herdeiros de Saturno
Saturno é o planeta da revolução mais lenta, considerado o planeta da melancolia, também de todas
as infelicidades e da morte. Paracelso afirma que a constelação de Júpiter e de Saturno seria responsável
pela chegada da peste negra (LAMBOTTE, 2000, p. 23).
Graduado em Letras com habilitação em Português e Literatura pela Faculdade de São Bernardo
do Campo (1975), mestrado em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (2006)
e doutorado em História da Arte pela Universidade de São Paulo (2011). Atualmente é pesquisador
da Universidade de São Paulo e chefe da Divisão Técnico-científica de Acervo do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo.
10 | Revista Confluências Culturais
O
filme Melancholia (2011), de Lars von Trier, remete às reações diversas de duas
irmãs perante o impacto de um planeta com a Terra, decretando o fim da
existência. A iminência da morte é recebida por Justine (a noiva, doente e
deprimida) com serenidade, ao passo que para Claire (mãe e esposa) a morte
inevitável desmancha suas “certezas” familiares. Carregado de referências
culturais, o filme leva à reflexão sobre a expressão da melancolia, condição inerente ao
humano. Evoca, simultaneamente, a presença do sentimento em muitos momentos da
história da arte e desperta para a indagação: por que manifestações artísticas remotas,
clássicas ou contemporâneas têm buscado expressar esse “mal-estar”?
A tradição dos estudos sobre a melancolia tem como marco o Problema XXX, 1 de
Aristóteles (no qual os gênios teriam uma predisposição ao sentimento). Passa pelas ideias
de Galeno (nas quais se configura em doença do corpo e da alma) e recebe variadas
interpretações de diversos outros pensadores da Antiguidade. Torna-se uma questão discutida
particularmente nos períodos de crise da cultura ocidental, como por exemplo durante a
Idade Média, transformando-se em acédia, uma afeição da alma, uma disposição do espírito
e do corpo que atinge principalmente os monges, conduzindo à inatividade e à perda da fé
na salvação. No Renascimento, a melancolia é considerada uma doença “bem-vinda”, uma
experiência que enriquece a alma e pode despertar a imaginação criativa.
Na história da arte e da literatura, imagens literárias que expressam tal sentimento
surgem nas obras renascentistas, como nos escritos de Cervantes ou Shakespeare. O artista
renascentista Albrecht Dürer, em sua gravura Melancolia I (1514), trata da “melancolia
imaginativa” (própria de artistas, arquitetos e artesãos) em oposição à “melancolia racional”
(típica de médicos, cientistas e políticos) e, ainda, à “melancolia mental” (aspecto da
personalidade de estudiosos de teologia e segredos divinos) (BERLINCK, 2008, p. 29 e
segs.).
No reconhecido estudo de Saxl e Panofsky, Dürer “Melancolia I”, os autores examinam
iconograficamente a gravura e referem-se ao texto de Agrippa, De la philosophie occulte,
como orientador da obra; eles chamam a atenção para o fato de a gravura trazer em seu
título o número I, reforçando a descrição de Agrippa de três níveis da melancolia. Isso
porque Melancolia I está visivelmente dedicada às artes manuais. Contudo outros autores
questionam: onde estão Melancolia II e III? Logo depois de Melancolia I, Dürer pinta São
Jerônimo em seu estudo. Saxl e Panofsky julgam essa obra um contraponto e um contradito
a Melancolia I. Para os autores, São Jerônimo em seu estudo seria a Melancolia III, ou a
inspiração intelectual daquele que conhece os segredos divinos. Dürer dissera que as duas
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A melancolia, o anjo e os herdeiros de Saturno | 11
Fonte: www.albrecht-durer.org/
Figura 2 – Albrecht Dürer, São Jerônimo em seu estudo, gravura (31 x 26 cm), 1514. Alemanha
Fonte: www.albrecht-durer.org/
Figura 3 – Albrecht Dürer, O cavaleiro, a morte e o diabo, gravura (31 x 26 cm), 1513, Museum
Boijmans van Beuningen. Holanda
Fonte: www.albrecht-durer.org/
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A melancolia, o anjo e os herdeiros de Saturno | 13
A esfera pequena, no canto inferior da gravura, à esquerda, será marca de perfeição, tal
como o possível arco-íris em que a palavra melancolia se inscreve também pode significar uma
transformação positiva e luminosa (PANOFSKY, 1964). Quase tão destacado quanto o anjo, está,
sempre do lado esquerdo, um poliedro encostado a uma escada que tem por trás um anjo menor,
um putto, semiadormecido. Walter Benjamin chama a atenção para a pedra, ou ainda o poliedro
que seria um cubo, desenhado de modo peculiar para que não se tenha, desde logo, a noção do
equilíbrio das faces. Isso faz todo o sentido: os alquimistas falam da pedra cúbica, e da pedra
polida, quando desejam referir-se à perfeição que é necessário atingir (BENJAMIN, 1985).
