, buscava a combinação
CAÇÃO POLITÉCNICA com o objetivo da entre instrução e trabalho. Segundo
formação humana em todos os seus Manacorda, o marxismo reconhece a
aspectos – físico, mental, intelectual, “função civilizadora do capital”;; não
prático, laboral, estético e político – e rejeita, antes aceita “as conquistas
combinando estudo e trabalho. ideais e práticas da burguesia no campo
Diante da penúria e das más condi- da instrução [...]: universalidade, laici-
ções de vida e de trabalho de operários dade, estatalidade, gratuidade, renova-
e trabalhadores do campo, ao final da ção cultural, assunção da temática do
ditadura civil-militar, nos anos 1980, trabalho, como também a compreen-
foram discutidas as propostas da edu- são dos aspectos literário, intelectual,
cação na Constituinte de 1988 e os ter- moral, físico, industrial e cívico” (1989,
mos da nova Lei de Diretrizes e Bases p. 296). Porém Marx faz dura crítica à
da Educação Nacional (LDB). Os pes- burguesia por não assumir de forma ra-
quisadores e educadores da área de tra- dical e consequente a união instrução–
balho e educação tiveram de enfrentar trabalho (ibid., p. 296).
uma questão fundamental: se o traba- O Manifesto comunista é claro quando
lho pode ser alienante e embrutecedor, recomenda: “educação pública e gra-
como pode ser um princípio educativo, tuita para todas as crianças. Abolição
humanizador, de formação humana? do trabalho infantil nas fábricas na sua
Vários autores se debruçaram sobre forma atual. Combinação da educação
o tema, porque se tratava de defender com a produção material etc.” (Marx
uma educação que não tivesse apenas e Engels, 1998, p. 31). Em O capital,
fins assistenciais, moralizantes, como Marx explicita a ideia de educação po-
as primeiras escolas de ensino indus- litécnica ou tecnológica:
trial. Era preciso também que ela não
se limitasse a preparar para o trabalho Do sistema fabril, como expõe
nas fábricas, a exemplo da iniciativa do pormenorizadamente Robert
Sistema Nacional de Aprendizagem Owen, brotou o germe da edu-
Industrial (Senai), criado no governo cação do futuro, que combinará
de Getúlio Vargas, em 1943. Criticava- o trabalho produtivo de todos
se, ainda, o tecnicismo voltado ao os meninos além de certa ida-
mercado de trabalho, a adoção do in- de com o ensino e a ginástica,
dustrialismo pelo sistema das Escolas constituindo-se em método de
Técnicas Federais (ETNs), criado no elevar a produção social e único
mesmo período Vargas – as ETNs tor-
naram-se Centros Federais de Educa-
meio de produzir seres huma-
nos plenamente desenvolvidos.
T
ção de Educação Tecnológica (Cefets) e, (1980, p. 554;; grifos nossos)
mais recentemente, Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia (Ifets). Assim sendo, a discussão sobre
De outra parte, a ideia de educação o trabalho como princípio educativo
politécnica sofria ataques por sua ins- sempre esteve associada à discussão
piração socialista, implantada pelo re- sobre a politecnia e sua viabilidade

753
Dicionário da Educação do Campo

social e política no país. Essa discus- Opondo-se à concepção capitalista


são e sua expressão político-prática burguesa que tem por base a fragmen-
retornaram nos anos neoliberais de tação do trabalho em funções especia-
1990, com a exaração do decreto lizadas e autônomas, Saviani defende a
nº 2.208/1997. Contrariando a LDB politecnia, que
(lei nº 9.394/1996), segundo a qual a
educação “tem por finalidade o pleno [...] postula que o trabalho de-
desenvolvimento do educando, seu senvolva, numa unidade indis-
preparo para o exercício da cidadania e solúvel, os aspectos manuais e
qualificação para o trabalho” (art. 2º), intelectuais. [...] Todo trabalho
implantou-se a separação entre o en- humano envolve a concomitân-
sino médio geral e a educação pro- cia do exercício dos membros,
fissional técnica de nível médio. Nos das mãos e do exercício mental,
anos 2000, em condições políticas po- intelectual. Isso está na própria
lêmicas, o governo exarou o decreto origem do entendimento da rea-
nº 5.154/2004, que revogou o ante- lidade humana, enquanto consti-
rior e abriu a alternativa da formação tuída pelo trabalho. (1989, p. 15)
integrada entre a formação geral e a
educação profissional, técnica e tec- Frigotto argumenta em dois senti-
nológica de nível médio, determinação dos. Primeiro, faz a crítica à ideologia
que foi incorporada à LDB pela lei cristã e positivista de que todo traba-
nº 11.741/2008. lho dignifica o homem: “Nas relações
Do ponto de vista político-pedagó- de trabalho onde o sujeito é o capital e
gico, tanto a conceituação do trabalho o homem é o objeto a ser consumido,
como princípio educativo quanto a de- usado, constrói-se uma relação educa-
fesa da educação politécnica e da for- tiva negativa, uma relação de submis-
mação integrada formulada por edu- são e alienação, isto é, nega-se a pos-
cadores brasileiros, pesquisadores da sibilidade de um crescimento integral”
área de trabalho e educação, têm suas (1989, p. 4). Segundo, preocupa-se com
bases teórico-conceituais nos autores a análise política das condições em que
acima mencionados, que podem ser trabalho e educação se exercem na so-
resumidos em duas ênfases marxistas, ciedade capitalista brasileira, como a
complementares e não conflitantes, escola articula os interesses de classe
a de Gramsci (1981) e a de Lukács dos trabalhadores. Adverte que é pre-
(1978 e 2010). ciso pensar a unidade entre o ensino e
Gramsci propõe a ESCOLA UNITÁRIA, o trabalho produtivo, o trabalho como
que se expressaria na unidade entre princípio educativo e a escola politéc-
instrução e trabalho, na formação de nica (1985, p. 178).
homens capazes de produzir, mas tam- Em um segundo momento, a análi-
bém de serem dirigentes, governantes. se toma forma tendo por base Lukács
Para tanto, seria necessário o conhe- (1978). Em sua reflexão sobre a onto-
cimento não só das leis da natureza, logia do ser social, o autor examina o
como também das humanidades e da trabalho como atividade fundamental
ordem legal que regula a vida em socie- do ser humano, ontocriativa, uma ativi-
dade (1981, p. 144-145). dade que produz os meios de existência

754
Trabalho como Princípio Educativo

na relação do homem com a natureza, a a todas as formas de exploração do tra-


cultura e o aperfeiçoamento de si mes- balho, especialmente o trabalho infan-
mo. De outra parte, o trabalho humano til. Todavia, ao mesmo tempo, é crucial
assume formas históricas, muitas das que, desde a infância, se internalize a
quais degradantes, penalizantes, nas di- compreensão de que cada ser humano
ferentes culturas, na estrutura capitalis- tem o dever de, em colaboração e so-
ta e em suas diversas conjunturas. lidariedade com os demais, buscar os
Desse conjunto de ideias e deba- meios de vida e responder às múltiplas
tes, foi possível concluir que o traba- necessidades humanas. Daí ser impor-
lho nas sociedades de classes é domi- tante que mesmo as crianças, de acordo
nantemente alienador e que degrada e com a sua possibilidade, participem de
mutila a vida humana, mas ainda assim pequenas atividades ligadas ao cuidado
não é pura negatividade pelo fato de e à produção da vida. Isso nada tem a
que nenhuma relação de exploração ver com exploração do trabalho, mes-
até o presente conseguiu anular a ca- mo no âmbito da família, sob a forma
pacidade humana de criar e de buscar de opressão pelo trabalho produtivo
a superação da exploração. Porém o capitalista. Há que se ter o cuidado de
trabalho não é necessariamente educa- não retirar o tempo de infância que
tivo. Isso dependerá das condições de implica o lúdico e os espaços forma-
sua realização, dos fins a que se desti- tivos, pela exigência de tarefas produ-
na, de quem se apropria do produto do tivas próprias para a vida adulta, por-
trabalho e do conhecimento que gera que, além de prejudicarem o direito
(Ciavatta, 2009). do tempo da infância, comprometem
A introdução do trabalho como ou deformam o desenvolvimento físico,
princípio educativo em todas as rela- social e psíquico da criança.
ções sociais, na família, na escola e na À medida que se entra na juventu-
educação profissional em todas as suas de e na vida adulta, essa colaboração
aplicações, particularmente hoje, em com o trabalho produtivo vai aumen-
um mundo em que o desenvolvimento tando, ao mesmo tempo em que se vai
científico e tecnológico desafia a for- tomando consciência da necessidade
mação de adolescentes, jovens e adultos de superação da exploração capitalista
no campo e na cidade, supõe recuperar e, portanto, da propriedade privada. As
para todos a dimensão da escola unitá- experiências da relação entre trabalho
ria e politécnica, ou a formação inte- e educação sistematizada por Pistrak e
grada – sua forma prescrita pela lei –, outros educadores nos primeiros anos
introduzindo nos currículos a crítica da revolução socialista na Rússia, sinte-
histórico-social do trabalho no sistema tizadas na obra A escola comuna (Pistrak,
capitalista, os direitos do trabalho, o
conhecimento da história e o sentido
2009), constituem referência central na
educação do campo, especialmente nas T
das lutas históricas dos trabalhadores escolas dos acampamentos e assenta-
no trabalho e na educação. mentos do Movimento dos Trabalha-
Pela perspectiva da educação, é dores Rurais Sem Terra. Nos verbetes
crucial que nos processos educativos ESCOLA ÚNICA DO TRABALHO e EDUCAÇÃO
formais – ensino básico, superior e DO CAMPO, o leitor terá mais elementos
educação profissional – se faça a crítica para perceber que, no sentido e na práti-

755
Dicionário da Educação do Campo

ca dessas experiências, estão presentes os ao mesmo tempo como princípio educa-


elementos da compreensão do trabalho, tivo geral e como princípio pedagógico.

Nota
1
As palavras trabalho, labor (inglês), travail (francês), Arbeit (alemão), ponos (grego) têm em
sua raiz o mesmo sentido de fadiga, pena, sofrimento e pobreza que ganham materialidade
nas fábricas-conventos, fábricas-prisões, fábricas sem salário. A transformação moderna do
significado da palavra deu-lhe o sentido de positividade, como argumentam John Locke,
que descobre o trabalho como fonte de propriedade;; Adam Smith, que o defende como
fonte de riqueza;; e Karl Marx, para quem o trabalho é fonte de toda a produtividade e
expressão da humanidade do ser humano (De Decca, 1985).

Para saber mais


BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Brasília: Presidência da República, 1996.
CHASIN, J. Lukács: vivência e reflexão da particularidade. Ensaio, São Paulo, v. 4,
n. 19, p. 55-69, 1982.
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F. (org.). Dicionário de educação profissional em saúde. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro:
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2009. p. 408-415.
CIAVATTA FRANCO, M. O trabalho como princípio educativo – uma investigação teórico-
metodológica (1930-1960). 1990. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade
de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
1990.
DE DECCA, E. O nascimento das fábricas. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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guidades. Boletim Técnico do Senac, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 175-182, set.-dez.
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Belém, p. 4-5, 7 ago. 1989.
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IGLESIAS, F. A revolução industrial. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
KONDER, L. Lukács. Porto Alegre: L&PM, 1980.
KUENZER, A. Z. Ensino de 2º grau: o trabalho como princípio educativo. São Paulo:
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LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas
de Ciências Humanas, São Paulo, n. 4, p. 1-18, 1978.
______. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma
ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo, 2010.

