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A melancolia, o anjo e os

herdeiros de Saturno

The melancholy, the angel and


the heirs of Saturn

La melancolía, el ángel y los


herederos de Saturno
Paulo Roberto Amaral Barbosa

Recebido em: 29/11/2011


Aceito para publicação em: 9/5/2012

Resumo: O presente estudo revisa a tradição da melancolia na história da arte, do


período medieval (quando a melancolia é considerada acédia) ao início do período
romântico, passando pelo Renascimento (ocasião na qual o sentimento é considerado
característica dos gênios). A análise de Panofsky sobre as gravuras máster de Albrecht
Dürer colabora para as diversas distinções e graus de melancolia ligados às ocupações
e às metáforas artísticas.
Palavras-chave: melancolia; Albrecht Dürer; história da arte.


Saturno é o planeta da revolução mais lenta, considerado o planeta da melancolia, também de todas
as infelicidades e da morte. Paracelso afirma que a constelação de Júpiter e de Saturno seria responsável
pela chegada da peste negra (LAMBOTTE, 2000, p. 23).

Graduado em Letras com habilitação em Português e Literatura pela Faculdade de São Bernardo
do Campo (1975), mestrado em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (2006)
e doutorado em História da Arte pela Universidade de São Paulo (2011). Atualmente é pesquisador
da Universidade de São Paulo e chefe da Divisão Técnico-científica de Acervo do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo.
10 | Revista Confluências Culturais

Abstract: The present study reviews the tradition of melancholy in art history. From the


medieval period (when melancholy is considered apathy), until the beginning of the
Romantic period through the Renaissance , the time in which the feeling is considered as
characteristic of genius. The Panofsky analysis on the master engravings of Albrecht
Dürer collaborates for the various distinctions and degrees of melancholy linked to
occupations and artistic metaphors.
Keywords: melancholy; Albrecht Dürer; History of Art.

Resumen: El presente estudio analiza la tradición de la melancolía en la historia del


arte, desde la época medieval (cuando la melancolía es considerada acedia), hasta el
comienzo de la época romántica a través del Renacimiento, momento en el que el
sentimiento se considera característica del genio. El análisis de Panofsky sobre los
grabados maestros de Albrecht Dürer colaboran para las distinciones y variados grados de
la melancolía relacionados con las ocupaciones y las metáforas artísticas.
Palabras clave: melancolía; Albrecht Dürer; historia del arte.

O
filme Melancholia (2011), de Lars von Trier, remete às reações diversas de duas
irmãs perante o impacto de um planeta com a Terra, decretando o fim da
existência. A iminência da morte é recebida por Justine (a noiva, doente e
deprimida) com serenidade, ao passo que para Claire (mãe e esposa) a morte
inevitável desmancha suas “certezas” familiares. Carregado de referências
culturais, o filme leva à reflexão sobre a expressão da melancolia, condição inerente ao
humano. Evoca, simultaneamente, a presença do sentimento em muitos momentos da
história da arte e desperta para a indagação: por que manifestações artísticas remotas,
clássicas ou contemporâneas têm buscado expressar esse “mal-estar”?
A tradição dos estudos sobre a melancolia tem como marco o Problema XXX, 1 de
Aristóteles (no qual os gênios teriam uma predisposição ao sentimento). Passa pelas ideias
de Galeno (nas quais se configura em doença do corpo e da alma) e recebe variadas
interpretações de diversos outros pensadores da Antiguidade. Torna-se uma questão discutida
particularmente nos períodos de crise da cultura ocidental, como por exemplo durante a
Idade Média, transformando-se em acédia, uma afeição da alma, uma disposição do espírito
e do corpo que atinge principalmente os monges, conduzindo à inatividade e à perda da fé
na salvação. No Renascimento, a melancolia é considerada uma doença “bem-vinda”, uma
experiência que enriquece a alma e pode despertar a imaginação criativa.
Na história da arte e da literatura, imagens literárias que expressam tal sentimento
surgem nas obras renascentistas, como nos escritos de Cervantes ou Shakespeare. O artista
renascentista Albrecht Dürer, em sua gravura Melancolia I (1514), trata da “melancolia
imaginativa” (própria de artistas, arquitetos e artesãos) em oposição à “melancolia racional”
(típica de médicos, cientistas e políticos) e, ainda, à “melancolia mental” (aspecto da
personalidade de estudiosos de teologia e segredos divinos) (BERLINCK, 2008, p. 29 e
segs.).
No reconhecido estudo de Saxl e Panofsky, Dürer “Melancolia I”, os autores examinam
iconograficamente a gravura e referem-se ao texto de Agrippa, De la philosophie occulte,
como orientador da obra; eles chamam a atenção para o fato de a gravura trazer em seu
título o número I, reforçando a descrição de Agrippa de três níveis da melancolia. Isso
porque Melancolia I está visivelmente dedicada às artes manuais. Contudo outros autores
questionam: onde estão Melancolia II e III? Logo depois de Melancolia I, Dürer pinta São
Jerônimo em seu estudo. Saxl e Panofsky julgam essa obra um contraponto e um contradito
a Melancolia I. Para os autores, São Jerônimo em seu estudo seria a Melancolia III, ou a
inspiração intelectual daquele que conhece os segredos divinos. Dürer dissera que as duas

