Anda di halaman 1dari 20

Entre o sucesso e a lama: crime, violência e paz na

obra do Racionais MC's


Pedro Pereira Borges Junior
Nº USP: 2950859
Mestrando na área de Linguagem e Educação

"Vim pra sabotar seu raciocínio1"


Inseridas em uma realidade tão complexa quanto a que encontramos
nas periferias de São Paulo, onde as relações, permeadas pelo capitalismo,
podem forçar alguns indivíduos e grupos a lançar mão da violência para
combater a barbárie (ADORNO, 2009), as letras do grupo Racionais MC's,
vistas em conjunto, podem soar contraditórias, confundindo até seus próprios
fãs (FELIX, 2005), dado o destaque, por exemplo, à criminalidade e a posturas
muitas vezes consideradas violentas. Em muitas letras, versos que parecem
valorizar a violência alternam-se com outros que a rejeitam. Ao mesmo tempo
em que o crime é visto como uma fonte de opressão sobre a população da
periferia, parece ser uma alternativa para sobreviver na sociedade de consumo,
e também como resposta à violência sofrida pelos negros, índios e pobres ao
longo da história.
O vocabulário empregado nas letras é carregado de gírias, (ou
"dialetos", como canta Mano Brown em uma das canções mais famosas do
grupo, Negro Drama), embora muitas delas cheguem a extrapolar seus grupos
de origem e acabem sendo consagradas pelo uso e tendo seu significado,
inicialmente velado, caindo no senso comum, perdendo o próprio caráter da
gíria, que seria o uso de códigos compreensíveis apenas entre os membros de
grupos sociais restritos − seria necessário um estudo mais específico para
saber até que ponto os grupos de rap colaboraram para disseminar gírias que
inicialmente pretendiam ser herméticas. Boa parte da sociedade costuma
associar os falantes da gíria ao crime, por desconhecer como funcionam os
mecanismos das diversas variantes linguísticas, entre as quais a gíria é apenas

1
Capítulo 4, Versículo 3, in Sobrevivendo no Inferno, Cosa Nostra, 1998
mais uma. De fato, há, obviamente, um jargão próprio usado entre criminosos
(a “gíria de bandido”, como alguns gostam de pontuar), mas o intercâmbio
entre variantes linguísticas é constante, assim como os deslocamentos de
significado, quer sincrônica, quer diacronicamente, e o uso estético de dialetos
distintos não é exclusividade do rap. A
Ao lado das gírias, também há uma série de palavras realmente
oriundas do mundo do crime e da violência, como nomes e marcas de armas
(PT, Taurus, Rossi, etc.) e artigos do código penal, como é o caso da canção
Artigo 157 (2002), que se refere à prática do roubo. Também não podemos nos
esquecer dos palavrões, declamados em alto e bom som, causa, segundo
conta-se em conversas informais, da rejeição do Racionais em rádios
comerciais e programas de televisão dedicados à "família brasileira".
Por fim, muitas músicas do Racionais trazem justamente o crime como
tema central ou transversal; na obra do grupo encontramos canções que
traçam a trajetória de ladrões, traficantes, viciados, homicidas, detentos e ex-
detentos, muitas narradas na primeira pessoa, onde o eu lírico descreve suas
próprias agruras e aventuras.
Ao lado das características das canções que acabamos de descrever,
ainda há a vestimenta característica dos adeptos ou simpatizantes da cultura
Hip Hop, do qual o rap é parte integrante, os semblantes quase sempre graves
de seus integrantes, o cenário de quase todas as músicas, a saber, as ruas,
favelas, becos, vielas e demais espaços da periferia. Tudo isso forma um
arcabouço muito próximo dos estereótipos associados a crimes violentos. Ao
mesmo tempo, segundo as estatísticas declamadas pelo próprio Racionais na
música Capítulo 4, Versículo 32, os quatro integrantes, todos negros, também
são o estereótipo que representa as maiores vítimas de violência policial e
dizem buscar A fórmula mágica da paz (1998).

"Rap é uma guerra e eu sou gladiador3"