756
Trabalho no Campo

MACHADO, L. Politecnia, escola unitária e trabalho. São Paulo: Cortez;; Campinas:


Autores Associados, 1989.
MANACORDA, M. A. História da educação: da Antiguidade aos nossos dias. São Paulo:
Cortez;; Campinas: Autores Associados, 1989.
______. Marx e a pedagogia moderna. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1975.
______. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1990.
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Brasileira, 1980. 2 v.
______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
______;; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
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NOSELLA, P. A escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1992.
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FERRETTI, C. J. et al. (org.). Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidis-
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______. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: Politécnico de Saúde Joaquim
Venâncio/Fiocruz, 1989.

TRABALHO NO CAMPO
Paulo Alentejano

Desde o início da colonização por- campo entre os homens livres e pobres


tuguesa, a diversidade das relações de da ordem escravocrata.1 Surgem, assim,
trabalho é uma marca do campo brasi- as múltiplas forma de trabalho campo-
leiro. De um lado, os portugueses insti- nês no Brasil, sejam aquelas marcadas
tuíram o trabalho escravo como forma pela subordinação direta dos campone-
dominante de exploração do trabalho ses aos latifundiários, como agregados – T
nos latifúndios (ver LATIFÚNDIO), onde, isto é, trabalhadores que em troca do
reduzidos à condição de mercadorias, direito de morar e produzir no interior
índios e, sobretudo, negros, trazidos de do latifúndio fazem diversos tipos de
diversas regiões da África, eram subme- serviço para os latifundiários, inclusi-
tidos a condições brutais de exploração ve os de jagunço –, sejam as do cam-
e violência. De outro, multiplicaram-se pesinato livre, tais como os posseiros,
formas de organização do trabalho no dando origem ao trabalho familiar no

757
Dicionário da Educação do Campo

campo, mas também a múltiplas for- A partir da segunda metade do sé-


mas de trabalho coletivo: mutirões, pu- culo XX, verificou-se a expansão do
xirões etc. Surgem também as formas assalariamento no campo como decor-
resultantes da resistência contra a es- rência dos processos de MODERNIZAÇÃO
cravidão, materializada na presença dos DA AGRICULTURA , com destaque para o
Quilombolas no campo brasileiro (ver crescimento dos assalariados temporá-
também QUILOMBOS). rios (chamados de volantes ou boias-
O trabalho escravo, como forma frias, dependendo da região do país).
dominante das relações de trabalho no A ampliação do assalariamento tem-
campo, e a escravidão, como elemento porário na agricultura está relacionada
estruturante da ordem social e política, ao fato de que nem todas as atividades
persistiram intocados até meados do agropecuárias são objeto de moderni-
século XIX. Diante do esgotamento zação nos mesmos ritmo e intensidade.
do modelo escravista, motivado por fa- Assim, em algumas culturas há a total
tores tanto externos (a pressão inglesa) mecanização dos processos de preparo
quanto internos (o crescimento do abo- da terra e plantio (com o uso de tra-
licionismo e das fugas e rebeliões de tores e plantadeiras mecânicas), dos
escravos), surgiram novas relações tratos culturais (com o uso de pulveri-
de trabalho e se expandiram outras zadores mecânicos ou aviões agrícolas
já existentes. Dentre as já existentes, para a pulverização das lavouras) e da
destaque-se a parceria, sistema median- colheita (com o uso de colheitadeiras).
te o qual o trabalhador que não pos- E isso implica a supressão de quase to-
sui a terra repassa ao proprietário uma dos os empregos no campo, restando
parte da produção como pagamento da uma pequena quantidade de trabalha-
RENDA DA TERRA. Dentre as novas re- dores assalariados permanentes. Já em
lações de trabalho, a mais relevante foi outras culturas, o processo de moder-
o colonato, sistema no qual a família do nização é parcial, sobretudo no que se
colono recebia uma quantia fixa pelo refere à colheita, que, em muitos casos,
trato do cafezal sob seus cuidados e ainda é feita manualmente, seja por
uma quantia variável por área colhida, opções técnicas ou econômicas. De
relacionada à produtividade anual do todo modo, o resultado desse descom-
cafezal, além de ter a possibilidade passo entre a eliminação da demanda
de cultivar alguns alimentos para seu de trabalhadores nas épocas de plantio
consumo próprio nas ruas do café e tratos culturais e a persistência ou até
(Martins, 1990, p. 64). ampliação da demanda no período da
colheita é o aumento do assalariamento
De meados do século XIX a mea-
temporário, posto que os fazendeiros
dos do século XX, observamos um
passam a contratar os trabalhadores
lento processo de substituição do tra-
apenas na época da colheita.
balho escravo por formas diversas de
trabalho livre, com a gradual expan- Por outra parte, expandiu-se tam-
são do assalariamento. Nesse cenário, bém o campesinato autônomo, com-
emergem lutas crescentes dos trabalha- posto por posseiros e pequenos pro-
dores rurais pela regulamentação das prietários, sobretudo como resultado
relações de trabalho, o que somente foi da expansão da fronteira agrícola, mas
concretizado com a criação do Estatu- também por causa da criação de assen-
to do Trabalhador Rural em 1963. tamentos rurais (ver ASSENTAMENTO

758
Trabalho no Campo

RURAL), bem como surgiu uma nova publicação anual de casos de escravi-
forma de trabalho no campo: o traba- dão contemporânea no Brasil, resultou
lho familiar integrado e subordinado às na criação do Grupo Móvel de Fisca-
agroindústrias. Trata-se, formalmente, lização do Ministério do Trabalho em
de pequenos proprietários que tra- 1995, primeiro reconhecimento por
balham a terra com base na força de parte do governo brasileiro da existên-
trabalho familiar, mas que estão sub- cia do problema. Posteriormente, em
metidos por contratos de integração a 2003, o Estado ampliou tal reconheci-
empresas agroindustriais, para as quais mento, através da lei nº 10.803, de 11
fornecem matérias-primas, que ditam o de dezembro de 2003, que modificou o
padrão produtivo e impõem preços e artigo 149 do Código Penal Brasileiro,
outras condições de produção que tor- definindo trabalho análogo à escravi-
nam esses trabalhadores subordinados dão da seguinte forma:
econômica e socialmente a elas.2 Essa
forma de trabalho predomina sobretu- Reduzir alguém a condição aná-
do nas atividades que oferecem maior loga à de escravo, quer subme-
risco ou que exigem trabalho intensivo, tendo-o a trabalhos forçados
tais como a criação de pequenos ani- ou a jornada exaustiva, quer
mais e o plantio de frutas, verduras, le- sujeitando-o a condições degra-
gumes, fumo etc., representando uma dantes de trabalho, quer restrin-
forma de as empresas transferirem os gindo, por qualquer meio, sua
riscos da produção para os produtores locomoção em razão de dívida
integrados ou evitarem gastos traba- contraída com o empregador ou
lhistas, como o pagamento de horas preposto: Pena – reclusão, de
extras ou adicionais noturnos. Porém, dois a oito anos, e multa, além
às vezes as grandes empresas agroin- da pena correspondente à vio-
dustriais recorrem à integração por lência. (Brasil, 2003)
razões não estritamente econômicas,
mas políticas. É o caso de algumas No mesmo ano, é criado Plano
grandes empresas de papel e celulose, Nacional de Erradicação do Trabalho
que, impedidas de expandirem cultivos Escravo e ampliadas substancialmen-
próprios, lançam mão do instrumento te as ações de fiscalização;; entretan-
do fomento florestal para incentivar to, a principal ação defendida pelos
a integração de pequenos e médios que combatem o trabalho escravo no
produtores, ou das usinas de cana em Brasil – a expropriação e a destinação
regiões onde se multiplicaram assenta- para a Reforma Agrária das terras onde
mentos rurais com a falência de usinas for identificada a presença de trabalho
e que, diante da retomada da produção escravo – continua parada no Congres-
sucroalcooleira, recorrem à integração
de assentados.
so Nacional, em razão da pressão da
bancada ruralista.
T
Nas últimas décadas, desenvolveu- Da diversidade de relações de tra-
se no Brasil um intenso debate em tor- balho no campo resulta uma diversi-
no da existência do trabalho escravo dade ainda maior de trabalhadores do
contemporâneo. A denúncia sistemáti- campo, uma vez que, além das formas
ca que a COMISSÃO PASTORAL DA TERRA que assume o trabalho (assalariamento
(CPT) iniciou a partir de 1985, com a permanente ou temporário, semiassala-

759
Dicionário da Educação do Campo

riamento, trabalho familiar, coletivo e das margens dos rios por causa da ins-
semicoletivo etc.), há uma diversidade talação de barragens ou sofrido com a
de formas de apropriação da terra e de poluição das águas por grandes proje-
relações com a natureza, assim como tos industriais, minerais ou agrícolas
tradições culturais que resultam num que fazem diminuir substancialmente
sem-número de denominações dos tra- os peixes;; faxinalenses – agricultores e
balhadores do campo brasileiro: serin- criadores das altas terras paranaen-
gueiros – os que trabalham com a extra- ses que têm sido ameaçados nas suas
ção do látex na Floresta Amazônica e práticas comunitárias tradicionais pelo
que construíram, a partir do Acre, uma avanço das monoculturas;; vazanteiros –
importante luta que articulou a bandei- agricultores que se utilizam das terras
ra da Reforma Agrária com a preser- das várzeas do rio São Francisco e que
vação da floresta e resultou na criação têm sido afetados por obras de trans-
das reservas extrativistas;; castanheiros – posição, barragens e outras que afetam
que seguiram a trilha aberta pelos o regime do rio;; catingueiros – extrativis-
seringueiros e se transformaram, so- tas, agricultores e criadores do sertão
bretudo no Pará, em guardiões de uma nordestino que desenvolveram formas
das maiores árvores amazônicas amea- tradicionais de convivência com a seca
çadas pela sanha de madeireiras, pecua- e que vêm lutando contra o desmata-
ristas e agronegociantes em geral;; que- mento da caatinga para a produção de
bradeiras de coco – mulheres que extraem carvão;; caiçaras – agricultores e pesca-
o coco do babaçu e a ele dão inúmeras dores do litoral sul e sudeste que vêm
destinações e que se notabilizaram por sendo sistematicamente impedidos de
defender o livre acesso aos babaçuais cultivar suas roças em meio à Mata
cada vez mais cercados por grileiros e Atlântica e que são expulsos, pela es-
fazendeiros no Pará, Tocantins, Mara- peculação imobiliária, das praias que
nhão e Piauí;; cerradeiros – extrativistas,
tradicionalmente ocupam. E esses são
agricultores e criadores das chapadas
apenas alguns exemplos dessa imensa
do Centro-Oeste e Nordeste que vêm
diversidade socioambiental que carac-
lutando contra a expansão desenfreada
teriza o campo brasileiro.
das monoculturas de soja, milho, cana e
algodão;; geraizeiros – extrativistas, agri- Porém, o que confere unidade a
cultores e criadores das chapadas do essa enorme diversidade de trabalha-
norte de Minas, que lutam sobretudo dores do campo é o fato de, por di-
contra os estragos provocados pela mi- ferentes formas e mecanismos, todos
neração e a monocultura do eucalipto;; eles estarem submetidos ao contro-
retireiros – agricultores e criadores das le e à exploração do capital, estando
várzeas dos rios amazônicos que se sujeitos à expropriação pelo avanço
utilizam das terras alternadamente para da concentração fundiária resultante da
cultivo e criação e têm sido expropria- expansão da dominação capitalista, o
dos pelo avanço do latifúndio sobre as que nos permite dizer que são parte
áreas temporariamente alagadas;; ribei- da classe trabalhadora, em confronto
rinhos – agricultores e pescadores que aberto ou latente com as classes domi-
têm sistematicamente sido desalojados nantes do campo.