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representações deveriam ser vistas juntas ou simultaneamente. Todavia informações indicam


que a Melancolia II, que transmitiria a inspiração filosófico-profética, não é realizada, ou
ainda seja a gravura O cavaleiro, a morte e o diabo, de 1513.
De fato, a “melancolia renascentista” influencia muitos artistas do período, e o
exemplo destacado, Albrecht Dürer, em Melancolia I (1514), traz o sentimento não mais
com conotação médica (doença ou sanidade), porém torna-se metáfora. Na gravura, a
melancolia é representada como uma mulher de asas (ou um anjo), potencialmente capaz
de grandes voos intelectuais. Mas a Melancolia não está voando, está sentada, imóvel, na
clássica posição dos melancólicos, com o rosto apoiado em uma das mãos. A cabeça lhe
pesa, cheia de mórbidas fantasias. Às voltas com seus demônios internos, a Melancolia
permanece imóvel, como se lhe faltasse ânimo para movimentar-se.
Erwin Panofsky sublinha a melancolia imaginativa como faceta principal da gravura
Melancolia I, de Albrecht Dürer – o que permite lê-la como produto do imaginário alquímico
do período. O anjo sentado, de fisionomia aborrecida e contrariada, manuseando com
displicência a ponta do compasso que tem nas mãos e com o qual poderia “redesenhar”
o espaço que o rodeia, é a própria imagem da confusão de alma que é preciso sublimar,
encontrando um caminho (PANOFSKY, 1964). A desarrumação dos objetos à volta de um
anjo, que mais poderia ser uma “dona de casa”, incapaz de pôr ordem em suas coisas, é
outro dos sinais que o artista fornece. A confusão do exterior torna-se reflexo da íntima
confusão, enquanto se aguarda algum sinal ou que alguma coisa de repente mude, ainda
que por acaso, mais do que por intervenção própria (PANOFSKY, 1964). A figura feminina
também está atrelada à representação da peste – o flagelo cuja epidemia devastara diversas
regiões da Alemanha.

Figura 1 – Albrecht Dürer, Melancolia I, gravura (31 x 26 cm), 1514. Alemanha

Fonte: www.albrecht-durer.org/

Paulo Roberto Amaral Barbosa


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Figura 2 – Albrecht Dürer, São Jerônimo em seu estudo, gravura (31 x 26 cm), 1514. Alemanha

Fonte: www.albrecht-durer.org/

Figura 3 – Albrecht Dürer, O cavaleiro, a morte e o diabo, gravura (31 x 26 cm), 1513, Museum
Boijmans van Beuningen. Holanda

