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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MARINA DUQUE COUTINHO DE ABREU LACERDA

O IPHAN E A INVENÇÃO DOS LUGARES DE MEMÓRIA


EM CUIABÁ:
AS DEMANDAS E POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔ-
NIO HISTÓRICO (1958-2013)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em


História da Universidade Federal de Mato Grosso na área de concentração
de “Territórios e Fronteiras” - “Ensino de História, Memória e Patrimô-
nio”, sob a orientação do Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro.

Este exemplar corresponde à redação final da Disser-


tação de Mestrado defendida e aprovada pela Comis-
são Julgadora em 23/05/2014.

BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro (UFMT – Orientador)
Prof. Dr. Raquel Alvarenga Sena Venera (UNIVILLE – Examinador Externo)
Prof.ª Dr.ª Alexandra Lima da Silva (UFMT – Examinador Interno)
Prof.ª Dr.ª Cláudia Regina Bovo (UFMT/UFTM – Suplente)

Cuiabá/MT – Abril de 2014.


O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

FICHA CATALOGRÁFICA

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O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Etrúria: Laboratório de Estudos de Memória, Patrimônio e
Ensino de História, vinculado ao Departamento de História/ICHS/UFMT.

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O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

O IPHAN E A INVENÇÃO DOS LUGARES DE MEMÓRIA


EM CUIABÁ:
AS DEMANDAS E POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔ-
NIO HISTÓRICO (1958-2013)

MARINA DUQUE COUTINHO DE ABREU LACERDA

Universidade Federal de Mato Grosso


Instituto de Ciências Humanas e Sociais
Programa de Pós-Graduação em História

iv
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

RESUMO

A presente dissertação estuda as políticas patrimoniais no realizadas pelo Instituto de Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Estado de Mato Grosso, no intuito de perceber os
litígios e desafios impostos ao processo de preservação com especial ênfase na cidade de Cuiabá.
O recorte temporal se dá a partir do início da década de 1960 até o final da primeira década do
século XXI, tendo como marco inicial a formação de uma consciência preservacionista local com
as primeiras discussões acerca do tombamento do Centro Histórico da cidade de Cuiabá e
findando com a instalação da Superintendência do IPHAN em Mato Grosso, em 2009, e as ações
de preservação lançadas através do Plano de Aceleração do Crescimento, voltado exclusivamente
para obras em cidades históricas – “PAC Cidades Históricas”.
Palavras-chave: 1) Territórios e Fronteiras. 2) Ensino de História, Memória e Patrimônio. 3)
Etrúria 4) Patrimônio. 5) Patrimônio Histórico.

ABSTRACT

The present dissertation studies the heritage policies developed by the National Artistic and His-
torical Heritage Institute (IPHAN) in the state of Mato Grosso, in order to identify the disputes
and challenges imposed by the process of preservation, with a special emphasis on the city of
Cuiabá. The period of the study starts in the beginning of the 1960 decade until the end of the
first decade of the 21th century, having as the starting point the formation of a local preservation-
ist consciousness, with the firsts debates about the process of statutory protection for the “Centro
Historico” in the city of Cuiabá, and lasting until the establishment of the IPHAN Superintend-
ence in the state of Mato Grosso, in 2009, and the preservation actions launched by the Plano de
Aceleração do Crescimento (Grouth Acceleration Plan) aimed exclusively for civil engineering
works on Historical Cities – “PAC das Cidades Históricas”.

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O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Aos meus pais por me ensinarem a persistir


com determinação e coragem.

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O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Quem não se lembra! É o passado que vive, em vigília, que anda


que vê
que fala
que grita
que ficou encrustado na cútis da Villa Real de
São Bom Jesus de Cuyabá!

Mas é nas dores das ruas tortas... ah, não:


nossas ruas não são tortas,
são anguladas como o diamante,
como o escudo que defende o índio,
como o bordado tropeiro na rede lavrada
Silva Freire

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O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

AGRADECIMENTOS

Escrever uma dissertação de mestrado é sem dúvida uma experiência única, cheia de
desafios, mas também muito enriquecedora, transformamo-nos a cada nova descoberta da pesqui-
sa. Para os que partilharam comigo dessa trajetória que parecia interminável, meus sinceros agra-
decimentos.
Preliminarmente quero agradecer a Deus, por tudo!
Sou imensamente grata à Cuiabá que me recebeu de forma mui calorosa há quase
uma década.
Ao Renilson, meu orientador-amigo por dividir comigo suas experiências, me ensina-
do com grandeza e generosidade, por sua disponibilidade e leveza na condução de todo o proces-
so, fazendo com que cada etapa fosse cumprida com alegria e sucesso.
Aos meus pais por me apoiarem desde sempre com palavras de incentivo e estimulo
que beiram o exagero.
À minha irmã Maíra pela alegria que sua chegada trouxe à minha vida, pelo orgulho
que tenho em dividir com ela meus valores e origem.
Ao meu marido José Coriolano pelo apoio, paciência, cumplicidade e amor que me
dedicou nessa trajetória. Que sorte esse encontro!
À minha amiga Carolina, meu alter ego, agradeço por me conhecer e me entender
com um olhar.
À amiga Dirlene pela sinceridade genuína que brota de suas palavras, pela delícia de
dividir meus dias com você!
À minha amiga Michele pelo dom de me apontar sempre os melhores caminhos.
Ao primo e amigo Paulo Veriano por todo o incentivo!
Aos meus amigos do IPHAN em Mato Grosso, um agradecimento especial por com-
partilharem comigo o conhecimento, dúvidas e desalentos, mas também muitas vitórias nesta luta
pela preservação: Maria Elisa, Karina, Erikleton, Francisco, Mirella. A vocês registro as minhas
mais reais manifestações de respeito e admiração. Essa convivência me faz melhor.

viii
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

À Elza por ser mil e única ao mesmo tempo.


À Nádia, com quem passo diariamente minhas ideias a limpo, agradeço pelos conse-
lhos e conversas.
À Amélia minha mais profunda admiração pela competência, disciplina e apurado
senso estético. Não teria conseguido sem esse apoio.
À amiga Teresa pela delicadeza de suas palavras.
Aos meus amigos historiadores, principalmente, Dulcinéia, Kátia, Stela, Laís, Marce-
la, Raphaela, Silbene, Luís César, Silvano e Nathália, por tornarem a trajetória do mestrado mais
alegre e aprazível.
Aos professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação em História
da UFMT. Muito obrigada.
Um agradecimento especial as professoras Elisabeth Madureira e Thereza Martha por
serem exemplo de atuação dedicada aos temas ligados a nossa terra.
Registro aqui minha gratidão as professoras Cristiane Thais do Amaral Cerzósimo
Gomes e Cláudia Regina Bovo pelas contribuições enriquecedoras ao trabalho durante o exame
de qualificação. Também agradeço o aceite das professoras Raquel Alvarenga Sena Venera e
Alexandra Lima da Silva em fazer parte da banca de defesa.
Ao meu amigo Cláudio Quoos Conte (in memoriam), a quem não tive tempo de mos-
trar este trabalho, meus agradecimentos por dividir comigo seus conhecimentos de forma a trans-
formar minha vida. Saudades... com desejo de justiça.

ix
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

SUMÁRIO

Agradecimentos.

Lista de Imagens e Mapas, p. 01

Introdução –
CUIABÁ-PATRIMÔNIO, p. 02

Primeiro Capítulo –
CATEDRAL DO BOM JESUS DE CUIABÁ:
O MONUMENTO-MÁRTIR PARA UMA CULTURA DE PRESERVAÇÃO DO PATRI-
MÔNIO EDIFICADO NA CAPITAL DE MATO GROSSO, p. 21

Segundo Capítulo –
A INVENÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE CUIABÁ:
PROCESSO DE TOMBAMENTO, ESQUECIMENTOS E LITÍGIOS, p. 58

Terceiro Capítulo –
UMA CIDADE HISTÓRICA PARA O FUTURO:
OS LUGARES DE MEMÓRIA DE CUIABÁ, A GESTÃO E A EDUCAÇÃO PATRIMO-
NIAL, p. 90

Considerações Finais –
PATRIMÔNIO PARA QUEM?, p. 113

Fontes, p. 117

Referências, p. 118

x
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

LISTA DE IMAGENS E MAPAS

Figura 1 - Skyline do centro de Cuiabá, vista do morro do Seminário (MT). 1968. Fonte: IBGE
22
Figura 2 - Perímetro da área tombada e entorno de tombamento da cidade de Cuiabá. Fonte: IPHAN-MT
..................................................................................................................................................... 23
Figura 3 - Construção do Palácio novo Alencastro. Década de 1960. Fonte: MISC. ................. 25
Figura 4 - Praça Alencastro em 1968. Fonte: IBGE.................................................................... 27
Figura 5 - Antiga Catedral do Bom Jesus de Cuiabá, 1968. Durante a demolição. Fonte: IBGE30
Figura 6 - Demolição da Igreja Matriz de Cuiabá. 1968. Fonte: APMT..................................... 31
Figura 7 - Avenida Getúlio Vargas/Nova Igreja Matriz. Década de 1980. Fonte: MISC ........... 32
Figura 8 - Catedral Bom Jesus de Cuiabá. Fonte: MISC. ........................................................... 36
Figura 9 - Página inicial do Processo de Tombamento n. 553-T-57-A. Fonte: IPHAN-MT .... 388
Figura 10 - Notificação de tombamento contida Processo de Tombamento n. 553-T-57-A. Fonte: IPHAN-
MT ............................................................................................................................................... 40
Figura 11 - Esboço doa grupamento inicial da Vila Bom Jesus de Cuiabá. Processo de tombamento n.
1180-T-85. Fonte: IPHAN-MT ................................................................................................... 64
Figura 12 - Detalhamento da consolidação do aglomerado urbano. Processo de Tombamento n. 1180-T-
85. Fonte: IPHAN ....................................................................................................................... 64
Figura 13 - Plano da Villa do Cuyabà na Cap. ta do Matto Groço. Original manuscrito pertecente à Casa
Ìnsua, Castendo, Portugal. 1777. ............................................................................................... 688
Figura 14 - Planta do Cuyabá. Original do Arquivo Histórico do Exercito, Rio de Janeiro. ca. 1770-1780.
................................................................................................................................................... 699
Figura 15 - Plano do Cuyabá. Original do Arquivo Histórico do Itamarati, Rio de Janeiro. 1770-1775
................................................................................................................................................... 699
Figura 16 - Casarão Colonial situado à rua Pedro Celestino, no Centro Histórico de Cuiabá. Processo de
tombamento de Cuiabá n. 1880-T-85. Fonte: IPHAN ................................................................ 71

1
INTRODUÇÃO

CUIABÁ-PATRIMÔNIO

A memória é redundante:
repete os símbolos para que a cidade comece a existir.
Ítalo Calvino

♠ O IPHAN: temporalidades e lugares

A presente dissertação estuda as políticas patrimoniais realizadas pelo Instituto de


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Estado de Mato Grosso, com ênfase na
cidade de Cuiabá. O recorte temporal se dá a partir do início da década de 1960 até o final da
primeira década do século XXI, tendo como marco inicial a formação de uma consciência
preservacionista local com as primeiras discussões acerca do tombamento do Centro Histórico da
cidade de Cuiabá e findando com a instalação da Superintendência do IPHAN em Mato Grosso,
em 2009, e as ações de preservação lançadas através do Plano de Aceleração do Crescimento,
voltado exclusivamente para obras em cidades históricas – “PAC Cidades Históricas”. O enfoque
do trabalho se dará sobre as ações de preservação do patrimônio histórico local, realizadas pela
esfera federal, sob a perspectiva da atuação do IPHAN.
O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), instituição que
mais tarde se tornaria Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), nasceu no
alvorecer do Estado Novo – em 19371, tendo por finalidade o compromisso com a construção da
identidade nacional e a afirmação do Brasil como uma nação moderna e detentora de um passado

1
O Serviço do Patrimônio Histórico nasce em 1937 a pedido do então ministro Gustavo Capanema, em 1946 passa a
se chamar Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, DPHAN. Em 1970 o DPHAN passa a se
chamar Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN. Em 1979 o IPHAN se divide em SPHAN
(órgão normativo) e Instituto Pró-Memória (órgão executivo), o FNpM. Em 1990 é extinto o SPHAN e o INpM,
sendo que ao mesmo tempo é criado o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC. Em 1994 o IBPC passa a
se denominar Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.
2
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

portador de elementos marcantes de arte e cultura universal (valorização da herança colonial), ou


seja, registros das raízes da brasilidade.
A tarefa de criação do organismo federal de proteção ao patrimônio, durante o
governo Getúlio Vargas, foi confiada a intelectuais e artistas brasileiros vinculados ao movimento
modernista, como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Costa e Rodrigo
Melo Franco de Andrade. O Decreto-lei n. 25, de novembro de 1937, que instituiu o SPHAN, foi
resultado do anteprojeto de Mário de Andrade, encomendado pelo então ministro da Educação e
Saúde Gustavo Capanema.2 De acordo com Glaci Teresinha Braga da Silva,

No cenário dos trinta foi fundamental para a construção do conceito de


patrimônio histórico e artístico nacional a participação dos intelectuais
modernistas. A contribuição desses intelectuais com o governo forneceu ao
Estado Novo a base teórica para legitimação das ações voltadas à construção da
identidade nacional e ao fortalecimento do nacionalismo. Os modernistas
aliaram-se ao regime autoritário e nacionalista do Estado Novo, preocupados em
definir ou mesmo descobrir a nação brasileira e consolidar sua posição social e,
nesse sentido, aproximaram-se dos interesses do Estado e contribuíram para sua
consolidação, embora constantemente defendessem o caráter científico de suas
ações.3

Cabe resaltar que o contexto de criação do SPHAN teve origem na Semana de Arte
Moderna de 1922 sob conflitos intelectuais acerca da forma de representação do Patrimônio
Cultural Brasileiro. Mario de Andrade ao encaminhar sugestões ao anteprojeto para a criação do
SPHAN pontua claramente itens que se relacionam com Obra de Arte Patrimonial arqueológica;
Arte ameríndia; Arte popular, especificando de maneira detalhada as referidas artes
Arqueológicas e ameríndias e descrevendo atenciosamente Arte popular.4 Predominou a visão de
Rodrigo Melo Franco, que evidenciou o patrimônio material edificado em detrimento da cultura
popular.
Entre 1937 e 1988, a instituição mudou diversas vezes de nome e sigla, mas manteve

2
MARTINS, Ana Luiza. Uma construção permanente, in: PINKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tânia Regina de
(orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 284-286. Cf. também RUBINO, Silvana. As fa-
chadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 1995.
3
SILVA, Glaci Teresinha Braga da. A materialização da nação através do patrimônio: o papel do SPHAN no regi-
me estadonovista. Dissertação de Mestrado em História. Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, 2010, p. 58.
4
ANDRADE, Mário de. Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional. Revista
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, n. 30, 2002, p. 271.
3
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

em linhas gerais seu campo de atuação como responsável pela proteção do patrimônio histórico
nacional. Em síntese, preservou-se a política de tombamento e conservação, pautada na
concepção de patrimônio artístico nacional definida por Mário de Andrade e traduzida de forma
reducionista no artigo 1º do Decreto-lei n. 25:

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis


e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer
por vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.5

A Constituição de 1988, forjada no contexto democrático, trouxe sobre a questão uma


nova redação, ampliando a noção de patrimônio histórico e artístico para patrimônio cultural,
conforme seu artigo 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material
e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.6
Essa mudança seria resultado das inovações das abordagens, temáticas e objetos no
campo da história, antropologia e arquitetura, das lutas de minorias em busca de reconhecimento
político e social, de questionamento das narrativas oficiais de cunho elitista e excludente e de
imperativos nacionais que traziam para a agenda de discussão questões relacionadas ao meio
ambiente e às disputas identitárias que emergiam no mundo contemporâneo. Segundo Néstor
Canclini, o patrimônio não inclui apenas herança de cada povo,

as expressões ‘mortas’ de sua cultura – sítios arqueológicos, arquitetura colonial,


antigos objetos em desuso –, mas também os bens culturais, visíveis e invisíveis:
novos artefatos, línguas, conhecimentos, documentação e comunicação do que
se considera apropriado através das indústrias culturais.7

Com as alterações propostas pela Constituição e as convenções internacionais – as


chamadas Cartas Patrimoniais, o IPHAN passou a assumir novas atribuições, desafios na sua
gestão e funcionamento e nas suas ações, lidando com uma noção de patrimônio muito mais
ampla do que a definida pelos seus fundadores.

5
Decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937.
6
Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 216.
7
CANCLINI, Néstor García. Patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 23, 1994, p. 95-96.
4
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Segundo Ana Luiza Martins, nesse período de cerca de meio século entre a fundação
do SPHAN e a promulgação da Constituição de 1988 – sem perder de dimensão as mudanças,
resistências e lutas na política de preservação no Brasil – percebeu-se a formação de uma nova
cultura e concepção sobre os agentes envolvidos no processo de tombamento e conservação do
patrimônio:

O “historiógrafo do patrimônio” do passado, responsável tão só pela coleta e


somatória de informações da materialidade do bem – data de construção,
genealogia de seus moradores, feitos de relevo ocorridos em seu interior –, na
verdade um lacônico cronista do patrimônio, passava a exercer outros papéis,
decisivos para o entendimento e seleção de marcos simbólicos e vetores de
significações, exercitando trato metodológico diverso de temas, objetos e fontes.
Debruçava-se agora sobre outra temporalidade e estabelecia nexos da paisagem
cultural construída por camadas de história e memória, inferindo seu significado
no processo histórico mais amplo. Passava, ainda que discretamente, a atuar nas
políticas urbanas do presente, participando da elaboração de planos diretores
municipais e da análise dos impactos ambientais, necessários no quadro dos
grandes projetos de interferência em áreas de interesse ecológico e/ou histórico.8

Procurando compreender este processo de transformação das políticas públicas de


preservação do patrimônio cultural e de criação de uma nova concepção do fazer dos agentes
envolvidos no processo de tombamento e conservação vivenciado pelo país nesta segunda metade
do século passado, num contexto marcado pela obsessão contemporânea pelo passado traduzido
em patrimônio9, é que se insere a pesquisa sobre a atuação do IPHAN no atendimento de
demandas de defesa da memória e fomento de políticas de preservação do patrimônio histórico
em Mato Grosso, com destaque para o estudo de caso de Cuiabá.
Embora presente no Estado por intermédio de ações de tombamento, de fiscalização e
conservação a partir dos anos 195010, a Superintendência do IPHAN Mato Grosso só seria
instalada de fato em 2009. Até essa data Mato Grosso era vinculado à 14ª Coordenação Regional,
hoje Superintendência Regional do IPHAN em Goiás – que surgiu em 1960 com o núcleo do
8
MARTINS, Ana Luiza. Uma construção permanente, in: PINKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tânia Regina de
(orgs.). O historiador e suas fontes – op. cit., p. 288-289.
9
Cf. PEIXOTO, Paulo. O patrimônio mundial como fundamento de uma comunidade humana e como recurso das
indústrias culturais urbanas. Oficinas do CES, 155. Coimbra, CES/UC, 2000; CANCLINI, Néstor García. Patrimônio
cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, p. 95-115;
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed. UNESP; Estação Liberdade, 2001.
10
Para saber sobre a atuação do IPHAN em Mato Grosso, cf. DINIZ, Waldson Luciano Corrêa. IPHAN: A política
de tombamento no Extremo Oeste brasileiro, in: Patrimônio Histórico de Corumbá: imagens e poder (1937-2003).
Dissertação de Mestrado em História. Dourados, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2004, p. 92-125.
5
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

antigo SPHAN em Brasília. De acordo com informações do sítio do órgão:

Embora não-oficial, representou o órgão no Centro-Oeste até 1977, quando foi


oficializada como 7ª Diretoria Regional e posteriormente (1979) como 8ª
Diretoria Regional. Em 1990 transformou-se na 14ª Coordenação Regional, até
2009 foi denominada 14ª Superintendência Regional.11

Esta emancipação do IPHAN Mato Grosso permite que os recursos a serem aplicados
no Estado sejam remetidos diretamente para Mato Grosso, sem ter que antes passar pelo crivo do
Estado de Goiás, fazendo valer a discricionariedade da Superintendência para alocação desses
recursos.12
Dentre as diversas ações desempenhadas pelo IPHAN no Estado de Mato Grosso,
entre 1960 e 2010, dedicaremos especial atenção ao processo de tombamento e às políticas de
preservação do Centro Histórico de Cuiabá (1987), bem como do processo de tombamento das
igrejas setecentistas da cidade, Igreja do Rosário e Capela de São Benedito, bem como da antiga
Catedral Bom Jesus de Cuiabá, demolida em 1968.
Antes de apresentar a estrutura, as fontes e marcos teóricos do presente estudo, faz-se
necessário apresentar um breve estado da arte do tema no contexto nacional e de Mato Grosso.

♠ O patrimônio histórico como objeto de estudo: entre o nacional e o regional

Em consulta ao banco de teses e dissertações do Portal do Domínio Público/CAPES,


do IBICT/MCT e das Bibliotecas Digitais de instituições de ensino superior como a Universidade
de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, Universidade de Brasília, dentre outras,
encontramos trabalhos abordando a temática do patrimônio histórico sob diversas perspectivas
teóricas, abordagens, problemáticas e recortes. De acordo com Izabela Tamaso, as pesquisas, em
sua maioria, datam dos anos 1990 para cá, coincidindo com o contexto de intensificação dos

11
Superintendência Regional do IPHAN em Goiás – Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional. Home
Page:
http://portal.IPHAN.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=12748&sigla=Institucional&retorno=detalheInstitu
cional, acesso em 18 de fevereiro de 2014.
12
De acordo com o Decreto n. 6.844, de sete de maio 2009, “às Superintendências Estaduais compete a coordenação,
o planejamento, a operacionalização e a execução das ações do IPHAN, em âmbito estadual, bem como a supervisão
técnica e administrativa dos Escritórios Técnicos e de outros mecanismos de gestão localizados nas áreas de sua
jurisdição”.
6
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

processos de patrimonialização em todo o mundo e a corrida ao título de patrimônio mundial


junto à UNESCO, fato a que o Brasil não ficou alheio:

Os investimentos nas ações de preservação se devem, em grande medida, à


necessidade de se reagir localmente às transformações das estruturas da
economia mundial, caracterizada tanto pela crise das sociedades industriais
quanto pelo crescente consumo e pela expansão dos lugares de lazer. É em tal
contexto que as cidades têm procurado alternativas às economias industriais ou
agrícolas.13

Embora importantes na revelação de situações de conflitos e disputas em torno da


construção da memória e da análise das políticas de patrimônio no Brasil, os estudos produzidos
no âmbito dos programas de pós-graduação e das instituições de fomento à pesquisa – na leitura
de Izabela Tamaso – “são insuficientes se comparados à complexidade dos enfrentamentos
cotidianos nas localidades portadoras de patrimônio tombado, seja em nível estadual, nacional ou
mundial”.14
Em linhas gerais, Izabela Tamaso identificou três eixos temáticos para os estudos
sobre o patrimônio histórico-cultural no Brasil produzidos até o final dos anos 1990 e início do
novo século: 1) análise de fatores estéticos; 2) problematização do patrimônio sob a ótica dos
discursos e políticas públicas; 3) abordagens dos conflitos acerca da preservação dos
patrimônios.15
Dentre os trabalhos que tomaram o IPHAN como objeto de estudo, podemos citar as
pesquisas desenvolvidas por Silvana Rubino, José Reginaldo dos Santos Gonçalves, Lauro
Cavalcanti, Maria Cecília Londres Fonseca e Glaci Teresinha Braga da Silva.16

13
TAMASO, Izabela. Em nome do patrimônio: representações e apropriações da cultura na cidade de Goiás. Tese de
Doutorado em Antropologia Social. Brasília, Universidade de Brasília, 2007, p. 1. Cf. também MONNET, Jérôme. O
álibi do patrimônio: crise da cidade, gestão urbana e nostalgia do passado. Revista Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Rio de Janeiro, n. 24, 1996, p. 220-228; PEIXOTO, Paulo. O patrimônio mundial como fundamento de
uma comunidade humana e como recurso das indústrias culturais urbanas. Oficinas do CES, 155 – op. cit.
14
TAMASO, Izabela. Em nome do patrimônio: representações e apropriações da cultura na cidade de Goiás – op.
cit., p. 6.
15
Idem, ibidem.
16
RUBINO, Silvana. As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, 1937-1986 – op. cit.; GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os
discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; IPHAN, 1996; CAVALCANTI, Lauro. Mo-
dernistas na repartição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; IPHAN, 2000; FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio
em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009; SILVA,
Glaci Teresinha Braga da. A materialização da nação através do patrimônio: o papel do SPHAN no regime estado-
novista – op. cit.
7
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Na dissertação de mestrado em antropologia As fachadas da história: os


antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
1937-1986, Silvana Rubino – tomando como fonte de pesquisa a documentação interna do órgão
– observou que a história do SPHAN tem sido abordada a partir do anteprojeto elaborado por
Mário de Andrade como seu mito fundador, seja pela memória elaborada pelos seus funcionários,
seja pela historiografia sobre o assunto. Com base neste ponto de partida (o legado de Mário de
Andrade), a autora delineou quatro fases do SPHAN: 1) a encomenda do anteprojeto feita por
Gustavo Capanema a Mário de Andrade; 2) o trabalho de Mário de Andrade que resultou em um
texto modelo, mas que recebeu alterações para se transformar em decreto-lei; 3) a criação do
SPHAN e; 4) a “fase heroica” do órgão.
No livro A retórica da perda: os discursos do patrimônio no Brasil, José Reginaldo
dos Santos analisou as diversas formas que o assunto patrimônio tomou forma no Brasil, com
ênfase nos escritos de dois historiadores do SPHAN: Rodrigo de Melo Franco de Andrade e
Aloísio Magalhães. Nesta obra, o autor realizou uma leitura crítica das estruturas narrativas que
conceberam os patrimônios nacionais.
Segundo José Reginaldo dos Santos, por intermédio da ideologia da perda, os
historiadores inventaram patrimônios nacionais, num processo que também pode ser concebido
como contraditório, uma vez que a perda ocorria através dos seus discursos – produtores de
homogeneização das culturas e do passado. Para ele, os historiadores do SPHAN, ao conceberem
a retórica da perda, não estavam apenas fazendo o registro de um fato histórico, “mas
discursivamente constituindo esse fato com o propósito de implementar um determinado projeto
de construção nacional” – uma ideia de brasilidade.17
Em Modernistas na repartição, Lauro Cavalcanti organizou textos sobre a história do
SPHAN no período da gestão do ministro Gustavo Capanema feitos pelos mais renomados
expoentes do movimento modernista, sendo que a maioria absoluta desses autores que
preencheram as páginas deste livro, em algum momento, compôs o corpo do próprio órgão.
Já Maria Cecília Londres Fonseca, no livro O patrimônio em processo: trajetória da
política federal de preservação no Brasil, por meio da análise dos processos de tombamento
realizados entre 1970 e 1990, evidenciou as mudanças na política de proteção ao patrimônio, a

17
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil – op.
cit., p. 111.
8
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

sua conceituação e busca de novos instrumentos de proteção sociopolítica que se instauraram no


Brasil a partir da abertura política e da democratização nos anos 1980.
Ao analisar a democratização dos bens patrimoniais e artísticos e os aspectos sociais,
políticos e simbólicos que a envolveram, Maria Cecília Fonseca, questionando as estratégias de
conservação adotadas pelo SPHAN, atual IPHAN, nos anos 1930, afirmou que “dificilmente o
universo do patrimônio se tornará realmente representativo da diversidade cultural brasileira en-
quanto persistir (...) uma forma fechada e altamente centralizadora na tomada de decisões”.18
Na dissertação de mestrado em história A materialização da nação através do patri-
mônio: o papel do SPHAN no regime estadonovista, Glaci Teresinha Braga da Silva estudou a
relação do regime autoritário do Estado Novo com a criação do SPHAN. Ao longo da pesquisa, a
autora demonstrou o quanto o Estado e o SPHAN atuavam a partir dos mesmos interesses e de
que forma essa relação acontecia.
Além disso, realizou uma comparação das práticas do órgão no contexto de 1937 –
regime autoritário – e no período atual – sob uma democracia, mostrando a permanência de de-
terminadas concepções de gestão e funcionamento, memória e patrimônio. Quanto à compreen-
são do patrimônio pelo IPHAN, a autora teceu as seguintes considerações:

Nesse sentido, podemos dizer que, mesmo passadas sete décadas de sua
criação, o IPHAN ainda mantém a superioridade do passado sobre o pre-
sente nas políticas públicas relacionadas a tombamento, restauração e va-
lorização do patrimônio histórico nacional, tentando com isso “reconstitu-
ir esse fio partido da tradição [...] através de monumentos por meio dos
quais se pode estabelecer uma relação com o passado”. Ainda hoje o pa-
trimônio é utilizado como elemento pacificador, pois a conservação pa-
trimonial fornece a certeza de uma ordem e de uma organização do senti-
do do mundo e mantém a sociedade distante de conflitos relacionados ao
seu cotidiano.19

Para além das questões do patrimônio na esfera do IPHAN, identificamos estudos


com preocupações com a temática no âmbito dos estados e locais, com ênfase para a análise das
cidades históricas ou bens edificados tombados. Dentre esses trabalhos podemos destacar os que

18
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil – op. cit., p. 256.
19
SILVA, Glaci Teresinha Braga da. A materialização da nação através do patrimônio: o papel do SPHAN no re-
gime estadonovista. Op. cit., p. 14-15.
9
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

abordaram o patrimônio histórico nos Estados de São Paulo, Paraná, Minas Gerais e Goiás.20
Em Imagens do passado: a instituição do patrimônio em São Paulo – 1969-1987,
Marly Rodrigues abordou as relações entre história, patrimônio e memória nos dezoito primeiros
anos de atuação do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e
Turístico (CONDEPHAAT), órgão de governo cujo objetivo é instituir e preservar o patrimônio
no Estado de São Paulo. Sua pesquisa amparou-se em ampla pesquisa da documentação da
instituição, como atas de reunião do Conselho, processos de estudo de tombamento, coleções de
leis e decretos, relatórios de gestão, correspondências, entrevistas e imprensa.21
Na esteira do trabalho de Marly Rodrigues, Teresa Jussara Luporini analisou a
política cultural formulada e adotada pelo governo do Estado do Paraná, na gestão 1991-1994. A
educadora recortou a política setorial da área da cultura optando pelo exame das ações
desenvolvidas, no âmbito da preservação, que apontaram para a composição de um inventário de
bens culturais destinado a manter e consolidar a identidade cultural paranaense e, neste sentido,
criando "lugares da memória", conforme definiu Pierre Nora.22
No caso de Minas Gerais, os estudos têm dado destaque para a cidade histórica de
Ouro Preto. Caion Meneguello Natal, por exemplo, estudou o processo histórico de
patrimonialização dessa cidade, ocorrido entre a última década do século XIX e o momento de
seu tombamento na década de 1930.
Neste sentido, o autor procurou compreender a maneira como a antiga Vila Rica –

