Anda di halaman 1dari 11

JOSÉ FELICIANO DE CASTILHO E A TRADIÇÃO CLÁSSICA NO SÉC.

XIX

Brunno V. G. Vieira (FCL-UNESP)

1. INTRODUÇÃO

Durante a pesquisa bibliográfica sobre a recepção lusófona de Lucano, poeta


épico latino do séc. I d. C., que resultou no capítulo “Farsália e sua recepção lusófona:
um panorama” de minha tese de doutoramento, deparei-me com um conto de Machado
de Assis intitulado “Decadência de dois grandes homens”. Lendo o conto, lá pelas
tantas, devidamente afastados da margem surgiam estes dois versos:

Nos altos, frente a frente, os dois caudilhos,


Sôfregos de ir-se às mãos, já se acamparam.

O conto narrava a história de um personagem que era a reencarnação de Marco


Bruto (o assassino de César) e que tinha um gato de nome César. Angustiava aquele
renascido Bruto o fato de, lá nos albores de Roma, César, no momento de sua morte, ter
prometido que faria fatídicos também a ele os mesmos “idos de março”. Ora, a história
se passa num belo dia 15 de março do final do séc. XIX em pleno Rio de Janeiro.
Introduziam os referidos versos a seguinte formulação, cito Machado:

O gato saltou à mesa e avançou para ele [Marco Bruto].


Fitaram-se alguns instantes, o que me trouxe à memória
aqueles versos de Lucano, que o Sr. Castilho José nos deu
magistralmente assim:
Nos altos, frente a frente, os dois caudilhos,
Sôfregos de ir-se às mãos, já se acamparam.
(ASSIS, 1966, p. 28)

Desde o momento em que li esses versos e os nomes de Lucano e Castilho, aos


meus olhos de lucanista, já pouco importava o interessantíssimo final do conto – que,
diga-se, lembra muito o Sonho de Cipião de Cícero com algumas antecipações do que
seria o delírio de Brás Cubas. Os decassílabos traduziam os primeiros versos do canto
VI da Farsália, Postquam castra duces pugnae iam mente propinquis/ imposuere iugis
e até aquele instante, eu jamais havia ouvido o nome de Castilho José e cheguei mesmo
a especular se ele não seria também uma criação machadiana. Não era. O magistral
tradutor daqueles versos era José Feliciano de Castilho (1810-1879), homem de letras
que exerceu grande influência na cena literária do Segundo Império e sobre o qual
versará o presente artigo.
Desde o resgate das traduções de Odorico Mendes (1799-1864) levado a cabo
por Haroldo de Campos (1970, 1997, 1999), Antônio Medina Rodrigues (HOMERO,
1992) e, mais recentemente, por Paulo Sérgio de Vasconcellos (2001), vem se
consolidando um legítimo interesse em construir uma história da tradução dos clássicos
greco-romanos em português. Convém lembrar, aliás, que, se o caso de Odorico
Mendes é exemplar dessa área de estudos, não é único. Considerando que essa história
da tradução ultrapassa os limites geográficos de Brasil-Portugal e, por isso mesmo,
trata-se de um resgate da recepção lusófona dos autores greco-romanos, há que se citar
recentes reedições de traduções do séc. XVIII e XIX, tais como, respectivamente, os

923
fragmentos das Metamorfoses de Ovídio vertidos por Bocage (OVÍDIO, 2007) e a
tradução integral da Eneida de Virgílio a cargo do camonista português José Victorino
Barreto Feio (VIRGÍLIO, 2004), ambas obras dignas representantes da valorização
desse resgate pelo mercado editorial brasileiro. Buscando contribuir com a pesquisa de
traduções lusófonas dos clássicos greco-romanos e com a recepção desses textos em
nossas letras, este artigo apresenta os primeiros resultados de um projeto de pesquisa 1
que propõe inventariar, estudar e divulgar o legado de José Feliciano de Castilho, tanto
no tocante às suas traduções, quanto aos estudos sobre temas clássicos.