Fonte: www.albrecht-durer.org/

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A esfera pequena, no canto inferior da gravura, à esquerda, será marca de perfeição, tal
como o possível arco-íris em que a palavra melancolia se inscreve também pode significar uma
transformação positiva e luminosa (PANOFSKY, 1964). Quase tão destacado quanto o anjo, está,
sempre do lado esquerdo, um poliedro encostado a uma escada que tem por trás um anjo menor,
um putto, semiadormecido. Walter Benjamin chama a atenção para a pedra, ou ainda o poliedro
que seria um cubo, desenhado de modo peculiar para que não se tenha, desde logo, a noção do
equilíbrio das faces. Isso faz todo o sentido: os alquimistas falam da pedra cúbica, e da pedra
polida, quando desejam referir-se à perfeição que é necessário atingir (BENJAMIN, 1985).
Na gravura, a alma está adormecida, e o mesmo sinal é dado pelo cão enrolado que está
dormindo aos pés do anjo (BENJAMIN, 1985). O cão adormecido, fiel companheiro do artista
em muitas das gravuras com referências alquímicas conhecidas, é outra alusão à melancolia. O
organismo canino, no período, está ligado à figura do baço. Na época, cães com face melancólica
seriam os melhores: um cão alegre e amistoso não seria confiável para a guarda da propriedade.
No sentido metafórico, a figura do cão negro é remetida à memória. Como o cão, a memória é
um fiel acompanhante do homem. Memória às vezes sombria, como algo evidenciado pela própria
cor escura do animal, corresponde à obsessão renascentista de evocar, lembrar. O melancólico
lembra, porém o que recorda é triste. O cão adormecido representa a memória desligada, imersa
em profundo sono (PANOFSKY, 1964). O mar no horizonte da gravura relembra a inclinação
dos melancólicos para as longas viagens, remetendo à transitoriedade do mundo perante a inércia
do humano.
O anjo traz chaves em sua cintura. Para o artista tais “chaves” são indispensáveis, pois
todo o processo é cifrado, é secreto e não é dado a qualquer um (PANOFSKY, 1964). No chão,
uma bolsa. Não por acaso, nos desenhos preparatórios da gravura, Dürer escreve que as chaves
significam poder, e a bolsa, riqueza. Metáforas: “quem tem chaves pode abrir portas, inclusive as
do céu”; “a bolsa remete a uma característica tradicionalmente atribuída aos melancólicos, avareza”
(PANOFSKY, 1964). Deve-se mencionar, ainda, que Saturno é frequentemente representado com
bolsa e chaves; a divindade é vista como responsável pelo processo de cunhagem de moedas. A
profusão de objetos na obra de Dürer é relevante para o presente estudo – e, como veremos mais
adiante, também na produção de De Chirico os objetos têm grande peso e importância.
Em Dürer, os objetos são os utilizados cotidianamente, em vários ofícios, na ciência: balança,
ampulheta, sineta, martelo, serrote, pregos. Aparentemente são ferramentas que não estão ali para
serem usadas; ao contrário, os elementos sugerem a imobilidade, expressa em ponto culminante
nas imagens do anjo e do cão (PANOFSKY, 1964). A ampulheta mostra o tempo congelado: os
dois compartimentos contêm a mesma quantidade de areia. Há ainda uma tábua numérica,
uma clara alusão à geometria, na época valorizada como verdadeira fonte do conhecimento,
excluindo-se a visão teórica e enfatizando-se os aspectos práticos. A tábua numérica apresenta-
se ao lado de instrumentos humildes como o martelo e o serrote, emprestando à geometria um
caráter essencialmente humano (PANOFSKY, 1964). Benjamin afirma que a transição entre o
melancólico e o mundo se faz por intermédio das coisas, não das pessoas. Acumular – riqueza,
roupas, obras de arte, propriedades – é o imperativo desse período, mesmo que depois os objetos
fiquem sem utilidade, como acontece na gravura (BENJAMIN, 1985).
A gravura de Dürer é alegórica, o que não deixa de ser apropriado – tratando-se de
melancolia, como se percebe, alegorias não são raras. O anjo ou a mulher de Melancolia I poderia
representar, para alguns autores, a peste negra que assolou a Europa na época e aproximou os
sentimentos de morte e dor para os melancólicos. Nesse caso, a melancolia é interpretada como
uma espécie de “psicose da peste”. Aos 34 anos de idade, Dürer vive a peste em Nuremberg e
expressa em suas gravuras as experiências vividas. A Melancolia poderia ser o que autores chamam
de “fantasia”, que, apesar de ser versada no decifrar dos símbolos, não apaga a iconografia
própria à genialidade melancólica do período.