20
O universo de obras no âmbito regional/local é muito vasto, por isso elegemos os seguintes trabalhos como uma
amostragem: RODRIGUES, Marly. Imagens do passado: a instituição do patrimônio em São Paulo, 1969-1987. São
Paulo: Ed. UNESP, 2000; LUPORINI, Teresa Jussara. Lugares de memória no Estado do Paraná: demandas e polí-
ticas pela preservação do patrimônio cultural. Dissertação de Mestrado em Educação. Campinas: Universidade Esta-
dual de Campinas, 1997; NATAL, Caion Meneguello. Ouro Preto: a construção de uma cidade histórica, 1891-1933.
Dissertação de Mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2007; TAMASO, Izabela. Em
nome do patrimônio: representações e apropriações da cultura na cidade de Goiás – op. cit.
21
RODRIGUES, Marly. Imagens do passado: a instituição do patrimônio em São Paulo, 1969-1987 – op. cit. Cf.
também ARANTES NETO, Antonio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas;
São Paulo: Ed. UNICAMP; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000; FRÚGOLI JUNIOR, Heitor. Centrali-
dade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo: EDUSP, 2000; JOSÉ, Beatriz Kara.
A instrumentalização da cultura em intervenções na área central de São Paulo (1975-2000). Dissertação de Mestra-
do em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2004; GONÇALVES, Cristiane Souza.
Restauração arquitetônica: a experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-1975. São Paulo: Annablume, 2005; ZA-
NIRATO, Silvia Helena. São Paulo: exercícios de esquecimento do passado. Estudos Avançados. São Paulo, v. 25, n.
71, 2011, p. 189-204.
22
LUPORINI, Teresa Jussara. Lugares de memória no Estado do Paraná: demandas e políticas pela preservação do
patrimônio cultural – op. cit. Cf. também KERSTEN, Márcia Scholz de Andrade. Os rituais do tombamento e a
escrita da História: bens tombados no Paraná entre 1938-1990. Curitiba: Ed. UFPR; Imprensa Oficial do Paraná,
2000.
10
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

cenário do episódio da Inconfidência Mineira – adquiriu seu status de histórica e quais foram os
fatores políticos e valores socioculturais em jogo na construção e definição de sua imagem de
monumento histórico e artístico nacional. Segundo Caion Natal, no início do século passado,
após perder sua condição de capital do Estado de Minas Gerais, Ouro Preto precisou se afirmar
no imaginário social como cidade histórica – em busca de uma nova identidade, tornando-se uma
referência importante à constituição da identidade e tradição brasileira.23
Na tese de doutorado em antropologia Em nome do patrimônio: representações e
apropriações da cultura na cidade de Goiás, Izabela Tamaso – a partir de pesquisa com fontes
documentais e da etnografia – tomou como tema de estudo o processo de patrimonialização da
cidade de Goiás, ao longo da segunda metade do século XX. Sua pesquisa adotou como ponto de
partida os primeiros tombamentos realizados pelo SPHAN na década de 1950 e findou-se no
momento de outorga do título de patrimônio mundial em 2001, pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Por intermédio de uma antropologia do sistema patrimonial da cidade de Goiás – que
assim como Ouro Preto perdeu sua condição de capital do Estado para Goiânia – a autora
abordou, por exemplo, “o debate cultural que tem efeito por meio das estratégias e táticas
acionadas pelos agentes do patrimônio e pelos moradores da cidade, no que tange aos
patrimônios privados, públicos e religiosos” e “às fronteiras e às exclusões operadas pelo
processo de patrimonialização, o qual colaborou sobremaneira para cisão da área urbana em
Centro Histórico e periferia”.24
A temática do patrimônio histórico em Mato Grosso constitui-se ainda num campo
vasto de possibilidades de estudo, existindo poucas referências que têm basicamente como foco
23
NATAL, Caion Meneguello. Ouro Preto: a construção de uma cidade histórica, 1891-1933 – op. cit. Cf. também
MENICONI, Evelyn Maria de Almeida. Monumento para quem? – a preservação do patrimônio nacional e o orde-
namento do espaço urbano de Ouro Preto (1937-1967). Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Belo Horizon-
te, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2004; OLIVEIRA, Melissa R. da Silva. Gestão patrimonial em
Ouro Preto: alcances e limites das políticas públicas preservacionistas. Dissertação de Mestrado em Geografia.
Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2005; SILVA, Glaci Teresinha Braga da. A materialização da nação
através do patrimônio: o papel do SPHAN no regime estadonovista – op. cit., capítulo III.
24
TAMASO, Izabela. Em nome do patrimônio: representações e apropriações da cultura na cidade de Goiás – op.
cit., p. IX. Cf. também GOMIDE, Cristina Helou. Centralismo político e tradição histórica: cidade de Goiás (1930-
1970). Dissertação de Mestrado em História. Goiânia, Universidade Federal de Goiás, 1999; CARNEIRO, Keley
Cristina. Cartografia de Goiás: patrimônio, festa e memória. Dissertação de Mestrado em História. Goiânia: Univer-
sidade Federal de Goiás, 2003; DELGADO, Andréa Ferreira. A invenção de Cora Coralina nas batalhas da memó-
ria. Tese de doutorado em História. Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2005; FRAGA, Ademar. Goiás,
patrimônio da humanidade: aproveitamento socialmente ou exclusão social? Dissertação de Mestrado em Sociologi-
a. Goiânia, Universidade Federal de Goiás, 2005.
11
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

de análise a cidade de Cuiabá.25


A consciência preservacionista e, consequentemente, os primeiros trabalhos sobre a
problemática do patrimônio em Mato Grosso – especialmente em Cuiabá, segundo Claudio
Quoos Conte e Marcus Vinicius De Lamonica Freire, foi resultado do intenso processo de
modernização da cidade a partir do final dos anos 1950, com a descaracterização e as demolições
de antigos prédios no que seria o Centro Histórico:

são demolidos o Palácio Alencastro, a Delegacia Fiscal e casario vizinho, dando


lugar ao novo Palácio, atual sede da Prefeitura de Cuiabá. Em 1968, é demolida
a antiga Catedral que, apensar de todas as reformas, ainda era a mesma igreja de
1740. Essa demolição constitui até hoje um trauma na sociedade cuiabana e,
sempre que se discute o assunto, acirradas polêmicas se levantam.26

Para os autores, o crescimento populacional vivenciado a partir das décadas de 1960 e


1970, resultado da política de ocupação da Amazônia, acompanhado da pressão imobiliária no
centro e da necessidade de reformas urbanas, criaria um cenário de degradação dos serviços
públicos e da qualidade de vida no espaço urbano de Cuiabá.
Esse processo daria força aos discursos de modernização desenfreada que
procuravam adequar a todo custo a cidade a uma nova realidade, ou seja, o antigo, o passado, era
tido por obsoleto e atrasado e precisava ser posto abaixo para a construção de outra cidade. É
nesse contexto que, a partir dos anos 1980, começou “a se formar uma consciência
preservacionista local, pressionando pela manutenção do Centro Histórico”.27
A história e as tramas deste movimento preservacionista em Cuiabá foram objeto de
estudo da dissertação de mestrado em educação A Catedral e a Cidade: uma abordagem da
educação como prática social, de Ludmila Brandão. Neste trabalho, a autora analisou o processo
de formação e a atuação do movimento citadino em Cuiabá – a partir dos anos 1970. O marco
inicial deste movimento seria justamente o traumático fato da demolição da Catedral, em 1968.

25
FREIRE, Júlio De Lamonica. Cuiabá: nosso bem coletivo. Cuiabá: EdUFMT, 1992; BRANDÃO, Ludmila de
Lima. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como prática social. Cuiabá: EdUFMT, 1997; LACER-
DA, Leilla Borges de. Catedral do Senhor Bom Jesus de Cuiabá: um olhar sobre sua demolição. Cuiabá: KCM,
2005; CONTE, Claudio Quoos e FREIRE, Marcus Vinicius De Lamonica. Centro Histórico de Cuiabá: Patrimônio
do Brasil. Cuiabá: Entrelinhas, 2005; ARRUDA, Márcia Bomfim de. As engrenagens da cidade: centralidade e po-
der em Cuiabá na segunda metade do século XX. Cuiabá: EdUFMT; Carlini & Caniato, 2010.
26
CONTE, Claudio Quoos e FREIRE, Marcus Vinicius De Lamonica. Centro Histórico de Cuiabá: Patrimônio do
Brasil – op. cit., p. 25.
27
Idem, ibidem.
12
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Para Ludmila Brandão, a emergência deste movimento citadino na cidade de Cuiabá


de caráter preservacionista era uma

resposta aos impactos provocados pelo processo de modernização conflitual,


resultante do modo como aqui se tem processado o avanço da fronteira
capitalista contemporânea. Esse movimento ganhará consistência
paulatinamente e atingirá o clímax em 1990, quando o Centro Histórico de
Cuiabá, já tombado pela antiga SPHAN (Secretaria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional), é atingido por seguidas ações predatórias autorizadas pelo
Executivo municipal.28

Tomando como recorte 1968 e 1990, a autora desenvolveu três movimentos analíticos
de investigação do tema: 1) os impactos no âmbito da cultura do processo de modernização, a
natureza dos conflitos e as avarias no patrimônio cultural da cidade; 2) a emergência do
movimento citadino de vertente preservacionista como uma resposta aos impactos dessa
modernização da cidade; 3) a análise do processo de tombamento do Centro Histórico de Cuiabá,
“por compreendê-lo como ‘exemplar’, na medida em que permite a confrontação das mais
importantes questões que envolvem o processo de modernização conflitual e seus impactos sobre
a cultura”.29
Nesse sentido, o livro Cuiabá: nosso bem coletivo, de Julio de Lamonica Freire serve
de testemunho e fonte da atuação desse movimento citadino, abordado por Ludmila Brandão.
Essa coletânea de artigos publicados pelo arquiteto na imprensa local nos anos 1970 e 1980
evidencia as preocupações de representantes desse movimento em preservar o Centro Histórico e
a região do Porto. Seus textos perpassavam por questões de extrema relevância para o movimento
preservacionista que despontava, bem como apontava possibilidades de ação. O autor se
apresentava como ator do processo de preservação e não somente um mero analista de situação
em si.30
A dissertação de mestrado em história, transformada em livro, Catedral do Senhor
Bom Jesus de Cuiabá: um olhar sobre sua destruição, de Leilla Borges Lacerda, retomou a
temática da demolição da antiga Catedral por três perspectivas: 1) identificação do jogo de forças

28
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como prática social – op. cit.,
p. 29-30.
29
Idem, p. 31-32.
30
FREIRE, Júlio De Lamonica. Cuiabá: nosso bem coletivo – op. cit. Cf. também FREIRE, Julio de Lamonica. Por
uma poética popular da arquitetura – op. cit.
13
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

institucionais e não institucionais que resultou na sua destruição; 2) análise dos “porquês” da
edificação da Basílica no mesmo local ocupado pela velha Matriz desde o século XVIII; e, em
seguida; 3) compreensão das tramas da história da Catedral, acompanhando o papel
desempenhado por esta edificação religiosa na constituição dos ambientes urbanos que foram o
arraial, a vila e cidade de Cuiabá.
Em síntese, a autora enveredou-se pelas histórias da construção, afirmação e
destruição deste patrimônio religioso da cidade:

O refletir sobre a demolição da antiga catedral me fez retornar o momento de sua


construção no século XVIII, para investigar o que ela representou naquele
contexto histórico e o que simbolizou na construção do imaginário daquela
população. Bem mais, permitiu-se avaliar o que este monumento religioso
demarcou e, ainda, de que forma o poder eclesiástico diverge dos interesses
políticos e econômicos, ou, noutra vertente, a eles se associa. A catedral, como
documento que se fez monumento, foi lida diversamente, abordando, assim, um
matiz polissêmico muito rico.31

Em relação ao processo de tombamento do Centro Histórico de Cuiabá, identificamos


– além do livro de Ludmila Brandão – outras duas referências: o guia de autoria de Claudio
Quoos Conte e Marcus Vinicius De Lamonica Freire e o livro – resultado da dissertação de
mestrado em história – de Márcia Bomfim de Arruda.
No guia intitulado Centro Histórico de Cuiabá: Patrimônio do Brasil, os autores
elaboraram uma explanação geral e didática sobre o que vem a ser o tombamento, quais são os
seus objetivos, o que pode e deve ser tombado, especificando de quem é a competência, e de que
maneira devemos proceder para preservar. Nesta obra está relatado o processo de tombamento do
Centro Histórico de Cuiabá e é apresentada uma relação dos imóveis e áreas tombados, bem
como a instrução normativa do conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico da Cidade de
Cuiabá.
Em linhas gerais, esta publicação historicizou a atuação do IPHAN no processo de
tombamento do Centro Histórico, que ocorre em 1987 – tombamento provisório, data que marca

31
LACERDA, Leilla Borges de. Catedral do Senhor Bom Jesus de Cuiabá: um olhar sobre sua demolição – op. cit.,
p. 19.
14
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

o início de um maior índice de controle sobre o espaço urbano com políticas preservacionistas.32
Essa presença do poder público federal, por meio do IPHAN, a partir desse período se dará em
outros espaços do Estado como Vila Bela da Santíssima Trindade (1988) e Cáceres (2010). No
caso destas duas últimas cidades, os estudos ainda são muito poucos ou quase inexistentes.
No livro As engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda
metade do século XX, Márcia Bomfim de Arruda trouxe novamente o processo de tombamento
do Centro Histórico de Cuiabá para o centro de sua análise fazendo uma reflexão sobre o
processo de modernização capitalista da cidade entre as décadas de 1960 e 1990. Com base na
consulta de discursos e opiniões publicadas na imprensa, a autora procurou entender o fenômeno
da descentralização de Cuiabá, lançando um olhar especial sobre de que maneira o tombamento
exerceu um controle dos lugares da cidade e, por consequência, da população. Neste sentido, ela
aprofundou seus estudos sobre as implicações do discurso jurídico e do ordenamento urbano no
processo de tombamento.
Ao longo do livro, Márcia Bomfim de Arruda analisou o processo de descentralização
de Cuiabá a partir de três eixos temáticos: 1) “a questão da modernização de Cuiabá e as
mudanças que ocorreram na materialidade da cidade”; 2) “Processo de tombamento do Centro,
das motivações apresentadas pelos técnicos envolvidos, os argumentos para fazer do Centro um
patrimônio” e; 3) “as práticas de controle da população e dos mecanismos que foram criados para
disciplinar os indivíduos”.33
Após analisarmos esses estudos sobre o patrimônio em Mato Grosso, podemos
evidenciar algumas considerações necessárias: 1) como já foi observada, a presença de poucos
estudos sobre a temática no Estado34; 2) a concentração das abordagens na experiência de Cuiabá,
mais especificamente do tombamento do seu Centro Histórico – o que demanda ainda muitos
estudos; 3) a necessidade de pensar a política patrimonial a partir da realidade de outras

32
Segundo Márcia Bomfim de Arruda, “o processo administrativo que validou juridicamente o tombamento foi aber-
to em 1985 e concluído em 1993, quando houve o registro do Livro Tombo”. ARRUDA, Márcia Bomfim de. As
engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda metade do século XX – op. cit., p. 13.
33
Idem, p. 17-18.
34
Outro trabalho de extrema relevância que enfocou preservação do patrimônio cultural, desta vez sob a ótica dos
resultados obtidos através de políticas públicas, foi o de Waldson Luciano Corrêa Diniz. Na dissertação de Mestrado
em História Patrimônio Histórico de Corumbá: imagens e poder (1937-2003), o autor estudou as políticas públicas
implementadas na cidade, enfocando as ações do Monumenta – um programa estratégico do Ministério da Cultura
que atua na preservação patrimonial em consonância com o desenvolvimento econômico em cidades tombadas pelo
IPHAN. Cf. DINIZ, Waldson Luciano Corrêa. Patrimônio Histórico de Corumbá: imagens e poder (1937-2003) –
op. cit.
15
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

experiências em Mato Grosso, como os casos de Vila Bela da Santíssima Trindade e Cáceres 35; 4)
a importância de se estudar as articulações, negociações e conflitos existentes entre os agentes do
patrimônio (IPHAN, por exemplo), as autoridades públicas, os intelectuais e a população nos
debates sobre as políticas públicas de preservação no Estado e; 5) a comparação da realidade
local com experiências de tombamento e preservação do patrimônio em outros Estados/cidades
no país.
Neste sentido, a presente proposta de pesquisa apresenta-se, a partir de um diálogo
com esta bibliografia, como um aprofundamento da abordagem da temática do patrimônio
histórico em Mato Grosso, explorando aspectos relacionados às demandas e às políticas de
preservação na construção dos seus lugares de memórias.

♠ De volta a Cuiabá como objeto de estudo

A disposição em trabalhar este tema se justificou na necessidade de ampliar as


pesquisas sobre políticas de preservação do patrimônio histórico em Mato Grosso, tendo em vista
os desafios apresentados para as políticas públicas de valorização e conservação da memória no
Brasil nos últimos anos (como por exemplo, o “PAC Cidades Históricas”) e a necessidade da
produção de um histórico das ações de órgãos federais, estaduais e municipais de proteção ao
patrimônio histórico no Estado.
Embora careça de um estudo mais amplo sobre as políticas e ações de patrimônio no
contexto do Estado de Mato Grosso, optou-se por Cuiabá como objeto de estudo, tendo em vista
as singularidades e os litígios que envolvem o processo de tombamento do seu Centro Histórico e
os impactos e embates vivenciados no contexto das obras de mobilidade para a Copa Mundo
FIFA de 2014 e o “PAC Cidades Históricas”. Encontra-se como horizonte de expectativa para
futuros estudos a política de preservação do patrimônio pelo IPHAN no âmbito do Estado.
Para a realização desta pesquisa, fizemos uso da seguinte documentação interna do

35
A pesquisa sobre o patrimônio religioso de Mato Grosso, publicada recentemente pela historiadora e educadora
Simone Ribeiro Nolasco, por exemplo, lidando com as práticas de devoções no período colonial em Cuiabá, é singu-
lar para se pensar o patrimônio imaterial – uma temática ainda muito recente para a historiografia do patrimônio no
Brasil. Cf. NOLASCO, Simone Ribeiro. Patrimônio Cultural e Religioso. A Herança Portuguesa nas Devoções da
Cuiabá Colonial. Cuiabá: Entrelinhas; EdUFMT, 2010
16
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

órgão na regional de Mato Grosso e na Administração Central, em Brasília: atas de reunião,


processos de estudo de tombamento (Cuiabá), leis e decretos, relatórios de gestão,
correspondências, publicações oficiais, catálogos e depoimentos. Além disso, faremos consulta à
imprensa do período entre 1957 e 2013 para coleta de matérias/reportagens sobre os processos de
tombamento e as políticas de preservação e a atuação do IPHAN em Mato Grosso.
Ao estudar as políticas de patrimônio histórico para o Estado de Mato Grosso entre 1957 e
2013, tendo como referência a atuação do IPHAN em Cuiabá, lidamos com a cultura histórica
que tem respaldado as ações de tombamento e conservação de uma determinada memória e i-
dentidade regional e nacional.
No livro História e Memória, Jacques Le Goff afirmou que a noção de cultura histó-
rica referia-se a um complexo exercício de apreensão da temporalidade. Para o autor, através de
uma ação marcada por recordações e esquecimentos, tem se produzido um conjunto de represen-
tações compartilhadas, capazes de conferir diferentes adjetivações a períodos, sujeitos, fatos, o-
bras e autores, definindo as narrativas sobre o passado, o presente e o futuro.36
Neste sentido, ao elaborar nossa pesquisa precisamos nos atentar às diferentes inter-
pretações e disputas em jogo sobre o passado, o presente e o futuro, de maneira a identificar
quando, onde, quem e por meio de quais ferramentas se contribuiu para a legitimação de determi-
nadas leituras dos fenômenos históricos. Significa refletir sobre a forma como determinado pas-
sado, por intermédio de um bem material ou imaterial, é recuperado, tombado e valorizado, trans-
formando-se em patrimônio histórico ou cultural. Segundo Jacques Le Goff,

Sabemos agora que o passado depende parcialmente do presente. Toda


história é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido
no presente e responde, portanto, a seus interesses, o que não só é inevitá-
vel como legítimo. Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo
tempo passado e presente. Compete ao historiador fazer um estudo “obje-
tivo” do passado sob dupla forma. Comprometido na história, não atingirá
certamente a verdadeira “objetividade”, mas nenhuma outra história é
possível. O historiador fará ainda progressos na compreensão da história
esforçando-se para explicitar, no seu processo de análise, tal como um ob-
servador científico o faz, as modificações que eventualmente introduz em
seu objeto de observação.37

36
LE GOFF, Jacques. História. In: História e Memória. 5. ed. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003, p. 48.
37
Idem, p. 51.
17
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Ao fazermos este tipo de exercício de compreensão de como o passado é apropriado e


representado através das políticas públicas de patrimônio histórico desenvolvidas pelo IPHAN na
capital de Mato Grosso, não podemos limitar nossa tarefa em apenas descrever e justificar o que
deve ser lembrado e registrado como símbolo de uma identidade regional e nacional, mas deve-
mos entender os interesses, os saberes e as práticas que respaldaram a escolha ou não de uma
igreja, uma festa ou ritual, um obra de arte ou uma comida como um patrimônio, um bem que
merecerá registro, proteção e valorização. Precisaremos decifrar nas atas, relatórios, pareceres e
publicações oficiais as noções de patrimônio, cultura, memória, história e identidade que foram
utilizadas nos processos de tombamento ou nas ações de conservação e restauro.
Neste aspecto, as proposições de Roger Chartier nos ajudam a observar, por meio de
seu modelo de análise, como os agentes do patrimônio representaram o passado a partir dos bens
tombados de acordo com os seus interesses socioeconômicos, políticos e culturais. As políticas de
preservação do patrimônio, no caso deste projeto, dependeriam das representações utilizadas pe-
los indivíduos e grupos para produzir sentido ao seu mundo através de suas práticas e seus dis-
cursos.38
Para Roger Chartier, as representações seriam “matrizes de discursos e de práticas di-
ferenciadas que têm como objetivo a construção do mundo social e como tal a definição contradi-
tória das identidades – tanto a dos outros como a sua”.39 Abordar a produção dos “lugares de
memória” de Cuiabá por órgãos como o IPHAN nos ajuda a compreender como as representa-
ções sobre o passado da nação foram criadas pensando na formação de uma identidade.
Para estudarmos as políticas públicas implementadas na cidade de Cuiabá – transfor-
madas em patrimônio histórico nacional – entre 1957 e 2013, torna-se necessário o uso do con-
ceito de “lugares de memória”.
Para Pierre Nora, num mundo arrancado de sua memória pela amplitude e velocidade
das mudanças, mas ainda preocupado em se compreender historicamente, a produção de “lugares
de memória” pela história científica tem sido cada vez mais evidente:

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe memória


espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os aniversários,
organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres, estabelecer contratos,

38
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre representações e práticas. Lisboa: DIFEL, 1990, p. 13-28.
39
Idem, p. 18.
18
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

porque estas operações não são naturais (...). Se vivêssemos verdadeiramente as


lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se em compensação, a his-
tória não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petri-
ficá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os cons-
titui: momentos de história arrancados do movimento de história, mas que lhe
são devolvidos.40

A partir das afirmações de Pierre Nora, analisamos os sentidos das demandas e políti-
cas de preservação do patrimônio histórico em Cuiabá que têm primado por criar e conservar os
seus “lugares de memória” transformados em “bens oficialmente protegidos, tangíveis e intangí-
veis, que participam da construção do pertencimento, das identidades e da continuidade da expe-
riência social” regional e nacional.41
Feitas as devidas apresentações do tema, eis a estrutura dos capítulos:
O primeiro capítulo prima por entender o momento em que as primeiras discussões
acerca da preservação se fizeram presentes na cidade de Cuiabá, de forma a contextualizar esse
momento histórico na conjunção nacional de ampliação das fronteiras e fortalecimento da
identidade brasileira.
No segundo capítulo é possível observar, dentro da política de preservação no Estado
de Mato Grosso, as disputas travadas após o tombamento do Centro Histórico de Cuiabá, se
consideramos o tombamento a primeira grande intervenção do governo federal na proteção do
patrimônio. Neste capítulo também se podem observar as disputas entre os entes públicos e o
entrave que significou o pedido de impugnação impetrado por moradores da área tombada. Aqui
ainda se discutem os conceitos de estética vigentes no ideal desses moradores e comerciantes do
Centro Histórico de Cuiabá.
O terceiro e último capítulo pauta-se na segunda grande intervenção pública federal
na cidade de Cuiabá, o “PAC Cidades Históricas”, projeto que redefine as diretrizes e políticas de
preservação para os próximos três anos. A partir das análises travadas nesta terceira parte,
também podemos identificar os atores responsáveis pela preservação do patrimônio cultural de
forma a buscarmos definições acerca de demandas de preservação que transcendem o restauro,

40
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez. 1993,
p. 13.
41
ARANTES, Antonio Augusto Arantes. Patrimônio cultural: desafios e perspectivas, in: Patrimônio imaterial:
política e instrumentos de identificação, documentação e salvaguarda. Brasília: UNESCO; IPHAN; MinC, 2008, p.
1.
19
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

mas que se definem por intermédio de uma política de preservação pautada prioritariamente na
educação patrimonial.
Fruto de dois anos de trabalho, compartilhados com o dia a dia dos fazeres e desafios
dos compromissos profissionais dentro do IPHAN em Mato Grosso como servidora de carreira,
esta dissertação traz nas suas linhas e entrelinhas as angústias, expectativas e esperanças acerca
de uma paixão: a preservação e a visibilidade do patrimônio material e imaterial que constitui os
encantos dessa cidade.
É um estudo que não deixa de ser uma reflexão na prática e uma justa homenagem ao
colega Claudio Quoos Conte, ex-superintendente do IPHAN Mato Grosso e um apaixonado pelas
questões do patrimônio, que nos deixou de uma forma tão inesperada e desconcertante. A história
que aqui se conta e compartilha é também dele – uma forma de manter viva e latente a memória
das suas lutas e ideais... Boa leitura!

20
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

CAPÍTULO 1

CATEDRAL DO BOM JESUS DE CUIABÁ:


O MONUMENTO-MÁRTIR PARA UMA CULTURA DE PRESERVA-
ÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO NA CAPITAL DE MATO
GROSSO

Ainda vão me matar numa rua


Quando descobrirem que,
Principalmente,
Que faço parte dessa gente,
Que pensa que a rua
É a parte principal de uma cidade.
Paulo Leminski

1.1 A primeira grande perda: fato consumado

Para desenvolver um trabalho acerca da preservação do patrimônio na cidade de Cui-


abá é necessário antes de tudo que façamos uma análise da peculiaridade desta cidade encravada
no centro geodésico da América do Sul. Que saibamos que estamos falando da singeleza da ar-
quitetura setecentista e oitocentista com um traçado urbano que acompanha a geografia local,
possuidora de inclinação exata, capaz de fazer com que as precipitações pluviométricas corram
em direção à prainha de forma a não haver alagamentos na área da formação original.
É preciso que entendamos o quão peculiar são as técnicas construtivas aplicadas na
cidade de Cuiabá no século XVIII, de forma a dimensionarmos a quantidade de conhecimento
agregado que existe nessas edificações dispostas em conjunto, a variedade de estilos que podem
ser encontrados a partir de uma base colonial:

21
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Cuiabá é uma cidade do século XVIII, com um desenho barroco de ruas


tortuosas e estreitas, topografia movimentada, becos, largos e praças. O
espaço produzido reflete nas curvas da malha urbana a ondulação do rele-
vo, a sinuosidade do rio Coxipó e do Cuiabá, os labirintos dos corixos e
vazantes do Pantanal próximo. A luminosidade intensa e o calor escaldan-
te se infiltram no desenho da cidade, na sua paisagem de entorno, ajudan-
do a compor o equilíbrio telúrico do ambiente cuiabano42

Figura 1 - Skyline do centro de Cuiabá, vista do morro do Seminário (MT). 1968. Fonte: IBGE.

A Cuiabá descrita por Júlio De Lamonica evidencia a importância do traçado tortuoso


na configuração da cidade, reforçando que

42
FREIRE, Júlio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura. Cuiabá: EdUFMT, 1997, p. 18.
22
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

A mancha urbana se adensa entre o Largo da Mandioca (Pelourinho e Pa-


lácio dos Capitães-Generais) e os largos do Palácio Provincial e da Ma-
triz. A malha viária central ganha contornos claros com a definição das
ruas de Baixo, do Meio e de Cima (...). As ruas transversais começam a se
definir, tendo como ponto de amarração o córrego da Prainha, o largo da
Matriz e a igreja da Boa Morte. Os largos à frente e ao lado da Matriz re-
cebem contornos definitivos, com a construção de edifícios públicos do
complexo administrativo do Governo provincial.43

A mancha urbana a que se refere o autor constitui o que entendemos hoje por Centro
Histórico de Cuiabá, patrimônio do Brasil.

Figura 2 - Perímetro da área tombada e entorno de tombamento do Centro Histórico de Cuiabá.


Fonte: IPHAN-MT.

