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DOI : 10.20287/doc.d23.

dt01

A voz como estratégia narrativa no cinema experimental:


sintonias entre a teoria feminista do cinema e as
vanguardas artísticas
Gustavo Soranz*

Resumo: Apontamos as sintonias entre a teoria feminista do cinema e certo cinema


experimental produzido por mulheres, cujas práticas desafiam as formas mais sexistas
e fetichistas do modelo hegemônico. Nesta seara encontramos o cinema de Trinh
T. Minh-ha, que explora estratégias expressivas que utilizam o som como recurso
essencial de uma prática experimental que nos permite ver o encontro entre a teoria e
a prática.
Palavras-chave: teoria do cinema; vanguardas artísticas; cinema experimental; docu-
mentário.

Resumen: Apuntamos las sintonías entre la teoría feminista del cine y cierto cine
experimental producido por mujeres, cuyas prácticas desafían las formas más sexistas
y fetichistas del modelo hegemónico. En esta secuela encontramos el cine de Trinh
T. Minh-ha que explora estrategias expresivas que utilizan el sonido como recurso
esencial de una práctica experimental que nos permite ver el encuentro entre la teoría
y la práctica.
Palabras clave: teoría del cine; vanguardias artísticas; cine experimental; documental.

Abstract: I point out the syntonies between the feminist theory of cinema and certain
experimental cinema produced by women, whose practices defy the sexist and fetishist
forms of hegemonic model. With this approach one may find Trinh T. Minh-ha’s
cinema that exploits expressive strategies using sound as an essential resource of an
experimental practice that allows the encounter between practice and theory.
Keywords: cinema theory; artistic vanguard; experimental cinema; documentary.

Résumé : Nous rappelons les liens de syntonie qui unissent la théorie féministe du
cinéma et certains cinémas expérimentaux produits par les femmes, dont les prati-
ques défient les formes plus sexistes et fétichistes du modèle hégémonique. Dans
ce domaine, nous trouvons le cinéma de Trinh T. Minh-ha qui explore des stratégies
expressives qui utilisent le son comme une ressource essentielle d’une pratique expé-
rimentale qui nous permet de voir la rencontre entre la théorie et la pratique.
Mots-clés : theorie du cinéma ; avant-gardes artistiques ; cinéma expérimental ; docu-
mentaire.

* Centro Universitário Fametro, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Curso de


Jornalismo. 69085-288, Manaus-AM, Brasil. E-mail: soranz@yahoo.com
Submissão do artigo: 17 de dezembro de 2017. Notificação de aceitação: 29 de janeiro de 2018.

Doc On-line, n. 23, março de 2018, www.doc.ubi.pt, pp. 5-28.


6 Gustavo Soranz

O cinema sempre foi um domínio majoritariamente masculino em suas


posições de decisão e de poder. A presença de mulheres que abordaram te-
mas importantes ao universo feminino, sintonizadas com disputas conduzidas
no campo social pela igualdade de direitos ou em favor de conquistas políticas
sempre foi tímida, especialmente em relação ao cinema narrativo e ao esquema
industrial de produção. Entretanto, com o passar das décadas, e em sintonia
com as disputas e avanços do movimento feminista, algumas cineastas exem-
plares foram responsáveis por trabalhos importantes que inseriram no campo
da produção artística as questões relevantes para as mulheres, de modo que
contribuíram em problematizar a produção artística de um ponto de vista fe-
minino. O caminho para que algumas mulheres pudessem assumir posições
de comando na produção cinematográfica, especialmente na função de direto-
ras, demandou tempo e avanços dentro da indústria do cinema. Geralmente
ocupando lugares secundários nas produções, em posições consideradas mais
adequadas ao que seria o papel da mulher (são conhecidos os casos das mu-
lheres montadoras, cuja função evocava uma associação com o ato de costurar
típico de uma ideia préconcebida de certo universo doméstico feminino) ou
em posições cuja visibilidade estava fortemente marcada por papéis sociais já
legitimados pela ideologia dominante (como o lugar fetichizado das atrizes no
star system), algumas superaram os desafios impostos pelas questões sexistas e
passaram para postos de comando prioritariamente reservados para os homens.
Não nos deteremos em detalhes relacionados à presença feminina na pro-
dução cinematográfica industrial. Neste artigo nos interessam cineastas com
presença no universo das vanguardas artísticas, frequentemente atuantes em
diferentes frentes de modo interdisciplinar. Em particular, nossa atenção está
voltada para cineastas cuja atuação denota aproximação entre a teoria crítica
e a política cultural. São realizadoras cuja atuação evidencia um cenário de
produção que se fortaleceu fora dos esquemas industriais ou comerciais de
produção, propriciado por inovações tecnológicas que baratearam os custos
da produção e permitiram a consolidação de um modelo de cinema mais livre
e menos normatizado por convenções hegemônicas, estas últimas geralmente
associadas a poderes econômicos e políticos dominados pelo universo mascu-
lino.
Apesar de historicamente serem poucas as mulheres em posições de prota-
gonismo no cinema, conforme assinalamos acima, há nomes importantes que
fizeram parte de sua evolução como forma expressiva. Alguns nomes pode-
riam ser lembrados, como o de Germaine Dulac, por exemplo, que transitou
entre filmes narrativos e experimentos surrealistas, contribuindo para explorar
os meios cinemáticos em sua especificidade, dirigindo diversos filmes entre as
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 7

décadas de 1910 e 1930. Todavia, consideramos que o nome mais importante a


destacar, e que responde aos fatores de experimentação formal que apontamos
acima, é o de Maya Deren, cineasta norte-americana de origem ucraniana, que
desenvolveu profícuo trabalho de vanguarda nas artes nas décadas de 1940
e 1950, com especial interesse pelas artes performáticas, pela poesia e pelo
cinema. Sua atuação estendeu-se ao diálogo com o campo da antropologia,
quando, em 1947, ela foi contemplada com uma bolsa da Guggenheim Foun-
dation Fellowship que a permitiu realizar três visitas ao Haiti entre 1947 e
1954. De tais visitas resultaram a publicação de um livro, gravações de áudio
e a realização de filmagens da pesquisa sobre os rituais da tradição religiosa
haitiana do vodu que deram origem ao filme Divine Horsemen: the living gods
of Haiti, de 1953.
Maya Deren tinha uma formação artística e intelectual multidisciplinar.
Originalmente atuante no campo da dança, chega ao cinema pelo caminho da
experimentação das vanguardas artísticas. Foi defensora de um cinema que
deveria primar pela busca de uma forma expressiva original, explorando as
potencialidades dos recursos da imagem e do som em detrimento dos modelos
narrativos tributários do teatro e da literatura. Em seu famoso ensaio Cinema:
o uso criativo da realidade, publicado originalmente em 1960, ela escreveu
que
Se o cinema se destina a ocupar seu lugar entre as formas artísticas plena-
mente desenvolvidas, deve deixar de meramente registrar realidades que não
devem nada de sua existência ao instrumento fílmico. Pelo contrário, deve
criar uma experiência total, oriunda da própria natureza do instrumento a
ponto de ser inseparável de seus próprios recursos. Deve renunciar às dis-
ciplinas narrativas que emprestou da literatura e sua tímida imitação da lógica
causal dos enredos narrativos, uma forma que floresceu como celebração do
conceito terreno e paulatino de tempo, espaço e relação que foi parte do ma-
terialismo primitivo do século XIX. Pelo contrário, deve desenvolver o voca-
bulário de imagens fílmicas e amadurecer a sintaxe de técnicas fílmicas que
as relaciona. Deve determinar as disciplinas inerentes ao meio, descobrir seus
próprios modos estruturais, explorar os novos campos e dimensões acessíveis
a ele e assim enriquecer artisticamente nossa cultura, como a ciência o fez em
seu próprio domínio. (Deren, 2012: 149).
De par com as questões especificamente cinematográficas, podemos no-
tar nesse texto preocupações típicas das vanguardas artísticas da primeira me-
tade do século XX, especialmente no que tange a experimentação em relação
a forma e ao conteúdo. Além disso, a atuação de Maya Deren no campo das
artes já anunciava preocupações associadas ao feminismo, com destaque para
o protagonismo da mulher em seus trabalhos, que contaram com a força de sua
8 Gustavo Soranz