“[...] todos os atributos da melancolia, até a própria melancolia representada por essa figura feminina
alada de rosto de sombra, referir-se-iam à personificação da Peste, como uma hidra monstruosa cujos
contornos se teriam enfim precisado, mas que não se ousaria, entretanto, olhar de frente” (LAMBOTTE,
2000, p. 20).

Paulo Roberto Amaral Barbosa


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Figura 4 – Michelangelo, O Pensador, 1525, Basílica de San Lorenzo. Florença (Itália)

Fonte: www.artchive.com/artchive/M/michelangelo.html

Ao completar o sentido alegórico, o anjo é apresentado com o rosto na sombra, olhar perdido
ao longe e a cabeça apoiada numa das mãos, em posição semelhante ao Pensador de Michelangelo
– na Melancolia I e em diversas outras obras desenhadas e talhadas por Dürer, há referências
à obra-prima de Michelangelo. Também nessa direção, o pequeno putto, que lê uma inscrição
segurando um sextante nas mãos, representaria o “gênio da história”, que tenta classificar os
acontecimentos em ordem cronológica, ou então o “gênio da astrologia”, que se dedica à previsão
do mundo futuro (LAMBOTTE, 2000, p. 23). Assinala-se aqui que fazer da melancolia uma
alegoria é não mais considerá-la como um humor passageiro, submetido à existência humana,
mas atribuí-la às qualidades de uma divindade é índice de um projeto estético construído sobre
os processos da melancolia, que visa submeter os elementos do meio a uma arte da composição
(LAMBOTTE, 2000).
Ao considerar as três gravuras designadas por Dürer como Meisterstiche (O cavaleiro, a
morte e o diabo, 1513, São Jerônimo em seu estudo, 1514, e Melancolia I, 1514), pode-se notar que
elas encerram, entre outros símbolos, o crânio humano, a ampulheta, o cão (além do leão de São
Jerônimo), animais fantásticos e signos cabalísticos (LAMBOTTE, 2000, p. 19). De igual formato,
elas mergulham no claro-escuro oriundo da segunda viagem de Dürer à Veneza e permitem
a divisão da luz em espaços variados (LAMBOTTE, 2000). A presença da morte, o inexorável
escoamento do tempo e a centralidade das personagens (o Cavaleiro, São Jerônimo e a Melancolia)
definem o conjunto de gravuras. O conjunto expressa a “face negra” da melancolia, na tradição
antiga que relembra o gênio da morte que cerca o humano. Ao retomar as interpretações de
Panofsky, o Cavaleiro representaria a vida do cristão no mundo material da ação e da decisão;
São Jerônimo, o santo no mundo espiritual da contemplação sagrada; e a Melancolia, o gênio
secular presente no mundo racional e imaginativo das ciências e das artes (PANOFSKY, 1964).
Contudo a “elevação intelectual”, contida na alegoria de Melancolia I, apresenta dissonâncias
inerentes ao contexto renascentista. Como diz Panofsky (1964), “a teoria e a prática não se


“Gravuras Master”.

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conjugam bem, é o que mostra a composição de Dürer; e o resultado é a incapacidade de agir e