2
"60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência
policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras
apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em
São Paulo".
3
1 por amor, 2 por dinheiro, in Nada como um dia após o outro dia, Cosa Nostra, 2002.
Temos a impressão de que os fãs do Racionais extrapolam o público
comum de rap, além de aparentarem ser uma unanimidade entre os adeptos
do Hip Hop. Vale ressaltar que no que se refere às posses de Hip Hop, embora
o rap seja parte integrante do movimento4 (FELIX, 2005, pp. 98- 100), nem
sempre está no centro das questões.
É inegável que o Racionais MC's exerce um papel de liderança inegável
entre muitos grupos das periferias, seja no meio do Hip Hop, seja em outros
grupos organizados. Dada a complexidade de suas letras e a postura que os
membros do grupo assumem, a amplitude da influência que Mano Brown, Ice
Blue, Edy Rock e KL Jay exercem vai de detentos a estudantes, de evangélicos
a membros do movimento negro, de movimentos sociais, passando por jovens
oriundos das elites com posicionamento político consciente e definido ou que
apreciam manifestações culturais e artísticas consideradas "exóticas" por
estarem fora do mainstream. É pouco provável, portanto, que todos os
admiradores do Racionais o sejam pelos mesmos motivos.
Freud, em seu livro Psicologia das massas e análise do eu (s/d) nos
lembra que as massas são formadas em torno de um líder com quem os
indivíduos do grupo estabelecem laços libidinais pautados em outros motivos
em uma visão idealizada desse líder. Salztrager (2011) em um estudo
comparativo entre La Boétie e Freud nos lembra que as relações entre a massa
e seu líder vão além da sugestão e da manipulação; antes, os liderados
escolhem amar, obedecer e concordar com seu líder de modo voluntário e
"relativamente" consciente.
Freud (s/d) inicia o texto apresentando as ideias do psicólogo Le Bon,
Psychologie des foules (s/d) sobre psicologia das massas para logo em
seguida contestá-las. O psicanalista concorda com Le Bon, por exemplo, a
respeito do comportamento impetuoso das massas, onde "sentimentos
subjetivos se transformam em atos com maior facilidade" (SALZTRAGER,
2011), mas, enquanto o psicólogo francês acredita no poder de sugestão e de
manipulação por parte dos líderes, Freud vai em outra direção. Para ele,
embora concorde haver nas relações entre a massa e seus líderes sugestão e

4
Na visita que Felix fez à sede de uma posse no Itaim Paulista, destacou que as ações ali
desenvolvidas estavam muito mais voltadas para aspectos políticos e mesmo ideológicos do que para a
cultura do rap. Destaque para o fato de que a referida posse, ao organizar um evento, convidou bandas
de rock da região e nenhum grupo de rap, por não saber da existência deles.
contágio de ideias dentro grupo, acredita que os indivíduos se permitem ser
sugestionados, e não que isso se dê por conta de algum tipo de
vulnerabilidade, ou por um talento ou dom especial do líder:
Não há dúvida de que existe algo em nós que, quando nos
damos conta de sinais de emoção em alguém mais, tende a
fazer-nos cair na mesma emoção; contudo, quão amiúde não
nos opomos com sucesso a isso, resistimos à emoção e
reagimos de maneira inteiramente contrária? (FREUD, s/d)