2. CASTILHO JOSÉ E SEU CONTEXTO

Castilho José, como era conhecido no meio jornalístico e literário, era irmão do
poeta Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875), figura central do Romantismo em
Portugal. Trata-se de um distinto luso-brasileiro – como bem definiu o seu biógrafo
Hélio Vianna (1950, p. 482) – que viveu no Rio de Janeiro de 1847 até sua morte em
1879. Ele possui uma obra vastíssima de filólogo, latinista e tradutor de latim como bem
testemunham as edições comentadas dos quinhentistas Fernão Mendes Pinto e João de
Lucena, os estudos sobre a obra de Camões e Bocage, os comentários a Virgílio e
Ovídio, além das traduções de excertos de Propércio, Virgílio, Marcial e Lucano.

Ilustração de Castilho José (DESMAISONS, 1861)

Joaquim Manuel de Macedo, no necrológio de Castilho José, comparando-o aos


mestres do Romantismo português Herculano, Garrett e Castilho, bem mostra seu valor
como erudito: “o Dr. e Conselheiro José Feliciano tão notável se mostrou como literato
e prosador de ótima escola, que pôde ver seu nome honorificamente lembrado e
aplaudido entre os daqueles príncipes da literatura portuguesa do século dezenove”
(MACEDO, 1879, p. 311). Todavia, mesmo com o vulto de sua obra, Castilho José

924
praticamente esquecido se não fosse pela nem sempre terna lembrança de sua polêmica
com José de Alencar, que o faz ser citado pela grande maioria das Histórias da
Literatura Brasileira desde Sílvio Romero até José Aderaldo Castelo. Embora essa
contenda tenha ocorrido no final da vida de Castilho José, quando ele já havia
consolidado seu prestígio como intelectual e erudito, e ainda que esse incidente seja
marcado por uma afirmação nacional que beira a xenofobia, é impossível deixar de
comentá-lo aqui a título de contextualização.
Castilho José havia se desentendido com José de Alencar quando se colocou a
favor da “Lei do Ventre Livre” proposta pelos partidários do imperador D. Pedro II, lei
contra a qual Alencar se opunha. As diferenças no campo político-partidário chegaram
ao fórum das letras. O autor luso-brasileiro acompanhado do romancista nordestino
Franklin Távora publicou uma série de artigos em forma de cartas apontando erros de
norma gramatical e de verossimilhança nos romances Iracema e O Gaúcho 2 .
Diante desses fatos, talvez movidos pelo espírito de nacionalidade da crítica
brasileira tão bem diagnosticado e estudado por Afrânio Coutinho no seu ensaio A
tradição afortunada (1968), os críticos e historiadores da nossa literatura têm
fustigado com veemência o pivô dessa polêmica que afetava o autor de Iracema grande
romancista brasileiro do período. Sílvio Romero diz que contra José de Alencar havia
“patriotada lusa, desejosa de deprimir a primeira figura literária brasileira do tempo” e
comenta a ingenuidade de Franklin Távora que “não estava bem ao par das tramóias de
José Feliciano” (ROMERO, 1954, p.1603). Lúcia Miguel Pereira chega a dizer que
Castilho José teria vindo ao Brasil “por convite do próprio imperador, para combater a
influência de José de Alencar” (1988, p.107) 3 e Agripino Grieco acrescenta alguns
vitupérios mais: “escritor de aluguel que ajudou a traduzir o Fausto 4 sem saber palavra
de alemão e no Rio foi contratado para investir contra Alencar, touche-à-tout frenético
que explorou as frascarices 5 ovidianas” (1960, p. 150). Cavalcanti Proença é mais
parcimonioso nas críticas e com justiça dá vulto à erudição de Castilho José a quem
descreve como “escritor português, erudito, mas sem talento criador, o mesmo que
negou em campanha sistemática a obra de José de Alencar” (1971, p. 187).
Defendendo o outro lado da questão Vianna, o biógrafo de Castilho José, oferece
uma visão mais ponderada sobre a polêmica:

Quanto ao mérito dessas críticas, não têm cabimento nem as


objurgatórias de Silvio Romero, nem sua rejeição sem maior exame,
ou com aceitação das apaixonadas defesas do próprio atacado
[Alencar]. Na parte da língua, em que mais se distinguiu Castilho
embora não encontre razão em muitas de suas corrigendas, reconhece
a procedência de outras o autorizado prof. Gladstone Chaves de Melo.
A propósito, convém lembrar que antes das Questões do dia já
haviam apontado erros em Alencar o português Pinheiro Chagas e o
brasileiro Antônio Henriques Leal. (VIANNA, 1950, p. 481)