o humor sombrio”. Doença, causada pelo pensar excessivo, a melancolia é também a enfermidade
que mais leva a pensar; em outros termos, alimenta a reflexão filosófica e a criação poética. Para
os homens de “elevada intelectualidade”, o preço a pagar seria o isolamento, como no caso de
Montaigne, que se retira da vida pública para, em seu castelo, refletir sobre a clássica questão:
“Que sei eu?” (SCLIAR, 2003, p. 88). Montaigne não é propriamente um eremita porque continua
atento aos problemas de seu tempo, mas é “o melancólico em sua torre solitária”, segundo seu
amigo e poeta John Milton (1608-1674), em Il penseroso (O pensativo), publicado em 1654.
O poema é uma alusão aos tempos sombrios e meditativos cercados pela peste negra. Nele o
poeta saúda a “boa” melancolia que leva ao amor de Deus e que seria própria dos intelectuais
inconformados com a existência humana (SCLIAR, 2003, p. 87).
Nesse sentido poder-se-ia considerar, como a torre solitária (o templo da melancolia, a
biblioteca), o mundo cercado pelos livros que refletem algo limitado e, de certa forma, controlado
em oposição às descobertas do “novo mundo”, no período renascentista. Cervantes, em diversas
passagens de seu romance, mostra a figura desgastada e “fora de seu tempo” do cavaleiro andante.
A personagem Sancho Pança seria considerada sua antítese e, por sua vez, mais adaptada às novas
demandas. Desprovido de pudores e com um profundo senso prático, Sancho Pança vive de acordo
com as solicitudes do período, ao contrário do seu senhor, que almeja as honrarias de uma vida
cavaleiresca que não existe mais. Dom Quixote é levado à loucura pelos livros – melancolia e
loucura têm suas ligações (às vezes se complementam, às vezes se contradizem), uma tênue linha
as divide. O Cavaleiro da Triste Figura é limítrofe, reflete a melancolia dos fidalgos que vivem a
aventura mítica de um passado sem retorno. Ao longo do período renascentista, o progresso e o
predomínio do comércio impelem a novos comportamentos econômicos e sociais que são rejeitados
pelo feudal Dom Quixote: “[...] de pouco dormir e muito ler lhe resseca o cérebro” (SAAVEDRA,
2003) – sua “triste figura” pode ser tomada como a projeção corporal de seu temperamento: seco
por dentro, seco – magro – por fora (isto é, a condição física dos melancólicos).

Figura 5 – Candido Portinari, Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes, lápis sobre papel (37 x
24,6 cm), 1956, Museus Castro y Maia. Rio de Janeiro, Brasil

Fonte: Ajzenberg (2004, p. 32)

Paulo Roberto Amaral Barbosa


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A ideia do fidalgo, do príncipe ou do “monarca melancólico” é recorrente na época e


é transmitida em inúmeras manifestações artísticas. No teatro, por exemplo, Shakespeare
cria Hamlet, uma personagem desiludida com o mundo, incapaz de vingar a morte do pai e
dona de uma imaginação superior que adota a melancolia como resposta ao mundo doente
no qual vive. Shakespeare aborda o mal-estar com transparência, empatia e complexidade.
Dá à sua personagem astúcia e sentimentos de autodestruição. No momento em que Hamlet
é encenado, a melancolia é tanto um elogio quanto uma doença – aos menos privilegiados
social e economicamente, a melancolia é vista como um mal a ser extirpado (um melancólico
é candidato, assim como a escória da sociedade, a integrar a Nau dos insensatos). Para os
mais abastados, o humor é o que daria o tom de sua genialidade – a retomada da tradição
clássica fornece os sustentáculos para esse pensamento.
No drama barroco é frequente a figura do “príncipe melancólico”. No período da reforma
e contrarreforma, crescem as obras que tratam da moralidade do cotidiano e da honestidade
das pequenas coisas. Para os intelectuais, o “absurdo da existência” os aproxima do terror
da morte, do mundo enlutado. No mundo protestante, a intervenção divina adquire novos
aspectos: nele as ações humanas, baseadas na moral e na racionalidade, trazem consequências
divinas. Para Walter Benjamin (1985), o príncipe melancólico barroco é aquele que, dotado
de poderes absolutos, sabe que não pode mais contar somente com a intervenção divina em
relação ao mundo. Daí o caráter dramático do qual a alegoria barroca não pode prescindir.
O homem barroco retoma a natureza como objeto da ciência, no sentido de dominá-la, mas
nesse processo se afasta de seu potencial simbólico. Do mesmo modo, a melancolia barroca
possui implicações expressivas de um mesmo sentimento: o medo, a necessidade de domínio
daquilo que aparece como contraditório e externo à consciência (BENJAMIN, 1985).
No histórico sobre as diversas concepções relativas ao sentimento melancólico percebe-se
a proliferação de discursos que variam entre: o médico, que encerra na fisiologia seus sintomas
e a interpreta como doença física com incidências psíquicas secundárias; o médico-filosófico,
que reflete sobre sua tipologia e sobre a relação do humor com o sentimento, da alma com
o corpo; e o filosófico-moralista, que se dedica à doença da alma ligada intrinsecamente ao
desgosto pela vida (PIGEAU, 2009, p. 119). Os “herdeiros de Saturno” (Dürer, Cervantes,
Shakespeare, entre outros) transformam o humor e o mal-estar em alegoria, metáfora e,
depois, pode-se dizer, criam uma “estética da melancolia” que passa pelo ideário medieval
(como um pecado capital), adentra o Renascimento (às vezes como doença, outras vezes
como traço de genialidade – retomando as ideias aristotélicas), ressurge no Barroco (como o
medo inexorável perante a morte), no rococó (passa a ser a “doce melancolia”) e, finalmente,
será base primordial do Romantismo – as fontes românticas nutrem a poética de Giorgio De
Chirico e o transformam em um “herdeiro de Saturno”.
As percepções românticas sobre a melancolia varrem a Europa e adquirem status social.
Na Itália, por exemplo, todos aqueles que acreditam ser gênios esperam ser melancólicos.
Ingleses que viajam para as terras italianas e lá convivem por certo tempo regressam para
casa gabando-se da sofisticação adquirida e expressa em seus atributos melancólicos – uma
vez que somente ricos podem arcar com os custos das viagens, a melancolia torna-se uma
doença aristocrática inglesa (SOLOMON, 2002, p. 286). Porém é na França que o humor se
configura em “doce melancolia”, que mais tarde será o sustentáculo do ideário romântico.