A compreensão do processo de preservação requer que pensemos sobre o momento


no qual fomos tocados da necessidade de preservação, para que saibamos em que momento a
arquitetura deixou de ser apenas arquitetura e passou a representar de fato um patrimônio

43
Idem, p. 27-54.
23
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

histórico. A partir do momento em que a identidade foi posta à prova e o sentimento de


pertencimento falou mais alto.
Para Françoise Choay, a ruptura representada pela era industrial como processo de
transformação – mas também degradação do meio ambiente contribuiu,

ao lado de outros fatores menos importantes, como o romantismo, para inverter a


hierarquia dos valores atribuídos aos monumentos históricos e privilegiar, pela
primeira vez, os valores da sensibilidade, principalmente estéticos. A revolução
industrial, como ruptura em relação aos modelos tradicionais de produção, abria
um fosso intransponível entre os dois períodos da criação humana. Quaisquer
que têm sido as datas, que variam de acordo com cada país, o corte da
industrialização continuou sendo, durante toda essa fase, uma linha
intransponível entre antes, em que se encontram o monumento histórico isolado,
e um depois, com o qual começa a modernidade. Em outras palavras, ela marca
a fronteira que limita, a jusante, o campo temporal do conceito de monumento
histórico. (...) como processo irremediável, a industrialização do mundo
contribuiu, por um lado, para generalizar e acelerar o estabelecimento de leis
visando à proteção do monumento histórico, e por outro, para fazer da
restauração uma disciplina integral, que acompanha os progressos da história da
arte.44

Dentro da temporalidade prevista por François Choay, Cuiabá passou a se preocupar


com a necessidade de preservação somente a partir da pressão exercida pelas
transformações/degradações no meio ambiente, no caso de nossa cidade, o meio ambiente urbano
estava sendo impactado pelas transformações ocorridas.
Porém, as mudanças ocorridas no cenário urbano de Cuiabá estavam embebidas no
ideal de renovação, modernidade, pois até o final da década de 1960 as discussões acerca da
necessidade de preservação do patrimônio edificado passavam longe dos debates realizados pela
intelectualidade mato-grossense, muito pelo contrário.
Segundo Leilla Borges, o grupo intelectual responsável pela efervescência cultural da
cidade havia se diplomado no Rio de Janeiro e São Paulo, onde vivenciou transformações dessas
capitais que passaram por um intenso processo de modernização.45 Para a autora,

O imaginário social é construído a partir das aspirações que comandaram o


destino da cidade. Nas produções literárias, nos discursos políticos das
44
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed. UNESP, 2006, p. 127.
45
LACERDA, Leilla. Borges de. Catedral Bom Jesus de Cuiabá, um olhar sobre sua demolição. Cuiabá: KCM Edi-
tora, 2005, p. 37.
24
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

autoridades locais, a cidade foi apaixonadamente defendida das acusações de


atraso e absolutismo que a assacavam. Daí em diante, civilizar seria a ordem do
dia: civilizar a capital tratava de modernizá-la com vistas à manutenção do
centro político-cultural.46

A derrubada da antiga Catedral do Bom Jesus de Cuiabá pode ser entendida como a
primeira grande cicatriz em nossa construção urbana do século XVIII, pois apesar da derrubada
do Palácio Alencastro ter acontecido em 1959, somente após 1968 com a demolição da igreja é
que se iniciam os grandes debates acerca da preservação. Tal evento aproxima-se das pondera-
ções feitas por Myrian dos Santos:

A memória cristaliza-se quando o objeto já não existe mais. É sempre


uma recriação deste objeto e, como tal, guarda continuidade e diferenças
em relação ao passado vivenciado a que se reporta.47

Figura 3- Construção do novo Palácio Alencastro. Década de 1960. Fonte MISC.

46
Idem, ibidem.
47
SANTOS. Myrian Sepúlveda dos Santos. Museu Imperial: a construção do Império pela República. In: ABREU,
Regina e CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e Patrimônio: Ensaios Contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003,
p. 129.
25
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Após a demolição da antiga Catedral deu-se início à construção de um debate


preservacionista. Para Ludmila Brandão, o processo de supressão deste patrimônio em especial se
deve ao fato de:

Em uma sociedade tradicional como Cuiabá, em 1968, a igreja desempenhava


um papel importante no balizamento dos rumos dessa sociedade (conselheira,
censora, etc.). O engajamento da igreja no novo discurso não poderia passar
despercebido. Se por um lado a destruição/construção da catedral representa o
“aval” e o engajamento de uma importante instituição ao “progresso” e de
parcela da população que apoiou tal iniciativa, fortalecendo essa ideologia e a
consciência da modernidade, por outro lado agudiza o conflito entre a tradição e
o moderno, uma vez que o forte impacto sobre o simbólico não se dá sem
reações, ou seja, instaura, ao menos radicaliza, também, a crítica ao progresso e
a consciência da ameaça à identidade cultural, ainda que restrita a alguns setores
da sociedade e expressa sob diferentes formas.48

O arquiteto Júlio de Lamonica Freire entende que o processo de modernização da ci-


dade de Cuiabá se deu em meio ao ano da demolição da Catedral:

O ano de 1968 insinuou-se como limite entre os ciclos de sedimentação


Administrativa e o Novo ciclo da Modernização, por ter sido o ano da
demolição da antiga Catedral do Bom Jesus de Cuiabá. A dinamitação da
velha Matriz ganhou força de signo, pelo conteúdo simbólico expresso
nas tensões entre o velho e o novo, o provinciano e o metropolitano, o
conservantismo e o progressista, o tradicional e o moderno que antagoni-
zavam a sociedade cuiabana.49

48
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como prática social. Cuiabá:
EdUFMT, 1997, p. 38.
49
FREIRE, Júlio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura – op. cit., p. 127.
26
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Figura 4 - Praça Alencastro em 1968. Fonte: IBGE.

Em sua análise, o autor segue dialogando com a historiadora e crítica de arte Aline
Figueiredo que afirma que a perda de alguns de nossos monumentos fez com a sociedade perdes-
se referências, o que, portanto, desestimulou a preservação.
De acordo com Ludmila Brandão,

a velha Matriz tornou-se referência estruturante de uma época, assim


como tornou-se a sua derrubada. As tensões entre o velho e o novo já es-
tavam estabelecidas em outros processos de transformação anteriores, en-
tretanto, nenhuma outra intervenção espacial teve a força deflagradora
dessas tensões como teve a demolição da catedral50.

Diante do trauma e das consequências geradas, pode-se entender a derrubada da Ca-


tedral como um símbolo da modernidade, mas também como um mártir na preservação, pois a
partir desta perda as discussões sobre a importância da preservação da memória por intermédio
da paisagem arquitetônica tiveram início.

50
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como prática social – op. cit.,
p. 92.
27
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Cinco anos após a derrubada da catedral, lamentava-se o ocorrido. Atri-


bui-se à ganância de enriquecimento fácil a onda de demolições e destrui-
ção da história e tradições cuiabanas. À catedral era atribuída uma impor-
tância para além da pompa e beleza que a distinguia. Era o ambiente a-
propriado ao encontro com Deus. Sua derrubada era sentida ainda em
1974 como um crime sem absolvição, pois que a nova, apesar de uma “i-
greja moderna e linda”, não possuía os atributos para-estéticos da igreja.51

Estava claro neste episódio que havia uma ligação emocional da cidade com a Cate-
dral demolida. Para José Lemes Galvão Junior,

Enquanto conjunto simbólico intelectual, o patrimônio cultural é ajustado


diligentemente com a concepção de nacionalidade, ou Estado nacional a-
tual, servindo aos propósitos estruturais e conjunturais da constituição das
nações ou países. Incorpora qualidades emotivas no processo de identifi-
cação e apropriação dos signos e símbolos, sempre evoluindo e agregando
novos valores aos bens que conformam o patrimônio cultural reconhecido
pelo Estado. É comum o desenvolvimento de símbolos locais que chegam
a ser fortemente emotivos, cristalizando-se como valores ideais-
intelectuais que o levam à qualidade de símbolo nacional, eventualmente
uma das maravilhas do mundo como o Cristo Redentor sobre o Corcova-
do. Muitos símbolos que se pretende levar à excepcionalidade nacional
podem carecer de valores reconhecíveis e emoções suficientes para sua
aceitação e apropriação, sendo obtidas por estratégias diversas de conven-
cimento com o bombardeamento de informações, ideias e valores por in-
termédio da mídia, escolas. São exemplos o plano piloto de Brasília e o
Estádio do maracanã e muitos sítios históricos perdidos no tempo e no es-
paço nacional e resgatados pela inteligência vigilante e conservadora.52

A quantidade de relatos sobre ressentimentos vistos em jornais da época, e que foram


abordados na obra da Leilla Borges, narra que minimamente, no âmbito da cidade de Cuiabá,
havia uma grande cicatriz criada por esta perda. A Catedral simbolizava o que a autora define
como símbolo local emotivo, que eleva a qualidade de símbolo, num entendimento de que a
grandeza deste bem só pode ser medida a partir de sua supressão.
Segundo Márcia Bomfim de Arruda, havia uma intencionalidade nas intervenções
que foram realizadas na paisagem urbana da cidade. A autora alega que

51
Idem, p. 91.
52
GALVÃO JUNIOR, José Lemes. Patrimônio Cultural Urbano: preservação e desenvolvimento. Dissertação de
Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Brasília, Universidade de Brasília, 2001, p. 11.
28
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

A construção dessa paisagem era marcada por uma seleção que estabele-
cia o que deveria entrar e sair dela. A igreja Barroca e o Palácio dos Go-
vernadores foram demolidos, o coreto e o gasômetro foram conservados.
Se a questão fosse a simples destruição do passado, como gostam de dizer
os preservacionistas, por que se pouparia o gasômetro e o coreto? O que
significava essas escolhas?53

Na sua leitura, estava claro que a demolição da Catedral e do Palácio dos Governado-
res tinha como objetivo a demonstração do poder local:

As construções demolidas traziam a imagem de tradições que eram obstá-


culos ao desenvolvimento do capitalismo. Novas tradições deviam ser
criadas e para isso era preciso esquecer outras que funcionavam como
forças de resistências (...). Substituir uma arquitetura representativa do
passado por outra, símbolo da modernização do país, em curto espaço de
tempo, como fez o governo municipal ajudado pelo Federal, era uma os-
tentação de poder. Poder que fazia desaparecer em questão de minutos até
a estrutura mais sólida, como foi a demolição com dinamite da catedral.
Entretanto, podia também fazer aparecer no meio do cerrado uma cidade
inteira como foi o caso de Brasília.54

O Brasil vivia na segunda metade da década de 1950 o entusiasmo da construção de


Brasília e atração que esse conjunto de investimentos trouxe para a região Centro-Oeste: o au-
mento do fluxo migratório como forma de atender à interiorização do desenvolvimento que suge-
ria a política de Juscelino Kubitschek.
Impulsionada pelo “Plano de Metas” do governo JK, a pressão criada pela moderni-
zação resultou em mudanças drásticas na paisagem urbana da cidade de Cuiabá, tendo se iniciado
no último ano da década de 1950 com a construção do novo Palácio Alencastro, sede do Governo
Estadual, que sob os escombros da antiga sede do Governo fez resplandecer a primeira edificação
modernista da capital de Mato Grosso.
Como continuidade da política de modernização, as intervenções remodeladoras no
histórico espaço de poder do Centro Antigo contaram também com a demolição da Catedral Me-
tropolitana de forma a consolidar um novo desenho para a cidade colonial. Coube à opinião pú-
53
ARRUDA, Márcia Bomfim de. As engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda metade do
século XX. Cuiabá: EdUFMT; Carlini & Caniato, 2010, p. 34.
54
Idem, p. 34-35.
29
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

blica somente a decisão quanto ao estilo arquitetônico que consolidaria o projeto de renovação
imposto de cima para baixo.

Figura 5 - Antiga Catedral do Bom Jesus de Cuiabá durante a demolição. 1968. Fonte: IBGE.

Ao redesenhar o espaço de poder da cidade de Cuiabá, estavam sendo redesenhados


os valores das pessoas que tinham envolvimento com estes lugares de memória, alterar o espaço
físico se constituiu em uma tentativa de ruptura de lembranças extremamente afirmativas da cul-
tura cuiabana.
O poder simbólico, como instrumento de integração social que, segundo Pierre Bour-
dieu, pode significar um instrumento de dominação política, no caso da destruição das edifica-
ções coloniais significou a tentativa de uma nova produção simbólica, proposta pelas classes do-
minantes com o intuito de afirmar o poder transformador da política econômica vigente no país
durante JK e o governo dos militares.

30
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

A luta pela demarcação de espaço era o que estava realmente em jogo, e nesta de-
monstração de força foi a arquitetura setecentista de Cuiabá impactada.
Para Pierre Bourdieu,

As diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas em luta pro-


priamente simbólica para imporem a definição no campo social mais con-
forme seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideo-
lógicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições soci-
ais.55

Figura 6 - Demolição da Igreja Matriz de Cuiabá, 1968. Fonte: APMT.

A partir da substituição da edificação que materializava o poder religioso na cidade


de Cuiabá, outras intervenções foram sendo realizadas paulatinamente no espaço urbano setecen-
tista, além da reforma de praças, asfaltamento e abertura de vias que modificaram significativa-
mente a paisagem urbana da cidade.
Segundo Júlio De Lamonica, uma característica desse momento

É a introdução, na cidade de prédios com vários pavimentos. Símbolo da


modernidade, das metrópoles, para a população local, a presença desse ti-

55
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 11.
31
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

po de edifício conferia contemporaneidade e status de cidade grande. Por


isso, Cuiabá passou a reivindicar o seu arranha-céu. Mais uma vez coube
à administração pública a iniciativa de construção do primeiro edifício
com vários andares. O novo palácio do Governo, um projeto de boa cons-
trução, ergueu, orgulhosamente, sobre a horizontalidade da Baixada Cui-
abana seus sete pavimentos, altaneiros sobre as copas das velhas palmei-
ras imperiais do antigo Jardim Alencastro. Mas a cidade pagou alto tribu-
to a esse signo de modernidade, despojando-se de um dos mais harmonio-
sos conjuntos da arquitetura oitocentista: o antigo palácio, a Delegacia
Fiscal e casarões vizinhos.56

O espaço do poder foi remodelado, mas permaneceu ostentando sua vocação de ori-
gem. Definida no marco inicial do centro urbano do Arraial/Vila do Senhor Bom Jesus, essa área
é denominada por Carlos Alberto Rosa como Quadrilátero da Matriz. Para o autor, esse espaço
era por excelência um lócus de representação do poder.57 Nos dias de hoje esse ambiente ainda
possui a mesma simbologia, representando o poder político municipal (Palácio) e o eclesiástico
por conter a nova Igreja Matriz.

Figura 7 - Avenida Getúlio Vargas/Nova Igreja Matriz. Década de 1980. Fonte: MISC.

56
FREIRE, Júlio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura – op. cit., p. 121.
57
ROSA, Carlos Alberto. A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (vida urbana em Mato Grosso no Século
XVIII: 1722-1808). Tese de Doutorado em História Social. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1996, p. 99.
32
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

As mudanças que foram impostas à sociedade despertaram a necessidade de preser-


vação da memória, pois afinal de contas houve uma ressignificação deste espaço, que apesar de
se manter “espaço de poder”, após as demolições passou a ostentar novas competências através
dos símbolos das novas edificações:

O reconhecimento da ressignificação só se efetiva coerente, ou melhor, só


existe se as pessoas tiverem acesso aos dois campos significativos atingi-
dos pelo objeto: aquilo que era e aquilo que se tornou. Para essa noção de
mudança, toma-se como referencial bastante significativo: a memória.58

Diante das mudanças que estavam postas no coração da cidade, seria preciso preser-
var essa memória da Cuiabá antiga de forma a não termos nossa identidade usurpada: “memória é
um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é
uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angús-
tia”.59
A partir das afirmações de Pierre Nora, é possível entender as demandas das políticas
de preservação do patrimônio histórico em Mato Grosso, que tem primado por criar e conservar
“lugares de memória”.
Neste jogo de esquecer e lembrar, a memória como processo coletivo, resultado de
uma série de fatos que nos fazem selecionar determinados episódios, que nos faz eternizar uma
dor ou simplesmente esquecer, passa por processo de eleição dos recortes feitos pelos intelectu-
ais, jornalistas, inclusive a própria opinião pública que no caso de Cuiabá, diante da necessidade
de afirmar a identidade de cidade setecentista, não concordou passivamente com a perda destes
“espaços de memória”.60

1.2 Como preservar depois da perda: questionamentos do pós-trauma

58
SILVA, Agnaldo Fernandes da. O Seminário Episcopal da Conceição: usos e significações de um espaço de me-
mória (Cuiabá - Mato Grosso, séculos XIX e XX). Dissertação de Mestrado em História. Cuiabá, Universidade Fede-
ral de Mato Grosso, 2013, p. 18.
59
LE GOFF, Jaques. História Memória. 5. ed. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003, p. 469.
60
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez. 1993,
p. 13.
33
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

O ciclo de modernização descrito por Júlio De Lamonica61, como tendo início em


1968 com a derrubada da Catedral do Bom Jesus, tem “força de signo”62 para a autora Ludmila
Brandão, em função do conteúdo simbólico expresso nas tensões entre o velho e o novo, o pro-
vinciano e o metropolitano, o conservadorismo e o progresso e o progressista, o tradicional e o
moderno que se antagonizavam na sociedade cuiabana.
Sujeito a intervenções conjunturais, o patrimônio, para Néstor Canclini, está tensio-
nado por três tipos de forças que se relacionam no processo de uso desse espaço:

Como espaço de disputa econômica, política e simbólica, o patrimônio es-


tá atravessado pela ação de três tipos de agentes: o setor privado, o Estado
e os movimentos sociais. As contradições de uso do patrimônio têm a
forma que assume a interação destes setores em cada período.63

O poder eclesiástico agiu com o apoio do Estado e o movimento social reagiu. Diante
da perda e das polêmicas, não tardou que a sociedade se reportasse ao órgão do governo federal
responsável pela preservação da memória arquitetônica, até porque o bem que havia sido destruí-
do tinha o exato perfil dos bens evidenciados pelo IPHAN em suas primeiras décadas de existên-
cia.
De acordo com Paula Porta,

O conceito de patrimônio histórico e artístico nacional que orientou a a-


ção do IPHAN em suas primeiras décadas limitava o foco da instituição a
identificar e proteger bens destacados por sua excepcionalidade histórica
monumental e artística.
Por muito tempo, a atenção e as energias do principal órgão de preserva-
ção do país, que moldou a constituição dos órgãos estaduais, estiveram
estritamente voltadas à proteção do legado material da colonização portu-
guesa e do período imperial.64

61
FREIRE, Júlio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura – op. cit., p. 127.
62
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como prática social – op. cit.,
p. 91.
63
CANCLINI, Néstor García. Patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 23, 1994, p. 100.
64
PORTA, Paula. Políticas de preservação do Patrimônio cultural do Brasil: diretrizes, linhas de ação e resultados:
2000/2010. Brasília: IPHAN/Monumenta, 2012, p. 11.
34
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Por ter sua imagem diretamente associada à preservação de grandes monumentos, i-


nevitavelmente o órgão de preservação do patrimônio no âmbito nacional se viu cobrado, tanto
por meio de reportagens como as da revista O Cruzeiro, citado por Leilla Borges65, como os jor-
nais O Estado de Mato Grosso e O Estado de S.Paulo. No entanto, essas manifestações públicas
de repúdio à destruição da Catedral não constam no processo de tombamento.
A perda se deu em 1968, porém desde 1957 já existia dentro do Departamento do Pa-
trimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) um processo voltado para o tombamento das
igrejas setecentistas do Estado de Mato Grosso.
Em análise do processo n. 553-T-57-A, que foi aberto dentro do ainda DPHAN, po-
demos observar que o pedido de tombamento das igrejas no Estado de Mato Grosso teve início
em 10 de janeiro de 1957. Faz-se necessário ressaltar que o objeto inicial do tombamento eram
tão somente os altares da Catedral Bom Jesus de Cuiabá, por sua relevância histórica e artística.
Não havia o entendimento da relevância da edificação da Catedral, isso porque a análise da insti-
tuição de preservação no âmbito nacional da década de 1950 procurava com certo purismo, refe-
rências históricas estampadas nessas “fachadas”. Havia um questionável critério de valoração
atribuído à Catedral.
Para Leilla Borges de Lacerda e Nauk Maria de Jesus, as alterações que foram reali-
zadas na década de 1920, sob o discurso de embelezamento, impuseram

Um novo perfil à área central da cidade, exercendo forte pressão para alte-
rar, também, a fachada colonial da Catedral, como de fato aconteceu. A Ca-
tedral do Bom Jesus de Cuiabá perdeu sua torre em forma de meia laranja,
e ganhou duas, uma à esquerda e outra à direita, em formato piramidal. E-
las eram mais altas que a anterior. Essa reforma alterou completamente a
fachada da Catedral, e décadas mais tarde foi usada como argumento para
justificar o seu não tombamento, em razão da descaracterização do tem-
plo.66

O ideal de autenticidade presente nas ações do DPHAN teria seus fundamentos ques-
tionados nos dias de hoje. Para Néstor Canclini, mais importante que buscar autenticidade é sim
buscarmos o que de fato é culturalmente representativo:

65
Cf. LACERDA, Leilla Borges. Catedral do Senhor Bom Jesus de Cuiabá: um olhar sobre sua demolição – op. cit.
66
LACERDA, Leila Borges e JESUS, Nauk Maria. Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Capela de São Benedito:
Um diálogo entre a História e a Arquitetura. Cuiabá: Entrelinhas, 2008, p. 131.
35
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Em quase toda a bibliografia sobre o patrimônio, ainda é necessário efe-


tuar essa operação de ruptura com o realismo ingênuo que a epistemolo-
gia realizou há tempos. Assim como o conhecimento científico não pode
refletir a vida, tampouco a restauração, ou a museografia, ou a divulgação
mais contextualizada e didática conseguirão abolir a distância entre reali-
dade e representação.67

Figura 8 - Catedral Bom Jesus de Cuiabá. Fonte: MISC.

Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, dentro da prática de tombamento,

A prioridade foi dada aos remanescentes da arte colonial brasileira, justi-


ficada pelos agentes institucionais como decorrência do processo de urba-
nização, que já se acelerava, e do saque e comercialização indevida de

67
CANCLINI, Néstor García. Patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional – op. cit., p. 113.
36
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

bens móveis, que eram vendidos por antiquários brasileiros a coleciona-


dores, sobretudo estrangeiros.68

O processo n. 0553-T37 teve início a partir de um parecer do chefe da Seção de Artes


do DPHAN. O arquiteto Edgard Jacinto da Silva menciona nesse documento que em decorrência
das pesquisas e estudos procedidos em monumentos no Estado de Mato Grosso e baseados na
documentação recolhida ao arquivo, apresentava para apreciação da diretoria a proposta de tom-
bamento da Sé de Sant’Ana, de Chapada dos Guimarães, e dos conjuntos de altares, imagens an-
tigas e pratarias da Catedral Metropolitana do Senhor Bom Jesus de Cuiabá e da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito.
Segundo o chefe da Divisão de Artes, o interesse da inscrição desses monumentos no
Livro Tombo se justificava por constituírem os melhores exemplares inventariados na área cultu-
ral, que era pobre em obras setecentistas de cunho religioso.69
A exposição contida no processo argumenta que tanto nos casos dos tombamentos
dos conjuntos de altares da Igreja de São Benedito como no caso da Catedral Metropolitana, eram
sugeridos que também se procedesse ao tombamento nos edifícios das igrejas a fim de prevenir
que obras futuras viessem a prejudicar os ditos altares sem reconhecer efetivamente a arquitetura
da edificação. Apesar de utópico, o ideal de originalidade permaneceu e a valoração se concen-
trou nos bens móveis existentes no interior das igrejas.

68
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil – op. cit., p. 107.
69
Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, ao analisar o conjunto de bens tombados, até o final de 1969 pelo órgão,
havia a predominância de edificações de arquitetura religiosa – sendo 368 dos 803 bens. FONSECA, Maria Cecília
Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil – op. cit., p. 113.
37
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Figura 9 - Página inicial do Processo de Tombamento n. 553-T-57-A.

Por entender pertinente a indicação feita por Edgard Jacinto da Silva, Rodrigo Melo
Franco de Andrade, responsável pelo DPHAN, hoje IPHAN, encaminhou em 14 de janeiro do
mesmo ano a notificação de n. 782, endereçada ao Senhor Arcebispo Dom Antônio Campelo
Aragão.70
Nesse documento, Rodrigo Melo Franco declarava ter a honra de levar ao conheci-
mento do reverendo a determinação da inscrição, no Livro Tombo das Belas Artes, as obras de
arte religiosas pertencentes à Arquidiocese, entre altares, imagens antigas e peças de prata da
Catedral Metropolitana do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, no Estado de Mato Grosso.
No pedido de anuência ao reverendo para este tombamento, solicitava que fosse acu-
sado o recebimento da notificação. Sem obter resposta, em 12 de março de 1957 houve uma nova
notificação nos mesmos termos, também sem resposta. Sem o consentimento do reverendo, ape-
sar de o Decreto-lei n. 25/1937 informar que:

70
DPHAN. Processo de Tombamento n. 553-T-57-A, p. 2.
38
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Art. 6° O tombamento de coisas pertencentes à pessoa natural ou à pessoa


jurídica de direito privado se fará voluntária ou compulsoriamente.

O processo não caminhou, pois em análise à documentação constante do mesmo é


possível verificar que os tombamentos das igrejas setecentistas da capital de Mato Grosso não
ocorreram compulsoriamente.
Para Maria Cecília Londres Fonseca, a política de preservação do patrimônio cultural
seguia o mesmo entendimento de outras políticas públicas no país, nas quais as representações
políticas, econômicas e simbólicas referiam-se a grupos específicos:

Ou seja, as políticas públicas de preservação e as representações do pa-


trimônio cultural nacional constituída pelos agentes dessas políticas re-
produzem contradições e conflitos que se manifestam no contexto maior
das relações entre Estado e sociedade.71

Além de a representatividade de determinados segmentos ser maior no leque de bens


tombados, por analogia podemos entender que o tratamento dado aos diversos atores envolvidos
na prática de preservação também tinham critérios distintos, na leitura da autora, “natural que
houvesse alguma ambiguidade, em vista do inevitável compromisso com o regime político vigen-
te”.72

71
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil – op. cit., p. 214.
72
Idem, p. 215.
39
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Figura 10 - Notificação de tombamento contida no Processo de Tombamento n. 553-T-57-A.

Considerando o forte símbolo que a igreja representava na cidade de Cuiabá e o im-


pacto social que significou a perda dessa edificação, o processo de tombamento possui um docu-
mento com data de 4 de outubro de 1968, enviado pela Associação Promotora do Interesse Cole-
tivo (APINCO) acerca do tema. Nesse documento, Paulo Nogueira Neto, secretário geral da As-
sociação, relatava que teve notícia, por meio do jornal O Estado de São Paulo, de 3 de outubro de
40
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

1968, da demolição da velha Catedral de Cuiabá, construída em 1722, ao destacar que a Igreja
Católica era a instituição privada mais atingida pelas políticas de tombamento federal, somando
mais de 50% dos bens tombados, Márcia Chuva observa um aspecto identitário problemático – a
articulação de “valores cívicos e patrióticos a valores religiosos, como se estes fossem constituin-
te daqueles e vice-versa”, concedendo à Igreja papel primordial na construção da nação e na for-
mação do Estado.73
O representante da APINCO argumentou que a igreja estava tão sólida a ponto de re-
sistir ao efeito de repetidas explosões de dinamite, sendo, portanto, uma edificação que aparen-
temente não ameaçava ruir74.
O texto segue fazendo referência à perda, afirmando que a demolição causava pro-
funda tristeza a todos aqueles que se interessam pela preservação de bens históricos. No ofício
endereçado ao DPHAN, o secretário geral persistia em lamentar o quão penoso era verificar que
o órgão, que em outras ocasiões se mostrara tão zeloso na defesa de nosso passado, naquele mo-
mento permitira tal iniciativa.75 Neste documento, pede explicações em nome do povo brasileiro
e sugere que quando for inevitável derrubar um edifício histórico, deve ser feito um amplo e pré-
vio esclarecimento, e que se mostre ao público a mais absoluta necessidade da medida.
Em reportagem de O Estado de São Paulo que se encontrava anexa ao processo de
tombamento em epígrafe, o jornalista Pedro Rocha Jucá, correspondente em Cuiabá, relata deta-
lhes da demolição e comenta que a pendência dividiu a população mato-grossense: uma parte
comovida com o desfalque que houve na cidade com a demolição; outra parte alegando que a
tradicional igreja já não podia mais enfrentar a ação desagregadora do tempo.
Para Ludmila Brandão, o ritmo e a violência dessa “modernização conflitual” em
Cuiabá acabaram por

produzir um sentimento de insegurança, de perda de “controle” dos pro-


cessos sociais que fazem emergir uma avalanche de denúncias da omissão
administrativa, de críticas à eficiência (e, portanto, ineficiência) de suas
raras ações e de reivindicações de medidas urgentes.76
73
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimô-
nio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009, p. 301.
74
DPHAN. Processo de Tombamento n. 553-T-57-A, p. 6.
75
Idem, ibidem.
76
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como prática social – op. cit.,
p. 112.
41
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Segundo o relato do jornalista Pedro Rocha Jucá, os argumentos que defenderam a


demolição se desmantelaram diante da teima da Catedral em sucumbir à dinamite. Na mesma
reportagem é mencionado o trato dado aos altares – foco principal do pedido inicial de tomba-
mento.
O repórter segue descrevendo que após cinco dias de demolição o trabalho foi conclu-
ído e que os altares estavam bem guardados e que precisariam de reformas nas partes recobertas
de ouro, desgastadas com o tempo. Segundo a matéria, o altar-mor desmontado quando da demo-
lição dos fundos da igreja, há alguns anos, já estava comprometido e, se mantido em local inade-
quado, a tendência era se danificar cada vez mais.77
As décadas de 1950 e 1960 no Estado de Mato Grosso foram marcadas por vultosos
investimentos públicos em nome de uma maior integração nacional, primeiro por meio do “Plano
de Metas”, do governo Kubitschek, e depois pelo desenvolvimentismo pautado no interesse geo-
político de ocupação da Amazônia, defendida pelo governo militar.78
Dentro deste cenário político e econômico, cheio de interesses de proporções nacio-
nais – considerados estratégicos pelos militares para a região –, é que foi dado início à luta pela
preservação do patrimônio edificado na cidade de Cuiabá. Para Márcia Mansor d’Aléssio,

Uma das faces mais visíveis da relação nação/preservação é o uso do pas-


sado feito pelos Estados nacionais com vistas à legitimação de seus res-
pectivos projetos políticos. Decorre daí a tônica bastante nacionalista das
instituições patrimoniais surgidas nos séculos XIX e início do século XX
em vários países ocidentais.79

O projeto de salvaguarda do patrimônio edificado em Cuiabá estava permeado da in-


tencionalidade na busca por afirmar a história de expansão do litoral para o interior de forma a
rememorar a desenvolvimento do Estado português. O propósito de afirmação da vocação de

77
DPHAN. Processo de Tombamento n. 553-T-57-A, p. 7.
78
Cf. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A Lenda do Ouro Verde: política de colonização no Brasil contemporâ-
neo. Cuiabá: UNICEN; UNESCO, 2002; JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da crença: a ocupação do norte de
Mato Grosso após 1970. Cuiabá: EdUFMT, 2007.
79
D’ALESSIO, Márcia Mansor. Metamorfose do Patrimônio: o papel do historiador. Revista do Patrimônio Históri-
co e Artístico Nacional. Brasília, n. 34, 2012, p. 83.
42
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Mato Grosso como símbolo de conquistas territoriais está latente neste processo de preservação –
vide o culto à figura do bandeirante.80
Diante do acontecido, o arquiteto Edgar Jacinto da Silva, que em 1957 já havia pro-
posto dentro da DPHAN o tombamento dos altares, bem como da edificação da Igreja Nosso Se-
nhor Bom Jesus de Cuiabá, em 29 de outubro de 1968 reitera ao diretor do SPHAN a proposta de
indicação para que se efetivasse, desde logo, as medidas protetoras pleiteadas outrora para o con-
junto de altares, imagens antigas e alfaias das igrejas Catedral Metropolitana, e da Igreja de Nos-
sa Senhora do Rosário e Capela de São Benedito.
Segundo Edgar Jacinto, era preciso solicitar ao cura, na figura de Dom Orlando Cha-
ves, informações acerca das condições reais em que se encontravam essas peças, uma vez que
houve o seu desmantelamento, para que assim fosse possível deliberar sobre seu aproveitamento
de maneira adequada na nova edificação. Para o arquiteto era imprescindível que fossem verifi-
cadas as condições desses altares, pois haviam se passado muitos anos desde o inventário inicial,
datado de 1957.
Entre as medidas adotadas pelo DPHAN na defesa de seu papel de preservação está o
ofício que Renato Soeiro, diretor do DPHAN à época, no qual o diretor informava preliminar-
mente ao secretário da APINCO que não havia inscrição da Catedral do Bom Jesus no Livro
Tombo daquela Diretoria.
Nas palavras de Renato Soeiro81, não havia tal tombamento por lhe faltar, no âmbito
nacional, as características de valor excepcional que justificassem a medida, uma vez que em
1868 passou por grandes reformas que lhe desfiguraram gravemente sua antiga feição exterior.
Segue esclarecendo que o templo em causa data de 1755, construído para substituir a primitiva
igreja, coberta de palha, erigida em 1722. Por volta de 1955, verificou-se que a capela-mor havia
sido inteiramente destruída, descaracterizando assim, irreparavelmente, a construção original,
restando apenas suas respectivas obras de talha, conforme descrito abaixo:

80
Ao abordar a força da imagem do bandeirante no imaginário nacional e regional, Luiza Volpato observou que
“essa mítica está tão amplamente divulgada e tão profundamente enraizada que faz parte do senso comum e é tida e
aceita como correta e definitiva. Ela permeia praticamente toda a literatura sobre o assunto e dificulta a busca de uma
interpretação crítica do fenômeno bandeirantista”. VOLPATO, Luiza R. R. Entradas e bandeiras. 3. ed. São Paulo:
Global, 1985, p. 17.
81
Renato de Azevedo Duarte Soeiro trabalhou no Iphan por 41 anos, sendo 21 anos dedicados a Divisão de Conser-
vação e Restauro e os 12 últimos como Presidente da Instituição de 1967 a 1979. Sucedeu Rodrigo Melo Franco.
43
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

a Catedral ora demolida não se encontrava inscrita nos livros de tombo


desta Diretoria, por lhe faltarem, no âmbito nacional, as características de
valor excepcional que justificassem a medida, uma vez que em 1868 pas-
sou por grandes reformas que lhe desfiguraram gravemente sua antiga
feição exterior.
Ocorre esclarecer ainda que o templo em causa data de 1755, construído
para substituir a primitiva igreja, coberta de palha erigida em 1722. Por
volta de 1955, verificou essa Diretoria que a capela mor havia sido intei-
ramente destruída, descaracterizando, assim, irreparavelmente, a constru-
ção original, restando apenas parte da respectiva obra de talha.
À vista do ocorrido e a fim de preservar os elementos, antigos remanes-
centes, esta repartição notificou o Senhor Arcebispo de Cuiabá, de acordo
com o Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, que foi determina-
da inscrição no Livro de Tombo de Belas Artes, dos altares, imagens e
peças de prata integrantes da Catedral, notificação esta que ficou sem res-
posta. Para fim de ser reiterada a medida, a DPHAN está providenciando
no sentido de ser feita uma vistoria das peças em causa, para verificar se
ainda será oportuno seu tombamento. 82

O diretor do DPHAN defendeu-se apontando as medidas tomadas até aquele momen-


to para salvaguardar os bens móveis vinculados à antiga Catedral e lamentou que as autoridades
eclesiásticas responsáveis não tivessem demonstrado o menor interesse em conservar o antigo
templo, o qual, embora desfigurado por reformas mal orientadas, possuía a tradição histórica que
tanto o enobrecia.83
Como forma de minimizar os impactos sociais e ao patrimônio causados pela demoli-
ção, é feita a retomada do processo de tombamento dos bens móveis relacionados à antiga Cate-
dral Metropolitana. Edgar Jacinto encaminha um pedido ao diretor do SPHAN para que na opor-
tunidade da visita do arquiteto Rocha Miranda84 a Cuiabá fossem analisados, além dos bens pro-
postos no processo de tombamento aberto em 1957, a existência do que pudesse restar de alguns
sobrados antigos e característicos documentados por volta de 1950. Na solicitação da visita técni-
ca é explicitado que, caso ainda remanesça algum exemplar de interesse para tombamento, seria
oportuno pensar em novos tombamentos. Em processo oficial, essa foi a primeira manifestação
de interesse do SPHAN em edificação não sacra na cidade de Cuiabá.