Essa permissividade, ou, nas palavras de Salztrager, essa "servidão


voluntária" (2011) é pautada em laços emocionais (libidinais) e na idealização
do líder:
(…) e a que poder poderia essa façanha ser mais bem
atribuída do que a Eros, que mantém unido tudo o que existe
no mundo? (…) se um indivíduo abandona a sua distintividade
num grupo e permite que seus outros membros o influenciem
por sugestão, [grifo nosso] isso nos dá a impressão de que o
faz por sentir necessidade de estar em harmonia com eles, de
preferência a estar em oposição a eles, de maneira que, afinal
de contas, talvez o faça ‘ihnen zu Liebe‘ [por amá-los].
(FREUD, s/d)
A sensação de pertencimento a um grupo, que muitas teorias
apresentam como algo inerente ao homem, presente desde tempos ancestrais,
ou desde sempre, também faz com que os indivíduos abram mão de seus
desejos pessoais em prol do desejo do grupo. Então, o indivíduo,de algum
modo pondera que é mais vantajoso seguir a massa, onde estará de algum
modo protegido e será parte de um grupo que considera forte, por vezes
mesmo invencível, do que opor-se a ela.
Os laços amorosos compartilhados entre os membros do grupo e deles
para com o líder, sendo que este muitas vezes deixa aflorar seu narcisismo e
atrofiar seu amor para com o grupo, são pautados pela idealização que os
indivíduos alimentam com relação ao líder (acrescentaríamos que em relação
aos pares também, ainda que em escala menor), quando estes enxergam no
objeto do amor, por exemplo, aquilo que buscam em si mesmos. De certo
modo, o líder é o espelho daquilo que desejamos para nós:
A tendência que falsifica o julgamento nesse respeito é a da
idealização [grifo do autor]. (…) Vemos que o objeto está sendo
tratado da mesma maneira que nosso próprio ego, de modo
que, quando estamos amando, uma quantidade considerável
de libido narcisista transborda para o objeto. Em muitas formas
de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de
sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos.
Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos
por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos
de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer
nosso narcisismo. (FREUD, s/d)
Outro fator relevante para a organização das massas diz respeito à
sensação de igualdade que os membros do grupo acreditam compartilhar.
Nesse ponto, é importante trazer à tona a definição de massas formulada por
Freud: grupos efêmeros, formados em torno de uma questão ou necessidade
específica e que se dispersam logo em seguida. Freud ainda fala de grupos de
massa artificiais, como exércitos e igrejas. Em grupos artificiais, os membros
estariam presos, por um lado, pelo líder (que nem precisa ser uma pessoa
definida: pode ser uma ideia, uma doutrina) e por outro, pelos seus pares, pelo
amor que há entre eles (FREUD s/d). Ele ainda lembra que qualquer reunião
de pessoas tem potencial para se tornar um grupo psicológico (que age de
acordo com determinadas características que o torne "homogêneo").
A vastidão de fãs do Racionais MC's que escutam suas canções de
modo solitário, ou os pequenos grupos de jovens que se reúnem para ouvir as
músicas do grupo e trocar informações e impressões sobre ele e sobre os
temas apresentados pelas canções, seja em um momento de lazer, seja em
um âmbito mais político e engajado, não chegam, na maior parte das vezes, a
formar um grupo psicológico. No entanto, nas grandes concentrações de
pessoas que assistem aos shows do Racionais e que veem em seus
integrantes exemplos de admiração e um espelho idealizado do próprio ego,
reúnem os requisitos necessários para serem considerados um grupo
psicológico. É curioso notar que esse grupo psicológico muitas vezes toma
atitudes à revelia justamente dos que elegeram como liderança.
Contudo, e essa questão é fundamental, a idealização que cada
indivíduo lança sobre Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, tanto
individual quanto como grupo, não é necessariamente sobre o mesmo objeto.
Elas surgem em grande parte, obviamente, das letras e discursos que os
mesmos recitam, declamam e cantam, mas a recepção que cada um faz, de
acordo com seus históricos pessoais, suas visões de mundo e seus desejos,
nem sempre encontra eco nos desejos do próprio Racionais.
Na canção Negro Drama, do álbum duplo Nada Como um dia após outro
dia (2002), Edy Rock e Mano Brown, vocalistas e letristas do grupo, ao lado de
Ice Blue, − o quarto membro do grupo é o DJ KL Jay5 − alternam-se nos
vocais. A segunda parte da música, cantada por Brown, é uma espécie de
autobiografia rimada e esteticamente bem elaborada, como podemos notar, por
exemplo, a seguir: "Hey, São Paulo,/Terra de arranha-céu,/A garoa rasga a
carne,/É a torre de babel; (…) Eu recebi seu tic,/Quer dizer kit,/De esgoto a céu
aberto,/E parede madeirite". Nos versos acima, o eu lírico trava um
relacionamento com a cidade nada amistoso, posto que esta é pouco receptiva
a ele, seja pelo clima, e pela falta de recursos para lidar com ele, seja pela falta
de identificação ou mesmo de compreensão da cidade, representada pela
metáfora da Torre de Babel − a língua "limpa", oficial praticada pelas elites se
opõe à língua carregada de gírias, ou dialetos, praticada nas periferias. Além
disso, o que a cidade oferece à família do eu lírico, formada apenas por ele e
pela mãe, são condições de moradia precárias, degradantes, insalubres. A
família não está apenas "à margem": está à margem do esgoto.
De acordo com o que a cidade oferece ou nega a essa família, só é
possível projetar para o futuro do eu lírico a marginalidade em suas variadas
vertentes, do crime ao subemprego, o que é sintetizado na expressão
"promissor vagabundo". Contudo, cabe a pergunta: o futuro vagabundo o é, de
seu próprio ponto de vista, pois se trata de um modo de tratamento
relativamente comum entre criminosos, ou do ponto de vista do outro, que
tacha de vagabundo qualquer um que não tenha acesso aos cobiçados bens
de consumo desfrutados pela ala superior da pirâmide social?

5
O uso de nomes em inglês é bem usual entre os rappers da chamada velha escola do Rap; o
uso de nomes de matriz africana ou tirados da cultura brasileira passou a ser mais comum entre os
rappers da chamada nova escola. A diferença entre velha e nova escola marca apenas os pioneiros do
movimento Hip Hop no Brasil, enquanto a nova escola refere-se a todos que não participaram do início
do Hip Hop Brasil. (FELIX,2005)
Já a primeira parte de Negro Drama, entoada por Edy Rock, com versos
igualmente bem elaborados, é um passeio entre situações generalizantes,
vividas por muitos negros pobres das periferias, e constatações sobre a
trajetória do próprio eu lírico, que nesse caso, como em muitas canções dos
Racionais, se confunde com o próprio autor-intérprete. Edy Rock oscila entre a
primeira e a terceira pessoa, e parece alternar igualmente seus interlocutores,
ora parecendo dirigir-se aos seus "trutas de batalha", seus pares da periferia,
ora falando claramente com a classe social dominante, acusada de ser a
responsável histórica pela situação na qual se encontram os negros e índios
pobres do Brasil:
Você deve tá pensando,
O que você tem a ver com isso,
Desde o início,
Por ouro e prata,

Olha quem morre,


Então veja você quem mata
(…)
Não foi sempre dito,
Que preto não tem vez,
Então olha o castelo e não,
Foi você quem fez cuzão,

Eu sou irmão,
Dos meus trutas de batalha,
Eu era a carne,
Agora sou a própria navalha,

Tim..tim..
Um brinde pra mim,
Sou exemplo, de vitórias,
Trajetos e glórias. (2002)