Na gravura, a alma está adormecida, e o mesmo sinal é dado pelo cão enrolado que está
dormindo aos pés do anjo (BENJAMIN, 1985). O cão adormecido, fiel companheiro do artista
em muitas das gravuras com referências alquímicas conhecidas, é outra alusão à melancolia. O
organismo canino, no período, está ligado à figura do baço. Na época, cães com face melancólica
seriam os melhores: um cão alegre e amistoso não seria confiável para a guarda da propriedade.
No sentido metafórico, a figura do cão negro é remetida à memória. Como o cão, a memória é
um fiel acompanhante do homem. Memória às vezes sombria, como algo evidenciado pela própria
cor escura do animal, corresponde à obsessão renascentista de evocar, lembrar. O melancólico
lembra, porém o que recorda é triste. O cão adormecido representa a memória desligada, imersa
em profundo sono (PANOFSKY, 1964). O mar no horizonte da gravura relembra a inclinação
dos melancólicos para as longas viagens, remetendo à transitoriedade do mundo perante a inércia
do humano.
O anjo traz chaves em sua cintura. Para o artista tais “chaves” são indispensáveis, pois
todo o processo é cifrado, é secreto e não é dado a qualquer um (PANOFSKY, 1964). No chão,
uma bolsa. Não por acaso, nos desenhos preparatórios da gravura, Dürer escreve que as chaves
significam poder, e a bolsa, riqueza. Metáforas: “quem tem chaves pode abrir portas, inclusive as
do céu”; “a bolsa remete a uma característica tradicionalmente atribuída aos melancólicos, avareza”
(PANOFSKY, 1964). Deve-se mencionar, ainda, que Saturno é frequentemente representado com
bolsa e chaves; a divindade é vista como responsável pelo processo de cunhagem de moedas. A
profusão de objetos na obra de Dürer é relevante para o presente estudo – e, como veremos mais
adiante, também na produção de De Chirico os objetos têm grande peso e importância.
Em Dürer, os objetos são os utilizados cotidianamente, em vários ofícios, na ciência: balança,
ampulheta, sineta, martelo, serrote, pregos. Aparentemente são ferramentas que não estão ali para
serem usadas; ao contrário, os elementos sugerem a imobilidade, expressa em ponto culminante
nas imagens do anjo e do cão (PANOFSKY, 1964). A ampulheta mostra o tempo congelado: os
dois compartimentos contêm a mesma quantidade de areia. Há ainda uma tábua numérica,
uma clara alusão à geometria, na época valorizada como verdadeira fonte do conhecimento,
excluindo-se a visão teórica e enfatizando-se os aspectos práticos. A tábua numérica apresenta-
se ao lado de instrumentos humildes como o martelo e o serrote, emprestando à geometria um
caráter essencialmente humano (PANOFSKY, 1964). Benjamin afirma que a transição entre o
melancólico e o mundo se faz por intermédio das coisas, não das pessoas. Acumular – riqueza,
roupas, obras de arte, propriedades – é o imperativo desse período, mesmo que depois os objetos
fiquem sem utilidade, como acontece na gravura (BENJAMIN, 1985).