82
Idem, p. 9.
83
DPHAN. Processo de Tombamento n. 553-T-57-A, p. 9.
84
Rocha Miranda, arquiteto modernista, compôs a primeira equipe de defesa do patrimônio do Sphan, atuava na
identificação de bens que seriam indicados para o tombamento.
44
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Não há no processo aberto em 1957 nenhuma resposta ao pedido de que fosse averi-
guada a existência de edificações que pudessem ser destacadas em Cuiabá. Apenas em 1985 seria
dado início ao processo de tombamento do Centro Histórico da capital.
Diante do exposto, Renato Soeiro, diretor da instituição de preservação, assim o pro-
cede, encaminhando correspondência ao arquiteto Rocha Miranda solicitando que em sua visita a
Cuiabá não somente observasse a conservação dos antigos altares da recém-demolida Catedral,
mas também verificasse acerca da existência de sobrados antigos documentados por volta da dé-
cada de 1950, que parecessem dignos de tombamento. Pedia também que informasse, para este
fim, a localização dos imóveis, o nome e o endereço dos respectivos proprietários.
A inspeção de Rocha Miranda não se concretiza, ficando a cargo do arquiteto Edgar
Jacinto a visita indicada pelo SPHAN, seria esse, efetivamente o primeiro olhar do órgão para a
preservação da arquitetura de Cuiabá. Edgard Jacinto Silva alertava para a necessidade de conti-
nuar a instalação da rede de museus regionais, como outrora foi realizado em Goiás com a im-
plantação do Museu das Bandeiras. Pelo fato de Mato Grosso ter como marco evocador o movi-
mento das monções, seria, portanto, uma oportunidade de marcar no Estado tal fato histórico tão
preponderante na formação da identidade nacional. Eis a força do fantasma do bandeirante.85
Rocha Miranda, o arquiteto responsável por verificar se em Cuiabá ainda era oportu-
no o tombamento dos altares da demolida Catedral, no retorno da estadia em Mato Grosso, co-
municou ao DPHAN que a Igreja do Rosário e Capela de São Benedito em Cuiabá continuavam
exatamente na mesma forma.
Diante das informações obtidas através da visita, foi solicitado pelos técnicos que sem
mais obstáculos fosse prosseguida a inscrição da Igreja do Rosário e Capela de São Benedito no
Livro Tombo, para que não se corresse o risco de novamente se perder um importante bem, desta
vez sob o argumento de ser um dos últimos remanescentes da manifestação artística ocorrida nos
fins do século XVIII e que ainda fazia jus à preservação da alçada federal, até por ser essa uma
região carente de outros testemunhos da sua memória cultural.
A grande importância histórica neste tombamento pode ser observada em inúmeras
ilustrações iconográficas dos séculos XVIII e XIX, conforme a descrição de Claudio Quoos Con-
te e Marcus Vinicius De Lamonica:

85
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A Lenda do Ouro Verde: política de colonização no Brasil contemporâneo
– op. cit., p. 50.
45
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Na vista “Prospecto da Villa do Bom Jesus do Cuiabá”, executada pela


expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira em 1790, a Igreja do Rosário
e São Benedito apresenta um aspecto típico de capela bandeirista em que
a terminação das torres se dá com esteios aparentes e cobertos por um pe-
queno telhado em quatro águas, e uma única porta com abertura na facha-
da. (...) Na década de 1920, foi-lhe acrescida uma postiça fachada neogó-
tica com a construção de uma torre pontiaguda central e pequenas janelas
em ogiva.86

Apesar de sua arquitetura muito alterada, o entendimento que estava sendo proposto
na retomada do tombamento visava à proteção da edificação como forma de garantir a preserva-
ção dos elementos contidos em seu interior, exatamente como proposto no início do pedido de
tombamento da Catedral, em 1957. Nas palavras de Edgard Jacinto da Silva, arquiteto responsá-
vel pela vistoria:

Verifiquei na última viagem a Mato Grosso que a Igreja de Nossa Senho-


ra do Rosário, em Cuiabá, permanece na forma em que propusemos o seu
tombamento em 1957. Assim sendo, encareço que se promova, sem ou-
tros óbices, sua inscrição no Livro do Tombo para que não se incorra no-
vamente na perda de um dos últimos remanescentes da manifestação ar-
tística ocorrida nos fins do século dezoito e que ainda faz jus à preserva-
ção da alçada Federal – no caso, numa área tão carente de outros testemu-
nhos de sua quase apagada memória cultural.
Embora o termo da referida inscrição deva se ater especificamente ao
conjunto de altares de talha dourada e fundo policromado, imagens anti-
gas e alfaias que a exornam, não se dispensa como complementação do
ato a citação do próprio edifício da igreja, que com exceção da fachada, é
de construção original. (...) 87

O interior da igreja não foi alterado, como descrito por Claudio Quoos Conte e Mar-
cus Vinicius De Lamonica, apesar das inúmeras modificações na fachada da edificação. A igreja
manteve, ao longo dos séculos, três altares que possuem talhas douradas sobre fundo a cores, um
altar-mor que

86
CONTE Claudio Quoos e FREIRE, Marcus Vinícius de Lamonica. Centro Histórico de Cuiabá: Patrimônio do
Brasil. Cuiabá: Entrelinhas, 2005, p. 33.
87
DPHAN. Processo de Tombamento n. 553-T-57-A, p. 13.
46
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Merece atenção especial pelo raro trono constituído por três lances super-
postos em forma bombeada, tendo no nicho central a imagem da padroei-
ra, Nossa Senhora do Rosário. Também no altar-mor, à esquerda, está a
imagem de São Vicente de Paulo e, à direita, a de São José (...). Possui
ainda tribunas bem mais simples, decoradas com tábuas recortadas e pin-
tadas. No corredor lateral esquerdo, localiza-se a Capela de São Benedito,
onde são depositados pelos fiéis os ex-votos em agradecimento à graça
alcançada.88

Cabe destacar que, apesar também de ter passado por inúmeras alterações,

A fachada atual foi reconstruída pela Secretaria do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional, SPHAN, em 1980, após seu tombamento ter ocorrido
em 1975. Embora essa torre, em forma de ogiva, seja apresentada como
original, ela é a terceira versão de torre que a igreja possuiu, construída no
início do século XIX. Na restauração de 1980 foram feitas algumas recu-
perações baseadas em documentação e imagens iconográficas anteriores.
Entretanto, numa restauração realizada após o tombamento, o coro não foi
restaurado, sendo mantido o que já existia. Apenas nos trabalhos iniciados
em 2003 é que ele foi retomado com suas características originais, valori-
zando, deste modo, o patrimônio da paróquia do Rosário.89

Para dar sequência ao processo de tombamento que havia estagnado, a chefe da Seção
de Arte, Lígia Martins da Costa, em novembro de 1975, fez um parecer técnico descrevendo com
detalhes as características dos retábulos90, alfaias, imagens e lampadários, recomendando por fim
o tombamento de todos os bens móveis contidos na Igreja Nossa Senhora do Rosário e Capela de
São Benedito.
A autora do parecer indicava que o tombamento deveria ser proposto o quanto antes,
de forma a finalizar uma demanda de 1957 que não se formalizou por um lapso na notificação
encaminhada ao bispo.
Desta vez a correspondência do DPHAN retornou assinada pelo reverendo Dom Or-
lando Chaves, arcebispo metropolitano de Cuiabá, assim sendo, o trâmite foi concluído em janei-
ro de 1976 com a seguinte inscrição:
88
Idem, p. 33.
89
LACERDA, Leila Borges e JESUS, Nauk Maria. Igreja de Nossa senhora do Rosário e capela de São Benedito:
um diálogo entre a História e a Arquitetura – op. cit., p. 136.
90
A partir de agora será usado a palavra retábulo, por se tratarem de peças de estrutura ornamental de talha, concebi-
das para a área lateral da igreja. Altar refere-se ao local onde o sacerdote realiza os ritos religiosos, sendo, portanto o
termo mais adequado.
47
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Recebi do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a notifi-


cação de n. 1.118, datada de 27 de dezembro de 1975, referente ao tom-
bamento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, com to-
do seu recheio, inclusive retábulos, imaginárias, alfaias, e o mobiliário an-
tigo, conforme informação de n. 335, anexa, na cidade de Cuiabá, Estado
de Mato Grosso, e fico ciente deste tombamento.91

Apesar da finalização do tombamento da Igreja do Rosário, o processo outrora aberto


com a finalidade de proteger também os altares da Catedral Metropolitana de Cuiabá, objeto do
processo iniciado em 1957, ainda não havia sido concluído, uma vez que a demolição e a substi-
tuição da Igreja mudaram os rumos desta preservação.92
Em 1981, tendo como remanescente da destruição da Catedral apenas o conjunto dos
quatro altares colaterais que, após o desmantelamento da igreja, foram recolhidos na nova Cate-
dral, a Fundação Cultural de Mato Grosso manifestou a intenção de reaproveitá-los no futuro
Museu de Arte Sacra de Cuiabá, ainda em fase de organização.

A catedral foi demolida, e para o edifício do Seminário da Conceição, se


destinaram os antigos altares, retirados antes da demolição, a fim de que
fossem guardados, para tomadas de decisões futuras sobre o destino dos
quatro altares.
O edifício, quase inabitado, começou a sofrer as ações do tempo, sem
uma reforma que lhe devolvesse a dignidade arquitetônica. Na década de
1970, o Estado, representado pela Fundação Cultural, tombou o edifício
do Seminário e criou um comodato para poder usufruir, em especial da
parte superior, que estava em abandono. (...) Fundava-se o Museu de Arte
Sacra, que permaneceu por pouco tempo neste edifício, uma vez que o es-
tado de conservação das paredes, mesmo no início da década de 1980,
não era bom. A isso somava-se o vandalismo sempre crescente na cidade.
O Museu, então, fechou suas portas. E só voltou a funcionar no final da
primeira década do Século XXI, reabrindo as suas portas no ano de 2008.
Desde então, o Museu de Arte Sacra de Mato Grosso tem funcionado nes-
te edifício.93

91
DPHAN. Processo de Tombamento n. 553-T-58-A, p. 18.
92
Idem, p. 72.
93
SILVA, Agnaldo Fernandes da. O Seminário Episcopal da Conceição: usos e significações de um espaço de me-
mória (Cuiabá - Mato Grosso, séculos XIX e XX) – op. cit., p. 265.
48
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

1.3 Processo que vai e vem

Com o tombamento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, incluindo todo o seu re-
cheio, metade do processo havia se findado. No entanto, com este tombamento, somente parte da
demanda inicial tinha sido cumprida, pois ainda não havia sido dado um desfecho para o tomba-
mento dos bens móveis presentes no interior da antiga Catedral.
Com o findar do tombamento da Igreja do Rosário, sem maiores explicações, o pro-
cesso de tombamento dos altares ficou parado por um considerável tempo e por ordem da chefe
de Divisão de Estudos e Acautelamentos do IPHAN. Em 1999, foi encaminhado um memorando
à coordenadora de Proteção deste Instituto, na intenção de retomar o processo de tombamento
sobrestado no âmbito desta Diretoria de Proteção.
Ao analisar a quantidade de processos de tombamento parados, que ainda estavam em
fase de estudos, Maria Cecília Londres Fonseca argumenta que a primeira conclusão a que se
pode chegar

é quanto à dificuldade da instituição em dar andamento aos processos,


que permanecem, às vezes décadas sem resolução, tenha sido agravada a
partir de março de 1990, quando ocorreu, no início do governo Collor, a
paralisação das atividades da SPHAN, em decorrência da reforma admi-
nistrativa e da dissolução do Conselho Consultivo, reconduzido em maio
de 1992.94

A política dentro da instituição no final da década de 1990 consistia em finalizar os


processos que estavam abertos e parados, muitas vezes sem desfecho, em função de questões
burocráticas. A partir de um mapeamento realizado por este Instituto no ano de 1999, foi identifi-
cado que o processo de tombamento dos retábulos da antiga Catedral estava entre os processos
parados.95
Na busca por corrigir este equívoco, a superintendente da 14° SR-IPHAN, à qual es-
tava vinculada o Estado de Mato Grosso, contratou um levantamento/relatório, que foi realizado
pelo historiador da arte Pablo Diener Ojeda, na intenção de bem instruir o processo de tomba-

94
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil – op. cit., p. 182.
95
DPHAN. Processo de Tombamento n. 553-T-57-A, p. 28.
49
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

mento dos altares da antiga Catedral Matriz de Cuiabá.96 Pablo Diener Ojeda afirmou em seu
parecer que, apesar de o estado de conservação destes bens estar ruim, acreditava ser possível
resgatar o conjunto, pois entendia ser possível a recuperação.
O historiador fez observações acerca da importância de belas artes destes retábulos,
defendendo-os como belíssimos representantes do Barroco brasileiro, com composição e talha de
muito boa qualidade:

O retábulo é uma belíssima peça do barroco brasileiro, com composição e


talha de muito boa qualidade. Sem dúvida representa uma das mais desta-
cadas talhas que ainda existem na capital mato-grossense.
No Museu de Arte Sacra, hoje desativado, conservam-se as peças estrutu-
rais desse retábulo (base, colunas e pilastras, nichos, anjos e pseudofron-
tão), o estado de conservação das peças é ruim, mas ainda seria possível
resgatar o conjunto.
Este retábulo, apesar de conservar-se, deveria receber proteção institucio-
nal, a fim de agilizar o trabalho de conservação integral, que hoje ainda é
possível. 97

O trabalho final, com os laudos referentes aos quatro retábulos da antiga Catedral,
trazia anexas as fichas descritivas e mais 22 fotografias e seus respectivos negativos. Não foram
encaminhadas as fichas correspondentes ao altar-mor, nem mesmo havia menção sobre ele no
material encaminhado. Este teria sido desmontado em primeiro lugar, quando da derrubada dos
fundos da Catedral e teria sido danificado completamente ao ser colocado em local inadequado.
Não existe no processo relatos sobre o paradeiro deste bem, no entanto, seu desaparecimento se
deu antes de o tombamento concretizar-se.
Na busca por salvaguardar obras de arte e ofícios tradicionais, produzidos no Brasil
até o fim do período monárquico, em 1965 é aprovada a Lei n. 4845/1965 que regulamenta até
hoje a saída de obra de arte do país:

Art.1º - Fica proibida a saída do País de quaisquer obras de arte e ofícios tradi-
cionais, produzidas no Brasil até o fim do período monárquico, abrangendo não
só pinturas, desenhos, esculturas, gravuras e elementos de arquitetura, como
também obra de talha, imaginária, ourivesaria, mobiliário e outras modalidades.

96
Idem, p. 32.
97
Idem, p. 51.
50
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Art.2º - Fica igualmente proibida a saída para o estrangeiro de obras da mesma


espécie oriundas de Portugal e incorporadas ao meio nacional durante os regi-
mes colonial e imperial.

Todavia, a legislação não proíbe a circulação nem a venda das obras de arte dentro do
Brasil, portanto a preservação dos bens coloniais pertencentes às igrejas históricas de Cuiabá es-
teve sempre à mercê do bom entendimento de preservação do patrimônio dos sacerdotes fiéis
depositários dos bens sacros da capital.
Adiante, com o projeto da retomada de processos de tombamentos sobrestados e com
a contratação dos serviços do historiador responsável por inventariar os remanescentes retábulos,
coube à museóloga Glaucia Côrtes de Abreu opinar acerca do tombamento. O parecer do Depar-
tamento de Proteção, o DEPROT, assinado por Abreu, foi favorável por entender a relevância.98
O parecer técnico lamenta as peças de prata e imagens religiosas que foram perdidas, pois cons-
tava no primeiro inventário, realizado na abertura do processo, ainda na década de 1950, descri-
ções de peças em prata e imagens sacras.
Não consta no processo documentação referente à construção dos retábulos, mas in-
formações bibliográficas99 arroladas no processo revelam que o mestre pintor e dourador João
Marcos Ferreira teria sido contratado para dourar o retábulo da Capela-Mor, pelos idos de 1781; e
que por volta de 1885 o artista Henrique Veiga Vale teria feito o redouramento dos retábulos,
mas a autora do parecer não explicita claramente as fontes.
Para a museóloga Glaucia Abreu, a situação dos retábulos, descontextualizados de
seu ambiente original e montados de forma incompleta, em decorrência do ambiente físico onde
se encontram, dificultaria a apreciação das qualidades artísticas, sugerindo assim que houvesse o
cotejamento das fotos antigas e atuais para possibilitar uma melhor avaliação de suas importantes
características. Segue descrevendo as características de cada altar.
Depois de relatar o estado de conservação dos altares, pontuou nas considerações fi-
nais que Mato Grosso foi uma das capitanias mais singulares do período colonial, em virtude de
sua localização geográfica e por suas minas de ouro, destacou ainda que a distância e o isolamen-
to sempre foram responsáveis pelas dificuldades ao desenvolvimento e que o ciclo do ouro mato-
grossense foi repleto de adversidades.

98
Idem, p. 58.
99
Idem, p. 74-75.
51
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

O coordenador técnico de proteção José Leme Galvão Junior, em seu despacho final
que deliberou por definitivo acerca do tombamento, fez questão de evidenciar que o tombamento
referia-se somente aos altares, não estando os bens inicialmente arrolados junto com os altares,
que já não constituíam parte do processo.100
O início do processo de tombamento fazia referência a inúmeros bens móveis, além
dos altares. O inventário inicial descrevia lampadários, imagens sacras, mas o despacho final sa-
lientava que o tombamento referia-se somente aos altares, até porque na década de 1990 já não
existiam mais esses bens móveis.
Ao longo dos anos, desde a demolição, a arte sacra pertencente à antiga Catedral foi
se perdendo. Nos relatos de José Claudino da Nóbrega, descritos por meio de uma publicação
intitulada Memórias de um Antiquário Viajante, é possível ter ciência do destino tomado por es-
sas peças.
Nesta publicação o autor revelou suas impressões acerca das transformações da pai-
sagem urbana da capital de Mato Grosso, enquanto relatava suas muitas aventuras entre idas e
vindas em busca de relíquias históricas do Estado.
Quando descreve sua quinta vinda a Cuiabá, vez na qual pôde observar a execução da
nova Catedral, o autor comentou a impressão que teve quando avistou as obras da nova igreja:

Fomos à Matriz e, Santo Deus, o que eu vi. Os Padres estavam construin-


do uma igreja gótica no lugar daquela joia colonial! Os altares já tinham
sido retirados para a igreja São José Operário. Só restava praticamente a
fachada da Matriz (...)101.

Descreveu também como arrematou algumas das raridades da Catedral:

Subimos ao coro e compramos os quatro lampadários “Sabará”, a grande


naveta “D. João V”, três banquetas de prata completas, a famosa imagem
de santo Elesbão e os entalhes todos. Ficaram os santos que conservados
em seus altares (...). No mesmo instante em que fechamos o negócio, eu,
Mós e o padre Osvaldo, fomos ao banco e transferimos diretamente cinco
milhões para a conta da Diocese.102

100
Idem, p. 80.
101
NÓBREGA, José Claudino da. Memórias de um Antiquário Viajante. Cuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do
Estado de Mato Grosso, 2001 (Publicações Avulsas), p. 32.
102
Idem, p. 33-34.
52
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Para o antiquário viajante, estava tudo consumado, a destruição da Catedral e a parti-


ção dos bens móveis contidos no seu interior. De fato com a destruição da igreja findou-se parte
dos elementos representativos do período aurífero da cidade de Cuiabá e de todo o Estado de Ma-
to Grosso.
Os relatos do antiquário viajante nos fazem ter dimensão das perdas ocorridas em Es-
tado de Mato Grosso durante a segunda metade do século XX.
No findar do processo, a Procuradoria do IPHAN não apresentou obstáculo e, em
2007, é dado o despacho autorizando o tombamento no que tangia à legalidade administrativa do
ato em questão.
Há, no entanto, uma curiosidade, ao final do despacho: a procuradora federal respon-
sável pela análise jurídica registrou que esse processo passou por restauro junto à COPEDOC,
uma vez que sofreu danos ocasionados nas dependências da Procuradoria Federal/Rio de Janeiro,
em 2004, o que muito retardou o exame de seu conteúdo. Não foram poucos os entraves a este
tombamento.
E apesar de não ter sido esse o primeiro tombamento em Mato Grosso, sendo aliás o
homologado somente em 2011, este acautelamento foi parte de um processo muito mais amplo de
educação patrimonial, uma vez que significou a afirmação da identidade da Vila de Bom Jesus de
Cuiabá, por remeter à preservação dos bens móveis vinculados ao espaço de memória da antiga
Catedral. Na data de sua homologação, o tombamento do Centro Histórico já tinha completado
26 anos.
Muito embora tenha havido uma comoção acerca da demolição, um ideal de preser-
vação do espaço urbano de Cuiabá só foi oficializado em 1988, e ainda em 1991 a Fundação Na-
cional Pró-Memória (o que viria a ser IPHAN) travava uma batalha frente às intervenções pro-
postas/autorizadas pela Prefeitura Municipal de Cuiabá.
A Prefeitura de Cuiabá, que a priori entendeu o tombamento como uma estagnação ao
desenvolvimento da capital, solicitou inclusive que não fosse homologado o tombamento. Pode-
mos verificar tal fato a partir de um pedido enviado pelo prefeito Frederico Campos ao então mi-
nistro da Cultura José Aparecido de Oliveira por meio do ofício n. 678/89, no qual o prefeito ro-
gava para que não fosse homologado o tombamento do Centro Histórico de Cuiabá:

53
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

As casas velhas ligadas ao passado dos filhos ilustres já foram demolidas,


não mais existindo para aqueles que escreverem páginas brilhantes de sua
História. (...)
Assim, desejamos apelar que Vossa Excelência não homologue o parecer
do Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a-
provado em 19/08/88 que estabelece o tombamento do Centro Histórico
de Cuiabá, matéria ora nesse Ministério da Cultura.103

A briga inicial para que o município parasse de emitir alvarás que permitissem a de-
molição/construção ou mesmo restauração em bens localizados na área tombada chegou à Justiça
Federal em julho de 1990. O juiz da Primeira Vara da Justiça Federal, Mário Figueiredo Ferreira
Mendes, concedeu liminar impetrada pelo Ministério Público contra o então prefeito de Cuiabá,
Frederico Campos, e o município. A partir desta data, a Prefeitura só poderia emitir alvará para
intervenções na área tombada se anteriormente o SPHAN desse sua anuência.104
A Prefeitura se defendeu, mas o fato que é nesta “queda de braço” a maior vítima foi
o patrimônio, pois mesmo após o tombamento da cidade edificações muito relevantes para o con-
junto foram demolidas, modificadas ou abandonadas.

1.4 A retomada da preservação

Após inúmeras discussões e embates políticos foi preciso dar início ao processo de
tombamento do conjunto histórico de Cuiabá. Mas, por esse espaço ter passado por tantas perdas
nas últimas décadas, seria necessário uma interpretação bem específica das delimitações deste
perímetro. De acordo com Júlio De Lamonica,

Uma cidade, na concretude de seu espaço, é sempre presente. O seu pas-


sado é sempre presente. O seu passado-presente, operante e ativo. Conti-
nua interagindo com as novas dimensões adquiridas na expressão hori-
zontal e vertical do espaço construído, sem perder a sua qualidade de
memória, de testemunho vivo do passado-vivido.105

103
SPHAN. Processo de Tombamento n. 1180-T-85, apenso II, p. 5.
104
Idem, p. 25.
105
FREIRE, Júlio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura – op. cit., p. 132.
54
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Para o início do processo de tombamento da cidade de Cuiabá foi preciso muita sen-
sibilidade da equipe responsável pelo levantamento, de forma a entender essa dinâmica da cidade
diante da grandeza deste signo.

No caso específico de Cuiabá, muito além da arquitetura, a formação do


núcleo entendido como fato histórico por produzir, entre outras conse-
quências, o avanço da América portuguesa sobre a espanhola, constituin-
do-se um polo irradiador para a ocupação do interior e demarcação futura
do território brasileiro.106

A leitura do espaço urbano histórico estava atrelada à conservação das características


arquitetônicas e principalmente urbanísticas, em que o processo de ocupação do território se inse-
re.

Não se tratava, portanto, da preservação de um conjunto arquitetônico ob-


servando-se apenas as qualidades estéticas e de uniformidade estilísticas
dos imóveis. Mas da preservação do sítio histórico, considerando-se, tam-
bém, o processo de ocupação do território, do qual as edificações partici-
pam.107

Para haver a preservação capaz de resguardar a compreensão histórica existem alguns


conceitos nas ações de preservação de sítios urbanos. No entendimento do IPHAN o tombamento
do conjunto possui peculiaridades em detrimento das escolhas isoladas de tombamento.
No trato do conjunto o IPHAN entende a necessidade de calcar seu entendimento no
sentido de qualificar os espaços urbanos, ampliar a autoestima e conferir valor de forma a identi-
ficar cidades e lugares na tentativa de potencializar o desenvolvimento destes lugares sociais.
Essa ideia parte do princípio de que:

Os bens culturais construídos no passado da cidade não são, pois, uma


permanência estática do espaço no tempo. Um velho casarão ou uma ve-
lha rua se renovam a cada modificação do seu entorno, ganhando novas

106
IPHAN. Carta de Washington 1986. Carta internacional para a salvaguarda das cidades históricas. Cartas Patri-
moniais. Caderno de documentos. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995, citado por MOTTA, Lia. O patrimônio cultural
urbana à luz do diálogo entre história e arquitetura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, n.
34, 2012, p. 260.
107
Idem, ibidem.
55
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

funções, novos significados, novos sentidos. Ao mesmo tempo que se


modificam sob a dinâmica do entorno, não perdem as características que
os distinguem como signos ativos. Sua existência como signo não é está-
tica: não são um casarão e uma rua imóveis no tempo, símbolos estáticos
do espaço passado urbano. São espaços vivos por onde flui a continuidade
entre o passado, o presente e o futuro. Não devem ser vistos, tratados e
compreendidos como sobrevivências, transformados em simulacros de
um momento urbano superado, em monumentos fúnebres de um espaço e
de um tempo desaparecido. São bem culturais vivos e pulsantes no pro-
cesso de desenvolvimento urbano em movimento. São signos ativos como
todos os demais que compõem o repertório urbano.108

Para compreensão dos efeitos do tombamento enquanto preservação, a portaria n.