Essa oscilação entre interlocutores e entre primeira e terceira pessoa faz


do rap Negro Drama uma "arma de longo alcance", apontada para todas as
direções da sociedade. A letra, bem mais extensa do que os excertos aqui
reproduzidos, característica desse gênero musical, também não tem refrão, o
que não é um facilitador para a apreensão completa de seu conteúdo, de suas
mensagens, conotações, metáforas. Edi Rock, ao mesmo tempo que
responsabiliza as classes dominantes pela violência atual, como consequência
da ganância, dos "castelos construídos com ouro e prata" extraídos às custas
de trabalho escravo, afirma que conseguiu escapar da sina que estava
historicamente programada para ele, invertendo o jogo, passando de "carne a
navalha" e merecendo, por isso, um brinde.
Tanto Edi Rock quanto Mano Brown, em Negro Drama, usam termos
duros para se referir aos representantes das classes dominantes, seja em uma
perspectiva histórica, seja para seus contemporâneos. Edi Rock, por exemplo,
se dirige aos responsáveis pela exploração os chamando de "cuzão"; Mano
Brown, também em tom desafiador, fala com o "senhor de engenho":
Ei,
Senhor de engenho,
Eu sei,
Bem quem você é,
Sozinho, cê num guenta,
Sozinho,
Cê num entra a pé, (2002)

Negro Drama, quando ouvida parcialmente, ou em uma chave


denotativa, pode ser vista como uma peça de incitação à violência, de
confronto entre a periferia e o centro, ricos e pobres, entre brancos e negros. O
senhor de engenho, figura poderosa nos tempos coloniais, igualmente senhor
de escravos, é escarnecido por não ter condições, sozinho, de enfrentar a
realidade da qual é parcialmente responsável, e que é vivida cotidianamente
pelos moradores das periferias, e, por que não, dos moradores dos campos.
A ideia do confronto não pode ser escamoteada, especialmente se
levarmos em conta não apenas Negro Drama (que sequer pode ser
considerada o exemplo mais explícito a esse respeito), mas uma série de letras
do Racionais. Entretanto, para além de xingamentos e desafios, um trecho de
Negro Drama merece destaque: "Falo pro mano/ Que não morra e também não
mate". A partir desses versos, podemos supor − não ousamos ir além da
hipótese − que o confronto invocado na letra não é no nível físico, direto,cru,
mas uma demonstração de consciência e uma afirmação de seu próprio
espaço. Contudo não é difícil entender que, a partir de letras como essas, uma
parcela do público se identifique com ela a ponto de, especialmente em grupos
psicológicos, em massas, levar a um extravasamento que por sua vez resulte
em situações violentas. Esse movimento que sai da opressão do cotidiano para
uma postura redentora, transformando sofrimento em experiência estética que
pode levar a atitudes intempestivas, especialmente em grupo, mas também de
modo individual, podemos chamar de catarse, ou de descarga:
Todo sofredor, todavia, procura instintivamente uma causa
para o seu sofrimento; mais precisamente ainda, um
agente, de modo mais determinado, um agente culpado e
susceptível à dor - em resumo, algum vivente, em que ele
pode descarregar seus afetos, efetivamente ou in effigie, a
propósito de qualquer pretexto: pois a descarga de afeto é a
maior tentativa de alívio, isto é, de entorpecimento do sofredor,
seu involuntário e desejado narcótico contra sofrimentos
de qualquer espécie. Unicamente aqui pode ser encontrada,
segundo minha suspeita, a efetiva causalidade fisiológica do
ressentimento, da vingança e seus aparentados, numa
exigência, pois, de entorpecimento da dor por meio de afeto.
(NIETZSCHE, apud. GIACÓIA Jr, 2001)

Sem deixar de lado a complexidade da sociedade na qual estamos


inseridos, destacamos ser extremamente fácil encontrar alguns culpados por
algumas causas de sofrimento entre negros moradores da periferia. Para
Nietzsche, mais que entorpecimento, a transformação do sofrimento em arte é
uma experiência de intenso gozo. "Essa possibilidade de transformar a dor em
êxtase, pela via da estética, seria justamente o sentido aliciador para a vida do
pensamento de Nietzsche desde o seu ponto de partida" (FERNANDES, in
NIETZSCHE, s/d).
A arte e seu efeito catártico não são, para Nietzsche, aspectos
secundários da existência; antes, a arte é o que nos ajuda a suportar a
existência:
(…) aproxima-se, qual feiticeira da salvação e da cura, a arte;
só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos
enojados sobre o horror e o absurdo da existência em
representações com as quais é possível viver: são elas o
sublime, enquanto domesticação artística do horrível, e o
cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo.
(NIETZSCHE, 1992)

A arte tem a capacidade de sublimar o horror, de transformar o que pode


ser insuportável em uma experiência estética. Nesse sentido, a arte tem um
caráter redentor e, em certa medida, de simulacro, de experimentação. Nem
sempre precisamos ver nas construções estéticas um convite literal a alguma
prática e, muitas vezes, realizamos nela o que não seria aceitável realizar fora
dela.