presença em tela em parte de sua produção fílmica. Contudo, em seus escritos,


os temas feministas ainda não estavam contemplados diretamente.
A teoria feminista chega ao cinema na década de 1970, reverberando os
avanços da chamada segunda onda feminista, que desde o fim da Segunda
Guerra Mundial lograva progressos no campo das disputas políticas e pela li-
beração das mulheres, com especial relevância a partir da década de 1960,
quando as demandas do movimento se diversificam em termos de posiciona-
mentos e interesses, acompanhando as demandas sociais e as agitações geopo-
líticas ao redor do mundo. Na teoria do cinema o impacto do feminismo segue
essa diversificação de interesses, além de refletir também a diversidade ins-
titucional do cinema. Inicialmente podemos identificar trabalhos dedicados a
questionar o sexismo dentro dessa indústria, produções que faziam propaganda
de questões feministas, debates sobre política cultural e análises do fetichismo
na representação cultural através do filme.
A inglesa Laura Mulvey é uma das principais vozes na teoria feminista
do cinema, com trabalhos incontornáveis em se tratando dessa temática. Seu
texto Prazer visual e cinema narrativo, escrito em 1973 e publicado na revista
Screen em 1975, continua sendo uma referência fundamental para as ques-
tões desse interesse, mesmo décadas após sua primeira publicação. Além de
vasta produção de interesse na teoria de cinema, Mulvey também produziu al-
guns filmes ao lado de Peter Wollen, com destaque para Riddles of the Sphynx,
de 1977, considerado um dos mais importantes filmes experimentais ingle-
ses dessa década. O trabalho explora questões da representação feminina, o
lugar da maternidade dentro da sociedade patriarcal e relações entre mãe e
filha. Cabe notar que Mulvey e Wollen são dois proeminentes teóricos do ci-
nema, cujo trabalho intelectual emerge nesse período em que a própria teoria
do cinema ainda avançava nos terrenos da investigação acadêmica e buscava
consolidar suas bases e referências. Para Mulvey 1
A colisão entre o feminismo e o cinema é parte de um encontro explosivo
maior entre o feminismo e a cultura patriarcal. Desde muito cedo, os mo-
vimentos das mulheres chamaram a atenção para o significado político da
cultura: a ausência das mulheres da criação da arte dominante e da literatura
como um aspecto integral da opressão. A partir deste insight, outros debates
sobre política e estética adquiriram nova vida. Foi o feminismo (não exclusi-
vamente, mas em boa medida) que deu uma nova urgência à política da cultura
e focou nas conexões entre opressão e comando da linguagem. Amplamente
excluídas das tradições criativas, submetidas à ideologia patriarcal dentro da
literatura, artes populares e representações visuais, as mulheres tiveram que
formular uma oposição ao sexismo cultural e descobrir meios de expressão
1. As traduções dos textos originais são de nossa autoria.
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 9

que quebrassem com uma arte que tinha dependido para sua existência de um
conceito exclusivamente masculino de criatividade. 2 (1989: 111).
Essa afirmação de Mulvey sintetiza alguns avanços da crítica feminista do
cinema, que tinha um interesse inicial em delinear uma tradição do cinema
feito por mulheres, apontando que a exclusão destas das posições de comando
nessa área tem relação proporcional com a exploração da mulher como objeto
sexual. Para esse fim, seria necessário evidenciar tais filmes para tentar apon-
tar elementos estilísticos de modo a reconhecer neles uma estética feminina
coerente.
Entretanto, tais suposições iniciais mostraram-se inadequadas para a crí-
tica feminista do cinema que se esboçava, pois demonstraram que precisavam
ganhar maior densidade para lidar com as questões que o cinema exigia en-
quanto meio simbólico sofisticado que é. Podemos verificar essa necessidade
nesta declaração de Laura Mulvey:
A experiência da opressão, o reconhecimento da exploração da mulher na
imagem, poderia atuar como um elemento unificador para as mulheres dire-
toras, apesar de suas origens serem diferentes. Uma análise cuidadosa mos-
traria como as disputas associadas com ser mulher sob dominação masculina
encontravam uma expressão que unificava através de diversidades de todos os
tipos. Certamente, os filmes feitos por mulheres foram predominantemente
sobre mulheres, seja por escolha ou por outro aspecto ou marginalização.
Mas começou a parecer crescentemente duvidoso que uma tradição unificada
pudesse ser traçada, exceto em um nível superficial de mulheres como con-
teúdo. 3 (1989: 114).
A crítica feminista do cinema avançaria então no sentido de superar essas
estratégias iniciais de forma a desenvolver “cuidadosas e detalhadas análises
da linguagem e códigos usados por uma diretora sozinha em um mundo de
outra forma exclusivamente masculino. Tal trabalho se tornou um avanço cru-
2. No original: The collision between feminism and film is part of a wider explosive mee-
ting between feminism and patriarchal culture. From early on, the Women’s Movement called
attention to the political significance of culture: to women’s absence from the creation of do-
minant art and literature as an integral aspect of oppression. Out of this insight, other debates
on politics and aesthetics acquired new life. It was (not exclusively, but to an important extent)
feminism that gave a new urgency to the politics of culture and focused attention on connecti-
ons between oppression and command of language. Largely excluded from creative traditions,
subjected to patriarchal ideology within literature, popular arts and visual representation, wo-
men had to formulate an opposition to cultural sexism and discover a means of expression that
broke with an art that had depended, for its existence, on an exclusively masculine concept of
creativity.
3. No original: The experience of oppression, awareness of women’s exploitation in image,
would act as a unifying element for women directors, however different their origins. Careful
analysis would show how the struggles associated with being female under male domination
found an expression that unified across diversity of all kinds. Certainly, the films made by
women were predominantly about women, whether through choice or as another aspect or
marginalization. But it began to look increasingly doubtful whether a unified tradition could be
traced, except on the superficial level of women as content.
10 Gustavo Soranz

cial na crítica feminista do cinema. 4 ” (Mulvey, 1989: 115) Em resumo, não


bastava que diretoras mulheres substituissem os personagens masculinos por
personagens femininas, ou que deslocassem as personagens femininas para
outras posições dentro da narrativa que não fossem aquelas identificadas com
as posições subjugadas ao modelo masculino do poder patriarcal. Para que
a crítica feminista do cinema avançasse em direção ao escopo de uma teoria
feminista do cinema, a questão da linguagem cinematográfica deveria entrar
no foco da reflexão e ser objeto de crítica, “sondando o deslocamento entre a
forma cinematográfica e o material representado, e investigando vários meios
de abrir o espaço fechado entre a tela e espectador. 5 ” (Mulvey, 1989: 119).
Desta constatação surge o quadro teórico que vai sustentar a consolidação
de uma teoria feminista do cinema, assentada sobre os pilares da investigação
do signo e do inconsciente na representação, a partir de contribuições da se-
miologia e da psicanálise. Somado a isso, o interesse em desvendar o aparato
cinematográfico é marcado fortemente pela contribuição de Louis Althusser e
sua definição de ideologia, identificando-a como a representação imaginária
de uma relação entre sujeito e impressão de realidade.
Porém, a questão feminista no cinema deveria ir além do campo da investi-
gação e da teoria e deveria ser refletida no campo da produção cinematográfica
propriamente dita. Quais seriam as prerrogativas da prática de um cinema pro-
duzido por mulheres que estivesse em sintonia com as questões políticas que o
movimento feminista conduzia no campo das disputas sociais?
Para Claire Johnston - outra autora fundamental para delinear as bases do
que viria se consolidar como uma teoria feminista do cinema – o cinema femi-
nista deveria propor um cinema engajado no campo da estética, que utilizasse
crítica e conscientemente a forma do filme e explorasse outros modos de ar-
ticulação entre os diversos elementos que compõem sua linguagem. Em seu
texto Women’s cinema as counter-cinema, publicado inicialmente em 1973,
Johnston toca diretamente na questão da forma fílmica como reflexo de uma
ideologia.
Claramente, se aceitarmos que o cinema envolve a produção de signos, a ideia
de não intervenção é pura mistificação. O signo é sempre um produto. O que
a câmera de fato captura é o mundo ‘natural’ da ideologia dominante. O
cinema das mulheres não pode permitir tal idealismo; a ‘verdade’ da nossa
opressão não pode ser ‘capturada’ em celulóide com a ‘inocência’ da câmera:
ela tem que ser construída/manufaturada. Novos significados tem que ser
4. No original: careful, detailed analysis of the language and codes used by a woman
director alone in an otherwise exclusively male world.
5. No original: dislocation between cinematic form and represented material, and investi-
gating various means of splitting open the closed space between screen and spectator.
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feminista do cinema e as vanguardas artísticas 11

