XIX
1. INTRODUÇÃO
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fragmentos das Metamorfoses de Ovídio vertidos por Bocage (OVÍDIO, 2007) e a
tradução integral da Eneida de Virgílio a cargo do camonista português José Victorino
Barreto Feio (VIRGÍLIO, 2004), ambas obras dignas representantes da valorização
desse resgate pelo mercado editorial brasileiro. Buscando contribuir com a pesquisa de
traduções lusófonas dos clássicos greco-romanos e com a recepção desses textos em
nossas letras, este artigo apresenta os primeiros resultados de um projeto de pesquisa 1
que propõe inventariar, estudar e divulgar o legado de José Feliciano de Castilho, tanto
no tocante às suas traduções, quanto aos estudos sobre temas clássicos.
Castilho José, como era conhecido no meio jornalístico e literário, era irmão do
poeta Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875), figura central do Romantismo em
Portugal. Trata-se de um distinto luso-brasileiro – como bem definiu o seu biógrafo
Hélio Vianna (1950, p. 482) – que viveu no Rio de Janeiro de 1847 até sua morte em
1879. Ele possui uma obra vastíssima de filólogo, latinista e tradutor de latim como bem
testemunham as edições comentadas dos quinhentistas Fernão Mendes Pinto e João de
Lucena, os estudos sobre a obra de Camões e Bocage, os comentários a Virgílio e
Ovídio, além das traduções de excertos de Propércio, Virgílio, Marcial e Lucano.
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praticamente esquecido se não fosse pela nem sempre terna lembrança de sua polêmica
com José de Alencar, que o faz ser citado pela grande maioria das Histórias da
Literatura Brasileira desde Sílvio Romero até José Aderaldo Castelo. Embora essa
contenda tenha ocorrido no final da vida de Castilho José, quando ele já havia
consolidado seu prestígio como intelectual e erudito, e ainda que esse incidente seja
marcado por uma afirmação nacional que beira a xenofobia, é impossível deixar de
comentá-lo aqui a título de contextualização.
Castilho José havia se desentendido com José de Alencar quando se colocou a
favor da “Lei do Ventre Livre” proposta pelos partidários do imperador D. Pedro II, lei
contra a qual Alencar se opunha. As diferenças no campo político-partidário chegaram
ao fórum das letras. O autor luso-brasileiro acompanhado do romancista nordestino
Franklin Távora publicou uma série de artigos em forma de cartas apontando erros de
norma gramatical e de verossimilhança nos romances Iracema e O Gaúcho 2 .
Diante desses fatos, talvez movidos pelo espírito de nacionalidade da crítica
brasileira tão bem diagnosticado e estudado por Afrânio Coutinho no seu ensaio A
tradição afortunada (1968), os críticos e historiadores da nossa literatura têm
fustigado com veemência o pivô dessa polêmica que afetava o autor de Iracema grande
romancista brasileiro do período. Sílvio Romero diz que contra José de Alencar havia
“patriotada lusa, desejosa de deprimir a primeira figura literária brasileira do tempo” e
comenta a ingenuidade de Franklin Távora que “não estava bem ao par das tramóias de
José Feliciano” (ROMERO, 1954, p.1603). Lúcia Miguel Pereira chega a dizer que
Castilho José teria vindo ao Brasil “por convite do próprio imperador, para combater a
influência de José de Alencar” (1988, p.107) 3 e Agripino Grieco acrescenta alguns
vitupérios mais: “escritor de aluguel que ajudou a traduzir o Fausto 4 sem saber palavra
de alemão e no Rio foi contratado para investir contra Alencar, touche-à-tout frenético
que explorou as frascarices 5 ovidianas” (1960, p. 150). Cavalcanti Proença é mais
parcimonioso nas críticas e com justiça dá vulto à erudição de Castilho José a quem
descreve como “escritor português, erudito, mas sem talento criador, o mesmo que
negou em campanha sistemática a obra de José de Alencar” (1971, p. 187).
Defendendo o outro lado da questão Vianna, o biógrafo de Castilho José, oferece
uma visão mais ponderada sobre a polêmica:
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versos de Lucano, seja pelo estilo castiço de suas obras, como em comentário a uma
biografia de D. Pedro V: “deu-nos o Sr. Castilho José mais uma ocasião de apreciar os
conhecimentos profundos da língua que possui” (ASSIS, 1955, p. 27).
É possível notar em outros momentos da obra machadiana traços de convivência
e afeto mútuo entre esses homens de letras, como atestam a dedicatória de “Os deuses
de casaca” (1866) e as exéquias feitas ao poeta Castilho Antônio em que Machado
elogia o estro de Castilho José com o lisonjeiro epíteto de “talento possante” (ASSIS,
1959, p. 988). Justifica essa proximidade, uma observação de Proença (1971, p. 187)
que em sua nota biográfica sobre Machado menciona o fato de que, quando jovem, o
escritor fazia parte do grupo literário de José Feliciano de Castilho, do qual
“participavam Emílio Zaluar, Ernesto Cibrão, Artur Napoleão e, mais tarde, Faustino
Xavier Novais, poeta satírico”, este último irmão de D. Carolina futura esposa de
Machado.