"Na terra cujo herói matou um milhão de índios"6


A arte contemporânea em praticamente todas as suas vertentes, da
música − um de seus braços mais poderosos − às artes plásticas, passando
por cinema, literatura etc., tem, em muitos casos, fronteiras muito fluidas,
espaços intercambiáveis entre o que seria arte de massa e arte popular, ou
entre aquilo que é espontâneo e o que é produzido em larga escala pela
indústria cultural (ADORNO, 2009).
Os produtos gerados pela indústria cultural são projetados para que o
consumidor − as relações são estabelecidas, no âmbito da indústria cultural,
em torno de mercadorias, entre fornecedores e consumidores − sacie uma
necessidade que muitas vezes é legítima, mas construída junto com o produto
em questão. Na verdade, nesse universo regido pela indústria cultural, o que
vale é o poder de compra; logo, as opções disponíveis equivalem-se, por se
prestarem a saciar o mesmo desejo.
Freitas (2003, p.19) em seu estudo a respeito da obra de Adorno,
também lembra que a cultura de massa é "narcisista [grifo do autor], por
manipular os consumidores, os fazendo crer que são "representados nas telas
do cinema e da televisão, nas músicas e nos vários espetáculos". A arte de
6
Cores e Valores, 20012, inédito em disco. Letra (parcial) e música disponível em: <
http://letras.mus.br/racionais-mcs/1804917/>. Acesso em: 2013-8-11.
massa vende o que o consumidor pensa ou deseja ser; ela não tem a
finalidade de gerar qualquer tipo de incômodo que arranque o indivíduo de seu
estado inicial e o lance em outras possibilidades; não é feita para gerar
qualquer tipo de crise ou problematização; não é contestadora, embora muitas
vezes simule ser; é uma arte que tende a manter o estado atual de coisas e
traz, quase sempre, uma ideia maniqueísta e (re)conciliadora. Boa parte da
obra do Racionais MC's, e a própria ideia original do movimento Hip Hop foge
do padrão da indústria cultural, apesar de utilizar os mesmos meios de
produção e difusão.
A começar pela relação problemática que o Racionais desenvolve com o
crime e com a polícia, sobram índices de que a manutenção da sociedade
como está não é sequer aventada como hipótese, e o senso comum, pelo
menos no que se refere a esses dois elementos, crime e polícia, constantes na
obra do grupo, passa longe de qualquer tipo de (re)conciliação.
Alguns exemplos da antipatia explícita do Racionais pela polícia:
Um PM negro veio embaçar
E disse pra eu me por no meu lugar
Ver um mano numa condições dessas, não dá (Capítulo 4,
versículo 3, 1998);
Recebe o mérito a farda que pratica o mal (Negro Drama,
2002);
Não confio na polícia, raça do caralho
Se eles me pegam baleado na calçada
Chutam minha cara e cospem em mim
Eu sangraria até a morte (já era, um abraço)
Por isso a minha segurança eu mesmo faço (Homem na
estrada, 1992).
Em 2013, seguindo a onda de manifestações populares que teve início
por conta do aumento nas tarifas de transportes coletivos, e que desencadeou
em uma série de outras reivindicações políticas e sociais, a polícia volta a ser
alvo de suspeitas e críticas devido ao seu comportamento violento nas
periferias. Na imprensa e nas redes sociais, muitos creditam a violência policial
a sua própria origem, desde o início repressora e truculenta, especialmente
contra pobres, negros e outros grupos não hegemônicos. Essas características,
hipertrofiadas durante as ditaduras, especialmente a militar, ainda estariam
presentes, inclusive em ações como a chamada "polícia pacificadora", em
comunidades carentes do Rio de Janeiro. Tem sido fácil encontrar nas redes
sociais críticas contra a polícia que vão desde cobrança de punições para os
oficiais corruptos e truculentos até o pedido da extinção da polícia militar.
Independente dos acontecimentos recentes, que têm levado uma
parcela significativa da população a manifestar seus desejos de forma
impetuosa, com características de grupos psicológicos, seja nas ruas, seja nas
redes sociais, o fato é que há mais de vinte e cinco anos encontramos nas
letras do Racionais críticas contundentes ao comportamento da polícia,
denunciando suas abordagens violentas nas periferias e a vendo como inimiga