Não obstante as razões de Castilho José, ficou evidente a vitória de Alencar


sobre a contenda, o que levou injustamente, para usar o termo de Henrique Perdigão
(1934, p. 274), sua obra a um grande ofuscamento a despeito do reconhecimento de
Machado de Assis que ao se referir ao luso-brasileiro denota um misto de respeito e
admiração não condizentes com as diatribes da crítica.
Apesar de o próprio Machado de Assis, talvez por respeito aos dois
contendores 6 , não ter tomado um partido claro sobre a disputa, mais de uma vez elogia
Castilho José em sua obra, seja por suas traduções, como vimos acima no caso dos

925
versos de Lucano, seja pelo estilo castiço de suas obras, como em comentário a uma
biografia de D. Pedro V: “deu-nos o Sr. Castilho José mais uma ocasião de apreciar os
conhecimentos profundos da língua que possui” (ASSIS, 1955, p. 27).
É possível notar em outros momentos da obra machadiana traços de convivência
e afeto mútuo entre esses homens de letras, como atestam a dedicatória de “Os deuses
de casaca” (1866) e as exéquias feitas ao poeta Castilho Antônio em que Machado
elogia o estro de Castilho José com o lisonjeiro epíteto de “talento possante” (ASSIS,
1959, p. 988). Justifica essa proximidade, uma observação de Proença (1971, p. 187)
que em sua nota biográfica sobre Machado menciona o fato de que, quando jovem, o
escritor fazia parte do grupo literário de José Feliciano de Castilho, do qual
“participavam Emílio Zaluar, Ernesto Cibrão, Artur Napoleão e, mais tarde, Faustino
Xavier Novais, poeta satírico”, este último irmão de D. Carolina futura esposa de
Machado.

3. A OBRA DE CASTILHO JOSÉ

Depois de falar das presenças marcantes de José de Alencar e Machado de Assis


na vida de Castilho José, passo a tratar das traduções e textos sobre a tradição greco-
romana publicados por ele e que o fazem um dos grandes eruditos do Brasil do séc.
XIX. Sua produção literária em solo brasileiro começa com a publicação do periódico
Íris a partir de 1848 já no primeiro ano de sua chegada ao Brasil. Segundo a opinião de
Menezes (1978), esse periódico “é um dos melhores do século passado”. Trata-se de um
jornal quinzenal em fascículos em que Castilho José figurava como redator e principal
colaborador entre os ilustres nomes de Antônio Gonçalves Dias, Manuel de Araújo
Porto Alegre e Joaquim Manuel de Macedo. Uma vez que a publicação se dedicava à
poesia e às letras não é de se duvidar que Machado de Assis tenha encontrado num
desses exemplares aqueles versos da Farsália, uma vez que há notícia por Jobim (2001)
de haver 3 exemplares deste periódico no que restou da biblioteca machadiana.
Em 1858 vem a lume sua obra mais notável no campo dos estudos greco-
romanos, trata-se da monumental edição dos Amores de Ovídio composta pela tradução
– ou paráfrase, como os autores preferem chamá-la – de Antônio Feliciano de Castilho
em 3 volumes e pela “Grinalda Ovidiana” redigida por Castilho José, um compêndio de
notas, comentários e referências intertextuais de Ovídio que perfaz um total de 8
volumes, 785 páginas.
Embora tenha sido publicada uma reedição da tradução dos Amores (OVÍDIO,
1945), os ricos e eruditíssimos comentários de Castilho José repousam infelizmente no
esquecimento. A grinalda é formada por uma biografia de Ovídio (vol. IV, com 84
páginas), um estudo sobre a obra e sobre a paráfrase de Castilho Antônio (vol. V, 78
páginas) e por uma infinidade de notas sobre questiúnculas da cultura e literatura greco-
romanas, em que se ressalte nessas últimas a leitura intertextual de Castilho José com a
tradução de centenas de versos de Anacreonte, Catulo, Propércio, Lucano, Marcial, Safo
e Virgílio (vols. VI ao XI, 595 páginas) e a aproximação dos temas de Ovídio a poemas
de Garção, Bocage e Tomás Antônio Gonzaga.
O romancista Joaquim Manuel de Macedo no necrológio que dedica a Castilho
José, seu confrade no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, resenha com
entusiasmo essa obra de latinista:

926
Na Grinalda Ovidiana, apêndice à paráfrase dos Amores, José
Feliciano revelou-se latinista de profundo conhecimento da língua de
Cícero, de Horácio, de Virgílio e de Plutarco; foi feliz demais na
mestria com que reproduziu completas, vivas, no português, as frias
belezas de Ovídio, que, desterrado no Ponto, oferecia ao ótimo e
ilustrado tradutor o maravilhoso tesouro das mais enlevadoras e
sublimes melancolias e saudades do poeta no seu livro das tristezas, os
Tristes” (MACEDO, 1879, p. 312).

Além desse compêndio é interessante verificar a publicação avulsa em


periódicos da época de grandes excertos de traduções greco-romanas como o Livro VII
da Farsália de Lucano que aparece no Archivo Pittoresco de 1864 e a metade do Livro
X da mesma obra que consta em um número da Revista contemporanea de Portugal e
Brazil de 1862. Segundo Macedo, a obra de Lucano teria sido deixada pronta para a
publicação póstuma pelo próprio Castilho José. São efusivas mais uma vez os elogios a
esse trabalho tradutório cuja necessidade de publicação é das mais prementes:

“Na versão da Farsália, de Lucano, o conselheiro José Feliciano,


julgado pelas obsequiosas leituras que fez em reuniões de amigos
capazes de apreciá-lo, firmou muito mais sua autoridade como
latinista, fez reviver Lucano em português puríssimo com a mesma
inspiração, o mesmo sentimento, a mesma beleza e a mesma energia
dos versos daquele poeta” (MACEDO, 1879, p. 313).

Como se verifica por essas referências bibliográficas Castilho José foi uma
figura importante na cena literária lusófona do séc. XIX e não resta dúvida que o estudo
de sua obra tradutória e filológica pode revelar interessantes clareiras sobre temas e
citações de obras greco-romanas colocadas em circulação por ele. Apesar de estar
preservada pela Biblioteca Nacional a quase totalidade da produção de Castilho José,
seus trabalhos têm sido legados ao esquecimento. Contra esse fato é que surge nosso
projeto de pesquisa que procura estabelecer um estudo definitivo sobre seu legado.

4. O VALOR DE CASTILHO JOSÉ

Meu trabalho com a obra de Castilho José busca oferecer um intercâmbio de


mão dupla entre o passado e o futuro. Por um lado, estudar as traduções e interpretações
de autores da Antiguidade constitui um trabalho de arqueologia dos saberes clássicos no
nosso passado literário, verificando como os textos traduzidos contribuíram na forma e
no conteúdo para o enriquecimento da nossa literatura. Por outro lado, essa investigação
propicia um trabalho de garimpo – a metáfora da mineração não é vã – de matrizes
tradutórias que possam servir de paradigma aos contemporâneos exercícios de tradução
dos autores antigos.
Como exemplo das contribuições a uma arqueologia dos saberes clássicos no
nosso passado literário, cito a notória influência do grupo literário de Castilho José na
formação de Machado de Assis.
As opiniões dos jornais brasileiros da época sobre as primeiras poesias de
Machado insistem em sublinhar a ausência de inspiração nacional como nota Ubiratan
Machado, na sua resenha dessas notas da imprensa: “o poeta se deixara fascinar pelo
classicismo luso, e a frase, o estilo, o espírito pareciam portugueses. Esquecera-se de