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Na Grinalda Ovidiana, apêndice à paráfrase dos Amores, José
Feliciano revelou-se latinista de profundo conhecimento da língua de
Cícero, de Horácio, de Virgílio e de Plutarco; foi feliz demais na
mestria com que reproduziu completas, vivas, no português, as frias
belezas de Ovídio, que, desterrado no Ponto, oferecia ao ótimo e
ilustrado tradutor o maravilhoso tesouro das mais enlevadoras e
sublimes melancolias e saudades do poeta no seu livro das tristezas, os
Tristes” (MACEDO, 1879, p. 312).
Como se verifica por essas referências bibliográficas Castilho José foi uma
figura importante na cena literária lusófona do séc. XIX e não resta dúvida que o estudo
de sua obra tradutória e filológica pode revelar interessantes clareiras sobre temas e
citações de obras greco-romanas colocadas em circulação por ele. Apesar de estar
preservada pela Biblioteca Nacional a quase totalidade da produção de Castilho José,
seus trabalhos têm sido legados ao esquecimento. Contra esse fato é que surge nosso
projeto de pesquisa que procura estabelecer um estudo definitivo sobre seu legado.
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que era brasileiro” (MACHADO, 2003, p. 12). No prefácio da primeira edição de
Crisálidas, Filgueiras chega a dizer: “a clâmide romana em que se envolve o poeta lhe
dissimula – o vácuo do coração, e o coturno grego, que por suado esforço conseguiu
calçar, lhe tolhe, apesar de elegante e rico, a naturalidade dos movimentos”(apud
MACHADO, 2003, p. 53).
A ligação com esse grupo também deve ter contribuído para o gosto do
Machado poeta pelos versos alexandrinos de que foi um dos introdutores no Brasil
(RAMOS, 1964, p. 9). Sendo Castilho Antônio o grande introdutor do alexandrino em
contexto lusófono 7 , a tradução dos Amores de Ovídio com os extensos comentários de
Castilho José, cuja edição é de 1958, foi uma das primeiras obras publicadas no Brasil a
se servirem desse metro.
Há um conhecidíssimo poema de Machado intitulado “Versos a Corina”
(ASSIS, 2008, p. 72-85) que bem atesta a influência dos Amores dos irmãos Castilho.
Esse poema quando comparado à Canção V do livro I de Ovídio (OVÍDIO, 1858, p. 63-
5) denota traços de afinidades de tema e forma poética. Como se sabe, Corina era a
principal personagem feminina dos poemas ovidianos, mas não é essa a única
reminiscência que aproxima as duas obras. Há mesmo um inegável paralelismo,
excetuado o erotismo ovidiano, no desenvolvimento de trechos como:
Se, como Manuel Bandeira já comentou, salta aos olhos nos “Versos a Corina”
“a forma já mais cuidada, sobretudo nos alexandrinos, bem policiados, e até em IV
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alternando regularmente os versos graves e agudos” (BANDEIRA, 1959, p. 5),
acrescento que essa alternância entre versos graves (terminados em paroxítonas) e
agudos (terminados em oxítonas) pode ter como fonte de inspiração a cuidada Canção V
de Ovídio, como se pode verificar no excerto acima transcrito. Assim, por influências
como essas é que se entende a indagação de Filgueiras no prefácio da primeira edição
de Crisálidas, referindo-se, de certo, ao poema machadiano dedicado à Corina: “a que
escola pertence o autor deste livro? […] à sensualística de Ovídio […]?” (apud
MACHADO, 2003, p. 51).
A par desse trabalho de arqueologia intertextual, as traduções de Castilho José
têm um valor literário intrínseco que justificam o seu estudo. Quando traduzia Catulo,
Propércio, Virgílio, Marcial e Lucano, ele mostrava um largo conhecimento tanto de
Língua Latina, quanto do arsenal poético da Língua Portuguesa. Trata-se de traduções
em verso de clareza e talento remarcáveis, veja com que naturalidade ele verte
Propércio nesta quadrinha:
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nequiquam duras temptasset Caesaris aures:
uoltus adest precibus faciesque incesta perorat.
exigit infandam corrupto iudice noctem.
pax ubi parta ducis donisque ingentibus empta est,
excepere epulae tantarum gaudia rerum,
explicuitque suos magno Cleopatra tumultu
nondum translatos Romana in saecula luxus.
(Pharsalia, X, 107-10)
5. CONCLUSÃO
6. REFERÊNCIAS
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6.1. Imagem de Castilho José
ÍRIS. Periódico de Religião, Belas-Artes, Ciências, Letras, História, Poesia, Romance, Notícias
e Variedades. Redigido por José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha. Periodicidade
quinzenal. Volumes disponíveis na Biblioteca Nacional: Ano 1, n.1 (15 de fevereiro de 1848)-
anno 2, n.27 (30 de junho de 1849) num total de 27 fasc. Imprenta: Rio de Janeiro, RJ : Typ. do
Iris.