A nave dos insensatos, de Hieronymus Bosch (Paris, Louvre), é uma sátira à corrupção da sociedade e
do clero, com referências ao folclore e à literatura. O motivo da barca dos loucos é corrente na casa de
Flandres de “1400”. A barca é alegoria que surge nos desfiles carnavalescos de Brabante e dá nome a
uma confraria que coloca na berlinda as pessoas poderosas da localidade. Entre as influências literárias
existentes na obra de Bosch está o poema satírico de Sebastian Brant Narrativas. Porém a suprema
exaltação do tema se encontra no Elogio da loucura, de Erasmo (1509).

“Bem metaforizar é contemplar o semelhante, escreve Aristóteles na Poética (1459 a7)” (PIGEAU,
2009, p. 136).

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Jean-Antoine Watteau, no século XVIII, surge para todos os seus biógrafos como um
espírito melancólico. A interpretação de sua produção como frívola é algo superficial que
não leva em consideração seu temperamento instável, cerebral e meditativo (FAROULT,
2005, p. 274 e segs.). A “doce melancolia”, preconizada por Watteau, torna-se um conceito
discutido por pensadores franceses, tal como Diderot, e encontra na obra de Joseph-Marie
Vien sua expressão: a mulher serena e meditativa. Contudo, no Iluminismo, a atração pelo
temperamento melancólico é considerada aspecto negativo. Para o “homem racional” a busca
da felicidade não passa por esse sentimento; pelo contrário, a melancolia é algo que precisa
ser domado.
É por intermédio do Romantismo, no século XIX, que a melancolia retorna às discussões
estéticas. O interesse do homem pela natureza, pelo exótico e pelo selvagem revigora a tradição
aristotélica. Nessa perspectiva, as poéticas de Arnold Böcklin e Max Klinger unem elementos
míticos à beleza e à tristeza. O sentir-se melancólico torna-se atributo para a aquisição de
conhecimento, isso porque a autorreflexão proporcionada pelo sentimento levaria às novas
percepções do mundo. As fontes românticas inspiram diretamente os primeiros exercícios
estéticos de Giorgio De Chirico, em meados do século XX.
De Chirico assimila o sentimento melancólico como elemento constitutivo de sua
produção artística. Na pintura metafísica, o artista desempenha a função de um autor que,
ao narrar uma trama enigmática, desvela a sátira embutida no “desejo da cultura ocidental de
tudo saber e conhecer” (BARBOSA, 2006). Em outros trabalhos, a melancolia é representada
pela figura de Ariadne ou pelas luzes e sombras que cercam seus cenários entre ruínas e
máquinas, entre símbolos da Antiguidade e da modernidade.