criados perturbando a estrutura do cinema burguês masculino no interior do


texto do filme. 6 (1976: 214).
Os argumentos de Johnston nos levam a observar a experimentação for-
mal no cinema como uma necessidade resultante de disputas ideológicas que
marcaram o período histórico no qual a teoria feminista do cinema surgiu. As
contendas da arena política apontavam para o desenvolvimento de uma consci-
ência crítica em relação à forma fílmica, uma vez que no cinema hegemônico
esta se configurava como resultado de mentalidades forjadas pelo pensamento
“burguês masculino”. Assim, para fazer frente a esse domínio, eram neces-
sárias novas estratégias formais por parte das diretoras mulheres quanto ao
dispositivo cinematográfico e seus efeitos na audiência.
Apesar de a maioria dos textos da teoria feminista do cinema se debru-
çar sobre o cinema narrativo, essa questão da experimentação reverbera no
campo das vanguardas artísticas e do cinema experimental, algo que Laura
Mulvey especificamente tratou no seu texto Film, feminism and avant-garde
(1989), que estamos utilizando como base aqui em nossa exposição neste ar-
tigo. Nesse texto, Mulvey tece considerações sobre a relação da semiologia
com as vanguardas artísticas que nos parecem importantes para pensar a apro-
ximação entre a teoria feminista e o cinema experimental.
Partindo de Julia Kristeva e seu trabalho em relação à poética modernista,
onde a filósofa búlgaro-francesa ligou a crise que produziu o modernismo com
o ‘feminino’, Mulvey expõe como a semiótica coloca a questão da linguagem
em primeiro plano, enfatizando a importância crucial do significante e a natu-
reza dual do signo. Para Mulvey, Kristeva
vê a feminilidade como reprimida na ordem patriarcal e como mantendo uma
relação problemática para com esta. A tradição é transgredida pela erup-
ção de excessos linguísticos, envolvendo prazer e ‘o feminino’ diretamente
oposto à linguagem lógica e repressão endêmica do patriarcado. Um pro-
blema permanece: nesses termos, a mulher apenas atua em relação ao que
estava sendo reprimido, e é a relação poética masculina à feminilidade que
entra em erupção no seu uso da linguagem poética. O próximo passo deve-
ria, de um ponto de vista feminista, se mover para além da mulher que não
fala, um significante do ‘outro’ do patriarcado, para um ponto onde mulheres
possam falar por si mesmas, além da definição de ‘feminilidade’ especificada
pelo patriarcado, para uma linguagem poética feita também pelas mulheres e
seu discernimento. Mas o ponto importante de Kristeva é este: a trangressão
é obtida pela própria linguagem. A ruptura com o passado deve atuar atra-
6. No original: Clearly, if we accept that cinema involves the production of signs, the idea
of non-intervention is pure mystification. The sign is always a product. What the camera in
fact grasps is the “natural” world of dominant ideology. Women’s cinema cannot afford such
idealism; the “truth” of our oppression cannot be “captured” on celluloid with “innocence”
of the camera: it has to be constructed/manufactured. New meanings have to be created by
disrupting the fabric of the male bourgeois cinema within the text of the film.
12 Gustavo Soranz

vés dos meios que elaboram o sentido, subvertendo suas normas e recusando
sua totalidade imperturbável. Aqui, por extensão, a importância do cinema
independente para o feminismo aparece plenamente: é fora das restrições do
cinema comercial, em debate com a linguagem, no contracinema, que a expe-
rimentação feminista pode ocupar o seu lugar. 7 (1989: 121-122).
Esse destaque para a necessidade de um cinema feminista que esteja iden-
tificado com a experimentação formal é algo que aproxima esses argumentos
das demandas do campo das vanguardas artísticas e particularmente do cinema
experimental, como podemos notar com a argumentação de Mulvey quando
esta destaca a importância do cinema independente nesse cenário. É também
a pedra de toque que leva Johnston a formular a sua argumentação em relação
ao que seria aquilo que ela propõe como um contracinema. Nas palavras desta,
“qualquer estratégia revolucionária deve desafiar a representação da realidade;
não é suficiente discutir a opressão às mulheres dentro do texto do filme; a lin-
guagem do cinema/representação da realidade deve também ser interrogada,
para que uma quebra entre ideologia e texto seja efetuada. 8 ” (Johnston, 1976:
215).
Outra autora fundamental para a consolidação da teoria feminista do ci-
nema e que coloca a questão da forma – mais precisamente das estratégias de
mise en scène – em primeiro plano para discutir o cinema feminista é Mary
Ann Doane, em cujo trabalho a questão do corpo feminino aparece com im-
portante centralidade. No texto Woman’s Stake: filming the female body, pu-
blicado em 1981, a autora se dedica a pensar como as estratégias de filmagem
do corpo feminino deveriam ser problematizadas sob a luz dos avanços na te-
oria feminista do cinema, ou seja, como o feminismo deveria nortear o cinema
das mulheres para além da oposição entre um essencialismo que marcou as re-
flexões iniciais, dominado pela questão das denúncias do sexismo no cinema,
7. No original: She sees femininity as the repressed in the patriarchal order and as stan-
ding in a problematic relation to it. Tradition is transgressed by an eruption of linguistic excess,
involving pleasure and ’the feminine’ directly opposed to the logical language and repression
endemic to patriarchy. A problem remains: woman, in these terms, only stands for what has
been repressed, and it is the male poet’s relation to femininity that erupts in his use of poetic
language. The next step would, from a feminist point of view, have to move beyond woman uns-
peaking, a signifier of the ’other’ of patriarchy, to a point where women can speak themselves,
beyond a definition of ’femininity’ assigned by patriarchy, to a poetic language made also by
women and their understanding. But Kristeva’s important point is this: transgression is played
out through language itself. The break with the past has to work through the means of meaning-
making itself, subverting its norms and refusing its otherwise imperturbable totality. Here, by
extension, the importance of the independent filmmaking sector for feminism appears fully: it is
outside the constraints of commercial cinema, in debate with the language of counter-cinema,
that feminist experimentation can take place.
8. No original: Any revolutionary strategy must challenge the depiction of reality; it is
not enough to discuss the oppression of women within the text of the film; the language of the
cinema/the depiction of reality must also be interrogated, so that a break between ideology and
text is effected.
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feminista do cinema e as vanguardas artísticas 13

e um antiessencialismo, que buscaria um cinema de oposição a esse modelo


hegemônico. Para fugir dessa dualidade, a teoria feminista do cinema deveria
arriscar-se a definir ou construir uma especificidade feminina, que pudesse pro-
videnciar uma representação simbólica autônoma da mulher no cinema. Para
Doane,
Está claro, a partir das explorações anteriores das elaborações teóricas do
corpo feminino, que a delimitação não está simplesmente ligada a uma ima-
gem isolada do corpo. A tentativa de ‘apoiar-se’ no corpo de modo a formular
a relação diferente da mulher em relação à fala, à linguagem, esclarece o fato
de que o que está em jogo é, mais do que isso, a sintaxe que constitui o corpo
feminino como um termo. Os mais interessantes e produtivos filmes recentes
que lidam com a problemática feminista são precisamente aqueles que ela-
boram uma nova sintaxe e, desse modo, ‘falando’ sobre o corpo feminino de
modo diferente, até mesmo de modo hesitante ou desarticulado da perspectiva
da sintaxe clássica. 9 (1981: 33).
Esta declaração de Doane nos remete diretamente para o cinema da viet-
namita Trinh T. Minh-ha, cujos filmes podem ser pensados como exemplos
centrais do que pode ser um cinema feminista enquanto forma e sintaxe e não
apenas enquanto tema. Vejamos o caso do seu primeiro filme, Reassemblage
(1982), onde o modo de filmar o corpo feminino é marcado pelo uso de es-
tratégias atípicas na seara à qual o filme aparentemente pertence, qual seja,
a do filme etnográfico. A cineasta optou por uma série de enquadramentos
parciais, de corpos fragmentados e deslocados em quadro, detalhes de seios
e movimentos de câmera hesitantes, articulados em uma montagem marcada
por jump cuts. A narração em voz over, por sua vez, estabelece uma série de
paralelos com situações que não estão ilustradas na imagem, mas que remetem
a questões do encontro intercultural, problemas da etnologia, da descrição da
alteridade e questões de gênero.