420/2010, que dispõe sobre os procedimentos a serem observados para a concessão de autoriza-
ção para realização de intervenções em bens edificados tombados e nas respectivas áreas de en-
torno, faz a seguinte observação quando diferencia bens tombados em conjunto ou quando tom-
bados individualmente:

No caso de bens tombados em conjunto, é necessário depreender que o úl-


timo detém os valores identificados no tombamento, devendo-se entender
o conjunto não como uma narrativa construída por cheios e vazios e pas-
sar do tempo, e que as partes, portanto podem ser eventualmente altera-
das, desde que não alterem as características do conjunto (a narrativa);
Que no caso de bens tombados individualmente, a perda irreversível pro-
vavelmente significará a perda da autenticidade material do bem e, por-
tanto, a reparação do dano, strictu sensu, não será possível. 109

Diante do exposto, é possível entender que para um bem tombado individualmente,


como no caso da Igreja do Rosário e Capela de São Benedito, as restrições são maiores, pois a
proteção se dá em função de suas características enquanto exemplar único, e quando o tomba-
mento refere-se a conjuntos urbanos, o elemento que se tem como primordial refere-se à ambiên-
cia desse espaço urbano, de características coletivas.
A partir de diretrizes sobre a forma como deveria ser conduzido um tombamento, que
elementos deveriam ser priorizados, deu-se início ao processo de tombamento do Centro Históri-
co de Cuiabá.
108
Idem, p. 132 e 133.
109
Manual de Procedimentos: fiscalização e autorização de intervenções no patrimônio edificado. 4. ed. Brasília,
IPHAN, 2012, p. 22.
56
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

A seguir, no segundo capítulo, observaremos dentro da política de preservação no


Estado de Mato Grosso as disputas travadas após o tombamento do Centro Histórico de Cuiabá,
tendo o tombamento como a primeira grande intervenção do governo federal na proteção do
patrimônio em Mato Grosso.
Neste capítulo também será possível observar as disputas entre os entes públicos e o
entrave que significou o pedido de impugnação impetrado por moradores da área tombada. Neste
momento também serão discutidos os conceitos de estética vigentes no ideal desses moradores e
comerciantes do Centro Histórico de Cuiabá.

57
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

CAPÍTULO 2

A INVENÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE CUIABÁ:


PROCESSO DE TOMBAMENTO, ESQUECIMENTOS E LITÍGIOS

Fui andando pelas ruelas


Tão aquelas,
Do Porto de Cuiabá.
Tem Histórias... (...)
Tem Cuiabá neste Bairro,
que em Cuiabá Não tem,
tem tanta história importante
que Deus Salve o Porto, amém.
Luciene de Carvalho

2.1 Tombar ou não tombar, eis a questão

Neste segundo capítulo pretende-se estudar as políticas patrimoniais realizadas pelo


IPHAN na cidade de Cuiabá, a partir da década de 1980 até o início da segunda década do século
XXI, de forma a enfocar o processo de tombamento do Centro Histórico de Cuiabá, perpassando
pelos litígios que esta demanda encontrou durante o processo de tombamento, com ênfase nas
tensões e disputas presentes na preservação.
O SPHAN, instituição que mais tarde se tornaria IPHAN, surgiu tendo compromisso
com a construção da identidade nacional e a afirmação do Brasil como uma nação moderna e
detentora de um passado portador de elementos marcantes de arte e cultura universal (valorização
da herança colonial).
Neste sentido, buscamos uma reflexão crítica acerca das políticas de conservação e
preservação do patrimônio material e imaterial de Cuiabá e das resistências dos proprietários dos
imóveis tombados em aceitar a “monumentalidade histórica” que suas edificações abrigariam, o
58
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

que transformaria sua propriedade em bem simbólico da identidade nacional brasileira.


Considerando o tombamento uma regulamentação do Estado que busca a preservação
dos bens materiais, este texto faz uma reflexão acerca da demanda de impugnação impetrada
contra o tombamento do Centro Histórico de Cuiabá, fazendo uma breve análise das motivações
dos proprietários em confronto com a argumentação do órgão de preservação do governo federal
na década de 1980. Trata-se da busca pelo sentido principal deste tombamento, que enfocou os
espaços setecentistas e oitocentistas evidenciados no espaço urbano de Cuiabá, de forma a
demarcar o núcleo inicial da cidade.

2.2 Cuiabá: o processo de transformação em patrimônio cultural nacional

Na cidade de Cuiabá, a solicitação de tombamento se deu em meio a grandes


discussões e embates. A proposta inicial do SPHAN era tombar uma área que pudesse
compreender a formação do espaço constituído no século XVIII e solidificado no século XIX,
depositário de um conjunto de artefatos-edifícios e traçados de ruas compatíveis com a estrutura
inicial do núcleo. Era necessário identificar, documentar e tombar a parte correspondente à
Cuiabá colonial.
Diante dessa demanda, foi identificado e delimitado no entorno da Igreja do Rosário e
São Benedito, nas ruas originárias – “rua de cima, rua do meio e rua de baixo” – e na Praça da
Mandioca o adensamento principal deste conjunto urbanístico com aproximadamente 400
edificações e como espaço de amortização do impacto ao Centro Histórico, para os fins de
tombamento, definiu-se a área de entorno que conta com aproximadamente 600 edificações.
A importância do entorno de um bem tombado influencia diretamente na sua
ambiência, harmonia e visibilidade:

O conceito de visibilidade para fins da preservação legal que se dispensa às


coisas de valor histórico e artístico não se limita à simples percepção ótica.
Determinada obra poderá permitir a visão física, em nada reduzindo, no sentido
material, quanto ao bem tombado. Esse, entretanto, embora continuando
fisicamente visível, poderá vir a ser altamente prejudicado por construção que se
faça em sua vizinhança, quer como resultado da comparação entre as respectivas
dimensões, quer por prejudicar o novo edifício o conjunto paisagístico que

59
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

emoldura tradicionalmente o bem tombado. Não é só isso. A própria diferença de


estilos arquitetônicos, quebrando a harmonia do conjunto imprescindível à obra
de arte integrada no espaço urbano, poderá no sentido legal reduzir a
“visibilidade” da coisa protegida.110

Define-se por meio do Decreto lei n. 25, de 1937, em seu artigo 18, que sem prévia
autorização do SPHAN não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe
impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandado
destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a multa.
Neste sentido, o entorno tem uma função bem definida: permitir a visualização do
bem tombado, de forma a manter a ambiência.
A partir desta limitação imposta em lei, o órgão define, no momento do tombamento,
uma área de entorno que seja capaz de amortizar os impactos à área tombada.

Neste sentido, o entorno do bem tombado conforma sua ambiência, esta-


belece uma área de amortecimento às pressões de crescimento e transfor-
mações das cidades. O conceito de visibilidade somente pode ser entendi-
do de forma ampla, abrangendo não só as hipóteses em que a construção
obstrui ou se impõe à visão do bem tombado, mas também os casos em
que a intervenção não se harmoniza com a visão do monumento no con-
junto e no ambiente onde está inserido.
Portanto, compreende não só a tirada de vista da coisa tombada como
também a afetação de sua ambiência, incluída a paisagem adjacente e tu-
do mais que contraste e afronte a harmonia de suas relações com seu sen-
tido histórico, sua autenticidade construtiva e sua inserção no cenário no
qual está implantado.111

É sabido que nem todas as edificações da área tombada e da área de entorno possuem
relevância arquitetônica. No entanto, por ser um tombamento de espaço urbano, essas edificações
também têm a atenção do órgão de preservação do patrimônio.
Na abertura do processo de tombamento da cidade, Cuiabá constava na solicitação as
regiões do Centro, bem como se demonstrava preocupações com a região do Porto, uma vez que
eram espaços significativos para a história da localidade.

110
LIMA, M. Viana de. Brésil - Renovation et mise em valeur de Ouro Preto, in: MOTTA, Lia e THOMPSON,
Analucia. Entorno dos bens tombados. Programa de Especialização em Patrimônio do IPHAN. Brasília: IPHAN,
2007, p. 22.
111
AMORIM, Carlos e TAVARES, Bruno. Nota técnica n. 02/10 da Superintendência do IPHAN na Bahia. Salva-
dor, IPHAN-BA, 2010.
60
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Esse reafirmar de importância da região central da cidade pode ser percebido em dois
momentos da transformação de Cuiabá em patrimônio cultural nacional pelo SPHAN: a) na
escolha do Centro em detrimento do Porto como objeto tombado; e b) nos embates entre os
proprietários dos imóveis tombados e o SPHAN por meio de pedidos de impugnação.

2.3 A eleição como exclusão – a retirada do Porto como espaço de tombamento

No oficio n. 263/85/FNPM/BSB, que fez o despacho de encaminhamento do dossiê


solicitando o tombamento de duas áreas – Centro Histórico de Cuiabá e a região do Porto,
destaca-se que uma comissão de alto nível, formada por técnicos da Secretaria de Educação e
Planejamento da Prefeitura Municipal de Cuiabá, da Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT), do SPHAN, por meio do escritório técnico, e da Fundação Cultural de Mato Grosso,
que se reuniu periodicamente para propor medidas de proteção ao patrimônio.
De acordo com o ofício da Fundação Nacional Pró-Memória, após inúmeros
encontros, esta comissão chegou a solicitar para as duas áreas distintas – Centro e Porto, um
tombamento provisório no âmbito estadual e municipal pelo prazo de um ano, a fim de que fosse
então possível estancar o processo de destruição destes espaços. O texto segue afirmando que
estes tombamentos provisórios seriam uma forma de conter as destruições em curso enquanto um
dossiê completo acerca destas áreas era elaborado. No entanto, esta solicitação de tombamento
provisório foi negada, segundo o texto, por questões políticas envolvendo os conflitos de
interesses na região.

Recentemente, uma comissão de alto nível, formada por técnicos da Secretaria


de Educação e Planejamento da Cidade de Cuiabá, da Universidade Federal de
Mato Grosso, da SPHAN, através de nosso Escritório Técnico e da Fundação
Cultural de Mato Grosso reuniu-se periodicamente para propor medidas de
proteção para duas áreas distintas: a área central, que corresponde mais ou
menos a essas duas, que agora propomos o tombamento e a área do Porto.
Após inúmeros encontros, essa comissão chegou a solicitar para as duas áreas
distintas (central e Porto) um tombamento provisório a nível estadual e
municipal pelo prazo de um ano, a fim de que fosse assim possível estancar esse
processo de destruição e se conseguisse neste prazo melhor pesquisar e conhecer
a área, e ainda executar seu completo levantamento urbanístico e arquitetônico.
(...)

61
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Os resultados dos trabalhos desta comissão, que já foram acima descritos, por
motivos políticos não foram acatados, voltando-se à estaca zero com os imóveis
centenários sendo ameaçados a cada dia que passa de completa devastação, pela
pressão dos grupos imobiliários.

Ao analisar a revista de n. 43, publicada pela Fundação Nacional Pró-Memória, que


trata da aprovação do tombamento do Centro Histórico de Cuiabá, é possível verificar que o
tombamento foi aprovado por unanimidade pelo conselho consultivo do então SPHAN, no ano de
1988.
A matéria publicada na revista faz menção à importância da aprovação do
tombamento para a preservação da cidade de Cuiabá, considerando ser uma localidade de origem
colonial e preservar elementos desta época. Há uma riqueza cultural de edificações estruturadas
entre os séculos XVIII e XIX. Destaca ainda o êxito do tombamento como resultado do esforço
de uma comissão de técnicos locais e técnicos do SPHAN.
Segundo Lia Motta, o tombamento da cidade de Cuiabá estudado a partir do pedido
de tombamento feito pela Prefeitura de Cuiabá em conjunto com o Governo do Estado, em 1985,
significou uma ampliação do conceito de dimensão arquitetônica e urbanística, pois em meados
da década de 1980 já possuía um Centro Histórico bastante comprometido em sua uniformidade
estilística:

Do século XVIII, época de sua fundação, pouco restava e muitas construções


eram do final do século XIX e do Século XX. Não correspondendo aos padrões
dos sítios tombados tradicionalmente pela instituição, a medida de proteção foi
de difícil compreensão pelos proprietários, o que motivou recurso de donos de
imóveis do Centro Histórico contra o tombamento. (...)
Como argumento foi usada a ideia de cidade como fato histórico.112

Dentre as escolhas dos lugares de memória pela instituição, sem dúvida podemos
observar a presença de conceitos de estética, através das definições do que rememorar, visto que
o que ficou definido como uma identidade da nação era amparado no privilegiamento dos
monumentos local/nacional. No entanto, para Lia Motta,

O IPHAN passa a adotar, assim, ao longo da década de 1980, em mais uma

112
MOTTA, Lia. O patrimônio cultural urbano à luz do diálogo entre história e arquitetura. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Brasília, n. 34, 2012, p. 260.
62
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

frente de trabalho, um conceito para a valorização dos sítios urbanos que rompa
com aqueles historicamente usados, com ênfase na estética e uniformidade
estilística dos imóveis.113

Muito embora o tombamento realizado tardiamente tenha permitido grandes


mudanças na paisagem urbana com uma brusca desconfiguração da estética paisagística
setecentista, ao buscarmos analisar as referências estéticas dentro da cidade de Cuiabá será
possível verificar como a identificação da elite econômica/política alinhava-se sobremaneira com
o Centro da cidade em oposição à região do Porto.
Para Edward Palmer Thompson, a cultura está baseada em costumes reelaborados no
cotidiano. Neste sentido, ele afirma que não existe unidade entre culturas, e nem poderia, em
função de ser a cultura resultado de interesses, permeada por costumes e tradições. É através da
cultura que se cria uma consciência de grupo capaz de se mobilizar em nome de uma causa
única.114
Em seguida, o texto de tombamento relata como foram realizados os estudos pela
comissão de técnicos, bem como a necessidade de se preservar a princípio duas áreas englobadas
por um único entorno: a região do Porto e a área do Centro Histórico. A composição de um único
entorno era justificada a partir de mapas anexados, tendo por eixo a Rua Barão de Melgaço.
Na descrição do ambiente citadino feita no processo de tombamento, Cuiabá teria
1722 como data da origem do seu espaço urbano, dividido em dois principais núcleos: um a leste,
na margem esquerda do córrego da Prainha – ali se encontra o espaço que o processo de
tombamento entende como o espaço de produção, referindo-se às jazidas auríferas aluvionais; a
oeste, à margem direita do Córrego – instalou-se o espaço, denominado como do Poder,
constituído pela Igreja do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, que depois se denominou Matriz, pela
Cadeia, pela Casa do Governador e do capitão-general, numa região que compreende a Igreja
Matriz até o Largo da Mandioca.
A sudoeste constituiu-se um pequeno núcleo, chamado de Porto Geral, ponto de
chegada e partida das monções do sul. A região do Porto Geral era ligada ao aglomerado da
Prainha pelo “Caminho do Porto”, percurso este que só foi adensado e incorporado em meados

113
Idem, p. 261.
114
Cf. THOMPSON, Edward Palmer. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII, in: Costumes em
comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 150-202.
63
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

do século XIX.

Figura 11 - Esboço doa grupamento inicial da Vila Bom Jesus de Cuiabá. Processo de tombamento
n. 1180-T-85. Fonte: IPHAN-MT

Figura 12 – Detalhamento da consolidação do aglomerado urbano. Processo de tombamento 1180-


T-85. Fonte: IPHAN-MT.Fonte: IPHAN-MT.

Ao núcleo urbano do Arraial de Cuiabá foi atribuído o título de Vila Real do Senhor
Bom Jesus de Cuiabá, em 1727. Nessa data, o poder metropolitano se instalou com terminais
burocráticos e arrecadadores, além do Senado da Câmara.
Cabe destacar que, no processo de escolha do que preservar ou não, está presente a
marca da estética como uniformidade – meio de constituição de uma ideologia dominante,
64
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

traduzida nas políticas públicas de patrimônio. O bem (a ser) tombado transforma-se em sujeito,
traduzindo a unidade e a integridade de uma obra de arte.
A noção de patrimônio cultural, atrelada ao projeto de Estado-nação burguês, serve
como chave de interpretação da realidade pretérita que se pretende transformar em monumento –
produzindo por intermédio da educação dos sentidos a necessidade e o desejo de pertencimento a
uma determinada identidade nacional. É algo particular, fruto de um projeto de uma elite branca e
católica que se quer hegemônica, mas precisa tornar-se universal.
As noções de cultura, que se agregam ao debate sobre o patrimônio histórico,
evidenciam a relevância deste conceito – conforme as palavras de Terry Eagleton – como
“categoria-chave para a análise e a compreensão da sociedade capitalista tardia”.115
Por intermédio da pedra e da cal das construções, no reconhecimento de suas marcas
do tempo, de uma identidade que se quer revelar ou não acerca de um determinado passado,
discursos foram produzidos para a constituição de uma unidade e integridade em meio aos
diferentes grupos da sociedade. Ao adotarem o discurso do “estético”, os agentes culturais
envolvidos com o processo de tombamento do Centro e Porto de Cuiabá elegeram a face antiga
do sujeito (a cidade) que deveria ser lembrada e preservada. Na cidade, transformada em corpo
vivo, eram identificadas as marcas do tempo, ou seja, do passado.116
Neste jogo de interesses, acerca de que memória que se desejava perpetuar, uma
leitura bastante interessante pode ser feita por intermédio de relatos de que na região hoje
tombada pelo IPHAN foi estabelecida a residência do primeiro governador e capitão-general
Rolim de Moura Tavares – uma casa situada no Largo da Mandioca, na região do espaço de
poder, no lado imediatamente oposto à região da Igreja Matriz.
A instalação do capitão-general nesta área da cidade estimulou o adensamento das
“ruas de cima e de baixo”, bem como a criação da “rua do meio”. A ligação com o Porto Geral
originariamente era feita pela “rua de baixo”.
O espaço urbano, de poder e produção, bem definido no eixo sul-norte do córrego da
Prainha, fez com que essa região se firmasse como o lócus do poder institucional e eclesiástico

115
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, p. 7.
116
Para Terry Eagleton, “a Estética nasceu como um discurso sobre o corpo. [...] A distinção que o termo ‘estética’
perfaz inicialmente, em meados do século XVIII, não é aquela entre ‘arte’ e ‘vida’, mas entre o material e o imateri-
al: entre coisas e pensamentos, sensações e ideias, entre o que está ligado a nossa vida como seres criados opondo-se
ao que leva uma espécie de existência sombria nos recessos da mente”. Idem, p. 17.
65
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

dentro da Vila.
Segundo a revista do SPHAN, por questões técnicas a proposta da regional do órgão
incluiu apenas a área central e seu entorno, contrariando expectativas de estudiosos da história da
cidade de Cuiabá, no entanto confirmando o propósito de se preservar o espaço das elites.
Para Elizabeth Madureira Siqueira, o Porto

Constitui-se em um dos pontos mais antigos de Cuiabá, Após a descoberta das


Lavras do Sutil (1722), ocorreu uma expressiva migração dos primeiros povoa-
dores, fixados inicialmente e arranchados na região do Coxipó-Mirim, para as
margens do córrego da Prainha. O porto de Cuiabá passou a ser o destino e a
partida dos Bandeirantes Paulistas. Monções embarcadas no Rio Tietê (SP) e
que chegavam ao Cuiabá tinham no porto deste último rio e que leva o nome,
ponto final da longa viagem.117

Com o nome de Distrito de São Gonçalo Pedro 2°, o Porto foi espaço de residência de
antigos monçoeiros. Lugar de pensões e hotéis, mas também de “honradas” famílias que
ocuparam a avenida XV de Novembro.
De acordo com Júlio De Lamonica, conforme relato do viajante Hércules Florence,

Às margens do rio Cuiabá, logo acima do caminho para a cidade, em torno do


local de desembarque das monções, havia um pequeno agrupamento de
habitações de pescadores, enquanto outro se formou próximo à Igreja de São
Gonçalo, que havia sido transferida em 1781 de São Gonçalo Velho para essa
região do Porto. Vivia no Porto uma parcela pobre e discriminada da sociedade
local, sobretudo índios Guanás e negros livres.118

Um espaço de grande relevância na região do Porto é o antigo Mercado do Peixe.


Segundo Elizabeth Madureira Siqueira, esse lugar foi, por mais de dois séculos, local onde se
comprava peixe fresco, pimenta, verduras e legumes. A região do Porto de Cuiabá, na leitura da
autora, sempre representou as camadas mais populares da cidade, por ser tradicionalmente região
de comércio. O Porto viu progredir o comércio após a abertura da navegação do rio Paraguai.119
E ainda hoje, mesmo com as transformações e reordenamento do espaço urbano, representa um
espaço de cultura popular.

117
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Cuiabá: de Vila a Metrópole nascente. Cuiabá: Arquivo Público do Estado de
Mato Grosso, Entrelinhas, 2005, p. 155.
118
FREIRE, Júlio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura. Cuiabá: EdUFMT, 1997, p. 19.
119
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Cuiabá: de Vila a Metrópole nascente – op. cit., p. 172.
66
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Conforme a historiadora, os estabelecimentos comerciais do Porto eram responsáveis


pelo movimento de importação e exportação e mantinham vigorosa movimentação, oferecendo
uma infinidade de mercadorias oriundas da Europa, e se responsabilizavam pela exportação da
produção extrativista regional.120
Conhecido como o berço da “cuiabania”, o Porto guarda as mais ricas tradições da
cultura popular, lendas do universo ribeirinho e os modos de fazer e viver da população local. Ao
longo do tempo, coube à comunidade nativa do Porto a preservação da riqueza cultural da capital
de Mato Grosso.
Apesar da relevância desta região da capital e de existir um aparente interesse de
tombamento por parte do SPHAN, a nota histórica que compõe o projeto de tombamento em
voga trata apenas do Centro Histórico de Cuiabá, o antigo 1º Distrito da Sé. O referido texto faz
inúmeras referências ao desenvolvimento urbano da Vila Real do Bom Jesus, destacando a todo o
momento a importância do Centro como um espaço de poder originário. Tal posição acaba por
pautar a importância da manutenção dos espaços de memória ainda intactos daquela região.
A nota segue fazendo um breve lamento acerca dos espaços de poder que deveriam
integrar o tombamento, mas que foram destruídos como, por exemplo, o Largo da Matriz e o
Largo do Palácio, que se perderam na década de 1950 quando os casarões contíguos foram
demolidos. Não foge neste relato de perdas a demolição da Matriz121, a destruição do antigo
Jardim Alencastro e de todo o casario circundante.122
Não obstante as discussões sobre estética pautarem a escolha dos lugares de memória
a serem preservados, é possível observar através de “Planos da Vila de Cuyabá” que as
demarcações do Centro Histórico atual se deram principalmente por este perímetro conter as
edificações e traçados da origem de formação no núcleo urbano, conforme as imagens reunidas

120
Idem, p. 166.
121
Cf. BRANDÃO, Ludmila de Lima. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como prática social.
Cuiabá: EdUFMT, 1997; LACERDA, Leilla Borges de. Catedral do Senhor Bom Jesus de Cuiabá: um olhar sobre
sua demolição. Cuiabá: KCM Editora, 2005.
122
A consciência preservacionista e, consequentemente, os primeiros trabalhos sobre a problemática do patrimônio
em Mato Grosso – especialmente em Cuiabá, segundo Claudio Quoos Conte e Marcus Vinicius De Lamonica Freire,
foi resultado do intenso processo de modernização da cidade a partir do final dos anos 1950, com a descaracterização
e as demolições de antigos prédios no que seria o Centro Histórico: “são demolidos o Palácio Alencastro, a Delegacia
Fiscal e casario vizinho, dando lugar ao novo Palácio, atual sede da Prefeitura de Cuiabá. Em 1968, é demolida a
antiga Catedral que, apesar de todas as reformas, ainda era a mesma igreja de 1740. Essa demolição constitui até hoje
um trauma na sociedade cuiabana e, sempre que se discute o assunto, acirradas polêmicas se levantam”. CONTE,
Claudio Quoos e FREIRE, Marcus Vinicius De Lamonica. Centro Histórico de Cuiabá: Patrimônio do Brasil.
Cuiabá: Entrelinhas, 2005, p. 25.
67
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

por Nestor Goulart Reis123 a seguir demonstram.

Figura 13 - “Plano da Villa do Cuyabá na Cap. ta do Matto Groço”. Original manuscrito pertencente à
Casa Ínsua, Castendo, Portugal. 1777.

123
REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do
Estado; FAPESP, 2000, p. 251-258.
68
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Figura 14 - Planta do Cuyabá. Original do Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. ca. 1770-1780.

Figura 15 - Plano do Cuyabá. Original do Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro [1770-1775].

O centro da cidade de Cuiabá, hoje representado apenas por um recorte da vila

69
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

original, refere-se a um espaço onde ainda é possível encontrar traçado e calhas originais de rua,
travessas e becos, homogeneidade predominante de escalas, maior densidade de espécimes
arquitetônicos expressivos, historicidade da área e de seus equipamentos.
Os casarios do Centro Histórico foram construídos em terra crua, conforme observam
Claudio Conte e Marcus De Lamonica:

São técnicas de construção que os portugueses e ibéricos de uma forma geral


herdaram dos povos árabes e norte africanos, sob domínio dos quais estiveram
por vários séculos. Como o próprio nome diz, é uma técnica em que o barro não
é queimado, ou seja, transformado em tijolo.124

Segundo esses autores, há muita polêmica na classificação dos estilos de época


encontrados na arquitetura do Centro Histórico de Cuiabá, pois existem períodos intermediários.
Até porque em algumas épocas o estilo pode ser entendido como meramente decorativo e em
outros períodos, como o colonial, por exemplo, o estilo da construção definia a estrutura da
edificação.
O estilo colonial é a base da arquitetura encontrada na área tombada, e na tipologia
colonial é possível verificar inúmeras releituras e modificações feitas nesta base, com a inserção
de elementos morfológicos e ornamentações inseridas de forma a classificar determinadas
edificações como neoclássica, eclética, neocolonial art-déco.
Na tipologia colonial há a predominância da simetria entre os cheios (paredes) e os
vazios (portas e janelas). Os batentes, portas e janelas são de madeira e possuem função
estrutural. Os telhados, apesar de possuírem diferentes tipos de caídas, são compostos de telha
cerâmica, do tipo capa e bica. A predominância destas telhas se estende para toda a área tombada,
incluindo a região de entorno.
A imagem que segue compõe o processo de tombamento e representa uma edificação
de tipologia colonial singela, mas apresentando um sobrado imponente principalmente por
possuir dois pavimentos.

124
CONTE Claudio Quoos e FREIRE, Marcus Vinícius De Lamonica. Centro Histórico de Cuiabá: Patrimônio do
Brasil – op. cit., p. 44.
70
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Figura 7 - Casarão colonial situado à Rua Pedro Celestino, no Centro Histórico de


Cuiabá. Processo de tombamento de Cuiabá n. 1880-T-85. Fonte: IPHAN-MT

O texto que embasou o tombamento do Centro Histórico observa ainda que as ruas
mais antigas da cidade estão localizadas na região central e que, portanto, marcam a história da
71
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

cidade colonial desde as edificações da elite até as pequeninas casas das camadas subalternas.
Apesar desta composição mista, é possível observar que há – no pano de fundo – a ênfase nos
lugares marcados pela elite econômica e política local/nacional.
De acordo com Márcia Bomfim de Arruda, o estudo histórico que respaldou o
perímetro do tombamento,

a cargo de um historiador mato-grossense, representante do SPHAN em Cuiabá,


baseou-se na história produzida pelo Instituto Histórico de Mato Grosso. Os
aspectos políticos e econômicos da colonização portuguesa apareciam nesse
estudo como determinantes na conformação urbana da cidade. Uma história
centrada na ação portuguesa, em que os aspectos políticos e econômicos
sobressaíam mais do que os aspectos culturais e sociais, fundamentou o
tombamento.
Salientando o aspecto físico de Cuiabá (o SPHAN privilegiava o aspecto
arquitetônico em seus tombamentos), o estudo estabelecia 1722 como ano “da
constituição propriamente dita do espaço urbano”, que teria nascido com a
mineração no início do século XVIII. Nenhuma referência era feita à população
que ali vivia anterior aos portugueses e às relações que foram estabelecidas entre
eles. A cidade aparece como resultado da ação portuguesa e o enfoque recai
sobre a materialidade das coisas, em detrimento das pessoas que ali viviam e
suas relações.125

Conforme o denso projeto de tombamento se desenvolve, é possível identificar que as


configurações acerca da importância da região do Porto se diluem e os mapas que a princípio
indicavam esta região passam a enfocar apenas o centro da cidade. Para a exclusão da região do
Porto não foi dado nenhum tipo de explicação nos autos. Esse é um fato que suscita algumas
hipóteses, pois a importância desta região em nenhum momento é descartada.
Para Maria Cecília Londres Fonseca,

Sendo a preservação de monumentos uma atividade necessariamente seletiva,


uma constante opção entre o conservar e o destruir (ativo ou passivo, no sentido
de não impedir a destruição), ela será exercida por determinados agentes, e
segundo determinados critérios, que orientam e também legitimam o processo de
atribuição de valores – e, consequentemente a preservação. É exatamente nesse
processo – que tem uma dimensão explícita, regulamentada, como, no caso do
Brasil, a inscrição de bens no Livro Tombo, e outra implícita, e muitas vezes até
deliberadamente ocultada, que remete às relações de poder entre os agentes
envolvidos na preservação – que manifestam os conflitos de interesse em jogo

125
ARRUDA, Márcia Bomfim de. As engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda metade do
século XX. Cuiabá: EdUFMT; Carlini & Caniato, 2010, p. 87.
72
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

na prática aparentemente tranquila da preservação de bens culturais em nome do


interesse público.126

No oficio do SPHAN de escolha do que deve ser preservado é possível evidenciar – a


partir das proposições de Pierre Nora, como é tecida a produção de “lugares de memória”. Para o
autor,

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe memória


espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os aniversários,
organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres, estabelecer contratos,
porque estas operações não são naturais.127

De acordo com Pierre Nora, os espaços de memória têm origem na reafirmação da


história que esteve presente em um determinado espaço: rememorar eventos, reconhecer certo
lugar passa pela reafirmação de sua importância. Há locais de memória porque não há mais meios
de memória.128
O advento do tombamento seria mais uma das inúmeras formas de invenção de
lugares de memória. Portanto, ao tempo da modernização a partir dos anos 1970, com o
esvaziamento da região central da cidade, o coração político de Mato Grosso foi deslocado para
um novo espaço. O Centro Político Administrativo (CPA) passou a operar em outra região de
Cuiabá, fazendo com que a parte central da cidade tivesse que se adaptar a esta nova realidade, ou
seja, toda a memória política do Estado foi deslocada do centro.129
A mudança do centro político foi peça fundamental para a proposição de um novo
ordenamento da cidade no contexto de sua modernização nesse período. Em virtude da criação do
Centro Político Administrativo, trazendo uma imagem nova para o poder no corpo da capital do
Estado, emergiu a necessidade de se buscar um novo papel e lugar para o velho centro. 130 Para

126
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil – op. cit., p. 53.
127
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez.
1993, p. 13.
128
Idem, p. 7.
129
Cf. ARRUDA, Márcia Bomfim de. As engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda meta-
de do século XX – op. cit., 2010.
130
De acordo com Sônia Regina Romancini, “devido aos problemas no trânsito do centro da cidade que dificultavam
o acesso das pessoas aos serviços públicos, a solução para este problema que afetava a administração estadual foi a
criação do Centro Político Administrativo (CPA), na Avenida. Historiador Rubens de Mendonça, conhecida popu-
larmente como a Avenida do CPA, na década de 1970, com a transferência dos órgãos públicos para esta área, e
73
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

preencher o esvaziamento deste espaço – planta originária da cidade – houve o processo de sua
transformação em monumento histórico de Cuiabá.