760
Transgênicos

Notas
1
Fazemos aqui referência ao título de um clássico da literatura brasileira acerca do período
colonial: Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997).
2
Há na literatura econômica, sociológica e geográfica vasta polêmica acerca da definição
teórica atribuída a esses trabalhadores: alguns os classificam como agricultores familiares;;
outros os consideram assalariados disfarçados, semiproletários.

Para saber mais


ALMEIDA, A. W. B. de. Terras tradicionalmente ocupadas, processos de territoriali-
zação e movimentos sociais. Estudos Urbanos e Regionais, v. 6, n. 1, maio 2004.
BRASIL. Lei no 10.803, de 11 de dezembro de 2003: altera o art. 149 do decreto-lei
no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para estabelecer penas ao cri-
me nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de
escravo. Diário Oficial da União, Brasília, 12 dez. 2003. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.803.htm. Acesso em: 31 out. 2011.
FRANCO, M. S. de C. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Editora
Unesp, 1997.
MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1990.
MOTTA, M. (org.). Dicionário da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
THOMAZ JÚNIOR, A. A classe trabalhadora no Brasil e os limites da teoria – qual
o lugar do campesinato e do proletariado. In: FERNANDES, B. M. (org.). Campesi-
nato e agronegócio na América Latina: a questão agrária atual. São Paulo: Expressão
Popular, 2008.

TRANSGÊNICOS
Lia Giraldo da Silva Augusto

Este verbete aborda as implicações Essas tecnologias são denominadas


socioambientais da produção de plan-
tas geneticamente modificadas. Para
de biotecnologia e significam: a) a modi-
ficação genética de organismos, plantas, T
termos clareza dessas implicações, é animais e alguns vírus;; e b) a produção
necessário inicialmente conhecer o que de materiais e substâncias a partir de se-
são as técnicas de produção de plantas res vivos. Nesse processo, são utilizados
transgênicas e as justificativas utiliza- conhecimentos de áreas como genética,
das para o seu desenvolvimento. bioquímica e biologia celular.

761
Dicionário da Educação do Campo

Genética é a ciência que estuda a quadas de biossegurança;; b) análise de


transmissão das características bioló- riscos dos produtos biotecnológicos;;
gicas de uma geração para outra (he- e c) mecanismos e instrumentos de
reditariedade) e as variabilidades que monitoramento e rastreabilidade.
ocorrem nas espécies de organismos A velocidade da utilização de
vivos. As características biológicas de produtos biotecnológicos recém-
todos os seres vivos estão contidas nos desenvolvidos é um importante proble-
genes, que são um segmento do DNA;; ma de biossegurança. Como exemplo,
este, por sua vez, forma os cromosso- relatamos o desenvolvimento da soja
mos, que estão no núcleo das células transgênica. Em 1973 conseguiu-se rea-
dos organismos. lizar em laboratório a transferência de
A descoberta da estrutura do DNA genes e em 1986 a Monsanto desenvol-
em 1953 provocou uma verdadeira re- veu e patenteou a soja Roundup Ready
volução na ciência. Os cientistas James (soja transgênica). E, na década de
Watson e Francis Crick ganharam o 1990, já se observa um grande aumen-
Prêmio Nobel em 1962 por esses es- to das áreas de cultivos transgênicos.
tudos. Desde então, a identificação dos O aumento da plantação transgênica
genes, sua localização e sua transfor- apresenta o maior índice de adoção
mação têm mobilizado cientistas em registrado até hoje quando comparado
todo o mundo, não só para aumentar o com qualquer outra tecnologia na área
conhecimento sobre essa questão, como da agricultura. Podemos verificar, en-
também para aplicá-lo na agricultura, na tão, que transcorreu um tempo extre-
medicina e na indústria farmacêutica, mamente curto entre as descobertas e a
no que é chamado de biotecnologia. produção de conhecimentos no campo
da genética em relação à biologia mo-
Avaliação de risco das lecular do DNA e a comercialização
plantas transgênicas de plantas geneticamente modificadas,
destinadas ao consumo humano. Aqui
(biossegurança) reside um primeiro e importante questiona-
Biossegurança é o conjunto de mento, que está especialmente relacionado com
ações voltadas para a prevenção, mini- a biossegurança.
mização ou eliminação dos riscos ineren- É importante saber que, para a pro-
tes às atividades de pesquisa, produção, dução de plantas transgênicas, são uti-
ensino, desenvolvimento tecnológico lizados basicamente dois métodos de
e prestação de serviços, riscos que po- transformação: 1) o que usa a bactéria
dem comprometer a saúde humana, Agrobacterium tumefaciens (método indi-
dos animais, das plantas e do meio am- reto, como o de uma infecção);; e 2) o
biente (Teixeira, 1996). que usa a biobalística (método direto,
Segundo a Organização das Nações aleatório, sem controle, de introdução
Unidas para Agricultura e Alimenta- de gene na estrutura do DNA da planta).
ção (FAO) (Food and Agriculture Nesses processos, existe enorme incer-
Organization, 1999), para assegurar que teza sobre os seus resultados. Aqui reside
as plantas transgênicas não produzam um segundo questionamento, também relacio-
danos à saúde humana e ao meio am- nado com a biossegurança: eventos com baixa
biente são necessários: a) normas ade- possibilidade de controle ou previsibilidade.

762
Transgênicos

As plantas geneticamente modifica- todas as substâncias e nem todas as


das não são equivalentes às não modifi- características envolvidas;; em geral,
cadas. O pressuposto da “equivalência não realizam repetições suficientes;;
substancial” entre a planta transgênica raramente levam em consideração a
e a não transgênica é frágil, seus ar- interação genoma–ambiente;; não exa-
gumentos não se sustentam cientifi- minam seus impactos em mamíferos
camente. Contudo, esse pressuposto quando em período de gestação;; ao en-
foi utilizado nos Estados Unidos para contrarem diferenças estatísticas signi-
a liberação do comércio de plantas ficativas indicando perigo de alterações
transgênicas, impedindo assim o seu genéticas que ameaçam a preservação
monitoramento, especialmente sobre da espécie, interpretam essas diferen-
seus efeitos na saúde humana, e o seu ças como não relevantes.
rastreamento nos alimentos consumi- Existem muitos outros questiona-
dos. Até hoje as empresas não querem mentos relacionados com a falta de
que seus produtos recebam o rótulo de biossegurança na utilização e na pro-
produtos transgênicos. dução de plantas transgênicas. Até o
A “equivalência substancial” signi- momento, as questões que mais preo-
fica que duas variedades não diferem cupam são:
substancialmente uma da outra nos
1) os impactos na saúde humana,
aspectos cor, textura, teor de óleo,
como o aparecimento de eventos
composição e teor de aminoácidos es-
ou agravos não esperados (alergias,
senciais e em nenhuma outra caracte-
toxidez, intolerância, entre outros);;
rística bioquímica (Millstone, Brunner
a presença de genes de resistência a
e Mayer, 1999). No entanto, sabemos
antibióticos (geração de novas ra-
que o todo não é a soma das partes. Do
ças de patógenos, rápida dissemi-
todo emergem propriedades distintas
nação dos genes de resistência a an-
daquelas observadas nas partes. Assim,
tibióticos, incorporação do material
um alimento não é apenas a soma das
gênico a bactérias/fungos);; e a de-
substâncias que o compõem.
terminação da seleção de bactérias;;
Os estudos utilizados para afirmar o 2) outros impactos: a criação de novas
pressuposto da “equivalência substan- pragas e plantas daninhas;; o aumen-
cial” são realizados pelas próprias em- to das pragas já existentes por meio
presas, com ênfase em testes que não evi- da recombinação;; a produção de
denciam o perigo dos transgênicos, pois substâncias que são, ou poderiam
não levam em consideração possíveis ser, tóxicas a organismos não alvos;;
erros nas análises estatísticas, associados o desperdício de recursos genéticos
a falsos positivos e a falsos negativos. mediante a contaminação de espé-
Em praticamente todos os proces-
sos que levaram à liberação comercial
cies nativas ou de espécies não rela-
cionadas, com efeitos adversos em
T
de plantas transgênicas no Brasil, os processos dos ecossistemas;; a ori-
estudos de biossegurança foram insufi- gem de substâncias secundárias tó-
cientes, por uma ou mais das seguintes xicas após a degradação incomple-
razões: não se aplicam aos metabóli- ta de químicos perigosos;; o efeito
tos secundários (que não existem nas adverso nos processos ecológicos;;
plantas não transgênicas);; não avaliam o aumento no uso de herbicidas,

763
Dicionário da Educação do Campo

com efeitos nocivos sobre a saúde dimensões sociais, econômicas e cultu-


humana, a fauna e a flora, levando rais da vida humana.
ao comprometimento da qualidade
do solo, da água e do ar.
Impactos socioeconômicos
O desprezo às evidências de peri- e culturais das plantas
go e ao princípio da precaução1 faz da
liberação comercial de plantas transgê-
transgênicas
nicas no mínimo uma questão de falta Segundo a diretiva nº 556/03/CEE,
de ética e de desrespeito à saúde, à vida da Comunidade Econômica Europeia,
e à autonomia da ciência. Seriam ne- a coexistência entre produção conven-
cessários estudos completos, de longo cional/biológica e transgênica deve
prazo, acerca das plantas transgênicas significar a possibilidade efetiva, para
(assim como dos agrotóxicos) para que os agricultores, de escolherem entre
elas fossem produzidas e comercializa- um modo de produção e outro, no res-
das. Aqui residem muitos questionamentos peito das obrigações legais em matéria
relacionados com a falta de biossegurança das de rotulagem ou de normas de pureza.
plantas transgênicas. O registro de incidentes com or-
Ocorre que só se podem achar os ganismos geneticamente modificados
impactos negativos do uso dos trans- (OGMs) mostra a ocorrência de con-
gênicos se houver estudos que visem taminações genéticas, cultivos ilegais
demonstrá-los. A ausência de evidência e efeitos colaterais agrícolas negativos
científica de não efeito sobre a saúde e em 44 países, com média de 14,2 des-
o ambiente é diferente da questão de ses ao ano, sendo 35% deles relaciona-
ausência de efeito, pois podem existir dos ao milho transgênico (Mayer, 2006).
efeitos ainda não detectados (Traavik, Sabemos que as plantas transgêni-
1999). No entanto, o que vemos na cas desenvolvidas não atenderam às
pesquisa de avaliação de risco das plan- necessidades da agricultura familiar;;
tas transgênicas é que ela não foi e não no entanto, são esses pequenos agri-
é realizada de forma suficiente para cultores os responsáveis pela produ-
garantir a biossegurança. ção da maior parte dos alimentos no
O que está em jogo nessa questão Brasil. Além disso, o uso de plantas
é uma defesa cega da biotecnologia. resistentes a herbicidas aumenta o
Em favor de interesses econômicos, há grau de dependência dos agricultores
um ocultamento dos riscos associados aos agrotóxicos, endividando-os e am-
aos produtos transgênicos, assim como pliando a concentração dos latifúndios
tem ocorrido em relação aos agrotóxi- monocultores. A venda de sementes
cos. Como já disse Hugo de Vries em transgênicas é vinculada à venda dos
1907, na aplicação da genética agríco- agrotóxicos, produzidos, em geral, pela
la, o que vemos é a predominância do mesma empresa, que tem, frequen-
econômico sobre o científico, na qual temente, enorme poder de pressão so-
os ganhos financeiros determinam o bre a economia, a política e o Estado.
que é cientificamente verdadeiro para As sementes transgênicas são proprie-
esses interesses (Nodari, 2007). Os ris- dades (patentes) de empresas transna-
cos da produção e comercialização das cionais que articulam o seu biopoder e
plantas transgênicas também afetam as a sua biopolítica, afetando a bioética

764
Transgênicos

e a soberania alimentar que foi consti- as alternativas de produção genético-


tuída durante milhares de anos, media- químico-industrial recebem.
da pela diversidade cultural dos povos. Há hoje uma tendência de subme-
Sabemos que para cada variedade ter a cultura alimentar aos ditames
transgênica de plantas há alternativas de um falacioso discurso científico
não transgênicas de produção. No en- das empresas. O que está em jogo na
tanto, as alternativas sustentáveis de pro- produção transgênica é a vida com
dução agrícola são desconsideradas pelo sua biodiversidade, assim como a di-
aparato acadêmico e do Estado, que não versidade cultural. E ambas devem
dão a elas apoio semelhante ao que ser protegidas.