O cinema independente de vanguarda


Desde o final da década de 1960 surgiram cineastas que colocaram a ques-
tão da representação da mulher em sintonia com uma forma fílmica vanguar-
dista em termos de utilização dos recursos da imagem e do som. Assim fa-
zendo, exploram as articulações da montagem e da experimentação na narra-
tiva como forma de elaborar estéticas inovadoras, particularmente informadas
9. No original: it is clear from the preceding exploration of the theoretical elaboration
of the female body that the stake does not simply concern an isolated image of the body. The
attempt to "lean"on the body in order to formulate the woman’s different relation to speech,
to language, clarifies the fact that what is at stake is, rather, the syntax which constitutes the
female body as a term. The most interesting and productive recent films dealing with the feminist
problematic are precisely those which elaborate a new syntax, thus “speaking” the female body
differently, even haltingly or inarticulately from the perspective of a classical syntax.
14 Gustavo Soranz

e engajadas em debates das questões de gênero, não raro narrados sob um


ponto de vista assumidamente em primeira pessoa.
Antes de avançarmos cabe aqui lembrar que, no contexto norte-americano,
este cenário de produção de cinema independente foi marcado pela existência
de um importante grupo de cineastas experimentais na cidade de Nova Iorque,
que articularam diversas iniciativas em torno do cinema experimental under-
ground. Uma figura central neste cenário foi a do cineasta Jonas Mekas, que,
ao lado de outros entusiastas do cinema de vanguarda, fundou, no final da dé-
cada de 1950, a revista Film Culture, seguida da organização da filmmakers
cooperative, que seria a origem da Anthology Film Archives, dedicada a pre-
servar a memória do cinema de vanguarda. Essa agitação cultural resultou no
movimento conhecido como The new american cinema, modelo de cinema ex-
perimental, cooperativo, autofinanciado, do qual fizeram parte cineastas como
Stan Brakhage e Shirley Clarke.
Apesar de não abordar diretamente temas feministas em seus filmes, o caso
de Shirley Clarke nos interessa por sua atuação fundamental na consolidação
de um modelo de cinema independente nos Estados Unidos. Sua produção
é marcada inicialmente por filmes experimentais formalistas, como Bridges-
go-round (1958), que mostra uma sequência de sobreposições de imagens de
paisagens da cidade de Nova Yorke e caminhos traçados por pontes e viadutos,
com manipulação nas cores e embaladas por uma trilha de Jazz e efeitos sono-
ros. Ela também produziu filmes narrativos, que abordaram temas como ques-
tões de identidade e raça. Um exemplo dessa vertente é The cool world (1964),
que narra de forma realista as dificuldades em ser um jovem afro-americano
crescendo no ambiente urbano das grandes cidades. A cineasta ganhou um Os-
car pelo documentário Robert Frost: A Lover’s Quarrel With the World (1963)
e teve filmes que circularam por importantes festivais como o Festival Interna-
cional de Veneza.
Retornando a exemplos de cineastas que têm relação mais direta com as
questões feministas no cenário norte-americano, podemos citar o caso de Su
Friedrich, cujos filmes transitam entre estratégias do cinema narrativo, do do-
cumentário e do experimental, com trabalhos que refletem sobre sua vida pes-
soal e abordam temas relacionados ao universo feminino desde uma perspec-
tiva homossexual, mantendo uma produção regular desde o final da década de
1970 até os dias atuais. Podemos citar entre seus trabalhos mais importantes
The Ties that Bind (1985), um documentário sobre sua mãe, que emigrou da
Alemanha para os Estados Unidos, tendo crescido sob o regime nazista e os
horrores da guerra; Sink or Swin (1990), um filme sobre questões da sua in-
fância que moldaram o modo de ver as relações familiares, a paternidade e as
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 15

relações de trabalho e lazer, a partir das memórias e eventos relacionados a


um pai ausente e a conformação de seu lado afetivo; Hide and seek (1996), um
filme sobre a homossexualidade na adolescência vivida na década de 1960, ela-
borado a partir da utilização de estratégias ficcionais, articulação de material
de arquivo – filmes científicos e educacionais – e lembranças pessoais.
No cenário europeu, por sua vez, temos o caso seminal da cineasta francesa
Agnès Varda, que tem vasta e importantíssima produção, desde o final dos
anos 1950. Seus filmes iniciais são associados à Novelle Vague, passando para
uma produção extensa com trânsito frequente entre o cinema narrativo e o
documentário, com diversos exemplos de filmes inovadores na maneira como
relacionam a esfera privada com a esfera pública em estratégias ensaísticas que
problematizam o documentário de um ponto de vista da experiência pessoal da
cineasta. Outro nome europeu importante de ser lembrado é o da cineasta
belga Chantal Akerman, que também tem filmes importantes, tanto no campo
do cinema narrativo como no campo do documentário. Nesse segundo caso,
com filmes mais afeitos a discutir as temáticas feministas.
Nos filmes de Varda e Akerman ancorados no campo do documentário,
uma das estatégias centrais na elaboração do discurso é a utilização da voz
como recurso narrativo pleno de potencial expressivo. Vários filmes dirigidos
pela cineasta francesa utilizam um modo poético e pessoal de locução em voz
over, algo ampliado em seus últimos documentários, como é o caso de Les
glaneurs et la glaneuse (2000), onde a diretora assume uma visão em primeira
pessoa para refletir sobre o ato de catar ou recolher (batatas, imagens), im-
bricando a experiência pessoal com a experiência pública. Entre outros casos
de interesse, Chantal Akerman, por sua vez, dirigiu o filme News from home
(1977), no qual utilizou a locução em voz over de modo central para realizar
um filme intimista rememorando cartas trocadas com sua mãe. Ao fazer isso,
estabelece relações entre a experiência privada e o espaço público de modo
bastante poético e original, construindo, através do cinema, uma ponte entre
Nova Iorque e Bruxelas.

A voz como estratégia narrativa


Como vimos anteriormente, uma das principais contribuições da teoria fe-
minista do cinema foi a problematização do aparato cinematográfico como
uma instância relacionada à dimensão ideológica. A partir dessa concepção,
teóricas ligadas a esse campo de estudos dedicaram-se a investigar como o
cinema utiliza os seus recursos técnicos de modo a articular sentidos e afe-
tar a percepção do espectador quanto aos tópicos abordados, reverberando a
concepção de que enquanto teoria cinematográfica, os estudos feministas deve-
16 Gustavo Soranz

riam refletir sobre os aspectos mais sofisticados da linguagem cinematográfica.