927
que era brasileiro” (MACHADO, 2003, p. 12). No prefácio da primeira edição de
Crisálidas, Filgueiras chega a dizer: “a clâmide romana em que se envolve o poeta lhe
dissimula – o vácuo do coração, e o coturno grego, que por suado esforço conseguiu
calçar, lhe tolhe, apesar de elegante e rico, a naturalidade dos movimentos”(apud
MACHADO, 2003, p. 53).
A ligação com esse grupo também deve ter contribuído para o gosto do
Machado poeta pelos versos alexandrinos de que foi um dos introdutores no Brasil
(RAMOS, 1964, p. 9). Sendo Castilho Antônio o grande introdutor do alexandrino em
contexto lusófono 7 , a tradução dos Amores de Ovídio com os extensos comentários de
Castilho José, cuja edição é de 1958, foi uma das primeiras obras publicadas no Brasil a
se servirem desse metro.
Há um conhecidíssimo poema de Machado intitulado “Versos a Corina”
(ASSIS, 2008, p. 72-85) que bem atesta a influência dos Amores dos irmãos Castilho.
Esse poema quando comparado à Canção V do livro I de Ovídio (OVÍDIO, 1858, p. 63-
5) denota traços de afinidades de tema e forma poética. Como se sabe, Corina era a
principal personagem feminina dos poemas ovidianos, mas não é essa a única
reminiscência que aproxima as duas obras. Há mesmo um inegável paralelismo,
excetuado o erotismo ovidiano, no desenvolvimento de trechos como:

“Versos a Corina” “Canção V: aventura meridiana”


“surgiste-me Corina” […] “eis vejo entrar Corina” […]
“Era assim que eu sonhava a mulher. “Que estátua de Ciprina houve jamais tão bela,
[Era Como ela em tal nudez!
assim: Nem um senão descobres
Corpo de fascinar, alma de querubim; Aos nobres dons que vês.
Era assim: fronte altiva e gesto Que ombros! que braços nus! que botões em dois
soberano, [mundos!
Um porte de rainha a um tempo meigo e Jucundos vejo arfar...
ufano, Por lábios abrasados,
Em olhos senhoris uma luz tão serena, Rosados, a chamar!
E grave como Juno, e bela como E o peito! o ventre! o lado! o airoso da estatura!
Helena! Cintura tão gentil,
Era assim, a mulher que extasia e e coxa que se espreita,
domina, Refeita e Juvenil”
A mulher que reúne a terra e o céu: (OVÍDIO, 1858, p. 64)
Corina!”
(ASSIS, 2008, p. 72-3)

Quanto à forma, o poema de Machado, que se apresenta em estrofes de 12, 10, 7


e 6 sílabas, está calcado sobre os ideais de variedade métrica preceituados por Castilho
Antônio

“Ora como a variedade seja, em cousas de arte e luxo, condição muito


principal, era claro que, se às duas medidas vulgares do
hendecassílabo e do octossílabo, que são todo o nosso haver heróico e
lírico, se pudessem ajuntar, não só o alexandrino, mas quaisquer
outras combinações métricas, em o diligenciar se faria boa obra, e boa
avença se levaria em o conseguir” (OVÍDIO, 1858, p. 253 ).

Se, como Manuel Bandeira já comentou, salta aos olhos nos “Versos a Corina”
“a forma já mais cuidada, sobretudo nos alexandrinos, bem policiados, e até em IV

928
alternando regularmente os versos graves e agudos” (BANDEIRA, 1959, p. 5),
acrescento que essa alternância entre versos graves (terminados em paroxítonas) e
agudos (terminados em oxítonas) pode ter como fonte de inspiração a cuidada Canção V
de Ovídio, como se pode verificar no excerto acima transcrito. Assim, por influências
como essas é que se entende a indagação de Filgueiras no prefácio da primeira edição
de Crisálidas, referindo-se, de certo, ao poema machadiano dedicado à Corina: “a que
escola pertence o autor deste livro? […] à sensualística de Ovídio […]?” (apud
MACHADO, 2003, p. 51).
A par desse trabalho de arqueologia intertextual, as traduções de Castilho José
têm um valor literário intrínseco que justificam o seu estudo. Quando traduzia Catulo,
Propércio, Virgílio, Marcial e Lucano, ele mostrava um largo conhecimento tanto de
Língua Latina, quanto do arsenal poético da Língua Portuguesa. Trata-se de traduções
em verso de clareza e talento remarcáveis, veja com que naturalidade ele verte
Propércio nesta quadrinha:

unicuique dedit uitium natura creato: A quanto criara soube


mi natura aliquid semper amare dedit. dar um vício a natureza:
(Propertius, Elegiae, II, 22, 17-8) o vício que a mim me coube
foi ser servo da beleza.
(OVÍDIO, 1858, p. 626)