Nota
1
O princípio da precaução implica que, na ausência de certeza científica formal acerca de
um impacto negativo sério ou irreversível no ambiente ou na saúde decorrente de uma
ação humana, sejam implementadas medidas de prevenção do dano, independentemente da
prova científica de relação de causalidade.

Para saber mais


FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION (FAO). Biotechnology. Roma: FAO, 1999.
Disponível em: http://www.fao.org/unfao/bodies/COAG. Acesso em: 12 jul.
2011.
GUERRA, M. P.; NODARI, R. O. Impactos ambientais das plantas transgênicas:
as evidências e as incertezas. Agroecologia e Desenvenvolvimento Rural Sustentável,
Porto Alegre, v. 2, n. 3, jul.-set. 2001. Disponível em: http://www.
gmcontaminationregister.org. Acesso em: 12 jul. 2011.
MAYER, S. Relatório sobre o Registro de Contaminação Transgênica, 2005.
Buxton, Inglaterra;; Genewatch UK;; Amsterdã: Greenpeace Internacional,
2006. Disponível em: http://www.greenpeace.org.br/transgenicos/pdf/
contaminacao2005.pdf. Acesso em: 12 jul. 2011.
MILLSTONE, E.; BRUNNER, E.; MAYER, S. Beyond “Substantial Equivalence”.
Nature, Londres, v. 401, p. 525-526, 1999.
NODARI, R. O. Biossegurança, transgênicos e risco ambiental: os desafios da nova
Lei de Biossegurança. In: LEITE, J. R. M.; FAGUNDEZ, P. R. A. (org.). Biossegurança e T
novas tecnologias na sociedade de risco: aspectos jurídicos, técnicos e sociais. São José,
Santa Catarina: Conceito Editorial, 2007. V. 1, p. 17-44. Disponível em: http://
www.lfdgv.ufsc.br/Nodari%20BiossegurancaTransgenicosRisco.pdf. Acesso em:
12 jul. 2011.
TEIXEIRA, P.; VALLE, S. Biossegurança: uma abordagem multidisciplinar. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 1996.

765
Dicionário da Educação do Campo

TRAAVIK, T. Too Early May Be Too Late: Ecological Risks Associated With the
Use of Naked DNA as Biological Tool for Research, Production and Therapy.
(Research Report for DN 1999-1.) Trondheim, Noruega: Directorate for Nature
Management, 1999.

766
V
VIA CAMPESINA
Bernardo Mançano Fernandes

A Via Campesina é uma organiza- Criação


ção mundial que articula movimentos
camponeses em defesa da agricultura A Via Campesina nasceu em 1992,
familiar em pequena escala e agroe- quando várias lideranças camponesas
cológica para garantir a produção de dos continentes americano e europeu
alimentos saudáveis. Entre seus objeti- que participavam do II Congresso
vos, constam a construção de relações da Unión Nacional de Agricultores
de solidariedade, reconhecendo a di- y Ganaderos de Nicarágua (Unag),
versidade do campesinato no mundo;; realizado em Manágua, propuseram a
a construção de um modelo de desen- criação de uma articulação mundial de
volvimento da agricultura que garanta camponeses. A proposição foi efetivada
a soberania alimentar como direito dos em 1993, com a realização, em Mons,
povos de definirem suas próprias polí- na Bélgica, da I Conferência da Via
ticas agrícolas;; e a preservação do meio Campesina, quando se elaboraram as
ambiente, com a proteção da biodiver- linhas políticas iniciais e se definiu sua
sidade. Em suas ações e documentos, estrutura (Fernandes, Silva e Girardi,
a Via Campesina tem se manifestado 2004;; Desmarais, 2007;; Navarro e
contra a padronização das culturas, o Desmarais, 2009).
produtivismo, a monocultura e a pro- Em menos de duas décadas, a Via
dução unicamente para exportação, Campesina tornou-se a mais ampla e
características do modelo de desenvol- mais conhecida articulação mundial
vimento do agronegócio. Organizada a de organizações na luta pelo desen-
partir de pequenos e médios agriculto- volvimento da agricultura camponesa.
res e trabalhadores agrícolas assalaria- De acordo com Borras (2004), a Via
dos, indígenas e sem-terra, apresenta- Campesina é um “movimento de movi-
se como um movimento internacional mentos”, tendo sido também definida
autônomo, pluralista, sem vinculação como um movimento agrário transna-
com partidos, Igrejas e governos. Os cional (Borras, Edelman e Kay, 2008).
movimentos camponeses vinculados à Em seu processo de formação, ela foi
Via Campesina atuam em escalas regio- incorporando novos movimentos e de-
nal e nacional. Sua organização espa- finindo suas linhas políticas.
cial compreende as seguintes regiões: Em abril de 1996, foi realizada a
Europa do Leste, Europa do Oeste, II Conferência da Via Campesina, em
Nordeste e Sudeste da Ásia, América Tlaxcala, no México, que contou com a V
do Norte, Caribe, América Central, participação de 37 países e 69 organiza-
América do Sul e África (Fernandes, ções nacionais. Durante a realização da
2009;; Via Campesina, 2009 e 2011). conferência, no dia 17 de abril, ocorreu

767
Dicionário da Educação do Campo

o Massacre de Eldorado dos Carajás, Principais bandeiras


quando 19 camponeses sem-terra, vin-
culados ao Movimento dos Trabalha- Com a palavra de ordem “Globa-
dores Rurais Sem Terra (MST) foram lizemos a luta! Globalizemos a espe-
assassinados, durante uma marcha em rança!”, a Via Campesina tem definido
Eldorado dos Carajás, município loca- suas linhas políticas, como soberania
lizado no estado do Pará. Por isso, a alimentar com base no desenvolvimen-
conferência declarou o dia 17 de abril to local e na diversidade da produção
Dia Mundial da Luta Camponesa. agrícola e agroecológica;; defesa das
terras e territórios camponeses e indí-
Em 2000, realizou-se a III Con-
genas por meio de políticas de desen-
ferência da Via Campesina, em
volvimento, como a reforma agrária
Bangalore, na Índia;; dela participaram integral;; e defesa das sementes como
100 delegados, representantes de orga- patrimônio da humanidade e da água
nizações de 40 países. como direito de todos. Além dessas
A IV Conferência da Via Campe- linhas em defesa dos territórios cam-
sina aconteceu no Brasil, em junho poneses e indígenas, a Via Campesina
de 2004. Ela contou com a presença de também tem demarcado posição con-
400 delegados de 76 países, represen- tra a produção de commodities e de agro-
tando 120 movimentos camponeses. combustíveis, que têm gerado contínuas
Em 2008, a Via Campesina realizou crises alimentares.
a V Conferência da Via Campesina, A Via Campesina (2003) compreen-
em Maputo, capital de Moçambique, de a soberania alimentar como o direi-
com a participação de 60 delegados de to dos povos, de seus países e das uniões
69 países, representando 148 movi- de Estados de definirem suas políti-
mentos camponeses (Fernandes, 2009;; cas agrícolas e alimentares, sem sofrer
Via Campesina, 2008 e 2011). dumping de outros países. Defende tam-
bém que as políticas agrícolas devem
ser duradouras e solidárias, e determi-
Estrutura organizativa nadas pelas organizações nacionais e
A estrutura da Via Campesina é pelos governos, suprimindo-se o po-
formada pela Conferência Interna- der das corporações multinacionais;; e
cional (espaço de deliberação polí- as negociações agrícolas internacio-
tica), pela Comissão Coordenadora nais devem estar sob o controle dos
Internacional, por comissões políticas Estados, sem a intervenção da Organi-
e a secretaria executiva e pelos movi- zação Mundial do Comércio (OMC).
mentos camponeses a ela vinculados. A Via Campesina realiza a Campa-
As comissões políticas atuam no de- nha Global pela Reforma Agrária, que
senvolvimento das linhas de atuação, alcançou reconhecimento em diferen-
elaborando documentos que reúnem tes âmbitos – organizações campone-
as manifestações de movimentos sas, organizações não governamentais
camponeses de diversas partes do (ONGs), governos e organismos inter-
planeta. Também participam de deba- nacionais. Essa campanha tem fortale-
tes e protestos junto dos organismos cido a resistência internacional às polí-
internacionais. ticas do mercado de terras e mobilizado

768
Via Campesina

o apoio internacional na defesa de um criação dessa rede de movimentos tem


modelo de desenvolvimento rural ba- propiciado o aumento da resistência
seado na unidade familiar e na comuni- às políticas neoliberais e ao avanço do
dade, com destaque para a participação agronegócio sobre os territórios cam-
de mulheres e jovens. Nesse plano, es- poneses, tornando-se a principal inter-
tão associadas políticas agroecológicas locutora dos movimentos camponeses
para a garantia da biodiversidade e a nas negociações de políticas em escala
proteção dos recursos genéticos. internacional e nacional.
A Via Campesina tem atuado or- Com suas ações, a Via Campesina
ganizadamente em diversas partes do mantém na pauta política internacional
mundo. Segundo Vieira (2011), a pri- a questão camponesa com uma postura
meira manifestação pública da Via autêntica, lutando contra a posição de
Campesina aconteceu em 1995, em governos e corporações, que cooptam
Québec, no Canadá, quando a Orga- as organizações camponesas, com a
nização das Nações Unidas para Agri- subordinação consentida ao modelo
cultura e Alimentação (FAO) realizou de desenvolvimento do agronegócio,
a Assembleia Global sobre Segurança pelo qual os agricultores são subme-
Alimentar. O National Farmers Union, tidos a um processo de commoditização,
movimento fundador da Via Campesi- ou seja, a produção monocultora na
na, era membro do comitê organizador qual o conhecimento e a tecnologia
e possibilitou a manifestação dos mo- são determinados pelas corporações,
vimentos camponeses de várias par- que controlam a maior parte dos pro-
tes do mundo. Outros exemplos de cessos produtivos.
organização da Via Campesina são A Via Campesina contraria as teses
as mobilizações de protesto durante as do fim do campesinato ao surgir como
reuniões da OMC em Genebra, Suíça uma organização mundial em defesa da
(1998), em Seattle, Estados Unidos cultura, da terra, da comida e da nature-
(1999), e em Cancún, México (2003). za, numa época em que as pessoas cada
Nesses protestos, os camponeses exi- vez mais compreendem a importância
giram a saída da OMC das negociações da alimentação saudável e da qualidade
agrícolas. Nesses anos, os movimentos de vida, e sabem que as possibilidades
camponeses inovaram, realizando mo- para a sua realização estão na diversi-
bilizações conjuntas em diferentes ci- dade, na agroecologia, na democracia:
dades do mundo ao mesmo tempo. A na via campesina.