Nessa reflexão acerca da forma do filme a partir da perspectiva aqui delineada,
os aspectos ligados ao uso da voz no cinema ganharam dimensão importante.
No texto “A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço”, publicado
inicialmente em 1980, Mary Ann Doane coloca a análise da voz no centro do
interesse de sua investigação, oferecendo uma contribuição importante em re-
lação às preocupações emergentes relacionadas ao aparato cinematográfico e
enfatizando como as estratégias formais e estéticas deveriam ser objeto de am-
pla e profunda reflexão intelectual. Nesse texto ela relaciona quatro aspectos
que considera fundamentais para a reflexão sobre a voz no cinema: a) a sin-
cronização entre som e imagem, b) a diferenciação entre voz off e voz over, c)
o prazer da audição e d) a política da audição.
Para Doane (1983), o cinema narrativo hegemônico recorre à sincroniza-
ção entre som e imagem como um recurso fundamental para suas estratégias
narrativas que buscam a transparência e a impressão de realidade, que atuam
diretamente para a identificação da audiência com o realismo cinematográfico.
Nesta relação entre voz e corpo, as possibilidades criativas desse encontro fi-
cam sacrificadas e o som adquire mero caráter de reprodução, na qual a voz
necessita estar ancorada em um determinado corpo e este em um determinado
espaço, para reforçar o efeito mimético de um realismo cinematográfico.
Em nome de uma análise acurada, a autora enfatiza a importância da con-
ceituação precisa em relação aos usos da voz no cinema, diferenciando as ca-
tegorias de voz off e voz over. O primeiro termo, voz off, está relacionado à
diegese e tem uma dimensão lateral, ou seja, trata-se da voz de um personagem
que não vemos naquele momento, mas que está na cena, que já conhecemos
ou que acompanhamos anteriormente participando da trama, mas que nesse
momento preciso a câmera não mostra. Segundo Doane, “o uso tradicional da
voz off constitui uma negação do enquadramento como limite e uma afirmação
da unidade e homogeneidade do espaço representado.” (1983, p.462). O termo
voz over, por sua vez, é uma voz descorporificada, apresentada como fora da
diegese. “Precisamente por não ser escrava de um corpo é que esta voz é capaz
de interpretar a imagem, produzindo a sua verdade. Descorporificada, carente
de qualquer especificação no tempo ou no espaço, a voz over está, como mos-
tra Bonitzer, além da crítica – ela censura as perguntas ‘Quem está falando?’,
‘Onde?’, ‘Em que hora?’ e ‘Para quem?’” (Doane, 1983: 467).
Trabalhando, sobretudo, com exemplos do cinema narrativo, o terceiro
ponto abordado por Doane em seu texto diz respeito ao prazer da audição.
Com uma abordagem psicanalítica em relação ao som, entendendo este como
efeito determinante para o realismo no cinema, cuidadosamente planejado em
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 17

termos de técnicas narrativas e em termos de tecnologia de captação e de re-


produção, neste domínio cinematográfico em especial, o som tem a função de
sustentar o prazer narcísico derivado na imagem.
Entretanto, no documentário, a voz over passou a representar uma autoridade
e uma agressividade que já não podem ser mantidas – assim, como diz Bo-
nitzer, a proliferação de novos documentários que rejeitam o absolutismo da
voz over e dizem estabelecer um sistema democrático ‘permitindo ao assunto
falar por si mesmo’. E mais, o que este tipo de filme realmente promove é
a ilusão de que a realidade fala, ao contrário de ser falada, e que o filme não
é um discurso construído. Efetuando uma ‘impressão de conhecimento’, um
conhecimento que é dado e não produzido, o filme oculta seu próprio trabalho
e coloca a si mesmo como uma voz sem sujeito. A voz é ainda mais pode-
rosa em silêncio. A solução então não é banir a voz, mas construir outras 10
políticas. (Doane, 1983: 471).
Encontrar na utilização da voz no documentário outras políticas nos in-
teressa sobremaneira. Retornaremos a esse ponto mais adiante neste artigo
quando passarmos a apresentar algumas estratégias relacionadas ao som nos
filmes de Trinh T. Minh-ha, especialmente as estratégias dedicadas à locução
e ao uso da voz.
Retornando aos pontos apresentados por Doane concernentes ao uso da
voz no cinema, o último deles diz respeito ao que ela denominou de a política
da voz. Novamente dedicando atenção principalmente ao cinema narrativo, a
autora identifica que a mise-en-scène clássica trabalha para perpetuar a uni-
dade entre imagem e som. Utiliza-se de efeitos homogeneizantes como modo
de garantir a noção de realismo, de continuidade e de transparência necessá-
rios para a identificação da audiência, como forma de apagar os traços que
permitem a percepção do aparato cinematográfico, estendendo o som para dis-
farçar o corte entre os planos, por exemplo. No caso dos documentários, essas
estratégias estão expressas na opção recorrente de utilizar apenas uma voz na
locução em voz over, sendo esta, geralmente, uma voz masculina. A famosa
“voz de Deus”.
Em outro texto, intitulado “Ideology and the practice of sound editing and
mixing”, publicado em 1980, Mary Ann Doane trata das questões ideológicas
do aparato cinematográfico relativas à edição e à mixagem do som no cinema
de modo mais amplo e não apenas em relação ao uso da voz. Nesse trabalho ela
reforça os argumentos sobre o uso normativo do som no cinema hegemônico de
ficção, mas chama a atenção para uma questão problemática que pode emergir
na relação do som com a imagem.

10. Ênfase do original.


18 Gustavo Soranz

Enquanto o som é introduzido, em parte, para apoiar essa ideologia, ele tam-
bém arrisca uma crise ideológica em potencial. O risco reside na exposição da
contradição implícita na polarização ideológica de conhecimento. Devido ao
fato de som e imagem serem usados como fiadores de dois modos de conhe-
cimento radicalmente diferentes (emoção e intelecção), sua combinação acar-
reta a possibilidade de expor uma fissura ideológica – uma fissura que aponta
para a irreconciabilidade de duas verdades da ideologia burguesa. As práticas
de edição de som e mixagem são projetadas para mascarar essa contradição
através da especificação de relações permitidas entre som e imagem 11 . (Do-
ane, 1980: 50).
Essas considerações de Doane reforçam que a investigação acadêmica so-
bre o aparato cinematográfico deve lançar luzes sobre a estética do cinema,
sobretudo em um meio social interessado em subverter as convenções ampla-
mente utilizadas no cinema narrativo hegemônico, como é o caso do campo
do cinema experimental. Conhecer a forma cinematográfica e sua técnica é
essencial para explorar suas possibilidades expressivas de modo pleno, expan-
dindo o potencial do cinema como meio de expressão, e, sobretudo, para nos
fazer ver como a investigação não deve estar centrada apenas nos aspectos da
imagem, tão amplamente estudada no âmbito da teoria do cinema, mas deve
incluir o som como objeto de escrutínio.
Nas questões dedicadas às análises da voz no cinema e em sintonia com as
proposições de Doane, temos também o trabalho de Kaja Silverman, especi-
almente os argumentos apresentados em seu texto Dis-embodying the female
voice, publicado pela primeira vez em 1981. Nesse texto, assim como Doane,
a autora se debruça prioritariamente sobre o cinema narrativo, para problema-
tizar as questões relacionadas à voz no cinema e também parte da identificação
da sincronização como um elemento unificador da linguagem cinematográfica.
Segundo suas palavras,
A sincronização funciona como um imperativo virtual no cinema de ficção.
Embora à voz masculina seja ocasionalmente permitido transcender esse im-
perativo completamente, e à voz feminina seja de tempos em tempos permi-
tida uma pausa qualificada do seu rigor, ela organiza toda a relação som/ima-
gem. Ela é a norma em relação à qual esses relacionamentos aderem ou se
afastam. 12 (Silverman, 1984: 132).
11. No original: While sound is introduced, in part, to buttress this ideology, it also risks
a potential ideological crisis. The risk lies in the exposure of the contradiction implicit in the
ideological polarization of knowledge. Because sound and image are used as guarantors of
two radically different modes of knowing (emotion and intellection), their combination entails
the possibility of exposing an ideological fissure – a fissure which points to the irreconcilability
of two truths of bourgeois ideology. Practices of sound editing and mixing are designed to
mask this contradiction through the specification of allowable relationships between sound and
image.
12. No original: Synchronization functions as a virtual imperative within fiction film.
Although the male voice is occasionally permitted to transcend that imperative altogether, and
the female voice is from time to time allowed a qualified respite from its rigors, it organizes all
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 19