Figura 6 – Giorgio De Chirico, Melancolia, óleo sobre tela (79 x 63,5 cm), 1912. Coleção particular,
Londres, Inglaterra

Fonte: Faroult (2005, p. 43)


Giorgio De Chirico estuda em Atenas. Segue para Munique em 1905, tendo recebido nessa época
influências do romantismo de Böcklin, do simbolismo de Klinger e da filosofia de Nietzsche e
Schopenhauer. De Chirico alcança grande projeção nas correntes artísticas vigentes, contribuindo
decisivamente para o surrealismo, proposto por Breton em 1924. Mais tarde, rompe com o modernismo
e pesquisa técnicas de pintura renascentista (BARBOSA, 2006, p. 32 e segs.).

Paulo Roberto Amaral Barbosa


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As “memórias vivas” do pintor são responsáveis pela produção de uma poética


instigante que leva o espectador à contemplação, à reflexão e a um universo de múltiplas
citações. As metáforas, criadas pelo artista, carregam invariavelmente uma atmosfera
melancólica escondida atrás dos objetos heterogêneos sem uma aparente lógica. Em suas
obras repletas de citações destacam-se: praças desertas, arcadas irreais, pesadas torres,
dominantes chaminés industriais e presença da máquina, algumas vezes representada pelo
trem. As cenas retratadas são acrescidas por sombras projetadas e manequins nus ou vestidos
em estilo clássico (desprovidos de fisionomia e com expressão enigmática), provocando a
estranheza do elemento humano à cidade. Em outras fases surgem cavalos, gladiadores,
nuvens, e as naturezas-mortas completam a produção plástica de De Chirico.
Em resumo: de Dürer, passando por De Chirico, a Lars von Trier, os herdeiros de
Saturno multiplicam-se no campo da estética, no qual as representações em torno da
melancolia podem ser explícitas, revelando sofrimento físico (feridas abertas, corpos
dilacerados, moléstias, entre outros flagelos). Podem, também, desvelar os suplícios morais,
psicológicos e políticos. Por toda a história, os artistas – por meio de seus trabalhos –
expõem sentimentos e ressentimentos, registros de suas memórias, ou ainda o ar resignado
perante o irreversível da mortalidade: as ambiguidades do ser humano são evidenciadas,
demonstrando sua frágil condição (ARGAN, 1992, p. 50 e segs.).

REFERÊNCIAS

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

AJZENBERG, Elza (Org.). Dom Quixote Portinari. São Paulo: MAC USP, 2004.

BARBOSA, Paulo Roberto Amaral. Giorgio De Chirico no acervo MAC USP. Dissertação
(Mestrado)–Programa Interunidades Estética e História da Arte, Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

______. Melancolia e questões estéticas: Giorgio De Chirico. Tese (Doutorado)–Escola de


Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

BENJAMIN, Walter. Origine du drame barroque allemand. Paris: Flammarion, 1985.

BERLINCK, Luciana Chauí. Melancolia – rastros de dor e perda. São Paulo: Humanitas,
2008.

FAROULT, Guilherme. La douce mélancolie – selon Watteau et Diderot – représentations


mélancoliques dans les Arts en France au XVIII siècle. In: GALERIES NATIONALES DU
GRAND PALAIS. Mélancolie: genie et folie en Occident. Paris: Gallimard, 2005.

LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da melancolia. Rio de Janeiro: Companhia Freud,


2000.

PANOFSKY, Erwin. Saturn and melancholy. Ed. por H. W. Janson. Londres: Hadcover,
1964.

PIGEAU, Jackie. Metáfora e melancolia: ensaios médico-filosóficos. Rio de Janeiro: PUC


Rio/Contraponto, 2009.

v. 1 | n. 1 • setembro de 2012
A melancolia, o anjo e os herdeiros de Saturno | 19

SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Don Quixote. Londres: Penguin Classics, 2003.

SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.

SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2002.

Sites consultados:

www.albrecht-durer.org/

www.artchive.com/artchive/M/michelangelo.html

Paulo Roberto Amaral Barbosa

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