Ou mesmo o início do antológico “Poema dos Beijos” de Catulo:

Viuamus, mea Lesbia, atque amemus, Vivamos, Lésbia querida!


rumoresque senum seueriorum Gozemos nossos amores!
omnes unius aestimemus assis. Não faças caso dos velhos;
soles occidere et redire possunt: Deixa gritar os censores.
nobis, cum semel occidit breuis lux, Os sóis podem morrer,
nox est perpetua una dormienda. E ao depois renascer;
(Catullus, Carmina, 5 )  Porém nós em se apagando
A luz da curta vida,
Uma só noite eterna dormiremos,
(OVÍDIO, 1858, p. 632)

Diante das belezas intrínsecas de suas traduções, pode-se pensar também na


importância de seu resgate aos futuros exercícios tradutórios latim-português. Haroldo
de Campos, ao falar dos Prometeus do Barão de Paranapiacaba e de Ramiz Galvão
feitos a partir de uma tradução literal do Imperador D. Pedro II, chama atenção para o
valor dessas antigas traduções:

“[Elas possuem] um veio nem sempre ostensivo, mas tão vigoroso em


sua latência clássico-árcade-odoricana, que o tradutor superveniente
acaba sendo tangido por uma dicção já ‘preformada’, preconstituída
com êxito no exercício tradutório que o precede e lhe serve de
paradigma” (CAMPOS, 1997, p. 248).

Exemplifico, à semelhança do que fez Haroldo de Campos comparando


Paranapiacaba e Trajano Vieira, a utilização das versões lucanianas de Castilho José na
elaboração de minha tradução da Farsália de Lucano. Escolhemos, a título de
amostragem, o conhecido passo em que Cleópatra seduz César em seu palácio:

929
nequiquam duras temptasset Caesaris aures:
uoltus adest precibus faciesque incesta perorat.
exigit infandam corrupto iudice noctem.
pax ubi parta ducis donisque ingentibus empta est,
excepere epulae tantarum gaudia rerum,
explicuitque suos magno Cleopatra tumultu
nondum translatos Romana in saecula luxus.
(Pharsalia, X, 107-10)

Surdo à voz da sereia o duro César


resistira talvez se ao brando acento
se não juntara o rosto feiticeiro, Nenhum apelo ao duro César moveria:
o olhar provocador. Venceu a astuta; o rosto, o olhar provocador se soma às preces.
do corrupto juiz caiu nos braços. Corrompido o juiz deu-lhe uma noite infrene.
Noite infrene d’amor lho dá cativo. Comprada a paz do general a preço esplêndido,
Em paz co’o general por dons esplêndidos brindou essa conquista um banquete opulento
Cleópatra coroa esta vitória e Cleópatra expôs em profusão seus faustos
com solenes festins; tumultuoso até então desconhecidos dos Romanos.
fausto sem fim, sem termo, inda em tais dias (nossa tradução)
incógnito aos de Roma!
(CASTILHO, 1862, p. 292-3)

Nessa versão de Castilho José constata-se a força expressiva clássico-árcade-


odoricana à que se referia Haroldo de Campos. Já no começo há o camoniano uso da
atual forma de mais-que-perfeito “resistira”/“juntara” para expressar o futuro do
pretérito ou condicional, que por seu tom arcaizante decidi rejeitar na minha versão.
Procurei imitar, no entanto, alguns achados léxicos de Castilho como “provocador”,
“infrene”, “esplêndidos”, bem como tentei recriar o ponto alto desse trecho aquele
sintagma faustosamente coroado de assonâncias “tumultuoso/ fausto sem fim” que
recupera a relação tumultu/luxus do original.
Esses são sucintos exemplos do valor de Castilho José que por si só justificariam
um trabalho de inventário e divulgação de suas traduções, a par de um estudo crítico dos
seus estudos greco-romanos.