OVÍDIO. Os amores de P. Ovídio Nasão. Paráfrase por Antonio Feliciano de Castilho, seguida
pela Grinalda Ovidiana, por José Feliciano de Castilho. Rio de Janeiro: Bernardo Xavier Pinto
de Sousa, 1859. 11 Volumes.
AGUIAR, C. Franklin Távora e o seu tempo. São Caetano do Sul (SP): Ateliê Editorial, 1997.
ASSIS, M. de Contos esquecidos. Org. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966.
________. O Visconde de Castilho. In: _______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959.
Volume III. p. 988-9.
BANDEIRA, M. O poeta. In: ASSIS, M. de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959.
Volume III. p. 3-6.
________. O PROMETEU dos barões. In: ALMEIDA, G.; ________.; TRAJANO, V. Três
tragédias gregas. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 231-53.
________. Transcriar Homero: desafio e programa. In: Os nomes e os navios: Homero – Ilíada
II. Org., introdução e notas de Trajano Vieira. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
931
COUTINHO, A. A tradição afortunada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
HOMERO. Odisséia. Trad. de Odorico Mendes e ed. de A. M. Rodrigues. São Paulo : Ars
Poetica/EDUSP, 1992. p. 11-4.
MENEZES, R. de. Dicionário literário brasileiro. 2.a. ed. Rio de Janeiro: Livros técnicos e
científicos, 1978.
_______. Obras (Os fastos, Os amores, A arte de amar). Trad. A. F. Castilho. São Paulo:
Cultura, 1945.
_______. Os fastos. Trad. A. F. Castilho. Lisboa: Academia Real das Ciências, 1862.
PEREIRA, L. M. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. 6.a ed., revista. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1988.
PROENÇA, M. C. Machado de Assis. In: _______. Estudos literários. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1971. p. 184-225
PROPERTIUS. Elegiae. Ed. and trans. G. P. Goold. Cambridge: Harvard University Press,
1999.
RAMOS, P. E. da S. Apresentação. In: ASSIS, M. de. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1964.
ROMERO, S. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. Tomo V.
SPINA, S. Introdução à edótica: crítica textual. São Paulo: Ars Poetica/EDUSP, 1994.
VIEIRA, B. V. G. FARSÁLIA, de Lucano, cantos I a IV: prefácio, tradução e notas. 2007. 340
p. Tese (Doutorado em Estudos Literários), Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007.
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1
Trata-se de um projeto de pesquisa individual que está vinculado ao projeto coletivo “O enunciado
latino e sua expressão vernácula” do Departamento de Lingüística da FCL/UNESP e que pertence à linha
de pesquisa “Tradução e Recepção de Textos Antigos” do Grupo Linceu – Visões da Antiguidade
Clássica/ CNPq. A apresentação deste trabalho contou com apoio da FUNDUNESP.
2
Os artigos, publicados no jornal Questões do Dia entre 1871 a 1872, eram escritos em forma de carta e
Castilho José os assinava sob o pseudônimo de Lúcio Quinto Cincinato. AGUIAR (1997, p. 185-201)
oferece um lúcido e detalhado relato dessa polêmica.
3
Este dado foi pontualmente rejeitado por Vianna “não falta quem diga e escreva que José Feliciano de
Castilho veio ao Brasil especialmente para esse fim [o da polêmica], quando a verdade é que aqui chegou
vinte e dois anos antes do caso em apreço, quando José de Alencar ainda não havia iniciado a sua
brilhante carreira literária” (1950, p. 479).
4
Há uma grande polêmica sobre a tradução do Fausto só que quem a fez foi o poeta Antônio Feliciano de
Castilho a partir de um original francês. Diferentemente de Grieco, Machado chama esse mesmo Castilho
de “tradutor exímio de Ovídio, Virgílio e Anacreonte, de Shakespeare, Goethe e Molière” (ASSIS, 1959,
p. 988).
5
Apesar da injúria – “touche-à-tout” é como se chama o “intrometido” na língua de Voltaire – esta
passagem testemunha indiretamente a grande obra de Castilho José: seu comentário aos Amores de
Ovídio que o moralista Grieco deprecia chamando de “fracarices [i.é, libertinagens] ovidianas”.
6
Sobre os laços de amizade que Machado nutria a José Feliciano de Castilho e a José de Alencar, diz
Pereira: “Machado de Assis, amigo de todos, repartia-se entre os dois José[s], prezado por ambos, a
ambos estimando, embora mais chegado pelo coração e pela admiração ao brasileiro” (1988, p. 107).
Grieco comenta essa amizade não sem um ranço de racismo: “Penso que os lusos deviam fasciná-lo
[Machado], seja pelo influxo do sangue materno, seja porque os mulatos, à maneira do seu amigo e
protetor Paula Brito, lhe devolviam, como num espelho irônico, perturbantes estigmas raciais” (1960, p.
220).
7
Seu famoso tratado de versificação que fixou as regras desse verso em português data de 1851.
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