O centro perde, com a descentralização (o Palácio do Governo, Secretarias e


outros órgãos da administração pública foram transferidos para o Centro Político
e Administrativo), a sua característica de espaço de poder, transformando-se em
um espaço cultural com calçadões, a Fundação Cultural de Mato Grosso e a
Casa da Cultura.131

Essa migração do espaço de poder para a região do CPA encontra respaldo nas
palavras de Júlio De Lamonica:

A expansão dos serviços públicos tornou insuficientes as instalações do palácio


do governo. As Secretarias e várias autarquias do Governo estadual começaram
a se espalhar por vários edifícios particulares no centro, inadequados para tal
funcionamento, automatizando a máquina burocrática, tornando-a cada vez mais
emperrada, cara e de difícil controle. Os altos aluguéis promoviam verdadeiras
sangrias dos cofres públicos. A inadequação das instalações, além do
desconforto, tornavam mais lentos os fluxos dos processos burocráticos (...)
O equacionamento dos diversos problemas que afetavam a administração
estadual apontou para o projeto de criação e implantação do Centro Político
Administrativo – CPA, como solução globalizante de maior viabilidade.132

Já a região do Porto, nas décadas de 1970 e 1980, continuava a todo vapor, suas
atividades de origem por lá permaneciam. O espaço urbano daquela região não estava com sua
história ameaçada, pois tanto sua vocação econômica inicial quanto sua ocupação urbana pouco
se alterara.
Apesar de toda a história que a região do Porto abriga, é possível argumentar que este
espaço tenha tido seu valor nacional contestado por ter uma representatividade especificamente
local. No entanto, a hipótese mais bem desenhada para a recusa vem do fato de ser um espaço
urbano essencialmente popular, pois nos idos da década de 1980, apesar da ampliação do
conceito de patrimônio com a introdução da produção dos esquecidos e excluídos pela história
tradicional, havia a permanência dentro das agências de preservação e conservação de uma visão

mantendo terrenos reservados para futuras construções. Desta forma ampliou-se o perímetro urbano, incluindo no-
vas áreas através do processo de descentralização”. Cf. ROMANCINI, Sônia Regina. Cuiabá: paisagens e espaços da
memória. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005. (Coleção Tibanaré, v. 6).
131
FREIRE, Júlio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura – op. cit., p 145-146.
132
Idem, p. 153.
74
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

elitista da cultura.
Neste sentido, Maria Cecília Londres Fonseca observa que

para alguns ideólogos do patrimônio (...) o “sentido de patrimônio” é indissociá-


vel da ideia de culto, de sagrado, que só os grandes monumentos podem provo-
car. (...) valores como monumentalidade, singularidade e excepcionalidade são
considerados por eles como fundamentais para despertar o sentido de patrimô-
nio.133

Posturas elitistas como as descritas pela autora podem ter sido decisivas nas escolhas
de preservação apenas do Centro Histórico em detrimento da região do Porto na cidade de
Cuiabá. Tal hipótese se sustenta tendo em vista que as transformações nas políticas de patrimônio
no Brasil datam dos anos 1980, especificamente no contexto da Constituinte de 1988.
A Carta Magna, forjada no contexto democrático, trouxe sobre a questão uma nova
redação, ampliando a noção de patrimônio histórico e artístico para patrimônio cultural, conforme
seu artigo 216:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e


imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira.134

Essa mudança seria resultado das inovações das abordagens, temáticas e objetos no
campo da história, antropologia e arquitetura sobre a temática das lutas de minorias em busca de
reconhecimento político e social, de questionamento das narrativas oficiais de cunho elitista e
excludente e de imperativos nacionais que traziam para a agenda de discussão temáticas
relacionadas ao meio ambiente e às disputas identitárias que emergiam no mundo
contemporâneo.
Para Néstor Canclini, o patrimônio não inclui apenas herança de cada povo,

as expressões ‘mortas’ de sua cultura – sítios arqueológicos, arquitetura colonial,


antigos objetos em desuso –, mas também os bens culturais, visíveis e invisíveis:
novos artefatos, línguas, conhecimentos, documentação e comunicação do que

133
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil – op. cit., p. 70-71.
134
Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 216.
75
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

se considera apropriado através das indústrias culturais.135

Com as alterações propostas pela Constituição e as convenções internacionais – as


chamadas Cartas Patrimoniais, o SPHAN passou a assumir novas atribuições e desafios na sua
gestão e funcionamento e nas suas ações, lidando com uma noção de patrimônio muito mais
ampla do que a definida pelos seus fundadores.
Nesse sentido, o processo de tombamento de Cuiabá encontra-se no entroncamento,
nas permanências e transformações de uma política de preservação e conservação patrimonial em
processo de revisão.
No entanto, colocar em prática as ações de preservação exige que seja pensado o que
Terry Eagleton explicita no momento em que parafraseia a obra Émile de Rousseau, na qual o
autor afirma: “o coração só recebe a lei que vem de si mesmo” 136, trazendo à tona que a lei para o
exercício pleno deve ser consentida pela população, na qual prevalece o costume em detrimento
da autoridade.

Das profundezas de uma sombria e tardia autocracia feudal, surgia a visão de


uma ordem universal de sujeitos livres, iguais e autônomos, obedecendo a
nenhuma lei senão a que eles próprios se davam. Esta esfera pública burguesa
quebra decisivamente com o privilégio e particularismo do ancien regime,
instalando a classe média, em imagem se não na realidade, como sujeito
verdadeiramente universal, e compensando, com a grandeza desse sonho, seu
estatuto político subjugado. [...] O sujeito liberado é aquele que se apropriou da
lei como o princípio mesmo de sua autonomia; quebrou as tábuas da lei para
reinscrever a lei na sua própria carne. A obediência à lei torna-se assim
obediência ao seu próprio ser interior.137

Nas sociedades modernas, pós-absolutistas, o poder está associado à estética por meio
da afetividade e do costume, e é vivido de maneira inconsciente, ou seja, naturalizado, e
desrespeitá-lo é desrespeitar a si.

2.4 As resistências ao tombamento do Centro Histórico: os pedidos de impugnação

135
CANCLINI, Néstor García. Patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 23, 1994, p. 95-96.
136
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética – op. cit., p. 22.
137
Idem, p. 21-22.
76
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

A decisão acerca do tombamento teve inúmeras contestações na mídia, o valor


arquitetônico das edificações sem grandes adornos, de características coloniais que prezavam
pela singeleza, causou estranhamento. O traçado tortuoso também não parecia aos olhos da
população em geral como passível de preservação, conforme a abordagem da imprensa.
Os recortes de jornal da década de 1980 não mostram identificação imediata da
população com o espaço urbano do centro da cidade. A ideia de preservar os espaços definidos
como sendo a base da implantação da cidade de Cuiabá, por intermédio da ampliação do
instrumento de preservação para a ordem federal, não parecia agradar.
Preservar significa impor regras, enfrentar os costumes e impor novas maneiras de se
relacionar com o bem tombado, o que afeta o direito à propriedade privada. Neste sentido, Terry
Eagleton reforça, com base em Rousseau, que “o sujeito obedecer a qualquer lei, que não aquela
que ele pessoalmente formulou, não passa de escravidão; ninguém tem o direito de comandar os
outros, e a única lei legítima é do tipo autoconferido.”138
A impugnação do processo de tombamento – adotado como meio de resistência dos
moradores da região, conforme a legislação, deve ser iniciada antes da homologação do
tombamento, no máximo quinze dias após a publicação da notificação de tombamento no Diário
Oficial da União.
Na cidade de Cuiabá um processo bastante substancial acerca da impugnação de
tombamento foi impetrado no ano de 1987. Essas solicitações evidenciam as dificuldades de
compreensão do processo de “monumentalização” da cidade com o tombamento e as formas de
resistência estabelecidas a partir desta imposição legal na vida prática dos moradores que tiveram
seus bens imóveis transformados em bem representativo do patrimônio cultural nacional.139
Na tabela dos pedidos de impugnação ao tombamento do conjunto arquitetônico,
urbanístico e paisagístico da cidade de Cuiabá – processo n. 1.180-T-85, pode-se observar que
dos onze proprietários impugnantes, um morador tentou impugnar por meio de um telegrama,
datado de 14 de novembro de 1987, por considerar tolhido da liberdade de dispor de seus
próprios bens e geri-lo a seu modo. O referido pedido foi indeferido, conforme a Constituição
brasileira, na qual não existe conceito absoluto de propriedade privada e tombamento significa

138
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética – op. cit., p. 25.
139
SPHAN. Processo de Tombamento n. 1.180-T-85, volume I-A.
77
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

apenas limitação administrativa.


Um segundo morador solicitou a impugnação sem apresentar motivos de ordem
administrativa e, portanto, comprometeu a legalidade do ato, sendo indeferido. Os outros onze
moradores que deram entrada no pedido de impugnação usaram um mesmo longo texto
argumentando contra o tombamento e solicitando a sua impugnação, mas basicamente alegavam
o fato de não terem sido notificados pessoalmente e o de suas propriedades não terem sido sede
de fatos históricos.

Nome dos proprietários de imóveis no Centro Histórico que solicitaram a


impugnação

Coronel Octayde (por telegrama)

Hazize Zaque de Albuquerque

Beatriz Augusta Zaque de Jesus

Jeani Martha Boabaid

Miguel Abrão Lotfi

Nivaldo Benedito Muniz

Sonizete das Graças Miranda

Angelina Figueiredo de Carvalho

Evailza Mendes de Carvalho Mendes

Evandita Carvalho Perrot

Antônio de Carvalho

Para fundamentar sua demanda, os moradores alegavam que o item 1 do artigo 9°, do
Decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, afirma que “o Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, que seria necessária a notificação pessoal da autoridade por seu órgão
competente notificará o proprietário na anuir do tombamento”. Segundo os impetrantes, ficaria
78
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

implícito o fato.
Dentro das contrarrazões respondidas pela arquiteta Helena Mendes dos Santos e a
historiadora Márcia Regina Romeiro Chuva, há a argumentação de que o Decreto-lei n. 25, de
1937, não fixa a notificação como devendo ser realizada pessoalmente, o que não caracteriza
abuso de autoridade por parte do órgão responsável.
O pedido de impugnação parte também para o questionamento do mérito do
tombamento, alegando que a motivação do tombamento relacionada no Diário Oficial do Estado
de Mato Grosso, de 1º de outubro de 1987, observa o “valor histórico, arquitetônico e
paisagístico” como pré-condição para a efetivação do processo de tombamento.
Os moradores tentaram, entre muitos motivos, argumentar que não haveria um valor
arquitetônico nos seus respectivos imóveis, uma vez que os mesmos sofreram, de alguma
maneira, reforma de monta e construções recentes. Eles destacavam que mesmo um observador
desavisado e pouco afeito à apreciação da arquitetura colonial brasileira ou de qualquer outro
estilo se surpreenderia com o número diminuto de prédios com algum significado arquitetônico.
Nesse sentido, desafiam os órgãos competentes a encontrar um prédio de fachada ou interior
intacto na região tombada pelo SPHAN.
Os impetrantes lamentavam o tombamento num momento em que, devido ao intenso
comércio desenvolvido na região, os exemplares arquitetônicos mais significativos têm se
perdido para abrigar casas comerciais. Alegavam que a maioria dos imóveis do centro,
excetuando as igrejas, não teria valor arquitetônico nem para Cuiabá, e que, por mais elástico que
fosse o conceito de conjunto arquitetônico, não veem possibilidade de incluí-lo entre aqueles que
merecessem o interesse nacional. Dentre alguns itens apresentados para discutir o mérito do
tombamento do Centro Histórico de Cuiabá destaca-se:

26 - Diz a lenda que, dentro do sítio demarcado pelo Edital (que publicou o
perímetro do tombamento em Diário Oficial) acima referido, teriam tido lugar as
primeiras explorações de garimpo e edificações da vila de mineração que mais
tarde se chamaria Cuiabá, desconhecia a autora desta que tal fato seja tão
relevante a nível nacional para merecer edital de tombamento do SPHAN.

27 - Fácil fica portanto descartar a hipótese de sítio “ vinculado a fato


memorável das histórias do Brasil”(art. 1° do Decreto-Lei n. 25/37)140

140
Idem, p. 173-174.
79
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

As argumentações seguiam no exercício de desqualificar a arquitetura local:

30 - Mesmo ao observador desavisado e pouco afeito à apreciação da arquitetura


colonial brasileira, ou qualquer outro estilo, surpreenderia o número diminuto de
prédios com algum significado arquitetônico, e desafia-se a localização de
qualquer um desses prédios que mantenha sua fachada intacta, pra não dizer seu
interior.141

Para defender a importância da “modernização” da área de comércio da cidade, os


moradores, que buscaram a impugnação do tombamento, argumentavam que as recentes técnicas
de marketing apontavam para a necessidade de trazer o comércio cada vez mais para a rua,
através de uma exposição mais evidente dos produtos, fosse por meio de amplas portas que
permitam o acesso de um grande número de pessoas, fosse pela adoção de grandes vitrines que
expunham de forma atraente, dando visibilidade, ostentando mais a mercadoria, de forma que
nada menos que o aço impedisse a entrada dos consumidores. O texto seguia saudoso do tempo
em que bastava a qualidade do produto para que um estabelecimento tivesse sucesso em suas
vendas.

46 - É sabido que modernas técnicas de marketing apontam para a necessidade


de trazer o comércio cada vez mais para a rua, através de uma exposição mais
óbvia dos produtos, seja através de amplas portas que permitam o fácil acesso de
um grande número de pessoas, seja através de grandes vitrines de vidro, que
exponham de forma atraente os produtos oferecidos; a visibilidade, talvez mais
precisamente a ostensividade da mercadoria, forma necessário ou mesmo
imperiosa à segurança demandando que nada menos do que aço impeça a
entrada nos períodos de repouso.142

Para Edward Palmer Thompson, uma rebelião é o resultado da quebra de um


costume, no caso o tombamento. A legislação estava impondo a partir daquele momento uma
ruptura com o costume de ter irrestrito direito de demolir, modificar e reformar a edificação. O
autor de Costumes em comum exemplifica o pão como sagrado e é possível entender a edificação
como residência, um espaço de santuário, no qual o proprietário é o senhor de suas ações. As
restrições impostas pelo tombamento, aparentemente, significavam um entrave para a sua livre

141
Idem, p. 174.
142
Idem, p. 176.
80
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

utilização.
O país vivia ao longo da segunda metade do século passado um período profícuo de
industrialização e o discurso do moderno estava presente na mídia e nos discursos políticos. A
opinião pública estava com os olhos voltados para a ideia de progresso como princípio e fim.
Nesse sentido, o progresso compreendido como o esteticamente desejado ficaria, sob a ótica
desses moradores, comprometido com o tombamento.
Portanto, quando Edward Thompson propõe uma melhor descrição do termo motim, é
possível entender também no pedido de impugnação do tombamento uma vontade declarada de
não ter seus hábitos alterados.
De acordo com o autor de Costumes em comum,

É possível detectar em quase toda ação da população do século XVIII uma


noção legitimadora. Por noção legitimadora, entendo que os homens e as
mulheres da multidão estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo
direitos e costumes tradicionais.143

A partir da análise da motivação dos motins elaborada por Edward Thompson,


podemos observar o advento do tombamento na cidade de Cuiabá nos anos 1980 e os seus
questionamentos. As crenças defendidas pelos solicitantes da impugnação, em razão das
transformações na estrutura cultural vigente na região do centro, são na verdade a forma
encontrada de resguardar suas crenças de outrora. Para o autor, “as queixas operavam dentro de
um consenso popular a respeito do que eram práticas legítimas e ilegítimas”.144
Para defender o tombamento, o SPHAN fez uma contra argumentação bastante
concisa defendendo que o conhecimento, a recuperação e a preservação de elementos do passado
visavam, além da compreensão do presente, uma ação racional e coerente dos homens.
As autoras da contra argumentação afirmavam basear o tombamento em uma visão
atualizada de história, que propõe pensar as relações sociais considerando que:

O conhecimento, a recuperação e a preservação de elementos produzidos no


passado visam, além da compreensão do presente, uma ação racional e coerente

143
THOMPSON, Edward Palmer. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII, in: Costumes em comum:
estudos sobre a cultura popular tradicional – op. cit., p. 152.
144
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil – op. cit., p. 141.
81
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

do homem, as autoras citam Marc Bloch para dizer que “a ignorância do passado
não se limita a prejudicar o conhecimento do presente, compromete no presente
a própria ação”145.

Helena Mendes dos Santos e Márcia Regina Romeiro Chuva seguiram afirmando
que, para avaliar a proposta de tombamento da cidade de Cuiabá, foram levadas em consideração
as relações sociais e as modalidades de suas mudanças ao longo do tempo, esclarecendo os
mecanismos e as formas de organização das sociedades.
Para tanto, diferenciaram História e fato histórico. O fato seria definido como
fenômeno material, produto de um acontecimento ou de um processo na vida social, localizado
no tempo e no espaço, cabendo ressaltar que nem todos os fatos são históricos; que o que os
diferencia é o tempo da história, que é, em essência, o tempo da mudança, em que um fato torna-
se histórico na medida em que produz consequências no processo social. Portanto, interessa à
História e também à preservação não o fato isolado, descritivo e estanque, mas todo o processo
gerado num tempo e espaço determinados, gerador de consequências e/ou mudanças.
A solicitação de impugnação do tombamento do Centro Histórico de Cuiabá mostra
de que forma a lei por si não representa mudanças, pois, nas palavras de Terry Eagleton, a melhor
forma da lei não deve estar gravada em tábuas de mármore ou bronze, mas no coração dos
cidadãos.
Sobre as leis do coração, o crítico literário apresenta as afirmações abaixo:

Leva à constituição real do Estado, adquire novos poderes a cada dia, quando
outras leis decaem ou desaparecem, restaura-na ou toma seu lugar; mantém um
povo nos caminhos que ele naturalmente deve seguir, e insensivelmente substitui
a autoridade pela força do hábito. Estou falando da moral ou do costume, e,
acima de tudo da opinião pública: um poder desconhecido para os pensadores
políticos, e do qual, no entanto, dependerá o sucesso de todos os outros
campos.146

Interessa, segundo as autoras da contra argumentação, o processo de produção, uso e


transformação do homem sobre a natureza; a obra de uma sociedade que agencia a natureza a sua
volta, o espaço em que vive, conforme seus interesses e necessidades, estando inserida em
determinada estrutura social que a tornou possível. Esclarecer por intermédio da contra

145
SPHAN. Processo de Tombamento n. 1.180-T-85, v. I-A, p. 376.
146
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética – op. cit., p. 22.
82
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

argumentação era uma forma de educar os sentidos e fazer a lei ganhar vida no corpo dos
indivíduos.
Para a referida equipe de agentes culturais do SPHAN, é a partir do conhecimento
desse processo que se daria a construção da história e da cultura de determinada sociedade. Seria,
desse modo, o conhecimento do passado tendo sentido a partir do momento em que o homem do
presente apropriava-se dele como elemento constitutivo de sua própria cultura.
Nessa perspectiva de análise, a constituição de um núcleo urbano poderia ser
encarada como um fato histórico, na medida em que se originaria de relações socioeconômicas e
culturais, e produz consequências.
Portanto, a paisagem urbana, testemunho material do processo de organização
socioespacial determinado historicamente, passou a constituir-se no próprio documento histórico,
cuja análise permitiria recuperar e extrair informações significativas da forma de organização
social, produzida no passado e apropriada pelo homem do presente.
As autoras destacaram que no fato específico de Cuiabá, a formação do núcleo
urbano foi entendida como fato histórico, porque produziu, entre outras consequências, o avanço
da América portuguesa sobre a espanhola, constituindo-se em um polo irradiador para ocupação
do interior e demarcação futura do território brasileiro. Dentro dessa conjuntura, os mecanismos
utilizados pelo homem português para a sua implantação no sítio cuiabano, por intermédio do
domínio da natureza e de seu agenciamento com base nos instrumentais disponíveis à época,
foram elementos fundamentais para o atendimento da formação cultural brasileira, inserindo-se
dessa forma no contexto mais geral da História do Brasil.
Conforme a contra argumentação, a formação cultural brasileira seria caracterizada
pela diversidade, gerada pelas diferentes soluções criadas pelo homem regional em função de
seus interesses culturais particulares, sendo todos esses elementos essenciais para a compreensão
da história do Brasil. Ao longo do texto, utilizaram a noção de cultura levando em conta as
complexas relações entre o que permaneceu e o que mudou, percebendo as continuidades
culturais entre os diferentes sistemas de valores existentes na sociedade moderna, representados
materialmente no espaço a ser preservado.
Esses dados, segundo as autoras, permitiriam identificar em Cuiabá sua “vinculação
com fatos memoráveis da história do Brasil”, como determina o Decreto-lei n. 25, de novembro
de 1937.
83
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Além da argumentação histórica, as responsáveis pela defesa do pedido de


impugnação retomaram questões como a importância do valor paisagístico do Centro Histórico
de Cuiabá, defendendo que a importância estava em sua construção progressiva, ou seja, mesmo
evolutivamente, essas características deveriam ser apreendidas em função de ser um espaço de
testemunho material da organização socioespacial de um núcleo representado por suas
características de conformação e pela tipologia significativa da sua implantação; através dele
poder-se-ia identificar seu processo de produção, uso e transformação.
As pessoas que solicitavam a impugnação o faziam com base num questionamento
estético, resistindo ao rompimento de um ideal de modernidade, de autonomia sobre seu bem.147
Para os moradores do centro, parece legítimo resistir ao tombamento, mesmo havendo leis que
obrigam o contrário. Para Kant, nas palavras de Terry Eagleton,

Há uma espécie de “lei” atuando no juízo estético, mas uma lei inseparável do
caráter específico ou particular do objeto. Assim “a legitimidade sem uma lei”
de Kant é algo paralelo à “autoridade que não é autoridade”.148

No entanto, seguindo o protocolo de defesa do tombamento, ficou descrito pelas


responsáveis pelo documento que existia um espaço de vinculação entre os elementos urbanos
(traçado viário, largura dos logradouros, repartição do uso dos solos), além das edificações. Para
a equipe, estava evidente a representatividade do conjunto em detrimento de edificações isoladas,
formando uma identidade coletiva, sendo este caráter o que determina o seu valor. Só faltava
fazer esta vinculação no coração das pessoas, na sua vida prática.

2.5 “Para não dizer que não falei de flores”: a comunidade entre o material e o imaterial

147
Esse tipo de conflito entre proprietários e o SPHAN não era exclusividade de Cuiabá. Ele faz parte da própria
história das políticas de preservação no Brasil. Para Márcia Chuva, “os proprietários particulares de bens tombados,
de modo geral, interagiam, nas disputas travadas, em posição precária, visto que as negociações tendiam para o “inte-
resse público” se antagonizasse com os “interesses individuais”, tão perseguidos no universo de representações que
se constituíram sob a égide da unidade da nação (...). Essas representações concebiam o Estado como provedor dos
direitos da sociedade, cabendo a ele a responsabilidade pela proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional”.
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimô-
nio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009, p. 305.
148
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética – op. cit., p. 22.
84
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Independente dos motivos que pesaram nas escolhas de preservação do SPHAN, o


fato é que, conforme as palavras de Maria Cecília Londres Fonseca, “para além da pedra e cal”, o
Porto significava na década da solicitação do tombamento mais do que um espaço físico que
deveria ser preservado.
Ele representava também um conjunto de saberes, fazeres e práticas de uma cultura
local de extrema relevância para a história de Cuiabá e de Mato Grosso. Segundo a autora,

A imagem que a expressão “Patrimônio Histórico e Artístico” evoca entre as


pessoas é a de um conjunto de monumentos antigos que devemos preservar, ou
porque constituem obra de arte excepcionais ou por terem sido palco de eventos
marcantes, referidos em História ou eventos marcantes, referidos em documen-
tos e em narrativas de historiadores.
Entretanto é forçoso reconhecer que esta imagem constituída pela política de pa-
trimônio conduzida pelo Estado por mais de sessenta anos está longe de refletir a
diversidade, assim como as tensões e conflitos que caracterizam a produção cul-
tural do Brasil, sobretudo a atual, mas também a do passado.149

Com o ideal de preservação adotado na política de patrimônio na cidade de Cuiabá,


muito da cultura imaterial se perdeu. Diante de tantos fluxos migratórios que o Estado sofreu a
partir dos anos 1970, das transformações da paisagem urbana e precarização e esvaziamento da
região, o tombamento do Porto poderia significar hoje uma maior valorização do modo de viver
local e das práticas ali “resistentes”.150
A sua desvinculação do conjunto tombado dificulta o enfrentamento de ações de
demolição e abandono, especulação imobiliária e intervenções urbanas – sem planejamento – em
nome da mobilidade e do progresso, palavras tão presentes nos discursos políticos em tempos de
obras para a Copa do Mundo de 2014 – em Cuiabá.

149
FONSECA, Maria Cecília Londres Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural, in:
ABREU, Regina e CHAGAS, Mario (orgs.). Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003, p. 56.
150
Para Márcia Bomfim de Arruda, a exclusão do Porto do tombamento teria relação com o fato de a região à época
oferecer condições para expansão econômica. Obviamente o critério arquitetônico foi utilizado para justificar a ex-
clusão da área do Porto. Na leitura da autora, “a preocupação (...) em não contrapor o tombamento ao crescimento da
cidade parece ter sido o critério definidor das dimensões da área tombada. Demonstrava que a questão da preserva-
ção estava estreitamente ligada à do desenvolvimento, que por sua vez estava ligado ao aprofundamento das relações
capitalistas. Mais ainda, que a preservação não devia se “contrapor” ao crescimento da cidade. Dessa afirmação po-
demos perceber que, se o Patrimônio fosse uma questão principal ele não seria visto como aquilo que se contrapõe ao
desenvolvimento. Ao contrário, não seria o crescimento da cidade que estaria se contrapondo ao patrimônio? Pode-
mos supor, então, que não era apenas o Patrimônio enquanto objeto a ser preservado que justificava as práticas de
preservação”. ARRUDA, Márcia Bomfim de. As engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda
metade do século XX – op. cit., p. 90-91.
85
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Há uma rica manifestação cultural com significados próprios que transcendem os


bens materiais, mas que de certa maneira deles dependem, presentes naquela região. A perda das
edificações ao longo da Avenida XV de Novembro e a descaracterização do comércio local têm
relação direta com a falta de reconhecimento dos seus moradores – que muitas vezes se sentem
forçados a abandonar suas casas e buscar construir sua vida em outros bairros da cidade. A má
gestão dessa realidade de abandono implica um risco na salvaguarda de bens imateriais ligados à
cultura ribeirinha, por exemplo.
No início do século XXI a importância da preservação do patrimônio imaterial foi
legitimada por meio do Decreto n. 3.551/2000. Este decreto amplia o conceito de patrimônio,
designando medidas para o registro de saberes, celebrações, formas de expressão e lugares, nos
quais o patrimônio cultural brasileiro de natureza imaterial encontrou proteção.
Ao fazer uma análise do que foi perdido em termos de bens edificados na região do
Porto, talvez se possa refletir acerca da perda do patrimônio imaterial que se esvai com o tempo e
com o descaso dos entes de preservação. Apesar do seu tombamento na esfera estadual e
municipal, o Porto vê seu espaço de memória cada vez com menos símbolos, transformando-se,
como a Itabira de Carlos Drummond de Andrade, em apenas um retrato nas paredes da memória.
O que se viu acontecer no Porto, seguindo as palavras de Ricardo Oriá, é a tradução
do que foi a atuação do SPHAN até os anos 1980 em relação à eleição ou não dos bens imóveis
tombados:

O mais sério é que essa política preservacionista, levada a cabo pelo então
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), desde sua
criação em 1937, deixou um saldo de bens imóveis tombados, referentes aos
setores dominantes da sociedade. Preservaram-se as igrejas barrocas, os fortes
militares, as casas-grandes e os sobrados coloniais. Esqueceram-se, no entanto,
as senzalas, os quilombos, as vilas operárias e os cortiços.
Essa política de preservação que norteou a prática do SPHAN e seus similares
nos estados e municípios objetivava passar aos habitantes do país a ideia de uma
memória unívoca e de um passado homogêneo e de uma História sem conflitos e
contradições sociais.151

Muito embora tenhamos perdido grandes bens culturais com a pouca preservação da
região do Porto, ainda hoje as ruas desta região possuem aspectos culturais latentes. Nesta área da

151
ORIÁ, Ricardo. Memória e ensino de História, in: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (org.). O saber histó-
rico na sala de aula. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 131.
86
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

cidade ainda resistem lojas de artigos religiosos, no entanto não se faz a lavagem do santo na
beira do rio Cuiabá. Não há acesso fácil ao rio.
Para Elizabeth Madureira Siqueira,

No caminho que demandava ao porto era também festejado, com fogueiras,


lavação de santo e muita música, o trio santeiro que simbolizava as festas juninas
– São João, Santo Antônio e São Pedro –, sendo o primeiro mais cultuado. Após
homenagens aos santos protetores, missas e orações na Igreja de São Gonçalo,
tinha início uma animada festa regada a guloseimas regionais, não faltando as
fortes bebidas à base da famosa “Pinga Tamandaré”. Revestidas de espírito
fraterno, dessas festas participavam tanto famílias da elite quanto das camadas
populares.152

Elementos da cultura popular, da imaterialidade contida nesta área, atribuem um


significado particular à região, ficando a cargo da comunidade da beira do rio preservar lendas,
mitos e características do linguajar cuiabano.