declarada dos negros pobres. Não há possibilidade de conciliação entre a
periferia e a polícia, que agiria sempre a serviço das classes dominantes,
brancas e abastadas.
Essa contundência do Racionais ao criticar a polícia, com frases como
"Não confio na polícia, raça do caralho", em Homem na estrada (1992), está
longe de ser comparável à arte de massa oferecida pela indústria cultural,
posto que nesta, a tendência é, no máximo a de uma "revolta comedida",
insuficiente para gerar grandes movimentos de mudança, além de ter caráter
excessivamente efêmero. Na arte de massa, o máximo que podemos encontrar
são “simulacros de simulacros”, incapazes de gerar qualquer tipo de reflexão –
e sabemos o quanto a obra do Racionais é capaz de gerar polêmicas e
reflexões.
Na verdade, Homem na estrada, que narra a trajetória de um ex-detento
que tenta, após cumprir pena, ser reintegrado à sociedade, e que vai narrando
uma série de situações de violência e desassistência do poder público em um
bairro da periferia, é o inverso de qualquer possibilidade de reconciliação entre
o eu lírico e a sociedade. Merece destaque a palavra estrada, que no início da
música surge como metáfora de trajetória pessoal que o eu lírico pretende
retomar após o período de detenção. Após uma série de relatos comuns de
situações vividas nas periferias, o eu lírico − vale ressaltar que, a exemplo de
Negro Drama, também encontramos uma oscilação ao longo da canção entre
primeira e terceira pessoa − marcado "pra sempre" por ser "ex-presidiário",
surge como possível suspeito de um assassinato e, a despeito de qualquer
apuração justa é executado por policiais − justiceiros ou "pés de pato",
conforme gíria comum a partir dos ano 1980 − drogados. Julgado, condenado e
executado, o corpo do eu lírico é encontrado à beira de uma estrada, aqui já
sem a conotação de trajetória, mas em seu sentido denotativo, "realista" e
cruel, denunciando a situação de abandono e o mito, tantas vezes
desmascarado, da "reintegração" de ex-detentos à sociedade.
Em Homem na Estrada, a polícia surge como executora de uma justiça
parcial e pessoal, pautada não na investigação ou nos direitos civis e humanos,
mas em deduções apressadas fundadas em preconceitos, e onde, na verdade,
apurar a autoria do crime importa menos do que executar um "vagabundo",
termo genérico usado para definir todo morador de periferia que tenha um perfil
"padrão", que pode incluir desde o criminoso até o jovem que use roupas
consideradas "de ladrão" – comumente usadas por adeptos da cultura Hip Hop.
Nesse contexto, não é difícil entender qual a origem dos confrontos
ocorridos entre o público do Racionais MC's e a polícia, por exemplo, na Virada
Cultural de 2007, ainda que, fora das letras, não seja fácil ouvir dos membros
do grupo qualquer tipo de incitação à violência, embora uma parcela de seus
fãs, por motivos variados, veja no grupo inspiração para o confrontar a polícia.
Essa inspiração advém, entre outros fatores, do fato de a polícia, boa parte das
vezes em que atua na periferia agir com truculência, partindo do princípio de
que todos são, mais que suspeitos, criminosos em potencial.
Por essas razões, está claro que, entre detentos negros e mestiços,
moradores da periferia, que tiveram pouco acesso à escola, a atendimento
médico e a bens culturais, e a polícia que, apesar de formada em grande parte
por pessoas oriundas das classes populares, estar quase sempre, na visão do
Racionais (e de seu público), a serviço das elites, os artistas tomam partido do
primeiro grupo.
Além disso, é fácil constatar que o Racionais, ainda que reconheça que
a violência praticada nas periferias nem sempre é praticada por policiais, mais
de uma vez é apresentada como reação à violência praticada pelas elites – e a
polícia, estaria a serviço dessas mesmas elites.
O próprio capitalismo é descrito como um sistema nefasto e violento,
onde para sobreviver é preciso se adaptar. Em Cores e valores (2012), há um
trecho cantado por Ice Blue que consideramos exemplar:
Com sorriso de disfarce a espera da solidão são
Meus irmãos se entregam a missão
(…)
Acumulo de mágoas jão desilusão