Para saber mais


B ORRAS , S. La Vía Campesina: un movimiento en movimiento. Amsterdã:
Transnational Institute, 2004.
______;; EDELMAN, M.; KAY, C. Transnational Agrarian Movements: Origins and
Politics, Campaigns and Impact. Journal of Agrarian Change, v. 8, n. 2-3, p. 169-204, V
April-July 2008.
DESMARAIS, A. A. La Vía Campesina: Globalization and the Power Peasants.
Halifax: Fernwood Publishing, 2007.

769
Dicionário da Educação do Campo

FERNANDES, B. M. Vía Campesina. In: Latinoamericana – Enciclopedia Contemporánea


de América Latina y el Caribe. Madri: Akal, 2009. V. 1, p. 1.307-1.309.
______;; SILVA, A. A.; GIRARDI, E. P. Questões da Via Campesina. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE GEÓGRAFOS, 6. Anais... Goiânia: Associação de Geógrafos Brasi-
leiros, 2004.
NAVARRO, L. H. DESMARAIS, A. A. Feeding the World and Cooling the Planet:
La Vía Campesina’s Fifth International Conference. Briarpatch Magazine, Jan.-
Feb. 2009. Disponível em: http://briarpatchmagazine.com/articles/view/la-via-
campesinas-fifth-international-conference. Acesso em: 27 out. 2011.
VÍA CAMPESINA. Documentos políticos de La Vía Campesina. Maputo, Moçambique:
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______. La voz de las campesinas y de los campesinos del mundo. Jacarta: Vía Campesina,
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BROCHURE-LVC2011-ES.pdf. Acesso em: 27 out. 2011.
______. ¿Qué significa soberanía alimentaria? Vía Campesina,15 ene. 2003. Dis-
ponível em: http://viacampesina.org/sp/index.php?option=com_content&
view=article&id=78:quignifica-soberanalimentaria-&catid=
21:soberanalimentary-comercio&Itemid=38. Acesso em: 28 out. 2011.
VIEIRA, F. B. Dos proletários unidos à globalização da esperança: um estudo sobre inter-
nacionalismos e a Via Campesina. Rio de Janeiro: Alameda, 2011.

VIOLÊNCIA SOCIAL
Felipe Brito
José Cláudio Alves
Roberta Lobo

Em sentido amplo, violência é qual- mesmos, aos outros e ao produto de


quer ato violador ou constrangedor da sua atividade criadora. Instaura-se uma
integridade psicofísica de mulheres e vasta cadeia de violência social, cons-
homens. A violência é constitutiva da tituída pela indissociável relação entre
modernidade, seja na sua relação com “violência econômica” e “violência
a natureza – impondo uma relação extraeconômica”, nos rastros da (tam-
quantitativa, de extração de riqueza, e bém indissociável) vinculação entre
não qualitativa, na dimensão do sen- mercado e Estado.
sível da relação homem e natureza –, A violência econômica brota das
seja na sua relação com os seres huma- próprias condições econômicas capitalistas,
nos, quantificados abstratamente sob marcadas pela expropriação e a explo-
a forma-mercadoria, estranhando a si ração. Manifesta-se por meio de uma

770
Violência Social

rede capilarizada de usurpações, vio- No tocante ao encarceramento,


lações e constrangimentos cotidianos, aproximamo-nos do número de 500
cujos tentáculos alcançam trabalhadores, mil presos e presas, atingindo o tercei-
desempregados, subempregados etc. ro lugar entre os países que mais encar-
A brutalidade da violência extrae- ceram no mundo, ficando atrás apenas
conômica revela-se na tendência global dos Estados Unidos e da China. A se-
de hipertrofia da dimensão vigilante- letividade é um traço indelével, tanto
coercitiva-punitiva do Estado. Essa ten- do encarceramento quanto do genocí-
dência (que apresenta especificidades dio em nome da lei: jovens negros e pau-
nas regiões do planeta mundializadas perizados formam, incontestavelmente,
pelo capital) adquire contornos catas- a camada social mais vulnerável.
tróficos nas periferias. Além do exacer-
bado aumento do encarceramento, com Manifestações
o conjunto de estratégias de segregação
punitiva a ele ligado – diminuição da
contemporâneas da
maioridade penal, recrudescimento violência social no Brasil
na pena privativa de liberdade, expansão
Apresentaremos, brevemente, três
da tipificação penal, estabelecimento de
processos diferenciados historicamen-
condenações obrigatórias mínimas etc. –,
te, porém semelhantes (e, de algum
destacam-se as mortes perpetradas por
modo, articulados) no que diz respeito à
agentes oficiais do Estado, no exercício
persistente criminalização da pobreza e
de suas “atribuições legais”, e também
dos movimentos populares no Brasil,
pelos agentes oficiosos, contratados no
ao encarceramento e ao extermínio
rentável mercado da guerra e da segu-
como modos de manter a reprodução
rança privada. No interior da socieda-
social do capital na periferia: a Baixada
de civil, multiplicam-se vários níveis de
Fluminense (RJ) com o seu “pioneiris-
preparação (difusos ou concentrados)
mo”, a “pacificação” recente da cidade
para o “combate”, que indicam um pro-
do Rio de Janeiro e a violência espraiada
cesso de naturalização do convívio
no campo do país.
com a violência: posse de armas, apren-
dizado de técnicas de defesa pesso-
al, blindagens de automóveis e casas, “Pioneirismo” da Baixada
colocação de câmeras de vigilância, Fluminense
isolamento de condomínios fechados,
contratação de seguranças privadas Os grupos de extermínio na Bai-
e formação de milícias e gangues para a xada Fluminense são fruto de relações
eliminação dos indesejáveis. Os índices sociais que se constituíram ao longo da
de violência no Brasil são alarmantes: história da região, e que apontam, so-
mais de 50 mil indivíduos morrem por bretudo, para a constituição do poder
homicídio, anualmente, o que repre- local e sua relação com as esferas de
poder estadual e federal. A instrumen-
senta uma média de aproximadamente
25 mortes por 100 mil habitantes, mé- talidade política da violência relaciona- V
dia que nos coloca na posição de sex- se com a subjetividade de determinada
to país com mais mortes violentas no população, construindo formas de per-
mundo (Lima, 2011). petuação de poderes e lógicas sociais

771
Dicionário da Educação do Campo

de justificação do recurso à violên- O impedimento pelo terror de


cia. Entramos, assim, num dos temas qualquer oposição significativa aos
centrais do estudo da violência: a sua interesses dos que exercem o poder
relação com o poder e com o Estado. ocorre ilegal e legalmente, uma vez
Na outra face da moeda, setores eco- que as instâncias do correto processo
nômicos, com sua lucrativa parceria no legal encontram-se, em último caso,
financiamento da estrutura montada comprometidas. Não se trata de um
pelo Estado, garantiriam desde o soldo novo paradigma da violência no qual
dos executores até os fundos de cam- ela ocorreria pelo preenchimento do
panhas eleitorais. A trajetória política vazio deixado por atores e relações so-
de vários matadores na região dá so- ciais e políticas enfraquecidas, nem de
mente uma maior visibilidade à consa- “modos pré-modernos” de segurança
grada participação de organizadores coletiva. Encontra-se a constituição do
de grupos de jagunços ou de extermí- poder e do Estado calcada em empre-
nio no poder local. sas bem-sucedidas de violência priva-
Na Baixada Fluminense, poderia da e ilegal. O caráter oficial, formal e
pensar-se num “totalitarismo social- legal do Estado corresponde não só
mente construído”, pois o consenso à “lavagem” do passado, por demais
sobre a violência faz parte do “cálculo vinculado ao esquema montado, mas
racional” dos atores, mas está também simboliza a consagração popular, o
inscrito nas possibilidades utilizadas reconhecimento incontestável da sua
pelo poder que se consolidou, e se eficiência. Não é preciso criar territó-
rios ocupados e manter à distância o
consolida, na esfera local, estadual e
Estado a fim de garantir os negócios
federal. A subjetividade dos matado-
ilícitos e a fonte de sobrevivência. Nem
res, e sua relação com a esfera política,
adiantam motins e distúrbios nas ruas,
contribuiu para a formulação de uma
pois o consentimento, lado a lado com
situação na qual a violência pode ser
o medo, confirma a inutilidade de se
transformada em credencial política,
recorrer a instâncias absolutamente
capaz de conduzir seus operadores,
manipuladas. Por fim, as votações ex-
e os esquemas que lhe dão suporte, a
pressivas recobrirão as desigualdades
postos-chave do Executivo, Legislati-
sociais com “mandatos populares”.
vo e Judiciário. Montou-se, portanto,
A igualdade política reelabora, assim,
uma estrutura extremamente eficaz de
sob a forma de identificação com os
dominação política local. Com isso,
“anseios populares”, as profundas di-
garantiu-se a mais absoluta credibilida-
ferenças mantidas como determinantes
de diante dos grupos extralocais domi-
na reprodução dessa máquina política
nantes, visto que se tratava de “feudos”
e econômica.
e “currais” de absoluta confiança. Se
escapar do clientelismo é até possí-
vel, o mesmo não se pode dizer do “Pacificação” da cidade do
terror da violência incontrolável, Rio de Janeiro
da compulsória segurança prestada
por matadores e da possibilidade de Podemos considerar que, atual-
que eles sejam usados na resolução mente, a cidade do Rio de Janeiro vem
das discordâncias políticas. sendo um grande laboratório da po-

772
Violência Social

lítica de extermínio como política de capacidade de mediação político-


Estado, o que inclui não somente as administrativa entre as popula-
ações de coerção e extrema violência ções moradoras dos territórios
por parte do Estado, mas também uma da pobreza e o mundo públi-
naturalização das chacinas, que podem co, que representou a força das
ser rapidamente encontradas no cená- associações de moradores. Há
rio embotado da memória social, como lamentáveis indicações de que
as chacinas de Vigário Geral (1993), da esta função pode estar passan-
Candelária (1993), da Baixada (2005), do a mãos insuspeitas: as UPPs.
do Complexo do Alemão (2007), do (Machado da Silva, 2010, p. 3)
Morro da Providência (2008), dentre
outras negligenciadas e/ou silenciadas A rigor, as UPPs institucionalizam
pela grande mídia. a “gestão” policial de territórios, entre-
Surgiram nesse grande laboratório laçando política de segurança pública
as chamadas Unidades de Polícia Paci- com política de intervenção urbana.
ficadora (UPPs). As UPPs buscam, no Por isso, encontram-se diretamente
discurso, a inversão da retórica violenta voltadas para o “planejamento” de um
no combate ao crime organizado, visto modelo de “cidade-empresa” no qual
que sua intenção é garantir a “cidada- se destacam os megaeventos de esporte
nia nas comunidades”. A cidadania, e entretenimento. E as UPPs se revelam
com isso, torna-se mais uma vez ques- ferramentas cruciais à consecução dos
tão de polícia (ou continua sendo uma diversos megaeventos que ocorrerão
questão de polícia com novas vestes): na cidade do Rio de Janeiro, como a
uma dialética negativa posta na regres- Copa do Mundo (2014), as Olimpíadas
são da condição dos direitos humanos. (2016) etc.
De que maneira uma cultura corpora- As UPPs contam com grande apoio
tiva, autoritária e violenta como a se- dos recursos privados, por meio de par-
dimentada na polícia brasileira poderá cerias público-privadas, e fomentam,
garantir o “alargamento” da cidadania além disso, um padrão de “cidadania”
nos territórios socialmente excluídos mediado pelo consumo. Assim, a “pa-
da cidade oficial? Esse problema esbarra cificação” de favelas conta com uma
não apenas na fraca cultura democrá- gama de serviços privados e com li-
tica brasileira, mas também na contra- nhas creditícias especiais para que os
dição existente entre “pacificação” e favelados “pacificados” (muitos deles
“democratização”: subempregados e desempregados) con-
sumam serviços e mercadorias à base
A fraca capacidade reivindicati- de endividamento. Por outra parte, em
va da população que mora nas ritmo muito mais lento e rebaixado,
áreas direta ou indiretamente situam-se as políticas e os serviços pú-
afetadas pelas UPPs, resultan- blicos direcionados a essas faixas terri-
te da convicção de que pre-
cisam ser pacificadas, impede
toriais “pacificadas”.
No mesmo compasso das UPPs,
V
sua aceitação plena como par- desponta também o chamado Cho-
ticipantes legítimos das arenas que de Ordem. Instaurado em janeiro
públicas [...]. Está esvaziada a de 2009 na cidade do Rio de Janeiro,