2.6 O patrimônio histórico “estetizado”

Ao se realizar este tipo de exercício de compreensão de como o passado é apropriado


e representado por intermédio das políticas públicas de patrimônio histórico desenvolvidas pelo
IPHAN em Mato Grosso, não se pode limitar essa tarefa em apenas descrever e justificar o que
deve ser lembrado e registrado como símbolo de uma identidade regional e nacional, mas
devemos entender os interesses, os saberes e as práticas que respaldaram a escolha ou não de uma
igreja, uma festa ou ritual, uma obra de arte ou uma comida como um patrimônio, um bem que
merecerá registro, proteção e valorização.
Além das análises acerca das escolhas, é preciso examinar a origem das resistências
ao tombamento, visto que na cidade de Cuiabá as ações contrárias perduraram alguns anos após a
homologação do tombamento.
No momento em que se verifica que somente uma internalização da lei de
tombamento seria capaz de preservar o patrimônio histórico em função de ser necessária a

152
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Cuiabá: de Vila a Metrópole nascente – op. cit., p. 176.
87
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

apropriação da lei dentro dos costumes e tradições associados a esse espaço urbano, a
importância de um trabalho de educação patrimonial e mobilização junto à opinião pública salta
aos olhos.
Romper com o ideal (e instaurar outro) estético de uma sociedade leva tempo, a
mudança de valores associados ao ideal de beleza aponta significativas dificuldades em função de
hábitos, devoções, sentimentos e afetos – nas palavras de Terry Eagleton, “o poder foi
estetizado”.153
Os desafios da preservação transcendem os discursos do bem a ser preservado, é
preciso pensar formas de conservação, pois a dinâmica da modernização faz suas exigências. É
necessário acomodar os conceitos de preservação, sem fechar os olhos aos desafios diários de
atribuição de sentido aos bens. A necessidade de dar uso aos espaços tombados – a importância
da apropriação dos lugares de memória pela comunidade envolvida – é hoje a maior preocupação
dos organismos públicos de preservação. Para Sônia Rabelo,

A questão da preservação, a cada dia, vem se tornando mais complexa,


envolvendo estudos especializados e reflexões dos quais participam técnicos de
várias áreas. Tradicionalmente, poder-se-ia conceber que o valor cultural de um
prédio, em que estivesse em discussão seu aspecto artístico, envolvesse tão
somente profissionais da área de arquitetura. Hoje, essa visão restrita do bem
cultural acha-se ultrapassada, uma vez que os aspectos da arquitetura, da arte, da
história e de outras áreas do conhecimento especializado, de fato, e para fins de
preservação, devem refletir uma questão maior, que é a da cultura nacional. Por
essa razão é que o trabalho de conceituação do que seja patrimônio cultural
exige a participação de outros técnicos, mormente das áreas relacionadas ao
estudo do conhecimento epistemológico e filosófico, bem como áreas de estudo
de cultura das sociedades, como antropologia, história e demais ciências sociais.
Se o fundamental não é a coisa em si, e sim o seu valor simbólico, é importante
detectar não só a questão objetiva da arquitetura de um prédio, por exemplo, mas
sua inserção como valor cultural para determinado grupo social.154

Um processo de educação patrimonial que facilite o entendimento da importância da


preservação na construção da cidadania faz parte do desafio da preservação, no entanto, é
fundamental entender a educação patrimonial não como uma ciência, na qual vale a quantidade
de informações acumuladas, mais sim um despertar de sentimentos e sentidos capazes de tocar o

153
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética – op. cit., p. 281.
154
RABELO, Sônia. O Estado na preservação dos bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro: IPHAN, 2009, p.
53.
88
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

indivíduo no que ele tem de mais particular: sua cultura.


No próximo capítulo, as atuais políticas do IPHAN para a cidade de Cuiabá
constituíram o mote da apresentação e análise, procurando evidenciar as dinâmicas das ações de
preservação do patrimônio cultural da cidade-monumento com a instalação da Superintendência
do Instituto em Mato Grosso e a inclusão do Centro Histórico da capital do Estado no “PAC
Cidades Históricas”.

89
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

CAPÍTULO 3

UMA CIDADE HISTÓRICA PARA O FUTURO:


OS LUGARES DE MEMÓRIA DE CUIABÁ, A GESTÃO E A E-
DUCAÇÃO PATRIMONIAL

Podem arrasar as casa, mudar o curso das ruas;


as pedras mudam de lugar,
mas como destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas?
Ecléa Bosi

O terceiro capítulo prioriza a segunda grande intervenção pública federal na cidade de


Cuiabá, o “PAC Cidades Históricas”, projeto que redefine as diretrizes políticas de preservação
para os próximos três anos, sem desfocar da trajetória da instituição nas últimas décadas.
Aqui a transformação da cidade em patrimônio é vista como um processo permanente
de idas e vidas, de mudanças, permanências e resistências. O IPHAN faz política a partir e no
meio das diversidades. A história do Centro Histórico de Cuiabá constitui um dos capítulos da
história do próprio IPHAN.
A partir das análises travadas neste capítulo, também podem ser identificados os
atores responsáveis pela preservação do patrimônio cultural com a finalidade de se buscar
definições acerca de demandas de preservação que transcendem o restauro, mas que se definem
por intermédio de uma política de preservação pautada prioritariamente na educação patrimonial.

3.1 E depois do tombamento do Centro Histórico?

90
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Pensar a atuação do governo federal em Cuiabá ao longo das quase três décadas que
se passaram desde o tombamento do Centro Histórico de Cuiabá requer entender um pouco mais
sobre a política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Para Paula Porta,

Durante a última década o Brasil obteve um avanço significativo em sua política


de preservação do patrimônio Cultural. Há um grande dinamismo nesse campo,
que se observa na formulação das diretrizes e instrumentos, assim como na sua
aplicação. Verificam-se conquistas tanto no nível federal como local.155

Sem dúvida a maior conquista no âmbito do patrimônio cultural nas últimas décadas
foi o Decreto n. 3.551/2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que
constituem patrimônio cultural brasileiro. Isso significou uma ampliação no conceito de patrimô-
nio acautelado pelo governo federal.

Muito do que foi formulado nesse período já está implantado na forma de


novo instrumentos de ação, como as ações de registro e a salvaguarda do
patrimônio imaterial. Outras formulações importantes para a eficácia da
política de preservação do patrimônio ainda estão em implantação, como
é o caso do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, dos planos de ação
para as Cidades Históricas (que adotou o nome de PAC Cidades Históri-
cas) e do Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG).156

Após o tombamento do Centro Histórico de Cuiabá, Mato Grosso obteve avanços no


reconhecimento do patrimônio cultural por meio do registro do “Modo de fazer a Viola de Co-
cho”, do “Ritual Indígena Yaokwa” dos índios Enawene Nawe, grupo que se situa ao longo do
rio Preto próximo a Juína, do “Modo de Fazer as Bonecas Karajás”, relacionado à etnia Karajá
que se situa ao longo do rio Araguaia.

155
PORTA, Paula. Política de preservação do patrimônio cultural no Brasil: diretrizes, linhas de ação e resultados:
2000/2010. Brasília: IPHAN/Monumenta, 2012, p. 7.
156
Idem, p. 8.
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O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Também compõe a trajetória de Mato Grosso no reconhecimento do patrimônio cul-


tural o tombamento dos lugares sagrados dos indígenas do Alto Xingu: a gruta do Kamuwaká e a
corredeira do Sagihengu – em 2012, bens que apresentam relevância etnoarqueológica.157
Em 2012 foi realizada a homologação do tombamento do Centro Histórico de Cáce-
res, realizado em 2010. O reconhecimento do conjunto arquitetônico de Cáceres, nas palavras
publicadas pelo portal de notícias Olhar Direto, por Luiz Fernando de Almeida, presidente do
IPHAN à época, é possível entender um pouco mais sobre este tombamento:

“Estamos fazendo um tombamento que, na verdade, não é um tombamen-


to de proteção. É um tombamento para possibilitar um processo de recu-
peração histórico e cultural da cidade. Então, como estratégia, é muito di-
ferente com relação aos procedimentos usuais do patrimônio”.
Para Luiz Fernando de Almeida, “o tombamento de Cáceres é um marco
na estratégia de proteção e conhecimento no processo de definição da
fronteira do Brasil, e, sem dúvida, acrescenta o conjunto das cidades de
Corumbá e Vila Bela da Santíssima Trindade e dos Fortes de Príncipe da
Beira e Coimbra”.158

No entanto, especificamente em Cuiabá, os investimentos na preservação dos bens


tombados no período em tela não foram expressivos, se deram em grande parte por meio do res-
tauro/recuperação das igrejas situadas no perímetro de tombamento ou entorno: 2004 – a recupe-
ração da Igreja Nosso Senhor dos Passos, igreja tombada dentro do conjunto arquitetônico, urba-
nístico e paisagístico de Cuiabá; 2005 – a recuperação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e
Capela de São Benedito, que pertence ao conjunto tombado, mas também foi tombada individu-
almente da década de 1970.
Entre os anos de 2002 até 2010 o IPHAN Nacional executou ações dentro do progra-
ma Monumenta, que segundo informações do site do Ministério da Cultura tinha o seguinte com-
promisso:

157
Para saber mais sobre o patrimônio imaterial em Mato Grosso, cf. a pesquisa Inventário Documental do Patrimô-
nio Imaterial Mato-grossense, coordenada pela Prof.ª Dr.ª Izabela Maria Tamaso, entre 2009 e 2012, financiada pelo
IPHAN.
158
Cáceres é tombada pelo Iphan e é novo patrimônio cultural do Brasil. Olhar Direto. 09/12/2010. Link:
http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=146656 – Acesso em 18/03/2014.
92
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

O Monumenta é o programa de recuperação sustentável do patrimônio


histórico urbano brasileiro tombado pelo IPHAN e sob tutela federal. Tem
por objetivo preservar as áreas urbanas prioritárias do patrimônio históri-
co e artístico urbano sob proteção federal, estimulando sua sustentabilida-
de.159

Dentro das diretrizes deste programa, a intenção era:

Preservar e recuperar o patrimônio histórico e artístico nacional, por meio


do aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão desses bens, aumentando a
utilização econômica, cultural e social das áreas de intervenção. No longo
prazo, o programa pretende conscientizar a sociedade sobre o significado
e a importância do patrimônio nacional.

Apesar de ser uma ação que trabalhou com a ideia tanto de recuperação quanto de
conscientização da sociedade acerca do significado e a importância do patrimônio, Cuiabá não foi
contemplada nesta ação.
Dentro de outro macroprojeto, em 2010 iniciou-se na Superintendência do IPHAN
em Mato Grosso um trabalho de levantamento acerca das necessidades globais da cidade envol-
vendo não somente o seu patrimônio mas também questões urbanísticas, sociais e econômicas
para que por intermédio de um plano estratégico fosse possível desenvolver ações estruturantes
para os espaços históricos.
Em 2013, no dia 20 de agosto, foi anunciado pela presidenta Dilma Rousseff o “PAC
Cidades Históricas”, tendo a cidade de Cuiabá como uma das contempladas com 16 ações elen-
cadas no Diário Oficial da União.160
Cabe mencionar que a delimitação das ações que serão realizadas na capital de Mato
Grosso demandou um estudo complexo que se iniciou em 2010 com a contratação pelo IPHAN
de um profissional que fosse capaz de elaborar um Plano de Ação que possibilitasse um planeja-
mento integrado capaz de definir objetivos, ações e metas para orientar a atuação integrada do
poder público, em suas diferentes instâncias, setor privado e sociedade civil organizada.161

159
Monumenta. Portal do MinC. 26. 09. 2007. Link: http://www2.cultura.gov.br/site/2007/09/26/monumenta/ - A-
cesso em 18/03/2014.
160
Cf. PAC 2. Portal do IPHAN. 2013. Link: http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3702 – Acesso em
20/03/2014.
161
Cf. Plano de Ação para as Cidades Históricas: patrimônio cultural e desenvolvimento social (Construindo o
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural). Portal do IPHAN. 2009. Link:
93
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

No caso de Cuiabá, o plano de ação foi elaborado em conjunto com o município e o


entendimento de planejamento, inicialmente, transcendeu as delimitações do tombamento, consi-
derando a dinâmica urbana como um todo. O que permitiu a inclusão da região do Porto no plano
de ação.
A intenção deste planejamento era de propor soluções capazes de integrar as políticas
públicas que atuam sobre o território em questão; apontar diretrizes estratégicas para o desenvol-
vimento da cidade; mas principalmente definir prioridades, metas, agentes responsáveis e prazos
de forma objetiva e factível.162
O levantamento realizado elencou um rol de ações que foram pactuadas entre gover-
no federal e município através do Acordo de Preservação do Patrimônio Cultura – APPC. Este
acordo, assinado em Cuiabá em meados de 2012 pela Prefeitura Municipal e o IPHAN, significou
o fomento de uma parceria capaz de angariar recursos das mais diversas formas para ações de
revitalização de áreas de interesse histórico. Nesse sentido, sem dúvida a expectativa pela inser-
ção de Cuiabá no “PAC Cidades Históricas” foi a linha de frente deste acordo.163
Para Cuiabá, a assinatura do APPC significou uma ampliação e dinamização das li-
nhas de ação dos diferentes setores vinculados à preservação, o que permitiu um novo olhar da
Prefeitura acerca da área tombada.
A partir do anúncio das obras que seriam contempladas com recurso do “PAC Cida-
des Históricas” a Prefeitura de Cuiabá ficou responsável pela produção dos projetos arquitetônico
e complementares de 16 espaços, entre praças e casarios, e também pela confecção de dois ter-
mos de referência para a contratação de projetos e posteriores obras. Até o final de 2013 os proje-
tos não haviam sido fechados, cabendo adequações conforme orientações do IPHAN. A perspec-
tiva de encerramento das ações do PAC2 seria o final de 2015.

http://portal.IPHAN.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=D4C5EE5FA6FAD066A8A3A9CAC8F74FD0?id=
1194 – Acesso em 20/03/2014.
162
Idem, ibidem.
163
Segundo Cláudia Loureiro e Luiz Amorim, “nas últimas décadas, os centros históricos das grandes cidades latino-
americanas vêm sofrendo um lento mas destrutivo processo de redução de investimentos. O cenário de abandono e
substituição de funções qualificadas por serviços de baixa especialização é evidente, bem como os seus efeitos na
imagem das cidades. O poder público vem investindo em projetos e políticas de requalificação destas áreas centrais
como uma estratégia de manutenção de sua identidade física, mas também como forma de participar do mercado
turístico internacional, opção adequada para motivar o retorno de investimentos privados. No entanto, a grande ex-
pectativa está no envolvimento do capital privado imobiliário para investir nas áreas centrais e no consequente rea-
quecimento da economia local”. LOUREIRO, Cláudia e AMORIM, Luiz. Vestindo a pele do cordeiro: requalifica-
ção versus gentrificação no Recife. Urbana. Campinas, v. 1, n. 1, 2006. Link:
http://www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/artigo1.pdf. – Acesso em 20/03/2014.
94
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

O legado do anúncio do “PAC Cidades Históricas” transcendeu as promessas de in-


vestimentos públicos, pois a partir da divulgação das intervenções foi possível verificar uma mai-
or organização da sociedade civil que vivencia o Centro Histórico da capital de Mato Grosso.
Os moradores e comerciantes do Centro Histórico se uniram para fomentar ações que
fossem ao encontro das ações institucionais, de forma a ampliar as transformações. A articulação
das associações de lojistas e da associação de moradores do Centro resultou, à guisa de ilustração,
na instalação de um posto policial na “rua de baixo” – atual Rua Sete de Setembro. A implanta-
ção desta base foi comemorada por todos os que frequentam esta região, considerando o histórico
de violência e roubos. Tal ação foi vista como uma retomada do espaço do Centro Histórico com
a prestação de serviços de utilidade pública para a população da região.

3.2 Mãos à obra: o “PAC Cidades Históricas” e as definições de competências e responsabi-


lidades entre União, Estados e Municípios

A implantação do “PAC Cidades Históricas” em Cuiabá teve início com uma reunião
em Brasília, em fevereiro de 2012. A partir desta data ficou acordado entre IPHAN e Prefeitura
que a produção de projetos e termo de referência para a contratação de projetos ficaria a cargo do
poder municipal, cabendo ao IPHAN em Mato Grosso analisar esses projetos e termos de refe-
rência de forma a verificar se essas intervenções atendiam à normativa de preservação do Centro
Histórico de Cuiabá.
Uma vez aprovados os projetos de intervenção, ficaria a cargo da Prefeitura a contra-
tação das empresas responsáveis pelas obras de recuperação dos imóveis e áreas públicas.
Até o final de 2013 os projetos ainda não haviam sido aprovados, em uma clara de-
monstração da dificuldade de produzir projetos voltados às áreas de sensibilidade histórica. Os
diálogos constantes entre as duas instituições são parte indissociável para o sucesso desta ação,
no entanto, apesar de as partes se mostrarem interessadas, ainda não existe uma política clara de
estoque de projetos, ou seja, a iniciativa de produção de projetos somente ocorre a partir da dis-
ponibilização do recurso de investimento.

95
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Para intervenções em áreas protegidas pelo tombamento, a produção de projetos em


um curto espaço de tempo pode prejudicar o trabalho final, pois as etapas que prescindem de in-
tervenções em bens desta natureza demandam cuidados predefinidos.
Inicialmente deve ser feito um estudo capaz de contemplar o local sob os aspectos fí-
sico, histórico, artístico, formal e técnico, no intuito de conhecer suas transformações ao longo do
tempo, e principalmente os elementos que fizeram com que esse patrimônio fosse reconhecido. É
necessário um levantamento histórico e documental minucioso que seja capaz de descrever a inte-
ração deste bem com a sociedade que dele se apropria.
Os aspectos técnicos também estão permeados de detalhes que precisam ser observa-
dos, principalmente na cidade de Cuiabá que possui um tombamento arquitetônico e urbanístico e
paisagístico, mas que também se encontra inscrita nos livros de tombo relacionados aos aspectos
históricos e arqueológicos. O centro de Cuiabá encontra-se inscrito em três Livros Tombo.
Dentre os quesitos técnicos que devem ser analisados pelo IPHAN estão questões re-
lacionadas ao estado atual de conservação, bem como os aspectos físicos e ambientais que influ-
enciam a deterioração da edificação ou espaço urbano. Somente por meio de um detalhado mape-
amento de danos é possível verificar as patologias e os agentes que causaram as avarias.164
A construção de um projeto de intervenção em sítio tombado ainda demanda a ade-
quação de um programa de necessidades do imóvel à capacidade de carga da edificação.165
Além dos aspectos peculiares de um projeto de intervenção em bens tombados, há
também escassez de profissionais capacitados para produção de projetos para áreas protegidas, no
entanto também é possível indicar que no caso específico da cidade de Cuiabá, sem dúvida ne-
nhuma a demora na produção dos projetos referentes aos bens tombados se deve ao excesso de
demanda junto à Prefeitura em função da Copa do Mundo, que se será realizada em Cuiabá em
meados de 2014.166

164
O conceito de Capacidade de Carga segundo CECI. Conservar: Olinda boas práticas no casario/Centro de Estu-
dos Avançados da Conservação Integrada; org. Juliana Barreto, Vera Milet. Olinda: CECI, 2010, p. 28.
165
Idem, p. 29. Refere-se aos limites que um ambiente ou uma edificação pode suportar em função da interação entre
as atividades humanas e a base física preexistente, sem perder suas características tipológicas e arquitetônicas essen-
ciais. Está relacionado com a volumetria, as características topográficas e o sistema construtivo. Por exemplo, recor-
rentemente as edificações identificadas como estereótipos não respeitam a capacidade de carga do imóvel ao ultra-
passar seu suporte físico. Outro exemplo é a substituição das técnicas construtivas tradicionais por técnicas contem-
porâneas que eliminam os registros históricos e, consequentemente, o espírito do lugar.
166
Cabe destacar, conforme Maria Cecília Londres Fonseca, que o patrimônio como objeto de uma política pública
não necessariamente significa uma ação coesa do Estado e dos diferentes entes federativos. Tal linha de raciocínio
96
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

3.3 Os litígios com a Prefeitura de Cuiabá

Apesar de as dificuldades em produzir projetos para serem realizados com recursos


federais atrasarem em parte o início da recuperação dos bens tombados, em termos políticos, o
simples fato de as ações de patrimônio poderem contar com a articulação das esferas federal e
municipal significa muito, pois embora os desdobramentos oriundos do APPC e posteriores ações
do “PAC Cidades Histórias” nos levem a entender a Prefeitura de Cuiabá como instituição sensí-
vel às questões de preservação, há no passado desta relação entre Prefeitura de Cuiabá e IPHAN
uma longa trajetória de litígios acerca do tema.167
No final de 1985, ainda na gestão do prefeito Anildo Lima de Barros, houve o primei-
ro tombamento provisório em nível municipal, que assegurou uma área de preservação no centro
e outra na região do Porto, com duração de apenas um ano. Esse tombamento foi renovado na
gestão de Dante de Oliveira, que assumiu a Prefeitura de Cuiabá em 1986. Durante todo esse pe-
ríodo os estudos para um tombamento federal continuaram e no primeiro dia de outubro de 1987
foi aprovado o tombamento provisório em nível federal da região central de Cuiabá.
O prefeito Frederico Campos declarou-se contrário ao tombamento desde o início do
seu mandato e os desmandos da sua gestão na emissão de alvarás deram início a uma série de
demolições à revelia do SPHAN, sendo a mais emblemática a concessão de alvará de destruição
do antigo Hotel Centro América, local hoje ocupado pelas Lojas Riachuelo.

pressupõe “um “Estado em ação”, distinto da imagem de um Estado uno, que se apresenta como identificado à na-
ção, de que garantiria a coesão. Nessa imagem – a do Estado como um organismo que regula os movimentos da
sociedade – Estado, nação e sociedade praticamente se fundem no imaginário social. A ideia de um “estado em ação”
implica, no entanto, a heterogeneidade, a luta de poder e o conflito de interesses, mesmo dentro da burocracia esta-
tal.” FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/IPHAN, 2009, p. 45-46.
167
Segundo Márcia Chuva, os enfrentamentos entre o órgão e os poderes municipais eram remetidos para mediação
das autoridades hierarquicamente superiores no quadro político federal e dos Estados. No contexto do Estado Novo,
por exemplo, diversas vezes “uma reação em cadeia era acionada na hierarquia político-administrativa (...), na qual
as municipalidades tinham bem pouca autonomia”. Para os prefeitos da época – o que no difere muito nos dias atuais
– o conflito com a instituição federal tinha como foco a percepção de que a política de preservação (tombamento)
esbarrava no desejo de “progresso e prosperidade” da cidade. CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da
memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janei-
ro: Ed. UFRJ, 2009, p. 298. No caso de Cuiabá, houve um processo de judicialização entre Prefeitura e União na
homologação do tombamento do Centro Histórico.
97
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Não foram raros os casos de autorização de demolição pela Prefeitura sem a devida
anuência do SPHAN:

Outro Patrimônio é demolido em Cuiabá: Mais uma demolição criminosa


é realizada em Cuiabá. Contrariando a determinação da Secretaria do Pa-
trimônio Histórico e Arquitetônico Nacional (SPHAN), com autorização
da Prefeitura Municipal de Cuiabá, um prédio antigo, localizado na Tra-
vessa João Dias com a Antônio João, foi demolido no último Domingo.168

Os litígios foram muitos durante a gestão de Frederico Campos, que foi até o último
dia de 1992. Apesar das tentativas do prefeito em barrar a homologação do tombamento definiti-
vo, em 4 de novembro de 1992, tal fato se efetivou com base no processo n. 1.180-T-85.169
A notícia repercutiu negativamente, tanto que o jornal O Estado de Mato Grosso de 8
de novembro de 1992 trouxe a seguinte notícia intitulada “Repercussões do tombamento”. Se-
gundo o folhetim, a homologação do tombamento do Centro Histórico de Cuiabá havia pegado a
cidade de surpresa. O prefeito Frederico Campos a considerou “um presente de grego” e transfe-
riu a solução do “problema” para o prefeito Dante de Oliveira, pois “graças a Deus estou sain-
do”.170
Dante de Oliveira – prefeito eleito para o próximo ano – defendeu a definição de uma
política de tombamento com a seguinte frase: “Ai de um povo se não tiver memória. Um povo
sem memória é um povo completamente perdido e desorientado”.171
Nesta mesma matéria, Maria Clara Migliaccio172, então diretora da 18ª sub-regional
do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC) – designação à época para o atual IPHAN –
apontou a importância da decisão por entender que o centro devia ser preservado por refletir a
história da cidade e a malha urbana não permitia verticalizações. De acordo com o jornal, a dire-
tora destacou ser necessária a compatibilização do novo com o histórico, do passado com o pre-
sente.173

168
Diário de Cuiabá. 14/08/1990, p. 10.
169
Diário Oficial da União. Seção I, 06/11/1992.
170
O Estado de Mato Grosso. 08/11/1992, capa do Caderno 2.
171
Idem, ibidem.
172
Servidora de carreira do órgão, atualmente lotada na Superintendência do IPHAN-DF. Tem como formação inici-
al a arquitetura. Doutora em arqueologia desde 2006. Esteve a frente das batalhas pelo tombamento do Centro Histó-
rico de Cuiabá e enfrentou todos os conflitos pela preservação deste espaço na década de 1990.
173
O Estado de Mato Grosso. 08/11/1992, capa do Caderno 2.
98
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Em meio às polêmicas entre o então IBPC e a Prefeitura de Cuiabá, em 25 de novem-


bro de 1992, o então coordenador da 14ª Coordenação Regional/IBPC, o arquiteto José Lemes
Galvão, após traçar um breve histórico sobre a cidade de Cuiabá, fez de forma emocionada uma
declaração:

Certo, tontos de orgulho, mas permita-nos a justa embriaguez da vitória


na qual somos todos ganhadores, ainda que sobrevenham trabalhos e
grandes dificuldades. E não queremos ser intrusos, pois se cuiabania é o
caráter mais telúrico dos que aqui vivem, compõe na verdade o mosaico
da cidadania brasileira, agora com a distinção meritória da inscrição nos
livros de tombo dos monumentos nacionais174.

174
Idem, ibidem..
99
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Com o passar do tempo, aos poucos a Prefeitura foi se mostrando mais sensível à
causa do patrimônio. No final de 2003, por exemplo, foi aprovada a Lei Complementar n.
103/2003, de autoria do Executivo municipal, que regulamentou e delimitou as áreas de interesse
histórico da Capital, ou seja, o município reconheceu a importância de apontar o perímetro de
tombamento federal e entorno como Zona de Interesse Histórico.

Art. 42. Na Zona de Interesse Histórico 1 (ZIH 1) não será permitido o licencia-
mento de atividades e empreendimentos da categoria Alto Impacto.

Parágrafo Único. O licenciamento de atividades e empreendimentos das catego-


rias não especificadas no caput deste artigo fica condicionado à prévia aprova-
ção do órgão responsável pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Art. 43. O Município concederá incentivos fiscais, através de legislação especí-


fica, para os imóveis localizados no conjunto arquitetônico, urbanístico e paisa-
gístico tombado pela União, quando devidamente preservados nas suas caracte-
rísticas arquitetônicas originais.

Art. 44. O Município concederá incentivos fiscais, através de legislação especí-


fica, para empresas estabelecidas no conjunto arquitetônico, urbanístico e paisa-
gístico tombado pela União, que adotarem horário alternativo de funcionamento.

Art. 45. No prazo de 02 (dois) anos, as concessionárias de energia elétrica e tele-


fonia deverão apresentar à Prefeitura o cronograma para substituição da rede aé-
rea por rede subterrânea na Zona de Interesse Histórico 1 (ZIH 1) com prazo
máximo de 03 (três) anos para execução das obras.

Parágrafo Único. Caberá ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano


(CMDU) a análise e aprovação do cronograma das obras citadas no caput deste
artigo.175

175
Lei Complementar n. 103/2003.
100
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Paulatinamente a Prefeitura e o IPHAN se uniram para a preservação do Centro His-


tórico. Durante o governo de Wilson Santos, em 2009, foi assinado entre o IPHAN e o Executivo
municipal um Acordo de Cooperação que tinha por objetivo promover a cooperação mútua entre
as instituições no gerenciamento do Conjunto Arquitetônico Urbanístico e Paisagístico da Cidade
de Cuiabá para que, de forma conjunta e permanente, fossem realizadas ações de fiscalização e
aprimoramento do processo de licenciamento das intervenções afeitas à área tombada pelo I-
PHAN e de Zona de Interesse Histórico pelo município.176

3.4 Os (a)diversos papéis do IPHAN na preservação do patrimônio cultural

Apesar de o trabalho em tela tratar prioritariamente os processos de tombamento vin-


culados à capital de Mato Grosso, bem como os desdobramentos institucionais acerca dos bens
materiais envolvidos, a missão institucional do IPHAN transcende, e muito, a dimensão de reco-
nhecimento do patrimônio material e autorização para obras e reformas em bens culturais tomba-
dos, pois compete a esta instituição o reconhecimento dos bens de natureza imaterial (registro),
apoio e fomento a bens registrados por meio de ações de salvaguarda voltadas para a continuida-
de da transmissão dos saberes, contribuindo de forma sustentável para a independência das tradi-
ções associadas aos bens registrados:

Art. 3° As propostas para registro, acompanhadas de sua documentação técnica,


serão dirigidas ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN, que as submeterá ao Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural.

§ 1° A instrução dos processos de registro será supervisionada pelo IPHAN.177

É competência do órgão a autorização para saída de obra de arte do país e gerencia-


mento do Cadastro Nacional de Negociantes de Antiguidades e Obras de Arte em cumprimento
aos artigos 26 e 27 do Decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937.

176
Termo de Compromisso n. 01/2009.
177
Decreto n. 3551, de 4 de agosto de 2000.
101
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Art. 26. Os negociantes de antiguidades, de obras de arte de qualquer natureza,


de manuscritos e livros antigos ou raros são obrigados a um registro especial no
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cumprindo-lhes outrossim
apresentar semestralmente ao mesmo relações completas das coisas históricas e
artísticas que possuírem.

Art. 27. Sempre que os agentes de leilões tiverem de vender objetos de natureza
idêntica à dos mencionados no artigo anterior, deverão apresentar a respectiva
relação ao órgão competente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional, sob pena de incidirem na multa de cincoenta por cento sôbre o valor dos
objetos vendidos.178

Também incumbe ao IPHAN o cadastro de bens arqueológicos, autorização da saída


de bens arqueológicos do país e o licenciamento cultural – que visa proteger legalmente o patri-
mônio arqueológico, em conformidade à Lei n. 3.924, de 26 de julho de 1961. A autorização para
pesquisas arqueológicas também é uma prerrogativa institucional do IPHAN.

Art 8º O direito de realizar escavações para fins arqueológicos, em terras de do-


mínio público ou particular, constitui-se mediante permissão do Governo da U-
nião, através da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ficando
obrigado a respeitá-lo o proprietário ou possuidor do solo.

Art 9º O pedido de permissão deve ser dirigido à Diretoria do Patrimônio Histó-


rico e Artístico Nacional, acompanhado de indicação exata do local, do vulto e
da duração aproximada dos trabalhos a serem executados, da prova de idoneida-
de técnico-científica e financeira do requerente e do nome do responsável pela
realização dos trabalhos.