A gravura de Dürer é alegórica, o que não deixa de ser apropriado – tratando-se de
melancolia, como se percebe, alegorias não são raras. O anjo ou a mulher de Melancolia I poderia
representar, para alguns autores, a peste negra que assolou a Europa na época e aproximou os
sentimentos de morte e dor para os melancólicos. Nesse caso, a melancolia é interpretada como
uma espécie de “psicose da peste”. Aos 34 anos de idade, Dürer vive a peste em Nuremberg e
expressa em suas gravuras as experiências vividas. A Melancolia poderia ser o que autores chamam
de “fantasia”, que, apesar de ser versada no decifrar dos símbolos, não apaga a iconografia
própria à genialidade melancólica do período.
“[...] todos os atributos da melancolia, até a própria melancolia representada por essa figura feminina
alada de rosto de sombra, referir-se-iam à personificação da Peste, como uma hidra monstruosa cujos
contornos se teriam enfim precisado, mas que não se ousaria, entretanto, olhar de frente” (LAMBOTTE,
2000, p. 20).
Fonte: www.artchive.com/artchive/M/michelangelo.html
Ao completar o sentido alegórico, o anjo é apresentado com o rosto na sombra, olhar perdido
ao longe e a cabeça apoiada numa das mãos, em posição semelhante ao Pensador de Michelangelo
– na Melancolia I e em diversas outras obras desenhadas e talhadas por Dürer, há referências
à obra-prima de Michelangelo. Também nessa direção, o pequeno putto, que lê uma inscrição
segurando um sextante nas mãos, representaria o “gênio da história”, que tenta classificar os
acontecimentos em ordem cronológica, ou então o “gênio da astrologia”, que se dedica à previsão
do mundo futuro (LAMBOTTE, 2000, p. 23). Assinala-se aqui que fazer da melancolia uma
alegoria é não mais considerá-la como um humor passageiro, submetido à existência humana,
mas atribuí-la às qualidades de uma divindade é índice de um projeto estético construído sobre
os processos da melancolia, que visa submeter os elementos do meio a uma arte da composição
(LAMBOTTE, 2000).
Ao considerar as três gravuras designadas por Dürer como Meisterstiche (O cavaleiro, a
morte e o diabo, 1513, São Jerônimo em seu estudo, 1514, e Melancolia I, 1514), pode-se notar que
elas encerram, entre outros símbolos, o crânio humano, a ampulheta, o cão (além do leão de São
Jerônimo), animais fantásticos e signos cabalísticos (LAMBOTTE, 2000, p. 19). De igual formato,
elas mergulham no claro-escuro oriundo da segunda viagem de Dürer à Veneza e permitem
a divisão da luz em espaços variados (LAMBOTTE, 2000). A presença da morte, o inexorável
escoamento do tempo e a centralidade das personagens (o Cavaleiro, São Jerônimo e a Melancolia)
definem o conjunto de gravuras. O conjunto expressa a “face negra” da melancolia, na tradição
antiga que relembra o gênio da morte que cerca o humano. Ao retomar as interpretações de
Panofsky, o Cavaleiro representaria a vida do cristão no mundo material da ação e da decisão;
São Jerônimo, o santo no mundo espiritual da contemplação sagrada; e a Melancolia, o gênio
secular presente no mundo racional e imaginativo das ciências e das artes (PANOFSKY, 1964).
Contudo a “elevação intelectual”, contida na alegoria de Melancolia I, apresenta dissonâncias
inerentes ao contexto renascentista. Como diz Panofsky (1964), “a teoria e a prática não se
“Gravuras Master”.