Seguindo os princípios da teoria feminista do cinema, Silverman identifica


a normatização em relação ao cinema narrativo hegemônico como sendo orien-
tada por uma lógica masculina, em que a opressão sexista em favor do homem
como elemento central e agregador da narrativa atua como força onisciente na
organização dos elementos do filme. A diferenciação entre os gêneros coloca
sempre em desvantagem as estratégias associadas ao feminino. Para a autora,
os mecanismos de exclusão são muito mais complexos do que aqueles que
negam o acesso das mulheres a uma visão autorizada, e requerem formulação
cuidadosa para desvendar sua articulação. Em sua exposição ela enfatiza que o
sujeito masculino assume posições de autoridade dentro e fora do filme e o su-
jeito feminino, ao contrário, tem sistematicamente negadas tais possibilidades,
sendo excluído de qualquer autoridade discursiva.
Após desenvolver sua exposição centrando a argumentação em exemplos
que miram no uso da voz no cinema narrativo, diferenciando as possibilidades
narrativas geralmente cedidas ao masculino e ao feminino nas estratégias utili-
zadas por tais filmes, Silverman volta-se para o cinema de vanguarda para am-
parar sua busca por alternativas estéticas em relação a esse padrão hegemônico
normativo, tal como vimos anteriormente nos argumentos de Mulvey (1989) e
Doane (1980). Nas palavras da autora: “é na prática da vanguarda feminista,
entretanto, que a voz feminina tem sido mais exaustivamente interrogada e
utilizada de modo mais inovador. 13 ” (Silverman, 1984: 137).
A argumentação de Silverman desenvolve-se no sentido de apontar como
a desvinculação entre corpo e voz no cinema, especialmente no caso do corpo
e da voz feminina, provoca rupturas nos modelos hegemônicos de normatiza-
ção nas relações entre som e imagem, de modo a provocar novas percepções
acerca da representação da realidade e do próprio dispositivo cinematográfico,
elaborando formas narrativas mais complexas, desafiadoras e intrigantes para o
espectador. Para exemplificar seus pontos ela se baseia em alguns exemplos de
documentários associados a práticas mais experimentais, especialmente os fil-
mes News from home, de Chantal Akerman (1977) e Journeys from Berlin/71,
de Yvonne Rainer (1980).
Para Silverman, o filme de Rainer é um caso notável de utilização de es-
tratégias de tratamento da voz e, em especial, das estratégias de sincronização
ou disjunção do corpo e da voz femininos no cinema. Para ela, “essas questões
são tratadas de modo muito mais profundo neste que é inquestionavelmente o
sound/image relationships. It is the norm to which those relationships either adhere, or from
which they deviate.
13. No original: It is in feminist avant-garde practice, though, that the female voice has been
most exhaustively interrogated and most innovatively deployed.
20 Gustavo Soranz

mais memorável uso de vozes femininas no âmbito das vanguardas feministas,


se não em todo o cinema experimental. 14 ” (Silverman, 1984: 143).
Yvonne Rainer é uma artista norte-americana com produção diversificada
em campos distintos. Oriunda do campo da dança e do teatro, Rainer tam-
bém tem atuação marcada por uma jornada interdisciplinar tanto intelectual
quanto artística e uma experiência que desloca questões de um campo a outro,
subvertendo os limites e as fronteiras entre disciplinas e práticas expressivas.
Além disso, seu percurso criativo revela um diálogo profícuo entre a teoria e
a produção artística. Seus filmes foram objeto de interesse da teoria feminista
do cinema e ajudaram a moldar seus argumentos em um diálogo de mão du-
pla que se estabeleceu entre a artista, que, informada pela teoria, incorporou
a reflexão sobre as políticas da representação em suas obras. No mundo aca-
dêmico, suas proposições conceituais e a grande variedade da sua expressão
artística sugerem modos instigantes de se repensar o empreendimento teórico.
Yvonne Rainer é uma incansável teórica, no sentido que os termos da reflexão
podem mudar, mas o ato da reflexão está sempre lá. Seus filmes e suas pa-
lavras oferecem a reflexão teórica como fluxo permanente, sempre mudando.
Teoria nunca tem uma voz unificada; às vezes ela parece menosprezada, às
vezes ela parece ser citada com grande reverência. A teoria nunca tem um pé
na certeza, e, como resultado, você frequentemente encontra teoria em lugares
inesperados no trabalho de Rainer. 15 (Mayne, 1999: 24).
O cinema de Yvonne Rainer nos permite notar uma simultaneidade entre
sua produção artística e a teoria feminista do cinema. Dito de outro modo,
podemos destacar trocas positivas entre o campo teórico emergente da teoria
feminista do cinema e o campo da experimentação artística engajada com no-
vas formas de expressão.

A voz e o som no cinema de Trinh T. Minh-ha


Diante de toda essa exposição relativa à conformação da teoria feminista
do cinema e ao modo como tal teoria contribuiu para problematizar o aparato
cinematográfico, com especial atenção aos elementos sonoros da linguagem
cinematográfica e em particular ao papel da voz no cinema, consideramos que
a produção fílmica de Trinh T. Minh-ha tem aspectos muito originais a oferecer
14. No original: These issues are treated at much greater length in what is unquestionably
the most remarkable deployment of female voices within the feminist avant-garde, if not within
the whole of experimental cinema.
15. No original: Yvonne Rainer is an unrelenting theorist, in the sense that the terms of
reflection may change, but the act of reflection is always there. Her films and her words offer
theoretical reflection as always in flux, always changing. Theory never has a unified voice;
sometimes it seems to be mocked, sometimes it seems to be cited with great reverence. Theory
never has a sure footing, and as a result you often find theory in unexpected places in Rainer’s
work.
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 21

para que possamos investigar o uso do som e, notadamente, da locução, no


campo do documentário moderno e de fatura experimental.
É importante relembrar aqui que a formação inicial da cineasta foi na área
musical. Ela possui diploma pelo National Conservatory of Music & Thea-
ter, de Saigon (1969), bacharelado em literatura e música francesa, na Wil-
mington College (1972), estudos de etnomusicologia, na Université de Paris
IV-Sorbonne (1974), Master of Arts em literatura francesa e etnomusicolo-
gia, pela University of Illinois, Urbana-Champaign (1973) e Master of Music
(composição), pela University of Illinois, Urbana-Champaign (1976).
Dessa sua origem na atuação musical Minh-ha trouxe para sua produção
fílmica a noção determinante de ritmo, fundamental na organização dos ele-
mentos expressivos do seu cinema. Entretanto, não é sobre essa questão que
nos deteremos aqui, mas sobre estratégias de utilização de certos elementos
em seus filmes, especificamente o som, o silêncio e o uso da voz.

O som e o silêncio
Nos filmes dirigidos por Trinh T. Minh-ha encontramos diferentes estra-
tégias de uso da música, dos ruídos e do silêncio. No primeiro caso, temos a
música incidental, tocada por músicos e instrumentistas em estúdio e adicio-
nada na montagem, e também os casos da música tocada ao vivo diretamente
na cena, como parte da diegese do filme. Em relação aos ruídos e sons cap-
tados em som direto durante o trabalho de campo, estes são frequentemente
utilizados como recursos sonoros não sincrônicos de modo a desnaturalizar a
associação com a imagem e adquirir outras funções, musicais e rítmicas. Há
ainda o uso do silêncio como recurso narrativo.
Seus filmes Reassemblage (1982) e Naked Spaces (1985) utilizam de modo
exemplar uma série de estratégias sonoras que são muitas vezes destacadas
como características singulares da sua expressividade artística. Um elemento
essencial desses trabalhos em particular é o caráter disjuntivo entre som e ima-
gem. Esses filmes foram captados em película 16 mm, com som registrado em
um gravador Nagra e filmados em áreas rurais de países da África Ocidental.
Entretanto, apesar da possibilidade tecnológica do registro sincrônico do som
e da imagem já estar disponível no momento de produção dos filmes, neles não
há uma única passagem em que imagem e som estão em sincronia. No caso de
Reassemblage, os créditos em tela mostram apenas a menção um filme de Trinh
T. Minh-ha, sendo que no roteiro do filme publicado posteriormente temos a
indicação de que Minh-ha produziu (juntamente com Jean-Paul Bourdier), di-
rigiu, fotografou, escreveu e editou o filme. Baseados nessas informações,
podemos supor que ela própria foi responsável pela fotografia e pelo registro
22 Gustavo Soranz