5. CONCLUSÃO

Este texto apresenta as primícias de um projeto de pesquisa que busca


estabelecer um estudo definitivo da obra de Castilho José com ênfase ao legado crítico e
tradutório referente ao mundo greco-romano. Como se pretendeu mostrar aqui, este
estudo mostra a importância de Castilho José para a preservação e divulgação da
literatura clássica no séc. XIX e ressalta sua relevância como tradutor ainda nos dias de
hoje, uma vez que muitos dos autores trasladados por ele, permanecem ainda sem
moderna tradução para o português.

6. REFERÊNCIAS

930
6.1. Imagem de Castilho José

DESMAISONS, E. J. F. de Castilho. 1 gravura: litografia, p&b ; 18,5x15,5 cm. Paris: Imp.


Lemercier: 1861. (Disponível em http://purl.pt/5638 acesso em 06.04.2008)

6.2. Obras de Castilho José

CASTILHO, J. F. de“A Pharsalia de Lucano: livro VII, A Batalha de Pharsalia”. Archivo


Pitoresco, Lisboa, vol. VII, 1864.

_________. “Cesar no Egypto: excerpto da traducção inedita da Pharsalia de Lucano” –


Principio do livro 10.º. Revista contemporanea de Portugal e Brazil, quarto ano, Vol. IV: 289-
96, 467-72, 1862.

ÍRIS. Periódico de Religião, Belas-Artes, Ciências, Letras, História, Poesia, Romance, Notícias
e Variedades. Redigido por José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha. Periodicidade
quinzenal. Volumes disponíveis na Biblioteca Nacional: Ano 1, n.1 (15 de fevereiro de 1848)-
anno 2, n.27 (30 de junho de 1849) num total de 27 fasc. Imprenta: Rio de Janeiro, RJ : Typ. do
Iris.

OVÍDIO. Os amores de P. Ovídio Nasão. Paráfrase por Antonio Feliciano de Castilho, seguida
pela Grinalda Ovidiana, por José Feliciano de Castilho. Rio de Janeiro: Bernardo Xavier Pinto
de Sousa, 1859. 11 Volumes.

6.3 Estudos e autores consultados

AGUIAR, C. Franklin Távora e o seu tempo. São Caetano do Sul (SP): Ateliê Editorial, 1997.

ASSIS, M. de Contos esquecidos. Org. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966.

________. O Visconde de Castilho. In: _______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959.
Volume III. p. 988-9.

________. Teatro. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1957.

________. Toda poesia.Organização de C. M. Leal. Rio de Janeiro: Record, 2008.

BANDEIRA, M. O poeta. In: ASSIS, M. de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959.
Volume III. p. 3-6.

CAMPOS, H. de. Da tradução como criação e como crítica. In:________. Metalinguagem.


Petrópolis: Vozes, 1970. p. 21-38.

________. O PROMETEU dos barões. In: ALMEIDA, G.; ________.; TRAJANO, V. Três
tragédias gregas. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 231-53.

________. Odorico Mendes: o patriarca da transcriação. In: HOMERO. Odisséia. Trad. de


Odorico Mendes e ed. de A. M. Rodrigues. São Paulo : Ars Poetica/EDUSP, 1992. p. 11-4.

________. Transcriar Homero: desafio e programa. In: Os nomes e os navios: Homero – Ilíada
II. Org., introdução e notas de Trajano Vieira. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.

CASTELLO, J. A. A literatura brasileira:origens e unidade. São Paulo: EDUSP, 2004.

931
COUTINHO, A. A tradição afortunada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.

HOMERO. Odisséia. Trad. de Odorico Mendes e ed. de A. M. Rodrigues. São Paulo : Ars
Poetica/EDUSP, 1992. p. 11-4.

JOBIM, J. L.(org.) A Biblioteca de Machado de Assis.Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.

MACHADO, U. (org.) Machado de Assis: roteiro da consagração. Rio de Janeiro: EDUERJ,


2003.

MACEDO, J. M. de Discurso. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol.


42(59):307-314, 1879.

MENEZES, R. de. Dicionário literário brasileiro. 2.a. ed. Rio de Janeiro: Livros técnicos e
científicos, 1978.

OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Bocage, introdução e edição de J. A. Oliva Neto. São


Paulo: Hedra, 2007.