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Figura 5 – Candido Portinari, Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes, lápis sobre papel (37 x
24,6 cm), 1956, Museus Castro y Maia. Rio de Janeiro, Brasil
A nave dos insensatos, de Hieronymus Bosch (Paris, Louvre), é uma sátira à corrupção da sociedade e
do clero, com referências ao folclore e à literatura. O motivo da barca dos loucos é corrente na casa de
Flandres de “1400”. A barca é alegoria que surge nos desfiles carnavalescos de Brabante e dá nome a
uma confraria que coloca na berlinda as pessoas poderosas da localidade. Entre as influências literárias
existentes na obra de Bosch está o poema satírico de Sebastian Brant Narrativas. Porém a suprema
exaltação do tema se encontra no Elogio da loucura, de Erasmo (1509).
“Bem metaforizar é contemplar o semelhante, escreve Aristóteles na Poética (1459 a7)” (PIGEAU,
2009, p. 136).
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Jean-Antoine Watteau, no século XVIII, surge para todos os seus biógrafos como um
espírito melancólico. A interpretação de sua produção como frívola é algo superficial que
não leva em consideração seu temperamento instável, cerebral e meditativo (FAROULT,
2005, p. 274 e segs.). A “doce melancolia”, preconizada por Watteau, torna-se um conceito
discutido por pensadores franceses, tal como Diderot, e encontra na obra de Joseph-Marie
Vien sua expressão: a mulher serena e meditativa. Contudo, no Iluminismo, a atração pelo
temperamento melancólico é considerada aspecto negativo. Para o “homem racional” a busca
da felicidade não passa por esse sentimento; pelo contrário, a melancolia é algo que precisa
ser domado.
É por intermédio do Romantismo, no século XIX, que a melancolia retorna às discussões
estéticas. O interesse do homem pela natureza, pelo exótico e pelo selvagem revigora a tradição
aristotélica. Nessa perspectiva, as poéticas de Arnold Böcklin e Max Klinger unem elementos
míticos à beleza e à tristeza. O sentir-se melancólico torna-se atributo para a aquisição de
conhecimento, isso porque a autorreflexão proporcionada pelo sentimento levaria às novas
percepções do mundo. As fontes românticas inspiram diretamente os primeiros exercícios
estéticos de Giorgio De Chirico, em meados do século XX.
De Chirico assimila o sentimento melancólico como elemento constitutivo de sua
produção artística. Na pintura metafísica, o artista desempenha a função de um autor que,
ao narrar uma trama enigmática, desvela a sátira embutida no “desejo da cultura ocidental de
tudo saber e conhecer” (BARBOSA, 2006). Em outros trabalhos, a melancolia é representada
pela figura de Ariadne ou pelas luzes e sombras que cercam seus cenários entre ruínas e
máquinas, entre símbolos da Antiguidade e da modernidade.
Figura 6 – Giorgio De Chirico, Melancolia, óleo sobre tela (79 x 63,5 cm), 1912. Coleção particular,
Londres, Inglaterra
Giorgio De Chirico estuda em Atenas. Segue para Munique em 1905, tendo recebido nessa época
influências do romantismo de Böcklin, do simbolismo de Klinger e da filosofia de Nietzsche e
Schopenhauer. De Chirico alcança grande projeção nas correntes artísticas vigentes, contribuindo
decisivamente para o surrealismo, proposto por Breton em 1924. Mais tarde, rompe com o modernismo
e pesquisa técnicas de pintura renascentista (BARBOSA, 2006, p. 32 e segs.).
REFERÊNCIAS
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
AJZENBERG, Elza (Org.). Dom Quixote Portinari. São Paulo: MAC USP, 2004.
BARBOSA, Paulo Roberto Amaral. Giorgio De Chirico no acervo MAC USP. Dissertação
(Mestrado)–Programa Interunidades Estética e História da Arte, Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
BERLINCK, Luciana Chauí. Melancolia – rastros de dor e perda. São Paulo: Humanitas,
2008.
PANOFSKY, Erwin. Saturn and melancholy. Ed. por H. W. Janson. Londres: Hadcover,
1964.
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SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
Sites consultados:
www.albrecht-durer.org/
www.artchive.com/artchive/M/michelangelo.html