dos sons, de modo que não poderia, com o equipamento utilizado, registrar
simultaneamente ambos. Em diversas entrevistas 16 Minh-ha já declarou que
teve pouca experiência prévia com cinema antes de emigrar para os Estados
Unidos nos anos 1970 e que a realização de Reassemblage foi marcada por um
processo de aprendizado em termos de filmagem.
No caso de Naked Spaces, por sua vez, em uma primeira tela os créditos
iniciais apresentam as informações de que o filme foi fotografado, escrito e
teve a música gravada por Minh-ha. A referência à direção aparece marcada
por um X, como que a anular este quesito. No roteiro publicado de Naked
Spaces, porém, não há menção ao registro das músicas. Em uma segunda tela
com créditos temos a informação de que Trinh T. Minh-ha montou o filme e
que Jean-Paul Bourdier foi assistente.
O uso criativo e original da banda sonora acabou tornando-se uma das
forças estéticas dos filmes. O caráter disjuntivo da montagem de Reassemblage
e de Naked Spaces nos remete diretamente ao princípio da continuidade visual,
da transparência e da identificação, que são aspectos centrais para o cinema
narrativo, mas que são também buscados pelo cinema de cunho etnográfico
convencional, por exemplo, seara com a qual estes filmes da diretora dialogam
claramente. Com este princípio de articulação entre o som e a imagem, o filme
desnaturaliza a representação dos corpos, do espaço e da ação que registra no
Senegal, chamando a atenção para a política da representação e não para o
tema. Ao assumir a disjunção como princípio narrativo radical, Reassemblage
posiciona-se de modo a questionar as presunções dos modelos convencionais
de cinema, especialmente dos modelos clássicos de documentário. Seguindo o
pensamento de Mulvey (1989), trata-se de um exemplo contundente de que um
cinema de vanguarda estética e política só pode existir enquanto contraponto
ao modelo hegemônico.
Nos outros filmes da cineasta o caráter disjuntivo arrefece e a montagem
ganha um caráter mais paratático – onde as imagens e cenas são organizadas
sequencialmente, porém, sem guardar conjunção coordenativa entre si – arti-
culando diversos elementos heterogêneos em uma exploração ensaística dos
temas e das formas, onde não há compromisso com a linearidade, mas a jus-
taposição de episódios que se sucedem sem se vincular a um ordenamento
causal, sem explicação ou hierarquia claramente definidas. Os filmes Surname
Viet Given Name Nam (1989), The Fourth Dimension (2001) e Forgetting Viet-
nam (2015) incluem letreiros eletrônicos sobrepostos às imagens. Imagens de
arquivo (fotografias e filmagens) aparecem em Surname Viet Given Name Nam
16. Para entrevistas mais focadas nos três primeiros filmes da diretora ver Framer Framed
(1992)
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 23

e Forgetting Vietnam. Diferentes texturas de imagem são adotadas em Shoot


for the Contents e Forgetting Vietnam. O uso de música pré-gravada aparece
em The Fourth Dimension (2001) e Night Passage (2004)
O silêncio é um elemento narrativo importante em Reassemblage e em Na-
ked Spaces. Quando nos referimos a silêncio estamos falando da ausência total
de som realmente e não apenas de um nível baixo de registro sonoro ou coisa
que o valha. Em certas passagens desses filmes, Minh-ha retira o som com-
pletamente, deixando a cena silenciosa, de modo que esse silêncio se torna
ensurdecedor. Dito de outro modo, utilizando uma metáfora mais comum e as-
sociada ao campo da imagem, o uso do silêncio nesses filmes torna o trabalho
com o som visível. Para Mary Ann Doane (1984) a invisibilidade do trabalho
com o som é a medida da força da banda sonora do filme. Evidentemente,
nos filmes aqui em questão, podemos dizer o contrário. Como forma de expor
o aparato cinematográfico, causando sensação de estranhamento e desnatura-
lizando a identificação com o tema, os silêncios assumem um caráter ativo e
marcante, contribuindo para a elaboração de uma narrativa em que imagem e
som expressam dimensões sensíveis que desestabilizam as expectativas típicas
das narrativas convencionais, onde comumente há a manutenção de oposições
ideológicas entre o inteligível e o sensível, o intelecto e a emoção, o fato e
o valor, a razão e a intuição. Nos casos aqui destacados, a evidenciação do
trabalho com o som é a medida da força da estética do filme.
Passando para a dimensão do som, vamos nos dedicar ao tema a partir de
dois aspectos: os sons gravados em campo e utilizados de modo não sincrônico
com a imagem na montagem, e a utilização de músicas.
O primeiro caso, dos sons não-sincrônicos, está mais fortemente presente
nos dois filmes iniciais da cineasta, mas em menor escala também aparece nos
demais. Nos casos dos filmes realizados na África, os sons registrados em
campo são utilizados de modo a compor uma sonoridade rítmica, afastando-se
de uma função que poderia ser ilustrativa ou de contextualização. Temos sons
de trabalhos manuais, como o pilar do alimento pelas mulheres, sons de inse-
tos, de falas, cantos de trabalho e cânticos rituais. Entretanto, nenhum deles se
oferece como suporte para a imagem, sendo trabalhados de forma autônoma.
Mesmo quando os sons são relativos à imagem, como no caso das mulheres
que estão trabalhando no pilão, o som não é sincrônico e o que prevalece é o
ritmo da montagem, da articulação entre imagem e som, e não a ilustração ou
a descrição, seja da imagem em relação ao som ou vice-versa. Nesses casos,
os sons são trabalhados como na música concreta, ou seja, uma composição
musical que se constrói na montagem, incorporando elementos a princípio es-
tranhos ao universo musical, como ruídos e sons naturais registrados anterior-
24 Gustavo Soranz

mente, para deles extrair musicalidade. Ao invés da composição musical nos


moldes convencionais, onde estão envolvidos instrumentos e músicos, aqui a
sonoridade surge da montagem desses ruídos na etapa de pós-produção.
Em relação ao segundo caso, a utilização de músicas, temos duas situa-
ções: a música incidental sobreposta à imagem, e a música registrada dentro
da diegese no ato da filmagem, conforme apontamos anteriormente. A música
incidental aparece nos filmes de Trinh T. Minh-ha em uma multiplicidade de
usos. Por exemplo, a partir de arquivos, contribuindo para tecer uma narrativa
que revisita a dimensão histórica a partir de experiências individuais, como é
o caso dos filmes Surname Viet Given Name Nam e Forgetting Vietnam, que
utilizam poemas ou cânticos tradicionais, ou então a partir de registros pela
câmera de rituais encenados, como é o caso nos filmes Shoot for the contents e
The Fourth Dimension. Aqui acompanhamos espetáculos performáticos e mu-
sicais e cerimônias que revisitam tradições culturais e folclóricas cujos sons
passam do diegético para o extradiegético na articulação da montagem.
O filme Night passage é um caso interessante de experimentação com a
música em relação à narrativa. As personagens Kyra, Nabi e Shin vão percor-
rendo as salas e espaços na viagem que empreendem pela “passagem noturna”.
Nesses locais elas encontram outros personagens, que lidam com dimensões
diferentes da performance. Temos situações dedicadas à palavra, aos movi-
mentos, às luzes e aos sons e que inserem as personagens principais em ex-
periências dentro do filme. Experiências com a tecnologia, com expressões
artísticas, com diferentes sensações e energias. A maneira de realizar este
trabalho conjugou experiências com a câmera, resultado da encenação para o
filme e experiências na cena, na diegese, onde as personagens se depararam
com performances sendo executadas diretamente no desenrolar da cena. Esta
situação é particularmente interessante no caso da música. Em diversas cenas
há música sendo interpretada em tempo real, no próprio transcorrer do plano e
a interpretação desta está em sintonia com o desenvolvimento da ação. A mú-
sica incidental não é apenas inserida em um trabalho de edição posterior, com
ajustes controlados de duração e transições, mas é executada em sintonia com
o trabalho dos atores e da câmera, devendo lidar com as dimensões de duração
e transição dentro da execução do plano. Uma situação de filmagem em direto
que remete ao documentário, executada em uma encenação ficcional.
Logo no início do filme, quando Kyra sai do seu local de trabalho, temos a
primeira situação onde a música está sendo interpretada diretamente na cena,
como parte da diegese. Kyra sai de bicicleta do galpão onde trabalha. O som
da flauta começa. Ela cruza com um homem e uma mulher, que estão por
ali em frente ao galpão, sentados. A música da flauta tocando uma melodia.
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 25