_______. Obras (Os fastos, Os amores, A arte de amar). Trad. A. F. Castilho. São Paulo:
Cultura, 1945.

_______. Os fastos. Trad. A. F. Castilho. Lisboa: Academia Real das Ciências, 1862.

PERDIGÃO, H. Dicionário Universal de Literatura. Porto: Portucalense, 1934

PEREIRA, L. M. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. 6.a ed., revista. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1988.

PROENÇA, M. C. Machado de Assis. In: _______. Estudos literários. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1971. p. 184-225

PROPERTIUS. Elegiae. Ed. and trans. G. P. Goold. Cambridge: Harvard University Press,
1999.

RAMOS, P. E. da S. Apresentação. In: ASSIS, M. de. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1964.

ROMERO, S. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. Tomo V.

SPINA, S. Introdução à edótica: crítica textual. São Paulo: Ars Poetica/EDUSP, 1994.

VASCONCELLOS, P. S. Contribuições à reapreciação crítica da ENEIDA de Odorico Mendes.


Phaos, Campinas (SP), n. 1,: 171-86, 2001.

VIANNA, H. Um intelectual português na corte de D. Pedro II: José Feliciano de Castilho


Barreto e Noronha. Brasilia, Coimbra, vol. 5: 465-85, 1950.

VIEIRA, B. V. G. FARSÁLIA, de Lucano, cantos I a IV: prefácio, tradução e notas. 2007. 340
p. Tese (Doutorado em Estudos Literários), Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007.

VIRGÍLIO. Eneida. Trad. de J. V. Barreto Feio e J. M. da Costa e Silva. Introdução e edição de


P. S. Vasconcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

932
1
Trata-se de um projeto de pesquisa individual que está vinculado ao projeto coletivo “O enunciado
latino e sua expressão vernácula” do Departamento de Lingüística da FCL/UNESP e que pertence à linha
de pesquisa “Tradução e Recepção de Textos Antigos” do Grupo Linceu – Visões da Antiguidade
Clássica/ CNPq. A apresentação deste trabalho contou com apoio da FUNDUNESP.
2
Os artigos, publicados no jornal Questões do Dia entre 1871 a 1872, eram escritos em forma de carta e
Castilho José os assinava sob o pseudônimo de Lúcio Quinto Cincinato. AGUIAR (1997, p. 185-201)
oferece um lúcido e detalhado relato dessa polêmica.
3
Este dado foi pontualmente rejeitado por Vianna “não falta quem diga e escreva que José Feliciano de
Castilho veio ao Brasil especialmente para esse fim [o da polêmica], quando a verdade é que aqui chegou
vinte e dois anos antes do caso em apreço, quando José de Alencar ainda não havia iniciado a sua
brilhante carreira literária” (1950, p. 479).
4
Há uma grande polêmica sobre a tradução do Fausto só que quem a fez foi o poeta Antônio Feliciano de
Castilho a partir de um original francês. Diferentemente de Grieco, Machado chama esse mesmo Castilho
de “tradutor exímio de Ovídio, Virgílio e Anacreonte, de Shakespeare, Goethe e Molière” (ASSIS, 1959,
p. 988).
5
Apesar da injúria – “touche-à-tout” é como se chama o “intrometido” na língua de Voltaire – esta
passagem testemunha indiretamente a grande obra de Castilho José: seu comentário aos Amores de
Ovídio que o moralista Grieco deprecia chamando de “fracarices [i.é, libertinagens] ovidianas”.
6
Sobre os laços de amizade que Machado nutria a José Feliciano de Castilho e a José de Alencar, diz
Pereira: “Machado de Assis, amigo de todos, repartia-se entre os dois José[s], prezado por ambos, a
ambos estimando, embora mais chegado pelo coração e pela admiração ao brasileiro” (1988, p. 107).
Grieco comenta essa amizade não sem um ranço de racismo: “Penso que os lusos deviam fasciná-lo
[Machado], seja pelo influxo do sangue materno, seja porque os mulatos, à maneira do seu amigo e
protetor Paula Brito, lhe devolviam, como num espelho irônico, perturbantes estigmas raciais” (1960, p.
220).
7
Seu famoso tratado de versificação que fixou as regras desse verso em português data de 1851.

933

Anda mungkin juga menyukai