773
Dicionário da Educação do Campo

o Choque de Ordem realiza operações dutividade do trabalho, seja nos qua-


de repressão e controle de vendedo- dros anuais de assassinatos no campo.
res ambulantes, flanelinhas, morado- Quanto mais avançadas são as formas
res de rua e de construções irregulares de produção no campo, unindo ciência,
ocupadas por trabalhadores sem-teto. tecnologia, latifúndio e capital finan-
Garantir a “ordem” e a “segurança” do ceiro, mais arcaicas e violentas são as
espaço público, nesses termos, é ope- formas de exploração do trabalho hu-
rar uma limpeza social e étnica que eli- mano. Como relação social dominante,
mina os direitos das classes populares, a expansão do capital na periferia se dá
relegadas ao circuito informal de pro- por meio da reprodução social do trabalho
dução e circulação de mercadorias, em não pago, semipago ou pago de modo depre-
especial o direito à moradia e ao traba- ciado (Fernandes, 1975, p. 199). Desen-
lho. O Choque de Ordem é uma políti- volvimento econômico e democratiza-
ca de repressão do governo municipal ção não andaram (e continuam a não
que visa dar conta da barbárie social andar) juntos. Essa cisão se sustenta
(Menegat, 2006) instaurada como pre- na violência econômica, mas também na
missa da própria reprodução ampliada violência extraeconômica: a violência
do capital no Brasil, que, nos proces- física e psíquica de negação do valor
sos de modernização conservadora, da vida.
alimentou a contínua reprodução da No Brasil, o direito dos trabalha-
pobreza, do subemprego, da moradia dores do campo de serem sujeitos
precária e do medo como condição políticos teve e continua tendo uma
de sobrevivência das classes populares trajetória trágica, de paixões humanas
brasileiras. Assustadoramente, cavei- e conquistas, mas ao mesmo tempo de
rões, UPPs e Choque de Ordem garan- ameaças, injustiças e massacres. A mís-
tem a privatização do espaço público, tica da luta pela Reforma Agrária e pela
a contenção das classes perigosas, a defesa do meio ambiente está presente
violência e o extermínio de jovens, ne- nessa história de cabras marcados e na
gros e favelados, espelhando a barbárie força da utopia da terra como cultivo
civilizada em vigor (ibid). da vida – o bem supremo. E a força
dessa utopia é tão ameaçadora para o
Violência espraiada no capital que a luta pela Reforma Agrá-
ria é criminalizada, e os movimentos
campo do país sociais e ambientais, desmoralizados,
As áreas de monocultura, assim numa ação conjunta do Judiciário e do
como as regiões de extração mineral, Legislativo, da mídia e do aparato re-
estão marcadas por uma pobreza se- pressivo do Estado.
cular. Comunidades rurais, quilombos A Via Campesina Brasil denuncia
e aldeias são desterrados com extrema como porta-vozes dessa política de
violência. A natureza é degradada e criminalização os parlamentares ainda
violentada sem limites pela necessida- associados ao latifúndio improdutivo,
de de expansão do capital e pela ação respaldados em histórias de violência e
do Estado. O ser humano, nessa lógi- de crimes cometidos contra os traba-
ca, reduz-se a mero índice banalizado, lhadores rurais. Essa chamada Bancada
seja na composição do valor e da pro- Ruralista (ver ORGANIZAÇÕES DA CLAS-

774
Violência Social

SE DOMINATE NO CAMPO) não hesita em ano [2009] seguem marcando


levantar as bandeiras mais atrasadas, uma situação de extrema vio-
antissociais e de depredação ambiental. lência contra os trabalhadores
Já a bancada do AGRONEGÓCIO se pre- rurais. Entre janeiro e julho de
serva diante dos olhos da sociedade, 2009 foram registrados 366 con-
aparecendo sempre como mais racio- flitos, que afetaram diretamente
nal, menos violenta e mais sensível aos 193.174 pessoas, ocorrendo um
apelos da sociedade e aos problemas assassinato a cada 30 conflitos
ambientais. Ambas as bancadas repre- no primeiro semestre de 2009.
sentam duas faces da mesma moeda: Ao todo, foram 12 assassinatos,
defendem o modelo agrícola do agro- 44 tentativas de homicídio, 22
negócio, responsável por impactos socio- ameaças de morte e 6 pessoas
ambientais profundamente destrutivos (Via torturadas no primeiro semes-
Campesina Brasil, 2010). tre deste ano. (Via Campesina
Aos movimentos sociais que fazem Brasil, 2010).
a luta pela Reforma Agrária cabe conti-
nuar se organizando e lutando para as- Segundo dados da CPT (Comis-
segurar conquistas políticas e econômi- são Pastoral da Terra, 2011), desde o
cas que lhes deem condições dignas de Massacre de Eldorado de Carajás, em
vida. Ao mesmo tempo, terão de quali- 1996, até 2010, 212 pessoas foram as-
ficar o relacionamento com a socieda- sassinadas na região de Marabá (PA)
de para enfrentar e derrotar essa nova em decorrência de conflitos agrários –
ofensiva da ideologia antidemocrática, uma média de 14 execuções por ano.
que insiste em transformar este país Em relação às ameaças de morte no
numa grande fazenda agroexportadora campo, a CPT contabilizou 1.855 pes-
(Via Campesina Brasil, 2010). Segundo soas ameaçadas de 2000 a 2010. Desse
o mesmo texto da Via Campesina: número, 207 pessoas foram ameaçadas
mais de uma vez e, dessas, 42 foram
assassinadas e outras 30 sofreram ten-
A concentração fundiária no
tativas de assassinato. No final do mês
Brasil aumentou nos últimos
de maio de 2011, o Brasil testemunhou
dez anos, conforme o Censo
mais uma vez esse violento modelo de
Agrário [de 2006] do IBGE. A
produção do agronegócio, de desmata-
área ocupada pelos estabeleci-
mento total e de contra-Reforma Agrá-
mentos rurais maiores do que
ria, com o assassinato, em cinco dias,
mil hectares concentra mais de
de quatro trabalhadores que lutavam
43% do espaço total, enquanto
pela defesa dos direitos dos campone-
as propriedades com menos de
ses e da floresta: foram assassinados,
10 hectares ocupam menos
no Pará, o casal de ambientalistas José
de 2,7%. As pequenas proprie-
Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito
dades estão definhando enquan-
Santo e o assentado Eremilton Pereira
to crescem as fronteiras agríco-
las do agronegócio.
dos Santos, e, em Rondônia, o líder do
Movimento Camponês Corumbiara,
V
Conforme a Comissão Pastoral Adelino Ramos. O circuito de atrocida-
da Terra [...], os conflitos agrá- des que tirou a vida de Chico Mendes,
rios do primeiro semestre deste Dorothy Stang e tantos(as) outros(as)

775
Dicionário da Educação do Campo

lutadores(as) do povo continua em violência, processo que demarca a for-


vigor. A Comissão Pastoral da Terra, mação social brasileira.
que há 26 anos realiza o trabalho de A desterritorialização das classes
denúncia da violência do campo no populares nas áreas de florestas, ribei-
Brasil, afirma: rinhas e litorâneas (mangues), das po-
pulações sem-terra e dos camponeses
O que se assiste em nosso país é vem se intensificando como resultado
uma contra-reforma agrária e da opção política do Estado brasileiro,
é uma falácia o tal desmatamento que, em contradição com o proces-
zero. O poder do latifúndio, so de democratização da sociedade,
travestido hoje de agronegó- alia-se ao capital financeiro, às corpora-
cio, impõe suas regras afron- ções agroquímicas e aos latifundiários,
tando o direito dos posseiros, os quais monopolizam não somente a
pequenos agricultores, comuni- terra, mas também o conjunto dos re-
dades quilombolas e indígenas e cursos naturais.
outras categorias camponesas. Exemplo dessa opção política está
Também avança sobre reser- na aprovação do novo Código Florestal,
vas ambientais e reservas ex- visto que as mudanças empreendidas
trativistas. O apoio, incentivo pela nova legislação ambiental – como
e financiamento do Estado ao a flexibilização das áreas de preser-
agronegócio, o fortalece para vação permanente nas áreas rurais –
seguir adiante, acobertado pelo modificarão a produção agrícola, bem
discurso do desenvolvimento como as políticas de agricultura fami-
econômico, que nada mais é liar. Liberdade para desmatar e para
do que a negação dos direitos intensificar a especulação imobiliária,
fundamentais da pessoa, do a produção das grandes empresas na-
meio ambiente e da natureza. cionais e estrangeiras (por exemplo, ce-
(Comissão Pastoral da Terra, lulose e papel), a agricultura extensiva
2011) de monocultivo para a exportação (por
exemplo, soja, milho, cana-de-açúcar),
Após 25 anos de “consolidação” perpetuando a degradação ambiental,
da democracia no Brasil (1985-2010), bem como o desrespeito aos direitos
os trabalhadores do campo são vistos humanos, colocando-nos, com a per-
como entraves ao “crescimento econô- manência do trabalho escravo no pro-
mico” pelos grandes projetos do capital. cesso de reprodução do capital, em
Esse “novo” ciclo de desenvolvimento situações “pré-republicanas”. Esse é o
alavancado pelo agronegócio não se modelo agrícola, ambiental e de uso do
diferencia do arcaico e secular proces- solo dominante no Brasil, onde Estado,
so de desterritorialização das classes capital financeiro e Bancada Ruralista
populares e de territorialização do ca- perpetuam e reforçam uma “moderni-
pital, por meio de extremas ações de zação ultraconservadora”.