Liberdade não se segue


Se o ditado diz que tal, cada qual com o que merece
Os boys em teste, então não se mexe
"Seis" ficam chiclete, cara no chão
Ninguém se mexe, eu quero, espécie, dinheiro
Nada pessoal o assunto é financeiro

Difícil compreender sem a tua, sem as suas leis


Não são minhas leis, nem as inventei, e eu me adaptei
Guerra fria, muçulmanos e USA
Preto e branco como jogo de xadrez
Uns corre, na caça da prata e do ouro
Rolex amarelo no braço é um estouro

Uma Cayenne e os banco coberto de couro


Os cara de olho azul não representam meu tesouro (2012)

Aparentemente, este trecho descreve um assalto feito em grupo, cujas


motivações são, entre outras, a concentração de renda e uma reação à já
discutida violência histórica. Na primeira parte da música, cantada por Mano
Brown, além do verso já citado, "Na terra cujo herói matou um milhão de
índios", que denuncia a reverência a personagens históricos, os bandeirantes,
cuja estátua de um deles, Borba Gato, está na entrada do distrito de Santo
Amaro, região populosa "central" da zona sul de São Paulo, próxima ao Capão
Redondo. A marca das atividades dos bandeirantes foi a invasão de terras,
escravização ou genocídio de índios e caça a quilombos, em busca
desenfreada de riquezas minerais.
Ainda na parte cantada por Mano Brown, há o lembrete sobre situação
econômica da cidade: "São Paulo tem dinheiro pra caraio pra trincar né/Sem
perder o foco olha o fluxo/Vê, Cross Fox, Tucson, X5, é estouro/Preto, amarelo
ouro é luxo". A cidade é rica, luxuosa e as classes mais privilegiadas são
adeptas da ostentação (e a sociedade parece ser mais tolerante com a
ostentação quando ela é praticada pelos ricos, brancos moradores de áreas
nobres), embora boa parte de seus moradores não tenha acesso a bens
básicos.
O canto de Ice Blue surge como uma resposta à má distribuição de
renda, causa do "acúmulo de mágoas” e da "desilusão". O grupo que anuncia o
assalto considera a operação um "teste", talvez para atos maiores, e apresenta
uma refinada ironia − "Nada pessoal, o assunto é financeiro". Essa ironia, sem
dúvida, é uma boa resposta às classes dominantes que não assumem suas
responsabilidades pela má distribuição de renda, atribuída ora a fatores
históricos, ora Á incompetência dos excluídos, transformando as vítimas em
seus próprios algozes.
Há também uma postura cínica com relação aos lucros que as classes
dominantes obtém na periferia, por exemplo com a venda do álcool, como é
lembrado na canção Homem na Estrada, mas também com o próprio consumo
de drogas − vale ressaltar que as drogas não circulam apenas nas periferias,
mas também em condomínios de luxo, boates com público "selecionado" −,
venda ilegal de armas entre outros crimes e contravenções.
No que tange à responsabilidade das classes dominantes do passado e
do presente, Cores e Valores alinha-se à Negro Drama. Ambas também
sugerem que um dos poucos caminhos para a inclusão econômica dos
excluídos é o crime; contudo, em Cores e Valores, o crime cometido pelos
moradores das periferias é colocado em nível de equivalência dos crimes
cometidos pelas elites, seja o dos bandeirantes, seja os da elite de agora: "Não
são minhas leis, nem as inventei, e eu me adaptei". E não é apenas no Brasil
que estas leis, da conquista pela violência, da invasão, são praticadas: Blue
cita como exemplo desse princípio a Guerra Fria, as disputas entre os Estados
Unidos e as nações em volta do Golfo Pérsico, cujas motivação seria, de fato,
pilhar riquezas e manter a ostentação diante dos outros países. Cores e
Valores também traz uma marca presente em muitas canções do Racionais: há
aspectos emocionais e psicológicos que são ressaltados nos personagens para
além de uma descrição plana, rasa: desilusão, "acúmulo de mágoas", o próprio
uso da ironia, já citado, "Zona sul é o invés, é stress concentrado/Um coração
ferido, por metro quadrado...", o amor devotado às mães e aos amigos, e até a
atitude muitas vezes considerada machista − embora acreditemos que o
machismo explicitado seja dirigido a um tipo bem caracterizado de mulheres
que não gozam da simpatia do grupo por alimentarem justamente o machismo,
o racismo e o consumismo − humanizam as personagens para além de
estereótipos e caricaturas.
Na disputa entre a violência praticada pelas elites contra as periferias e a
violência que a periferia devolve, o governo e suas instituições, especialmente
a polícia, toma claramente partido das elites, fato explicitado, por exemplo na
canção Dedo na ferida7, de Emicida. Nela, o rapper explicita a diferença de
tratamento com relação a terrenos ocupados: "Vi condomínios rasgarem
mananciais/A mando de quem fala de deus e age como satanás". A letra
também lembra que " Alphaville foi invasão, incrimine-os", a respeito de um dos
bairros mais valorizados da grande São Paulo. Por outro lado, quando os
terrenos são ocupados por pessoas pobres, o tratamento se inverte: " Corre do
gás, luta, morre, enquanto o sangue escorre/É nosso sangue nobre, que a pele
cobre". O refrão da música não tem espaço para meias palavras: "Foda-se
vocês/Foda-se suas leis"; há também um verso de Capítulo 4, Versículo 3, dos
Racionais: "A fúria negra ressuscita outra vez".
Dedo na ferida foi escrita por conta do processo de reintegração de
posse da área conhecida como Pinheirinho,que se tornou exemplar pela
truculência com que a polícia agiu no momento da desocupação, ou expulsão
dos moradores, e porque o terreno em questão era do famoso criminoso do
colarinho branco Naji Nahas, um dos poucos a ser preso no Brasil por crimes
desse tipo.
No dia 13 de maio de 2012,ao cantar Dedo na ferida em um show em
Belo Horizonte, Emicida foi preso sob a alegação de desacato a autoridade.

Adorno, no famoso texto Educação contra a barbárie, não idealiza uma


sociedade sem violência, sem agressão, mas condena veementemente a
barbárie, que é definida como

7
2012. Inédita em disco. Disponível em < http://letras.mus.br/emicida/dedo-na-ferida/>.
Acesso em: 2013-08-11
(…) algo muito simples, ou seja, que estando na civilização do
mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se
encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em
relação a sua própria civilização − e não apenas por não terem
em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos
termos corespondentes ao conceito de civilização, mas
também por se encontrarem tomadas por uma agressividade
primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um
impulso de destruição. (2009, p. 155)
Em sociedades como a nossa, esse impulso de destruição pode estar
embalado em ideias distorcidas, como mérito pessoal, talento e com o apoio de
instituições como o poder judiciário e a polícia. A falta de saneamento básico e
moradia ("esgoto a céu aberto e parede madeirite"8;"falta água/ já é rotina/ não
tem prazo pra voltar/ já fazem cinco dias"9), o abandono da educação pública
("problema com escola eu tenho mil,mil fita" 10) e o desprezo nas áre11as de
saúde e educação ("Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo/Pra molecada
frequentar, nenhum incentivo/O investimento no lazer é muito escasso/O centro
comunitário é um fracasso"), entre outras coisas, são fatores que levam à
barbárie − com incentivos do governo.
Para conter a barbárie, Adorno acredita que a violência, pode ser
invocada: "(…)creio que, na luta contra a barbárie ou em sua eliminação existe
um momento de revolta que poderia ele próprio ser designado como bárbaro,
se partíssemos de um conceito formal de humanidade" (2009;p. 158). Sendo a
barbárie uma "regressão à violência física, primitiva, sem que haja uma
vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade", a violência que
surge como resposta à violência, por assim dizer "oficial", consentida e mantida
direta ou indiretamente pelo próprio estado, pela sociedade de consumo, talvez
faça parte do referido "momento de revolta" que antecede justamente a
contenção da barbárie, posto que "a violência pode ser um sintoma da
barbárie, mas não precisa necessariamente sê-lo" (ADORNO, 2009, p. 159). O
desprezo e abandono a que as periferias são entregues, nos parece muito mais