Parágrafo único. Estando em condomínio a área em que se localiza a jazida,


sòmente poderá requerer a permissão o administrador ou cabecel, eleito na for-
ma do Código Civil.

Art. 10. A permissão terá por título uma portaria do Ministro da Educação e Cul-
tura, que será transcrita em livro próprio da Diretoria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, e na qual ficarão estabelecidas as condições a serem obser-
vadas ao desenvolvimento das escavações e estudos.179

Também compete ao IPHAN a disponibilização dos arquivos técnicos e documentos


históricos. Contudo, sem sombra de dúvida, o maior desafio que se impõe hoje à instituição é a
Educação Patrimonial.

178
Decreto-Lei n. 25/1937.
179
Lei n. 3.924/1961, de 26 de julho de 1961.
102
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Para Rodrigo Melo Franco, esse era um o meio mais eficaz de assegurar a defesa do
patrimônio:

Em verdade, só há um meio eficaz de assegurar a defesa permanente do


patrimônio de arte e de história do país: é o da educação popular. Ter-se-á
de organizar e manter uma campanha ingente visando a fazer o povo bra-
sileiro compenetrar-se do valor inestimável dos monumentos que ficaram
do passado. Se não se custou muito a persuadir nossos concidadãos de
que o petróleo do país é nosso, incutir-lhes a convicção de que o patrimô-
nio histórico e artístico do Brasil é também deles, ou nosso, será certa-
mente praticável.180

3.5 Tornar visível o patrimônio (o maior desafio)

Muito além da recuperação de bens tombados, o maior desafio institucional do I-


PHAN para os próximos anos é talvez o mesmo de sua criação: dar visibilidade ao patrimônio,
tendo a educação patrimonial com forma de preservação. No início da concepção do SPHAN, a
criação de museus que dimensionassem a importância da preservação do patrimônio configurara-
se como uma espécie de estratégia de educação patrimonial no intuito de tornar visível a dimen-
são mais subjetiva do patrimônio: a identificação.

Ao longo de sua “fase heroica” (1937-1967), é possível afirmar que as i-


niciativas educativas promovidas pelo IPHAN se concentraram na criação
de museus e no incentivo a exposições; no tombamento de coleções e a-
cervos artísticos e documentais, de exemplares da arquitetura religiosa,
civil, militar e no incentivo a publicações técnicas e veiculação de divul-
gação jornalística, com vistas a sensibilizar um público mais amplo sobre
a importância e o valor do acervo resguardado pelo órgão.181

180
Depoimento de Rodrigo Melo Franco, citado por OLIVEIRA, Cléo Alves Pinto. Educação Patrimonial no I-
PHAN. Monografia de Especialização. Brasília, Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), 2011, p. 32.
181
Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Texto de Sônia Rampim Florêncio, Pedro Clerot, Juliana
Bezerra e Rodrigo Ramassote. Brasília: IPHAN/DAF/Cogedip/Ceduc, 2014, p. 6. Link:
http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=4218 – Acesso em 20/03/2014.
103
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Segundo a Cartilha de Educação Patrimonial, formulada pelo IPHAN e direcionada


a apoiar ações dentro do “Mais Educação”182:

os processos educativos devem primar pela construção coletiva e demo-


crática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agen-
tes culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades deten-
toras das referências culturais onde convivem diversas noções de patri-
mônio cultural. 183

Partindo da ideia de que não há meios de se defender o patrimônio sem um duro pro-
cesso de educação, esta parte do capítulo trata da demanda de educação patrimonial que a cidade
de Cuiabá apresenta na atualidade – a despeito de todos os esforços realizados pela instituição
desde o final da década de 1980.

Qualquer que seja a ação implementada ou o projeto proposto, sua execu-


ção supõe o empenho em identificar e fortalecer os vínculos das comuni-
dades com o seu Patrimônio Cultural, incentivando a participação social
em todas as etapas da preservação dos bens. Nesse processo, cabe aos po-
deres públicos exercer o papel de mediador da sociedade civil, contribu-
indo para a criação de canais de interlocução que se valem, em especial,
de mecanismos de escuta e observação.184

A tarefa mais difícil na sensibilização da sociedade com a preservação do patrimônio


reside na falta de identificação, na falta de educação para os diversos significados do patrimônio.

O patrimônio histórico é uma vertente particular da ação desenvolvida pe-


lo poder público para a instituição da memória social. O patrimônio se
destaca dos demais lugares de memória uma vez que o reconhecimento
oficial integra os bens a este conjunto particular, aberto às disputas eco-
nômicas e simbólicas, que o tornam um campo de exercícios de poder.

182
O Programa Mais Educação, instituído pela Portaria Interministerial n. 17/2007 e regulamentado pelo Decreto
7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para induzir a ampliação da jornada escolar e a
organização curricular na perspectiva da Educação Integral. Cf. Portal do MEC. Link: por-
tal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16690&Itemid=1115 – Acesso em 20/03/2014.
183
Educação Patrimonial: Programa Mais Educação. Brasília: IPHAN, s.d., p. 5. Link:
http://portal.IPHAN.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3838 – Acesso em 20/03/2014.
184
Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Texto de Sônia Rampim Florêncio, Pedro Clerot, Juliana
Bezerra e Rodrigo Ramassote – op. cit., p. 21.
104
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Mais que testemunho do passado, o patrimônio é um retrato do presente,


um registro das possibilidades políticas dos diversos grupos sociais, ex-
pressa na apropriação de parte da herança cultural, dos bens que materia-
lizam e documentam sua presença no fazer histórico da sociedade. O pa-
trimônio não é, porém, uma representação de “todos”; este modo de con-
cebê-lo resultou de um momento histórico no qual os bens protegidos pe-
lo Estado representavam uma afirmação da identidade nacional.185

Para a autora, o conceito de representatividade nacional transferiu-se para representa-


tividade social, mas analisando o caso de Cuiabá é possível verificar que, no caso dos bens patri-
monializados por intermédio do tombamento que não representam toda a sociedade, esta precisa
ser envolvida no processo de preservação.186
Por certo, a capital de Mato Grosso, devido ao um processo migratório de destaque
nacional durante todo o século passado, sofre ainda mais para dar sentido ao seu patrimônio.187
Segundo Lylia da Silva Guedes Galetti, apesar dos esforços do Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso (IHGMT), nos anos 1920 e 1930, em buscar dar visibilidade a ele-
mentos da cultura popular mato-grossense, e mesmo esse processo tendo sido reafirmado nas
décadas de 1970 e 1980, não foi possível proceder a uma incorporação simbólica das tradições
locais, firmar uma identidade:

De todo modo, ainda que a dinâmica da história tenha transformado subs-


tancialmente a sociedade mato-grossense e, por conseguinte, as condições
de produção em que emergiu o discurso original, criador da representação
nativa da região, sua força ideológica ainda se mantém como referência
para os cuiabanos autênticos, autodenominados de chapa e cruz. Todavia,
esta força não tem sido suficiente para proceder a uma incorporação sim-
185
RODRIGUES, Marly. De quem é o patrimônio: um olhar sobre a prática preservacionista em São Paulo. Revista
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, n. 24, 1996, p. 195.
186
Ao lidar com as possibilidades de usos e apropriações dos bens culturais do patrimônio histórico, Ricardo Oriá
tece o seguinte comentário sobre a mudança nas demandas sociais de representatividade: “a partir de meados dos
anos [19]70 e por toda a década de [19]80, assistimos à emergência dos movimentos sociais populares, protagoniza-
dos pela mobilização de trabalhadores, mulheres, negros, índios, homossexuais etc., que, até hoje, reivindicam para
si o alcance e o exercício dos direitos de cidadania e a participação política no processo decisório nacional. Esses
movimentos colocam na ordem do dia o interesse pelo “resgate” de sua memória, como instrumento de luta e afirma-
ção de sua identidade étnica e cultural”. ORIÁ, Ricardo. Memória e ensino de História, in: BITTENCOURT, Circe
Maria Fernandes (org.). O saber histórico na sala de aula. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 129.
187
De acordo com Márcia Chuva, “o contexto de nacionalização do Estado brasileiro em que se inseriu a gestão
estatizada de bens simbólicos encetada a partir do SPHAN caracterizou-se pelo projeto em que nacionalizar signifi-
cou, antes de tudo, impingir unidade, impedindo qualquer feição plural na nação”. CHUVA, Márcia Regina Romei-
ro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-
1940) – op. cit., p. 207.
105
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

bólica dos novos mato-grossenses. Os milhares de migrantes que se fixa-


ram definitivamente na região, com exceção de uma pequena parcela,
continuam sendo os paus-rodados, como os denominam os cuiabanos au-
tênticos.188

O próprio tombamento realizado tardiamente, dentro de um conjunto urbano bastante


alterado, conforme descreve Lia Motta, dificultou a identificação da sociedade com os bens:

O Centro Histórico (Cuiabá) já estava bastante comprometido em sua uni-


formidade estilística. Do século XVIII, época de sua fundação, pouco res-
tava, muitas construções do século XIX e do século XX. Não correspon-
dendo aos padrões dos sítios tombados tradicionalmente pela instituição,
a medida de proteção foi de difícil compreensão pelos proprietários, o que
motivou recurso de donos de imóveis do Centro Histórico contra o tom-
bamento.189

Para Paula Porta, não bastam a restauração, a conservação ou a documentação:

um bem é preservado quando tem uma função social e se degrada quando


perde. Reinserir um bem cultural na dinâmica social significa reforçar ou
reestabelecer essa função. (...)
Restabelecer a função social de um bem é, de modo geral, uma tarefa
complexa, tanto mais se esse bem é um Centro Histórico que já não de-
sempenha a função de centro ou está em uma cidade que se esvaziou ao
perder dinâmica econômica. Nem sempre os anseios da comunidade são
convergentes; muitas vezes há interesses conflitantes, exigindo dos gesto-
res da política de preservação o preparo para o exercício de pactuar. Além
disso, em muitos casos é necessário reunir e comprometer instituições fe-
derais, estaduais e municipais ou sociais que têm competências ou pre-
senças no território em questão e das quais depende a eficácia da inter-
venção.190

Diante do exposto, não há dúvida de que pensar ações de preservação no âmbito da


educação patrimonial calcada na identificação e apropriação dos espaços tombados na cidade de
Cuiabá pressupõe discutir ações que sejam capazes de recompor a identificação social dos que
188
GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil: imagens de Mato Grosso no mapa da civilização.
Cuiabá: Entrelinhas: EdUFMT, 2012, p. 368.
189
MOTTA, Lia. O patrimônio cultural urbano brasileiro à luz do diálogo entre história e arquitetura. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, n. 34, 2012, p. 261.
190
PORTA, Paula. Política de preservação do patrimônio cultural no Brasil: diretrizes, linhas de ação e resultados:
2000/2010 – op. cit., p. 18.
106
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

vivem nesse espaço, significa antes de tudo buscar ações de cunho prático, de forma articulada
com a comunidade, para atribuir sentido através do restabelecimento das funções sociais do Cen-
tro Histórico.
Na leitura de Maria Cecília Londres Fonseca, o tombamento não pode ser pensado
apenas no aspecto técnico ou jurídico e nem se pode confundir tombar como preservar. Ela con-
sidera o instituto do tombamento enquanto uma

prática mais significativa da política de preservação federal no Brasil.


Significativa, não só pelo poder de delimitar um universo simbólico espe-
cífico como também por intervir no estatuto da propriedade e no uso do
espaço físico. E significativa, sobretudo, porque constitui um campo em
que se explicitam – e onde se podem apreender – os sentidos da preserva-
ção para os diferentes atores sociais envolvidos.191

Quando as ações do “PAC Cidades Históricas” foram pensadas para a cidade de Cui-
abá, muito além de devolver a beleza, a harmonia estética, o que se priorizou não foi só a possibi-
lidade de devolver à comunidade espaços de convívio como praças, mas também ocupar os pré-
dios públicos e de uso público com atividades de cunho social demandadas prioritariamente pela
comunidade que vivencia o Centro Histórico.
Para isso as ações apoiadas pelo “PAC Cidades Históricas” em Cuiabá têm o perfil de
atender à comunidade, pois se trata da requalificação de todos os espaços públicos ou de uso pú-
blico que pertencem à área tombada e mais um imóvel na área de entorno do tombamento que
quando recuperados significaram uma reocupação do Estado, pois os casarões foram programa-
dos para abrigar dispositivos como posto policial, creche e museus.
Apesar desta estratégia de sensibilização da comunidade, ainda é raro vermos ações
sistemáticas de educação patrimonial voltadas para o Centro Histórico. É possível verificar por
veio desta pesquisa que ações pontuais existiram desde quando se iniciaram as discussões sobre
tombamento provisório de Cuiabá.
Em análise ao arquivo do IPHAN em Mato Grosso, observou-se que a primeira ação
do SPHAN/Pró-Memória, com o intuito de sensibilizar a sociedade cuiabana, foi realizada em
novembro de 1985 conjuntamente com outras instituições públicas no sentido de oferecer um

191
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil – op. cit., p. 181.
107
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

seminário sobre preservação de acervos documentais privados. Segundo o historiador Carlos Al-
berto Rosa, ao Diário de Cuiabá:

Este seminário será o primeiro impulso para a implantação em Mato


Grosso do projeto Pró-Documento da SPHAN/Pró-Memória, objetivando
a abertura de novos canais para a participação dos vários segmentos da
sociedade no resgate de nossa memória social.192

A notícia sobre esse seminário foi amplamente divulgada na mídia impressa, tendo
sido abordada no Jornal do Dia em 2 de novembro de 1985 e no O Estado de Mato Grosso dos
dias 2 e 3 de novembro.
No dia 10 de novembro, depois de finalizado o encontro, o Jornal do Dia tece os se-
guintes comentários em uma matéria intitulada “Para que o país não fique sem memória”:

O primeiro dessa espécie em todo o Centro-Oeste. Assim foi definido o


Seminário Sobre Preservação de Acervos Documentais Privados que se
realizou nos dias 7, 8 e 9.
No que pese essa definição puramente ilustrativa, o encontro tem uma
importância muito grande num contexto cultural onde monumentos, casa-
rões e por conseguinte os documentos se veem ameaçados na capital e pe-
la total falta de consciência histórica de um sem-número de pessoas, entre
as quais se incluem aqueles que pelo poder que têm poderiam até fazer
algo, no caso os políticos.193

Com claros interesses políticos e na intenção de sensibilizar os gestores públicos e a


sociedade civil acerca da necessidade de preservar o patrimônio edificado e os bens móveis –
pois foi no final de 1985 que se instituiu o primeiro tombamento provisório em nível municipal
em Cuiabá, o seminário ao seu final apresentou um balanço positivo, pois foi a primeira grande
ação de educação patrimonial encabeçada pelo Ministério da Cultura na cidade de que se tem
registro, em um claro entendimento de que a preservação transcenderia o tombamento e tangeria
diretamente ações de sensibilização.
A apropriação e atribuição de sentido descritas por Paula Porta demandam a pactua-
ção das diversas esferas de governo, mas, mais do que isso, demandam sustentabilidade.

192
Diário de Cuiabá, 30/11/1985.
193
Jornal do Dia, 10/11/1985, p. 171.
108
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Ter um Centro Histórico sustentável significa que o Estado, em suas três esferas, ofe-
reça condições de ocupação desses espaços, proporcionando segurança pública, linhas de crédito
específicas, capacitação para desenvolvimento de ações de economia que valorizem a preserva-
ção do patrimônio, mas também demanda um entendimento da sociedade civil da importância de
agregar a identidade cultural ao processo de desenvolvimento econômico a partir da revitalização
urbana194.
Ao encontro desta demanda, em 1º de junho de 2012 foi criada a Secretaria de Eco-
nomia Criativa, vinculada ao Ministério da Cultura. No ato de criação desta secretaria ficou esta-
belecido como uma das suas competências o fomento à identificação, criação e desenvolvimento
de polos, cidades e territórios criativos para gerar e potencializar novos empreendimentos, traba-
lho e renda nos setores criativos.
Segundo o Plano Nacional de Cultura, publicado em 2012, com metas para serem al-
cançadas até 2020:

Territórios criativos são bairros, cidades ou regiões que apresentam po-


tenciais culturais criativos capazes de promover o desenvolvimento inte-
gral e sustentável, aliando preservação e promoção de seus valores cultu-
rais e ambientais.
Nos territórios criativos, podem existir diversas atividades ao mesmo
tempo que vão desde indústrias culturais clássicas, como artes visuais,
música e literatura, até outros setores, como propaganda, arquitetura, ar-
queologia e design.195

Apesar de a expressão economia criativa extrapolar o conceito de cultura, uma das li-
nhas de atuação desta modalidade vincula-se a patrimônio material, por meio da valorização de
equipamentos culturais em áreas protegidas.
Transportando tal conceito à realidade do espaço territorial tombado em Cuiabá, é
possível que façamos uma análise acerca das potencialidades da região central no intuito de pen-
sarmos ações de economia criativa de forma a estruturar o comércio existente junto ao Centro

194
Engloba operações destinadas a relançar a vida econômica e social de uma parte da cidade em decadência. Esta
noção, próxima da reabilitação urbana, aplica-se a todas as zonas da cidade sem ou com identidade e características
marcadas.
195
Metas do Plano Nacional de Cultura. Brasília: MinC, 2012, p. 38-39.
109
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Histórico de Cuiabá e permitir a introdução de atividades econômicas que dialoguem com a cul-
tura imaterial presente nas tradições da Grande Cuiabá.
Neste caso, especialmente investimentos desta ordem requerem uma análise sistêmica
e multidisciplinar, pois envolvem dimensões da arquitetura, economia, cultura popular. Requali-
ficação de espaços de interesse histórico, possíveis territórios criativos, quando pensados a partir
da Carta de Lisboa196, demanda que se pense nas pessoas envolvidas no processo de fortaleci-
mento do território:

Artigo 6º A melhoria das condições de vida exige uma atuação que não se
limita à função habitacional, mas, antes, deverá abranger igualmente o re-
forço das atividades culturais e sociais, bem como a dinamização das ati-
vidades econômicas, com relevo especial para o comércio e o artesanato
de proximidade.197

Pensar em ressignificar o uso dos bens patrimonializados, dessacralizar os bens tom-


bados, torná-los acessíveis e economicamente sustentáveis significa atribuir novos sentidos aos
mesmos valores históricos e arquitetônicos, pois diante de novas práticas sociais é inevitável que
a atuação de instituições que pensam a preservação transcenda o entendimento apaixonado e i-
dealizado do patrimônio intocável. Afinal, o patrimônio é ressignificado a cada novo olhar que é
posto sobre ele.
O trabalho de construção do patrimônio reconhecido pelo IPHAN em Cuiabá deman-
dou múltiplos olhares e foi necessário mais de cinquenta anos para que se pudesse de fato verifi-
car uma mudança do olhar político para as distintas dimensões de preservação.
Diante dos desafios postos para o desenvolvimento das potencialidades da área tom-
bada na cidade de Cuiabá e a articulação dos diversos atores políticos, há o alento das boas pers-
pectivas se apresentam no horizonte de expectativa, considerando toda a trajetória de luta por
reconhecimento que este espaço urbano passou nas últimas décadas, as pressões políticas e soci-
ais e as omissões públicas na gestão desta área de suma importância histórica para o Brasil.

196
A Carta de Lisboa, entre outros objetivos, propõe o estabelecimento dos grandes princípios que deverão nortear
as intervenções, bem como dos caminhos para a sua aplicação dentro do conceito de preservação patrimônio cultural
das cidades, na vertente do edificado como do tecido social, que o habita e lhe assegura identidade.
197
Carta de Lisboa sobre a reabilitação urbana integrada. 1º Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana. Lis-
boa, de 21 a 27 de outubro de 1995.
110
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

As políticas públicas estão voltadas diretamente para a construção de um espaço re-


qualificado do ponto de vista da urbanização, mas também na dimensão imaterial da memória do
centro.
A instituição IPHAN, às vésperas de completar 80 anos, amadureceu de tal forma que
suas discussões hoje de fato contemplam a grandiosidade do projeto inicial proposto por Mário
de Andrade: construção da cidadania através da dimensão cultural do patrimônio, permitindo que
as mais diversas realidades participem do desafio de pensar e dimensionar a importância dos bens
patrimonializados nas referências de espaços de memória dos que deles compartilham.
Nesse sentido, para o renomado escritor modernista, a valorização do patrimônio não
estava dissociada da educação: “Não basta ensinar o analfabeto a ler. É preciso dar-lhe contempo-
raneamente o elemento em que possa exercer a faculdade que adquiriu. Defender o nosso patri-
mônio histórico e artístico é alfabetização”.198
Para Adilson José de Aviz, o trabalho de Educação Patrimonial perpassa aspectos
psíquicos, de construção social dos indivíduos e, portanto, demandam uma análise voltada para
os sujeitos, de forma a interagir com os detentores em sua dimensão simbólica:

Os valores de um Patrimônio Cultural podem estar velados ou desqualifi-


cados por qualquer ideologia, mas quem pode direcionar tais valores co-
mo significativos ou não é o sujeito de direito, essa pessoa que pela razão
da consciência consegue identificar-se. Nesse sentido, podemos destacar
as estratégias e planos envolvendo a Educação Patrimonial.
Impossível seria a apropriação da Cultura sem a História, sem a Educação
e sem os processos de significação sob essa égide. Nesse sentido, não há
como acessar as riquezas Culturais sem o contato direto ou indireto a es-
ses locais ou saberes, ou até mesmo tendo esse acesso, mas sem a ligação
desses significantes aos aspectos subjetivos, isto é, as representações sim-
bólicas apresentadas coletivamente em confronto com aquilo que cada um
significa para si mesmo.199

Antes de uma educação para os monumentos e modos de fazer, há que se pensar em


uma pedagogia do patrimônio que evidencie um olhar sensível para os diferentes tempos e sujei-

198
Frase de Mário de Andrade citada por DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: Hucitec;
Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977, p. 153-154.
199
AVIZ, Adilson José de. O patrimônio cultural do Morro do Amaral no imaginário dos jovens: tensões possíveis.
Dissertação de Mestrado em Patrimônio e Sociedade. Joinville, Universidade da Região de Joinville, 2013, p. 31-32.
111
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

tos presentes nos lugares de memória. Tornar visível aquilo que a modernidade com sua veloci-
dade e apologia do eterno presente tornou invisível.

112
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

PATRIMÔNIO PARA QUEM?

O indivíduo privado do uso desse direito [de cidadania]


é um indivíduo condenado à amnésia social e à anomalia.
Sérgio Paulo Rouanet

O propósito deste trabalho consistiu em apresentar uma visão das políticas de preser-
vação no âmbito do IPHAN em Cuiabá, de forma que seja possível verificar em que momento se
deu a primeira aparição da instituição na capital de Mato Grosso, bem como de que maneira a
sociedade vem percebendo a sua presença.
O trabalho em tela priorizou fazer a leitura dos fatos por meio do olhar dos processos
de tombamento abertos dentro da instituição federal, no intuito de preservar os retábulos da anti-
ga Matriz e da Igreja do Rosário e Capela de São Benedito e também do Centro Histórico de Cui-
abá, incluindo todos os seus desdobramentos e litígios.
Dentro da política de preservação do patrimônio nacional pode ser percebido que na
cidade de Cuiabá o olhar para a preservação do patrimônio edificado se deu somente a partir da
demolição da antiga Matriz em 1968, muito embora o primeiro pedido de tombamento dos retá-
bulos da Igreja Matriz e Igreja do Rosário e Capela de São Benedito tenha acontecido em 1957.
Por meio dos processos e litígios verificados em matérias jornalísticas foi possível
observar que a transformação do espaço urbano no final da década de 1950 até final da década de
1960 foi decisiva para sensibilizar as instituições públicas vinculadas à preservação, bem como a
comunidade detentora do bem, procurando demonstrar a importância do patrimônio cultural edi-
ficado.

113
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Com base na leitura dos processos de tombamento, disponíveis no arquivo da Supe-


rintendência do IPHAN em Mato Grosso e no arquivo central do IPHAN no Rio de Janeiro, foi
possível acessar uma documentação capaz de demonstrar que somente se valorizou a preservação
na capital de Mato Grosso a partir da perda de um dos maiores símbolos da arquitetura sacra se-
tecentista da cidade, restando somente a Igreja do Rosário e Capela de São Benedito com esse
perfil.
Ainda no capítulo 1, por meio de declarações contidas no processo de tombamento n.
553T-57, verificou-se o entendimento que o IPHAN possuía acerca dos bens a serem preserva-
dos, no caso das igrejas em pauta. O IPHAN sugeriu o tombamento da edificação com a finalida-
de de proteger os retábulos e altares das igrejas, pois considerava que a sua arquitetura tinha so-
frido modificações significativas a ponto de não fazer jus a essa proteção.
Dentro destes processos, que tratam exclusivamente dos retábulos das igrejas, é pos-
sível verificar-se as primeiras discussões acerca do tombamento do Centro Histórico de Cuiabá,
de forma a compreender as escolhas dos “lugares de memória” pelo IPHAN, pois no caminhar
deste processo há uma solicitação para que o arquiteto que viesse a Cuiabá e verificasse a condi-
ção real dos retábulos após a demolição da Catedral também depositasse o olhar nas edificações
da Cuiabá setecentista.
O capítulo 2 abordou os litígios no âmbito do tombamento do Centro Histórico de
Cuiabá, na busca de compreender as escolhas da instituição, bem como a intencionalidade deste
tombamento. O Centro Histórico de Cuiabá, protegido desde o final da década de 1980, exigiu
um posicionamento institucional bastante polêmico, pois diante da necessidade de se preservar
duas regiões com potencialidade histórica, a área central da cidade, núcleo originário, e a região
do Porto, berço das tradições populares locais, o IPHAN priorizou somente o primeiro, que cor-
respondia à região de povoamento inicial da cidade.
Ao realizar este tipo de exercício de compreensão de como o passado é apropriado e
representado por intermédio das políticas públicas de patrimônio histórico desenvolvidas pelo
IPHAN em Mato Grosso, não se pode limitar nossa tarefa em apenas descrever e justificar o que
deve ser lembrado e registrado como símbolo de uma identidade regional e nacional, mas se deve
entender os interesses, os saberes e as práticas que respaldaram a escolha ou não de uma igreja,
uma festa ou ritual, uma obra de arte ou uma comida como um patrimônio, um bem que merece-
ria registro, proteção e valorização.
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O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

Além das análises acerca das escolhas, era preciso examinar a origem das resistências
ao tombamento, visto que na cidade de Cuiabá as ações contrárias perduraram alguns anos após a
homologação do tombamento do Centro Histórico.
No momento em que se verifica que somente uma internalização da lei de tombamen-
to seria capaz de preservar o patrimônio histórico, em função de ser necessária a apropriação da
lei dentro dos costumes e tradições associados a esse espaço urbano, a importância de um traba-
lho focado na educação patrimonial e na mobilização junto à opinião pública salta aos olhos.
Romper com o ideal estético de uma sociedade leva tempo, a mudança de valores as-
sociados ao ideal de beleza aponta significativas dificuldades em função de hábitos, devoções,
sentimentos e de afetos, nas palavras de Terry Eagleton, “o poder foi estetizado”.
O terceiro capítulo deste trabalho abordou o olhar “sensível” do governo federal para
a preservação do patrimônio na cidade de Cuiabá, com ações desenvolvidas por meio do “PAC
Cidades Históricas”. O capítulo dedicou especial atenção às políticas de preservação aos lugares
já eleitos como patrimônio, de forma a discutir as perspectivas de preservação do patrimônio cul-
tural em Mato Grosso, tendo como ação emergencial e decisiva a educação patrimonial.
Entender o patrimônio cultural como um campo de inúmeros interesses que deman-
dam articulações entre diversas instituições e atores com a missão de maximizar as suas potencia-
lidades, recuperando o equilíbrio de representatividade – de forma a legitimar e socializar os bens
reconhecidos – é um desafio a ser superado, no momento histórico em que o IPHAN assume o
papel de mediar ações de preservação junto às instituições públicas e à sociedade civil.
No caso do Centro Histórico de Cuiabá, o estabelecimento de vínculo com outras ins-
tituições tem se formalizado ao longo das últimas duas décadas, favorecendo o processo de pre-
servação com o enriquecimento das discussões e ações de preservação por meio de políticas pú-
blicas oriundas de diferentes atores políticos.
Diante dos múltiplos desafios propostos para a preservação, este trabalho situa-se
principalmente na apropriação das referências locais como forma de superar os desafios da pre-
servação, pois as articulações serão sempre infinitas e as demandas intermináveis, competindo
aos responsáveis pela preservação um olhar mais apurado, de forma a verificar as soluções pro-
postas para os desafios que se apresentam.
Ressignificar, dessacralizar, tornar acessível e sustentável significa atribuir novos
sentidos aos mesmos valores históricos e arquitetônicos, pois diante de novas práticas sociais é
115
O IPHAN e a invenção dos lugares de memória de Cuiabá...

inevitável que a atuação de instituições que pensam a preservação transcenda o entendimento


apaixonado do patrimônio intocável. Afinal, o patrimônio está sendo ressignificado a cada novo
olhar que é posto sobre ele. É um exercício permanente de luta e reconhecimento pelo direito à
memória.
E qual é a importância da memória nesse jogo identitário? Eis a resposta lapidar de
Ricardo Oriá pedindo compromisso e responsabilidade:

Ora, é a memória dos habitantes que faz com que eles percebam, na fisio-
nomia da cidade, sua própria história de vida, suas experiências sociais e
lutas cotidianas. A memória é, pois, imprescindível na medida em que es-
clarece sobre o vínculo entre a sucessão de gerações e o tempo histórico
que as acompanha. Sem isso, a população urbana não tem condições de
compreender a história de sua cidade, como seu espaço urbano foi produ-
zido pelos homens através dos tempos, nem a origem do processo que a
caracterizou. Enfim, sem a memória não se pode situar na própria cidade,
pois perde-se o elo afetivo que propicia a relação habitante-cidade, im-
possibilitando ao morador de se reconhecer enquanto cidadão de direitos
e deveres e sujeito da história.
Essa perda de referenciais históricos, pautados na memória da cidade, nos
dá a estranha sensação de que somos “estrangeiros” em nossa própria ca-
sa. Sem a memória, não encontraremos mais os ícones, símbolos e lem-
branças que nos unem à cidade e, assim, nos sentiremos deslocados e con-
fusos.200

O trabalho de construção do patrimônio reconhecido pelo IPHAN em Cuiabá tem


demandado múltiplos olhares e foram necessários mais de cinquenta anos para que se pudesse de
fato verificar uma mudança do olhar político para as distintas dimensões de preservação, mas sem
dúvida há sim uma nova forma de visualizar o patrimônio, pois a partir de políticas públicas o
patrimônio é revisto, reinterpretado e dado a ver.

200
ORIÁ, Ricardo. Memória e ensino de História, in: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (org.). O saber histó-
rico na sala de aula. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 139.
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