776
Violência Social

Para saber mais


ARANTES, P. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007.
ALVES, J. C. S. Dos barões ao extermínio: uma história de violência na Baixada
Fluminense. Duque de Caxias, Rio de Janeiro: APPH–Clio, 2003.
BRITO, F. Acumulação (democrática) de escombros. 2010. Tese (Doutorado em Serviço
Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2010.
CECENA, A. E. (org.). Os desafios das emancipações em um contexto militarizado.
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Conflitos no campo Brasil 2010. Goiânia:
CPT, 2011. Disponível em: http://www.cptnacional.org.br/index.php?option=
com_jdownloads&Itemid=23&view=finish&cid=192&catid=4. Acesso em:
1º nov. 2011.
______. O Estado não pode lavar as mãos diante de mortes anunciadas. Nota públi-
ca. Goiânia: CPT, 30 maio 2011. Disponível em: http://www.cptnacional.org.
br/index.php?option=com_jdownloads&Itemid=23&view=finish&cid=222&
catid=28. Acesso em: 3 nov. 2011.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaios de interpretação sociológica.
Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
LIMA, R. S. de. Estereótipos da violência. Carta Capital, p. 48-49, 13 abr. 2011.
LOBO, R. Arte, cidade e democracia. In: MESA-REDONDA ARTE E SAÚDE. Rio de
Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, 2010.
MENEGAT, M. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
OLIVEIRA, F. de;; RIZEK, C. S. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.
REDE RIO CRIANÇA et al. Os muros nas favelas e o processo de criminalização. Rela-
tório. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: http://global.org.br/wp-content/
uploads/2009/12/Relat%C3%B3rio-Os-Muros-nas-Favelas-e-o-Processo-de-
Criminaliza%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 1º nov. 2011.
MACHADO DA SILVA, L. A. Os avanços, limites e perigos das UPPs. O Globo, Rio de
Janeiro, 20 mar. 2010. Prosa & Verso, p. 3.
VIA CAMPESINA BRASIL. A ofensiva da direita para criminalizar os movimentos sociais.
São Paulo: Via Campesina Brasil, 2010. Disponível em: http://global.org.br/
w p-content/uploads/2010/02/criminaliza%C3%A7%C3%A3o-dos-mov.
-sociais.-Via-Campesina.pdf. Acesso em: 1º nov. 2011.
V

777
Autores

Autores
ADEMAR BOGO é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST).
ADRIANA D’AGOSTINI é doutora em Educação pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA) e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
ALEXANDRE PESSOA DIAS é mestre em Engenharia Ambiental pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor-pesquisador da Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
ANA PAULA SOARES DA SILVA é doutora em Psicologia pela Universidade de São
Paulo (USP), professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Fi-
losofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLP-USP) e pesquisadora do
Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil
(Cindedi-USP).
ANA RITA DE LIMA FERREIRA é mestranda em Educação do Campo pela Univer-
sidade de Brasília (UnB) e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB).
ANDRÉ CAMPOS BÚRIGO é mestre em Educação Profissional em Saúde pela Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e professor-pesquisador
na mesma instituição.
ANDRÉ SILVA MARTINS é doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense
(UFF) e docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF).
ANTÔNIO CANUTO é secretário da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral
da Terra (CPT).
ANTONIO ESCRIVÃO FILHO é mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp) e assessor jurídico da organização de direitos humanos Terra de Direitos.
A PARECIDA DE FÁTIMA TIRADENTES DOS S ANTOS é doutora em Educação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora adjunta da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
BERNARDO MANÇANO FERNANDES é doutor em Geografia Humana pela Universi-
dade de São Paulo (USP), professor dos cursos de graduação e pós-graduação em
Geografia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e coordenador do Núcleo
de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera) e da Cátedra Unesco
de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial.

779
Dicionário da Educação do Campo

CARLOS EDUARDO MAZZETTO SILVA é engenheiro agrônomo pela Universidade


Federal de Viçosa (UFV), doutor em Geografia pela Universidade Federal Flu-
minense (UFF) e professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
CARLOS WALTER PORTO-GONÇALVES é doutor em Geografia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor do Departamento de Geografia da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
CAROLINE BAHNIUK é doutoranda em Educação pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e integrante do Setor de Educação do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
CELI ZULKE TAFFAREL é doutora em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), pesquisadora com apoio do Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e professora titular da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
CLARICE APARECIDA DOS SANTOS é mestre em Educação do Campo pela Universi-
dade de Brasília (UnB) e coordenadora-geral de Educação do Campo e Cidadania
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
CLAUDIO DE LIRA SANTOS JÚNIOR é doutor em Educação pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA) e professor adjunto na mesma universidade.
CLIFFORD ANDREW WELCH é doutor em História pela Duke University e professor
adjunto de História do Brasil Contemporâneo na Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp).
CONCEIÇÃO PALUDO é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), professora do curso de Pedagogia e do Programa de
Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), coordenadora do Núcleo Rio Grande do Sul do Observatório em Edu-
cação do Campo e membro da coordenação colegiada da turma especial do curso
de Medicina Veterinária, convênio UFPel–Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra).
DELMA PESSANHA NEVES é antropóloga, doutora em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora do Programa de Pós-
graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF)
e do Programa de Professor Visitante Nacional Sênior (PVNS) da Universidade
Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
DENIS MONTEIRO é engenheiro agrônomo e secretário executivo da Articulação
Nacional de Agroecologia (ANA).
DOMINIQUE MICHÈLE PERIOTO GUHUR é agrônoma, mestre em Educação pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM) e integrante da Coordenação Político-
Pedagógica da Escola Milton Santos, do Centro de Formação em Agroecologia
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná.

780
Autores

EDGAR JORGE KOLLING é especialista em Educação do Campo pela Universidade


de Brasília (UnB) e membro da coordenação do Setor de Educação do Movimen-
to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
EDNA RODRIGUES ARAÚJO ROSSETTO é mestre e doutoranda em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Setor de Educação
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de São Paulo e do
coletivo da Educação Infantil do MST.
EDUARDO LUIZ ZEN é mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB)
e técnico em Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea).
EITEL DIAS MAICÁ é engenheiro agrônomo pela Faculdade de Agronomia Eliseu
Maciel (Faem) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e responsável técnico
pela produção das Sementes Agroecológicas BioNatur.
ELAINE LACERDA é mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).
ELIANA DA SILVA FELIPE é doutora em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e professora adjunta do Instituto de Ciências da Educação
da Universidade Federal do Pará (UFPA).
ELISA GUARANÁ DE CASTRO é doutora em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e professora
colaboradora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvi-
mento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da UFRRJ.
FELIPE BRITO é mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e professor do curso de Serviço Social da UFF/Rio das Ostras.
FERNANDO FERREIRA CARNEIRO é doutor em Epidemiologia pela Universidade
Federal de Mina Gerais (UFMG) e professor adjunto do Departamento de Saúde
Coletiva do Núcleo de Estudos em Saúde Pública (Nesp) da Universidade de
Brasília (UnB).
FERNANDO MICHELOTTI é mestre em Planejamento do Desenvolvimento pela
Universidade Federal do Pará (UFPA), professor e vice-coordenador do Campus
Marabá da UFPA.
FLÁVIA TEREZA DA SILVA é formada em Pedagogia pela Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes) e membro do Setor de Educação do Movimento dos Tra-
balhadores Rurais Sem Terra (MST) de Pernambuco e do coletivo da Educação
Infantil do MST.
FRANCISCO DE ASSIS COSTA é doutor em Economia pela Universidade de Berlim,
professor associado do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Sus-

781
Dicionário da Educação do Campo

tentável do Trópico Úmido, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA),


e do Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal do Pará
(UFPA), professor colaborador externo do curso de Pós-graduação em Ciência
do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e bol-
sista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
GABRIEL GRABOWSKI é doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e professor e assessor de Assuntos Interinstitucionais
da Universidade da Federação de Estabelecimento de Ensino Superior em Novo
Hamburgo (Feevale).
GAUDÊNCIO FRIGOTTO é doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Cató-
lica de São Paulo (PUC-SP), professor do Programa de Pós-graduação em Políti-
cas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj), sócio fundador da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Educação (Anped) e membro do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais
(Clacso) e do Instituto Pensamiento y Cultura en América Latina (Ipecal).
G UILHERME D ELGADO é doutor em Ciência Econômica pela Universidade Es-
tadual de Campinas (Unicamp) e professor titular do Departamento de Eco-
nomia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), atuando, principalmen-
te, nos temas agricultura, política agrícola, política social, previdência social
e previdência rural.
H ORACIO M ARTINS DE C ARVALHO é engenheiro agrônomo pela Escola Nacio-
nal de Agronomia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
consultor técnico em planejamento agrícola e organização social no campo e
militante social.
ISABEL BRASIL PEREIRA é doutora em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora-pesquisadora da Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
ISABELA CAMINI é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) e integra o Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST).
ISLENE FERREIRA ROSA é mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal do
Ceará (UFC) e integra o Núcleo Tramas da Faculdade de Medicina da mesma
instituição.
JACQUES TÁVORA ALFONSIN é mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (Unisinos), advogado de movimentos populares, coordenador-geral da
ONG Acesso Cidadania e Direitos Humanos, e procurador aposentado do estado
do Rio Grande do Sul.
JADIR ANUNCIAÇÃO DE BRITO é doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor de Direito Constitucional e
de Direitos Humanos na graduação e no mestrado em Direito e Políticas Públicas
da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de

782
Autores

Janeiro (UNIRio) e coordenador do Centro de Referência em Direitos Humanos


(CRDH) da mesma universidade.
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA é doutor em História pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), professor adjunto de História da América Contemporânea da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e membro do Programa
de Pós-graduação em História da mesma universidade.
J OÃO P EDRO S TEDILE é economista pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUC-RS), pós-graduado em Economia Política pela
Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) e militante social da
Reforma Agrária.
JOHANNES DOLL é doutor em Filosofia pela Universidade Koblenz-Landau
(Alemanha) e professor de Didática Geral (graduação) e Educação e Envelheci-
mento (pós-graduação) da Faculdade de Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).
JORGE ALBERTO ROSA RIBEIRO é doutor em Sociologia da Educação pela Universidad
de Salamanca (USAL), professor associado da Faculdade de Educação da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Programa de
Pós-graduação em Educação da mesma universidade.
JOSÉ CARLOS GARCIA é mestre e doutorando em Teoria do Estado e Direito Cons-
titucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e
juiz federal no Rio de Janeiro.
JOSÉ CLÁUDIO ALVES é mestre em Ciência Política pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), doutor em Sociologia pela Universida-
de de São Paulo (USP) e professor titular de Sociologia e pró-reitor de Extensão
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ).
JOSÉ MARCELINO DE REZENDE PINTO é doutor em Educação pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), professor associado da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e ex-
diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).
JOSÉ MARIA TARDIN é técnico agropecuário e graduando em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra e membro da Coordenação da Escola Latino-
Americana de Agroecologia (ELAA).
JUVELINO STROZAKE é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) e advogado.
LAIS MOURÃO SÁ é doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB),
professora do curso de Licenciatura em Educação do Campo e membro do Pro-
grama de Pós-graduação em Educação da UnB.
LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS é doutora em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), professora do Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade

783
Dicionário da Educação do Campo

Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e pesquisadora do Conselho


Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
LIA GIRALDO DA SILVA AUGUSTO é formada em Medicina pela Universidade de
São Paulo (USP), doutora em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), pesquisadora responsável pelo Laboratório de Saúde, Ambiente e
Trabalho do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz/PE) e professora adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Univer-
sidade de Pernambuco (UPE).
LIA MARIA TEIXEIRA DE OLIVEIRA é doutora pelo Programa de Pós-graduação
de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), professora adjunta da UFRRJ,e coordenadora
da área de Agroecologia e Segurança Alimentar da Licenciatura em Educação do
Campo, na mesma universidade.
LIA TIRIBA é doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Com-
plutense de Madri, pós-doutora em Educação pela Universidade de Lisboa e pro-
fessora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal
Fluminense (UFF).
LISETE R. G. ARELARO é doutora e livre-docente em Educação pela Universidade de
São Paulo (USP), professora titular do Departamento de Administração Escolar e
Economia da Educação da Faculdade de Educação da USP, diretora da Faculdade
de Educação da USP, e pesquisadora na área de Políticas Públicas em Educação,
Gestão e Financiamento da Educação e Ensino Fundamental de Nove Anos.
LÚCIA MARIA WANDERLEY NEVES é doutora em Educação pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
LUIZ CARLOS DE FREITAS é pós-doutor em Educação pela Universidade de São
Paulo (USP) e professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Esta-
dual de Campinas (Unicamp) na área de Teoria Pedagógica.
LUIZ CARLOS PINHEIRO MACHADO é engenheiro agrônomo, doutor em Agronomia
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professor catedrático
aposentado da UFRGS e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pre-
sidente do Instituto André Voisin, colaborador dos movimentos sociais e consul-
tor agropecuário internacional.
MANOEL DOURADO BASTOS é doutor em História pela Universidade Estadual Pau-
lista (Unesp), pós-doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Fe-
deral de Santa Catarina (UFSC), professor substituto de Sociologia da Arte na
Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), integrante do Coletivo de
Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pesquisador
dos grupos Modos de Produção e Antagonismos Sociais (FUP/UnB), Literatura
e Modernidade Periférica e Forma Estética (TEL/UnB), Processo Social e Edu-
cação do Campo (TEL/UnB).