8
Negro Drama, 2002. , in Nada como um dia após o outro dia, Cosa Nostra, 2002.
9
Homem na estrada, in Raio X do Brasil, Cosa Nostra, 1993.
10
Negro Drama, 2002. , in Nada como um dia após o outro dia, Cosa Nostra, 2002.
11
Fim de semana no parque, in Rio X do BrasilI, Cosa Nostra, 1993.
um regresso à violência primitiva, portanto uma atitude bárbara, do que a
"adaptação às leis" a que Cores e Valores se refere.

"Lutar por amor"12


Felix (2005) relata o caso de um assassinato ocorrido durante um show
do Racionais da cidade de Bauru em janeiro de 2005. O episódio teria levado a
um debate no universo do rap, em torno da pergunta "Onde o rap errou?".
Nesse debate chama a atenção a fala de Mano Brown de que o seu público
não prestava atenção nas críticas aos que abraçam o crime como estilo de
vida, apegando-se apenas, por exemplo, ao refrão da música Eu sou 157I, que
os Racionais tirariam do repertório. Havia, não só da parte dos Racionais, mas
de toda comunidade do rap (mais especificamente do que do universo do Hip
Hop) para esclarecer que "rap e crime são coisas separadas e bem distintas
entre si" (FELIX, 2005, p. 148).
Dois anos após o ocorrido, em 2007, os Racionais lançavam o DVD
1000 trutas, 1000tretas, com Eu sou 157 no repertório. Em 2012, Cores e
Valores e Carlos Marighella ambas fazendo referência ora crimes, ora ao uso
da violência como forma de resistência e revolução.
A violência, o crime, por conta da própria poética dos Racionais, da
trajetória e dos temas com os quais estão comprometidos, não poderia
desaparecer de sua obra, sob a sentença de descaracterização total do grupo.
Sendo assim, crime e violência continuam presentes em seus shows e nas
composições mais recentes, seja como retrato da realidade que se
comprometem a relatar e reelaborar em um plano estético, seja para
possibilitar experiências catárticas, seja como alternativa de resistência à
violência sofrida.
Com a violência presente, também se mantém a oscilação entre a
condenação da violência, especialmente a que é praticada na periferia por seus
próprios moradores, e a violência contra o sistema ou as classes dominantes,
elas também extremamente violenta ao longo da história. A idealização do
público para com os Racionais é algo que, por conta da opção estética e
política do grupo, e do fascínio que exercem sobre parcela significativa dos

12
Carlos Marighella, 2012, inédita em disco. Disponível em: <http://letras.mus.br/racionais-
mcs/marighella/>. Acesso em: 2013-8-11.
jovens da periferia que também desejam, por alguma via ser exemplo de
"vitórias, trajetos e glórias", como canta Edy Rock em Negro Drama.
Em uma sociedade que a despeito da imagem que constrói sobre si
mesma mudou muito pouco desde 1988, ano da formação dos Racionais MC's,
especialmente no que tange à violência, abuso de poder, abandono das
periferias e racismo, por exemplo, não há, em um horizonte próximo, motivos
para supor que os Racionais mudem radicalmente sua temática − embora
possam, tavez, radicalizar ainda mais a abordagem de seus temas.

BIBIOGRAFIA
ADORNO, THEODOR W. Educação e Emancipação. São Paulo, Paz e Terra,
2010.
FELIX, João Batista de Jesus. Hip Hop: cultura e política no contexto
paulistano. 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-
01052006-181824/>. Acesso em: 2013-08-11.
FREITAS, Verlaine. Adorno & a arte contemporânea. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar editor, 2003.
FREUD. Psicologia das massas e análise do eu. Disponível em:
<http://www.clube-de-leituras.pt/upload/e_livros/clle000128.pdf>. Acesso em:
2013-08-11.
GIACÓIA Jr, Osvaldo: Folha explica Nietzsche. São Paulo, Publifolha, 2000.
_________________: Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo, Editora
Unisinos, 2001.
NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes Marginais na Literatura. Rio de
Janeiro, Aeroplano, 2009.
NIETZSCHE, F. A visão dionisíaca de mundo e outros textos da Juventude.
Disponível em: <http://www.verlaine.pro.br/nascimento/visaodionisiaca.pdf>.
Acesso em: 2013-11-
______________. 2013O nascimento da tragédia. São Paulo, Companhia das
Letras, 1992.
SALZTRAGER, Ricardo. Os Fenômenos de massa e a servidão voluntária:
um possível diálogo entre Freud e La Boétie. In: Revista Digital AdVerbum 6
(2): Ago a Dez de 2011: pp. 177-185.

Anda mungkin juga menyukai