O homem chama Kyra, que retorna ao encontro deles. A câmera acompanha


Kyra em uma panorâmica horizontal e enquadra os três no plano: Kyra, o ho-
mem e a flautista. Kyra e o homem começam a conversar sobre problemas,
sonhos e os caminhos da vida. A flautista toca seu instrumento pontuando o
diálogo entre os atores. O plano permanece o mesmo, sem decupagem. Os três
em cena simultaneamente. Após a conversa, Kyra levanta-se e caminha para a
bicicleta, a câmera a acompanha em uma panorâmica horizontal, deixando o
homem e a flautista fora do quadro. A flautista retoma a melodia que preenche
a cena da saída de Kyra. Em outra cena mais adiante, já dentro do trem que faz
a “passagem noturna”, Kyra, Nabi e Shin encontram-se com dois contadores
de história em um dos vagões. Um deles conta histórias cantando a capella.
Mais adiante as três personagens estão em outro espaço, um ambiente aberto,
brincando com cores e formas desenhadas no chão, quando seguem uma linha
colorida fazendo a passagem para outro espaço maior, onde um baterista está
tocando uma bateria eletrônica, sendo acompanhado por um percussionista.
Algumas pessoas sentadas ao redor assistindo. Novamente sem decupagem,
apenas um plano de câmera. Neste caso o plano começa fechado no baterista
e vai se abrindo em zoom out, incluindo todos em cena. Kyra brinca com uma
bola metálica dançando ao som da música. Nabi passeia de patins, em movi-
mentos circulares ao redor. Shin brinca com o projetor de luz. Lentamente as
personagens vão saindo do quadro, no que são acompanhados pela câmera em
uma panorâmica lateral, até chegarem a uma figura humana desenhada no chão
com pontos luminosos. O som da bateria e da percussão permanece. A última
cena que apresenta música inserida na diegese acontece em uma sala de jantar,
local em que as personagens confraternizam com algumas pessoas à mesa. Ao
chegar à sala, as personagens recebem captadores de som que são colocados no
rosto. Ao fundo temos um grupo de música eletrônica experimental, com uma
série de equipamentos eletrônicos ligados. Os músicos vão compondo em in-
teração com a cena, incorporando os sons gerados pelos dispositivos presos no
rosto de cada ator. Movimentos físicos se transformam em sons manipulados
eletronicamente dentro da própria diegese do filme.
Em relação à utilização de músicas pré-gravadas, Trinh T. Minh-ha tra-
balhou com o grupo de música instrumental experimental The Construction
of Ruins nos filmes A Tale of Love, The Fourth Dimension e Night Passage.
O trabalho do grupo resulta de uma improvisação bastante livre, utilizando
instrumentos adaptados, como o piano ‘preparado 17 ’, nos moldes dos instru-
mentos de músicos de vanguarda como John Cage. O trabalho com este grupo
17. Objetos estranhos ao piano são inseridos nas cordas do instrumento, como parafusos e
moedas, a fim de obter novas e inusitadas sonoridades.
26 Gustavo Soranz

é baseado na improvisação e busca trazer para o campo sonoro a mesma li-


berdade e inventividade almejada no campo visual. O grupo trabalha de modo
bastante experimental, sem seguir estruturas musicais definidas, como seria
esperado de uma música no sentido convencional. Como um grupo de van-
guarda tampouco vê limites entre o que é ruído e o que é música, abusando das
sonoridades dissonantes. Para R. Murray Schaffer, um importante teórico no
campo musical,
Às vezes, a dissonância é chamada de ruído; e para os ouvidos tímidos até
pode ser isso. Porém, consonância e dissonância são termos relativos e subje-
tivos. Uma dissonância para uma época, geração e/ou indivíduo pode ser uma
consonância para outra época, geração e/ou indivíduo. A dissonância mais
antiga na história da música foi a Terça-Maior (dó-mi). A última consonância
na história da música foi a Terça-Maior (dó-mi). (1991: 69).
Podemos notar que no cinema de Trinh T. Minh-ha o aspecto musical res-
soa a utilização de estratégias desafiadoras como aquelas utilizadas no âmbito
da imagem, de modo a contribuir para propor uma experiência fílmica que
pretende encontrar caminhos novos para representar uma visão particular de
mundo.

A voz
A cineasta explorou uma multiplicidade de possibilidades no uso da lo-
cução em voz over, demonstrando, como o modelo convencional ou clássico
de documentário é limitador em sua estrutura narrativa excessivamente nor-
matizada. A locução evidencia a importância da palavra falada para Trinh T.
Minh-ha (ao lado da palavra escrita dos letreiros e da palavra escrita nos livros)
e permite a cineasta explorar dimensões retóricas, poéticas, líricas e pessoais
que subvertem os modelos narrativos recorrentes no cinema. A voz no cinema
de Trinh T. Minh-ha é elemento fundamental para o desenvolvimento de seu
caráter ensaístico, principal linha de força de seu cinema. É no espaço da
locução que a cineasta exerce com plenitude seu discurso.
Vamos recorrer a Mary Ann Doane, buscando seus argumentos em favor
daquilo que chamou de a política da voz, no texto “A voz no cinema: a arti-
culação de corpo e espaço”. Para a autora, o documentário clássico trabalha
para confinar a voz over em uma única voz, que ao lado da sincronização entre
imagem e som, atua como forma de buscar obter um efeito homogeneizante,
de unidade. Como já vimos em diversas passagens, o que interessa para Trinh
T. Minh-ha é trabalhar na multiplicidade, buscar a diferença na multiplicidade.
Esta busca pode ser traduzida em seus diferentes filmes nas estratégias de lo-
cução adotadas, por exemplo, no uso de duas vozes distintas, como em Shoot
A voz como estratégia narrativa no cinema experimental: sintonias entre a teoria
feminista do cinema e as vanguardas artísticas 27

for the contents, ou mesmo três vozes distintas, como em Naked Spaces. “Isto
implica não apenas aumentar o número de vozes, mas radicalmente mudar o
relacionamento delas para com a imagem, efetuando uma disjunção entre som
e significado, fazendo prevalecer aquilo que Barthes define como o’grão’ da
voz sobre e contra sua expressividade ou poder de representação.” (Doane,
1983: 472-473).
Em último lugar, devemos ressaltar que nos filmes de Trinh T. Minh-ha a
locução, mesmo quando não é feita por ela própria, é carregada de sotaque.
Nos filmes da cineasta praticamente todas as locuções em voz over são em
inglês. Com excessão das duas entrevistas de Shoot for the Contents e de al-
guns outros personagens aqui e ali, quase sempre são mulheres que falam. Em
praticamente todos esses casos o inglês não é a língua materna de quem fala e
as vozes são frágeis e delicadas. Desse modo, as vozes carregam dois elemen-
tos – sotaque e fragilidade – que perturbam as normas daquilo que o modelo
convencional normatizou como sendo esperado do recurso da locução em voz
over: a locução masculina, de voz grave e assertiva. Para Barthes (1977), a
voz não é pessoal, não é original, porém ao mesmo tempo é individual: ela
tem um corpo que ouvimos, que não tem identidade civil, não tem personali-
dade, mas tem mesmo assim um corpo separado. Acima de tudo, a voz carrega
diretamente o simbólico, acima do inteligível, o expressivo.
Pela voz há a afirmação da diferença de seu cinema, protagonizado por
mulheres, não raro em situações de deslocamento, de diáspora, que refletem a
experiência intercultural a partir dos intervalos e dos cruzamentos entre cultu-
ras, lugares e instâncias de poder.

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28 Gustavo Soranz

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