784
Autores

MARCELA PRONKO é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense


(UFF) e professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
MARCELO CARVALHO ROSA é doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), professor do Departamento de Sociologia
da Universidade de Brasília UnB) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
MÁRCIA MARA RAMOS é licenciada em Educação do Campo pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Coletivo Nacional do Setor de
Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
MÁRCIO ROLO é professor de Matemática da Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e doutorando do Programa de Pós-graduação em
Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj).
MARCUS ORIONE GONÇALVES CORREIA é doutor e livre-docente pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (USP), juiz federal em São Paulo e professor
associado da Faculdade de Direito da USP, ministrando aulas na graduação e na
pós-graduação, nas áreas de Direito da Seguridade Social e Direitos Humanos.
MARIA CIAVATTA é doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com pós-doutorado em Sociologia do Trabalho na
Università degli Studi di Bologna (Itália), professora titular em Trabalho e Edu-
cação associada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense (UFF), professora visitante da Faculdade de Serviço Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisadora do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
MARIA CLARA BUENO FISCHER é doutora em Educação pela University of
Nottingham, pós-doutora em Educação pela Universidade de Lisboa e professora
do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
MARIA CRISTINA VARGAS é especialista em Educação do Campo pela Universidade
de Brasília (UnB) e membro da coordenação do Setor de Educação do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
MARIA LÚCIA DE PONTES é defensora pública do estado do Rio de Janeiro.
MARIA NALVA RODRIGUES DE ARAÚJO é doutora em Educação pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA), docente do departamento de Educação da Universi-
dade do Estado da Bahia (Uneb) e integra o coletivo de Educação de Jovens e
Adultos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Fórum
Regional de Educação de Jovens e Adultos do Extremo Sul da Bahia.
MARILDA TELES MARACCI é doutora em Geografia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) e ativista da Rede Alerta Contra o Deserto Verde/ES.

785
Dicionário da Educação do Campo

MARÍLIA LOPES CAMPOS é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do


Rio de Janeiro (UFRJ), professora adjunta na Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ) e coordenadora pedagógica da Licenciatura em Educação do
Campo da mesma universidade.
MARISE RAMOS é doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense
(UFF), professora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e For-
mação Humana da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (Uerj), professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec-
nologia do Rio de Janeiro (IFRJ), em exercício de cooperação técnica na Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), onde é coordenadora,
e professora do Programa de Pós-graduação em Educação Profissional em Saúde,
na mesma instituição.
MARLENE RIBEIRO é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), pós-doutora em Políticas Públicas e Formação Hu-
mana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), colaboradora do
Observatório da Educação, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pes-
quisas Educacionais (Inep), e professora e pesquisadora vinculada ao Programa
de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS.
MAURÍCIO CAMPOS DOS SANTOS é engenheiro civil e mecânico, assessor político e
técnico de movimentos populares e militante da Rede de Comunidades e Movi-
mentos contra a Violência.
MIGUEL ENRIQUE ALMEIDA STEDILE é mestre em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do Instituto de Educação
Josué de Castro em Veranópolis (RS) e integrante do grupo de pesquisa Modos
de Produção e Antagonismos Sociais (FUP/UnB).
MIGUEL G. ARROYO é doutor em Educação pela Stanford University, pós-doutor
em Educação pela Universidad Complutense de Madrid e professor da Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
MIGUEL LANZELLOTTI BALDEZ é advogado popular, professor na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e assessor dos movimentos de luta pela terra,
urbanos e rurais. A partir dos anos de 1980, dedicou-se à organização do Nú-
cleo de Regularização de Loteamentos Clandestinos e Irregulares da Procuradoria
Geral do Estado, uma demanda das comunidades excluídas da cidade do Rio
de Janeiro.
M ÔNICA CASTAGNA M OLINA é doutora em Desenvolvimento Sustentável pela
Universidade de Brasília (UnB), professora do curso de Licenciatura em Edu-
cação do Campo e membro do Programa de Pós-graduação em Educação, na
mesma instituição.
MÔNICA COX DE BRITTO PEREIRA é bióloga, doutora em Ciências Sociais em De-
senvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ), professora adjunta do Departamento de Ciências Geográfi-

786
Autores

cas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora do Programa


de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do
Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento da UFPE.
NELSON GIORDANO DELGADO é mestre em Economia pela Universidade de Nova
York e doutor pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desen-
volvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (CPDA/UFRRJ), e professor associado do CPDA/UFRRJ.
NILCINEY TONÁ é agrônomo, especialista em Educação do Campo e Desenvol-
vimento, integrante do Setor de Formação do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra do Paraná (MST/Paraná) e responsável pelo acompanhamento
da rede de escolas de Agroecologia do MST e da Via Campesina no Paraná.
O LAVO B. C ARNEIRO é mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-
graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e consultor em
desenvolvimento rural.
PAULO PETERSEN é agrônomo, coordenador-executivo da Assessoria e Serviços a
Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA) e vice-presidente da Associação
Brasileira de Agroecologia (ABA).
PAULO ALENTEJANO é doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), professor da Faculdade
de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) e pesquisador-visitante da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV/Fiocruz).
PAULO VANNUCHI é mestre em Ciência Política pela Universidade de São Pau-
lo (USP), participou ativamente dos movimentos de resistência à ditadura civil-
militar (1964-1985), trabalhou na elaboração do livro Brasil nunca mais, coordena-
do por d. Paulo Evaristo Arns e ocupou o cargo de ministro de Estado chefe da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República de 2005 a 2010.
PEDRO IVAN CHRISTOFFOLI é doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Uni-
versidade de Brasília (UnB) e professor do curso de Agronomia e coordenador do
curso de Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial do Campus de Laranjei-
ras do Sul/PR, da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
RAFAEL LITVIN VILLAS BÔAS é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de
Brasília (UnB), professor de Licenciatura em Educação do Campo da Faculdade
UnB Planaltina (FUP/Unb), integrante do Coletivo de Cultura do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra e pesquisador dos grupos Modos de Produção
e Antagonismos Sociais (FUP/UnB), Literatura e Modernidade Periférica (TEL/
UnB) e Forma Estética, Processo Social e Educação do Campo (TEL/UnB).
RAQUEL MARIA RIGOTTO é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará
(UFC) e integra o Núcleo Tramas da Faculdade de Medicina da mesma instituição.

787
Dicionário da Educação do Campo

REGINA BRUNO é socióloga e professora do Programa de Pós-graduação de


Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ).
RENATO EMERSON NASCIMENTO DOS SANTOS é doutor em Geografia Humana pela
Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor adjunto do Departamen-
to de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
ROBERTA LOBO é doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense
(UFF), professora do Programa de Pós-graduação em Educação, Contextos Con-
temporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC) e coordenadora do curso de
Licenciatura em Educação do Campo, ambos da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ), e pesquisadora do Núcleo de Tecnologia Educacional
em Saúde da Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
ROBERTO LEHER é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, professor
associado da Faculdade de Educação e da Pós-graduação em Educação da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Observatório Social
da América Latina, do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso),
bolsista sênior da “Cátedra Ipea/Capes para o Desenvolvimento”, do Instituto
de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), e pesquisador do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
ROBERTO MALVEZZI (GOGÓ) é formado em Filosofia e Estudos Sociais pela Fa-
culdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, em São Paulo, e em
Teologia pelo Instituto Teológico de São Paulo.
ROSELI SALETE CALDART é doutora em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenadora da Unidade de Educação Superior
do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra) e
integrante do Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST).
SERGIO ANTONIO GÖRGEN é religioso da Ordem dos Frades Menores (francisca-
nos), agente de pastoral em Hulha Negra, Diocese de Bagé/RS, coordenador ge-
ral do Instituto Cultural Padre Josimo, membro do Conselho Estadual de Desen-
volvimento Econômico e Social do Estado do Rio Grande do Sul e coordenador
do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
SÉRGIO HADDAD é economista e pedagogo, doutor em História e Sociologia da
Educação pela Universidade de São Paulo (USP), diretor presidente do Fundo
Brasil de Direitos Humanos e assessor da ONG Ação Educativa.
SERGIO PEREIRA LEITE é pós-doutor em Ciências Sociais pela École des Hautes
Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França, e professor associado do
Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agri-
cultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ).

788
Autores

SÉRGIO SAUER é doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pro-


fessor da Universidade de Brasília (FUP/UnB).
SIMONE RAQUEL BATISTA FERREIRA é doutora em Geografia (Ordenamento Terri-
torial e Ambiental) pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora
do Laboratório de Estudos dos Movimentos Sociais e Territorialidades (UFF).
SONIA REGINa DE MENDONÇA é doutora em História pela Universidade de São
Paulo (USP), professora no Programa de Pós-graduação em História da Universi-
dade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora nível I do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
VALTER DO CARMO CRUZ é doutor em Geografia pela Universidade Federal Flu-
minense (UFF) e professor do Departamento de Geografia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
VANDERLEIA LAODETE PULGA DARON é mestre em Educação pela Universidade
de Passo Fundo (UPF), doutoranda em Educação na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora e pesquisadora do Grupo Hospitalar
Conceição, em Porto Alegre. Atua na área de saúde popular com o Movimento
de Mulheres Camponesas (MMC Brasil).
VÂNIA CARDOSO DA MOTTA é doutora em Serviço Social pela Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (UFRJ), professora adjunta da Faculdade de Educação da
mesma universidade, professora colaboradora do Programa de Pós-graduação
em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj) e bolsista júnior da “Cátedra Ipea/Capes para o Desenvolvimen-
to”, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea).
VIRGÍNIA FONTES é doutora em Filosofia pela Universidade de Paris X (Nan-
terre) e professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/
Fiocruz), do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF/MST).

789
Este livro foi impresso pela Cromosete Gráfica e Editora, para
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz e
Editora Expressão Popular, em fevereiro de 2012. Utilizaram-se
as fontes Garamond e Humanst521 na composição, papel offset
75g/m2 para o miolo e cartão supremo 300 g/m2 para a capa.

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